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Cena I
A primeira e grande preocupação de Manuel de Sousa é a ilegitimidade da filha.
Manuel de Sousa exagera e julga-se o autor de todo o mal: único responsável pelo mal
causado a D. João; responsável pela vergonha em que lançou o nome de sua família;
responsável pela ilegitimidade e morte da sua filha; o mais infeliz de todos.
Manuel de Sousa prefere que a sua filha morra de tuberculose a morrer de vergonha.
Apenas sabem da verdadeira identidade do Romeiro Manuel de Sousa, Frei Jorge e o
arcebispo – aqueles que mais criam nele serão os últimos a saber.
Ao contrário da imagem apresentada no ato primeiro, Manuel de Sousa é agora um
homem vencido, martirizado, emotivo.
Esta cena inicial do Ato III funciona como uma espécie de preparação para o desfecho
trágico dos acontecimentos.
Deste modo, antevê-se a morte de Maria, quando Manuel refere que ela lançou o
sangue todo que tinha no coração, “Não tem mais”. Para além disso, ao dirigir-se a Deus
(“Eu queria pedir-te que a levasses já (…) que chamasses aquele anjo para junto dos
teus”, Manuel suplica a morte para Maria, antes que “este mundo infame e sem
comiseração” a recrimine e a despreze pela “desgraça do seu nascimento”.
Por fim, Manuel, a quem Jorge incentiva a entregar-se a Deus com resignação, deseja
a morte como fim para este sofrimento, o que se vem a concretizar com a entrada no
convento.
Obs.:
Frei Jorge, por sua vez, pretende apaziguar o seu irmão, evocando a infelicidade do
Romeiro, a fim de lhe demonstrar que esta é maior do que a dele. Manuel tem quem o
apoie a nível familiar e religioso, mas o velho peregrino não poderá contar com
ninguém. Mostrando que há sofrimentos maiores, pretende que o irmão se conforme com
o dele.
Porém, Manuel de Sousa Coutinho discorda do irmão, argumentando que o Romeiro
não tem uma filha, embora inocente, sobre quem recairá a desonra e as injustiças do
mundo por ser agora considerada ilegítima. Logo, considera que o seu sofrimento é
superior ao de D. João de Portugal e, sendo assim, este não poderá ser tão desgraçado
ou infeliz quanto ele.
Saliente-se que D. Madalena está ausente de modo a evitar novo confronto com
o Romeiro, para assim não se aperceber da verdadeira identidade deste. De facto, a
identidade do Romeiro, que se encontra fechado numa cela, como já foi referido, só a
conhecem Frei Jorge, Manuel e o arcebispo.
D. Madalena apenas sabe que o seu primeiro marido está vivo, mas ainda não o
relacionou com o Romeiro.
Quando Frei Jorge informa D. Manuel de que D. João desejava ainda encontrar-se com
uma pessoa, aquele julga que se trata de D. Madalena, mostrando uma indignação
profunda face à suposta crueldade de D. João. No entanto, quando o irmão desfaz o
equívoco, explicando-lhe que se trata de Telmo, Manuel arrepende-se da sua atitude.
Romeiro teve uma atitude compreensível, na medida a que esperava que o seu velho
aio, pelo menos, o reconhecesse.
▪ Manuel de Sousa considera que o seu casamento com D. Madalena foi um erro e não um
crime (faz tal afirmação, pois casou-se sem uma prova inequívoca da morte de D. João
de Portugal, não obstante a esposa o ter procurado durante 7 anos por todo o lado).
Porém, não considera o seu casamento um crime, visto que as suas ações foram
praticadas sem que tivesse consciência de que estava a incorrer em adultério e bigamia.
Dito de outra forma, um crime deve ser punido, enquanto um erro, ainda por cima
involuntário, pode ser cometido sem se ter a consciência de que se está a errar, pelo
que merecerá uma sanção menos pesada.
▪ Pode ler-se aqui uma crítica velada à sociedade da época, pois condena uma família à
destruição, por causa do desaparecimento de alguém ocorrido há mais de vinte anos.
▪ A situação de Maria leva-o a, por um lado, desejar que ela viva (“Peço-te vida, meu
Deus, peço-te vida, vida… vida para ela,”), pois é uma vítima inocente (é o amor de pai
a falar), e, por outro, a pedir a sua morte (“meu Deus! eu queria pedir-te que a levasses
já”), já que tem consciência das consequências que se irão abater sobre a filha, que
será marginalizada pela sociedade (“vai cair toda essa desonra, toda a ignomínia, todo o
opróbrio.”). É um pai a sangrar pela desonra que se abateu sobre a filha.
▪ Considera D. Madalena uma «infeliz» e «desgraçada» por ter sido arrastada por ele para
a vergonha e para a infâmia. Por outro lado, chama-lhe “desgraçada”, porque o fim de
D. Madalena será tão trágico quanto o seu. Ambos envergarão o escapulário e serão
privados da filha e do amor que os uniu.
▪ O seu discurso reflete a emotividade que o caracteriza ao longo da cena: frases curtas
(“Oh, minha filha, minha filha!”), alternando com frases longas de construção erudita
(terceira fala de Manuel de Sousa); apóstrofes (“Olha Jorge”); hipérboles (“bebeu até às
fezes o cálix das amarguras humanas”; “A lançar sangue?... Se ela deitou o do
coração”); metáforas (“para pôr tudo na testa branca e pura de um anjo”); frases de
tipo exclamativo e interrogativo. Todos estes recursos conferem ao discurso uma grande
intensidade dramática.
▪ Note-se o contraste entre o Manuel de Sousa Coutinho que encontramos nos atos I e II e
aquele que nos é dado a conhecer nesta cena. De facto, nos atos anteriores, a
personagem surgiu em palco como um homem sensato, racional, determinado,
pragmático e corajoso, porém, agora, após a chegada do Romeiro e o agravamento do
estado da filha, revela-se uma figura dilacerada, profundamente infeliz, desesperado,
quer pela doença da filha, quer pela desgraça que está a abater-se sobre a família, quer
por se sentir o maior culpado pela infelicidade dos outros.
▪ Nesta mesma cena, é possível observar que a personagem oscila entre a emotividade e a
racionalidade – um misto de herói clássico e romântico. A primeira, bem ao gosto
romântico, manifesta-se essencialmente sempre que se refere a Maria, enquanto a
racionalidade que o caracterizava anteriormente aflora quando, após analisar a situação
em conjunto com Frei Jorge, assume a tomada de hábito como a solução mais adequada
para o problema.
▪ Quando Manuel de Sousa se diz o homem mais infeliz na Terra, Frei Jorge recorda-lhe a
situação de D. João de Portugal, que perdeu tudo quanto tinha.
▪ A sua fé e a sua lucidez orientam as ações de Manuel de Sousa, que está incapaz de
decidir racionalmente.
▪ Procura manter-se tranquilo e sensato, não se deixando dominar pelos acontecimentos
funestos. Ele aceita-os como resultado da vontade divina, que não pode ser contestada.
(“… Foi uma resolução digna de vós, foi uma inspiração divina que os alumiou a todos” –
ele classifica esta decisão como “divina”, uma vez que será uma forma de Manuel e D.
madalena se redimirem do pecado que cometeram de forma involuntária). – As suas
palavras apontam para a redenção, a salvação espiritual resultante do sacrifício, como a
paixão de Cristo.
¤ CARACTERÍSTICAS ROMÂNTICAS:
. forma do texto: escrito em prosa;
. religiosidade: referências ao cristianismo e ao culto religioso – preparação da tomada de
hábito;
. o tema da morte, encarada como a melhor solução para os conflitos;
. o individualismo: o confronto entre o indivíduo e a sociedade.
¤ CARACTERÍSTICAS TRÁGICAS
▪ A hybris de Manuel de Sousa, que chega a desejar a morte da filha face à sua
ilegitimidade.
CENA II
Telmo entra em cena, juntando-se a Manuel de Sousa e Frei Jorge, trazendo notícias
sobre Maria:
- Maria acordou e sente-se melhor;
- apesar de abatida, fraca e com voz lenta, o seu olhar está mais sereno e animado;
- perguntou pelo pai e pelo tio, mas não se referiu à mãe.
A este propósito, há que notar a hesitação de Telmo, quando refere por quem Maria
perguntou: «Perguntou por vós… ambos.», pois não quer dizer que ela nada questionou
acerca da mãe. Esta postura de Maria talvez signifique que responsabiliza a mãe pelo
que está a acontecer, que a culpa pela tragédia iminente.
Cena lV
A cena IV é um monólogo de Telmo e contém as marcas deste tipo de discurso: o
fluxo da consciência realizado numa linguagem emotiva, repetitiva, interrogativa,
exclamativa e reticente.
Telmo está mudado: aterrado e confuso.
Antes, acreditava na sobrevivência de D. João de Portugal e comungava de um espírito
sebastianista. Agora, pressente que vai saber notícias daquele que esperava há tantos
anos e treme. Entretanto, Maria ocupou o lugar do outro no seu coração. Criou D.João
de Portugal e afeiçoou-se-lhe; criou Maria e afeiçoou-se-lhe. Aquele já é velho, esta é
uma criança. Tremendo conflito interior: tem de decidir-se por um deles e matar o
outro. Qual? No meio deste agudo conflito, tenta uma saída, pedindo a Deus que o leve
em vez de Maria cuja morte prevê para breve. Segundo alguns intérpretes, é agora que
Telmo se torna uma personagem da tragédia.
Reparem-se em algumas das suas palavras:”Cuidei que o desejava enquanto não veio”-
estas palavras de Telmo inserem-se no momento em que, confrontado com a notícioa de
que D. João de Portugal está vivo, a personagem procede à descrição da sua profunda
mudança, definindo-se como “mais confuso que ninguém!”. Assim , compreende que
desejou o regresso de D. João apenas enquanto esse regresso era uma possibilidade,
enquanto “não veio”, e que, na verdade, esse desejo não era verdadeiro, mas
imaginado, criado (“cuidei que o desejava”). A ilusão desse desejo deve-se ao facto de,
por amar Maria, ter mudado, tendo-se tornado outro homem, um homem que desejava
que D. João continuasse morto.
Telmo por duas vezes utiliza a palavra “pecado”.
As duas ocorrências do vocábulo “pecado” contribuem para clarificar a análise que
Telmo faz da sua mudança, que o leva a considerar-se “outro homem”. Assim questiona
se é “pecado” ter-se esquecido daquele que considera seu “filho”, desejando que
continuasse morto, e rejeita a ideia de Maria ser fruto do “pecado”, referindo-se à
ilegitimidade do seu nascimento, caso se confirmasse que D. João estava vivo.
Telmo justifica, deste modo, a sua evolução, a sua mudança. Esqueceu o seu filho –
algo suficientemente grave para ser considerado “pecado” – por amor de um “anjo”,
cuja existência não pode ser fruto do “pecado”, moralmente ilegítima.
Cena V
Dá-se o tão esperado encontro entre Telmo e o Romeiro. O reconhecimento (a
anagnórise) foi também gradual e levou à mesma pergunta de Frei Jorge na última cena
do ato ll.
Telmo desempenhava até agora o papel de confidente e de coro com os seus agouros.
Agora, a presença do Romeiro instala-o como verdadeira personagem em quem se
desenrola um profundo conflito: toma consciência da sua dolorosa fragmentação afetiva.
É neste aspeto que Garrett é inovador. Nas tragédias clássicas, o Fado / Destino agia e o
herói era o joguete nas suas mãos; em Frei Luís de Sousa, assiste-se à fragmentação do
eu. É dentro das personagens que o conflito se desenrola. Aqui está umas das notáveis
inovações.
D. João de Portugal é o símbolo da força trágica que se abate sobre as personagens
reais.
Telmo julgava ir encontrar-se com o Romeiro. Só reconhece D. João pela voz; repete-se
a cena do reconhecimento com a inevitável pergunta: Romeiro, quem és tu? e uma
resposta igual, agora acrescida da justificação: Ninguém, Telmo, ninguém: se nem já tu
me conheces.
Repare-se no aparte, na segunda fala de Telmo: “Já não sei pedir senão pela outra”
– este aparte permite que o leitor / espetador perceba que o pedido era por Maria, mas
Telmo queria esconder isso ao seu primeiro amo.
A brevidade das respostas dadas por Telmo, as frases curtas são reveladoras do medo
que Telmo tem de deixar transparecer os seus verdadeiros sentimentos e de trair as suas
intenções.
D. João vai-se apercebendo, pouco a pouco, do conflito em que se debate Telmo. Tem
algumas dúvidas de que tão longa ausência não tenha alterado em nada o amor do seu
aio. Percebe a dimensão desse conflito, quando Telmo lhe fala de Maria.
Nesta cena, o encontro entre D. João de Portugal e Telmo evidencia que, neste
momento, o seu amor por Maria suplanta a lealdade ao seu primeiro amo. D. João,
depois da confirmação de que Madalena o mandara incessantemente procurar,
arrepende-se da atitude tomada e ordena a Telmo que desacredite o Romeiro aos olhos
de D. Madalena, evitando assim uma desgraça maior.
Interpretação da resposta dada por D. João: “Até ao dia do juízo”- está aqui
presente um eufemismo, que ameniza, neste caso, a ideia que se associa à morte.
Segundo a tradição cristã, era no momento da morte que se procedia ao juízo final,
condenando ou salvando as almas. Neste contexto, o Romeiro indicia que o
reencontro com Telmo apenas de concretizaria depois da morte.
CENA VI
A cena abre com novo equívoco: D. João, ao ouvir D. Madalena chamar por seu marido
(“Esposo, esposo!”) e pensando que a esposa já sabe quem ele realmente é, julga por
instantes que ela se refere a si e sente-se tentado a abrir-lhe a porta, como ela pedia.
Por momentos, a ilusão do amor toma conta de D. João e o que solicitara a Telmo
parecer ser esquecido (“É ela que me chama! Santo Deus! Madalena que chama por
mim…”; “Que encanto, que sedução! Como lhe hei de resistir?!”), mas rapidamente
toma consciência que a esposa se referia a Manuel de Sousa.
Seja como for, é mais do que óbvio que D. João ama a esposa e, mesmo que por
momentos, estaria disposto a abandonar todas as resoluções se ela lhe correspondesse.
● D. Madalena deseja falar com ele por um motivo claro: tentar remediar a situação,
impedir a tomada de hábito. Para tal, argumenta que talvez estejam a agir de forma
precipitada, ao acreditarem nas palavras de “um romeiro, um vagabundo… um homem
enfim que ninguém conhece”, mas Manuel de Sousa, tratando-a novamente pelo
primeiro nome, contraria-a, jurando-lhe que o amor de ambos é impossível. Ele
mostra-se decidido a aceitar o seu destino, chamando a atenção de D. Madalena, na
cena VIII, para a impossibilidade de o mudarem.
● O tom inicial com que Manuel de Sousa se dirige à esposa é ríspido e frio, tratando-a,
de forma formal, por “senhora”, o que a deixa magoada: “Oh, que ar, que tom, que
modo esse com que me falas.”. Comovido (“enternecendo-se”), Manuel trata-a então
pelo nome próprio, mas logo cai em si e retoma a formalidade e rispidez iniciais.
De facto, ele dirige-se à esposa usando diferentes formas de tratamento:
. formal (“senhora”): atitude de distanciamento;
. familiar (“querida”): atitude de proximidade, de intimidade.
● Esta oscilação das formas de tratamento traduz o contraste entre o amor que Manuel
de Sousa sente por D. Madalena (que lhe corresponde) e a dor de não o poder cultivar e
marca a despedida emotiva entre ambos.
● Na parte final da cena VII, Telmo procura falar à parte com Frei Jorge (“Tenho que
vos dizer, ouvi.”) e os dois “Conversam ambos à parte.”. Embora não saibamos as
palavras que trocaram entre si, é fácil deduzir que o velho aio estará a dar seguimento à
solicitação de D. João, tentando convencer o frade de que o Romeiro é um impostor. A
finalidade é evitar a destruição da família, nomeadamente de Maria.
● A fala final de Manuel de Sousa da cena VIII está repleta de expressões que associam a
decisão tomada a uma morte simbólica: “Para nós já não há senão estas
mortalhas (tomando os hábitos de cima da banca), e a sepultura de um claustro.”. A
referência aos condes de Vimioso é significativa neste contexto.
Manuel, mais uma vez, tenta mostrar a D. Madalena a irreversibilidade da situação,
pois sabe que nada poderá voltar a ser como antes; por isso, evoca novamente os condes
de Vimioso para que a mulher aceite a nova condição, até porque ele próprio já assumiu
as consequências dos seus atos.
Cena IX
A cena IX é a preparação do desenlace: o som do órgão e o coro dos frades produzem
uma intensa atmosfera de dramatismo.
▪ É de notar que a tomada de hábito por parte de D. Madalena não resulta da sua vontade
ou de qualquer crença de que aquela é a solução adequada à situação. De facto, ela luta
até ao fim pelo seu amor e, só quando se apercebe que Manuel de Sousa já partiu para a
cerimónia da tomada de hábito, abdica da sua felicidade e aceita a decisão do segundo
marido (“Ele foi?”; “E eu vou.”), colocando o seu destino nas mãos de Deus.
Cenas X, XI e XII
Estas cenas formam o segundo quadro: a ação passa-se na Igreja de S. Paulo – espaço
apropriado para a profissão religiosa.
Ontem como hoje, ao entrar para a vida conventual, é norma a mudança de nome
que, simbolicamente, sugere o esquecimento (a morte) de tudo o que é mundano. É o
que significa “despir o homem velho”. Manuel de Sousa muda o nome para “Frei Luís (de
Sousa)”.
O discurso de Maria é a cena mais dramática da peça. Alienada, ela exprime de forma
violenta:
- a revolta contra o mundo hipócrita em que os inocentes são castigados;
- a revolta contra Deus, que permite o que está a acontecer e a quem as pessoas
obedecem;
- a revolta contra a sociedade, ali representada por todos os que participam no
cerimonial e que nada fazem para o impedir;
- a revolta contra a lei da indissolubilidade do casamento que gera situações dramáticas;
- a revolta contra a não-aceitação da ilegitimidade de filhos, vítimas de atos que lhes
são alheios.
A peripécia de Maria é inesperada mas necessária para o desenrolar dos últimos fios
da peça: o último reconhecimento (anagnórise), que provoca a catástrofe.
As personagens estão frente a frente: de um lado, a família (há autores que
consideram a família a personagem principal da peça) – pai, mãe e filha; do outro, D.
João de Portugal e Telmo, o amigo, mas também a testemunha acusatória do pecado de
Madalena. São dois mundos incompatíveis.
• D. João de Portugal e Telmo regressam ao rio do esquecimento; Manuel de Sousa
torna-se Frei Luís e escritor e Madalena professa também; Maria morre, vai para o céu,
não era digna deste mundo.
A SABER
O Ato III apresenta-nos um Manuel de Sousa Coutinho emocionalmente perturbado, em
que a razão, ofuscada pela dor, já não disciplina a expressão dos sentimentos. Perante
um casamento pecaminoso e a existência de uma filha ilegítima, à luz da moral da
época, só resta uma solução a Manuel Coutinho e a D. Madalena, ou seja, a morte para o
mundo. Nem outra coisa seria de esperar de quem, ao longo da peça, sempre se mostrou
corajoso e leal aos seus princípios, capaz de grandes sacrifícios, em nome da honra e da
liberdade, colocadas acima dos interesses materiais. A morte física de Maria durante a
cerimónia de tomada de hábito dos pais corrobora o sentido trágico da obra no seu todo.
O presságio que Telmo proferiu na Cena II, do Ato II, confirma-se na parte final da
obra. De facto, Telmo é o único que se mostra disposto a abdicar de um princípio de que
muito se orgulhava – o de nunca mentir – em nome do seu amor por Maria. É por esta
razão que tenta passar a mensagem de que o Romeiro é um impostor.
CENA X
Através de uma estratégia cénica (“Corre o pano de fundo”), temos a mudança
para um cenário religioso- aceitação de Manuel e D. Madalena da sua futura condição
religiosa: D. Madalena e Manuel de Sousa preparam-se para tomar o hábito. Por causa
disso, o espaço da ação muda, passando esta a decorrer na igreja de S. Paulo.
¤ DIDASCÁLIA INICIAL
▪ Espaço:
- igreja de S. Paulo, um espaço solene;
- é neste espaço que vai ocorrer a cerimónia da tomada de hábito, a qual implica o
abandono dos bens terrenos por parte de Manuel de Sousa e D. Madalena, incluindo a
própria filha, o que lhe confere um caráter trágico.
● Manuel de Sousa, ao adotar o hábito, muda o nome para Frei Luís de Sousa, o qual dá
o título à obra. Esta mudança de nome constitui a morte simbólica da personagem:
Manuel de Sousa morreu para o mundo e, em seu lugar, surge um novo ser: Frei Luís de
Sousa.
A fala do Prior traduz, exatamente, estas ideias: “… pois em tudo quisestes despir o
homem velho [0 deixar para trás tudo o que fostes], abandonando também ao mundo o
nome que nele tínheis!”. Esta fala quer dizer que Manuel de Sousa Coutinho, ao
professar, vai renunciar a mundo, como se morresse, e inicia um novo ciclo, uma nova
vida, que passa também pela adoção de um novo nome. O mesmo se pode afirmar a
propósito de D. Madalena: “– Sóror Madalena!”.
CENA XI
Quando Manuel e D. Madalena se preparam para tomar o hábito, surge a Maria em
cena bastante exaltada e evidenciando, até fisicamente, a sua perturbação (ver
didascália inicial), o que contribui para um clima de terror e piedade. Contudo, o seu
discurso, marcado por uma linguagem emotiva, denuncia a sua lucidez e a violência
crítica das suas palavras. De facto, ela produz um discurso repleto de revolta contra
tudo e todos os que responsabiliza pela tragédia que se abateu sobre si e a sua família.
Ela está contra todos os presentes na cerimónia, que ela considera serem representantes
de uma sociedade hipócrita, porque condena inocentes e nada faz para reverter a
situação.
Maria revolta-se contra Deus e a sociedade, pois estes permitem que aconteça esta
desgraça, contra a Igreja, pois não permite o casamento (neste caso, Maria quereria a
dissolução do casamento de D. Madalena e D. João para que o dos seus pais fosse
legítimo e, desta forma, ela também seria legítima.
Obs.: A entrada inopinada/ súbita de Maria vem adensar ainda mais o sofrimento dos
progenitores, fazendo-os sentir mais culpados e mais pecadores. O sofrimento causado
alastrou-se ao fruto do amor deles e isso torna-se insuportável.
¤ CARACTERIZAÇÃO DE MARIA
▪ Maria surge em cena “em estado de completa alienação”, despenteada (“os cabelos
soltos”), vestida de forma imprópria (“traz umas roupas brancas desalinhadas e
caídas”), com o “rosto macerado mas inflamado com as rosetas hécticas, os olhos
desvairados”, como se pode ler na didascália inicial. A sua entrada precipitada mostra o
quão perturbada está.
▪ Esse discurso é extremamente emotivo, como se pode verificar pelo recurso aos modos
imperativo e conjuntivo com valor exortativo (“Mate-me”, “deixe-me”), às apóstrofes,
repetições e interrogações. Além disso, são várias as frases interrompidas por ela
produzidas. Esta linguagem emotiva evidencia a sua lucidez e a violência crítica das suas
palavras.
▪ Por outro lado, o seu discurso é transgressor e questionador das normais sociais e
religiosas dominantes, motivado pela sua revolta, que tem vários alvos:
- aqueles que participam na cerimónia da tomada de hábito e que, portanto,
comparticipam na dissolução do casamento dos pais e da sua família;
- a falta de humanidade de Deus que lhe reservou um destino tão cruel e lhe rouba os pais
legítimos (“Que Deus é esse que […] quer roubar o pai e a mãe a sua filha?”);
- D. João de Portugal, que voltou para a condenar à morte (não é tolerável que alguém
que desapareceu há 21 anos e do qual nada se soube durante esse período de tempo,
tendo sido considerado morto, venha agora destruir o que de mais sagrado existe: uma
família feliz e temente a Deus);
- um mundo hipócrita e desumano em que os inocentes são castigados;
- as convenções sociais e religiosas, que a obrigam a separar-se dos seus pais e condenam
vítimas inocentes (estará aqui em causa a lei da indissolubilidade do casamento, que
gera situações dramáticas).
▪ Em determinado momento, lança um apelo lancinante aos pais: “«Essa filha é a filha do
crime e do pecado!...» Não sou; dize, meu pai, não sou… dize a essa gente toda, dize
que não sou. […] Pobre mãe! Tu não podes… coitada!... Não tens ânimo… - nunca
mentiste?... Pois mente agora para salvar a honra de tua filha, para que lhe não tirem o
nome de seu pai. / […] Não queres? Tu também não, meu pai? – Não querem. […]”. Maria
desafia as normas dominantes ao pedir aos pais que mintam e afirma não se importar
com «o outro» (D. João de Portugal), que veio dizer que ela era “filha do crime e do
pecado”, o que mostra que, para si, a família tem um valor superior aos valores sociais e
religiosos.
▪ Maria não se considera “filha do crime e do pecado”, por isso não se conforma e não
aceita a sua ilegitimidade, e acusa as pessoas de a julgarem e de a impedirem de ser
feliz por causa da sua ilegitimidade.
▪ O objetivo final de Maria é demover os pais de tão inumana resolução de tomar o hábito
(“levantai-vos, vinde”).
▪ No seu discurso, Maria volta a referir-se aos sonhos e visões que a mantinham acordada e
não deixavam dormir: o anjo que surgia com uma espada em chamas na mão e a
atravessava entre ela e a mãe. Essa espada constituía um presságio que remetia para a
separação da família (o atravessar a espada entre ambas) e a sua destruição (o facto de
a espada estar em chamas). (estes devaneios noturnos de Maria eram indícios de um
final trágico)
▪ A sua fala final anuncia a sua morte (“E eu hei de morrer assim…”) e a entrada em cena
do Romeiro (“e ele vem aí…”).
▪ Para Maria, o Romeiro -D. João de Portugal é o “homem do outro mundo”, isto é, alguém
considerado morto e agora ressuscitado para atormentar e trazer a desgraça; por outro
lado, é o homem do outro mundo, ou seja, de outra família, anterior à ilegal construção
da sua, o qual tem direitos e os reivindica nesta hora fatal. Sucede que essas duas
realidades nunca poderiam coocorrer: D. Madalena não poderia ser, face à lei de Deus e
à dos homens, esposa legítima de dois lares em simultâneo.
CENA XII
Esta cena inicia-se com a entrada do Romeiro. No final, Maria morre e os pais tomam o
hábito.
Nesta cena estão presentes todas as personagens.
¤ ACONTECIMENTOS DA CENA
▪ O Romeiro, numa derradeira tentativa de salvar aquela família, reparando assim a
situação que criou e por que se sente responsável, manda Telmo intervir e dizer aos
presentes que é um impostor.
▪ Maria ouve a sua voz e reconhece-o imediatamente. Sendo tuberculosa, tem uma
acuidade auditiva mais desenvolvida. Cumpre-se, assim, a última etapa da anagnórise: o
reconhecimento final da identidade do Romeiro por Maria e pelos circunstantes. (Este
reconhecimento antecipa a catástrofe).
▪ Para Maria, o Romeiro/D. João é esse “homem do outro mundo”, morto e ressuscitado
para trazer a desgraça e confirmar a sua ilegitimidade. Ela não aguenta a “vergonha” de
ser filha ilegítima e morre. De facto, é possível considerar que o trauma psicológico que
sofreu tenha agravado o seu estado de saúde debilitado (pela tuberculose), contribuindo
para a sua morte.
▪ D. Madalena e Manuel de Sousa tudo deixam para trás: bens materiais, lugar de relevo
na sociedade, amigos, parentes e até o nome. Como diz o Prior, despiram “o homem
velho”, para se sepultarem vivos, embrulhados naquelas “mortalhas”, um na solidão do
convento de S. Domingos de Benfica e a outra no convento do Sacramento.
▪A derradeira fala da peça, saída da boca do Prior (“Meus irmãos, Deus aflige neste
mundo aqueles que ama. A coroa de glória não se dá senão no céu.”) aponta para a
possibilidade de uma felicidade futura (a “coroa de glória… no céu”), embora à custa de
sofrimento redentor, neste mundo, pela contrição, pela penitência, pela ascese
(elevação em termos espirituais). Estas palavras de conforto apontam para a esperança,
só possível na mundividência cristã.
ATENÇÃO! Desta fala pode concluir-se que o desenlace da tragédia se projeta em
dois planos.
No plano humano, as personagens não têm saída, não podem voltar atrás, tal como
na tragédia grega, que reflete o mundo clássico-pagão, mundo sem esperança, nem
redenção, em que o Destino, entidade cega e cruel, parece ter ciúmes da grandeza das
personagens e só se satisfaz com a sua destruição e o aniquilamento das vítimas, sejam
elas culpadas ou não.
No plano da mundividência cristã, as personagens, embora destruídas como tal,
infelizes no plano humano, desgraçadas no relacionamento familiar ou social, podem
mesmo assim suportar todas as dores, todos os sofrimentos, porque lhes será sempre
possível, mesmo neste mundo, atingir a paz de consciência, e, com os esforços próprios
de uma vida de penitência, aspirar, com a ajuda da graça de Deus, a uma suprema
felicidade futura.
Por outro lado, no mundo antigo clássico, a morte era vista como o aniquilamento
total, o fim de tudo: nada mais se poderia esperar para além dela. A lei da morte era o
esquecimento, do qual só se salvavam, como escreveu Camões, “… aqueles que por
obras valerosas / se vão da lei da morte libertando”. As obras valorosas eram os feitos
guerreiros dos heróis, os feitos intelectuais dos poetas, os feitos atléticos dos jogos. Só
esses eleitos tinham direito à imortalidade, sublinhada pelo erguer de uma estátua (ou
retrato), duplo da personagem. A imortalidade, ou glória, era, portanto, a memória do
herói, do poeta, do atleta nas gerações vindouras.
Na mundividência cristã, a alma humana é imortal; o homem morre, mas a alma não
é destruída, antes tem um destino feliz ou infeliz, para além da morte. Os santos são os
heróis da Fé, só eles atingem a bem-aventurança, simbolizada na estátua, ou imagem,
com honras e culto nos altares. É neste sentido que apontam as palavras do Prior.
▪ É, pelo exposto no ponto anterior, que para Sóror Madalena das Chagas, no Convento do
Sacramento, se abre uma possibilidade de reabilitação e redenção, pela contrição, pela
oração, pela penitência, que a poderá levar, com a ajuda da graça de Deus, à felicidade
e à bem-aventurança no Céu.
É, por isso, que, para Frei Luís de Sousa, no Convento de Benfica, as perspetivas são
mais largas ainda, se juntar à penitência e à oração, a ascese que o levará à glória do
escritor (o mito romântico do escritor/poeta) e a uma quase santificação, promissora
da suprema glória no Céu.
Por fim, Maria, a vítima inocente das paixões dos pais (sobretudo da mãe), a morte
que a destrói leva-a imediatamente à glória do Céu (“este anjo que Deus levou para si” –
III, 12), marcada pelas virtudes que a envolvem, pelos sofrimentos e provações a que foi
sujeita, pela inocência e pela beleza. Do ponto de vista transcendente, é a personagem
mais feliz de todas.
¤ CARACTERÍSTICAS ROMÂNTICAS:
▪ a exacerbação dos sentimentos;
▪ o domínio da emoção e da sensibilidade;
▪ a morte como solução para os problemas;
▪ a intenção pedagógica: a problemática dos filhos ilegítimos.
¤ CARACTERÍSTICAS TRÁGICAS
¤ Catástrofe:
- O Romeiro sofre uma morte psicológica: o anonimato. Ele é atingido pela dor que causou
nos outros, pela morte de Maria, uma inocente, e por não ter remediado o mal que
involuntariamente causou. Consigo transporta as memórias da breve felicidade passada e
dos infortúnios com que o Destino o sobrecarregou. Nunca quis desonrar a sua viúva, mas
também não deseja a honra para si. Bastar-lhe-á um nome honrado e uma memória sem
mancha.
- Telmo morre psicologicamente também. Conseguirá ele sobreviver a tantos desgostos e a
tão grande sofrimento?
- Manuel de Sousa e D. Madalena morrem para o mundo com a tomada de hábito, para
suportar a sua dor. No lugar de Manuel de Sousa, surge um novo ser: Frei Luís de Sousa.
No de D. Madalena, igualmente outro ser: Sóror Madalena das Chagas.
- Maria é a vítima inocente de um destino trágico e morre fisicamente, revoltada, de
vergonha. Como era usual na tragédia grega, a catástrofe faz-se sentir na vítima (mais)
inocente.
¤ Peripécias:
- a tomada de hábito;
- a morte de Maria.