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Avaliação E. Educação Professor

Ficha de Educação Literária 5

Crónica de D. João I, de Fernão Lopes


Lê o excerto do capítulo 148 da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes. Caso seja necessário, consulta as notas.

Capítulo 148
Das tribulações que Lixboa padecia per mingua de mantiimentos.
Andavom os moços de tres e quatro anos pedindo pam pela cidade por amor de Deos, como lhes
ensinavam suas madres, e muitos nom tiinham outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com eles
choravom que era triste cousa de veer; e se lhes davom tamanho pam come ua noz, haviam-no por
grande bem. Desfalecia o leite aaquelas que tiinham crianças a seus peitos per mingua de
5 mantiimento; e veendo lazerar1 seus filhos a que acorrer nom podiam, choravom ameúde2 sobr’eles a
morte ante que os a morte privasse da vida. Muitos esguardavom as prezes alheas 3 com chorosos
olhos, por comprir o que a piedade manda, e nom teendo de que lhes acorrer, caíam em dobrada
tristeza.
Toda a cidade era dada a nojo 4, chea de mezquinhas5 querelas, sem neuu prazer que i houvesse:
10 uus com gram mingua do que padeciam; outros havendo doo 6 dos atribulados; e isto nom sem
razom, ca se é triste e mezquinho o coraçom cuidoso nas cousas contrairas que lhe aviinr 7 podem,
veede que fariam aqueles que as continuadamente tam presentes tiinham? Pero com todo esto,
quando repicavom, neuu nom mostrava que era faminto, mas forte e rijo contra seus ẽmigos 8.
Esforçavom-
15 -se uũs por consolar os outros, por dar remedio a seu grande nojo, mas nom prestava conforto de
palavras, nem podia tal door seer amansada com neuas doces razões; e assi como é natural cousa a
mão ir ameúde onde see9 a door, assi uus homees falando com outros, nom podiam em al departir 10
senom em na mingua que cada uu padecia.
Ó quantas vezes encomendavom nas missas e preegações que rogassem a Deos devotamente por
20 o estado da cidade! E ficados os geolhos 11, beijando a terra, braadavom a Deos que lhes acorresse, e
suas prezes nom eram compridas! Uus choravom antre si, mal-dizendo seus dias, queixando-se por
que tanto viviam, como se dissessem com o Profeta: «Ora veesse a morte ante do tempo, e a terra
cobrisse nossas faces, pera nom veermos tantos males!». Assi que rogavom a morte que os levasse,
dizendo que melhor lhe fora morrer, que lhe seerem cada dia renovados desvairados 12
25 padecimentos. Outros se querelavom 13 a seus amigos, dizendo que forom desaventuirada 14 gente,
que se ante nom derom a el-Rei de Castela que cada dia padecer novas mizquiindades 15, firmando-
se de todo nas peores cousas que fortuna em esto podia obrar.
Sabia porem isto o Meestre e os de seu Conselho, e eram-lhe doorosas d’ouvir taes novas; e
veendo estes males a que acorrer nom podiam, çarravom 16 suas orelhas do rumor do poboo17.
30 Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer alguũs homees e molheres,
que tanta deferença há d’ouvir estas cousas aaqueles que as entom passarom 18, como há da vida aa
morte? Os padres e madres viiam estalar de fame os filhos que muito amavom, rompiam as faces e
peitos sobr’eles, nom teendo com que lhe acorrer, senom planto 19 e espargimento de lagrimas; e
sobre todo isto, medo grande da cruel vingança que entendiam que el-Rei de Castela deles havia de
tomar; assi que eles padeciam duas grandes guerras, ua dos emigos que os cercados tiinham, e outra

108 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens • 10.o ano


35 dos mantiimentos que lhes minguavom, de guisa que eram postos em cuidado de se defender da
morte per duas guisas.
Pera que é dizer mais de taes falecimentos 20? Foi tamanho o gasto das cousas que mester haviam
que soou uu dia pela cidade que o Meestre mandava deitar fora todolos que nom tevessem pam que
comer, e que soomente os que o tevessem ficassem em ela; mas quem poderia ouvir sem gemidos e
40 sem choro tal ordenança de mandado aaqueles que o nom tiinham? Porem sabendo que nom era
assi, foi-lhe já quanto de conforto. Onde sabee que esta fame e falecimento que as gentes assi
padeciam, nom era por seer o cerco perlongado, ca nom havia tanto tempo que Lixboa era cercada;
mas era per aazo das muitas gentes que se a ela colherom de todo o termo; e isso meesmo da frota
do Porto quando veo, e os mantiimentos seerem muito poucos.
45 Ora esguardae21 como se fossees presente, ua tal cidade assi desconfortada e sem neua certa
feúza de seu livramento 22, como veviriam em desvairados cuidados quem sofria ondas de taes
aflições?
Ó geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tantos males, nem foi
quinhoeiro23 de taes padecimentos! Os quaes a Deos por Sua mercee prougue 24 de cedo abreviar
doutra guisa, como acerca ouvirees.
Fernão Lopes, Crónica de D. João I, Teresa Amado (ed.), Lisboa, Comunicação, 1992, pp. 196-199 (com supressões).

1
lazerar: sofrer, afligir-se; 2 ameúde: com frequência, muitas 15
mizquiindades: desgraças; 16 çarravom: cerravam, fechavam;
vezes; 3 prezes alheas: preces das outras pessoas; 4 nojo: tristeza; 17
poboo: povo; 18 d’ouvir estas cousas aaqueles que as entom
5
mezquinhas: miseráveis; 6 doo: dó, pena, piedade; 7 aviinr: vir; passarom: entre ouvir estas coisas e passá-las; 19 planto: pranto;
8
ẽmigos: inimigos; 9 see: está; 10 em al departir: falar sobre outra 20
falecimentos: misérias, atribulações;
coisa; 11 geolhos: joelhos; 12 desvairados: diversos; 21
esguardae: observai, olhai;
13 22
querelavom: queixavam-se; feúza de seu livramento: confiança na libertação;
14 23
desaventuirada: desventurada, infeliz; quinhoeiro: participante; 24 prougue: agradou.

1. Tendo em conta os três primeiros parágrafos, enuncia as consequências que a fome teve no
comportamento dos habitantes de Lisboa.
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2. Indica que reação o sofrimento do povo de Lisboa suscitava no Mestre de Avis e no seu
Conselho, apontando o motivo por que tinham este comportamento.
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3. Interpreta a expressão «de guisa que eram postos em cuidado de se defender da morte per duas
guisas» (linhas 34-35), relacionando-a com o conteúdo do quinto parágrafo.
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4. Enuncia as causas apontadas pelo cronista para justificar o facto de a fome se ter abatido sobre
Lisboa.
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5. Transcreve uma expressão textual que comprove que Fernão Lopes manifesta empatia em
relação ao sofrimento das vítimas do cerco de Lisboa, explicando o seu significado.
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