Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
o Data / /
Capítulo 148
Das tribulações que Lixboa padecia per mingua de mantiimentos.
Andavom os moços de tres e quatro anos pedindo pam pela cidade por amor de Deos, como lhes
ensinavam suas madres, e muitos nom tiinham outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com eles
choravom que era triste cousa de veer; e se lhes davom tamanho pam come ua noz, haviam-no por
grande bem. Desfalecia o leite aaquelas que tiinham crianças a seus peitos per mingua de
5 mantiimento; e veendo lazerar1 seus filhos a que acorrer nom podiam, choravom ameúde2 sobr’eles a
morte ante que os a morte privasse da vida. Muitos esguardavom as prezes alheas 3 com chorosos
olhos, por comprir o que a piedade manda, e nom teendo de que lhes acorrer, caíam em dobrada
tristeza.
Toda a cidade era dada a nojo 4, chea de mezquinhas5 querelas, sem neuu prazer que i houvesse:
10 uus com gram mingua do que padeciam; outros havendo doo 6 dos atribulados; e isto nom sem
razom, ca se é triste e mezquinho o coraçom cuidoso nas cousas contrairas que lhe aviinr 7 podem,
veede que fariam aqueles que as continuadamente tam presentes tiinham? Pero com todo esto,
quando repicavom, neuu nom mostrava que era faminto, mas forte e rijo contra seus ẽmigos 8.
Esforçavom-
15 -se uũs por consolar os outros, por dar remedio a seu grande nojo, mas nom prestava conforto de
palavras, nem podia tal door seer amansada com neuas doces razões; e assi como é natural cousa a
mão ir ameúde onde see9 a door, assi uus homees falando com outros, nom podiam em al departir 10
senom em na mingua que cada uu padecia.
Ó quantas vezes encomendavom nas missas e preegações que rogassem a Deos devotamente por
20 o estado da cidade! E ficados os geolhos 11, beijando a terra, braadavom a Deos que lhes acorresse, e
suas prezes nom eram compridas! Uus choravom antre si, mal-dizendo seus dias, queixando-se por
que tanto viviam, como se dissessem com o Profeta: «Ora veesse a morte ante do tempo, e a terra
cobrisse nossas faces, pera nom veermos tantos males!». Assi que rogavom a morte que os levasse,
dizendo que melhor lhe fora morrer, que lhe seerem cada dia renovados desvairados 12
25 padecimentos. Outros se querelavom 13 a seus amigos, dizendo que forom desaventuirada 14 gente,
que se ante nom derom a el-Rei de Castela que cada dia padecer novas mizquiindades 15, firmando-
se de todo nas peores cousas que fortuna em esto podia obrar.
Sabia porem isto o Meestre e os de seu Conselho, e eram-lhe doorosas d’ouvir taes novas; e
veendo estes males a que acorrer nom podiam, çarravom 16 suas orelhas do rumor do poboo17.
30 Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer alguũs homees e molheres,
que tanta deferença há d’ouvir estas cousas aaqueles que as entom passarom 18, como há da vida aa
morte? Os padres e madres viiam estalar de fame os filhos que muito amavom, rompiam as faces e
peitos sobr’eles, nom teendo com que lhe acorrer, senom planto 19 e espargimento de lagrimas; e
sobre todo isto, medo grande da cruel vingança que entendiam que el-Rei de Castela deles havia de
tomar; assi que eles padeciam duas grandes guerras, ua dos emigos que os cercados tiinham, e outra
1
lazerar: sofrer, afligir-se; 2 ameúde: com frequência, muitas 15
mizquiindades: desgraças; 16 çarravom: cerravam, fechavam;
vezes; 3 prezes alheas: preces das outras pessoas; 4 nojo: tristeza; 17
poboo: povo; 18 d’ouvir estas cousas aaqueles que as entom
5
mezquinhas: miseráveis; 6 doo: dó, pena, piedade; 7 aviinr: vir; passarom: entre ouvir estas coisas e passá-las; 19 planto: pranto;
8
ẽmigos: inimigos; 9 see: está; 10 em al departir: falar sobre outra 20
falecimentos: misérias, atribulações;
coisa; 11 geolhos: joelhos; 12 desvairados: diversos; 21
esguardae: observai, olhai;
13 22
querelavom: queixavam-se; feúza de seu livramento: confiança na libertação;
14 23
desaventuirada: desventurada, infeliz; quinhoeiro: participante; 24 prougue: agradou.
1. Tendo em conta os três primeiros parágrafos, enuncia as consequências que a fome teve no
comportamento dos habitantes de Lisboa.
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
2. Indica que reação o sofrimento do povo de Lisboa suscitava no Mestre de Avis e no seu
Conselho, apontando o motivo por que tinham este comportamento.
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
3. Interpreta a expressão «de guisa que eram postos em cuidado de se defender da morte per duas
guisas» (linhas 34-35), relacionando-a com o conteúdo do quinto parágrafo.
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
4. Enuncia as causas apontadas pelo cronista para justificar o facto de a fome se ter abatido sobre
Lisboa.
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
5. Transcreve uma expressão textual que comprove que Fernão Lopes manifesta empatia em
relação ao sofrimento das vítimas do cerco de Lisboa, explicando o seu significado.
______________________________________________________________________________