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Sermão de Santos António (aos Peixes) – Análise – 11º – Outubro 2022

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Sermão de Santo António (aos Peixes) - Padre António Vieira

O Sermão:
Constitui uma forma de oratória (arte de bem falar/ discursar em público)

Contextualização histórico-literária
Padre António Vieira nasceu em Lisboa, em 1608 e faleceu na Bahia – Brasil, em 1697. Viveu no
período barroco português, caracterizado pelo excesso, pela transformação da realidade, pela retórica, pelo
sensorialismo e pela teatralidade. O orador proferiu O Sermão de Santo António na cidade de São Luís do
Maranhão, em 1654, na sequência de uma disputa com os colonos portugueses no Brasil.

Objetivos da eloquência: docere, delectare, movere


Este Sermão foi assim denominado por ter sido pregado no dia em que se celebrava Santo António e
pelo facto de o pregador se referir a este Santo como modelo na sua pregação. Assim, o Padre António Vieira,
à imitação de Santo António que pregou aos peixes em Itália, pregou, alegoricamente, aos peixes/ homens
em São Luís do Maranhão, fazendo considerações sobre as virtudes e os vícios humanos, com o objetivo de
alertar e educar o seu auditório para uma mudança de comportamento. Este serviu-se do púlpito, não só
para catequizar os ouvintes, mas também para tratar de assuntos sociais e políticos.
Cumprindo as funções da oratória (arte de bem falar em público), Vieira tinha como objetivo:

• docere (educar / ensinar): usando argumentos de autoridade (da doutrina cristã, de autores e obras
clássicas), o pregador pretendeu transmitir ensinamentos;
• delectare (agradar): o orador queria que os homens ouvissem o seu sermão com prazer e para isso
usou variadíssimos recursos estilísticos a fim de prender a atenção do público, nomeadamente a
antítese, a interjeição, a metáfora, a comparação, o trocadilho, a enumeração e a alegoria;
• movere (persuadir): com a intenção de levar os homens a mudar de comportamento, o pregador
profere um discurso apelativo com recurso à apóstrofe, à interrogação retórica e às frases
imperativas e exclamativas.

Intenção persuasiva e exemplaridade


O Sermão de Santo António é um longo discurso argumentativo, criado com a finalidade de ser
pregado.
A partir das propriedades do Sal (conservar o são e preservar da corrupção) e características da
pregação de Santo António (louvar o bem e repreender o mal), o Sermão de Vieira assume uma dupla
finalidade: louvar as virtudes e repreender os vícios humanos.
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Começando por referir as qualidades dos peixes, o pregador retira duas conclusões: os peixes são
melhores que os homens e, para evitar a maldade, aqueles devem manter-se afastados dos homens. De
forma semelhante, Santo António, para se aproximar de Deus, afastou-se dos homens.
Pelo contrário, os vícios em geral, dos peixes, que se comem uns aos outros e em que os grandes comem
os pequenos, servem de pretexto para uma crítica e exploração dos poderosos sobre os mais humildes. Além
disso, os defeitos, em particular, de certos peixes estão a serviço da denúncia dos vícios humanos. É o caso
do:
• Roncador - arrogância; • Voador - ambição desmedida e a vaidade;
• Pegador - oportunismo; • Polvo - hipocrisia e a traição.

Visão global do sermão e estrutura argumentativa


Segundo a retórica clássica, a estrutura do texto argumentativo organiza-se de acordo com as seguintes
partes:
• Exórdio – apresentação sumária da matéria que vai ser apresentada e captação da atenção do
auditório (introdução);
• Exposição e Confirmação – apresentação dos factos e defesa da tese com argumentos e exemplos
(desenvolvimento);
• Peroração – síntese do que foi dito e apelo à adesão dos ouvintes (conclusão)

Resumos do Capítulos

Capítulo I (exórdio)
Inicia-se com o conceito predicável – Vos estis sal terrae (= Vós sois o sal da terra). A partir deste
conceito (metáfora), e tendo como modelo Santo António (Santo António foi sal da terra e foi sal do mar), o
Padre António Vieira vai desenvolver o seu sermão, provando que a «terra» está corrupta, mas que o mal
não está só do lado dos pregadores, pois os seres humanos também têm culpa.

Capítulo II (exposição e confirmação)


Procede-se aos louvores aos peixes, em geral. Começa pela referência às propriedades do sal que deve
conservar o são e preservar a corrupção. De seguida, a indicação das virtudes dos peixes:
• Ouvem e não falam;
• Vós fostes os primeiros que Deus criou;
• E nas provisões (...) os primeiros e os maiores;
• Aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor;
• Aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca do seu servo
António;
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• (...) Os homens perseguindo a António (...) e no mesmo tempo os peixes (...) acudindo à sua voz,
atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio (...) o que não entendiam;
• Só eles entre todos os animais se não domam nem domesticam
Estas virtudes dos peixes são, por contraste, a metáfora dos defeitos humanos e os defeitos dos peixes
o pretexto para criticar os vícios morais e sociais dos homens.

Capítulo III (exposição e confirmação)


É consagrado aos louvores aos peixes em particular.
Em primeiro lugar, o Santo Peixe Tobias em que o seu fiel sara a cegueira e o seu coração lança fora
os demónios. Também Santo António, com as suas palavras amargas, cura a cegueira dos homens e, com o
seu bondoso coração, expulsa o Demónio – encarnação do mal – da alma dos homens. Deste modo, critica-
se a heresia e a ausência da conversão por parte dos homens.
Em seguida, a Rémora, um peixe tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder:
• (...) se se pega ao leme de uma nova nau da Índia (...) a prende e amarra mais que as mesmas âncoras,
sem se poder mover, nem ir por diante.
De igual modo, a língua de Santo António, que é rémora, impede a destruição das naus da Soberba, da
Vingança, da Cobiça e da Sensualidade, evitando assim, a perdição de muitos homens presunçosos,
vingativos e ambiciosos. Santo António evitou que muitos deles se desviassem ou, então, que recuperassem
o bom caminho. Critica-se, neste peixe, a fraqueza humana e a ausência da força de vontade.
Posteriormente, o Torpedo que emite pequenas descargas elétricas que fazem tremer o braço do pescador:
• Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picado na isca
o torpedo, começa-lhe a tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito?
Conclui que, na terra, também deveria haver muitos torpedos que despertassem as consciências
humanas, principalmente daqueles que exploram os mais fracos. Vieira tinha como objetivo atingir os
colonos que escravizavam os ameríndios. Critica-se, assim, a exploração do próximo, a corrupção e a ambição
desmedida.
E, por fim, os peixes Quatro-Olhos, pois:
• Como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois
olhos, que diretamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que diretamente
olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.
Também os homens deveriam ter quatro olhos: dois para olharem para o Céu (Bem) e outro dois para
olharem para o Inferno (Mal), uma vez que, só tendo consciência do Mal que fazem, escolheriam o cominho
do Bem. Desta forma, critica-se a vaidade humana.

Capítulo IV (exposição e confirmação)


São feitas as representações aos peixes em geral.
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Os defeitos dos peixes são vários:


• (...) é que vós comedes uns aos outros;
• Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.
Os peixes são ignorantes e cegos, pois facilmente se deixam enganar pela isca do anzol. Também a
vaidade, a ganância, a ambição, o desejo de poder e de ter cada vez mais tiram a lucidez às pessoas, que se
deixam enganar pelo materialismo, os mais poderosos «comem» (exploram) os mais pequenos, os mais
desprotegidos (os ameríndios). Neste capítulo critica-se a maldade dos homens na exploração que fazem uns
aos outros.

Capítulo V (exposição e confirmação)


Procede-se às repreensões aos peixes em particular.
Inicia-se com os Roncadores. Embora tão pequenos, roncam muito, daí que representem a arrogância e
a soberba dos homens.
• É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser os roncas do mar?
• Critica-se a arrogância e a soberba.
Em seguida, os Pegadores, sendo pequenos, pegam-se aos maiores, não os largando mais, razão por que
simbolizam o parasitismo, a vivência à custa dos outros:
• Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos,
não só se chegam a outros maiores, mas tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os
desferram.
• Critica-se o parasitismo e o oportunismo.
Os Voadores, apesar de serem peixes, também se metem a ser aves. Por isso, simbolizam a presunção,
a vaidade e a ambição:
• Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? (...) Contentai-
vos com o mar e com o nadar, e não queirais voar, pois sois peixes.
• É criticada a ambição, a vaidade e o capricho dos homens.
Por fim, na figura do Polvo, com a sua aparência de santo, identifica-se com o maior traidor do mar.
Simboliza, pois, a traição:
• E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior
traidor do mar.
• Critica-se a falsa aparência dos homens, a traição e a hipocrisia.

Capítulo VI (peroração)
Neste último capítulo o Padre António Vieira conclui o sermão contando aos peixes as razões para
louvarem Deus. Começa por mostrar que os peixes devem pedir a Deus por não serem escolhidos para os
sacrifícios, pois os outros animais podem chegar vivos e eles já chegam mortos. Mesmo alguns homens
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também já chegam mortos ao altar, pois já vão em pecado mortal. Depois acaba por mostrar que têm inveja
dos peixes, pois os homens tomam Deus indignamente, os homens ofendem Deus com as palavras, com a
memória, com o pensamento e com a vontade e os homens não cumprem o fim para que foram criados.
Enquanto os peixes não ofendem Deus e atingem o fim para que foram criados. O orador conclui que os
peixes podem sentir orgulho e satisfação e os homens devem sentir culpa e vergonha.
Animais terrestes – sacrificam – sangue; vida
Peixes – sacrificam – respeito; reverência

Crítica social e alegoria


Em suma, o Sermão é uma sátira social em que o Padre António Vieira tece duras críticas à exploração
e à ganância humana, particularmente aquela que é exercida pelos colonos sobre os índios. Por outro lado,
o Sermão é uma longa alegoria (em que se apresentam ideias através de imagens ou figuras concretas),
funcionando os peixes como uma metáfora dos homens. Deste modo, as virtudes dos peixes são pretexto
para denunciar os vícios humanos, da mesma forma que os defeitos dos seres marinhos são motivo para
criticar os defeitos morais e sociais dos homens.
Contudo, pode-se afirmar que o Sermão aborda um assunto intemporal na medida em que os
homens procuram constantemente a ascensão social, ainda que de forma imprópria, revelando atitudes
normalmente condenáveis.

Linguagem e estilo
A fim de prender a atenção dos seus ouvintes e transmitir adequadamente a mensagem, é natural
que o orador tivesse recorrido a uma série de artifícios de linguagem.
Alguns dos recursos estilísticos usados pelo pregador para cativar o auditório:
• Alegoria – é todo o sermão, na medida em que os defeitos dos peixes personificam a maldade
humana;
• Comparação – é permanente entre os peixes e os homens, pois os homens, com as suas más e
perversas cobiças, vêm a ser como os peixes;
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• Metáfora – presente logo no conceito predicável, em que se identificam os pregadores com o sal da
terra;
• Apóstrofe – invocação de pessoas ou algo personificado
“Olhai, peixes, lá do mar e da terra (...) ”
“Vê, voador, (...) ”
“Peixes, dai muitas graças a Deus (...)
• Enumeração - Apresentação sucessiva de vários elementos (frequentemente da mesma classe
gramatical). (...) na terra pescam as varas (...) pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os
bastões (...)
• Anáfora - Repetição de palavra ou expressão em início da frase.
“Quantos, correndo (...) quantos, embarcados (...) Quantos, navegando (...)”
“Louvai a Deus, (...) louvai a Deus (...)”
• Antítese - Figura que põe, lado a lado, palavras ou ideias opostas.
Exemplo: Céu/ Terra; Bem/ Mal; Céu/ Inferno

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