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LETRAS

AREVISTA CULTURAL DE BRASILIA


ANO V
CÂMARA LEGISLATIVA DO DIS "

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D. Cora dizia que seu


CASA
avô na casa já
nascera, o que nos
leva para os arredores
de 1830 ou 1840,
desde quando
DA PONTE
d e Cora Coralina
suponho ter
pertencido à família. o PAULO BERTRAN
Nessa época ainda
estava em plena
atividade o português
João José do Couto
Guimarães, o mais
A história da cidade de Goiás
começa nos alicerces da casa
de Cora Coralina e continua na
insidiosa goteira que, em um dos seus
poemas, atinge a viga-mestra das
" Olho e vejo tua
ancianidade vigorosa e sã.
Revejo teu corpo patinado
antigo ascendente em vetustas casas.
Goiás da família De fato há um acordo entre os pelo tempo, marcado das
materna de Cora. cronistas antigos de ter surgido, em escaras da velhice.
1726, nos cascalhos do rio Vermelho,
sob a ponte do Meio, já dita do Telles, Desde quando ficaste
já dita do Rosário, no futuro quem sabe
de D. Cora, o primeiro ouro assim? "
bamburrado em Goiás Velho ou cidade
«Jora(Joralüna)

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de Goiás, a primeira capital, depois
mudada para Goiânia nos anos
ditatoriais da Revolução de 1930.
Numa só bateada, lembra o padre
Silva e Souza, meia libra de ouro
libertou-se ali dos aluviões do rio .
Uma bagatela de 230 gramas de
ouro, algo hoje em torno de 2.500
dólares, ganhos talvez numa meia
hora de socavação, sendo que na
época o valor relativo do ouro era
muito maior do que hoje.
Essa bateada, famosa a ponto de
fazer-se lembrar um século depois,
pode ter por muitos anos sacralizado
o terreno onde depois ergueu-se a
casa de D. Cora, a Casa Velha da
Ponte.
Uma planta de Vila Boa, apócrifa
e não datada, da coleção do Arquivo
Ultramarino de Lisboa - e que reputo,
pelas igrejas assinaladas, como
produto da década de 1 770 - mostra
claramente o espaço que hoje ocupa
a casa de D. Cora como um terreno
baldio, por onde serpenteava um
trilheiro em direção à Rua Nova do
Ouvidor, a atual da Abadia. A poetisa Cora Coralina
sofreu, tanto que, em 1788, investiu-
É já a época do agonioso recebendo a se no cargo de capitão-mor de Vila
descenso mineratório. Quase três Folia do Divino, Boa e sua Comarca, cuja jurisdição
anos de secas pronunciadas em 8 de abril de 1985, na época compreendia todos os
dificultavam muito a lavagem das em Goiás atuais territórios de Goiás, Tocantins,
terras auríferas que, paradoxalmente, Distrito Federal, o Triângulo Mineiro
cada vez mais iam morros acima, Leonor Telles, aparentado no Rio de e ainda uns nacos de Mato Grosso
tanto mais longe de águas e tanto Janeiro com o s grand es comer- e do Maranhão.
mais difícil de extrair, com os ciantes que co nstru íram o arco do Pois tão grande personagem
recursos tecnológicos da época. O Telles, come çou a erigir a casa, desmoronou, lá pelo comecinho do
ouro que se devia ainda extrair no triunfo do colon iza dor citadi n o século XIX, sob o jugo de
lote da casa, estendendo seu filão comerciante sobre o co lo nizador pesadíssima devassa, incriminado na
pelo vizinho beco Vila Rica, deve ter- garimpeiro. deposição - crime de lesa-majestade
se de todo exaurido. Na planta geral d e Vil a Boa, - do governador da capitan ia, D. João
Imagino assim que, num belo dia, executada em 1 78 2 pelo sold ado Manoel de Menezes. Parece que
entre meados dos anos 1770 e dragão Manoel Ribeiro Guimarães, morreu antes do julgamento, em
começo dos de 1 780, o Senado da a casa já aparece edificada. circunstâncias não reveladas. Teve
Câmara de Vila Boa de Goiás Antonio Telle s de M enezes, seus bens seqüestrados pela Coroa.
liberasse_o famoso terreno da Ponte português, foi contra t ador de Há uma longa carta sua - que
para a construção da casa. impostos, dono de grand e casa publiquei na NotiCia geral da
Na época citada, um cidadão comercial e com correspo ndentes capitania de Goiás - com denúncias
proeminente, certo Antonio de nas principai s ci d ade s brasileiras. tão graves quanto aos costumes dos
Souza Telles de Menezes , juiz Solteiro e rico. Muito rico. poderosos de sua época - que aí,
ordinário da Câmara de Vila Boa, Parece ter apoiado vacilantemente imagino, adquiriu dezenas de
fidalgo de alguns costados a oligarquia dos Cunha M enezes, a inimigos que o levaram ao triste fim.
importantes, como os da trágica mais longa e tormentosa que Goiás Teria todo esse suposto d rama

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compreendido a tradição que D. a encontro pertencendo à herança
Cora descreveu, de um certo Thebas
Ruiz, seu antepassado (por outro
dos Telles) e 18l3, quando já a
encontro em mãos do capitão José
Pablo
Neru a
ramo que não os Couto Guimarães), Joaquim Pulquério dos Santos, dono
ter-se envenenado e a um escravo, de várias casas de aluguel em Vila
num episódio de enterro de ouro Boa, o qual talvez vivesse de aluguéis,
ilegal nas profundezas da casa? Não naquela desanimada Capitania.
Perdoa-me poeta.
raro a tradição oral confunde atores Na época, a Casa da Ponte sem
com fatos . Seria esse Thebas Ruiz, dúvida era elegante e requisitada. Tão tarde o cOllh i!
sobre cuja existência nada se Esteve alugada em 1811 ao secretário
Tantos cantores pelo mundo ...
conhece, em verdade o capitão-mor de governo da capitania, Cel. José
Telles de Menezes? Amado Grehon, por 57.600 réis. Para minha ignorância
Fato é que, morto Antônio de
eras mais um delltre ele '.
Souza Telles de Menezes, seu A CASA DE CORA CORALlNA
patrimônio caiu nas garras do fisco NA SUA FAMíLIA
co lonial, como se vê em diversos Depois da bem documentada
Foi assim que Ilão pedi a
registros guardados no Museu das balbúrdia do período colonia l, pouca
Bandeiras. coisa consegui sobre a história da Deus
Em 1806 o fisco andava atrás de casa no século XIX. poupar-te a vida
um seu sobrinho, João, que morava Deve estar tudo, porém, toda a
em Jaraguá. E pouco tempo depois história urbana dos oitocentos, nos e ficares para empre
a atual casa de Cora foi à hasta depósitos do Cartório do 1Q Ofício ou semente viva, incorruptiv ./
pública, entre 1811 (quando ainda então no nosso Arquivo Histórico da
Cidade de Goiás. Mas quem há de de beleza exeel a e unive sal.
ter coragem de investigar aquelas
Imagino assim que num belo milhares de informações em busca
dia, entre meados dos anos de dos destinos da Casa Velha da Ponte? Ninguém me disse antes.
1770 e começo dos de 1780, o Fato é que no período que vai de Ninguém me d' se n da.
Senado da Câmara de Vila Boa 1820 - quando ainda pertencia ao
de Goiás liberasse o famoso capitão Pulquério (que também foi Ninguém me f ez a doação
terreno da Ponte para a constru- contador da Junta da Fazenda, fraterna
ção da casa de D. Cora, a Casa vencendo polpudo salário) - a 1854,
quando o cônego Manuel José do de um li"'ro teu.
Velha da Ponte.
Couto Guimarães foi tesoureiro da
Fazenda Provincial, também com
gordo salário para o tempo, Perdida no meu ertão
desconheço o paradeiro da casa. O goiano,
cônego, na Fazenda Provincial, devia
ter como funcionário, nesse tempo, Só o teu nome) Pablo,
o humilde amanuense, atendente de Só teu apelido ere po,
guichê burocrático, certo Manoel
Cardoso de Oliveira, filho mulato de Neruda,
um vigário de Pilar, mas que de Chegaram a mim ...
qualquer forma descendia do
E eu a pensar que foste ape-
nas
um grande poeta entre outros
grandes ...

Cora Coralina
Igreja da
Anhangüera, descobridor de Goiás, moriado" João José Jr.
pelo lado de seu genro, João Leite Deste antepassado, o cônego
Boa Morte
da Silva Ortiz, um potentado rico, Manoel José, dizia D. Cora ... " Um e o Paço dos
fundador e dono de Sete Lagoas e cônego Couto, liberal e dono de Governadores
de Curral D'el Rei , atual Belo moedas, montes de ouro, prataria ...
Horizonte, que completa 100 anos tinha feito suas Humanidades em o desembargador Francisco de Paula
como capital de Minas Gerais. Esse Coimbra e só almoçava sua gorda Lins dos Guimarães Peixoto,
amanuense é o trisavô, em linha feijoada goiana em pratos e talheres nordestino, os pais de D. Cora: ...
direta, do presidente Fernando de ouro" ... Encontro o cônego Couto "Um desembargador da Monarquia
Henrique Cardoso. como tesoureiro da Fazenda - meu pai - minha mãe viúva. Minhas
D. Cora dizia que seu avô na casa Provincial, desde 1854 até 1861. irmãs, eu, afinal a última sobrevivente
já nascera, o que nos leva para os Faleceu em 1880. de gerações passadas" ... Parece que
arredores de 1830 ou 1840, desde Foi esse cônego o generoso sua mãe era uma intelectual que lia
quando suponho ter pertencido à mecenas e o oficiante do casamento livros em francês e inglês sem nunca
famnia . de seu sobrinho, filho da irmã ter saído da cidade de Goiás. Eis um
Nessa época ainda estava em Antônia (mãe laiá), certo Joaquim mistério terrível. A mãe de Cor a. Pela
plena atividade o português João Luis do Couto Brandão, de famnia memória de Coralina, só devotada à
José do Couto Guimarães, o mais velha em Vila Boa de Goiás. avó, pode ter tido uma enorme
antigo ascendente em Goiás da Joaquim Luis casou-se com uma influência na poetisa, jamais revelado
família materna de Cora ... "um prima, Honória, também sobrinha do em suas obras: o complexo de Eletra.
sarge nto-mor, bisavô de muitos, cônego, o qual pelo consórcio dos É o lado oposto, feminino, do
português colonial" ... escreveu Cora. sobrinhos faz na Casa da Ponte uma complexo de Édipo.
O sargento-mor, depois tenente- festa enorme, memorável, regada a E eis o que pude saber da Casa
coronel João José do Couto vinho português, servidas as vitualhas Velha da Ponte, uma biografia
Guimarães, foi grande figurão, em 92 peças de louça chinesa, o sumária desse velho navio aportado
deputado da Junta de Governo aparelho "azul pombinho", que tão no rio Vermelho, rio das Cambaúvas
Provisório de Goiás por ocasião da belos poemas inspirou a D. Cora. por seu nome indígena. Um quase
Independência, depois tesoureiro- Desse avô Joaquim Luis nada onde a riqueza dos tempos fez
geral da Fazenda da Província, de escreveria Cora : "Um capitão da nascer e fez brotar poemas e doces
1835 até 1843. Faleceu em 1856. Guarda Nacional, que dragonou de uma extraordinária mulher do
Deixou, conforme seu inventário, milhares de homens felizes e século que dobrou esquina em
os filhos Manoel José do Couto analfabetos, capitães, majores e 1989 : Ana Lins dos Guimarães
Guimarães (cônego Couto), o padre coronéis, enfeitados com galões Peixoto Bretas, Aninha, Cora
Luiz do Couto Guimarães e Antonia dourados e vitalícios, sem percalços Coralina.
Maria do Couto Guimarães (mãe de reformas" ...
Paulo Bertran é pesquisador do
laiá) , casada com Jacinto Luiz Joaquim Luis foi o pai de Jacynta Instituto de Pesquisas Históricas do Brasil
Brandão, além de um "desme- Luisa do Couto Brandão, casada com Central e professor da UCG.

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