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REFLEXÕES DO POETA EM PARALELO COM AS ESTROFES DE “OS LUSÍADAS”

Visão otimista
Os Lusíadas são uma epopeia na qual se reflete o otimismo do Renascimento , crente nas capacidades do homem.
Por isso, o herói liberta-se da sua pequenez humana de "bicho da Terra" e, através da ousadia e da coragem, ascende a um
estádio superior, digno dos deuses.

Visão pessimista
No entanto, não é apenas esta visão otimista do homem aquela que está patente na obra. A verdade é que, a par da
glorificação dos heróis que fizeram grande a Pátria e o homem e devem, por isso, servir de exemplo, está presente um
desencanto e um pessimismo do poeta que olha para o Portugal seu contemporâneo com tristeza, nostalgia e desalento.
Não podemos esquecer que Camões publicou Os Lusíadas 74 anos depois da viagem de Vasco da Gama, num momento
em que o Império português estava já em decadência e um futuro negro se pressentia.
Esse pessimismo está patente sobretudo nas reflexões do final de alguns cantos.
O poeta apresenta-se, nas suas reflexões, como guerreiro e poeta a quem não "falta na vida honesto estudo, / Com
longa experiência misturado" (X, 154). Um poeta que, ainda que perseguido pela sorte e desprezado pelos seus
contemporâneos, assume o papel humanista de intervir, de forma pedagógica, na vida contemporânea. Por isso:
 critica a ignorância dos homens de armas e o seu desprezo pela cultura (Canto V);
 denuncia o desprezo pelo bem comum, a ambição desmedida, o poder exercido com tirania, a hipocrisia dos
aduladores do rei, a exploração do povo (Canto VII);
 denuncia o poder corruptor do ouro (Canto VIII);
 propõe um modelo humano ideal de "Heróis esclarecidos" que terão ganho o direito de ser na "Ilha de Vénus
recebidos" (Canto IX, 95);
 ergue-se contra o adormecimento da pátria, metida" No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e
vil tristeza." (Canto X, 145).

Mas o poema, acima de tudo, evidencia a grandeza do passado de Portugal: um pequeno povo que cumpriu, ao
longo da sua História, a missão de dilatar a Cristandade, que abriu novos rumos ao conhecimento, que mostrou a
capacidade do homem de concretizar o sonho.
Ao cantar o heroísmo do passado, o poeta pretende mostrar aos seus contemporâneos a falta de grandeza do
Portugal presente, e incentivar o rei a conduzir os portugueses para um futuro de novo glorioso, para uma nova era de
orgulho nacional.
ESTROFES DE “OS LUSÍADAS” - Canto I, 105-106 Reflexão sobre a fragilidade da condição humana
(Canto I, 105-106)
105
O recado que trazem é de amigos,
Mas debaxo o veneno vem coberto, As traições e perigos a que os navegadores estão
Que os pensamentos eram de inimigos, sujeitos justificam o desabafo do poeta sobre a
Segundo foi o engano descoberto. fragilidade da condição humana que submete o homem
Ó grandes e gravíssimos perigos, a inúmeros e permanentes perigos.
Ó caminho de vida nunca certo, Não será por acaso que esta reflexão surge no final do
Que aonde a gente põe sua esperança Canto I, quando o herói ainda tem um longo e penoso
Tenha a vida tão pouca segurança! caminho a percorrer. Ver-se-á, no Canto X, até onde a
ousadia, a coragem e o desejo de ir sempre mais além
106 pode levar o "bicho da terra tão pequeno", tão
No mar tanta tormenta e tanto dano, dependente da fragilidade da sua condição humana
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
ESTROFES DE “OS LUSÍADAS” 96
Canto V, 92-100 Vai César, sojugando toda França,
E as armas não lhe impedem a ciência; Crítica à falta de cultura e de
Mas, numa mão a pena e noutra a lança, apreço pelos poetas que os
92 Igualava de Cícero a eloquência. portugueses revelam
Quão doce é o louvor e a justa glória O que de Cipião se sabe e alcança, (Canto V, 92-100)
Dos próprios feitos, quando são soados! É nas comédias grande experiência.
Qualquer nobre trabalha que em memória Lia Alexandro a Homero de maneira
Vença ou iguale os grandes já passados. Que sempre se lhe sabe à cabeceira. O poeta começa por
As invejas da ilustre e alheia história mostrar como o canto, o
Fazem mil vezes feitos sublimados. 97 louvor, incita à realização dos
Quem valerosas obras exercita, Enfim, não houve forte capitão, feitos heroicos; dá em seguida
Louvor alheio muito o esperta e incita. Que não fosse também douto e ciente, exemplos do apreço que os
Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação, antigos heróis gregos e
93 Senão da Portuguesa tão somente. romanos tinham pelos seus
Não tinha em tanto os feitos gloriosos Sem vergonha o não digo, que a razão poetas e da importância que
De Aquiles, Alexandro na peleja, De algum não ser por versos excelente, davam ao conhecimento e à
Quanto de quem o canta, os numerosos É não se ver prezado o verso e rima, cultura, compatibilizando as
Versos; isso só louva, isso deseja. Porque, quem não sabe arte, não na estima. armas com o saber.
Os troféus de Melcíades famosos Não é, infelizmente, o
Temístoeles despertam só de inveja, 98 que se passa com os
E diz que nada tanto o deleitava Por isso, e não por falta de natura, portugueses, que não dão
Como a voz que seus feitos celebrava. Não há também Virgílios nem Homeros; valor aos seus poetas, porque
Nem haverá, se este costume dura, não têm cultura para os
94 Pios Eneias, nem Aquiles feros. conhecer. Ora, não se pode
Trabalha por mostrar Vasco da Gama Mas o pior de tudo é que a ventura amar o que não se conhece, e
Que essas navegações que o mundo canta Tão ásperos os fez, e tão austeros, a falta de cultura dos heróis
Não merecem tamanha glória e fama Tão rudos, e de engenho tão remisso, nacionais é responsável pela
Como a sua, que o céu e a terra espanta. Que a muitos lhe dá pouco, ou nada disso. indiferença que manifestam
Si; mas aquele Herói, que estima e ama pela divulgação dos seus
Com dons, mercês,. favores e honra tanta 99 feitos, e, se não tiverem
A lira Mantuana, faz que soe As Musas agradeça o nosso Gama poetas que os cantem, serão
Eneias, e a Romana glória voe. o Muito amor da Pátria, que as obriga esquecidos. Apesar disso, o
A dar aos seus na lira nome e fama poeta, movido pelo amor da
95 De toda a ilustro e bélica fadiga: pátria, reitera o seu propósito
Dá a terra lusitana Cipiões, Que ele, nem quem na estirpe seu se chama, de continuar a engrandecer,
Césares, Alexandros, e dá Augustos; Calíope não tem por tão amiga, com os seus versos, as
Mas não lhe dá contudo aqueles dois Nem as filhas do Tejo, que deixassem "grandes obras" realizadas.
Cuja falta os faz duros e robustos. As telas douro fino, e que o cantassem. Manifesta, desta
Octávio, entre as maiores opressões, forma, a vertente crítica e
Compunha versos doutos e venustos. 100 pedagógica da sua epopeia, na
Não dirá Fúlvia certo que é mentira, Porque o amor fraterno e puro gosto defesa da realização plena do
Quando a deixava António por Glafira, De dar a todo o Lusitano feito homem, em todas as suas
Seu louvor, é somente o pressuposto capacidades.
Das Tágides gentis, e seu respeito.
Porém não deixe enfim de ter disposto
Ninguém a grandes obras sempre o peito,
Que por esta, ou por outra qualquer via,
Não perderá seu preço, e sua valia.
ESTROFES DE “OS LUSÍADAS”
Canto VI, 92-99

92 96
Já a manhã clara dava nos outeiros Não com os manjares novos e esquisitos, Reflexão sobre o verdadeiro e
Por onde o Ganges murmurando soa, Não com os passeios moles e ociosos, árduo caminho da fama e da
Quando da celsa gávea os marinheiros Não com os vários deleites e infinitos, glória
Enxergaram terra alta pela proa. Que afeminam os peitos generosos, (Canto VI, 95-99)
Já fora de tormenta, e dos primeiros Não com os nunca vencidos apetitos
Mares, o temor vão do peito voa. Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Disse alegre o piloto Melindano: Que não sofre a nenhum que o passo mude Continuando a exercer
"Terra é de Calecu, se não me engano. Para alguma obra heróica de virtude; a sua função pedagógica, o poeta
defende um novo conceito de
93 97 nobreza, espelho do modelo de
"Esta é por certo a terra que buscais Mas com buscar com o seu forçoso braço virtude renascentista. Segundo
Da verdadeira Índia, que aparece; As honras, que ele chame próprias suas; este modelo, a fama e a
E se do mundo mais não desejais, Vigiando, e vestindo o forjado aço, imortalidade, o prestígio e o
Vosso trabalho longo aqui fenece." Sofrendo tempestades e ondas cruas; poder adquirem-se pelo esforço
Sofrer aqui não pode o Gama mais, Vencendo os torpes frios no regaço - na batalha, ou enfrentando os
De ledo em ver que a terra se conhece: Do Sul e regiões de abrigo nuas; elementos da Natureza –
Os geolhos no chão, as mãos ao céu, Engolindo o corrupto mantimento, ventos, tempestades, etc,
A mercê grande a Deus agradeceu. Temperado com um árduo sofrimento; sacrificando o corpo e sofrendo
pela perda dos companheiros.
94 98 Não se é nobre por herança,
As graças a Deus dava, e razão tinha, E com forçar o rosto, que se enfia, vivendo no luxo e na
Que não somente a terra lhe mostrava, A parecer seguro, ledo, inteiro, ociosidade, nem com favores se
Que com tanto temor buscando vinha, Para o pelouro ardente, que assovia deve alcançar relevo.
Por quem tanto trabalho experimentava; E leva a perna ou braço ao companheiro.
Mas via-se livrado tão asinha Destarte, o peito um calo honroso cria,
Da morte, que no mar lhe aparelhava Desprezador das honras e dinheiro,
O vento duro, fervido e medonho, Das honras e dinheiro, que a ventura
Como quem despertou de horrendo sonho. Forjou, e não virtude justa e dura.

95 99
Por meio destes hórridos perigos, Destarte se esclarece o entendimento,
Destes trabalhos graves e temores, Que experiências fazem repousado,
Alcançam os que são de fama amigos E fica vendo, corno de alto assento,
As honras imortais e graus maiores: O baixo trato humano embaraçado.
Não encostados sempre nos antigos Este, onde tiver força o regimento
Troncos nobres de seus antecessores; Direito, e não de afeitos ocupado,
Não nos leitos dourados, entre os finos Subirá (como deve) a ilustre mando,
Animais de Moscóvia zebelinos; Contra vontade sua, e não rogando.
ESTROFES DE “OS LUSÍADAS” 8
Canto VII, 1-14 Pois que direi daqueles que em delícias,
1 Que o vil ócio no mundo traz consigo,
Já se viam chegados junto à terra, Gastam as vidas, logram as divícias, Elogio ao espírito de cruzada dos
Que desejada já de tantos fora, Esquecidos de seu valor antigo? portugueses / Crítica aos outros
Que entre as correntes Indicas se encerra, Nascem da tirania inimicícias,
povos europeus
E o Ganges, que no céu terreno mora. Que o povo forte tem de si inimigo:
Ora, sus, gente forte, que na guerra Contigo, Itália, falo, já submersa
(Canto VII, 1-14)
Quereis levar a palma vencedora, Em Vícios mil, e de ti mesma adversa.
Já sois chegados, já tendes diante
A terra de riquezas abundante. 9
Ó míseros Cristãos, pela ventura, Percorrido tão longo e
2 Sois os dentes de Cadmo desparzidos, difícil caminho, é o momento
A vós, ó geração de Luso, digo, Que uns aos outros se dão a morte dura, de, na chegada a Calecut (est.
Que tão pequena parte sois no inundo; Sendo todos de um ventre produzidos? 3-7), o poeta fazer novo louvor
Não digo ainda no mundo, mas no amigo Não vedes a divina sepultura
aos portugueses. Exalta o seu
Curral de quem governa o céu rotundo; Possuída de cães, que sempre unidos
espírito de cruzada, a
Vós, a quem não somente algum perigo Vos vêm tomar a vossa antiga terra,
Estorva conquistar o povo imundo, Fazendo-se famosos pela guerra? incansável divulgação da Fé,
Mas nem cobiça, ou pouca obediência por África, Ásia, América, "E,
Da Madre, que nos céus está em essência; 10 se mais mundos houvera, lá
Vedes que têm por uso e por decreto, chegara", inserindo a viagem à
3 Do qual são tão inteiros observantes, Índia na missão transcendente
Vós, Portugueses, poucos quanto fortes, Ajuntarem o exército inquieto que é marca da sua identidade
Que o fraco poder vosso não pesais; Contra os povos que são de Cristo amantes; nacional.
Vós, que à custa de vossas várias mortes Entre vós nunca deixa a fera Aleto
Por oposição, critica os
A lei da vida eterna dilatais: De semear cizânias repugnantes:
"Alemães, soberbo gado", o
Assim do céu deitadas são as sortes, Olhai se estais seguros de perigos,
Que vós, por muito poucos que sejais, Que eles e vós sois vossos inimigos. “duro inglês", o "Galo
Muito façais na santa Cristandade: indigno", os italianos que, "em
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade! 11 delícias, / Que o vil ócio no
Se cobiça de grandes senhorios mundo traz consigo, / Gastam
4 Vos faz ir conquistar terras alheias, as vidas", que não seguem o
Vede-los Alemães, soberbo gado, Não vedes que Pactolo e Hermo, rios, exemplo, no combate aos
Que por tão largos campos se apascenta, Ambos volvem auríferas areias? infiéis.
Do sucessor de Pedro, rebelado, Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios;
Novo pastor, e nova seita inventa: África esconde em si luzentes veias;
Vede-lo em feias guerras ocupado, Mova-vos já sequer riqueza tanta,
Que ainda com o cego error se não contenta, Pois mover-vos não pode a Casa Santa.
Não contra o soberbíssimo Otomano,
Mas por sair do jugo soberano. 12
Aquelas invenções feras e novas
5 De instrumentos mortais da artilharia,
Vede-lo duro Inglês, que se nomeia Já devem de fazer as duras provas
Rei da velha e santíssima cidade, Nos muros de Bizâncio e de Turquia.
Que o torpe Ismaelita senhoreia, Fazei que torne lá às silvestres covas
(Quem viu honra tão longe da verdade?) Dos Cáspios montes, e da Cítia fria
Entre as Boreais neves se recreia, A Turca geração, que multiplica
Nova maneira faz de Cristandade: Na polícia da vossa Europa rica.
Para os de Cristo tem a espada nua,
Não por tomar a terra que era sua. 13
Gregos, Traces, Arménios, Georgianos,
6 Bradando-vos estão que o povo bruto
Guarda-lhe por entanto um falso Rei Lhe obriga os caros filhos aos profanos
A cidade Hierosólima terrestre, Preceptos do Alcorão (duro tributo!)
Enquanto ele não guarda a santa lei Em castigar os feitos inumanos
Da cidade Hierosólima celeste. Vos gloriai de peito forte e astuto,
Pois de ti, Galo indigno, que direi? E não queirais louvores arrogantes
Que o nome Cristianíssimo quiseste, De serdes contra os vossos muito possantes.
Não para defendê-lo, nem guardá-lo,
Mas para ser contra ele, e derrubá-lo! 14
Mas entanto que cegos o sedentos
7 Andais de vosso sangue, ó gente insana!
Achas que tens direito em senhorios Não faltarão Cristãos atrevimentos
De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto, Nesta pequena casa Lusitana:
E não contra o Cinífio e Nilo, rios De África tem marítimos assentos,
Inimigos do antigo nome santo? É na Ásia mais que todas soberana,
Ali se hão de provar da espada os fios Na quarta parte nova os campos ara,
Em quem quer reprovar da Igreja o canto. E se mais mundo houvera, lá chegara.
De Carlos, de Luís, o nome e a terra
Herdaste, e as causas não da justa guerra?

ESTROFES DE “OS LUSÍADAS”


Canto VII, 78-87 Crítica aos contemporâneos
ambiciosos que exploram e
78 83 oprimem o povo
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego! Pois logo em tantos males é forçado, (Canto VII, 78-87)
Eu, que cometo insano e temerário, Que só vosso favor me não faleça,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego, Principalmente aqui, que sou chegado
Por caminho tão árduo, longo e vário! Onde feitos diversos engrandeça: Numa reflexão de tom
Vosso favor invoco, que navego Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado marcadamente
Por alto mar, com vento tão contrário, Que não o empregue em quem o não mereça, autobiográfico, o poeta
Que, se não me ajudais, hei grande medo Nem por lisonja louve algum subido, exprime um estado de
Que o meu fraco batel se alague cedo. Sob pena de não ser agradecido. espírito bem diferente do
que caracterizava, no
79 84 Canto I, a Invocação às
Olhai que há tanto tempo que, cantando Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse Tágides. Agora, percorre
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, A quem ao bem comum e do seu Rei um caminho" árduo,
A fortuna mo traz peregrinando, Antepuser seu próprio interesse, longo e vário", e precisa
Novos trabalhos vendo, e novos danos: Inimigo da divina e humana Lei. de auxílio, porque teme
Agora o mar, agora experimentando Nenhum ambicioso, que quisesse não chegar a bom porto.
Os perigos Mavórcios inumanos, Subir a grandes cargos, cantarei, De uma vida cheia de
Qual Canace, que à morte se condena, Só por poder com torpes exercícios adversidades, enumera a
Numa mão sempre a espada, e noutra a pena. Usar mais largamente de seus vícios; pobreza, a desilusão, os
perigos do mar e da
80 85 guerra, "Nua mão sempre
Agora, com pobreza avorrecida, Nenhum que use de seu poder bastante, a espada e noutra a
Por hospícios alheios degradado; Para servir a seu desejo feio, pena".
Agora, da esperança já adquirida, E que, por comprazer ao vulgo errante, De novo, lança a
De novo, mais que nunca, derribado; Se muda em mais figuras que Proteio. crítica aos contemporâneos,
Agora às costas escapando a vida, Nem, Camenas, também cuideis que canto e o alerta para a inevitável
Que dum fio pendia tão delgado Quem, com hábito honesto e grave, veio, inibição do surgimento de
Que não menos milagre foi salvar-se Por contentar ao Rei no ofício novo, outros poetas, em
Que para o Rei Judaico acrescentar-se. A despir e roubar o pobre povo. consequência dos
exemplos de ingratidão. E
81 86 a crítica aumenta de tom
E ainda, Ninfas minhas, não bastava Nem quem acha que é justo e que é direito na parte final, quando
Que tamanhas misérias me cercassem, Guardar-se a lei do Rei severamente, enumera aqueles que
Senão que aqueles, que eu cantando andava E não acha que é justo e bom respeito, nunca cantará e que,
Tal prémio de meus versos me tornassem: Que se pague o suor da servil gente; implicitamente, denuncia
A troco dos descansos que esperava, Nem quem sempre, com pouco experto peito, abundarem no seu tempo:
Das capelas de louro que me honrassem, Razões aprende, e cuida que é prudente, os ambiciosos, que
Trabalhos nunca usados me inventaram, Para taxar, com mão rapace e escassa, sobrepõem os seus
Com que em tão duro estado me deitaram. Os trabalhos alheios, que não passa. interesses aos do "bem
comum e do seu Rei", os
82 87 dissimulados, os
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores Aqueles sós direi, que aventuraram exploradores do povo,
O vosso Tejo cria valorosos, Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida, que não "pagam o suor
Que assim sabem prezar com tais favores Onde, perdendo-a, em fama a dilataram, da servil gente".
A quem os faz, cantando, gloriosos! Tão bem de suas obras merecida. No final, retoma a
Que exemplos a futuros escritores, Apolo, e as Musas que me acompanharam, definição do seu herói - o
Para espertar engenhos curiosos, Me dobrarão a fúria concedida, que arrisca a vida "por
Para porem as coisas em memória, Enquanto eu tomo alento descansado, seu Deus, por seu Rei".
Que merecerem ter eterna glória! Por tornar ao trabalho, mais folgado.
ESTROFES DE “OS LUSÍADAS”
Canto VIII, 96-99

96
Nas naus estar se deixa, vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre;
Que não se fia já do cobiçoso
Regedor, corrompido e pouco nobre. Crítica ao poder do dinheiro
Veja agora o juízo curioso (Canto VIII, 96-99)
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga. O poeta enumera os efeitos perniciosos do ouro
que provoca derrotas, faz dos amigos traidores, mancha
97 o que há de mais puro, deturpa o conhecimento e a
A Polidoro mata o Rei Treício, consciência, condiciona as leis, dá origem a difamações e
Só por ficar senhor do grão tesouro; à tirania de reis, corrompendo até os sacerdotes, sob a
Entra, pelo fortíssimo edifício, aparência da virtude. Retomando a função pedagógica do
Com a filha de Acriso a chuva d' ouro; seu canto, o poeta aponta o dedo à sociedade sua
Pode tanto em Tarpeia avaro vício contemporânea, orientada por valores materialistas.
Que, a troco do metal luzente e louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,
Do qual quási afogada em pago morre.

98
Este rende munidas fortalezas;
Faz tredoros e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.

99
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!
ESTROFES DE “OS LUSÍADAS” 92
Canto IX, 89-95 Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no mundo nomes tão estranhos Reflexões sobre o caminho para
De Deuses, Semideuses imortais, merecer a fama
89 Indígetes, Heróicos e de Magnos. (Canto IX, 89-95)
Que as Ninfas do Oceano tão formosas, Por isso, ó vós que as famas estimais,
Tethys, e a ilha angélica pintada, Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Outra coisa não é que as deleitosas Despertai já do sono do ócio ignavo,
Honras que a vida fazem sublimada. Na sequência da
Que o ânimo de livre faz escravo.
Aquelas proeminências gloriosas, cerimónia simbólica de
Os triunfos, a fronte coroada entrega das coroas de louros
93 aos marinheiros e a Vasco da
De palma e louro, a glória e maravilha: E ponde na cobiça um freio duro, Gama, o poeta dirige-se
Estes são os deleites desta ilha. E na ambição também, que indignamente àqueles que desejam ser
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro famosos, aconselhando-os
90 Vício da tirania infame e urgente; sobre o caminho a seguir. Na
Que as imortalidades que fingia Porque essas honras vãs, esse ouro puro verdade, é também aos seus
A antiguidade, que os ilustres ama, Verdadeiro valor não dão à gente: contemporâneos que Camões se
Lá no estelante Olimpo, a quem subia Melhor é, merecê-los sem os ter, dirige, exortando-os a
Sobre as asas ínclitas da Fama, Que possuí-los sem os merecer. despertar do adormecimento e
Por obras valorosas que fazia, do ócio, a pôr de lado a cobiça
Pelo trabalho imenso que se chama 94 e a tirania, a serem justos e a
Caminho da virtude alto e fragoso, Ou dai na paz as leis iguais, constantes, lutarem pela pátria e pelo rei.
Mas no fim doce, alegre e deleitoso: Que aos grandes não dêem o dos pequenos; Só assim serão eternizados
Ou vos vesti nas armas rutilantes, como os marinheiros, serão
91 Contra a lei dos inimigos Sarracenos: também "nesta Ilha de Vénus
Não eram senão prémios que reparte recebidos."
Fareis os Reinos grandes e possantes,
Por feitos imortais e soberanos E todos tereis mais, o nenhum menos;
O mundo com os varões, que esforço e arte Possuireis riquezas merecidas,
Divinos os fizeram, sendo humanos. Com as honras, que ilustram tanto as vidas.
Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Eneias e Quirino, e os dois Tebanos, 95
Ceres, Palas e Juno, com Diana, E fareis claro o Rei, que tanto amais,
Todos foram de fraca carne humana. Agora com os conselhos bem cuidados,
Agora com as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados;
Impossibilidades não façais,
Que quem quis sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos,
E nesta Ilha de Vénus recebidos.
ESTROFES DE “OS LUSÍADAS”
Canto X, 145-156
Crítica aos portugueses seus
145 151 contemporâneos / Apelo ao rei
Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho Os Cavaleiros tende em muita estima, (Canto X, 145-156)
Destemperada e a voz enrouquecida, Pois com seu sangue intrépido e fervente
E não do canto, mas de ver que venho Estendem não somente a Lei de cima,
Cantar a gente surda e endurecida. Mas inda vosso Império preminente. Os últimos versos de
O favor com que mais se acende o engenho Pois aqueles que a tão remoto clima Os Lusíadas revelam
Não no dá a pátria, não, que está metida Vos vão servir, com passo diligente, sentimentos contraditórios:
No gosto da cobiça e na rudeza Dous inimigos vencem: uns, os vivos, desalento, orgulho, esperança.
Dũa austera, apagada e vil tristeza. E (o que é mais) os trabalhos excessivos. "Nô mais, Musa, nô mais...” O
poeta recusa continuar o seu
146 152 canto, não por cansaço, mas
E não sei por que influxo de Destino Fazei, Senhor, que nunca os admirados por desânimo. O seu desalento
Não tem um ledo orgulho e geral gosto, Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses, advém de constatar que canta
Que os ânimos levanta de contino Possam dizer que são pera mandados, para "gente surda e
A ter pera trabalhos ledo o rosto. Mais que pera mandar, os Portugueses. endurecida", mergulhada "no
Por isso vós, ó Rei, que por divino Tomai conselho só d' exprimentados, gosto da cobiça e na rudeza /
Conselho estais no régio sólio posto, Que viram largos anos, largos meses, duma austera, apagada e vil
Olhai que sois (e vede as outras gentes) Que, posto que em cientes muito cabe, tristeza". É a imagem do
Senhor só de vassalos excelentes. Mais em particular o experto sabe. Portugal do seu tempo.
Por contraste, o poeta
147 153 tem orgulho nos que estão
Olhai que ledos vão, por várias vias, De Formião, filósofo elegante, dispostos a reavivar a grandeza
Quais rompentes liões e bravos touros, Vereis como Aníbal escarnecia, do passado, evidenciando
Dando os corpos a fomes e vigias, Quando das artes bélicas, diante ainda esperança de que o rei
A ferro, a fogo, a setas e pelouros, Dele, com larga voz tratava e lia. os estimule para dar
A quentes regiões, a plagas frias, A disciplina militar prestante continuidade à glorificação do
A golpes de Idolátras e de Mouros, Não se aprende, Senhor, na fantasia, "peito ilustre lusitano" e dar
A perigos incógnitos do mundo, Sonhando, imaginando ou estudando, matéria a novo canto. O
A naufrágios, a pexes, ao profundo. Senão vendo, tratando e pelejando. poema encerra, pois, com uma
mensagem que abarca o
148 154 passado, o presente e o futuro.
Por vos servir, a tudo aparelhados; Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo, A glória do passado deverá ser
De vós tão longe, sempre obedientes; De vós não conhecido nem sonhado? encarada como exemplo
A quaisquer vossos ásperos mandados, Da boca dos pequenos sei, contudo, presente para construir um
Sem dar reposta, prontos e contentes. Que o louvor sai às vezes acabado. futuro grandioso.
Só com saber que são de vós olhados, Nem me falta na vida honesto estudo,
Demónios infernais, negros e ardentes, Com longa experiência misturado,
Cometerão convosco, e não duvido Nem engenho, que aqui vereis presente,
Que vencedor vos façam, não vencido. Cousas que juntas se acham raramente.

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Favorecei-os logo, e alegrai-os Pera servir-vos, braço às armas feito,
Com a presença e leda humanidade; Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
De rigorosas leis desalivai-os, Só me falece ser a vós aceito,
Que assi se abre o caminho à santidade. De quem virtude deve ser prezada.
Os mais exprimentados levantai-os, Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Se, com a experiência, têm bondade Dina empresa tomar de ser cantada,
Pera vosso conselho, pois que sabem Como a pressaga mente vaticina
O como, o quando, e onde as cousas cabem. Olhando a vossa inclinação divina,

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Todos favorecei em seus ofícios, Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
Segundo têm das vidas o talento; A vista vossa tema o monte Atlante,
Tenham Religiosos exercícios Ou rompendo nos campos de Ampelusa
De rogarem, por vosso regimento, Os muros de Marrocos e Trudante,
Com jejuns, disciplina, pelos vícios A minha já estimada e leda Musa
Comuns; toda ambição terão por vento, Fico que em todo o mundo de vós cante,
Que o bom Religioso verdadeiro De sorte que Alexandro em vós se veja,
Glória vã não pretende nem dinheiro. Sem à dita de Aquiles ter enveja.

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