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Capa

Tudo são histórias de amor

Dulce Maria Cardoso

Contracapa

«Tu e eu nunca fomos parecidas, mas também não éramos opostas. Poderíamos ter-nos
complementado se não se desse o caso de partilharmos o mesmo corpo. Dispúnhamos apenas
de um corpo, este que agora é só meu. Nunca deixámos de guerrear na nossa existência
intermitente. A vitória de uma seria a derrota da outra. Aquela de nós que matasse a outra
cometeria um crime perfeito, um assassínio sem cadáver. Eras mais capaz nas coisas do mundo.
Achava que serias tu a acabar comigo. Mas não. Escrevo-te do local do crime. Do sítio das
palavras.»

Livro do ano 2011 aclamado pela crítica e pelo público, O Retorno consagrou Dulce Maria
Cardoso como um dos grandes nomes do romance contemporâneo. Tudo São Histórias de Amor
reúne doze contos –– alguns dos quais adaptados para cinema e teatro –– que evidenciam a
intensidade e mestria literária de Dulce Maria Cardoso enquanto contista.

Página de rosto

Dulce Maria Cardoso

Tudo são histórias de amor

LISBOA: TINTA-DA-CHINA
MMXIV

Ficha técnica

© 2014, Dulce Maria Cardoso e Edições tinta-da-china, Lda.

Rua Francisco Ferrer, 6A

1500-461 Lisboa

Tels: 21726 90 28/9

E-mail: info@tintadachina.pt

www.tintadachina.pt

Título: Tudo São Histórias de Amor

Autora: Dulce Maria Cardoso

Revisão: Tinta-da-china

Composição: Tinta-da-china

Capa: Tinta-da-china (Vera Tavares)

1ª edição: Março de 2014

ISBN 978-989-671-198-6

Depósito Legal n.º 371518/14

Índice

Este azul que nos cerca 9

A biblioteca 37

Não esquecerás 51

A mosca e o copo de vinho rosé 59

Iguais 69
Coisas que acarinho e me morrem entre os dedos 81

Desaparecida, ou a Justiça 95

Os anjos por dentro 111

Humal 123

Pânico 133

Retrato de um jovem poeta 141

Autobiografia, ou a história de um crime premeditado 155

Nota biográfica 163

este azul que nos cerca

Naquele sítio o bem era quase impossível. A noite também existe para adormecer a maldade
mas o farol não o permitia. Naquele sítio o bem era quase impossível porque a maldade ia
crescendo em nós, noite após noite. Talvez esta seja uma explicação para o que aconteceu.
Talvez seja a única explicação possível.

Para mim, a chegada de Dóris foi como a de um anjo. Eu era o mais novo dos faroleiros e era
também o mais novo do sítio, se excluíssemos as crianças, que eram quinze. Durante muitos
anos estive convencido de que pensei num anjo porque naquela eternidade de água em que
vivíamos nos fazia falta um anjo, mas agora sei que era apenas muito novo. Há pensamentos
que só o estado de inocência permite, e desejar anjos é um deles.

Tinha chegado ao farol cerca de dois anos antes do dia em que vi Dóris pela primeira vez.

10

Nunca soube o que pensaram de mim, quando a barca lá me deixou. Nunca perguntei e nunca
ninguém mo disse. Mas com toda a certeza ninguém pensou num anjo quando me viram descer
da barca a medo. Tentava evitar que o mar estragasse o único par de sapatos que tinha. Em vão.
Encharcados de sal, os sapatos retesaram-se cambados e nunca mais pude calçá-los. A verdade é
que quando cheguei ao farol era tão novo que nem o estrago de um par de sapatos sabia evitar.
Quando me viram sair da barca, terão pensado, um rapazote, e depois não terão pensado mais
nada. Não os critico. Até à chegada de Dóris nada havia em mim que fosse motivo de atenção.

Nos primeiros tempos, dois, três, sete, cem dias, que naquele sítio um dia é uma coisa diferente
e não contada da mesma maneira, nos primeiros tempos, dizia, não tirei os olhos do pedaço de
terra que se deixava avistar ao longe. Se a noite — mais o nevoeiro que a noite — impedia que
eu ficasse a olhar para aquela tentação que de longe me chamava, desatava a chorar, as minhas
lágrimas quentes nas bochechas, nas costas das mãos que, exasperadas, as limpavam, lágrimas
por todo o lado. As lágrimas, aprendi, ainda custam mais a sair de nós do que a areia fina da
praia. De nada servia querer livrar-me das lágrimas e da areia que se me agarravam ao corpo,
havia sempre mais e mais lágrimas e areia em mim. Naquele sítio aprendi a obstinação do sal e
da terra, mas nada se pode comparar ao que aprendi com Dóris, ou melhor, por causa de Dóris.

11

No farol nunca ninguém deu conta de que chorei tanto, como mais tarde nunca ninguém soube
que pensava Dóris como um anjo. Falávamos muito uns com os outros mas nunca para dizer o
mais importante. Não podíamos correr o risco de nos aproximarmos, já bastava a condenação
de não podermos fugir uns dos outros. E também é certo que há coisas que só se podem dizer
quando já são outras, ou pelo menos quando já têm outra importância.

No dia em que Dóris chegou, já aquele sítio tinha tomado conta de mim como tinha tomado
conta dos outros faroleiros, e eu já não chorava nem sentia a areia no corpo. Também não
escapara à cegueira dos faroleiros, uma cegueira que empardecia todas as cores à excepção do
azul. No farol tudo era sempre e só azul, brilhante se sol, espesso se chuva, pálido se nevoeiro,
ténue se vento, denso se sombra, sempre e só azul, azul-mar, azul-rocha, azul-espuma, naquele
sítio todas as coisas eram maleficamente azuis.

Apesar de ser tão novo que ainda me punha a pensar na falta que um anjo me fazia, já me tinha
tornado igual aos outros faroleiros que lá estavam há dez, vinte, cem anos. O tempo é mesmo
difícil, se não impossível, de ser contado naquele sítio. Talvez também por isso aquele sítio
nunca possa ser esquecido, dentes de cão filados nas canelas, no peito, nos braços, no coração,
uma recordação que não pára de crescer, como não costuma acontecer com as recordações.
Cheguei a ter medo que me vencesse. Mas a recordação cresceu tanto dentro de mim, que não
deixou lugar para mais nada, nem sequer para o medo.

12

Dóris chegou numa manhã quente para o mês de Maio. Tinha ido o Matias buscá-la. Dóris
trazia uma cesta de cerejas para nos oferecer. E uma mala pequena. Lembro-me perfeitamente
da pequena mala castanha de Dóris nas mãos do Matias. Como era hábito, tínhamos ido todos
esperar a barca. Todos não. O Tonico e o Marujo estavam de vigia e não puderam ir. Naquele
sítio éramos tão sozinhos, que ninguém se atrevia a perder a chegada da barca. E da borda do
mar todos vimos o Matias descer da barca em que trouxe Dóris e puxá-la para terra. Apesar de
já não ser novo, o Matias ainda tinha força, com uma mão puxava a barca e com a outra ajudava
Dóris a descer.

Também era hábito entrar na água para ajudarmos quem chegava, mas daquela vez ninguém o
fez. O assombro paralisou-nos as pernas e retardou-nos o raciocínio. Sem qualquer dificuldade,
Dóris saltou da barca e, com as ondas fracas a roçarem-lhe as pernas, recebeu do Matias a cesta,
que pôs à cabeça. Todos julgámos ser coisa de pouco peso, porque o corpito de Dóris caminhou
sem dificuldade pelo mar manso, caminhou com os braços erguidos que seguravam a cesta à
cabeça como se caminhasse em terra firme. Foi nesse preciso momento que pensei num anjo.
Que um anjo me fazia falta naquele além-mundo azul, terei pensado mais tarde, mas os dois
pensamentos sempre me surgiram tão próximos, que fui cometendo o erro de os julgar
simultâneos. E assim passaram a existir para mim. A memória também serve para tornar
acontecido o que não aconteceu.

13

Dóris tinha um vestido fresco e largo, de uma brancura que aquele sítio não foi capaz de azular.
A Mercês, a mais velha das mulheres do sítio, apurou os olhos e, estando Dóris ainda longe de
nós, disse bem alto para que todos a ouvíssemos, ai que esta desgraçada vem ao engano. O
Matias seguia-a um passo atrás com a mala nos braços como se carregasse uma criança e, mais
uma vez contra o hábito, nenhum de nós deu um passo para o ajudar. Dóris e o Matias saíram
assim sozinhos do azul-celeste de que o mar se fazia naquela tarde e vieram ter connosco, Dóris
com a cesta das cerejas à cabeça e o Matias com a mala castanha nos braços.

Já perto, Dóris sorriu para nos cumprimentar, mas ninguém esboçou um aceno nem tentou
sequer um sorriso, que os milagres exigem o silêncio se não da contemplação pelo menos do
medo. Ficámos especados com os olhos em Dóris, que não deixava de sorrir apesar do peso das
cerejas. Dóris estava levemente corada e o carmim ténue da pele fazia sobressair o preto dos
olhos. Havia também as pequenas gotas de suor e as madeixas de cabelo que se lhe tinham
soltado da trança caída pelas costas. Tudo em Dóris brilhava de forma tão pouco natural, que o
Santiago balbuciou, é como se fosse santa.

Foi a vez de a Cremilde gemer, o Matias ensandeceu, se não tivesse ensandecido não trazia uma

criatura destas para aqui, Deus tenha piedade de nós, disse, benzendo-se.

14
Depois desse dia nunca mais um anjo caminhou na minha direcção. E depois de Dóris nunca
mais tornei a ver os olhos a um anjo, que, fiquei a saber desde então, podem ser afinal mais
negros do que a noite.

Dóris tirou a cesta da cabeça e pousou-a na areia. Foi aí que vimos as cerejas. Tal como o
vestido branco de Dóris, as cerejas resistiram ao azul e mantiveram a sua cor fulgurante.
Trouxe-vos cerejas, disse-nos. No silêncio grave que se fez Dóris enterrou com vagar os pés na
areia, semicerrou os olhos e suspirou, como está morna, numa exibição de prazer que
incomodou mulheres e homens por igual. As mulheres não disfarçavam o pasmo, e os
faroleiros, homens que se diziam cientes dos mistérios deste mundo e do outro, nunca se tinham
cruzado com ninguém como Dóris. O Santiago, que nos nossos serões de jogatina nunca parava
de falar e nós de o ouvir, depois de ter balbuciado, é como se fosse santa, não disse uma palavra
até ao dia seguinte. E logo o Santiago, que não havia nada que o calasse, nem mesmo as almas
penadas de afogados que o vinham assustar durante as noites de vigia, segundo se gabava.

Excluindo o chefe, que devido à função tinha contagem à parte, éramos oito faroleiros. Ainda
sei os nomes de todos, o que de nada me serve, porque nunca mais os chamei. Mesmo que os
lesse nas lápides onde já todos devem ter sido escritos, não me ajoelhava para rezar sequer um
pai-nosso, apesar da certeza de que todos bem dele precisam. Que continuem a arder no inferno,
é o que desejo, e não sinto qualquer remorso.

15

A vinda de Dóris tinha sido anunciada meses antes pelo chefe. Na terça-feira gorda, que tinha
calhado em Março, num dia frio e chuvoso. Ia a festa a meio, a canalha com a cara toda
enfarruscada, as mulheres afogueadas na assadura dos bocados de porco na fogueira, quando o
chefe, enchendo mais uma vez o copo de vinho, anunciou, o Matias casou-se neste sábado que
passou.

Que o Matias tinha pedido licença para ir a terra e que o mar o tinha deixado, todos sabíamos.
Obtida a licença do chefe, era preciso que o mar permitisse a saída. Havia muitos dias em que
não podíamos sair daquele sítio a não ser para morrer. Mas que o Matias tinha pedido licença
para se ir casar ninguém tinha ouvido. O chefe espicaçando a nossa curiosidade repetiu, o
Matias casou-se sábado passado. Bebeu o copo de vinho para se despedir do jejum que
começava no dia seguinte, e acrescentou, amanhã está de volta se a barca o puder regressar, mas
ainda não traz a mulher, só daqui a um mês ou dois, quando estiver tudo preparado. A seguir o
chefe gritou, mais uma rodada pelo Matias, e o Tomé pegou no garrafão. Nessa terça-feira
gorda o chefe, os faroleiros, as mulheres, as crianças, eu, todos bebemos de mais a pretexto do
casamento do Matias. Também teríamos bebido demais sem o pretexto, porque o fazíamos
sempre.
16

Dentro de todo aquele azul o tempo custava muito a passar.

Os homens, as mulheres e as crianças que já tinham entendimento não conseguiam perder o


espanto porque no farol, mesmo que quase nunca se falasse directamente das vidas de uns e dos
outros, como exigiam as mais elementares regras de sobrevivência, era natural ou mesmo
obrigatório saber-se tudo delas. Mas ninguém soubera do casamento do Matias e o chefe repetia
a novidade que por ser tão forte nem quando era repetida perdia a sua força, o Matias foi casar-
se, disse, amanhã está de volta se o mar não se virar e a mulher junta-se-lhe daqui a um tempo
quando estiver tudo pronto. E depois perguntou se a assadura do porco estava demorada, e as
mulheres molharam uma folha de couve em azeite para besuntarem os pedaços de carne que
brilhavam nas brasas atiçadas, um azul de fogo. As crianças pintaram ainda mais as caras com
um toco de madeira ardida, fizeram bigodes e barbas a carvão na pele, tudo isso se passou na
terça-feira gorda, um dia frio e chuvoso, um dia feio e tão diferente do dia luminoso do mês de
Maio em que nos apareceu um anjo com uma cesta de cerejas para nos oferecer.

As crianças foram as primeiras a reagir. A sua pouca sabedoria não lhes permitia completo
entendimento do milagre. Rodearam Dóris e a cesta das cerejas com saltinhos de animais
domésticos que também eram. Trincaram a medo a primeira cereja, a segunda, e perdido o
medo começaram a devorá-las.

17

O sumo vermelho escorria-lhes pelos queixos e pelas mãos, e as crianças não paravam de sorrir.
As mães receosas pelos seus filhos logo os imitaram, como é instinto de qualquer fêmea. Se as
crias se perderem, perca-se também quem as pariu que, em caso de perda daquelas, estas cá não
ficam a fazer nada para além de sofrer. Começaram então as mães a comer cerejas e a cuspir os
caroços, que se enterravam na areia ao lado dos pés de Dóris. Chegou a vez de os homens se
baixarem e, com as mãos em concha, servirem-se de cerejas. Devoravam-nas com gula e com o
mesmo sorriso das crianças. À nossa frente, ao nosso lado, no meio de nós, o anjo vestido de
branco continuava a sorrir com os pés enterrados na areia, decerto para não fugir da terra a que
não pertencia.

O sumo das cerejas escorria nas mãos das crianças, das mulheres, dos homens, nas minhas
mãos, que fui o último a provar do pecado da gula, tão perdido estava a desrespeitar o
mandamento que proíbe a cobiça da mulher alheia, ainda que, em vez de mulher, visse um anjo.
Não me lembro se o Matias comeu cerejas mas deve ter comido, naquele sítio a comunhão dos
gestos era obrigatória. E da comunhão dos gestos à dos pensamentos, palavras, actos e omissões
vai menos do que um passo. Nem sempre por nossa culpa, tentávamos convencer-nos.

18

Terminadas as cerejas e o prazer da gula, sobreveio o silêncio da vergonha. Algumas mulheres


passavam as línguas tingidas de vermelho pelos dedos igualmente vermelhos. As crianças logo
as imitaram, e depois os homens. Queriam limpar-se dos restos da gula que lhes manchava a
carne, um vermelho pálido que se ia azulando, muito diferente do das cerejas ao chegarem na
cesta. Vamos indo, disse o Matias, pegando na cesta e começando a caminhar. Dóris
desenterrou lentamente os pés da areia e lá foi, um pouco atrás do marido, que agora levava a
mala pendurada numa mão. A mala era de pessoa com poucos pertences e todos percebemos
que a mulher do Matias não tinha muito de seu.

Não me esqueci de nenhum dos dias que vivi perto de um anjo. Se quisesse podia contá-los um
a um, apesar de muitos terem sido dias quase normais, tão normais quanto permitia a presença
de um anjo com um comportamento em tudo aproximado do humano.

Dóris limpava a casa e lavava a roupa, tratava da horta, que com dificuldade crescia no azul do
sal, esfolava os coelhos que o Matias apanhava nas voltas pela ilha com os outros homens, e
vestia-se de cores escuras como as mulheres lhe disseram que devia fazer. Eu espreitava-a todos
os dias, via-a varrer a entrada da casa onde ela tinha plantado uma trepadeira com rosinhas de
santa teresinha para lhes dar sorte. Espiava Dóris só para saber como os anjos actuam,
convencia-me. Como era o mais novo do sítio, um rapazito, ninguém ligava quando me viam
espiar Dóris. Nem sequer o Matias se importava com isso.

19

Até que no sétimo dia do mês de Agosto, estava eu de turno com o Xavier, foram todos a terra.
Era domingo e as mulheres estavam precisadas da hóstia, foi esse o pretexto. Só que depois da
missa todos se deixaram ficar por lá, um domingo em terra era sempre uma festa. Eu, que já não
sabia estar longe de Dóris, passei o dia atormentado, aquele domingo deve ter sido o domingo
mais longo que vivi. Foi do cimo do farol que vi a barca que os regressava, mas do cimo do
farol não pude ouvir a notícia que a imprudência dos homens bebidos repetia, a notícia que se
misturava com o gosto da hóstia nas línguas das mulheres, nas bocas das crianças, que é onde a
crueldade mais gosta de se abrigar por ali encontrar muito por onde crescer. Descidos da barca,
a notícia correu até mim mais depressa do que a água passa entre os dedos, mais depressa do
que a luz do farol varre o mar.
Ouvi a notícia da boca de uma das crianças e não quis acreditar. Repete o que estás a dizer,
ordenei, mas uma das mulheres, a Raquel, não quis perder a oportunidade de exercitar a
maldade e pôs-se a bater com uma vara nas crianças para as afugentar. O Matias ganhou-a ao
jogo, disse a Raquel, o Matias ganhou aquela desgraçada ao jogo. E juro que lhe vi a língua
dividida, uma língua de cobra como nunca tinha visto em corpo de gente. Não houve casamento
nenhum, o pai apostou-a, já fez o mesmo com as duas filhas mais velhas. O pai traz a mulher
sempre prenhe, disse, a mulher chega a parir de pé, tal é a força do hábito. A Raquel estava
afogueada como nunca a tinha visto, tinha a pele avermelhada e mal respirava entre as palavras.

20

O Matias nunca a devia ter trazido para cá, os pecados que se fazem em terra devem ficar em
terra, disse. Para as mulheres aquele além-mundo em que vivíamos era uma bênção do céu de
que não podiam abdicar. Os homens têm de a mandar embora, por mim a desgraçada já nem
tinha regressado, disse, procurando cumplicidade.

Quando acabou de contar a triste história de Dóris, a Raquel já não tinha motivo para ali ficar e
foi-se embora. Naquele sítio todas as conversas acabavam depressa.

Salvas da vara que as afugentara, as crianças regressaram, brincavam umas com as outras, vou
ganhar-te e vais ser minha, gritavam, vou ganhar-te e vais ser meu. Naquele sítio inventavam-se
todos os truques para que o tempo passasse mais depressa, e o jogo era o mais eficaz. Então se
se jogava a dinheiro, mais depressa ainda o tempo passava. O risco apressava os dias que,
entregues à sorte de que não se conhecem regras, amanheciam e anoiteciam quase como noutro
sítio qualquer. As crianças aprendiam o vício a feijões, jogavam com os baralhos incompletos
que herdavam dos mais velhos, vou ganhar-te, gritavam, e tudo parecia normal. O Matias
ganhou um anjo ao jogo, repeti baixinho várias vezes, havia um sítio qualquer onde a frase
perdia o sentido, um sítio onde surgia uma estranheza de difícil compreensão.

21

Combinaram os homens reunir-se protegidos dos olhos e dos ouvidos das mulheres que os
instigavam a expulsar Dóris. E o Matias, se fosse necessário. Considerado parte interessada, o
Matias foi impedido de participar na reunião. Não se importou, decidam o que quiserem, disse,
a mim ninguém dela me aparta, e virou as costas. Para local da reunião o chefe sugeriu o farol,
onde as mulheres não podiam subir sem serem notadas e porque assim os que estavam de vigia
também podiam participar.

Não vou contar tudo o que se passou na reunião, não teria interesse. Nenhum dos homens
queria que Dóris se fosse embora e isso ficou claro nas primeiras palavras, embora todos se
esforçassem por encontrar outras razões que não a verdadeira. Assim foram arranjando
justificações para que Dóris ficasse, um bem ganho ao jogo é um bem ganho tão honestamente
como de outra forma qualquer, e todos concordavam, mas nem de outra maneira poderia ser, o
Matias já se habituou à companhia na cama e à casa arrumada, e antes da frase acabada todos
abanavam coincidentes a cabeça, só a viuvez é motivo para um homem perder tais regalias, e
todos viam que era mesmo impossível pensar outra coisa, a moça é tão caladinha, não
incomoda ninguém, passam-se dias e dias que nem me lembro que ela cá está, e todos
replicavam, o mesmo se passa comigo. Mas foi o Madeira que se lembrou da razão que a todos
descansou inequivocamente, se a devolvermos o pai aposta-a outra vez e a desgraçada pode ter
o azar de não ir parar a um homem bom e cansado como o nosso Matias. Quando o Madeira
expôs esta razão os homens não couberam em si de tanta satisfação. Eram responsáveis pelo
destino daquela desgraçada e não havia mais nada a dizer. Mas apesar de todos estarem de
acordo desde o início, e da força desta última razão, tudo foi repetido e explicado como se
houvesse desacordo. Tão empenhados estavam em concordar uns com os outros, que o Tobias
disse, comovido, ver tanta bondade dá vontade de chorar.

22

Nenhum dos homens falou, nem na reunião nem no muito tempo que se lhe seguiu, do vício
que Dóris se tinha tornado. Nem nenhum dos homens confessou que a respectiva mulher lhe
tinha exigido a expulsão de Dóris.

Dóris tinha começado a incomodar as mulheres dos faroleiros no momento em que estas a
viram como prova de um Criador injusto que, por capricho, concentrava a beleza numa criatura
e desfalcava as outras impiedosamente. Arranjado um pretexto para se verem livres do estilete
que as feria, não iam as mulheres desperdiçá-lo. Exageraram, por isso, o pecado do concubinato
e o receio da perversão. Cada uma das mulheres disse ao respectivo marido que era
fundamental expulsar dali o pecado. Também as mulheres esconderam a verdadeira razão, e
nisso foram iguais aos homens. O desejo para que Dóris se fosse embora era nelas tão forte
quanto, nos homens, era forte o desejo para que Dóris ficasse.

Quando o Tobias acalmou a comoção, o chefe deu por terminada a reunião e os homens
desceram as escadas do farol em silêncio, ficando lá apenas quem o dever obrigava. Fizeram o
caminho para as casas também em silêncio, porque tinham medo de que uma fraqueza os
atraiçoasse e de que assim começassem a dizer a verdade. Como isso não aconteceu, as
mulheres nunca souberam que foram traídas pelos maridos na reunião.
23

Em casa, a coberto do escuro e dos cobertores, cada um dos homens se desculpou com os
outros e, por serem astutos ou porque a traição atrai grande porção de erotismo, todos nessa
noite se serviram das mulheres com invulgar sofreguidão. Isto foi entendido nas conversas do
dia seguinte, mostrando-se os homens contentes por terem conseguido convencer as mulheres
de que não corriam perigo algum. Tanto assim foi que as próprias mulheres acabaram por
confiar que mais dia menos dia seria Dóris que se iria embora dali pelo próprio pé, era aliás isto
que a Mercês ia dizendo enquanto punha a corar as toalhas de turco. Falaram depois de outras
coisas, da papeira dos filhos às couves que azedavam o caldo, como se a expulsão de Dóris
fosse assunto encerrado.

Ninguém mais do que eu queria que Dóris ficasse, Dóris fazia-me mais falta do que o pão à
boca. Mas nunca disse uma palavra sobre isso. Fui igual aos outros, homens e mulheres. Fui,
não, era em tudo igual a eles. Até na maldade era igual, como mais tarde vim a saber.

Muitos dias passaram sobre o dia da reunião onde os homens escolheram não expulsar Dóris. E
se alguém visitasse o farol podia jurar que estava tudo igual, que aquele Outono e aquele
princípio de Inverno foram iguais a todos os outonos e a todos os princípios de inverno. Mas a
verdade é que a maldade já tinha começado a desenvolver-se para além da porção normal que
existia em cada um de nós, para além da porção que não provoca confusão de maior e é até útil
ao convívio, por proporcionar motivos inesperados de conversa.

24

Então, numa noite de Dezembro, a décima segunda noite de Dezembro, para ser mais preciso,
estando deitado na minha cama a olhar para a luz do farol que entontecia o mar, o pensamento
que me ia mudar a vida tomou-me com surpreendente clareza. Um bem ganho ao jogo também
ao jogo pode ser perdido. Por tão evidente, censurei-me de ter tardado a chegar a este
pensamento. O pensamento era de tal maneira poderoso, que foi como se eu tivesse nascido
outra vez. Num resto de cobardia ainda desejei que o farol se apagasse para eu conseguir
enfraquecer e adormecer a maldade. Mas à medida que a luz do farol me ia atingindo em
chicotadas cada vez mais dolorosas, soube que o mesmo pensamento já era claro na cabeça dos
outros faroleiros e que por isso apostavam cada vez mais dinheiro, especialmente se o Matias
fizesse parte do jogo.

Na manhã seguinte, fui espiar Dóris e tive a certeza de que Dóris também já tinha pressentido a
maldade que se desenvolvia à volta dela, uma planta carnuda que lançava ramos vigorosos para
todo o lado, mesmo para o céu que não acolhe plantas ou para o mar que as afoga, uma planta
azul como nunca tinha existido naquele sítio. Percebi também que Dóris tinha medo, mas no
meu pensamento nada mudou.
25

O Matias era o único que parecia não ter dado conta de nada. Fazia os quartos de vigia com os
que lhe iam calhando como sempre tinha feito e apesar da intenção secreta de cada um dos
homens nunca se negou a uma mesa de jogo. De resto, parecia que ninguém era tão feliz quanto
o Matias aparentava ser e isso ainda acirrava mais os colegas. A maldade que crescia
desmesurada ia provocar a desordem, isso era certo e todos os sabiam, mas ninguém o queria ou
podia evitar.

A primeira mudança foi quase insignificante e consistiu em escolherem um lugar mais discreto
para jogarem. Já não jogavam em frente à linha das casas porque — mentiram — o vento
soprava mais forte do que antes. Foram para um lugar abrigado onde podiam, sem que as
mulheres disso se apercebessem, apostar forte sempre que o Matias era um dos jogadores.

Mas a maldade também crescia nas mulheres. Dóris tratava do Matias, que engordou e andava
sempre com as camisas lavadas e bem engomadas, tratava da casa e da horta onde a verdura
vingava, e tudo isso só fazia com que as mulheres gostassem cada vez menos de Dóris, uma
espécie de nó no estômago que as indispunha quando a viam. Estando os homens tão entretidos
com o jogo, as mulheres tiveram o tempo que quiseram para praticar a maldade em Dóris.

26

Assim, arranjaram maneira de Dóris ficar sem a trança. Fingiu uma delas que tropeçava e
entornou-lhe petróleo no cabelo, para logo outra pegar na tesoura com medo do fogo que nem
sequer ateado estava. Cortaram a trança rente, de modo que Dóris não pôde prender o cabelo
durante muito tempo. Mas, solto, o cabelo de Dóris ainda brilhava mais, e as mulheres
perceberam que só tinham piorado tudo. Arrependeram-se, e o arrependimento ainda lhes deu
mais raiva, que poucas vezes o arrependimento é redentor. As mulheres pensaram então numa
maneira de ferir Dóris sem que disso pudessem ser acusadas. Uma delas, a Cremilde, raspou
durante umas boas horas o tanque de Dóris com uma pedra. No dia da lavagem da roupa, foram
chamar Dóris, que ainda as acompanhava ao lavadouro e ao forno onde coziam o pão. E lá
partiram todas, um corpo com muitos braços e pernas, uma enorme centopeia que cantarolava.
Chegadas ao lavadouro, cada uma ocupou o seu tanque. Ainda Dóris não tinha lavado uma das
duas camisas do Matias e já os dedos lhe sangravam. Riram-se as mulheres dizendo, isto não é
lugar para donzelas de pele fina, e Dóris sem um queixume lavou a roupa toda que trazia no
cesto. A água tingia-se de sangue logo que Dóris punha as mãos na bacia e as mulheres
mandaram-na para casa. Mas Dóris lavou a roupa e pô-la a secar. Isto ainda enfureceu mais as
mulheres.
Os homens jogavam como nunca naquele sítio se tinha jogado e eu, novo e insensato, ainda
jogava mais do que eles. Perdia com todos. Nos meses desse Inverno perdi tudo e mal tive o
que comer. Mas a ideia de ganhar Dóris era tão forte, que nem me apercebia da fome, mesmo se
à noite o estômago me doía e eu tinha de me dobrar sobre ele tentando enganá-lo. Os outros
homens não apostavam tudo, continha-os o pavor de serem descobertos pelas mulheres e
impedidos de jogar.

27

O Matias ganhava quase sempre, e o vício entranhava-se-lhe cada vez mais. Se alguém lhe
dizia, cuidado amigo Matias, sorte ao jogo azar ao amor, ele encolhia os ombros, dentro da
camisa aos quadrados que Dóris lavava e engomava, e recolhia o nosso dinheiro. Nesse tempo
era frequente vê-lo sair da barca com embrulhos que sabíamos serem presentes para Dóris,
vestidos e ouro, brincos, colares e pulseiras. Como Dóris saía cada vez menos de casa, as
mulheres não tinham ocasião de invejar os vestidos e o ouro, apenas invejavam a dedicação do
velho Matias.

Com raiva, puseram as mulheres umas pazadas de cal na horta que Dóris cuidava e nisso foram
bem-sucedidas, pois nem mais uma erva daninha lá cresceu. Satisfeitas, as mulheres
descansaram um pouco a maldade. Tinham de cuidar dos filhos, dos maridos e das casas, e o
exercício da maldade rouba mais tempo do que qualquer actividade rotineira.

O Matias continuava a ganhar, e aos poucos os homens foram desistindo de jogar a sério contra
ele. Disseram, o velho sabe o segredo das cartas, a prova é que ganhou a mulher ao jogo.
Confirmada a sabedoria do Matias, a todos os homens pareceu justa a vitória sobre o pai de
Dóris. Só eu continuava a perder tudo, confiante de que aprenderia a falar com a sorte.

28

Tentava convencer-me de que para um entendimento se tornar íntimo é preciso vagar.

Apesar do aspecto em tudo aproximado ao de um anjo, Dóris acabou por engravidar, como é o
destino de todas as mulheres saudáveis quando conhecem homem. As mulheres foram as
primeiras a saber, porque lhe vigiavam as roupas que eram lavadas no tanque e estendidas no
chão azul de erva. Mas nem por isso a maldade que lhes enchia a alma se apequenou. Antes
pelo contrário. Foi por uma das mulheres, a Rosa, que eu soube da gravidez de Dóris. De muito
te serviu andares atrás da donzela como um cão, disse, agora que a donzela está de barriga
sempre quero ver o que fazes. E deu uma gargalhada que ainda hoje ouço. Ainda assim não
fiquei triste. Era novo e a juventude em nada vê impedimento. Ou em quase nada.

Os homens recomeçaram a jogar uns com os outros como antigamente o faziam, com cautela e
com restos de tostões que não incomodavam o orçamento familiar. Mas regozijaram-se quando
perceberam que eu não desistia, que continuava determinado no encalço da sorte do Matias. O
rapazote fez-se um homem, disseram, e decidiram apostar em mim contra o velho Matias, que a
juventude é sempre mais promissora. Os homens emprestaram-me muitas vezes os tostões deles
para que eu não desistisse do mal que me ocupava a cabeça com a clareza de um bom
pensamento. A espera de um filho ainda atiçara mais o Matias para o jogo. Queria ganhar
dinheiro para o herdeiro, falava na compra de um berço de meia-lua.

29

Dóris tinha começado a ser mãe havia cinco meses e já se lhe notava a barriga que se empinava
desagarrada do corpo quando Matias me desafiou para jogar. Era outra vez Maio. A barriga de
Dóris podia ter alterado o meu desejo de a ter, mas grávida Dóris ainda se tornou mais
apetecível, penso que vi a gravidez de Dóris como os salteadores vêem um templo profanado
onde se entra com menos constrangimento.

Naquele dia o Matias ganhou-me em três jogos tudo o que me restava. Sempre com um sorriso
que não chegava a ser sorriso, mais um esgar, a camisa aos quadrados lavada e engomada.
Estava orgulhoso do berço de meia-lua que ia dar ao herdeiro. Sem me importar de não ter o
que comer durante os meses seguintes, aceitei o dinheiro todo que me quiseram emprestar e
endividei-me para jogar mais uma vez. Tornei a perder. Os homens que nos rodeavam já não me
podiam emprestar mais nada. Fez-me então o Matias uma proposta. Jogava todo o dinheiro
daquele dia contra o meu trabalho de meia dúzia de anos. O bom e cansado velho Matias, que já
ganhara a mulher ao jogo, tentava agora ganhar um escravo. Os homens que nos rodeavam
tiveram medo. Eu olhei as cartas e pensei, faça-se a vossa vontade. De qualquer maneira já não
era dono de mim. Aceito, aceito sim senhor, mas só contra o teu dinheiro todo, o teu dinheiro
todo e a camisa que trazes vestida, propus. O velho Matias sorriu e começou a baralhar as
cartas, sempre me sobram as calças para em caso de perda ter onde pôr as pedras ao entrar pelo
mar, disse.

30

Os homens testemunhavam calados, estando como se ali não estivessem. As cartas caíam
pesadas sobre a mesa e eu entregava-me a elas, faça-se a vossa vontade. Faça-se a vossa
vontade. Faça-se a vossa vontade.

Ganhei o jogo.

Tinha finalmente aprendido a falar com a sorte. Faça-se a vossa vontade. Os homens ergueram--
me em delírio e arrancaram a camisa ao Matias. Em tronco nu, o Matias levantou-se
cambaleante, olhando o mar. Não te ponhas já com ideias, homem, que eu devo-te uma
desforra, disse-lhe. O Matias olhou em volta mas os homens viraram-lhe a cara, ficaste-me com
o dinheiro todo, rugiu o velho. Foi então que sugeri, e a voz saiu-me aveludada, tens outros
bens. E todos fixaram o Matias, tens outros bens, repeti, com o mesmo veludo na voz. O Matias
olhou-me no fundo dos olhos e amaldiçoou-me. Virou costas e caminhou não para o mar a que
se tinha prometido mas para a casa onde tinha Dóris. Chegado à porta estacou e voltou para
trás. Veio sentar-se à mesa para jogar. Lambiam os homens os lábios à medida que o
nervosismo os iam secando. E nem a sirene a espantar os barcos do nevoeiro alguma vez se
ouviu tanto quanto o silêncio do jogo em que ganhei Dóris. Antes de se levantar da mesa o
Matias amaldiçoou-me uma última vez, maldito sejas enquanto viveres e maldito sejas depois
de morto. Sem passar sequer à porta de casa onde Dóris o esperava, encheu de pedras os bolsos
das calças e entrou pelo mar.

31

Eu estava feliz porque Dóris era finalmente minha. Se um homem morrera por causa disso tanto
me fazia. Como o mar não devolvia o corpo do Matias, passados trinta dias, os homens deram-
me autorização para me mudar para a casa em que o Matias tinha vivido com Dóris. As
mulheres apoiaram a decisão porque lhes era insuportável a ideia de Dóris a tentar os homens
delas. Queriam que Dóris se fosse embora mas não ousaram pedi-lo, com medo de serem mais
uma vez derrotadas e de não saberem viver com essa nova derrota. Dóris recebeu-me em casa
sem dizer uma palavra. Sabia que tinha sido outra vez apostada e que agora me pertencia. Era o

suficiente.

Eu era tão novo que poucas vezes tivera mulher. Por egoísmo decidi esperar, queria ter Dóris só
para mim, quando já não trouxesse na barriga o filho do Matias. Por isso dormíamos na mesma
cama como dormem dois irmãos. Às vezes Dóris chorava com saudade do Matias, outras com
saudades dos pais e dos irmãos. Eu ouvia-a mas nada fazia.

Dóris começou com dores no último dia do mês de Julho. Acordou-me, agarrada à barriga,
dizendo que parecia ter um ferro em brasa dentro dela. Como ainda não tinha chegado o tempo
de ela ser mãe levantei-me da cama sem grande sobressalto.

32

Mas quando vi o sangue que lhe escorria pelas pernas assustei-me como nunca me tinha
assustado em relação a nada até então.

Saí para a rua e gritei o mais alto que pude naquele correr de casas. Acordei homens, mulheres e
crianças, que entraram na nossa casa ainda zonzos de sono. Por todo o lado se iam pondo
candeeiros de petróleo para melhor se ver. A luz do farol, em rajadas rigorosamente espaçadas,
iluminava a cama onde Dóris se esvaía em sangue com uma crueldade de que nunca pensei que
alguma luz fosse capaz. Disseram então as mulheres que Dóris ia parir e que se afastassem os
homens. Fiquei com as crianças a espreitar pela janela, vendo o sangue empapar os lençóis e
ouvindo os gritos das mulheres incitando Dóris a fazer força. Se o soubeste fazer também o
sabes pôr cá fora, disse a Antónia enquanto a Mercês fazia força na barriga de Dóris com as
mãos.

Com a luz da manhã, as mulheres interromperam os gritos que exigiam a força de Dóris e eu
percebi que tinham desistido daquele nascimento. Pedi aos homens a barca. Que não, disseram-
me, que o mar estava de não deixar sair ninguém dali.

Entrei pela casa secundado por alguns homens que tentavam agarrar-me. Peguei em Dóris ao
colo para a levar para terra, em terra alguém havia de a salvar. Opuseram-se os homens com
receio de perderem a barca e duas vidas no mar. É sabido que os afogados não encontram
descanso no céu. Com Dóris ao colo, fui até à borda do mar de onde a tinha visto pela primeira
vez. Seguiram-me homens, mulheres e crianças. Todos garantiam que eu tinha de saber aceitar
o que havia de acontecer.

33

A maldade tinha tomado tudo, até mesmo a misericórdia que se costuma ter para com os
moribundos. Deitei Dóris na areia e corri para a casa do chefe onde a barca estava guardada.
Sem ajuda não conseguia sequer mexê-la, quanto mais chegá-la ao mar. Foi isso que lhes gritei,
mas nenhum homem deu um passo e todos baixaram os olhos. O sangue de Dóris empapava a
areia. Disseram as mulheres que não havia nada a fazer, que era o Matias que a vinha buscar a
ela e ao filho, as almas penadas dos afogados acabam sempre por vir buscar os seus. Gritei-lhes
mais e mais. Desesperado deixei-me cair de joelhos. A mancha de sangue alastrava-se na areia.
Dóris fechou os olhos negros como se adormecesse. Levantei os meus e vi o cerco que se
fizera. Homens, mulheres e crianças rodeavam-nos como tinham rodeado a cesta de cerejas.
Assim ficámos algum tempo, quanto não sei. A manhã subia no céu e ia azulando todas as
coisas menos o sangue de Dóris derramado na areia. Foi assim que Dóris morreu. Afinal os
anjos morrem como qualquer um de nós.

Foi então que a barriga de Dóris começou a mexer-se em saltos que assustaram as mulheres e
fizeram fugir as crianças e os homens. Ai que a criança vive na mãe morta, gritou a Mercês, e
todas se afastaram benzendo-se. Fiquei só eu ao lado de Dóris. O frio que ia tomando conta do
corpo não sossegava os movimentos da barriga que eram cada vez mais bruscos, mais aflitos.

34
Não sei dizer quanto tempo passou até a barriga sossegar, diria que muito, mas o tempo
continuava a ser impossível de contar naquele sítio. Nada, nunca mais, perturbaria o azul que
cobria já Dóris por completo. Mesmo estando homens, mulheres e crianças a uma distância que
consideravam prudente, todos puderam ver isso. Traiçoeiramente, aquele sítio tinha-me ganho o
meu anjo.

Fiquei esse dia e essa noite ao lado de Dóris na areia à espera que o mar se acalmasse e que os
homens permitissem o uso da barca. Vim-me embora na barca com os corpos de Dóris e do
filho do Matias. Mas o sal e o pó daquele sítio nunca mais me largaram. Dei dinheiro ao
cangalheiro para tratar do enterro. Pedi uma urna branca. Informou-me o cangalheiro de que as
urnas brancas são para quem morre em estado de inocência e que a mulher estava grávida.
Nunca soube que urna foi usada. Terminada a conversa, parti para muito longe.

Até hoje, mais de sessenta e três anos passados, nunca parei de jogar. Em casinos, tascas, casas
mal-afamadas, casas particulares, em todos os lugares onde haja uma mesa e um parceiro para o
jogo. Nunca mais me sentei a uma mesa de jogo com outra ideia que não a de desafiar o dono
dos anjos. Nunca, por uma só vez, deixei de exigir furioso, aposta outra vez um dos teus anjos,
aposta. Tu bem sabes que é por isso que aqui estou. Ele invariavelmente levanta-se e vira-me as
costas, sem sequer se dar conta de que os meus olhos são de um azul que nunca ninguém viu.

35

É então que os baixo e começo a jogar com quem me calhou.

37

a biblioteca

livremente inspirado em factos reais


Os livros salvaram-me. É a primeira vez que digo isto em voz alta. Um homem não pode deixar
de envergonhar-se quando diz que não se matou por causa dos livros. Parece mais coisa de
rapariga fraca dos nervos. E no entanto é a verdade. Há muito, muito tempo, os livros salvaram-
me. Se não quiseres acreditar, não acredites. Acreditar também é uma decisão. Há coisas que
não se podem decidir. Ter sede, por exemplo. Ser salvo por livros. Acontece sem que se possa
decidir. Já estou a divagar outra vez. O pensamento dos velhos é circular. Não é um pensamento
em linha recta, para a frente, para o futuro, como o dos jovens. O pensamento dos velhos é um
pensamento às voltas, um pensamento que se sabe perto do fim e que assim o adia. Não que o
fim me cause medo. É o caminho. O estar a chegar. Vi muitas vezes esse medo nos olhos de
outros homens. De homens que estavam a morrer. Sim, de homens que matei.

38

Se preferes que diga assim, eu digo, vi muitas vezes esse medo nos olhos de homens que matei.
Não estava a querer esconder que matei. Não faria sentido. Muito menos perante ti. Disse os
homens que estavam a morrer e não os homens que matei porque o medo de que te falo é um
medo que não tem que ver com quem te mata ou com o que te mata. Tem que ver com estares
partindo. O medo de estares a chegar ao fim. Encontrei-o tantas vezes nos outros, que consegui
expurgá-lo de mim.

Não há lugar a embaraços entre nós. Conhecemo-nos há tanto tempo. Não precisas de desviar
os olhos, e os passear, como estás a fazer agora, por estas paredes cobertas de estantes com
livros. Acreditas que até aos vinte e um anos nunca tinha lido um livro? A não ser os de
aprender. Aos vinte e um anos ainda tropeçava nas palavras escritas e não sabia o que muitas
delas queriam dizer. Parece impossível olhando agora para esta biblioteca. Não há aqui um
único livro que não tenha lido. A minha biblioteca. Tive todas as vidas que li. Milhares de vidas.
Pensarás que deliro. As minhas ideias já estão um pouco confundidas, mas não a este respeito.
As vidas que li não foram menos minhas. Não há grande diferença entre o que se vive lendo e o
que se vive vivendo. Milhares de vidas à nossa espera no silêncio dos livros. O silêncio dos
livros não e igual ao nosso. Vem para esta cadeira para ficares mais perto de mim. Cansa-me ter
de falar alto. Ficou tudo tão longe. Tão longe. Menos os livros que continuam perto. Nunca
podemos estar muito longe de nós, pois não? Perdi-me outra vez.

39

Corre as cortinas. Os meus olhos já não suportam a luz. Têm razão. Os corpos agem com
inteligência. Vão-se preparando para o que lhes está reservado. Não fosse a memória e era
indolor. Continuo a gostar das manhãs de sol pela memória que tenho delas. Mando abrir as
cortinas como se os meus olhos ainda fossem capazes. A memória. Mais insensata do que uma
puta velha. A puta da memória que não desiste. Obrigado. Ficamos melhor assim. Era essa a
minha cadeira preferida. Quiseram mandar forrá-la há uns anos. Não deixei. A cadeira não está
estragada. Está velha. É justo que a minha cadeira tenha envelhecido comigo. Nem uma cadeira
testemunha sem se tornar parte do que é testemunhado. Esta biblioteca é a testemunha mais
fidedigna do que sou. Encontrei-me aqui com tanta gente. Nós, que me lembre, nunca nos
encontrámos fora daqui. Havia os que entravam a medo, como dantes se entrava nas igrejas.
Encontravam com dificuldade o lugar onde ficar, de pé com os braços junto ao corpo. Outros
entravam confiantes e punham-se no centro desse tapete. Eram os dos gestos largos e das
gargalhadas fortes. Tanta gente. Havia os que se sentavam junto à janela como se estivessem a
fazer uma visita. E os que se sentavam à minha frente como numa consulta. Os da perna
cruzada e os do cigarro aceso. Os que olhavam lá para fora como se estivessem numa prisão. Os
que se portavam como donos. Tanta gente. Como eram dourados os florões daqueles armários
ali ao fundo.

40

Ficaram baços. Estes livros, mais do que testemunhas, são meus cúmplices. Sabem tudo de
mim. E eu sei tão pouco deles. Ainda que lhes conheça segredos escondidos e erros cândidos.
Ainda que lhes saiba da ambição e lhes confirme o fracasso. Sei pouco deles. Os livros
conhecem-nos, mas não é da sua natureza deixarem-se conhecer completamente. O mistério
destes pequenos deuses. Não tem mal se te rires. Não me importo de ser patético. Já não me
importo, quero dizer. Ninguém conhece Deus, mas acreditamos que Deus conhece intimamente
cada homem. Se conseguimos acreditar numa palavra — Deus — devemos poder acreditar em
todas as palavras. Quando é que foi a última vez que estiveste aqui? Já confundo o tempo. O
tempo perde importância à medida que escasseia. Quanto mais escasso, menos valioso. Deve
ser a única coisa que vale menos à medida que se torna mais rara.

Sei que te tinha prometido não voltar a encomendar-te um serviço. Não penses que te enganei.
Estava convencido de que não seria preciso voltares a matar a meu mando. Mas afinal não é
assim. Está tudo preparado. Não foi fácil escrever a carta que está dentro daquele envelope. Os
meus olhos já vêem pouco e as mãos tremem-me. Sabes que até aos quinze anos não soube que
a escrita existia? Aqui está uma coisa ainda mais difícil de se acreditar. Se alguém me contasse
não acreditava. E se tivesse lido num livro juraria de imediato que era mentira. Mais uma vez é
verdade. Uma daquelas verdades que não poderiam estar num livro, de tão absurdas.

41

Quase todas as vidas dariam maus livros por causa das verdades absurdas de que se fazem. Aos
quinze anos já era ruim. Não me lembro de alguma vez ter sido de outra maneira. Não me tinha
afastado de Besteiros mais do que o que um par de horas permite às pernas. Só tinha visto sítios
tão pequenos como Besteiros ou, quando muito, como Penedos. Sabia da cidade mas nunca lá
tinha ido. Também sabia do mar que começava depois da cidade. Até aos quinze anos, os únicos
livros que tinha visto eram os da missa. Visto não, avistado, que quando ia à missa ficava junto
da porta da capela e os livros estavam lá longe, nas mãos do padre. Eram um adorno do altar,
como muitos outros. A missa, mesmo a de Besteiros, fazia-se de adornos. Tão distantes como o
latim. E também não se repara no que se viu fazer desde sempre. Mesmo que seja uma coisa tão
estranha como o padre abrir caixas de folhas e dizer coisas numa língua incompreensível
enquanto olha para elas. O padre também fingia que a hóstia e o vinho eram o corpo e sangue
de Cristo e ninguém se perguntava por que o fazia. Era sempre tudo feito da mesma maneira e
sempre tinha sido assim. O natural era que nenhum dos gestos do padre despertasse em mim a
tentativa de os perceber. Nem em mim nem em ninguém de Besteiros, acho eu. Duvido que
Besteiros ainda exista. Só devem restar ruínas. Era um sítio tresmalhado lá longe, no interior.
Com a montanha onde de Inverno caíam as geadas e de Verão a canícula. Uma capela sem
cemitério e um lugar de venda que pouco tinha para vender.

42

Levava-se uma vida simples que só a doença complicava de vez em quando. Se o passar dos
dias não curava a doença, fazíamos mezinhas e rezávamos para que o mal não fosse de morte.
Quando era, iam os corpos a enterrar a Penedos. Se alguém em Besteiros sabia o que era a
escrita ou os livros nunca mo disse. Besteiros era tão longe que nem os mortos lá ficavam. As
únicas palavras que existem num sítio assim são as que nos saem da boca. E essas são quase
todas desnecessárias.

Aqui tens a arma e as luvas. E a minha arma. Parecerá um suicídio. De certo modo é. A carta
que escrevi convencerá toda a gente disso. Um trabalho limpo. Não há mais ninguém em casa.
Basta fechares a porta quando saíres e estará tudo acabado. Claro que podia ser eu a fazê-lo,
mas prefiro que sejas tu. Não te sei explicar porquê. Disparas quando quiseres. Eu estou pronto.

A primeira pessoa que vi escrever foi o caixeiro-viajante. Eu e o meu pai tínhamos chegado há
menos de uma hora à cidade e aquela descoberta maravilhou-me mais do que o mar que naquele
dia luminoso parecia um céu na terra. Do mar já me tinham falado, da escrita é que não. O
caixeiro-viajante apontava as onças de tabaco, o vinho, a aguardente e outras mercadorias que o
taberneiro lhe encomendava. Eu não sabia o que era aquele pau pequenino que o caixeiro-
viajante tinha na mão, um pau que deixava riscos numa caixa de folhas como os livros da
missa, só que mais fina. Perguntei-lhe o que estava a fazer. A escrever, disse, assim não me
esqueço. Não percebi. E o caixeiro-viajante não percebeu o que eu não percebia.

43

Levámos algum tempo nesse desentendimento. Uns riscos num papel que impediam o
esquecimento? Claro que me estavam a mentir. Não há como saber pouco para se julgar que já
não há nada para aprender. Vão gozar com outro, resmunguei. O caixeiro-viajante insistiu que
era verdade e o resto dos homens que bebiam, sentados no banco de pedra que a taberna
acomodava, também deram a palavra de honra. O taberneiro jurou pela alma da mãe. Acabei
por acreditar. Se é assim eu também quero, disse, determinado. Na juventude ainda não se teme
o ridículo e esse é um dos seus encantos. Todos se riram. Tinham as dentuças apodrecidas. São
os ignorantes os que mais se riem da ignorância. Não têm como lamentá-la.

Se é assim, eu também quero.

De Besteiros à cidade eram muitas horas de caminhos ruins. Ninguém lá ia. A não ser por
motivo de força maior. Ver o mar não era razão suficiente para os de Besteiros se meterem a
caminho, pois até no ver eram modestos. Um chão semeado tinha beleza para muitas vidas. O
único que já tinha ido várias vezes à cidade era o Tadeu. Diziam que por amor a uma mulher
que lá vivia. Não podia haver outra razão, tal era a violência da caminhada. Eu ia com o meu
pai que, quase no final de uma vida de miséria, tinha reunido dinheiro para comprar um cavalo.
Fomos à cidade comprá-lo. Só a ida seria custosa, porque regressaríamos montados no cavalo.

44

Saí de Besteiros sem imaginar que já não voltaria. Identificar os acasos que nos trouxeram ao
que somos só nos torna mais frágeis. Fazemo-lo na esperança de percebermos como nos
aconteceu tornarmo-nos o que somos. Em vão.

O médico deu-me três meses de vida. A bata branca sem uma única nódoa, apressado como
todos os que julgam que ainda têm tempo. Três meses. É a primeira vez que tenho três meses de
vida. Sempre ganhei cada segundo à vida e eis que de repente me dizem que tenho três meses.
Três meses. Noventa dias. Divago outra vez. Três meses. Estão enganados. Quem decide o
tempo que tenho sou eu. Não o médico. Não o corpo. Eu decido. Como quando decidi não
regressar a Besteiros e ficar com o caixeiro-viajante que precisava de um ajudante e tinha uma
irmã que me ensinaria a ler e a escrever em troca de umas jeiras. Demos um aperto de mão e o
compromisso ficou selado. Vais ser alguém na vida porque tens ganas para isso, disse-me o
caixeiro-viajante. Ser alguém na vida era ter uma vida como a sua. Era ser um dos muitos que
viviam na cidade. Era ser ninguém. Os homens riram-se outra vez e eu ri-me com eles. Já tinha
aprendido que o riso não serve a felicidade, mas dessa vez estava feliz. Deixei de sentir a
dureza das botas e o peso do capote, sentia-me poderoso.

Demorei algum tempo a aprender a ler e a escrever. Já não tinha a cabeça tenra das crianças e a
aprendizagem encontrava obstáculos em todo o lado.

45

Especialmente na vergonha perante a irmã do caixeiro-viajante. Pelo contrário, o carrego das


sacas não carecia de aprendizagem. Andei durante anos tão carregado quanto o mais carregado
dos burros. Não voltei a Besteiros. Os passados só se tornam acessíveis se os mapas os
assinalarem e se para lá houver caminhos. Besteiros não existe em mapa nenhum e são
improváveis os caminhos para lá se chegar. A única coisa de que sentia falta era dos corvos. Os
corvos de Besteiros voando contra o céu azul. Na prisão ouvia-os grasnar todos os dias. Pensei
que existiam corvos por perto. Não. Continuo a ouvi-los ainda agora. Tão claramente como em
Besteiros. Crrrr crrrrr. Crrrr crrrrr. O grasnar dos corvos foi a única coisa que sobrou de
Besteiros. Só tornei a ouvir os corvos na prisão. Vinte e cinco anos preso é muito tempo. Era
mais do que eu tinha vivido até então. Uma eternidade. Quem é que pode deixar-se ficar preso
uma eternidade? Ninguém. Muito menos eu. Tão novo. Tão habituado a andar por onde queria.
Decidi matar-me. E tê-lo-ia feito se não fossem os livros. Verdade. Tão verdade como não ter
havido ninguém de Besteiros que me tivesse visitado na prisão. Se quando fui preso aquela
gente já estava morta para mim, depois disso mais morta ficou.

Nunca soube explicar o que senti quando aprendi a ler e a escrever. Era como se tivesse nascido
novamente, e com poderes especiais. A mudança não teria sido maior se me tivessem crescido
asas ou garras afiadas como as dos bichos da selva. Só que nascer aos quinze anos não é o
mesmo que nascer aos nove meses.

46

Já és quase um homem, tens um corpo forte, sabes demais, lembras-te de muitas coisas. Asas e
garras não poderiam ser suficientes para quem, nunca tendo saído de Besteiros, nasce aos
quinze anos numa cidade. Ainda para mais alguém ruim como eu. Estava fascinado com aquele
mundo novo deslumbrantemente rápido e extremado. Na cidade não se podia ser meias-tintas.
Para se ser alguém na vida tinha de se ser a sério, caso contrário só se era mais um dos muitos
que lá viviam. Como o caixeiro-viajante. Quando se era pobre também se era pobre a sério,
daqueles de dormir na rua e de morrer de fome. Em Besteiros não havia quem dormisse na rua,
mas também não havia quem viesse a ser alguém na vida. Na cidade, em se querendo, podia
jogar-se ao tudo ou nada, o que acarretava paixões e ódios impossíveis de amestrar. Matei o
primeiro homem numa rixa. Fui provocado, que se nasci assassino não lhe tinha o gosto. Três
homens assistiram a tudo. Podiam ter-me denunciado, mas em vez disso ajudaram-me a enterrar
o corpo num sítio onde nunca foi encontrado. Perceberam que se fosse preciso não hesitaria em
acabar com eles. Ganharam a vida e um amigo. Convidei-os para o assalto à ourivesaria. Na
cidade precisava-se de muito mais coisas e não demorei a decidir que não passaria o resto da
vida com o dinheiro que o carrego das sacas me dava. Se o fizesse, o mundo que tinha acabado
de descobrir fugir-me-ia. O assalto à ourivesaria era quase uma brincadeira de crianças.

47

Dois alinharam. O terceiro quis ficar de fora. Foi ele que me denunciou e foi o segundo homem
que matei. Vinte e cinco anos depois, a primeira coisa que fiz quando fui libertado.

Se o ourives não tivesse morrido de ataque de coração quando soube que a loja tinha sido
assaltada, tudo teria sido diferente. Outra vez o acaso e as suas manhas. Queriam apanhar o
responsável pela morte de um velho avarento e ofereceram uma recompensa tão grande, que a
tentação do traidor foi maior do que o medo de que eu o matasse. Bastou-lhe entregar o plano
escrito pela minha própria mão. Não precisaram de mais provas. Tinham ali a minha letra. A
nossa letra compromete-nos quase tanto como o nosso sangue. Um nome assinado torna-nos
proprietários. Ou desapossa-nos. Riscos feitos por uma mão. Riscos que não valem nada e que
afinal são os que o fazem.

Não fiques à espera que me cale porque não me vou calar até acabares com isto. Não consigo
esperar em silêncio. Por isso não demores a fazer o que tens a fazer. É a última coisa que te
peço.

Fui o mais severamente punido por ter sido o cabecilha. Vinte e cinco anos e nem menos um
dia. Se não tivesse decidido que o meu martírio seria breve, se não me tivesse decidido pela
morte, talvez a curiosidade acerca dos livros do meu companheiro de cela nunca tivesse
surgido. Ele nunca os abria. Chamávamos-lhe o doutor. Era um professor que tinha matado a
mulher por tê-la encontrado na cama com outro.

48

Até aos livros do doutor, só tivera nas mãos livros de aprender a ler. Nunca tinha visto livros
sem desenhos, só com letras. Li uns bocados ao acaso. Estranhei. Parecia-me um disparate
utilizarem-se as palavras para contar coisas que não tinham acontecido. Para inventar. Para
mentir. Não percebia o interesse de usar as letras sem ser para o que era importante e que não
devia ser esquecido, por nós ou por outros. Mas o certo é que no dia seguinte me lembrava de
forma mais precisa de algumas das mentiras que tinha lido do que da maior parte do que me
tinha acontecido na vida. O que li fez-me magicar quase tanto quanto magicara para coisas
importantes como o assalto. Comecei a usar as mentiras como companhia e gostava mais delas
do que das conversas com os outros presos. A ideia de me matar continuava lá mas ia-se
desvanecendo. Não penses que foi um milagre. Nada disso. A ideia de me matar foi só perdendo
força, como se pudesse esperar. Comecei a ler os livros do princípio até ao fim. Foi o doutor
que me sugeriu fazer assim. Nem isso sabia. Não era isso que o padre fazia com os livros da
missa nem a irmã do caixeiro-viajante com os livros de aprender. Quando se lia da primeira à
última página, as mentiras encaixavam-se umas nas outras e passavam a verdades tão
autênticas, que não tinha como não me entregar a elas. E quando nos entregamos com esta fé a
alguém ou a alguma coisa já não podemos matar-nos. Foi assim que os livros me salvaram.

49

Estás a pensar que os livros me salvaram da morte mas não da ruindade. Tens razão. E mais, ao
salvarem-me, os livros condenaram os que depois matei. Mas os livros não curam a ruindade.
Nunca curaram e nunca hão-de curar. Não adianta querer acreditar no contrário. Os livros
oferecem-se sem escolha a todos os que os quiserem ler. E, se redimem, fazem-no de forma tão
caótica e tão insondável que ninguém pode ter nisso esperança alguma. Talvez os livros
escrevam direito por linhas tortas. Como Deus. Eu sou a linha torta. Ultimamente tenho-me
perguntado quem é que Deus, ou quem Deus põe a escrever, escolheria: uma alma ruim que
consiga apreciar a Sua obra ou uma alma bondosa que não saiba fazê-lo? Às vezes sinto que
Deus me escolhe. Às vezes sinto que um erro...

51

não esquecerás

(Tu, leitor, vem cá, caminha comigo na berma desta estrada. Está mau tempo, o vento enviesa a
chuva, coalha o nevoeiro, passam poucos minutos das oito, o domingo está a chegar ao fim,
vem cá.

Caminhamos. Está frio, um frio invulgar em Março. Os pés escorregam-nos na lama, as


gabardinas e os chapéus-de-chuva de nada servem. Caminhamos, passos largos, lado a lado.

Seremos capazes?

Atravessamos pedaços cerrados de nevoeiro, nuvens rasteiras que interrompem a noite. Os


carros passam sem parar. Só os conseguimos distinguir quando já estão muito perto. Ninguém
nos vê. É natural que ninguém nos veja.
Avançamos.

Então, rompendo o branco, luzes fortes, muito fortes, aproximam-se devagar. Os nossos
corações agitam-se. É agora. O gigante iluminado aproxima-se de nós. O autocarro. Eles.

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O autocarro deles. Pedimos boleia, os nossos braços estendidos na noite. O autocarro pára uns
metros mais à frente. Corremos para ele, apesar do medo. As luzes traseiras, clarões vermelhos
esborratados pela chuva, indicam-nos o caminho. A porta está aberta. De lá de dentro, uma voz
masculina, entrem, entrem depressa, que esta chuva ainda vos alaga os pulmões. Subimos. A
porta fecha-se.

Agradecemos. Vemo-los pela primeira vez. São muitos. Tantos. Há lugares para nós. Está calor,
demasiado para quem acaba de entrar. Cheira a chuva. Não o cheiro bom da chuva quando
molha a terra seca mas o cheiro da água que tudo apodrece.

Seremos capazes?

Este homem abeira-se de nós. Tirem essas capas. E logo esta mulher se acerca com uma manta
de lã roxa. Trouxe-a para o meu miúdo mas tenho eu mais sono do que ele. O miúdo corre pelo
corredor e quando chega ao fim bate palmas. Fomos ver as amendoeiras em flor, diz esta miúda
sentada dois bancos à frente. Os passageiros cantam, as canções são mais alegres cantadas neste
desacerto de tom.

Sentamo-nos. Não precisamos da manta de lã roxa, que fica dobrada em cima de um banco. Do
outro lado do estreito corredor, homens e mulheres espreitam por cima dos bancos o álbum de
fotografias que estas mulheres vêem. De cada fotografia começa uma história que é logo
interrompida por outras. Este homem liga o pequeno transístor que tem na mão.

53

Oh, homem, ponha lá isso mais baixo, que assim não nos conseguimos ouvir, refila esta mulher.
São as notícias, gosto de ouvir, ouço sempre as notícias. Dizem sempre a mesma coisa, veja lá
se alguma vez falaram de si ou de mim. E todos se riem.

Esta mulher pergunta-nos se temos fome. De uma saca de linho, tira pão e bocados de queijo.
Esta outra abre uma caixa plástica amarela e oferece, sorridente, bolos de coco. É sempre a
minha filha que nos prepara o farnel para os passeios, diz, para as outras, para nós, tanto faz.
Comemos pão e bebemos vinho que este homem nos oferece. Sorri para nós. Tira a boina, coça
a cabeça que já quase não tem cabelo e diz, o meu avô quando acabava de comer dizia, já matei
quem a mim me matava. Depois este homem fica parado na saudade do avô ou num sentimento

parecido.

O autocarro avança. Trá-los de regresso. Estão cansados, acordaram muito cedo para irem ver
as amendoeiras em flor e agora têm pressa de chegar a casa. Aproximamo-nos de cada um
deles. Mulheres, homens, rapazes, raparigas, crianças difíceis de distinguir de mulheres,
homens, rapazes, raparigas, crianças que já tenhamos visto noutro sítio qualquer.

Acabada mais uma canção, voltam os risos e os pedaços de conversas, nunca nos tinha calhado
um passeio com um tempo destes, era um nunca acabar de branco, como se fosse neve,
acrescenta esta rapariga, árvores cobertas de neve, neve caída no chão, tantas flores arrancadas
pela chuva, tem no cabelo uma flor branca com um coração cor-de-rosa,

54

está um tempo do diacho, diz este homem que se levanta, este rapaz espreguiça-se, abre os
braços e a boca, esta mulher diz, depois dessa discussão a minha tia nunca mais entrou lá em
casa, este homem entretém a vontade de fumar passando o cigarro por acender entre os dedos,
este velho conta uma anedota, vigiamos as caras que se deformam nas gargalhadas, olhos que
se semicerram e bocas que se escancaram, rugas que seguem o rasto das alegrias que as
fizeram. Os gestos, os risos, as conversas, como noutro dia qualquer, sem nada que os distinga
aqui e agora. Como se nada fosse acontecer.

Um telemóvel toca dentro de uma carteira, e esta mulher depois de o procurar, nunca encontro o
raio do telefone, atende, diz, não, não é preciso, quando chegar faço um chá, já estamos perto.
Inquietamo-nos. É verdade, estamos perto. A chuva e o nevoeiro não nos deixam ver bem onde
estamos, mas estamos perto e o autocarro avança. Não nos podemos distrair, não podemos
perder tempo.

Este homem acorda aquele outro que dormita com a cabeça encostada ao vidro, diz em voz alta,
aqui não se pode dormir, para dormir temos a cama, o outro abre os olhos mas torna a fechá-los,
esta mulher diz, se me vejo livre destes malvados sapatos, se me apanho nos meus chinelos,
este homem, não me posso esquecer de tomar o comprimido antes de me deitar, já os deixo
pousados na mesinha-de-cabeceira e mesmo assim esqueço-me sempre.

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Acordaram cedo e deixaram para trás as terras onde vivem, casarios que já foram só de pedras
escuras, que têm uma igreja, uma fonte no meio do adro, um cemitério afastado, lugarejos de
que ninguém é capaz de se lembrar um por um, que são sempre recordados no conjunto que os
perde, sítios onde ninguém passa, para onde nenhum estranho vai, onde nenhum viajante chega.
Não, assim não, remos de regressar a eles.

As ténues luzes laterais do autocarro dão-lhes expressões ambíguas, abrandam-lhes os gestos,


esta criança agarra-se ao pescoço da mulher e adormece, este homem aproxima o pulso da cara
para ver as horas no relógio prateado, este rapaz afasta o cabelo desta rapariga e dá-lhe um
beijo, esta criança leva a mão à boca, tenho um dente a abanar, esta mulher aconchega o casaco
contra o peito, este homem vai batendo o pé ao ritmo da música, esta rapariga oferece
rebuçados de mentol, esta mulher pergunta, amanhã podes levar o miúdo à escola, amanhã,
prendemo-nos a esta palavra, amanhã, nesta Primavera esta mulher vai pintar a casa e já
escolheu o cor-de-rosa do quarto, neste Verão este homem vai pela primeira vez ao
Luxemburgo visitar os filhos que já lá estão há mais de vinte anos, neste Outono esta mulher
tem de mandar cortar os castanheiros, neste Inverno esta mulher vai fazer o fumeiro, amanhã,
ama-nhã, a-ma-nhã, a-m-a--n-h-ã, o tempo em que cabem os sonhos, que os meus filhos
acabem os estudos, que chegue rápida a vez da operação que o meu marido tem de fazer à
hérnia, que ainda cá esteja para ver o casamento da minha neta,

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o tempo em que cabem os sonhos, ver a minha casa acabada, ganhar a lotaria, saúde, ser
jogador de futebol, ir à América, o pão nosso de cada dia, entrar numa telenovela, pagar as
prestações que faltam do carro, trabalhar na televisão, reformar-me ainda com saúde, arranjar
um namorado bonito, aprender a ler, que a minha mãe fique boa, sonhos como os de todos. Se
nem nos sonhos nos distinguimos deles, como seremos capazes de não os esquecer?

Este homem espreita pela janela e diz, olhai que se avista o Douro. Depressa, depressa, temos
de ser capazes, precisamos de os fixar, aqui, antes do autocarro se fazer à ponte que se recorta já
à nossa frente, depressa, o reflexo deste homem no vidro, a mão desta mulher a acariciar a
fotografia, os cabelos desta rapariga suspensos no ar quando a cabeça se volta, o cheiro do pão,
a ruga que o riso afunda, a mão que se ergue com duas alianças, os lábios entreabertos
suspensos na palavra ama-,

O autocarro. A ponte. Instantes mais tarde. Por nossa culpa. Também por nossa culpa. Porque
tudo tardamos. Tu, leitor, e eu.)

57
Por negligência do Estado português, no dia quatro de Março de 2001, pouco depois das 21h00,
ruiu o pilar número 4 da Ponte Hintze Ribeiro, que ligava as margens do Rio Douro em Entre-
os-Rios e Castelo de Paiva, provocando a derrocada de parte do tabuleiro central. Nesse preciso
momento passavam um autocarro e três automóveis ligeiros. Nenhum dos seus ocupantes
sobreviveu. Nas águas do Riu Douro morreram Joaquim Rosa Fernandes, Emília da Silva
Barbosa, Domingo da Silva Fernandes, Manuel José da Rocha Ferreira, Maria Helena Faria
Moreira, Flávia Margarete Faria da Rocha, Vasco José Faria da Rocha, António Fernando Sousa
Noronha, Elvira Sousa Faria, Ângela Maria Faria Noronha, Bruno Miguel Faria Noronha, José
Vieira Bernardes, Maria Fernanda Alves Carvalho, Manuel António Alves Bernardes, Patrícia
Isabel Alves Bernardes, Vítor Bernardes, Domingos Barbosa Fernandes, Paulino Vieira
Cardoso, Alzira da Costa Cardoso, Leonor Alves Madeira, Adelino Alves Moreira, Joaquim
Silva Pereira, Maria Moreira Pereira, Carlos Gonçalves Moreira, Elisa de Oliveira Faria, Victor
Manuel Vieira Bernardes, Manuel Joaquim Vieira Bernardes, Joaquim Vieira Faria, Maria
Madalena Sousa Moreira, Joaquim Nunes Gonçalves, Maria Joaquina Alves, Victor Manuel
Correia Lopes, Maria Manuela Ferreira, Victor Hugo Ferreira Lopes, Ana Vieira da Rocha,
Roberto Carlos da Rocha Martins, Hélder Filipe Martins Pereira, Laura Martins Miranda,
Virgílio Vieira Gomes, Maria Belmira Silva Oliveira, Arminda Gomes da Silva, Deolinda
Joaquina, Natália José de Castro, Eugenia Rodrigues da Silva, Hélder António Valente Moreira,

58

Zeferino Nuno Rodrigues Pinto, Maria Alexandrina, Paulo Sérgio Gonçalves, Jorge António
Sousa Rocha, Fernanda Isabel Soares da Silva, Vera Regina Gonçalves da Conceição, António
Gomes, Maria dos Anjos Pereira Gomes, Constantina Moreira da Rocha, Gracinda Moreira
Martins, António Soares Teixeira, Getúlio Martins Teixeira, Manuel Pereira dos Santos,
Laurentina Vieira Cardoso.

59

a mosca e o copo de vinho rosé

Xavier enxotou a mosca. O resto do vinho rosé que ele e Júlia já não iam beber aquecia no
fundo dos copos. A mosca pousou no bordo de um dos copos. Desta vez Xavier não a enxotou.
Júlia também não.
Tinham acabado por passar a tarde na esplanada. Mudaram várias vezes a inclinação do
guarda--sol que lhes dava sombra. Com a tarde a chegar ao fim, o guarda-sol tornava-se uma
rodela de pano inútil por cima deles, mas nem Júlia nem Xavier o fecharam, como fizeram os
veraneantes que ocupavam as outras mesas de plástico da esplanada.

A garrafa de vinho estava vazia a meio da mesa com o rótulo de papel amolecido pelas gotas
que se tinham formado à medida que fora aquecendo. Os pratos, com talheres dispostos
paralelamente, tinham sido desviados para o lado. Em cada um deles um guardanapo de papel
verde-escuro cobria os restos de comida e ia-se ensopando devagar.

60

Júlia e Xavier sabiam que demoraria muito até que o empregado levantasse a mesa e desse
resposta a qualquer outro pedido que quisessem fazer. Era sempre assim. O tempo ali existia de
forma diferente.

Júlia vestia um pano azul clarinho apertado com um nó atrás do pescoço por cima do fato de
banho. A pele de Júlia parecia ainda mais bronzeada contra a suavidade do pano azul. Os
cabelos pretos de Júlia, já secos, tinham-se encaracolado, descuidados. Xavier usava uma
camisa branca de linho muito fino e calções largos aos quadrados. A pele dele estava bronzeada,
mas bastante menos do que a de Júlia. A pala do boné de beisebol americano escondia-lhe os
olhos. Tinha dois dentes encavalitados que só se viam quando sorria e que juntamente com o
boné o faziam parecer um rapaz subitamente envelhecido.

Xavier pegou na pequena máquina fotográfica que estava pousada na mesa e começou a tirar
fotografias. A ria vazava vagarosa uns metros à frente do estrado de madeira que fazia de chão
da esplanada. Júlia esticou as pernas, atléticas e ágeis, para alcançar a trave da cadeira em
frente, onde apoiou os pés descalços.

— Mais um dia de férias perfeito — disse, olhando para a ria. — Tenho de tomar um café.
Estou tão sonolenta. Não devia ter bebido tanto vinho.

Paralela ao horizonte, uma avioneta atravessou o céu, esticando uma faixa atrás de si onde se
lia, em letras muito grandes, «ser feliz é estar distraído».

6l

— Estarão a fazer publicidade a quê? — perguntou Júlia.

— Espero que não seja a cursos de pilotagem. Nem a cartas de condução — brincou Xavier.
Júlia sorriu. — Sempre queres ir ao cinema hoje à noite?
— Claro. Estás com medo de perder a aposta? — perguntou Júlia, desafiadora.

Xavier voltou a máquina fotográfica para Júlia e disparou.

— Tenho a certeza de que ele diz: I have a love in my life. It makes me stronger than anything
you can imagine — garantiu Xavier, teatralizando muito as palavras e fazendo Júlia rir.

— Não — disse Júlia, espetando o indicador da mão direita e movendo-o de um lado para o
outro. — Não, não, nem pensar. Ele diz: tenho um sonho. I have a dream in my life. Sabes que
tens uma péssima memória. Nem sequer te lembras da história do filme.

— Pois não. Mas tenho a certeza de que o que ele diz é: I have a love in my life. E a minha
memória não é má: é selectivo-sintética — corrigiu Xavier, brincando. — Eu tenho um amor na
minha vida — recomeçou ele, fazendo desta vez uma voz ameaçadora e cerrando os olhos de
forma insinuante. — Serás vencida e castigada impiedosamente.

O cinema era ao ar livre e os que lá iam faziam-no mais para partilhar a satisfação de estarem
de férias do que por causa do filme. Além disso, as casas eram quentes e todos os pretextos para
sair eram bons.

62

E as raparigas punham-se bonitas para irem aos filmes. E no intervalo havia o vendedor de
gelados espanhóis. E às vezes o projector avariava e o dinheiro do bilhete era restituído em
crédito de dois bilhetes para compensar a maçada. Qualquer uma destas razões era, em geral,
mais válida para ir ao cinema do que os filmes, que eram sempre antigos.

— Devia ser obrigatório envelhecer a sul e perto da água — disse Júlia.

— E se o plano for nunca envelhecer? — perguntou Xavier.

— Tarde demais para aderires a esse plano.

— Não sei como consegues ser tão cruel. — Xavier fingiu-se magoado. — Como é que
consegues dormir? Sempre pensei que era preciso ser-se minimamente bondoso para se
conseguir adormecer.

— Vamos viver até aos cem anos. Vamos ser tão velhos que já nem seremos capazes de falar.

— Esse é que não me parece nada um bom plano — respondeu Xavier. — Tenho a certeza de
que és capaz de imaginar um final mais feliz para nós.

— Não é mau deixar de falar quando já não se quer dizer nada. Ou quando já não é preciso
dizer nada. É por isso que os velhos desaprendem a falar, A justificação para os velhos
desaprenderem a falar é a mesma por que as crianças aprendem.
Júlia reparou que a mosca caíra dentro do resto de vinho rosé e que tentava em vão trepar pela
parede do copo. Achou estranho que não se ouvisse a mosca zumbir. Xavier acompanhou o
olhar de Júlia e ocorreu-lhe que seria interessante apurar se as moscas também se embebedam.

63

O chilrear do bando de pássaros que levantou voo do verde amarelado do sapal sobrepôs-se à
música que chegava à esplanada vinda de dentro do café. Como o bando voava muito rápido e
muito rente à água da ria, o seu reflexo dava a ilusão de que um cardume veloz de peixes negros
se preparava para aventurar-se fora de água.

— Não consigo suportar tanta beleza — disse Júlia. — Fico com a sensação de que tenho de
fazer alguma coisa mas não sei o quê. Tem de se fazer alguma coisa perante tanta beleza, não
achas?

— Não — respondeu Xavier, observando um grupo de veraneantes que regressava da praia. —


Acho que não tem de se fazer nada. Absolutamente nada.

O grupo atravessava a ria a pé, vindo do outro lado, onde estava o mar. Caminhavam com os
braços ao alto para não molharem as toalhas e os sacos que carregavam. Na maré baixa, a ria
podia ser atravessada a pé, mas Xavier nunca o fazia porque receava os fundões que todos
garantiam existir. Júlia, pelo contrário, atravessava-a todos os dias, a pé ou a nado, mesmo com
correntes fortes. Era uma excelente nadadora e ao longo dos anos ajudara vários banhistas que
se tinham visto em apuros, quer ali na ria, quer mar adentro.

Uma das mulheres do grupo tropeçou, molhando a toalha e deixando cair a pequena geleira que
trazia na mão. Os gestos desastrados da mulher, ao tentar recuperar a toalha e a geleira, fizeram
rir os companheiros. A mulher ainda se queixou, mas logo começou também a rir-se.

64

— Não me parece possível não ter de se fazer nada — Júlia olhava para o sapal como se
estivesse à procura de uma coisa específica. — As vezes esta beleza toda angustia-me.

— Sinto isso cada vez que olho para ti — disse Xavier, piscando-lhe o olho.

— Estou a falar a sério — Júlia afastou os caracóis que lhe tinham caído para a cara. — Fico
insegura perante tanta beleza. Não consigo deixar de pensar em todos os meus defeitos. É como
se aqui se tornassem mais evidentes e menos desculpáveis. Ou como se exigissem uma
correcção.

Xavier tirou outra fotografia. Escolheu a parte onde a ria recuava ligeiramente expondo molhos
enormes de limos castanhos e verdes.
— Tens razão. É tudo belo. Belíssimo. — E depois voltando-se para Júlia, provocador: — Mas
só reconhecemos o que existe dentro de nós. A ideia de beleza que te permite reconhecer esta
beleza que nos rodeia tem de existir primeiro dentro de ti. Portanto não é o que te rodeia. És tu.

— Oh, não, por favor, não — Júlia fingiu-se entediada.

— E se a minha mulher me desse um beijo?

— E por acaso mereces um beijo?

— Não sei. Mas sei que vou tê-lo. I have a love in my life — lembrou Xavier, ameaçador. — É
o poder que tens que determina o que alcanças, não o merecimento. Tens de concordar com
isso.

65

Xavier começou a rir-se e Júlia também.

— Concordo que és um grande idiota.

O grito da criança foi tão estridente que os assustou. A criança era uma das filhas da família que
ocupava a mesa ao lado deles. A família era composta pelo pai, pela mãe e pelas duas filhas.
Uma das meninas era diferente. As duas meninas eram quase do mesmo tamanho, pouco mais
altas do que as mesas de plástico branco. A menina que não era diferente tinha estado a brincar
com o cabelo da irmã e fizera-lhe dois totós. A menina que era diferente também quis fazer
totós à irmã mas puxou-lhe muito o cabelo, e esta gritou. Quando os pais conseguiram
convencer a menina que era diferente a desistir de fazer os totós à irmã, ela afastou-se e foi
agarrar-se à mesa onde Júlia e Xavier estavam sentados. Os pais chamaram-na mas ela não
obedeceu.

— Não tem importância — disse-lhes Júlia. Voltando-se para a menina que era diferente,
perguntou-lhe: — Como é que te chamas?

A menina que era diferente não respondeu. Fixava atentamente o copo com o resto de vinho
rosé onde a mosca continuava a debater-se. Aproximou muito a cara do copo e com um dedo
papudo apontou o sítio onde a mosca estava, do outro lado do vidro.

— Peixe — disse a menina que era diferente. Depois olhou para Júlia e Xavier e com um gesto
rápido despejou o copo para dentro de um dos pratos.

66
Obedecendo aos pais, a menina que não era diferente aproximou-se da irmã e puxou-a uma vez
e depois outra e ainda outra com mais força, porque a menina que era diferente continuava
muito interessada a olhar para a mosca no meio do guardanapo verde-escuro encharcado de
vinho.

Ao princípio os movimentos da mosca não eram coordenados. Certamente por estar zonza. Mas
pouco depois a mosca começou a mexer de forma certeira e rápida as patas dianteiras,
esfregando ora com uma pata, ora com outra, ora com as duas concertadas a cabeça e o resto do
corpo peludo.

— Gatinho — disse a menina que era diferente, fixando a mosca.

A menina que não era diferente conseguiu finalmente levar a irmã de volta para a mesa dos
pais.

A mosca pôs-se a arranjar as asas com bastante agilidade. Júlia e Xavier olhavam-na,
confundidos. Xavier sentiu-se impelido a fotografar a mosca. Enquanto escolhia um ângulo
possível para a fotografia, pensou, é claro que uma mosca encharcada não consegue trepar a
parede de um copo e morre afogada. Júlia abriu e fechou várias vezes as mãos como se as
sentisse adormecidas. Pensava, quando é que deixámos de nos importar?

Ficaram os dois em silêncio. A avioneta passou no sentido contrário. «Ser feliz é estar
distraído». Por fim, Xavier disse:

— Está a fazer-se tarde. Vamos?

— Sim — respondeu Júlia, decidindo-se, enérgica

67

— Enquanto pagas vou dar um mergulho ao outro lado. Não demoro nada, está bem?

Levantou-se e começou a andar em direcção à ria. A meio voltou para trás, como se se tivesse
esquecido de alguma coisa. Abeirou-se do ouvido de Xavier e sussurrou:

— I have a dream in my life.

Caminhou novamente em direcção à ria. Atravessou-a e continuou a andar. Xavier não a perdeu
de vista até ela desaparecer lá longe, onde a areia da praia escondia a beira do mar.

69
iguais

Ambos sabiam o que tinha de ser feito. Combinaram então a data. E quando o dia chegou
misturaram o enxofre na pólvora negra sem hesitação. Nem um nem outro pensaram sequer em
voltar atrás. Ambos sabiam o que tinha de ser feito. Desfeito. Depois seriam felizes outra vez.

Tu nasceste primeiro, dizia-lhes muitas vezes a mãe, apontando para Afonso. Depois virava-se
para Pedro, tu não demoraste muito mais. Quando a aparadeira te viu disse, são tão iguais que
temos de os marcar já. Se os trocamos agora nunca mais se sabe quem é o mais velho. Depois
de te ter posto a fita branca no pulso, e olhava novamente para Afonso, a aparadeira limpou-vos
aos dois e deitou-vos em cima da minha barriga. Dois bichinhos encarniçados com os olhos
cegos.

Apesar de ser Agosto, chovia muito no dia em que nasceram. Uma daquelas chuvadas de Verão
que limpam a terra inteira.

70

O céu esteve todo o dia ruço, um céu sem nuvens, inteiro sem princípio nem fim. Como fazia
muito calor, a janela do quarto estava aberta e quando as dores começaram ninguém se lembrou
de a fechar. Assim ficou durante o nascimento. Quando se deu conta disso, a aparadeira receou
que o ar da rua vos tivesse feito mal. Mas não. Cresceram fortes e bonitos. E não havia quem
não se espantasse convosco. Nunca nas redondezas se tinha visto nada tão igual. Ninguém vos
conseguia distinguir. Nem mesmo o vosso pai. Eu sempre vos distingui, apesar de serem como
duas gotas de água.

Mas tu, e apontava novamente para Afonso, tu nasceste primeiro, por isso és o mais velho, dizia
a mãe com orgulho. E Afonso respondia, pois foi. Na memória do nascimento que esta história,
tantas vezes contada, tinha construído na cabeça dele, era como se se lembrasse de tudo. Pois
foi, dizia Afonso contaminado pelo orgulho da mãe. Tu és o mais novo, dizia a mãe, virando-se
para Pedro, tu nasceste depois.

A mãe contava-lhes muitas vezes esta história, explicava-lhes tudo como se o assunto fosse
difícil de entender, tu nasceste depois, repetia a mãe, e Pedro dizia, pois foi, mas podia ser
Afonso outra vez, porque as vozes, essas, nem mesmo a mãe as distinguia. Quando só os ouvia,
a mãe não podia jurar qual dos dois estava a falar.
Durante grande parte das vidas de Afonso e de Pedro, os minutos que se passaram entre o
nascimento dos dois e que nunca ninguém contou foram a única diferença séria e intransponível
que se lhes conhecia.

71

De resto eram iguais. Não só naquilo que os outros podiam ver como igual, mas também
naquilo que eles sentiam e que sabiam igual, estados simples como os da fome e do sono ou
estados mais complicados como os do amor e da tristeza. Qualquer sensação ou sentimento era
vivido por ambos da mesma forma, o que os deixava muito felizes. A única excepção aconteceu
quando se apaixonaram por Clara.

Quando viram Clara pela primeira vez, ambos sentiram exactamente o mesmo e também
souberam de imediato o que o outro estava a sentir. Se lhes tivesse sido pedido para
descreverem o entusiasmo que a visão de Clara lhes tinha provocado, ambos teriam dito o
mesmo e usado as mesmas palavras. Nenhum saberia descrever o que Clara tinha de tão
especial para lhes provocar aquele enorme desejo de a tocarem. Era uma rapariga bonita mas
não mais bonita do que muitas outras que já tinham conhecido. Era afável mas não mais afável
do que a maioria das raparigas naquelas idades. Tinha uma maneira particular de sorrir, os olhos
semicerravam-se e apareciam covinhas nas bochechas. Mas todas as raparigas têm
particularidades, no sorriso, na maneira de andar ou na forma como fazem isto ou aquilo. Nem
Afonso nem Pedro souberam alguma vez explicar a surpresa que a vontade de olhar e tocar
Clara lhes causou. E mais surpreendidos ficaram quando se aperceberam de que, pela primeira
vez nas suas vidas, além de não quererem partilhar um bem, ambos se tinham posto a disputar
esse mesmo bem.

72

Mais tarde verificaram assustados que, de cada vez que Clara dava preferência a um deles,
crescia no íntimo do outro uma forma incipiente de ódio que nem um nem outro queriam
combater.

Foi nesse estado, apaixonados por Clara, que Afonso e Pedro conheceram o lado terrível de
serem iguais e mais tarde o lado terrível de se detestarem como iguais e de se quererem
diferenciar. Era essa a única maneira de serem escolhidos. Mas não se deve desunir o que a
natureza criou unido, pensava a mãe e todos os que os conheciam. Eles também. Sabiam que
eram um só homem que tinha acontecido existir em dois corpos. E como nada deixara ainda de
ser como devia ser, os corpos eram em tudo iguais.
Quando se apaixonaram por Clara, Afonso e Pedro já eram fogueteiros. Já o eram há muito
tempo. Como seria de esperar, estavam juntos quando viram pela primeira vez o céu partir-se
em pedacinhos de cores. Tinham então seis anos. Antes disso não imaginavam o que pudesse
ser fogo-de-artifício. A mãe levara-os à festa da vila e passeara com eles lado a lado pela feira.
Ambos tinham visto o recinto dos animais com o mesmo desinteresse, comeram farturas com a
mesma gula e limparam o açúcar dos lábios com os mesmos gestos. Tiveram a mesma fé nas
rifas e sentiram a mesma tristeza quando não lhes saiu o carro de lata. Ficaram cansados e
pediram para ir para casa ao mesmo tempo.

73

Mas a mãe queria que vissem o fogo e insistiu que ficassem. Sentou-os em cima do muro alto
que rodeava a feira e embrulhou-os na mesma manta. Eles, aquecidos, encostaram a cabeça um
ao outro e estavam quase a adormecer quando ouviram o primeiro estrondo. Levantaram a
cabeça como fizeram todos os que enchiam o recinto.

Foi então que conheceram o céu manchado por milhares de pontos de luz encarnados, dourados,
azuis, prateados, claridades súbitas que construíam círculos e estrelas que se agigantavam
dentro do preto espesso do céu para logo se desfazerem. Afonso e Pedro não queriam acreditar
que pudessem nascer estrelas de várias cores assim de repente, estrelas com pontas invulgares,
círculos que se encaixavam uns dentro dos outros, torvelinhos de fios brilhantes a rabear pelo
céu, fazendo-o parecer ainda maior.

Quando o fogo acabou e ficou só escuro outra vez, quando o barulho da festa regressou ao
recinto, ambos sabiam que aquilo era o que queriam fazer quando fossem grandes. Nenhum
deles tinha a mais pequena ideia de como o fogo acontecia, mas começaram de imediato a
planear os desenhos que queriam ver no céu: o carro de lata que tinham perdido nas rifas, a
barraca que vendia as farturas, a roda gigante e até as mãos da mãe que lhes aconchegava a
manta.

Nunca precisaram de falar um com o outro acerca da decisão que tomaram naquele dia.
Também nunca precisaram de falar um com o outro quando decidiram afastar-se de Clara.

74

Ao descobrirem como era perigoso o que neles germinava souberam que tinham de voltar ao
que haviam perdido. Queriam regressar ao estado anterior, em que a felicidade lhes advinha da
existência comum. Ao estado em que nada tinham de partilhar porque tudo pertencia a ambos
de forma tranquila.
O desassossego que Clara lhes provocou foi resolvido e serviu-lhes de lição. Livres daquela
inquietude, Afonso e Pedro decidiram que nunca mais voltariam a apaixonar-se. Usufruiriam
novamente do estado afortunado de serem iguais em dois corpos iguais. Existiriam, por isso,
mais felizes do que todos aqueles que possuem corpos e almas unas e se apresentam ao mundo
nessa solidão.

Afonso e Pedro foram, depois da paixão por Clara, tão felizes como costumavam ser. Tudo
voltou ao que era antes. Iluminavam o céu e acompanhavam-se em tudo o que pensavam e
sentiam. Até que, uns anos depois, no dia da Festa da Boa Hora, tornaram a ver Clara.

Nesse dia Afonso e Pedro acordaram cedo e de bom humor. Passaram um pouco de água na
cara usando o jarro que tinham no quarto. Já vestidos, sentaram-se na mesa grande da cozinha
para tomarem café e comerem fatias grossas de pão com azeitonas salgadas. Beberam um copo
de vinho para se aquecerem e pegaram nas boinas que estavam penduradas à entrada da casa
para se porem a caminho. Em nada o princípio daquele dia foi diferente do princípio de outro
dia qualquer. Os mesmos gestos pela mesma ordem.

75

O patrão apanhou-os, como sempre, à saída da aldeia, junto da pedra que separa os dois
caminhos. Subiram ágeis para a parte de trás da camioneta e pensaram na viagem pela serra que
ia ser agradável. Demorariam cerca de três horas a chegar à aldeia da festa. Nessas três horas
fumariam muitos cigarros, passariam por dentro de três ou quatro povoações, veriam dois ou
três pastores a apascentar os rebanhos. Podia acontecer cruzarem-se com um caminhante ou
com um feirante montado a cavalo, mas isso não era certo. Também podia acontecer que a
camioneta parasse nas subidas e tivesse de ser empurrada. Isso era uma suposição um pouco
mais provável do que o caminhante ou o feirante. E depois existiam os imprevistos em que não
podiam pensar, já que os imprevistos são determinados por mecanismos desconhecidos do
pensamento. Como da vez em que encontraram o cão ferido no meio da estrada. Ou em que
deram boleia a uma mulher que fugia para a cidade. Não saberem do que a mulher fugia ou
quem atropelara e abandonara o cão fazia com que a curiosidade lhes ocupasse as cabeças por
algum tempo.

As viagens eram quase sempre iguais, apesar da diferença dos destinos. Sentavam-se na parte
de trás da camioneta com as boinas nas cabeças e fumavam os cigarros que seguravam nos
dedos esguios. De vez em quando cuspiam bocados de tabaco. E bocejavam sempre que a serra
se fazia a direito. O que era raro.
76

As curvas da serra entretinham-lhes os corpos num balanço que os enjoava. Apesar do enjoo,
ambos preferiam o mistério delineado por qualquer curva à monotonia que as rectas vincavam.

Chegados ao sítio da festa, era altura de prepararem o lançamento do fogo. E mais uma vez,
nesse dia, fizeram tudo como sempre tinham feito. As mesmas cautelas e as mesmas
imprudências, porque a vida se faz de umas e de outras.

Foram comer à mesma estalagem onde tinham comido no ano anterior e no outro e ainda no
outro e no outro até à primeira vez em que, há muitos anos, tinham estado naquela aldeia.
Chegados à estalagem verificaram com prazer que a cozinheira e os empregados continuavam a
ser os mesmos. Como só visitavam as aldeias de ano a ano, receavam sempre as diferenças que
pudessem encontrar. Nem a cozinheira nem os empregados se podiam ter despedido, porque a
primeira era a mulher do dono da estalagem e os segundos, os filhos. Mas a doença ou a morte
às vezes baralhavam os passados, e há casamentos que levam para longe a descendência. Isso
seria para Afonso e Pedro uma grande contrariedade. Esta contrariedade não podia, no entanto,
ser confundida com tristeza. Afonso e Pedro não ficariam tristes, apenas contrariados, porque
essas mudanças não lhes permitiam ver aquelas que realmente lhes interessavam. Se a
cozinheira fosse outra, eles não poderiam comparar o sabor da comida. E também não poderiam
apurar se ela estava mais gorda ou mais magra. O mesmo se passava com os empregados.

77

Como poderiam saber se o filho mais novo do estalajadeiro e da cozinheira já tinha apanhado o
jeito de servir copos de vinho, ou se a filha do meio já gaguejava menos. Isso era assim não só
em relação à família do estalajadeiro e da cozinheira mas em relação a todas as pessoas com
quem se tinham cruzado, a tudo o que iam vendo, a tudo por que iam passando. Precisavam de
ter um passado para o compararem com o presente.

Só era possível encontrar a diferença se um antes tivesse determinado um modelo. Para tal,
eram necessários o tempo e a aparente repetição dos factos. Afonso e Pedro não sabiam dizer
isto em palavras, mas sabiam senti-lo agudamente. Também sabiam que o facto de existirem
como um ser duplo em nada os salvaguardava em relação a isto. Em relação ao tempo, eram tão
vulneráveis como os seres isolados. Se pareciam ter vencido o espaço na existência dupla, em
relação ao tempo estavam tão indefesos quanto os outros. E isso deixava-os, como a todos,
apreensivos. Mas nunca falavam sobre estas coisas. As palavras entre eles sempre tinham sido
desnecessárias.

O dia da Festa da Boa Hora correu igual a outro dia qualquer até avistarem Clara. Ou julgarem
tê-la avistado. Porque nunca tiveram a certeza se era mesmo ela quem, lá longe, beijava o filho
mais velho do estalajadeiro e da cozinheira. Mas ambos julgaram ter visto Clara, ainda que
nunca tivessem falado sobre isso. Fosse como fosse, o certo é que tudo deixou de ser igual
depois da imprudência de Pedro. Depois da imprudência de ambos, que a imprudência ainda foi
comum, ainda foi da responsabilidade do ser indiviso que eram.

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O intervalo de tempo durante o qual a mão deve soltar o foguete aceso não é muito alargado. Se
a mão se abre cedo demais, o foguete não ganha o céu. Mas se ela se fecha durante demasiado
tempo pode dar-se o que aconteceu. A imprudência ao manejar o foguete arrancou o braço de
Pedro e tornou os irmãos definitivamente diferentes.

Durante um tempo esforçaram-se por continuarem a levar a existência comum que sempre
tinham conhecido e que os fazia felizes. Tentaram não se importar quando as pessoas, num
regozijo estranho, faziam tudo para deixar claro que agora já não havia como confundi-los.
Passados uns meses, Pedro já era o maneta para toda a gente, o que os incomodava muito.
Como também os incomodava não sentirem a mesma coisa. Em relação ao acontecido, por
exemplo. A culpa de Afonso era diferente da culpa de Pedro, porque Afonso tinha sido só
imprudente e Pedro tinha sido imprudente e vítima. Depois havia questões mais simples, como
a falta que o braço direito fazia a Pedro. Por muito que se esforçasse, Afonso não conseguia
sentir a falta de um braço. E mesmo que conseguisse, o coto de Pedro lembrava-os
constantemente de que eram diferentes. E ambos temiam a diferença mais do que tudo no
mundo. Precisavam de voltar a ser iguais para serem felizes. Acreditavam que se se tornassem
indiferenciados outra vez seriam felizes, porque apenas eles teriam consciência das pequenas
diferenças que os separavam. Como o facto de um gostar mais de apanhar sol do que o outro.

79

Se bem que nem sequer eles mesmos pudessem precisar isso. Um gosto nunca é quantificável
em termos absolutos e a hierarquia de gostos de um era exactamente igual à do outro.

Chegado o dia, misturaram o enxofre na pólvora negra sem hesitarem e fizeram explodir o
braço de Afonso como tinha acontecido ao de Pedro. Mas não puderam evitar que os dois
acontecimentos em tudo semelhantes se tivessem tornado completamente diferentes. Em
primeiro lugar, a explosão que desfizera o braço de Pedro fora inadvertida e apanhara ambos de
surpresa. A que estilhaçou o braço de Afonso fora preparada, esperada e receada. Afonso tivera
medo da dor e esforçara-se bastante por conseguir coragem para não a evitar. A memória da dor
e a coragem necessária para a enfrentar deram a ambos conhecimentos e ignorâncias diferentes.
Sobre isso ambos sabiam que não havia nada a fazer. Mas ainda tinham esperança de poder
voltar ao estado único de existência. Desfeito o braço, foram os dois levados para o hospital
como se ambos estivessem feridos. O médico quando os viu apenas disse: que diacho, e depois
lavou as mãos para a cirurgia.

Pedro ficou no corredor, à espera, durante o tempo que durou a operação. O estado de felicidade
que ambos conheciam tão bem rondava-o. Imaginava Afonso com um coto exactamente igual
ao dele.

80

Quando olhasse outra vez para Afonso ver-se-ia a ele novamente. E vice-versa. Nunca mais
ninguém seria capaz de os distinguir outra vez.

Afonso dormiu umas boas horas depois da operação. No corredor do hospital Pedro fez o
mesmo.

Quando Afonso acordou, a primeira coisa que fez foi olhar para o coto entrapado. Mas o coto
era maior do que o de Pedro. Diferente. Nunca mais seriam iguais. Afonso sentiu-se muito
sozinho no quarto do hospital a olhar para as ligaduras brancas ensanguentadas.

Nesse mesmo instante, no corredor, Pedro inexplicavelmente decidiu ir para casa. Quando lá
chegou a mãe esperava-o.

Tu nasceste depois, disse, és o mais novo, o teu irmão é o mais velho, por isso ficou com o
nome do vosso pai.

Pela primeira vez a história que a mãe costumava contar parecia ter importância. Pedro sentiu
fome. Comeu com apetite uma fatia de pão e um bocado de presunto.

No hospital, Afonso adormeceu outra vez.

81

coisas que acarinho e me morrem entre os dedos

Tomei o pequeno-almoço em frente do computador. A chuva escurecia o pátio naquele princípio


de manhã. Os dias em que nos acontece alguma coisa importante não começam
necessariamente de forma diferente. Daria jeito que não fosse assim. Devia haver uma espécie
de aviso. Uma coisa simples. Talvez pudéssemos receber um sms

good morning, today is gonna be different, good luck


Acho que Deus fala inglês. Fale Deus a língua que falar, devia fazer-se entender de vez em
quando.

O dia em que o vi pela primeira vez começou, então, como outro dia qualquer. Acordei com
alergia, dei comida ao meu cão e tomei o pequeno-almoço em frente do computador. O meu cão
deitou-se junto da tigela de comida e tornou a adormecer. A chuva ia inundando o pátio.
Percorri os sites das notícias online.

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Não me interessa assim tanto o que acontece por esse mundo fora, mas ao acordar ainda me
interessa menos o que acontece na minha vida. E as notícias que não nos dizem respeito de
forma directa distraem-nos.

Um avião de pequeno porte, o Nanchang PT-6, prefixo 3806, da Força Aérea de Bangladesh
(Bangladesh Air Force — BAF) teve de fazer uma aterragem de emergência durante uma
tempestade na noite desta quarta-feira (25) em Raigram, no distrito indiano de Murshidabad, a
80 quilómetros da fronteira entre os dois países. O piloto, que vinha de Jassor, sofreu
ferimentos ligeiros.

Do Bangladesh, pouco mais sabia do que o nome. Não é difícil familiarizarmo-nos com o nome
das coisas, mas depois... Depois fazemos como fazemos com tudo aquilo a que chamamos
família: convivemos com o desconhecido como se o conhecêssemos. Fingimos tanto e tão bem,
que acabamos por esquecer-nos de tentar conhecê-lo. Bastamo-nos com a sensação de que
aquilo nos pertence ou de que lhe pertencemos. De que podemos usar aquilo. E para que não
haja dúvidas sobre isso, passeamos juntos aos domingos à tarde.

Googlei Bangladesh.

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Official site with information on officials, ministries,


constitution, annual budget, tourism and updated news

Information on Bangladesh — geography, history, politics,

government, economy, population statistics, culture,

religion, languages, largest cities

Bangladesh officials are seeking talks with U.S. State

Department diplomats over the arrest of a Bangladeshi

man on charges that he wanted to

Almost everything you wanted to know about Bangladesh.

Visit Bangladesh. See Bangladesh. Be Bangladesh

The Al Qaeda wanna-be accused of plotting to bomb the

Manhattan Federal Reserve building carne from a middle-class Bangladeshi family

Terá sido naquela manhã que pronunciei pela primeira vez a palavra Bangladesh. Baixinho:
Bangladesh.

When is Bangladesh going to disappear?

Lembro-me de estar sentada com ele no café, ao fim daquela manhã, e de esta pergunta absurda
não me sair da cabeça. When is Bangladesh going to disappear? Não disse, no entanto, uma
palavra sobre o Bangladesh durante todo o encontro. O que nos passa pela cabeça é quase
sempre inconfessável. When is Bangladesh going to disappear? Quando estava a tomar o
pequeno-almoço, em frente do computador, a pergunta ainda não tinha surgido.

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Tínhamos combinado encontrar-nos às 10h30. Eu iria ter ao trabalho dele e depois tomaríamos
um café. Gosto de conhecer pessoas. Não tenho a nossa espécie em grande conta mas gosto de
conhecer pessoas. Apesar disso, não é meu hábito encontrar-me com desconhecidos que me
contactam a propósito do meu trabalho. Há sempre demasiada formalidade, mesmo quando o
fazem, como ele fez, através do Facebook. Cria-se um constrangimento que afasta a
possibilidade de qualquer encontro. No caso dele não foi assim e até fui eu que propus o
encontro. Ele era um homem bonito, mas não foi isso que me levou a convidá-lo para tomar um
café. Marquei o encontro por curiosidade, a eterna curiosidade. Seria ele o Machina ex Deus?

Há uns anos consultei um psicólogo que me disse que a minha curiosidade acerca do Outro era
um dos traços mais positivos do meu Eu. O psicólogo devia gostar de espeleologia porque
nunca o meu Eu teve tantos abismos interiores. As minhas obsessões, traumas, medos, manias
não passavam de abismos que o psicólogo espreitava de lanterna em riste, tentando romper as
sombras densas que aprisionavam o meu Eu. Mas não temos todos abismos, perguntei. Que
sim. Só que além dos abismos eu tinha a vertigem dos abismos e era a vertigem que me fazia
mergulhar no negro.

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Uma pulsão destrutiva que me levaria a ficar fechada em mim, não fosse a enorme curiosidade
que tenho pelo Outro, não fosse a enorme vontade de chegar ao Outro. Um Outro exterior. Não
os Outros que também existiam escondidos nos meus abismos interiores. O psicólogo garantia
que esses outros Outros só me puxavam ainda mais para dentro de mim. Por vezes enredávamo-
nos de tal maneira no meu Eu e nos Outros que era difícil percebermos do que falávamos.

Andei mais de um ano nesse psicólogo. Gostava de o ouvir. Os abismos não se apequenavam
nem as vertigens desapareciam mas gostava de o ouvir. Se o psicólogo não tivesse metido na
cabeça que não estávamos a evoluir, possivelmente ainda hoje lá andava. Chamei-lhe a atenção
para o facto de que não ter piorado podia ser considerado uma evolução. Mas o psicólogo foi
irredutível. Despedimo-nos com um aperto de mão no cruzamento da Avenida 5 de Outubro
com a Avenida João Crisóstomo, em frente a uma loja que, apesar de ser Janeiro, ainda tinha na
montra uma árvore de natal com bolas azuis. Feliz ano novo, desejei. E seguimos cada um pela
sua avenida.

Consultei um novo psicólogo que gastou a primeira consulta a tentar fazer-me esquecer tudo o
que o anterior me tinha dito, especialmente a treta dos abismos interiores e das vertigens. Não
iríamos lá com alpinismos, a psicologia era outra coisa. Aparentemente uma coisa menos
musculada mas mais agressiva. A minha curiosidade pelo Outro, o meu desejo de chegar ao
Outro, não era afinal um dos traços mais positivos da minha personalidade mas antes um dos
maiores responsáveis pelos meus ataques de ansiedade.

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Se eu não tinha a nossa espécie em grande conta, a minha curiosidade, a minha procura
reflectiam apenas uma vontade permanente de me desiludir, de me frustrar. Em suma, de sofrer.
Passei a ser uma masoquista. Uma junkie agarrada a uma esperança vã, sempre à procura de
uma dose de dor. Eu tentava resistir, defendia-me, em tantos biliões de pessoas tem de haver
algumas que me façam mais feliz. Que não. Que todos existimos sozinhos e que eu tinha de
aprender a ser feliz sozinha e quanto mais cedo melhor. O novo psicólogo tentava convencer-
me de que eu estava a ser vítima da minha mente doente, de que a esperança não era mais do
que uma vil armadilha da minha mente doente. Acabei por desistir das consultas. Acho que me
fartei das armadilhas e das vilezas da minha mente. Ou melhor, de ter notícias delas. Ainda
pensei em ir a um terceiro psicólogo, mas acabei por nunca o fazer. Passei a controlar os
ataques de ansiedade com químicos que a médica de família me receita, e tem corrido bem.

Quando ele me escreveu pela segunda vez, novamente a propósito do meu trabalho, googlei o
nome dele.

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O primeiro link levou-me a um blogue cujo header dizia

Procurei Deus em todas as religiões. Procurei--o em ti. Aceitei procurá-lo em mim. Encontrei-o
aqui. Machina ex Deus.

O último post tinha quase meio ano, 30 de Novembro de 2011, e o poema intitulado
«Confesso»

Tenho as mãos grandes demais e sou desajeitado

Sim

sou eu

quem desata

um por um

os nós do teu corpo

quando o deixas à minha guarda


Daí para cá, nada. Cliquei no link dos arquivos. O post inicial era do dia 31 de Dezembro de
1999 e tinha uma fotografia de um homem com um chapéu de papel como os que os norte-
americanos usam nas festas de fim de ano. Quis ampliar a fotografia para ver se aquele homem
de chapéu era o mesmo que me tinha escrito, ou melhor, se aquela fotografia correspondia à
mesma cara que aparecia na página do Facebook do homem que me tinha escrito. Infelizmente
não dava para aumentar. Só podia ver que partilhavam o mesmo tipo de beleza vinda de um
imaginário do cinema dos anos 50. Entre uma fotografia e outra teriam passado vários anos, o
que também não facilitava a comparação.

Nessa noite e nas seguintes li tudo que havia nos arquivos do Machina ex Deus. Gostei dele por
coisas que não sei explicar.

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O Machina ex Deus vivia em Lisboa e passava férias perto do sítio para onde vou no Verão. Se
calhar até já me tinha cruzado com ele. Se calhar era eu a mulher do post que passeava o cão
em frente ao mar, a mulher do post que todas as manhãs comprava pão de sementes na padaria.
Eu podia ser quase todas as mulheres de que ele falava porque elas faziam coisas que eu
costumo fazer. O Machina ex Deus era um solitário. E parecia prestar-me atenção. Ou prestar
atenção a mulheres como eu. Havia também a pergunta porque nos deixaste ficar assim tão sós?
O único post que ia sendo repetido ao longo do arquivo: porque nos deixaste ficar assim tão
sós?

Mente-se tão bem na internet como na vida, e aquilo tudo podia ser inventado. Podia ser só uma
questão de estilo. Mas quis acreditar que não e li como se fosse verdade. Era verdade tudo o que
tinha lido. O homem do Facebook, o Machina ex Deus e aquele com quem iria encontrar-me
dali a pouco eram todos o mesmo homem. Mesmo assim, não sabia quase nada sobre ele. Das
mensagens que tínhamos trocado, para além de saber que gostava do meu trabalho, sabia o
nome, a profissão e pouco mais. Ah, e havia as fotografias. Que podiam ser falsas.

Who is he? What does he want? About 4.130.000.000 results (0,29 seconds)

Is he Machina ex Deus? About 15.100.000 results (0,13 seconds)

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Não há nada a que o computador não responda. O meu cunhado diz que o computador, a
internet e os motores de busca são uma invenção do Diabo. O meu cunhado não é crente e não
percebe nada de Deus e do Diabo. Mas talvez tenha razão.
Tinha acordado com alergia. As alergias são uma guerra que o meu corpo trava com o mundo
ou com algumas coisas do mundo. Coisas indefinidas ou de difícil identificação que provocam
o sistema imunitário, fazendo o meu corpo reagir exageradamente. Como quando me apaixono,
só que ao contrário. Aí o sistema imunitário afrouxa as defesas. Se é que há sistema imunitário
para os afectos.

Espirros, olhos raiados de vermelho, nariz congestionado. Definitivamente não era um bom dia
para conhecer o homem do Facebook, o Machina ex Deus ou fosse quem fosse. Tomei dose
dupla do anti--histamínico. Pensei em desistir do encontro, descer as persianas e deitar-me outra
vez. A chuva convidava a isso. O meu cão a dormir no sofá também.

Cliquei num de entre centenas de links que fornecem previsões meteorológicas. Lisboa. Escolhi
previsão horária. A chuva ia parar e a manhã terminaria com sol. Talvez não houvesse razão
para cancelar o encontro. E o Sinatra podia continuar a cantar Let’s do it. Let’s fall in love

Se bem que o frio ia continuar. E talvez, também, a alergia. O efeito do anti-histamínico


tardava. Possivelmente era tudo mais fácil no Bangladesh.

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Comecei a escrever Bangl no site da meteorologia, à frente de O tempo em. O computador


percebeu o que eu queria e completou Bangladesh, Ásia. Não precisei de escrever mais nada. O
computador deu-me uma lista de cidades e eu escolhi a primeira, Barisal. Céu limpo, 35 °C.
Talvez fosse mesmo tudo mais fácil no Bangladesh. Ou talvez não. A verdade é que não podia
saber. Mesmo com toda a informação que tinha lido e que podia continuar a ler até à eternidade,
About 571,000,000 results, só havia uma maneira de conhecer o Bangladesh: ir ao Bangladesh.
Momondo. Pesquisei um voo. De: Lisbon (LIS), Portugal. Para: Barisal (BZL), Bangladesh. Só
ida. Data da partida: 27-04--2012. Se houvesse um voo ao fim do dia, mesmo indo ao encontro,
daria tempo de fazer a mala. A pesquisa demorou uns instantes. Zero resultados. Não foi
possível encontrar quaisquer voos que correspondam ao seu pedido. Por favor, tente novamente,
talvez com datas ou aeroportos alternativos. Um bom conselho. Assim faria. Mais tarde.

Não gosto de chegar atrasada mas estranhamente continuava sentada em frente do computador.
Ainda não tinha tomado banho, ainda não tinha apontado a morada do trabalho dele na minha
agenda, ainda não tinha gravado no meu telemóvel o número do telemóvel dele, não fosse dar-
se o caso de me perder. Ele trabalhava perto de minha casa, mas para quem não tem sentido de
orientação o perto pode ser tão longe como o fim do mundo. Abri os mapas do Google e escrevi
a minha morada. Só as primeiras letras, o computador já memorizou o resto.

91
No destino, a morada do trabalho dele. Introduzidos o ponto de partida e o de chegada, cliquei
para obter indicações. Nas opções, escolhi a pé. Segundo o computador, iria precisar de onze
minutos para percorrer a distância que separa a minha casa do sítio onde ele trabalhava.

Essa informação, saber que precisava apenas de onze minutos para lá chegar, fez com que me
atrasasse mais. Continuei ao computador enquanto ia eliminando tarefas por falta de tempo, não
fazer a cama, não secar o cabelo, não me maquilhar. Pensei em enviar um sms

surgiu um imprevisto, não posso ir, lamento muito, combinamos em breve

Invocar um imprevisto é o melhor. Se se inventa uma doença obriga-se o Outro à gentileza de


desejar as melhoras. Um imprevisto é igualmente incontornável e não chega sequer a ser uma
mentira, já que estão sempre a acontecer-nos coisas que não podemos prever.

Não me apetecia sair de casa porque nunca me apetece sair de casa. Uma vez na rua, também
nunca me apetece sair da rua e voltar para casa. As mudanças custam-me sempre. Mas nunca
me ocorreria enviar-lhe um sms a dizer a verdade. A verdade só pode ser praticada com os
muito conhecidos ou com os muito desconhecidos. Acontece que quase ninguém é tão
conhecido e raramente alguém permanece tão desconhecido.

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O sol continuava sem aparecer. Ele podia não ser a Machina ex Deus. Podia até nem ser o
homem da fotografia do Facebook.

Nunca cheguei a conhecê-lo. Mas encontrei-me com ele naquela manhã. E depois dessa,
encontrámo-nos ainda outras vezes.

Demorei cerca de onze minutos a chegar ao trabalho dele e o sol apareceu ao fim da manhã
como o computador tinha previsto. Ele era igual à fotografia do homem do Facebook. Disse-me
não ser o Machina ex Deus e eu acreditei. Não vale a pena falar com os Outros se não
acreditarmos no que nos dizem. Nesse sentido, falar com os Outros também é uma questão de
fé. O blogue do Machina ex Deus continua a não ter nada depois do final do poema

até que amanhece


Sei que partiste

meu pequeno pássaro ferido

Abro lentamente os olhos

Nas minhas mãos

teu corpo desfeito num montículo de penas

Uma brisa passa quase nada

e leva-mas para longe

Coisas que acarinho e me morrem entre os dedos

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Naquele dia, ao chegar a casa, depois de me encontrar com o homem do Facebook, sentei-me
ao computador, o meu cão a abanar muito a cauda à minha volta.

When is Bangladesh going to disappear?

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Bangladesh happens to be situated at sea level in a

region of the world where flooding and monsoons are

already a problem. As it stands, each year roughly half

the country is under water at one point or another. But

because of possible rising sea levels in the next 20 years

(even a 20-centimeter rise) could devastate 10-million

Bangladeshis

Vinte anos. Daqui a vinte anos o Bangladesh, este Bangladesh, terá desaparecido. A ameaça do
provisório sempre me assustou. Já perdi tanta coisa. Perdi um continente e a cidade em que
cresci, perdi o meu pai, perdi uma caneta de tinta permanente e um guarda-chuva com um
arco--íris, perdi a minha cadela Fly que usava uma coleira com sininho. Perdi tempo. Vinte
anos. Não sei ir ao Bangladesh. Não quero amar o que não pode, para sempre, aceitar-me de
regresso.

Por favor tente novamente, talvez com datas ou aeroportos alternativos

Desisti da viagem.

Por favor, tente novamente. Por favor. Por favor. Por favor.

95

desaparecida ou a Justiça

Este conto inspira-se livremente em factos reais: em 2004, Joana, de oito anos, desapareceu; a
mãe foi condenada a dezasseis anos de prisão pelo seu homicídio; o corpo de Joana nunca foi
encontrado.

1. As moscas não paravam de volta dela. A mulher abanava a cabeça, mexia o corpo em gestos
bruscos, mas as moscas já não fugiam. Deixavam-se ficar pousadas e a mulher sentia-lhes as
patas a fazerem comichão, de vez em quando as picadas. A mulher estava de pé. Tinha as mãos
algemadas atrás das costas. Estava ferida e não dormia há mais de dois dias. Respirava com
dificuldade. O sol ardia-lhe no corpo, especialmente nas partes que a roupa não cobria. As
moscas lutavam pelos sítios onde a carne inchara e onde o sangue ainda não coagulara. A
mulher mantinha-se de costas para a única árvore que havia naquele baldio. Tanto a mulher
como a árvore escolheriam acabar naquele instante. Mas o corpo da mulher tinha-se habituado
demasiado a resistir e as raízes da árvore eram fortes e longas.

96

Os homens estavam perto da mulher, atentos à cova que se abria. Eram quatro, mas só um deles
cavava. Olhava para baixo, atento, os gestos concertados. Transpirava muito. A pá era de metal
e brilhava quando o sol incidia em determinado ângulo. Nessas alturas os outros homens tinham
de desviar os olhos. A mulher não. Parecia quase cega. Os reflexos do sol no metal não a
incomodavam. Ao lado da cova ia crescendo um monte de terra seca e amarela. A mulher
desejava que por dentro a terra fosse escura e fresca e que lhe fosse permitido deitar-se nela.
Sentiria menos calor. Mas dentro da terra só havia a mesma secura. A mulher e a terra tinham
muita sede. E nenhuma delas sabia como desistir da vontade de beber água.

A mulher conhecia alguns daqueles homens. Um deles, o mais alto de todos, aproximou-se dela,
a fumar, queres?, perguntou, estendendo o cigarro. A mulher não respondeu, mas mesmo assim
ele pôs-lhe o cigarro entre os lábios feridos. Dá uma passa, disse. Ela deu. O fumo arranhou-lhe
a boca e o nariz feridos e ela tossiu. Outra, disse o homem. Aproximou o cigarro da boca da
mulher, mas foi o polegar dele que lhe abriu os lábios. Enquanto o polegar se entreteve a
amachucá-los, o homem sorria. A mulher nada fez. Depois o homem enfiou o polegar todo
dentro da boca dela e pôs-se a deslizá-lo deliciadamente para dentro e para fora. Gostas, não
gostas? A mulher nada fez. O homem disse, tens de me dizer o que é que o caralho do teu irmão
tem que o meu e o dos outros não têm, tens de me dizer.

97

O homem tirou o polegar de dentro da boca da mulher. Metes nojo, disse o homem, apagando o
cigarro entre as mamas dela. A mulher gritou de dor. Um dos outros homens, o que tinha o
casaco vestido e era o chefe, voltou-se na direcção deles, não quero ouvir um pio, nem mais um
pio. O homem alto encheu a boca de saliva e cuspiu sobre a mulher. Depois voltou para junto
dos outros.

A mulher virou a cabeça para o lugar onde estava a árvore, mas só conseguiu ver uma mancha
esguia em direcção ao céu. Sabia que havia outra cova aberta junto da árvore, mas não a
distinguia. A cova junto da árvore era a primeira que os homens tinham aberto. Agora já havia
muitas. E ao pé de cada cova, um monte de terra seca e amarela.

Tinha passado muito tempo. Dias. Não, não podiam ser dias, porque o sol esteve o tempo todo
por cima deles. Não houve noite.

Por momentos a mulher assustou-se com a ideia de ficar para sempre a ver tudo incerto. O susto
durou pouco tempo, porque a mulher voltou logo a sentir aquele cansaço terrível que nunca
tinha sentido. Pensou, tenho fome. Logo que coma fico melhor. Depois imaginou o corpo
saciado, lavado, deitado numa cama, quase a adormecer. E sorriu. Um dos homens, o que tinha
o nariz ligeiramente torto, disse, a puta está a gozar connosco. Chegou-se junto dela e deu-lhe
uma bofetada com a força toda que o arco do braço conseguiu comunicar à mão. A mulher
cambaleou mas não caiu. A gaja é mais forte do que um touro, disse um dos outros homens, o
que tinha um sinal no queixo.

98
Os homens calaram-se. Estavam impressionados com a resistência da mulher. Havia quase
admiração na cara deles. O homem que estava a cavar atirou a pá para cima do monte de terra
amarela e seca e disse, aqui também não há nada, a puta está a pedir festa outra vez. A mulher
estremeceu. Apesar de já não ter realmente medo de que o interrogatório recomeçasse, o corpo
ainda estremecia como quando tinha medo. Os corpos são lentos. Precisam de tempo para se
habituarem às novidades.

Enterrem-na viva aí mesmo, foi o grito que se ouviu. Os homens olharam na direcção do grito.
A mulher não. Devíamos deixá-los entrar, arrumava-se o assunto num instante, disse um dos
homens, o mais gordo de todos. A uma distância mais de quatro vezes superior àquela que os
separava da árvore, estava um amontoado de pessoas por detrás de umas barreiras. As barreiras
eram guardadas por outros homens como aqueles.

O homem que tinha o casaco vestido aproximou--se da mulher e disse, nós tratamos disto,
somos nós que mandamos aqui. Na noite anterior a mulher tinha finalmente confessado o crime,
fui eu, sim, fui eu que matei.

Ao longe, por detrás das barreiras, o burburinho aumentava. Ao ver que um dos jornalistas se
aproximava, uma das mulheres, a do chapéu de palha, gritou novamente, ainda com mais
convicção, enterrem-na viva aí mesmo.

99

O jornalista deu instruções ao homem da câmara para não deixar escapar aquele berro. O
homem da câmara pediu à mulher do chapéu de palha que fosse mais para a direita por causa do
sol. Ela foi e quando estava na posição correcta gritou novamente. O jornalista agradeceu e
informou-a de que apareceria à noite nas notícias. Ao ouvirem isso, todos começaram a gritar e
o jornalista quis filmar outra vez. O homem da câmara tornou a pedir que fossem mais para a
direita por causa do sol. Foram. Ordeiros e combinados, como se tivessem treinado durante
muito tempo, como se durante todas as suas vidas não tivessem feito outra coisa. Todos pediram
que a mulher fosse enterrada viva. À noite viram-se na televisão. Alguns gravaram a
reportagem.

2. Tudo o que deres à terra, a terra devolver-te-á mil vezes, disse o homem à menina que o
seguia enquanto ele preparava os carreiros por onde a água havia de passar. Mil, quantos são
mil?, perguntou a menina, espantada no meio da horta que o homem fizera nas traseiras da
igreja. O homem deixou o que estava a fazer e agachou-se até ficar à altura da menina. Abre as
mãos, estica os dedos. O homem percorreu com os seus os dedos da menina abertos em leque.
Imagina que de cada um destes dedinhos nasce uma menina com as mãos abertas e os dedos
esticados. Como eu? Como tu. As mãos do homem prolongavam as da menina. E que de cada
um dos dedos dessas meninas nascem outras meninas de mãos abertas com os dedos esticados.

100
São mil os dedos dessas meninas nos dedos das meninas que tu tens nos dedos, disse o homem
e sorriu. A menina não tinha a certeza de ter percebido bem, mas os seus olhos brilhavam.
Parecia feliz. Tantos! O homem endireitou-se e foi abrir a água que, rápida, percorreu certinha
os carreiros todos. A terra é generosa se a tratares bem, a terra é sempre muito generosa, disse o
homem. A terra dá tudo, tudo, tudo?, perguntou a menina. Tudo. Foi nesse instante que a
menina decidiu o que havia de fazer.

Depois desse dia e durante todos os que se lhe seguiram, de manhã e ao cair da tarde, a menina
percorreu o baldio até junto da árvore com um balde de água que despejava no sítio onde estava
um pau espetado. O pau espetado tinha sido ideia de um dos rapazes, o mais velho de todos.
Assim tens a certeza de que vais regar no sítio certo, disse ele.

Os rapazes estavam a jogar à bola quando avistaram a menina ajoelhada ao pé da árvore.


Depois de terem percebido o que ela estava a fazer ajudaram-na. Primeiro a escavar o buraco e
depois a tapá-lo. Entre uma coisa e outra, a menina depositou com todo o cuidado o
Volkswagen carocha amarelo no interior da terra. Com o buraco já tapado, a menina ficou
durante algum tempo indecisa entre o pau espetado e a caixa vazia do seu brinquedo preferido.
Os rapazes impacientaram-se. Até que um deles, o que tinha um sinal no queixo, lembrou-se,
não queres vir jogar à bola connosco?

101

Ela foi e por uns minutos esqueceu a árvore dos carochas amarelos. A menina gostava muito de
brincar com carros. Quase não gostava de brincar com bonecas. O carro favorito era o
Volkswagen carocha amarelo que ela guardava sempre dentro da caixa em que vinha embalado
quando lho deram. Estava contente por ter sido cuidadosa. Aquele carro era de certeza uma boa
semente O homem da horta tinha-lhe dito que se as sementes não fossem boas apodreceriam
dentro da terra. Mas o carocha amarelo não apodreceria, porque a menina tinha sido sempre
muito cuidadosa.

Cada vez que regava, a menina olhava atentamente para a terra em redor do pau espetado,
tentando distinguir um relevo que denunciasse um rebento a crescer. Mas nada. Os rapazes
viam-na passar mas nunca mais a ajudaram. E riam-se quando se lembravam de que lhe tinham
roubado o carro logo a seguir. A menina não sabia disso. Só sabia que tudo o que à terra desse, a
terra lhe devolveria mil vezes. Mil. Mil vezes.

Precisava de tratar bem a terra. E até ao dia em que desapareceu, foi exactamente isso que a
menina fez.

Nesse dia as mulheres viram-na dirigir-se para a árvore com o balde de água na mão. Era o fim
da tarde e conversavam à saída da mercearia. Tinham pousado os sacos das compras no chão.
Algumas tiraram os pés dos chinelos. O que é que se pode esperar com uma mãe daquelas?,
perguntou uma das mulheres. Lá vai ela, avisou outra, a dos lábios pintados de cor-de-rosa. As
mulheres não viram a menina voltar porque a conversa as distraiu antes de a menina ter
chegado à árvore.

102

Há quem diga que o padrasto lhe dá sementes de droga e que ela anda por aí a espalhá-las,
informou a do cabelo armado com uma mise. E logo uma outra, a que cheirava a lixívia, não
viram o dinheiro que ela ainda agora tinha? O pai dela andou por aí, mas não acredito que lhe
tenha dado um tostão, teso como é, disse a dos braços roliços. Que gente, suspirou a que tinha o
fio de ouro com um crucifixo. E todas suspiraram também. Mas lá que o pai é bem bonito, é,
disse a da saia às flores. Olha que a ti nenhum te escapa, respondeu a que tinha o cabelo preso
num rabo-de-cavalo com uma fita amarela. E todas riram.

Enquanto as mulheres estavam na mercearia, a menina tinha entrado e pedido um chocolate.


Trazes dinheiro?, perguntou a dona. A menina levou a mão ao bolso das calças e juntamente
com as moedas havia uma nota de vinte euros. Isto chega, não chega?, perguntou a medo,
mostrando as moedas e guardando a nota. Não devias andar por aí com esse dinheiro todo, onde
é que o arranjaste? A menina não respondeu, guardou o troco no bolso das calças e saiu a comer
o chocolate.

As mulheres ficaram a ver a menina juntar-se às outras crianças que brincavam no largo à
cabra-cega. Malcriada, disse uma das mulheres, a do saco com lombinhos de porco. A que tinha
a embalagem do detergente da loiça na mão concordou. Lá fora a menina entrou no jogo.
Vendaram-na. Depois todos fizeram uma roda à volta dela.

103

A menina ria e caminhava trôpega com as mãos esticadas em direcção aos gritos dos outros,
cabra-cega, cabra-cega. Uma das mulheres, a do leite com suplemento de cálcio, aconselhou, se
fosse a ti chamava o teu filho, da última vez que o meu brincou com ela chegou a casa com uma
carrada de piolhos. A outra, a dos iogurtes com sabor a morango, chamou o filho que estava na
roda da cabra-cega. Depois disse, o que é que se pode esperar com uma mãe daquelas?

A menina dirigiu-se para a árvore com o balde na mão e nunca mais ninguém a viu.

3. Estavam na cozinha. A mulher pedia o dinheiro à menina que dizia, é meu. A mulher insistiu,
estou a mandar-te, não te estou a pedir. A menina disse outra vez, é meu. A mulher gritou. Se
não dás a bem, dás a mal, ameaçou. E avançou sobre a menina. Agarrou-a pela blusa que se
rasgou quando a menina correu em direcção à porta.

A mulher foi mais rápida e barrou-lhe a passagem. A porta fechou-se com estrondo. Se é assim
que queres, muito bem. A mulher agarrou os cabelos da menina e atirou-a ao chão. A menina
caiu de bruços e a mulher pôs-lhe um joelho sobre as costas para a impedir de se mexer. Tirou-
lhe o dinheiro do bolso e guardou-o no dela. A menina gritava, mas a mulher não parava de lhe
bater pelo corpo todo. Bateu-lhe com a mão aberta até magoar a mão. Depois bateu-lhe com o
punho fechado até torcer o pulso. Levantou-se, pegou na menina, ergueu-a no ar e atirou-a com
toda a força.

104

A cabeça da menina fez um barulho esquisito ao bater contra a porta do frigorífico. Como se
alguma coisa se tivesse partido lá dentro. Foi então que a menina se calou. Mas os seus gritos
ainda ficaram a ecoar por uns instantes, pára mãe, pára.

Era assim que o homem que era o chefe e cheirava a colónia de pinheiro bravo achava que tudo
tinha acontecido. Ao chegar à esquadra foi informado de que a mulher ainda não confessara.
Antes de seguir para casa dera ordens para continuarem a interrogar a mulher e para não a
deixarem dormir. A mulher tinha-se mantido calada, mas o homem do relógio com bracelete de
couro não desistia.

A miúda chegou a casa, entrou por ali adentro e apanhou-te na trancada com o teu irmão, foi
assim, diz lá que não foi assim. Um dos outros homens, o das falanges peludas, deu um soco na
cara da mulher.

A cadeira em que ela estava sentada balançou. Ficaste com medo de que a miúda fosse contar
ao padrasto, o cabrão do drogado não tem bom feitio, não ia gostar nada de saber que o cunhado
lhe andava a comer a mulher. O homem das unhas compridas agarrou na mulher pelos cabelos,
a cabeça dela veio toda para trás mas ele continuou a puxar até ficar com um monte de cabelos
nas mãos. A miúda queria fugir-vos pelas traseiras, mas vocês apanharam-na na cozinha, não
foi? Aposto que nem tiveste tempo de vestir as cuecas. O homem da aliança grossa apertou com
toda a força o pescoço da mulher até ela ficar com os olhos esbugalhados.

105

Era tão mais fácil confessares, o que é que te custa, não custa nada, era um favor que fazias a
todos, principalmente a ti, que nós tempo temos, falta-nos é paciência, vá lá, confessa, a miúda
entrou e apanhou-te a foder com o teu irmão, ou estavas a mamá-lo? O homem que cheirava a
suor atirou ao chão um copo de água que estava sobre a secretária e obrigou a mulher a
ajoelhar-se sobre os estilhaços. Estavas então a mamá-lo, a miúda apanhou-te e por isso teve de
pagar. O homem da fivela com uma caveira deu um pontapé na barriga da mulher. A mulher
dobrou-se e ele deu-lhe uma joelhada. A cabeça da mulher fez um barulho esquisito ao bater de
encontro ao chão. Como se alguma coisa se tivesse partido lá dentro. Foi então que a mulher
começou a falar.

4. A mulher acordou. Bom-dia, princesa, disse a voz de um homem. A mulher estava deitada no
chão. Foi o sabor a terra, sangue e sal que a fez lembrar que tinha desmaiado. Continuava com
as mãos algemadas atrás das costas. Chega de fitas, disse a mesma voz. E obrigou-a a levantar-
se. Estavam mais perto da árvore e um dos homens, o mais atarracado de todos, estava a abrir
uma outra cova. O sol ainda ia alto mas a mulher via tudo com uma luz mais fraca. Teve a
certeza de que nunca mais veria como costumava ver. Mas isso não era importante enquanto as
dores, o cansaço e as moscas não se fossem embora.

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A distância às pessoas que os homens mantinham do outro lado das barreiras era agora menor,
mas os gritos e insultos continuavam a chegar à mulher como um ruído indistinto. Pareciam
filtrados por um material espesso. A mulher tinha a sensação de ter sido fechada numa
campânula e afligiu-se, também estou a deixar de ouvir, pensou. Depois deu conta de que o
vento tinha parado e isso sossegou-a um pouco. A mulher não percebeu logo o que eram
aqueles estrondos lá longe. Foi um dos homens, o da cicatriz na testa, que disse, só faltava mais
esta, vem aí trovoada. Não tardou muito até o céu baixar, opaco, e encobrir por completo o sol.
A pele da mulher deixou de lhe arder. Agora a mulher só sentia as dores mais profundas, das
coisas que se tinham partido por dentro, e o corpo todo a inchar.

Foi quando começaram a cair os primeiros pingos de chuva que a pá bateu numa coisa
qualquer. Olá, temos aqui novidade, disse o homem que cavava. Já nenhum deles acreditava
que conseguiriam encontrar ali o corpo da menina, mas ainda assim tinham continuado.
Acorreram todos, expectantes. O homem atarracado cavou com energia renovada, mas logo se
tornou claro que o que ali estava enterrado exigiria o suor de todos.

5. É como dizem, fui eu, sim, fui eu que matei a minha filha, foi isso, matei a minha filha,
atirei-a pelo ar, peguei nela e atirei-a, agora lembro-me de tudo, foi contra a porta do frigorífico,

107
ela não me queria dar o dinheiro, eu não podia deixar, atirei-a, e depois o frigorífico estava ali,
sim, caiu no chão, estava morta, como é que sei que estava morta, estava morta porque estava
morta, por causa do frigorífico, estava ali no chão e não dizia nada e não queria dar o dinheiro e
eu não tinha cuecas, sim, tinha o frigorífico e a minha filha e a porta fechada e os bolsos todos e
o dinheiro e o dinheiro mas não tinha cuecas, e sim, tinha o meu irmão, sim tinha o meu irmão,
pois é, lembro-me de tudo, sei muito bem como foi, de repente lembro-me de tudo, é tão fácil, é
como se se tivesse feito luz dentro da minha cabeça, a minha filha no chão, o frigorífico, a
minha filha entrou e viu, mas o padrasto da minha filha, sim, o meu marido, não podia saber,
mas a minha filha entrou e viu-nos na cama, eu e o meu irmão, sim, não tem bom feitio, o meu
irmão não, o padrasto, sim, não tem não, entrou e viu-nos, e tinha o dinheiro no bolso e não mo
queria dar, só viu, viu, viu, eu e o meu irmão na cama, eu estava nua, não tinha cuecas, tinha o
meu irmão, eu queria o dinheiro, tive de lho tirar, ela só queria fugir, fugir e ir pelo ar, peguei
nela e atirei-a, tive de fechar a porta, para a minha filha bater com a cabeça, sim, e para não
fugir, não se pode fugir pelo frigorífico, ainda mais sem cuecas, só se pode bater com a cabeça,
tem de se fechar a porta, eu e o meu irmão, a minha filha caída no chão, morta, lembro-me tão
bem, caída no chão, a minha filha com o dinheiro e as cuecas, a fugir e a ir pelo ar, e morta,
morta, sim morta, e o corpo, o que é que eu fiz com o corpo, o corpo, que corpo?

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6. Finalmente noite. Finalmente noite, pensou a mulher. Chovia. A chuva era vertical e grossa.
Os quatro holofotes acesos faziam crer que só chovia dentro da zona de luz que eles
desenhavam. Mas de cada vez que um relâmpago caía via-se a terra toda transformada num
lamaçal. A escavadora, o gerador e a grua atolados. A mulher estava encharcada. Os homens
também. A mulher continuava de pé com as mãos algemadas atrás das costas. Quase não via.
Não era capaz de distinguir o que a grua tinha retirado de dentro da terra. Os homens olhavam,
incrédulos. Sob a luz intensa dos holofotes, lavado pela chuva, brilhava um imaculado carocha
amarelo. Não um brinquedo, como o da menina, mas sim um carocha amarelo verdadeiro.

Um dos homens, o mais novo de todos, aproximou-se do carro. Os vidros já não existiam mas a
napa vermelha dos bancos estava em bom estado. O homem vasculhou o interior mas não
encontrou nada, a não ser terra, ervas e bichos. O homem que tinha a voz mais grave de todos e
era o chefe deu ordem para que um outro, o do cabelo rapado, arrombasse o porta-bagagens.
Assim que a fechadura se soltou, o homem dobrou-se num vómito. Um cheiro pestilento
chegou a todos os outros. Os homens taparam rapidamente as bocas e os narizes com lenços e
foram espreitar. A mulher deixou-se ficar onde estava.

Dentro do porta-bagagens a terra estava viva. Toda ela mexia. Viscosa. Uma infinidade de
vermes cobria quase por completo o corpo de uma mulher de olhos vendados.
109

Os homens estavam horrorizados. Não compreendiam como aquilo podia ter acontecido. Não
sabiam quem era aquela mulher nem como tinha ido ali parar. Uma mulher de olhos vendados
que lhes era vagamente familiar. Onde é que a teriam visto? Uma mulher de olhos vendados? O
tecido da venda a resistir mais aos vermes do que o corpo da mulher. Tinham a sensação de que
a mulher de olhos vendados não lhes era estranha mas não se lembravam onde a poderiam ter
visto.

De qualquer maneira, não faltava muito para que os vermes dessem conta do que restava. E
tudo estaria terminado.

111

os anjos por dentro

Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. Era pouco mais do que um carreiro.
Muito íngreme. A terra dura e desbotada. Quase ninguém escolhia ir por ali, mas aquele era o
caminho preferido da nossa mãe. Voltávamos do rio. O meu irmão do lado direito e eu do
esquerdo, a nossa mãe no meio. A nossa mãe orgulhava-se de nós como não se orgulhava de
mais nada na vida.

A água do rio estava fria apesar de o Verão ir avançado. Nas partes mais acidentadas do leito a
água ficava branca e borbulhava ruidosamente por causa da força da corrente. As bolhas de ar
eram tão grandes que parecia possível atravessar o rio de bolha em bolha. Se o fizéssemos,
chegaríamos em pouco tempo à aldeia que avistávamos na outra margem. De carro levávamos
horas. O nosso carro era velho e as estradas ruins. Era raro sairmos. Tudo se tornava demasiado
longe.

112

A nossa mãe estendia a minha toalha e a do meu irmão em cima da laje e punha a cesta do
lanche à sombra do pinheiro manso. As nossas toalhas eram iguais excepto nas cores. A minha
era laranja e a do meu irmão azul. Tinham ambas riscas brancas. A nossa mãe comprava-nos
roupas e brinquedos iguais ou semelhantes. Eu era um bocadinho mais alto do que o meu irmão
e os pêlos começavam a crescer-me nos sítios mais escondidos do corpo. Tirando isso, parecia
não haver grande diferença entre nós.
A laje pouco maior era do que os nossos corpos franzinos deitados ao sol, lado a lado.
Trazíamos sempre um banco de madeira para a nossa mãe se sentar à sombra do pinheiro.
Nunca fazia nada. Olhava para o rio e para as árvores, para o céu e para a aldeia na outra
margem, como se visse tudo pela primeira vez. A nossa mãe não gostava de conversar. Às vezes
cantava.

Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. O canto da nossa mãe abafava o barulho
da terra dura a ser esmagada pelas solas de cabedal das nossas sandálias. Na berma cresciam
rosinhas selvagens. Outras vezes margaridas. Mas havia sempre muitas pedras e giestas.

Assim que nos abeirávamos do rio, eu e o meu irmão desembaraçávamo-nos das sandálias, das
camisetas e dos calções e corríamos para a água. Os nossos pés pequenos pisavam o caminho
cheio de calhaus e cardos secos como se fosse um caminho muito liso. Éramos leves demais
para que os calhaus e os cardos secos nos magoassem.

113

Podíamos experimentar a água se nos molhássemos só até aos joelhos. Para irmos ao banho
tínhamos de esperar que a digestão se fizesse. Nunca desobedecíamos. Como almoçávamos ao
meio-dia, esperávamos até às três horas. Com os pés enfiados no fundo lodoso, as pernas uns
espetos, experimentávamos a água e gritávamos o mais alto que podíamos, hoje a água está
gelada, está mesmo gelada, oh, hoje é o dia em que a água está mais gelada. Dizíamos isso
todos os dias.

Os nossos gritos furavam as copas das árvores e subiam até às nuvens, onde ficavam
pendurados a gritar-nos de volta. A nossa mãe dizia-nos que era o eco. Nós imaginávamos que o
eco era mais um dos bichos que nunca víramos mas que viviam no meio dos montes que
sitiavam o rio. Tal como os lobos ou as serpentes, o eco também não se deixava ver. Mas fazia-
se ouvir. Chegava mesmo a rir-se connosco. Só que de forma mais desmanchada.

Também costumávamos gritar, pai, já chegámos ao rio, ou então, vamos lançar um barco, pai.
Acreditávamos que o eco podia fazer com que estes recados chegassem ao nosso pai.

O nosso pai era técnico na barragem e saía todos os dias de manhã cedo com uma lancheira.
Voltava ao fim do dia com a testa muito enrugada, como se tivesse passado o dia a ver coisas
incompreensíveis. Sentava-se na melhor cadeira que havia em nossa casa e a nossa mãe
descalçava-o e servia-lhe um copo de vinho.

114
Eu e o meu irmão gostávamos de inventar histórias sobre a barragem. O nosso pai era sempre o
herói e os bandidos terríficos que atacavam a barragem acabavam sempre vencidos por ele.
Tínhamos a certeza de que o nosso pai escondia uma arma na lancheira. Inventámos várias
maneiras de chegar a essa arma, mas nunca nos atrevemos a executar nenhum dos planos. Não
sabíamos se o que nos assustava mais era o manuseio da arma ou a possibilidade de ela não
existir.

O rio ia dar à barragem e não havia trajecto mais rápido até lá. No entanto, não era um caminho
que alguém pudesse utilizar. O nosso pai tinha de dar muitas voltas de carro pela estrada da
serra para ir e vir todos os dias. Mas o rio ia ter directamente com ele e nós ficávamos
maravilhados a olhar na direcção em que a água corria. Mesmo depois de se esconder de nós,
no sítio onde fazia uma curva, sabíamos que a água não parava até chegar à barragem. Eu e o
meu irmão queríamos ir até àquela curva e depois até à outra e à outra, queríamos ir além de
todas as curvas, para ver onde ia aquela água toda, para ver a barragem e a água presa. Mas a
nossa mãe nunca saía dali. Passava a tarde sentada no banco de madeira e nós tínhamos de ficar
por perto. Não estávamos autorizados a escapar ao alcance dos seus olhos.

Enquanto esperávamos pelo final da digestão entretínhamo-nos a construir barcos que


lançávamos à água para que o rio os levasse até ao nosso pai. Fazíamos desenhos ou
escrevíamos algumas frases que escondíamos dentro deles. Lançámos um barco, pai,
gritávamos, lançámos mais um barco.

115

Mas o nosso pai nunca recebeu nenhum dos barcos nem nunca sequer ouviu o eco repetir os
nossos gritos. O eco e os barcos desfazem-se ou encalham antes de chegarem ao destino, dizia-
nos o nosso pai quando chegava a casa. Parecia-nos impossível que fosse sempre assim.
Deitados na cama, antes de adormecer, culpávamos os bandidos terríficos que atacavam a
barragem pelo desaparecimento dos nossos barcos. E no dia seguinte tornávamos a fazer barcos
e a gritar, lançámos mais um barco, pai.

Os nossos peitos enchiam-se e esvaziavam-se quando gritávamos mas, com ar ou sem ar, as
costelas eram sempre visíveis. Os nossos corpos ainda não se tinham abalançado a crescer. Não
havia maneira de acontecer o pulo de que a nossa mãe falava. Não tarda nada e dão um pulo,
dizia, não tarda nada e tenho aqui dois homens. Mas os nossos corpos pareciam surdos e
continuavam pequenos.

Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. Em certas partes, o carreiro estreitava
tanto ou as curvas eram tão apertadas que deixávamos de ver o caminho. Como já o sabíamos
de cor, nada nos impedia de continuar. Eu do lado esquerdo, a nossa mãe ao meio e o meu
irmão do lado direito. Suficientemente afastados para não nos tocarmos. Era mais fácil
caminhar assim, com espaço entre nós. Dispensaríamos o almoço de boa vontade, mas se não
comêssemos não íamos ao rio. A nossa mãe usava o louro na comida como as outras mulheres
usam o sal.

116

O nosso pai dizia, desanimado, até nos ovos, mulher, até nos ovos pões louro. Mas a nossa mãe
continuava a fritar a folha de louro no azeite antes de abrir os ovos na borda do fogão de ferro
preto. Os ovos, mais do que o uso excessivo do louro, intrigavam-me muito. A rodela amarela
sempre centrada, a casca frágil que lhes servia de embrulho, a clara transparente que ficava
branca ao lume. Era tudo inexplicável. Como um verdadeiro mistério, daqueles que ninguém
tem interesse em desvendar.

Passava muito tempo a observar as galinhas. Tentava descobrir-lhes nas cabeças, especialmente
nos olhos, o conhecimento da Geometria, ainda que na altura não conhecesse a palavra.
Indiferentes, as galinhas continuavam a bicar o que havia para bicar no quinteiro, fazendo
gestos empertigados com os pescoços. Não lhes levava a mal a indiferença, por considerá-las
infinitamente mais sábias do que eu. Além de lhes admirar os conhecimentos de Geometria
evidenciados no fabrico dos ovos, admirava-lhes a dignidade com que se deixavam apanhar
para a matança dos domingos. As galinhas agitavam-se no quinteiro enquanto as mãos da nossa
mãe perseguiam a escolhida. Nunca percebi como a nossa mãe escolhia de entre todas as
galinhas a que seria sacrificada. Também nunca lhe perguntei. Logo que a escolhida era
agarrada, fazia-se um silêncio esquisito. A nossa mãe levava a escolhida presa pelas asas, ao
penduro. A escolhida raramente gritava ou se debatia.

117

Ficávamos a odiar a nossa mãe durante um tempo. Ainda não sabíamos que a violência maior
não é a que acontece depois da escolha. Nem é sequer a própria escolha. A violência maior
acontece antes, muito antes, e é essa que torna a escolha possível ou necessária. Ficávamos a
odiar a nossa mãe por uns instantes. Não mais do que uns instantes. Ainda sentíamos tudo de
forma provisória.

Mais tarde, quando aprendi Geometria na escola, não gostei, porque era tudo muito abstracto. A
Física era mais aplicada, mas também não me interessou. Desagradava-me especialmente o
problema do plano inclinado. Desagradava-me a garantia de que um corpo pesado colocado
numa superfície inclinada se move indefinidamente com movimento continuamente acelerado.
Desagradava-me mais ainda a explicação de que os corpos pesados têm tendência para se
moverem para o centro da Terra e só esforçadamente se movem para cima. A verdade é que
nunca gostei da escola. Nunca aceitei que tudo possa, deva ou tenha de ser explicado. Explicado
e transmitido.
Às três horas corríamos para a água. O corpo do meu irmão tornava-se indispensável para as
minhas brincadeiras, assim como o meu para as dele. Gostávamos muito de pregar rasteiras um
ao outro. Quanto mais tortos caíssemos, melhor. Às vezes batíamos nas pedras do fundo do rio
e aleijávamo-nos. Também gostávamos de fazer corridas. Nenhum de nós era bom nadador, mas
queríamos acreditar que sim. Perguntávamos à nossa mãe qual dos dois nadava melhor.

118

Nadam os dois bem, era a resposta que nos dava sempre. Acontecia o mesmo quando fazíamos
desenhos e queríamos saber qual era o mais bonito. Gosto tanto de um quanto do outro, são
ambos muito bonitos. Por mais que insistíssemos, não recebíamos uma resposta diferente.

A meio do rio, onde já não tínhamos pé, havia um tronco de árvore que ficara preso entre as
pedras. Era uma espécie de meta inatingível, ali tão perto. Estávamos proibidos de nos
aventurarmos até lá. Por causa das correntes, dissera-nos o nosso pai.

Só quando ficávamos com a pele dos dedos engelhada, os lábios roxos de frio e sem
conseguirmos parar de tremer é que regressávamos às toalhas estendidas sobre a laje.
Ficávamos quietos a sentir o oco pulsante do peito a aquecer entre o quente do ar e o quente da
pedra. Logo que nos secávamos íamos de novo para a água. Naquelas tardes de Verão o tempo
demorava-se mais. E isso sabia bem.

Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. Eu levava a cesta do lanche, que era mais
pesada, e o meu irmão levava o pequeno banco de madeira. Às vezes o meu irmão atrasava o
passo, sem dar conta. A nossa mãe chamava-o à atenção e ficávamos de novo os três lado a
lado.

Um carro é um corpo pesado. O Opel Kapitan do doutor era indubitavelmente um corpo


pesado. Eu e o meu irmão gostávamos mais daquele Opel Kapitan branco do que de todos os
carros que já tínhamos visto. Mesmo contando com os dos jornais e revistas.

119

Não havia miúdo que não se abeirasse do Opel Kapitan quando o doutor o deixava na rua.
Admirávamos-lhe os cromados resplandecentes e sustínhamos a respiração para não os
embaciarmos. Passávamos os dedos pela carroçaria. Ao de leve, com medo de a riscar.
Espreitávamos para o interior, apreciávamos o volante grande e fino e o tabliê cujas três rodelas
cromadas tinham números e sinais que pareciam gerir matérias complexas. Os bancos eram
corridos e as costuras da napa faziam riscas muito certinhas, os faróis redondos e hipnotizantes.
Era um modelo de 1959, mas estava tão estimado que parecia acabado de comprar.
O motor do Opel Kapitan fazia um rugido que todos reconhecíamos. Logo que o doutor dava à
chave, o característico rugir fazia-se ouvir a léguas de distância. Mas naquele dia, quando, ao
dobrarmos uma das curvas apertadas do atalho, avistámos o Opel Kapitan ocupando toda a
largura do caminho, não havia ninguém ao volante nem dentro do carro. Nem ninguém por
perto. O Opel Kapitan estava imponentemente sozinho. E, no entanto, moveu-se. Sem rugido.
Nem um clique sequer. O Opel Kapitan moveu-se e o corpo pesado que ele era avançou sobre
nós.

Naquele dia o doutor tinha sido chamado para acudir ao nosso vizinho que acordara sem saber
onde estava nem quem era. Enquanto o doutor procurava a origem do mal do nosso vizinho, o
Opel Kapitan avançava inexplicavelmente sobre nós.

120

Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. Em certas partes, o carreiro estreitava
tanto ou as curvas eram tão apertadas que deixávamos de ver o caminho. Como já o sabíamos
de cor, nada nos impedia de continuar. Eu do lado esquerdo, a nossa mãe ao meio e o meu
irmão do lado direito. Suficientemente afastados para não nos tocarmos. Era mais fácil
caminhar assim, com espaço entre nós.

A nossa mãe também era um corpo pesado. Mesmo eu e o meu irmão, apesar de muito leves,
éramos corpos pesados. Só esforçadamente conseguíamos afastar-nos do centro da Terra e
caminhar para cima. Tanto mais esforçadamente quanto mais cansados estivéssemos. Quando o
Opel Kapitan começou inexplicavelmente a deslizar pelo atalho, eu e o meu irmão estávamos
muito cansados por causa da subida e das brincadeiras no rio. Para além disso, ficámos
paralisados ao vermos que o nosso adorado Opel Kapitan tinha escolhido vir ter livremente
connosco. Em movimento continuamente acelerado. Seria preciso um esforço inumano para
que eu e o meu irmão nos desviássemos do Opel Kapitan. Mas nem eu nem o meu irmão
estávamos preparados para esforços inumanos.

A nossa mãe estava. A nossa mãe ao centro, o meu irmão do lado direito e eu do esquerdo,
ocupando todo o caminho. E o Opel Kapitan, o belo Opel Kapitan, animado por uma vontade
própria, ocupando também todo o caminho, à nossa frente, em sentido contrário. Perto. Cada
vez mais perto. Veloz. Cada vez mais veloz.

121

Quando a nossa mãe me empurrou para a berma, não sei se me desequilibrei ou se foi o corpo
dela sobre o meu que me fez cair. A nossa mãe só teve tempo de me atirar para a berma e de
proteger o meu corpo com o seu. Mesmo assim, não fiquei suficientemente protegido.
Conseguia ver o meu irmão de pé, no meio da estrada, o banco de madeira na mão, de camiseta
azul e sandálias castanhas, com os calções tufados que ambos detestávamos, o meu irmão,
pouco mais alto do que os cromados luzidios do Opel Kapitan. O meu irmão a olhar o Opel
Kapitan de frente.

Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. O canto da nossa mãe abafava o barulho
da terra dura a ser esmagada pelas solas de cabedal das nossas sandálias. Na berma cresciam
rosinhas selvagens. Outras vezes margaridas. Mas havia sempre muitas pedras e giestas.

O Opel Kapitan parou de repente sem ter tocado no meu irmão. Parou simplesmente. Sem
barulho de travões nem nada. Como se se tivesse esquecido de como as coisas são. Ou como se
o meu irmão o tivesse feito parar com uma espécie de hipnotismo dirigido a máquinas. O belo
Opel Kapitan parado pelos olhos do meu irmão que continuou de pé, no meio da estrada, com o
banco de madeira na mão, de camiseta azul e sandálias castanhas, com os calções tufados que
ambos detestávamos. O corpo da nossa mãe, na berma, sobre o meu.

Levantámo-nos e a nossa mãe aproximou-se do meu irmão, pegou no banco de madeira,


estendeu-lhe a mão. Quase reverentemente. O meu irmão deixou-se retirar da frente do carro.

122

Eu esperava na berma. Contornámos o carro e continuámos a subir. Faltava pouco para


chegarmos a casa.

Nunca falámos sobre o que aconteceu naquele dia ao voltarmos do rio, subindo o atalho de
sempre. Continuámos a comportar-nos como se nada tivesse acontecido. Mas já era tudo
diferente. Já não podíamos ignorar que a violência maior não é a que acontece depois da
escolha. Nem é sequer a própria escolha. A violência maior acontece antes, muito antes, e é essa
que torna a escolha possível ou necessária. A violência do amor. Maior ou menor.

Voltávamos do rio e subíamos pelo atalho de sempre. Era pouco mais do que um carreiro.
Muito íngreme. A terra dura e desbotada. Quase ninguém escolhia ir por ali, mas aquele era o
caminho preferido da nossa mãe. Voltávamos do rio. O meu irmão do lado direito e eu do
esquerdo, a nossa mãe no meio. A nossa mãe orgulhava-se de nós como não se orgulhava de
mais nada na vida.

Passaram-se muitos anos. Talvez não tenha acontecido tudo exactamente como contei. Mas
tenho a certeza de que o dia estava a chegar ao fim. E a água do rio era doce.

123
Humal

Ao reparar que Marquinhas estava grávida outra vez, o Padre ordenou-lhe que fizesse um
desmancho, indo contra as leis de Deus e dos homens. Que não, escusou-se Marquinhas,
torcendo as mãos no pano esgarçado da saia, posso lá arriscar a eternidade no inferno. O Padre
abanou-a como o vento aos espantalhos dos campos, haverá inferno maior do que os três
aleijados que tens em casa. Marquinhas empinou a barriga, se os desígnios do Senhor não
tivessem mistério, o temporal não teria derrubado o beiral da igreja e poupado o da taberna,
como se não fosse neste antro que os homens cometem muitos dos seus pecados. Já amiúde vos
falta comida para a boca, mas chegará o tempo em que tu e o teu homem perderão a força para
o trabalho, ou pelo menos a hora em que terão de prestar contas a quem manda em todos nós,
quem tratará dos infelizes, perguntou o Padre, e não obtendo resposta foi mais directo, estou em
crer que tu e o teu homem são mais desavergonhados do que a Palmira Moira,

124

cujos nove bastardos, cada um de seu pai, nasceram sãos e escorreitos, algum pecado tu e o teu
homem fazem, três aleijados parece-me punição significativa, livra-te enquanto é tempo do que
te cresce desalmado na barriga e de futuro quando a carne impelir o teu homem para a criação
ergue-te da cama e ajoelha-te a rezar.

O pensar do Padre estaria turvo de tanto sangue de Cristo e Marquinhas nem sequer contou esta
conversa ao seu homem, Mateus, já filho de outro Mateus, filho de outro Mateus e mais para
trás se andava e outros Mateus apareciam até se chegar, dizia-se, ao Mateus dos evangelhos, o
que era lido nas missas. No tempo devido, o corpo exercitado de Marquinhas pariu pela quarta
vez e quando a aparadeira viu o que ajudara a nascer benzeu-se e prometeu-se à Senhora do
Monte.

Não sei, disse o Padre, quando Marquinhas foi à igreja requerer o baptismo para o novo filho.
Cuidava que já tinha visto tudo mas estava enganado, vou ter de expor o caso ao Sr. Bispo, que
andou em peregrinação por esse mundo e terá visto mais do que há para ver. Já Marquinhas
rodava a maçaneta da porta quando o Padre gritou, tapa-o, as moças casadoiras aceitarão com
menos diligência homem se virem que se pode gerar uma coisa dessas.

Prevenido o olhar e instruída a repugnância, podia olhar-se sem aflição. Tinha boca, nariz e
olhos, só que em sítios, formas e tamanhos diferentes.

125
O rasgão oblíquo que descaía para o pescoço tinha de ser a boca, porque era ali que Marquinhas
punha a teta para o alimentar e era dali que saíam gritos que só não eram iguais aos dos bebés
por haver neles mais melodia. Da testa ampla caíam pregas de carne onde os olhos se recolhiam
sem cor autêntica e, se não pareciam funcionais, alguma percepção da luz teriam, já que se
agitavam concordantes com as suas oscilações, e isso acontecia mais vezes do que o admissível
para ser coincidência. Os buracos que chupavam o ar e o deitavam fora abriam-se sem relevo
entre a boca e os olhos, fazendo com que os narizes, com as suas canas e feitios variados,
parecessem despropositados mas belos.

Nenhum dos outros aleijados de Marquinhas e Mateus causava espanto, porque eram aleijados
normais, dos que se encontram com frequência a pedir esmola nas bermas dos passeios das
cidades. Mas ninguém sabia o que pensar do quarto aleijado. Anciãos capazes de distinguir se o
lume era de pinheiro ou de sobreiro ou descobrir o Norte no meio do breu mais desorientador
encontravam-se desta vez na situação de verem sem saberem nomear ou pelo menos adjectivar.
Mas foi outra a razão que trouxe os forasteiros a uma paragem tão longínqua como aquela.

O Bispo considerou que um filho de dois humanos alguma humanidade havia de ter, ainda que
não aparente, e o padre deitou-lhe água benta sobre a cabeça e chamou-lhe José, a pedido dos
pais. A criatura não soltou urros, o que parecia provar não ser aquilo obra do demo.

126

Não houve festa e no final Mateus levou José ao colo enquanto Marquinhas se ocupou da
aleijada mais difícil de andar. Os outros dois foram a pé consoante podiam. A fome fazia-os
tropeçar mais do que os defeitos com que tinham nascido.

As pernas de José eram duas caudas que existiam sem querença e seriam os braços que o
ajudariam a mover-se se lhe desse para isso. Mas a monstruosidade maior era o alto das costas,
tão grande que dava a ideia de que o mundo se tinha embrulhado todo ali. Nunca ninguém lhe
chamou José, nem mesmo os pais e os irmãos. O alto nas costas nomeou-o mais eficazmente do
que a Santa Igreja. Corcunda para toda a gente e José para o Senhor, que só chamaria uma vez
por ele e no fim de tudo. Os outros aleijados, não tendo o que os distinguisse de maneira
inequívoca, eram chamados pelos nomes de baptismo.

O Corcunda criou-se como tudo se cria. Ao contrário dos irmãos, que se mantinham vivos por
iniciativa e esforço próprios, o Corcunda não era capaz de levar uma malga de sopa à boca nem
de se queixar do frio. De vez em quando os pais tinham de o acordar com uma estalada do sono
em que se deixava ficar. Nunca se pôs de pé e nunca um trejeito pareceu ser o início de um
sorriso. Mas reconhecia o pai, a mãe e os irmãos e estremecia se uma panela de ferro caía na
laje ou se um toro crepitava mais ruidoso no lar. Alegrava-se ao avistar cubos de marmelada e
gostava de apanhar sol. Tinha gestos afectuosos que às vezes careciam de explicação.
127

Quando havia mais fome, os vizinhos ouviam os lamentos do Corcunda, que eram mais
afinados do que qualquer outro lamento, mesmo contando com os dos meninos que cantavam
na missa aos domingos e dias santos.

O Padre morreu mas as suas previsões cumpriram-se. Chegou o tempo em que Marquinhas e
Mateus ficaram sem força para o trabalho. A morte perdeu a discrição na maneira de os rondar e
não tardou que levasse Marquinhas. Fê-lo com tal espalhafato, que Marquinhas teve de deixar o
corpo caído no chão da cozinha ainda nem tinha bebido o chá de ervas da manhã.

Mateus e os outros aleijados choraram, mas o Corcunda parecia não ter dado fé da ausência da
mãe. Já a noite ia alta quando se ouviu o grito que espantou o sono dos poucos que estavam
para adormecer e acordou todos os que já tinham sido nisso bem-sucedido, como era o caso dos
outros aleijados e do próprio Mateus. Desafiando a noite, o Corcunda uivava, afinado. E assim
ficou um bocado. O amolador ralhou que não eram horas para aquilo, mesmo que uma mãe
tivesse morrido. Os outros mortais concordaram, uns do aconchego das suas camas, outros das
janelas onde mostravam a reprovação. Foi então que o Corcunda começou a cantar. Não
cânticos da missa, nem canções da grafonola, outra coisa que chegava à parte mais misteriosa
das almas e se demorava amorosamente por lá. Houve homens embrutecidos que confessaram
que os pêlos se lhes eriçaram e mulheres mais sensíveis que contaram visões de anjos no
telhado da casa do Corcunda. Todos concordaram que nunca tinham ouvido coisa semelhante e
que nunca nada os tinha feito sentir tão bem.

128

É fácil de perceber que quisessem ouvir o Corcunda novamente. Só que o Corcunda nunca mais
cantou. E ninguém o podia obrigar, porque o Corcunda não sabia receber ordens nem aceitar
pedidos. Começaram então a prometer bens a Mateus se fizesse o Corcunda cantar outra vez.
Os mais pobres chegaram a prometer a única malga de nabiças que tinham e os mais abastados,
sacas de trigo, bilhas de azeite para alumiar os santos, cobertores de papa para as camas e
colchas bordadas para as janelas nas procissões. O doutor prometeu ouro.

A fome de um velho com quatro aleijados a cargo tem de ser esperta ou pelo menos esforçada.
Mateus desejava ressuscitar Marquinhas para que, tornando ela a morrer, o Corcunda cantasse
outra vez. Nos delírios em que a fraqueza o deixava enchia-se de iguarias mas, quando abria os
olhos, a barriga chupava-se-lhe para as costas e no quinteiro só tinha palha seca pelo sol ou
molhada pela chuva. Por isso nem de um segundo precisou para aceitar a ideia que o pôs no
caminho para a fartura: não se sofria só quando se perdia uma mãe, sofria-se de muitas
maneiras e nem havia umas melhores do que outras, já que o resultado era sempre aproximado.
O Corcunda tinha medo do escuro e gostava de dormir aninhado com os outros aleijados. Nessa
noite, Mateus arrancou-o do meio dos irmãos e levou-o para a loja que ficava debaixo do chão
da casa. A loja era fria e de um negro irrespirável de tão espesso.

129

O Corcunda resistiu mas Mateus deixou-o lá trancado. Nem duas horas haviam passado e já o
Corcunda comovia todos os que o ouviam. O cântico era tão belo que, apesar de o nevoeiro
fechar a noite e murchar as rosas, houve quem viesse à rua para o ouvir de muito perto.

Os homens pagaram a Mateus apenas uma parte do que tinham prometido, mas Mateus
alimentou-se e aos seus aleijados, incluindo o Corcunda, que nunca mais dormiu aquecido entre
os irmãos.

Com o tempo, o Corcunda habituou-se a dormir na loja e parou de cantar. Mateus e os outros
aleijados tinham-se também habituado às ofertas, e certos hábitos são tão difíceis de largar
como os vícios. Tinham boas cores, estavam anafados como todos os que têm escolha no que
comem, e nem pensar em voltar à pobreza de uma sopa de água com casca de cebola. Mateus
pegou então num pau e foi até à loja onde o Corcunda estava preso. O Corcunda ignorou o pau
porque não lhe sabia a serventia. Contava com uma sopa gordurosa e uma côdea de centeio mas
recebeu uma sova. E cantou outra vez.

Os bens não paravam de chegar a Mateus e aos aleijados, e o Corcunda todos os dias levava
uma sova. Era triste que tivesse de ser assim, mas sem sacrifício nada se consegue. Indolente, o
Corcunda depressa se habituava ao que quer que fosse. Parecia que fazia de propósito só para
não ter de cantar. A pancada tinha de ser sempre nova. Se o Corcunda tivesse cabeça, Mateus
não teria precisado de se cansar tanto.

130

Mateus ficou tão velho que já nem deu gosto à morte levá-lo da cama onde dormia. Os aleijados
tiveram esperança que, na nova condição de órfão inteiro, o Corcunda cantasse como nunca
antes fizera. Mas nem um som saiu da sua boca, o que enfureceu os aleijados, ansiosos por
riquezas que compensassem o desgosto de terem perdido um bom pai. Sendo todos
conhecedores do agir do pai, meteu o mais velho mãos ao trabalho, como era de direito. Foi
com gosto que sossegou a raiva batendo no Corcunda, um insensível que não tinha chorado a
morte de quem lhe dera a vida. E, oh, como o Corcunda cantou nessa noite e nas seguintes. Os
irmãos receberam sacas de castanhas doces, santos tão bonitos como os da igreja e fatos
cortados por medida.
Já havia muita gente a ganhar bom dinheiro por acolher os forasteiros que vinham ouvir o
Corcunda. Os empreiteiros tinham alargado a casa do Senhor e construíam agora uma
albergaria, com duzentos quartos, e várias casas de pasto.

Foi a um dos forasteiros que a aleijada do meio ouviu que aquela bênção tinha o fim à vista
porque as aberrações têm vida breve. Cismou dias a fio naquilo até encontrar a solução. Quando
o Corcunda ainda dormia com eles, sentira-o esfregar as partes baixas contra a palha do colchão
e entregar-se ao pecado sem vergonha nem recato. Também sabia que tudo se herda: dons,
desumanidades, terras e até a fome.

131

Por isso chegou-se cheia de vida ao Corcunda, que fez o que tinha a fazer sem que ninguém lhe

tivesse ensinado. Nasceu um menino quase escorreito mas com um choro tão afinado que não
houve dúvidas que herdara o dom do pai.

Descoberta a astúcia da aleijada, não houve a condenação a que o fruto de dois irmãos, ainda
mais como aqueles daria azo. Todos se regozijaram por ter sido garantido um descendente que
cantasse como o pai. A outra irmã, zangada por não se ter lembrado disso mais cedo, chegou-se
ao Corcunda numa noite de Santo António e deu à luz gémeos com deformidades diferentes das
do pai. Um deles tinha o choro afinado.

Um forasteiro teve a ideia de trazer fêmeas de longe para as chegar ao Corcunda e as de mais
perto não se quiseram ficar atrás. O Corcunda ia cobrindo as raparigas em data marcada pelos
aleijados, que estipulavam o preço consoante os terrenos ou os tractores e as máquinas que
queriam comprar. Quando as raparigas não alcançavam, podiam ser chegadas uma segunda vez.

Até morrer, o Corcunda nunca deixou de fazer o que tinha de ser feito. Nem, depois dele, os
seus filhos e os filhos dos seus filhos e por aí adiante.

A maior parte das criaturas vinha a este mundo sem o dom do Corcunda, mas descobriam-se-
lhes sempre serventias especiais. Continuaram pois os homens a providenciar para que elas se
multiplicassem. Depressa perceberam que lhes apuravam essas serventias se cruzassem
criaturas que fossem parecidas umas com as outras. E assim fizeram.

132
Para que as criaturas fornecessem o bem de que eram capazes era preciso infligir-lhes
sofrimento. Mas isso sempre foi um trabalho simples: há sofrimento em abundância neste
mundo de Deus e consegui-lo é das coisas mais fáceis.

Nasciam com braços quase iguais às pernas e o seu modo natural de andar era assente em pés e
mãos. Tinham caras afiladas e dentes mais aguçados. O pêlo cobria-lhes quase sempre o corpo
todo com texturas e formas variadas e emitiam sons diferentes mas todos eles incompreensíveis.

Com o tempo deixou de haver criaturas com o dom do Corcunda e foi preciso organizar a
variedade daquelas que existiam. Surgiram então as palavras por que foram nomeadas,
misteriosas como tudo o que é abstracto: porco, cabra, cão, ovelha, …

133

pânico

1, o pai não tem a certeza, não pode ter, 44, 48, 52, 56, 60, ainda assim começa a contar, 93,
97,102, não sabe se é uma crise que aí vem ou se é apenas o medo de que seja uma crise, o
saber de uma sensação é naturalmente duvidoso, 236, parece mesmo que é uma crise, um novo
princípio entre tantos, 303, o pai está sentado na poltrona da sala em frente à janela, dois vidros
rectangulares onde bate com desusado esplendor a luz verde da serra, a luz que o pai não vê, há
muito que o pai prendeu os olhos nas entranhas da terra onde só encontra caminhos escavados,
vagões aos solavancos em cima de carris, e por todo o lado, numa impossível multiplicação,
mineiros, seres invisíveis, feitos de trevas, de pó, mineiros que se confundem na terra, são terra,
mineiros, um formigar de mineiros, 794, se pudesse soltar os olhos da mina o pai veria a serra
que se ergue à sua frente, as copas das árvores que se amontoam em verdes diferentes, com
quantos verdes as árvores se erguem?, não há palavra que as apanhe, veria o céu que se alonga
em mais uma primavera, um céu de flanela, confortável, está por criar a palavra que o alcance,

134

e no sopé da serra, as casas, pequenas, pobres, o sino da igreja que brilha de uma forma pouco
natural, 1238, tanto mundo para ver e os olhos do pai presos nas entranhas da terra, 1314, neste
momento a pele da serra e a luz que a afaga nada podem contra a certeza que o pai tem, está
novamente a acontecer, 1441, neste momento o saber do pai é irremissível, está novamente a
acontecer, 1520, 1526, o pai não pode parar de contar, 1564, tem de amaciar o tempo que se
desenrolou dos ponteiros do relógio e se estica tenso à sua frente, um tempo escangalhado,
1691, está novamente a acontecer, 1725, o pai faz o que nestas situações se habituou a fazer, o
que sabe que tem de fazer, não há diferença entre um saber e um hábito, uma vontade e uma
obrigação, 1888, estende o braço que lhe obedece a contragosto, a mão fria e dormente alcança
a pequena bailarina de bronze que tem uma saia muito rodada e as mãos apoiadas na cintura, os
braços a desenharem dois vês deitados, um para cada lado, o pai agarra a campainha e abana-a
para que o pequeno badalo bata contra a saia de bronze da bailarina, 2227, o tilintar estridente
da campainha cala-se nas lombadas vermelhas e douradas que enchem as estantes escuras,
2342, quando o pai lia os livros, as letras brilhavam, negras, lustrosas no papel fino mas agora
as letras são brancas, todas as letras de todos os livros brancas na ausência dos olhos do pai,

135

2535, o filho aproxima-se, 2562, o pai ouve-o apesar do silêncio de que os passos do filho são
feitos, do silêncio de que o filho parece feito, ouve-o dentro do tilintar da bailarina, as criadas,
três de um lado do estreito corredor, três do outro, baixam a cabeça para cumprimentarem o
filho e deixam-se ficar perfiladas, o filho sorri-lhes e avança, as criadas gostam do filho como
nunca gostaram do pai, 2942, o pai não sabe por que chamou o filho, por que precisa do filho,
3013, o filho sabe que tem de tirar os olhos do pai do negro movediço da terra, arrastá-los até
uma superfície branca onde nada mexa, o filho também tem de lembrar o pai de que é preciso
tempo, 3207, que tudo voltará a ser como era antes de ter começado, 3268, basta esperar, 3289,
esperar, 3304, quando o tempo passar estará tudo bem, 3349, o pai tem de confiar no filho
contra o que o seu corpo sente, revestindo-se esta confiança de uma natureza tão obrigatória que
deveria ter outro nome, fé?, talvez fé, 3518, o pai paralisado dentro do pânico que o tomou tem
de confiar no filho, 3595, confiar, é só o que pode fazer, o filho fala mas o pai vê as palavras do
filho devoradas pela mina, a mina continua voraz como sempre foi, como sempre será, o pai
quer dizê-lo ao filho mas não consegue, a língua enrolou-se quando o coração desatou a atirar-
se desesperado contra a peito que o aperta, o pai não consegue dizer uma palavra, a garganta
dói-lhe numa ferida de lâmina de aço afiada, 3996, o filho repete que não é nada de grave e o
pai tem de acreditar que, apesar de as mãos tremerem no medo de coisa inexplicável,

136

de os pés se terem tolhido num pavor desconhecido, está tudo bem, que fora dele tudo continua
como sempre foi, o pai tem de confiar no que o filho lhe diz, tem de confiar, é só esperar que a
crise passe, 4333, crises, são crises, não é nada de permanente, vêm e vão, foi isso que o médico
disse e é isso que agora o filho repete, nada de permanente a não ser, claro está, nunca mais
deixarem de acontecer, 4535, como pode o pai confiar no filho contra tudo o que sente?, 4600,
o pai não sabe como confiar no filho mas mesmo assim os olhos do pai deixam-se arrastar até à
superfície branca da parede, 4729, as criadas continuam perfiladas no corredor que dá acesso à
sala, esperam, o pai sabe que o filho é amado pelas criadas, pelos mineiros, pelas mulheres e
pelos filhos dos mineiros, por tudo o que o pai criou, é por isso que o pai odeia o filho, é por
isso que o pai ama o filho, o pai criou a mina e a mina criou o mundo que as criadas conhecem,
o que o pai não sabe é como se criou o amor que todos têm pelo filho, isso o pai nunca soube,
5175, faltava muito para o filho existir quando o pai decidiu descerrar a terra, 5256, o tempo
avança por dentro do que o pai sente, a custo, muito a custo, o tempo e as memórias, as
memórias avançam emperradas, letra a letra, 5402, 5408, 5414, mesmo com os olhos pousados
na tranquilidade branca da parede o pai não se arreda das entranhas da terra, 5520, o desejo de
atingir o céu é uma insensatez, o desejo de experimentar a terra é dever dos mortais, foi sempre
isto que o pai disse ao filho, aos mineiros, às mulheres dos mineiros que vieram para se juntar

137

aos maridos, aos filhos que depois nasciam para a mina, a todos o pai contou muitas vezes
como a terra foi ferida, ninguém conhece a terra como o pai, 5890, para vencer a terra vieram
homens de todo o lado, dos lugares mais longínquos, e a terra deixou-se vencer para depois se
vingar recebendo os corpos dos que a esventravam, tudo isto o pai é capaz de contar sem
arrependimento, 6121, a mesma indiferença com que conta as formas traiçoeiras que a terra tem
de desabar ou como são inúteis os respiradouros que os mineiros abriram, como são inúteis os
canários que levam para os avisarem do veneno do ar, os mineiros levam canários que lhes
cantam a luz lá de fora mas que os alertam sempre tarde demais, os mineiros sabem que já não
vão a tempo de se salvarem quando os corpinhos dos canários se minguam envenenados dentro
das gaiolas, na morte dos canários os mineiros assistem à iminência da sua morte, 6647, crises,
o ventre do pai dói-lhe com a força de um soco, o bater do coração violentamente desacertado,
o ar arranha-lhe as narinas, arde-lhe no sítio que o pai julga ser o dos pulmões, 6837, 6843,
6849, 6855, as crises demoram-se cada vez mais, 6897, e o filho repete que já passa, é só
esperar, 6948, nestas alturas o pai tem de confiar no filho que entregou à mina com a idade de
sete anos, desde então o filho trabalha na mina apesar do assobio desafinado no peito, das
feridas na pele escurecida que se abrem para nunca mais se fecharem, das mãos que se mexem
numa dor de intolerável permanência, 7253, apesar de trabalhar na mina o filho estranhamente
sobrevive ao pai, talvez por isso todos o amem, talvez seja por isso, 7379, o pai teme a boca do

138

filho que se abre em palavras que não tem a certeza de ouvir, ao filho resta-lhe o poder
imprevisível das palavras, 7522, e ver o que o pai se impediu de ver, a serra, o céu, as casas, o
sino da igreja, os miúdos que brincam com pedras na praça enquanto ganham força para a mina,
a mina espera-os como eles esperam o dia em que serão chamados, a mesma urgência, 7768,
nesse dia os miúdos caminharão ao lado do pai se a mina não o tiver levado, de um irmão mais
velho, irão, franzinos, destemidos, para o ar envenenado, irão, a mina vai ganhá-los mas mesmo
assim os miúdos irão, expectantes, 7997, o filho vê as meninas que crescem para se vestirem de
preto, todas as mulheres da aldeia se vestem de preto, a mina roubou-lhes os maridos, os filhos,
os irmãos, a mina rouba-lhes tudo mas as mulheres vão à igreja e põem velas pedindo que o
minério não se acabe, que o pai fira mais e mais a terra, 8302, tudo isso o filho pode ver e é
nessa visão que lhe vem o desejo de abandonar o pai à mina, o filho sabe que a mina sempre
quis quem a criou, é isso que a mina quer, é só isso que a satisfará, o filho não pode deixar de
saber disso enquanto vigia os olhos do pai que vasculham inquietos a lisura da parede branca,
8621, que descobrem, insaciáveis, manchas por todo o lado, 8680, os olhos do pai servem-se da
luz, do pó, para criarem seres de luz e de pó, 8762, o filho está ali para garantir que nada do que
o pai vê é verdadeiro, que aqueles monstros de luz e de pó não existem, o pai tem de confiar no

139

filho contra o que os seus olhos vêem, essa confiança obrigatória devia ter outro nome, 8999, as
criadas continuam perfiladas, de vez em quando suspiram baixinho, o mundo que as criadas
conhecem corre perigo nestas convulsões, acabar o mundo que as criadas conhecem é o mesmo
que acabar o mundo todo, nisso não há diferença, 9236, o pai entrega-se à criação dos seres de
luz e de pó contra as palavras do filho, contra a certeza que as palavras do filho possuem, o pai
não consegue parar, 9400, os seres criados multiplicam-se para cercar o pai, 9457, crises, são
apenas crises, 9500, o pai não consegue confiar no filho, nas palavras do filho, o pai só confia
no que é capaz de criar a cada momento, mesmo que seja este medo de coisa inexplicável,
9660, na palidez da face do pai formam-se pequenas gotas de suor que o filho limpa enquanto
garante que já falta pouco, 9780, o pai sente o coração acalmar na carne onde embate, o sangue
abranda numa espécie de tranquilidade espessa, 9894, 9900, as crises vêm e vão, voltam cada
vez mais depressa, 9958, vêm e vão, vêm e vão, demoram-se cada vez mais, 10 014, um dia
será inútil contar, 10 049, o tempo desenrolar-se-á sem fim e não será possível escapar, 10 118,
um dia, 10 134…

141

retrato de um jovem poeta


Estão perto

demasiado perto

Não conseguem distinguir em...

(ia dizer, em nós)

Não conseguem distinguir em mim

um corpo

um único corpo

entrelaçado sobre si mesmo

Este corpo

que todos nomeiam no plural

Até nós.

A velha abriu a torneira, tapou o ralo e ficou a ver a água encher a banheira. Quando a casa de
banho já era uma nuvem, despiu o roupão e deitou-se de forma que os pés ficassem debaixo da
água que corria ainda.

142

Quando a banheira já não levava mais água, a velha fechou a torneira. Começou a cantar dentro
de uma nuvem de ouro, porque o sol ao passar o vidro dourava as gotas de água que ficavam a
brilhar em todo o lado. Cantou durante muito tempo. Não pensou em nada.

O cão empurrou a porta e entrou. A porta aberta deixava fugir a nuvem dourada, o que aborrecia
a velha. Podia levantar-se e fechar a porta, mas nunca o fazia. O cão aproximou-se. Trazia na
boca um bom pedaço de carne que deixou cair no chão mesmo ao lado da banheira. A velha fez-
lhe uma festa na cabeça. O cão abanou a cauda e depois deitou-se perto do pedaço de carne.
Parecia satisfeito, mas ninguém pode garantir o que sente um cão.

Velha e cão ficaram assim até a nuvem dourada dar lugar à Primavera que vinha lá de fora.
Quando a luz da manhã tomou conta de tudo, a velha levantou--se e sem se enxugar vestiu o
roupão de flores coloridas que se ajustavam ao dia. A velha destapou o ralo e a água escoou-se
num barulho engraçado. A água desaparecia sempre com muita pressa, e os gestos da velha
eram cada vez mais lentos. A velha sabia que nenhum esforço era capaz de domar o tempo. Ao
longo da vida, a velha soube muitas coisas que só a atrapalhavam no dia-a-dia, por isso queria
esquecer-se de tudo. E já não lhe faltava muito.

Baixou-se para ver melhor o pedaço de carne que estava perto do cão. Porque a velha mexia no
pedaço de carne, o cão abriu os olhos e abanou outra vez a cauda.

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Para agradecer ao cão, a velha fez-lhe uma festa no dorso.

Em frente do espelho, a velha passou as mãos pelo cabelo que chegava fino e cinzento ao fundo
das costas. Uma espécie de cauda que todas as manhãs penteava, vagarosa, com a escova de
prata. Depois os dedos, magros e enrugados, enrolavam a cauda prateada num toutiço. A velha
olhou para os olhos que estavam no espelho e mais uma vez teve a sensação de não os
conhecer. Há muito tempo que os olhos do espelho não lhe pareciam ser os seus, já que viam
coisas diferentes, se é que isto se pode explicar assim tão facilmente. Sentia que os olhos
desconhecidos viam uma outra cara, que nem sequer era a das fotografias da sala. Uma cara que
a velha nunca tinha visto. Podia incomodar-se com esta pequena diferença entre o que via e o
que os outros olhos que via no espelho viam, mas a velha ainda sabia que os mal-entendidos
acabavam sempre resolvidos pelo tempo.

Com um lápis traçou dois riscos negros sobre as pálpebras. A mão da velha tremia muito, mas
os riscos sobre as pálpebras ficavam perfeitos. Encheu as rugas da cara e as bochechas mirradas
com um pó encarnado e pintou os lábios com uma cor que lembrava doce de cerejas, o que lhe
fazia crescer água na boca. O cão dormia outra vez. Como acordava muito cedo, quando
regressava da rua aproveitava todos os bocadinhos para descansar.

A velha foi para o quarto e o cão continuou a dormir. Não fazia parte do feitio nem dos hábitos

144

do cão seguir a velha. No quarto a velha levou muito tempo a escolher um vestido entre os que
estavam pendurados no guarda-fatos Quando decidiu que queria usar o vestido azul-celeste de
folhos debruados com renda da cintura até aos pés, a velha abriu outro armário e demorou-se a
escolher os sapatos. Depois, dentro do vestido azul-celeste, que de tão largo lhe dançava no
corpo, a velha calçou os sapatos de verniz preto de salto alto e pôs um perfume muito intenso.
Na casa de banho o cão espirrou. A velha sabia que o cão não suportava perfumes e também
ainda sabia que a coabitação é um assunto complicado. Tudo isto a velha sabia sem o desejar.

Acordado pelo perfume, o cão espreguiçou-se, esticando muito as patas da frente. Ficou assim
enquanto o corpo aguentou aquele esforço e depois deixou-se cair de novo no chão. Coçou uma
orelha e começou a lamber a barriga. A língua áspera raspava e raspava a pele da barriga que
devia estar suja ou saber bem. A velha não sabia ao certo o que movia o cão, e ninguém o pode
saber.

A velha regressou à casa de banho, agarrou no pedaço de carne e começou a atravessar o


corredor sem se incomodar com as gotas de sangue que lhe salpicavam o vestido e se juntavam
às nódoas que o azul-celeste já tinha por todo o lado. O cão pôs-se a lamber, aparentemente
com o mesmo entusiasmo, o sangue que o pedaço de carne deixava no chão.

A casa era muito grande. Inabitável para uma velha e um cão. Os saltos altos faziam um

145

barulho especial no soalho de madeira, e era por isso que a velha gostava de calçá-los.

As duas primeiras portas que davam para o corredor estavam fechadas. A terceira estava aberta.
A velha entrou e habituou os olhos à escuridão. Quando já conseguia ver, procurou o prego que
tinha deixado ali ficar. Pegou nele e riscou uma linha no soalho. Uma linha pequena ao lado de
muitas outras que já lá estavam. Em breve também aquela divisão ficaria preenchida, e quando
isso acontecesse a velha fechá-la-ia como tinha feito às duas divisões anteriores.

Já na cozinha, a velha pousou o pedaço de carne sobre a mesa e sentou-se a descansar. Sorriu ao
ouvir as patas do cão que faziam um barulho cómico no soalho de madeira. Se olhasse lá para
fora, podia ver uma grande parte da cidade, mas a velha nunca olhava. Mesmo ao longe, como
agora lhe aparecia, a cidade enjoava-a. Mesmo assim tão ao longe, onde tudo se torna perfeito.

A porta da cozinha, que dava para a varanda, estava aberta, como sempre. Era por ali que o cão
saía quando queria ou precisava, já que pelo outro lado da casa não o podia fazer. Há muito que
essa porta estava trancada. A velha sabia que em tempos tinha saído e entrado por aquela porta e
que tinha deixado de o fazer. Não sabia desde quando, muito menos por que razão. Disso a
velha tinha conseguido esquecer-se. Também não sabia desde quando riscava linhas no chão. Se
as contasse, a velha poderia saber que tinham passado três anos, dez meses e vinte e oito dias.

146

Mas a velha nunca faria essas contas. Se alguém lhe perguntasse, a velha também não saberia
explicar por que fazia aquilo. Mas ninguém lhe perguntava coisa alguma. A velha não se
lembrava ao certo de quando é que lhe tinham feito a última pergunta, talvez tivesse sido o
talhante do mercado quando subiu os seis andares do prédio e se pôs a berrar no patamar
debaixo da luz da clarabóia, quer que eu perca a cabeça, é isso que quer, talvez tivesse sido esta
a última pergunta que ouviu, apesar de não o poder jurar. A velha não abriu a porta nem
respondeu, já tinha decidido nunca mais abrir a porta e nunca mais responder a ninguém. Se
ainda não tivesse decidido, também não saberia o que responder ao talhante que lançou
ameaças no patamar. As ameaças rodopiaram até que a luz implacável da clarabóia as silenciou,
nada conseguia sobreviver à luz implacável da clarabóia, disto ainda se lembrava a velha.
Depois do talhante, nunca mais ninguém subiu os seis andares para fazer perguntas, ou então a
velha já não se lembrava, e por isso deu-lhe para pensar que o talhante consentia que o cão o
roubasse e que até se comovia com isso.

O cão passou a porta da cozinha, saiu para a varanda e encostou o nariz às sobras de um pombo
morto que tinha trazido há uns dias. Desinteressou-se da carne apodrecida e desceu as escadas.
Pelo desembaraço percebia-se que não tinha medo que as escadas de incêndio ferrugentas
ruíssem. A velha também não, só que o corpo já não lhe permitia descer mais do que dois
andares.

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A velha encheu de água uma panela que estava no fogão e atirou o pedaço de carne lá para
dentro. Tinha pena de já não poder ir roubar qualquer coisa para comer com a carne, pelo
menos uma mão-cheia de sal para cozer a carne. Ainda gostava muito do sabor do sal, algumas
coisas custavam-lhe mais a esquecer do que outras.

Se pudesse, a velha ia até à cozinha do primeiro andar onde encontrara sempre coisas boas.
Enquanto pôde a velha foi buscar comida às outras casas e para tanto bastava empurrar as
portadas de madeira. Também colhia a fruta da meia dúzia de árvores que existiam no quintal
murado onde desembocavam as escadas de incêndio. Enquanto pôde a velha subiu e desceu
aquelas escadas sem nunca ter ido além das grades do portão ferrugento do quintal. Ao cão nada
o detinha para se fazer à cidade. No Inverno era tudo mais difícil, mas podiam contar sempre
com os pombos, que o cão apanhava como ninguém. E até eram saborosos, ou pelo menos a
velha já se tinha habituado a gostar da carne dos pombos.

Quando o cão regressou à cozinha, já cheirava a carne cozida. Porque subiu a correr as escadas
de incêndio, o cão arfava. A velha deixou-se ficar sentada na mesa da cozinha, o cão
aproximou-se e trazia em si o cheiro da erva e da terra molhada. A velha encostou a cara ao
dorso do cão. Ainda tinha saudades de algumas coisas lá de fora.

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Cozida a carne, era a altura de comê-la e para isso velha e cão tinham regras. Porque podia
comer na rua, o cão nunca pedia nada do que trazia para a velha. Caso esta não comesse tudo, o
cão aceitava os restos, se para eles tivesse apetite. Esta regra, entre outras, permitia-lhes
partilhar a vida. O cão ficou deitado debaixo da mesa enquanto a velha comia. A falta de dentes
obrigava-a a usar os talheres, mas isso não lhe dava prazer como encher a banheira de água ou
escovar o cabelo. Tinha cada vez mais dificuldade em aceitar o que apenas a necessidade
justificava.

A velha comeu até se sentir saciada e depois deu os restos ao cão, que não os recusou.
Alimentados, podiam fazer o que quisessem. A velha saiu da cozinha, atravessou o longo
corredor, e um ar de festa tomou conta da casa, os saltos altos, o perfume, o vestido comprido, a
velha não sabia ao certo o que era. Mas uma festa aceita-se sempre, aprendeu a velha já
enclausurada, e tudo o que aprendera nesta condição era mais verdadeiro do que tudo o que
antes havia aprendido.

Entrou na sala grande que tinha janelas altas. De tão sujos, os vidros não deixavam a velha ver
o outro lado da rua. Isto se a velha quisesse, o que era improvável. Sentou-se numa poltrona e o
cão, quando a viu sentar-se, dirigiu-se com preguiça para a outra. Subiu as patas da frente e
depois alçou as de trás devagar, enroscou-se e adormeceu.

Sentada na poltrona, que apesar das molas gastas ainda era confortável, a velha olhou para o
cão adormecido e assim ficou durante muito tempo. Talvez a pensar.

149

Não ligava muito ao que se passava na sua cabeça e invejava o cão, a quem não tinha sido dado,
nem ele o merecia, o martírio de pensar. Podia dizer isto ao cão, mas nem a velha nem o cão
gostavam de conversar e de resto nem sabiam.

Na manhã em que, pela leitura das linhas, se saberia que tinham passado mais dois anos, sete
meses e onze dias, a velha já tinha fechado mais três das portas que davam para o corredor.

A velha abriu a torneira, tapou o ralo e ficou a ver a água encher a banheira. Quando a casa de
banho já era uma nuvem, despiu o roupão e deitou-se na água. Quando a banheira já não levava
mais água, a velha fechou a torneira. Começou a cantar dentro da nuvem de leite, porque o
nevoeiro lá de fora colava-se ao vidro e embaciava as gotas de água. Cantou durante muito
tempo. Não pensou em nada.

O cão empurrou a porta e entrou. A porta ficou aberta, o que continuava a aborrecer a velha, os
problemas da coabitação são insolúveis mesmo para os pares mais felizes. A nuvem de leite
fugia rapidamente pela porta mas a velha nada fez para o impedir. O cão aproximou-se da
banheira. Trazia na boca um pedaço de carne que deixou cair no chão. A velha fez-lhe uma festa
na cabeça, o cão abanou a cauda e deitou-se perto do pedaço de carne. Parecia satisfeito, mas
ninguém pode garantir o que sente um cão.
A velha e o cão deixaram-se ficar até que a luz da manhã de Inverno tomou conta deles.

150

A velha levantou-se e sem se enxugar vestiu o roupão de flores coloridas que não se ajustavam
ao dia. A velha destapou o ralo da banheira, e apesar de os seus gestos serem cada vez mais
lentos a água continuava a desaparecer rapidamente com um barulho engraçado. Não havia
maneira de a velha deixar de saber que nada domava o tempo. A velha tinha conseguido
esquecer-se de muitas coisas que só a atrapalhavam no dia-a-dia, mas ainda se lembrava de
outras tantas. Iam faltar-lhe sempre muitas coisas para esquecer.

A velha baixou-se para ver melhor o pedaço de carne que estava junto do cão. O cão já não
roubava o talhante do mercado. O talhante tinha-se fartado disso, o cão tinha desistido dele, ou
simplesmente tudo tem um fim, mais cedo ou mais tarde. Porque a velha mexeu no pedaço de
carne, o cão abriu os olhos e abanou a cauda. Ao pegar no pedaço de carne, a velha viu que era
a perna de um bebé. Uma perna rechonchuda que terminava num pé gordo com cinco dedos
perfeitos. Tudo isto ainda se podia ver, apesar do sangue.

O cão esperava que a velha lhe agradecesse com uma festa para poder dormir. Devia custar-lhe
cada vez mais ir todos os dias à procura de alimento, mas ninguém consegue dizer com certeza
do que um cão é capaz. A velha olhava para a perna do bebé e o cão esperava a festa. Os gestos
são muito importantes. Nenhuma vez o cão trouxe alimento sem que a velha lhe tivesse
agradecido. A importância de um gesto está sempre na repetição, um gesto isolado pode muito
bem nunca ter sentido. A velha pousou o pedaço de carne no chão e passou a mão pelo dorso do
cão, que abanou a cauda e fechou os olhos.

151

Por já não ter com que o fazer, há muito que a velha deixara de traçar os riscos pretos nas
pálpebras, ou de encher as bochechas mirradas de pó encarnado. Demorava-se cada vez mais a
pentear a cauda prateada com a escova de prata e a enrolá-la num toutiço, só que nessa manhã
não foi assim e isso a velha nunca soube explicar. Quando olhou para o espelho, reconheceu os
olhos que a viam como seus e todos os gestos ganharam uma pressa desusada. Sem se pentear,
dirigiu-se para o quarto e abriu o guarda-fatos, de onde tirou o vestido cinzento, o mais quente
que tinha. Calçou uns sapatos de salto alto que já quase não tinham solas e saiu do quarto. Os
perfumes também já haviam acabado, para alívio do cão que dormia na casa de banho.

Porque a velha atravessava o corredor sem levar o pedaço de carne, o cão pôs-se de pé, atento.
A velha passou as cinco portas que já estavam fechadas e entrou na sexta. A casa era enorme.
Inabitável. Habituou os olhos à escuridão e pegou no prego. Porque a velha deixara o pedaço de
carne na casa de banho, o cão gania. A velha não foi capaz de acrescentar uma linha àquelas que
preenchiam uma parte daquele soalho de madeira.

Quando a velha voltou ao corredor o cão esperava-a com o pedaço de carne. A velha abraçou--o
durante muito tempo. Depois pegou no pedaço de carne e levou-o para a cozinha. Encheu de
água a panela que estava sobre o fogão e atirou lá para dentro o pedaço de carne.

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De um momento para o outro, vozes subiram em fúria pelas escadas, o que levou o cão a
aproximar-se da porta que nunca era aberta. A velha seguiu-o. As vozes aproximavam-se e eram
cada vez mais fortes. Atingiram a porta. Porque murros abanavam a porta, o cão começou a
ladrar. A velha confiou na luz implacável da clarabóia que matava tudo o que lá se deixava.
Nunca uma planta tinha sobrevivido naquele patamar. A porta vibrava cada vez mais. A velha
deixou-se cair no chão do corredor e agarrou-se ao cão que não parava de ladrar.

Lá fora as vozes não se calavam. A velha ouvia-as claramente mas não as entendia. A luz da
clarabóia nada podia contra as vozes que queriam arrombar a porta. A velha arrastou o cão para
longe da porta, em direcção às escadas de incêndio. Quando já estavam na cozinha, vozes
subiram também as escadas de incêndio. Velha e cão estavam presos no corredor.

A porta que nunca era aberta cedeu, homens e mulheres entraram. Velha e cão continuavam
agarrados um ao outro. Um corpo, um único corpo, entrelaçado sobre si mesmo. O cão ladrava
sempre. Vozes entraram pela porta da cozinha e misturaram-se com as que tinham entrado pela
porta que nunca era aberta. Vozes e mãos em todo o lado. Um grupo fez uma barreira de um
lado, o outro fez uma barreira do lado oposto, o corredor ficou de repente pequeno, muito
pequeno.

153

Um homem aproximou-se com um cobertor muito grande que lançou sobre o cão. Outro
homem trouxe outro cobertor que também lançou sobre o cão. A velha agarrou-se mais ao cão,
mas vozes e mãos foram mais fortes e arrancaram-no. O cão ladrou até que os cobertores se
encheram de sangue. A velha fechou os olhos. Quando o silêncio tomou conta de tudo, abriu-os.
Vozes e mãos tinham desaparecido. O corpo do cão ensanguentava um monte de cobertores no
meio do corredor. Se ainda soubesse, a velha tinha começado a chorar.
155

autobiografia

ou a história de um crime premeditado

Há muitos anos matei uma mulher. Às vezes sinto que ela me vigia. Especialmente quando falo
de mim. Por isso decidi escrever-lhe esta carta.

Minha querida,

Não quero ser cruel mas tenho de dizer-te que quase ninguém se apercebeu da tua morte. Só te
conto isto porque sei que te interessa. Sempre foste curiosa. E mais ainda sobre os afectos e a
lealdade. Os familiares mais próximos sentiram a tua falta, mas não por muito tempo. Fiz o que
pude para que te esquecessem depressa. Aconteceu o mesmo com os amigos. Nunca tiveste
muitos. Há poucas pessoas com as qualidades suficientes para serem amigos. É melhor
continuarmos sem nos enganarmos acerca disso.

156

Tive mesmo de te matar. Quando o fiz não imaginava que iria ter saudades tuas ou que me
lembraria de ti tantas vezes. Não estou a pedir-te desculpa. Fiz o que tinha de fazer. Tentei
explicar-te que não podíamos continuar a coexistir daquela maneira, mas tu sorrias com aquela
condescendência que tanto me irritava. Nunca gostei de pessoas condescendentes.

Eras a preferida dos pais. Estavam convencidos de que serias bem-sucedida. Sucesso para os
pais queria dizer um emprego e uma família. A hipoteca da casa paga ao fim de trinta anos.
Uma casa de férias. Um carro. Reforma e netos. E as pequenas coisas. Como a tarte de pêra que
inventaste e que a mãe ainda faz. A mãe, a nossa mãe, envelheceu mas continua bonita. O pai já
morreu. Foi há oito anos e ainda não sei o que fazer da sua ausência. Os pais foram os que mais
sentiram a tua morte. Tu permitias-lhes o descanso.

Lembro-me de que quando falavas da nossa infância costumavas dizer que tinha ficado perdida
noutro continente. Mas não há infância que não seja um continente perdido. A infância passada
em África não é assim tão relevante. Nem o facto de o fim da infância ter coincidido com uma
revolução. Com uma guerra. Com a ponte aérea. A História sempre interferiu com milhões de
histórias. Umas contam-se, outras ficam por contar. Não é sempre assim?

O retorno foi um entre muitos episódios. Não sei a partir de que altura comecei a dividir a vida
em episódios. Como nas séries televisivas. Continuo a gostar muito de filmes.

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Mas aqui nunca houve cinemas ao ar livre e a minha vida ressente-se de muitas coisas a que não
pode voltar e de outras tantas a que nunca acederá. Nunca consegui distribuir harmoniosamente
picos dramáticos. Há tempos manifestamente errados. Mas também não sou a única guionista
da minha vida.

Já eras advogada quando conhecemos o homem que te disse que estudavas as leis dos homens
enquanto ele estudava a Física e as leis de Deus. A linguagem matemática sempre te esteve
vedada. Quase todas as linguagens. A música. A pintura. O canto. A dança. Também a mim
estão vedadas. O único mistério de que me parece possível abeirar-me é o das palavras. Deves
saber que foi esse homem que me ajudou a tomar a decisão de te matar. Desde aí temos sido
cúmplices em tudo.

Tu e eu nunca fomos parecidas, mas também não éramos opostas. Poderíamos ter-nos
complementado se não se desse o caso de partilharmos o mesmo corpo. Dispúnhamos apenas
de um corpo, este que agora é só meu. Nunca deixámos de guerrear na nossa existência
intermitente. A vitória de uma seria a derrota da outra. Aquela de nós que matasse a outra
cometeria um crime perfeito, um assassínio sem cadáver. Eras mais capaz nas coisas do mundo.
Achava que serias tu a acabar comigo. Mas não.

Escrevo-te do local do crime. Do sítio das palavras.

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Mas estou a misturar tudo e tu gostas de tudo ordenado. Arrumado. A minha casa está quase
sempre desarrumada. Quando alguém me visita de surpresa fico envergonhada e lembro-me de
ti. Ou quando perco as facturas que preciso de pagar. Aí não me envergonho. Exaspero-me e
prometo ser mais organizada. Mas falho sempre. Continuo a trocar os dias com as noites. Tu
ficavas triste quando perdias as manhãs de sol. Eu deito-me muitas vezes ao amanhecer.

Tinhas medo de andar de comboio sem pagar o bilhete, de roubar pastilhas elásticas no
supermercado. Não concordavas quando eu o fazia. Os meus medos eram mais sérios. De
fantasmas. Da solidão do que envelhece. Da impiedade do que é novo. Já não consigo roubar
chocolates. Primeiro aceitei fazer a coisa certa e mais tarde escolhi, decidi fazer a coisa certa.
Espero não me ter tornado tão irritante como tu eras. Não é por te ter matado que vou deixar de
ser sincera contigo.

Nunca gostei de ir às aulas. O mar ficava tão perto do liceu. Não era tão bonito como o mar de
Luanda, mas era mais bonito do que qualquer ensinamento. Nunca me conseguiste convencer
da utilidade de aprender os nomes das linhas de caminho-de-ferro nem de se inventarem árvores
com sintagmas verbais e nominais nem da maior parte das coisas que fomos obrigadas a
aprender nas aulas. O mar esteve sempre ali tão perto. Reprovei um ano por faltas. Tu sempre
foste uma das melhores alunas.

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Um dia quiseste partir num cruzeiro como empregada de mesa. Tenho a certeza de que nunca
acreditaste nisso. Acreditavas na ideia de fugir. Eu tentei, mas nunca consegui. Continuo a não
gostar de viajar. Gosto de aeroportos e de ver destinos em letras luminosas. E gosto de me
demorar noutros sítios. Só sinto que já pertenço a um sítio depois de descobrir onde comprar o
pão de que gosto mais.

Quando me ouviste dizer pela primeira vez que queria ser escritora sorriste, condescendente.
Nunca escreveste um diário — disparaste, cruel, como se isso fosse uma prova do meu
devaneio —, e quando o rapaz do cabelo louro convidou outra rapariga para ir à festa não
escreveste poemas, choraste. Pois foi. Nunca escrevi um verso na vida.

Mas inscrevi-me na escola de dactilografia O Meu Futuro. Desperdiçámos um Verão, o dos


catorze anos, a treinar os dedos, que a cabeça vai-a treinando a vida. Por causa de O Meu
Futuro nunca olho para o teclado quando escrevo. Uso sempre o mesmo tipo de letra e o mesmo
tamanho. Não gosto de escrever à mão. Não guardo inéditos. Faço fogueiras. As palavras são
fáceis de queimar.

Para escrever só preciso de ter as mãos limpas. E de um café. Enquanto escrevo não fumo, mas
nos intervalos acendo um cigarro no pátio. Há mais de quinze prédios à volta do pátio. Centenas
de janelas. Espreito para as casas dos vizinhos. Escrever é espreitar outras vidas. É contar
mentiras e acreditar que isso é bom.

160

Não me quero gabar, mas é preciso coragem para matar alguém. Principalmente se lhe
conhecemos os sonhos. Tu só precisaste de morrer. Ficaste, mais uma vez, com a parte fácil.

Cheguei a pensar que podia realizar alguns dos teus sonhos. Mas acabei por me afastar ainda
mais do que tu foste depois de teres morrido. Desisti de ser advogada. Nunca quis ter filhos.
Não gosta de crianças, perguntam-me de vez em quando. Não sei, as crianças duram tão pouco,
respondo. Dura quase tudo tão pouco. Persigo o que possa perdurar.

Se estiveres curiosa acerca do que escrevo, não te posso ser útil, nunca soube falar dos meus
romances. Mas conto-te uma história: há uns anos encontrei num hospital psiquiátrico um
doente que me disse: tudo o que não vivi, li. Confesso que gostaria muito de ter inventado
aquele homem louco e de ter sido eu a criar aquela frase. Mas o homem louco não é mentira
nenhuma. O homem louco existia mesmo, dolorosamente em carne e osso, com aquela frase
naquela tarde acobreada de Outono. Tudo o que não vivi, li.

Já não leio tanto. Já não vou às bibliotecas requisitar os livros das lombadas mais grossas. Mas
continuo a gostar de histórias como as que aprendemos a ler sozinhas na semana em que
ficámos de cama por causa do sarampo. Quando começou a escola, a que tinha o embondeiro
no meio do recreio, já sabíamos ler. Foram as histórias dos livros da Patinha que nos fizeram
aprender. Sempre tivemos dificuldade em pronunciar as palavras e continuo sem saber ler em
voz alta.

161

Patinha era como pronunciávamos Fatinha. Agora, nas horas livres, a minha irmã Patinha
entretém-se a fazer gorros de lã e oferece-mos. Ainda chegaste a conhecer o filho dela. Cresceu.
Fez vinte e sete anos em Outubro. No ano passado visitámos o deserto. Fizemos um
piquenique, mas não tenho fotografias. O Paulo não estava lá. A máquina do Paulo tem quase
todos os instantâneos das nossas vidas.

Tenho saudades do pai.

Lembras-te de como gostávamos de o ver fumar? O que queres ser quando fores grande,
perguntaram-nos numa festa de família quando tínhamos seis anos. Fumadora, respondi. Riram-
se e disseram, isso não é profissão. Dez anos mais tarde perguntaram-nos outra vez noutra festa,
o que queres ser. Escritora, respondi. Isso não é profissão, disseram. Mas já não se riram. E tu
também não achaste piada.

Passou muito tempo desde que te matei, mas quase não há dia em que não me lembre de ti.
Tenho esperança de vir a ter a casa grande com que sonhavas e de nela poder reunir-me com o
que foste. Então acordarás no quarto luminoso virado a sul para as tuas manhãs doces e
tranquilas.

Com amor,

Dulce
163

Dulce Maria Cardoso publicou em 2001 o seu romance de estreia, Campo de Sangue, Grande
Prémio Acontece, escrito na sequência de uma bolsa de criação literária do Ministério da
Cultura. Desde então publicou os romances Os Meus Sentimentos (2005), prémio da União
Europeia para a Literatura, O Chão dos Pardais (2009), prémio Pen Club, e O Retorno (2011). A
antologia de contos Até Nós foi publicada em 2008.

Em 2012, foi condecorada com as insígnias de Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras da
França.

A sua obra está publicada em quinze países e é estudada em diversas universidades. Alguns dos
seus contos e romances foram adaptados ou encontram-se em fase de adaptação para cinema e
teatro.

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tudo são histórias de amor

foi composto em caracteres Hoefler Text e impresso pela Guide, Artes Gráficas, sobre papel
Coral Book de 90 gramas, em Fevereiro de 2014.

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NESTA COLECÇÃO

De Mim já nem Se Lembra

Luiz Ruffato

Dezoito Palavras Difíceis

Luís Rainha

Diário da Queda
Michel Laub

Dois Rios

Tatiana Salem Levy

E a Noite Roda

Alexandra Lucas Coelho

Este Samba no Escuro

Raquel Ribeiro

Quando o Diabo Reza

Mário de Carvalho

Habitante Irreal

Paulo Scott

Hotel

Paulo Varela Gomes

O Retorno

Dulce Maria Cardoso

O Verão de 2012

Paulo Varela Gomes

FIM

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