Você está na página 1de 330

A Lenda de Drizzt, Vol.

4 — O Fragmento de
Cristal
©2005 Wizards of the Coast, LLC. Todos os direitos reservados. Dungeons &
Dragons, D&D, Forgotten Realms, Wizards of the Coast, The Legend of Drizzt e
seus respectivos logos são marcas registradas de Wizards of the Coast, LLC.

CRÉDITOS

Título Original: The Legend of Drizzt, Book 4: The Crystal Shard


Tradução: Carine Ribeiro
Revisão: Elisa Guimarães e Rogerio Saladino
Diagramação: Guilherme Dei Svaldi e Vinicius Mendes
Ilustrações da Capa: Todd Lockwood
Cartografia: Todd Gamble
Ilustrações do Miolo: Dora Lauer e Walter Pax
Conversão para e-book: Vinicius Mendes
Editor-Chefe: Guilherme Dei Svaldi

Rua Coronel Genuíno, 209 • Porto Alegre, RS • CEP 90010-350 • Tel (51) 3391-
0289 • editora@jamboeditora.com.br • www.jamboeditora.com.br

Todos os direitos desta edição reservados à Jambô Editora. É proibida a reprodução


total ou parcial, por quaisquer meios existentes ou que venham a ser criados, sem
autorização prévia, por escrito, da editora.
1ª edição: novembro de 2017
Adquirir este e-book não dá a você o direito de compartilhá-lo na internet.
Pirataria é crime e fere a produção literária no país.

Por favor, não compartilhe e não baixe livros ilegalmente. Valorize o trabalho dos
nossos autores nacionais.
À minha esposa, Diane, e a

Bryan, Geno e Caitlin, por seu apoio e

paciência ao longo desta jornada.

E aos meus pais, Geno e Irene,

por acreditarem em mim quando

eu mesmo não acreditava.


Prelúdio

O DEMÔNIO RECOSTOU-SE NO ASSENTO que havia esculpido no caule do


cogumelo gigante. O lodo borbulhava ao redor da ilha rochosa, no escorrer e
movimentar-se eternos que marcavam essa camada do Abismo.
Errtu tamborilou os dedos com garras, a cabeça simiesca e chifruda balançando
sobre seus ombros enquanto olhava para a escuridão:
— Onde está, Telshazz? — o demônio sibilou, esperando notícias da relíquia.
Crenshinibon permeava todos os pensamentos do demônio. Com o fragmento em
suas mãos, Errtu poderia subir uma camada inteira, ou até mesmo várias.
E Errtu chegara tão perto de possuí-lo!
O demônio conhecia o poder do artefato; Errtu estava servindo a sete liches quando
eles combinaram suas magias malignas e criaram o Fragmento de Cristal. Os liches,
poderosos magos mortos-vivos que se recusaram a descansar quando seus corpos
mortais pereceram, se reuniram para criar o artefato mais vil de todos os tempos,
um mal que se alimentava e florescia às custas daquilo que os provedores do bem
consideravam mais precioso... A luz do sol.
Mas foram além até mesmo de seus consideráveis poderes. Na verdade, aquela
criação consumira os sete e Crenshinibon roubara a força mágica que preservava o
estado desmorto dos liches para alimentar seus primeiros lampejos de vida. As
explosões de poder que se seguiram fizeram com que Errtu voltasse para o Abismo,
e o demônio presumiu que o Fragmento tivesse sido destruído.
Mas Crenshinibon não seria destruído tão facilmente. Agora, séculos depois, Errtu
havia tropeçado na trilha do Fragmento de Cristal novamente; uma torre de cristal,
Cryshal-Tirith, com um coração pulsante que era a imagem exata de Crenshinibon.
Errtu sabia que a magia estava por perto; o demônio podia sentir a presença
poderosa da relíquia. Se ao menos tivesse encontrado a coisa antes... se há tivesse
pegado...
Mas então Al Dimeneira chegara, um ser angélico de tremendo poder. Al Dimeneira
havia banido Errtu de volta ao Abismo com uma única palavra.
Errtu olhou através da fumaça dançante e da escuridão ao ouvir o barulho de sucção
dos passos.
— Telshazz? — o demônio gritou.
— Sim, meu mestre — o demônio menor respondeu, encolhendo-se ao se
aproximar do trono de cogumelo.
— Ele conseguiu? — Errtu rugiu. — Al Dimeneira está com o Fragmento de
Cristal?
Telshazz estremeceu e choramingou.
— Sim, meu senhor... É... Não, meu senhor!
Os olhos vermelhos malignos de Errtu se estreitaram.
— Ele não conseguiu destruí-lo — o pequeno demônio foi rápido em explicar. —
Crenshinibon queimou as mãos dele!
— Hah! — Errtu riu. — Além até mesmo do poder de Al Dimeneira! Então, onde
está? Você o trouxe ou ele continua na segunda torre de cristal?
Telshazz choramingou novamente. Não queria dizer a seu mestre cruel a verdade,
mas não se atreveria a desobedecer.
— Não, mestre, não na torre — o pequeno demônio sussurrou.
— Não! — Errtu rugiu. — Onde está?
— Al Dimeneira o jogou longe.
— Jogou?
— Através dos planos, mestre misericordioso! — Telshazz choramingou. — Com
toda a sua força!
— Através dos próprios planos da existência! — Errtu rosnou.
— Tentei detê-lo, mas...
A cabeça com chifres avançou de repente. As palavras de Telshazz gorgolejaram
indecifráveis quando a boca canina de Errtu rasgou sua garganta.


Muito além da escuridão do Abismo, Crenshinibon caiu no mundo. Lá no alto das
montanhas ao norte de Faerûn, o Fragmento de Cristal, a derradeira perversão,
acomodou-se no meio da neve de um vale em formato de tigela.
E esperou.
Parte 1

O Medo Inspirador

SE PUDESSE ESCOLHER QUE VIDA TERIA, seria a vida que tenho agora, neste
momento. Estou em paz e, no entanto, o mundo ao meu redor se revolve com a
turbulência, com a ameaça sempre presente de invasões bárbaras e guerras dos
goblins, com iétis da tundra e gigantescos vermes polares. A realidade da existência
aqui no Vale do Vento Gélido é realmente dura, um ambiente implacável, onde um
erro pode (e vai) custar sua vida.
Essa é a alegria do lugar, o estar à beira do desastre sem ser por causa da traição,
como era no meu antigo lar em Menzoberranzan. Eu posso aceitar os riscos do Vale
do Vento Gélido. Posso me divertir com eles e usá-los para manter meus instintos
de guerreiro afiados. Eu posso usá-los para me lembrar todos os dias da alegria
gloriosa da vida. Não há complacência aqui, neste lugar onde a segurança não pode
ser tida como certa, onde uma curva do vento pode acumular neve sobre sua cabeça,
onde um único passo em falso num barco pode colocá-lo na água que irá roubar seu
fôlego e tornar músculos inúteis em meros segundos, ou um simples lapso na tundra
pode colocá-lo na barriga de um iéti feroz.
Quando se vive com a morte tão perto, aprecia-se a vida ainda mais.
E quando você compartilha essa vida com amigos como aqueles que conheci nos
últimos anos, você conhece o paraíso. Nunca teria imaginado em meus anos em
Menzoberranzan, ou nas cavernas do Subterrâneo nem mesmo quando cheguei à
superfície pela primeira vez, que me cercaria de amigos como esses. Eles são de
raças diferentes, todos os três, e todos diferentes de mim; no entanto, são mais
parecidos com o que está em meu coração do que qualquer um que já conheci,
exceto, talvez, pelo meu pai Zaknafein e pelo ranger Montólio, que me treinou nos
caminhos de Mielikki.
Eu conheci muitas pessoas aqui em Dez-Burgos, na terra selvagem do Vale do
Vento Gélido, que me aceitam apesar de ser um elfo negro. Ainda assim, esses três,
acima de todos os outros, se tornaram uma família para mim.
Por que eles? Por que Bruenor, Regis e Cattibrie acima dos outros, três amigos que
eu valorizo tanto quanto Guenhwyvar, minha companheira por todos esses anos?
Todos conhecem Bruenor por ser ríspido – é a marca registrada de muitos anões,
mas em Bruenor, a característica é pura. Ou é o que ele quer que todos acreditem.
Mas eu o conheço bem. Conheço o outro lado de Bruenor, o lado oculto, aquele
lugar macio e aconchegante. Sim, ele tem um coração, embora se esforce para
enterrá-lo! Ele é ríspido, sim, especialmente ao criticar. Ele fala de erros sem
desculpas e sem julgamento, dizendo apenas a verdade crua e deixando ao outro
corrigir ou não a situação. Bruenor nunca permite que tato ou empatia atrapalhem
sua maneira de dizer ao mundo como ele pode ser melhor!
Porém, essa é apenas metade da história sobre o anão, no outro lado da moeda, ele
está longe de ser ríspido. Em relação a elogios, Bruenor não é desonesto, apenas
quieto.
Talvez seja por isso que eu o ame. Vejo nele o próprio Vale do Vento Gélido: frio,
duro e implacável, mas, no fim das contas, honesto. Ele me mantém no meu melhor
o tempo todo e, ao fazer isso, me ajuda a sobreviver neste lugar. Há apenas um Vale
do Vento Gélido e apenas um Bruenor Martelo de Batalha, e se alguma vez eu
encontrei uma criatura e uma terra criadas uma para a outra...
Por outro lado, para mim, Regis se ergue (ou, mais apropriadamente, se reclina)
como um lembrete dos objetivos e recompensas de um trabalho bem feito – não que
seja Regis a fazê-lo. Regis lembra a mim, e talvez também a Bruenor, que há mais
na vida do que responsabilidade, que há momentos para relaxar e apreciar
pessoalmente as recompensas trazidas pelo bom trabalho e pela vigilância. Ele é
mole demais para a tundra, redondo demais na barriga e lento demais nos pés. Suas
habilidades de combate não são boas o suficiente e ele não consegue rastrear um
rebanho de caribus na neve fresca. Porém ele sobrevive e até mesmo prospera aqui
com inteligência e atitude, com uma compreensão melhor do que a de Bruenor,
melhor até do que a minha, de como apaziguar e agradar aqueles que o rodeiam, de
como se antecipar, em vez de apenas reagir, aos movimentos dos outros. Regis não
sabe apenas o que as pessoas fazem, mas sabe por que elas o fazem, e essa
habilidade de entender a motivação das pessoas permitiu que ele enxergasse além
da cor da minha pele e da reputação de meu povo. Se Bruenor é honesto ao
expressar suas observações, então Regis é honesto ao seguir o curso de seu coração.
Por fim, Cattibrie, maravilhosa e cheia de vida. Cattibrie é o lado oposto da minha
moeda, um raciocínio diferente para chegar às mesmas conclusões. Somos almas
gêmeas que veem e julgam coisas diferentes no mundo para chegar ao mesmo lugar.
Talvez assim nós nos validemos mutuamente. Talvez ao ver Cattibrie chegando ao
mesmo lugar que eu, sabendo que chegou lá por uma estrada diferente, isso me diz
que segui meu coração de verdade. Será que é isso? Será que eu confio nela mais do
que em mim?
A pergunta não é nem uma acusação aos meus sentimentos, nem autoincriminação.
Compartilhamos crenças sobre como o mundo é e como o mundo deveria ser. Ela
está alinhada com o meu coração assim como Mielikki, e se eu encontrei minha
deusa ao olhar honestamente para meu próprio coração, assim também encontrei
minha mais querida amiga e aliada.
Eles estão comigo, todos os três, e Guenhwyvar, minha querida Guenhwyvar,
também. Estou vivendo em uma terra de extrema beleza e realidade rústica, um
lugar onde você tem que ser cauteloso e alerta e em seu melhor em todos os
momentos.
Eu o chamo de paraíso.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 1

O Fantoche

QUANDO A CARAVANA DE MAGOS da Torre Central do Arcano viu o pico


coberto de neve do Sepulcro de Kelvin subindo no horizonte plano, eles ficaram
bastante aliviados. A difícil jornada de Luskan até o remoto assentamento de
fronteira conhecido como Dez-Burgos levara mais de três semanas.
A primeira semana não tinha sido muito difícil. A tropa manteve-se perto da Costa
da Espada e, embora estivessem viajando ao longo dos trechos mais ao norte dos
Reinos, as brisas de verão que sopravam do Mar sem Rastros eram bastante
confortáveis.
Mas quando contornaram os esporões ocidentais da Espinha do Mundo, a
cordilheira considerada por muitos como o limite norte da civilização, e chegaram
ao Vale do Vento Gélido, os magos logo entenderam porque haviam sido
aconselhados a não fazer essa viagem. O Vale do Vento Gélido, mil quilômetros
quadrados de tundra estéril e quebrada, fora descrito como uma das terras mais
inóspitas de todos os Reinos, e, em apenas um dia de viagem no lado norte da
Espinha do Mundo, Eldeluc, Dendybar, o Manchado, e os outros magos de Luskan
consideraram a reputação muito bem merecida.
Rodeado por montanhas intransponíveis ao sul, uma geleira em expansão a leste e
um mar inavegável com inúmeros icebergs ao norte e a oeste, só era possível chegar
no Vale do Vento Gélido através do desfiladeiro entre a Espinha do Mundo e a
costa, uma trilha raramente usada por qualquer um além dos mais resistentes dos
comerciantes.
Pelo resto de suas vidas, duas lembranças ficariam claras nas mentes dos magos
sempre que pensassem sobre essa viagem, dois fatos da vida no Vale do Vento
Gélido que os viajantes nunca se esqueciam. O primeiro era o gemido infinito do
vento, como se a própria terra gemesse continuamente em tormento. E o segundo
era o vazio do vale, quilômetros e quilômetros de linhas de horizonte cinzentas e
marrons.
O destino da caravana marcava as únicas características variáveis em todo o vale –
dez cidades pequenas posicionadas ao redor dos três lagos da região sob a sombra
da única montanha, o Sepulcro de Kelvin. Como todos que vinham a essa terra
dura, os magos procuravam a arte de Dez-Burgos, as belas esculturas feitas dos
ossos da cabeça das trutas cabeça-dura que nadavam nas águas dos lagos.
Alguns dos magos, porém, tinham ganhos mais desonestos em mente.

A facilidade com que a adaga fina escorregou pelas dobras do manto do homem
mais velho e penetrou mais fundo na carne enrugada maravilhou o jovem.
Morkai, o Rubro, virou-se para seu aprendiz, os olhos fixos em uma expressão
arregalada e pasma diante da traição do homem que criara como filho durante um
quarto de século.
Akar Kessell soltou a adaga e se afastou de seu mestre, horrorizado pelo homem
mortalmente ferido ainda estar de pé. Ficou sem espaço para fugir, trombando na
parede traseira da pequena cabana que os magos de Luskan receberam como
alojamento pela cidade anfitriã de Refúgio Leste. Kessell tremeu, refletindo sobre
as consequências que enfrentaria à luz da possibilidade cada vez maior dos talentos
mágicos do velho terem encontrado uma maneira de derrotar a própria morte.
Que destino terrível seu mentor lhe imporia por sua traição? Que tormentos
mágicos um mago poderoso como Morkai evocaria para superar a mais angustiante
das torturas comuns?
O velho manteve seu olhar firme em Akar Kessell, mesmo quando a luz começou a
desaparecer de seus olhos agonizantes. Ele não perguntou o porquê, sequer
questionou Kessell sobre os possíveis motivos. Ele sabia que havia ganho de poder
envolvido em algum lugar – era sempre o caso em tais traições. O que o confundiu
foi o instrumento, não o motivo. Kessell? Como Kessell, o aprendiz desajeitado
cujos lábios gaguejantes mal conseguiam evocar os truques mais simples, esperava
lucrar com a morte do único homem que lhe algo além de uma consideração
educada?
Morkai, o Rubro, caiu morto. Aquela foi uma das poucas perguntas para a qual
nunca encontrou resposta.
Kessell ficou apoiado na parede, precisando de um apoio tangível, e continuou a
tremer por longos minutos. Aos poucos, a confiança que o colocara nessa posição
perigosa voltou a crescer dentro dele. Agora, ele era o chefe. Eldeluc, Dendybar, o
Manchado, e os demais magos da caravana haviam dito isso. Com seu mestre
morto, ele, Akar Kessell, receberia sua própria câmara de meditação e seu próprio
laboratório de alquimia na Torre Central do Arcano em Luskan.
Eldeluc, Dendybar, o Manchado, e os outros haviam dito isso.

— Está feito? — o homem corpulento perguntou quando Kessell entrou no beco


escuro designado como o ponto de encontro.
Kessell assentiu ansiosamente.
— O mago de Luskan de vestes vermelhas não conjurará novamente! — ele
proclamou, alto demais para o gosto de seus companheiros conspiradores.
— Fale baixo, seu tolo — Dendybar, o Manchado, um homem de aparência frágil
escondido nas sombras do beco, exigiu na voz monótona que sempre usava.
Dendybar raramente falava e nunca exibia qualquer emoção quando o fazia. Estava
sempre oculto sob o capuz puxado de seu manto. Havia algo uma frieza em
Dendybar que enervava a maioria das pessoas que o conheciam. Apesar do mago
ser fisicamente o menor e menos imponente homem da caravana mercante que
fizera a jornada de quase seiscentos e cinquenta quilômetros até o assentamento
fronteiriço de Dez-Burgos, Kessell temia-o mais do que a qualquer um dos outros.
— Morkai, o Rubro, meu antigo mestre, está morto — reiterou Kessell em voz
baixa. — Akar Kessell, neste dia em diante conhecido como Kessell, o Rubro, é
agora nomeado para a Guilda de Magos de Luskar!
— Calma, amigo — disse Eldeluc, colocando uma mão reconfortante no ombro
nervoso de Kessell. — Haverá tempo para uma coroação adequada quando
retornarmos. — Ele sorriu e piscou para Dendybar por trás da cabeça de Kessell.
A mente de Kessell estava girando, perdida em uma busca sonhadora por todas as
ramificações de sua nomeação pendente. Nunca mais seria insultado pelos outros
aprendizes, garotos muito mais jovens que ele que subiam nas fileiras da guilda
tediosamente, passo a passo. Agora, mostrariam respeito, pois ele saltaria além
daqueles que o ultrapassaram nos primeiros dias de seu aprendizado, para a honrosa
posição de mago.
Enquanto seus pensamentos sondavam todos os detalhes dos próximos dias, o rosto
radiante de Kessell subitamente se desfez. Ele virou-se bruscamente para o homem
ao seu lado, o rosto tenso como se tivesse descoberto um erro terrível. Eldeluc e
vários outros no beco ficaram inquietos. Todos compreendiam plenamente as
consequências se o arquimago da Torre Central do Arcano soubesse de seus atos
assassinos.
— O manto? — Kessell perguntou. — Eu deveria ter trazido o manto vermelho?
Eldeluc não pôde conter sua risada aliviada, mas Kessell simplesmente considerou-
a um gesto reconfortante de seu amigo recém-feito.
“Deveria saber que algo tão trivial o faria ter esse ataque”, pensou Eldeluc para si
mesmo. Para Kessell, falou:
— Não tema quanto a isso. Há muitas vestes na Torre. Pareceria um pouco suspeito,
não acha, se você aparecesse na porta do arquimago reivindicando a vaga vazia de
Morkai, o Rubro, e segurando a mesma roupa que o bruxo assassinado usava
quando foi morto?
Kessell pensou por um momento, depois concordou.
— Talvez — continuou Eldeluc — você não deva usar o manto vermelho.
Os olhos de Kessell se estreitaram em pânico. Suas antigas dúvidas, que o
assombravam todos os seus dias desde a infância, começaram a borbulhar dentro
dele. O que Eldeluc estava dizendo? Iriam mudar de ideia e não lhe atribuiriam o
lugar que ele conquistara por direito?
Eldeluc tinha usado a sua declaração ambígua como uma provocação, mas ele não
queria deixar Kessell em um perigoso estado de dúvida. Com uma segunda
piscadela para Dendybar, que por dentro estava apreciando este jogo, ele respondeu
à pergunta não formulada do pobre coitado.
— Só quis dizer que talvez uma cor diferente seria melhor para você. Azul
combinaria com seus olhos.
Kessell gargalhou de alívio.
— Talvez — ele concordou, os dedos girando nervosamente.
De repente, Dendybar se cansou da farsa. Fez sinal para que seu companheiro
corpulento se livrasse do pequeno e irritante miserável.
Eldeluc obedientemente levou Kessell de volta pelo beco.
— Agora, vamos de volta aos estábulos — ele instruiu. — Diga ao mestre que os
magos irão partir para Luskan esta noite mesmo.
— E o corpo? — Kessell perguntou.
Eldeluc sorriu maliciosamente.
— Deixe-o. Esta cabana é reservada para a visita de mercadores e dignitários do
sul. Provavelmente permanecerá vazia até a próxima primavera. Outro assassinato
nesta parte do mundo causará pouca empolgação, garanto, e mesmo que as pessoas
boas de Refúgio Leste decifrassem o que aconteceu, elas são sábias o suficiente
para cuidar de seus próprios negócios e deixar os assuntos dos magos com os
magos!
O grupo de Luskan saiu na direção da luz do sol minguante na rua.
— Agora saia! — Eldeluc ordenou. — Nos procure quando o sol se por.
Ele observou enquanto Kessell saía correndo como um garotinho contente.
— Que sorte encontrar uma ferramenta tão conveniente — observou Dendybar. —
O estúpido aprendiz evitou muitos problemas. Duvido que tivéssemos encontrado
uma maneira de chegar àquele velho astuto. Embora só os deuses saibam o porquê,
Morkai sempre teve um fraco por seu aprendiz miserável!
— Fraco o suficiente para a ponta de uma adaga! — riu uma segunda voz.
— E um cenário tão conveniente — observou outra. — Corpos sem explicação são
pouco mais que um aborrecimento para as faxineiras neste posto incivilizado.
O corpulento Eldeluc riu alto. A horrível tarefa fora enfim concluída; eles
poderiam, finalmente, deixar esta extensão estéril de deserto congelado e voltar para
casa.

O passo de Kessell era vigoroso enquanto atravessava a aldeia de Refúgio Leste até
o celeiro onde os cavalos dos magos estavam guardados. Ele sentiu que se tornar
um mago mudaria todos os aspectos de sua vida diária, como se alguma força
mística tivesse sido infundida em seus talentos antes incompetentes.
Ele formigava em antecipação ao poder que seria dele. Um gato de rua cruzou-se
diante dele, olhando-o cauteloso enquanto passeava.
Estreitando os olhos, Kessell prestou atenção em volta para ver se alguém estava
vigiando.
— Por que não? — murmurou.
Apontando um dedo mortal para o gato, proferiu as palavras de comando para
invocar uma explosão de energia. O espetáculo fez felino nervoso disparar, mas
nenhum raio mágico bateu nele, ou mesmo perto dele.
Kessell olhou para o dedo chamuscado e se perguntou o que fizera de errado.
Mas ele não estava completamente desanimado. Sua própria unha enegrecida era o
efeito mais forte que ele já havia obtido daquele feitiço em particular.
CAPÍTULO 2

Nas Margens de Maer Dualdon

REGIS, O HALFLING, o único da sua espécie por centenas de quilômetros em


qualquer direção, entrelaçou os dedos atrás da cabeça e recostou-se no cobertor de
musgo do tronco da árvore. Regis era baixo, mesmo pelos padrões de sua raça
diminuta, a cabeça decorada de cachos castanhos mal atingindo a marca de noventa
centímetros, mas sua barriga estava amplamente fortalecida pelo seu amor por uma
boa refeição, ou várias, conforme as oportunidades se apresentassem.
O bastão torto que lhe servia de vara de pesca erguia-se acima dele, apertado entre
dois dedos de seus pés peludos e arqueando-se sobre o lago silencioso, espelhado
perfeitamente na superfície vítrea de Maer Dualdon. Ondulações suaves passavam
pela imagem enquanto o flutuador vermelho de madeira começava a dançar
levemente. A linha tinha flutuado em direção à costa e se pendurado frouxamente
na água, então Regis não podia sentir o peixe mordiscando a isca. Em segundos, o
anzol foi limpo sem capturar nada, mas o halfling não sabia e levaria horas até que
se desse ao trabalho de verificar. Não que ele se importasse, de qualquer maneira.
Era uma viagem de lazer, não trabalho. Com o inverno chegando, Regis percebeu
que poderia ser sua última excursão do ano ao lago; ele não pescava no inverno,
como alguns dos humanos fanaticamente gananciosos de Dez-Burgos. Além disso,
o halfling já tinha marfim estocado de capturas de outras pessoas para mantê-lo
ocupado por todos os sete meses de neve. Ele era mesmo um crédito para sua raça
menos que ambiciosa, esculpindo um pouco de civilização em uma terra onde
nenhuma existia, a centenas de quilômetros do assentamento mais remoto que
poderia ser chamado de cidade. Outros halflings nunca chegavam tão ao norte,
mesmo durante os meses de verão, preferindo o conforto dos climas do sul. Regis
também teria alegremente empacotado seus pertences e retornado para o sul, exceto
por um pequeno problema com um certo mestre de uma proeminente guilda de
ladrões.
Um bloco de dez centímetros do “ouro branco” estava ao lado do halfling
recostado, junto com vários instrumentos delicados de entalhar. O começo do
focinho de um cavalo marcava a forma quadrada do bloco. Regis pretendia
trabalhar na peça enquanto pescava.
Regis pretendia fazer muitas coisas.
— Um dia belo demais — racionalizou, uma desculpa que nunca se tornava
obsoleta para ele. Porém, ao contrário de tantas outras ocasiões, dessa vez realmente
tinha credibilidade. Era como se os demônios do tempo que moldavam aquela terra
cruel à sua vontade de ferro estivessem de folga, ou talvez apenas reunindo forças
para um inverno brutal. O resultado foi um dia de outono adequado para as terras
civilizadas ao sul. Um dia raro, na verdade, para a terra que veio a ser chamada de
Vale do Vento Gélido, um nome merecido pelas brisas orientais que pareciam soprar
sempre, trazendo consigo o ar gelado da Geleira Reghed. Mesmo nos poucos dias
em que o vento mudava, o alívio era pouco, porque Dez-Burgos era cercada a norte
e a oeste por quilômetros de tundra vazia e depois mais gelo, o Mar de Gelo Móvel.
Apenas a brisa do sul prometia algum alívio e qualquer vento que tentasse alcançar
essa área desolada vindo daquela direção era geralmente bloqueado pelos altos
cumes da Espinha do Mundo.
Regis conseguiu manter os olhos abertos por um tempo, espiando por entre os
galhos fofos dos abetos as nuvens brancas e macias que navegavam pelo céu na
brisa suave. O sol chovia calor dourado e o halfling de vez em quando ficava
tentado a tirar o colete. Porém, sempre que uma nuvem bloqueava os raios quentes,
Regis lembrava que Eleint era na tundra. Em um mês, haveria neve. Em dois, as
estradas a oeste e a sul de Luskan, a cidade mais próxima de Dez-Burgos, estariam
intransponíveis para qualquer um, exceto os robustos ou os tolos.
Regis olhou através da longa baía que se estendia ao redor de seu pequeno buraco
de pesca. O resto de Dez-Burgos também aproveitava o clima; os barcos de pesca
saíam em grande número, brigando e desviando uns dos outros para encontrar seus
pontos especiais de pesca. Não importava quantas vezes a houvesse testemunhado,
a ganância dos humanos sempre surpreendia Regis. De volta à terra meridional de
Calimshan, o halfling estava escalando rapidamente para se tornar Mestre
Associado em uma das mais proeminentes guildas de ladrões na cidade portuária de
Porto Calim. Mas, como imaginara, a ganância humana interrompeu sua carreira.
Seu Chefe de Guilda, Pasha Pook, possuía uma maravilhosa coleção de rubis – uma
dúzia, pelo menos – cujas facetas eram tão engenhosamente cortadas que pareciam
lançar um feitiço quase hipnótico sobre qualquer um que as visse. Regis se
encantava com as pedras cintilantes sempre que Pook as exibia e, afinal, só havia
pego uma. Até hoje, o halfling não conseguia entender por que Pasha, que tinha
pelo menos outras onze, ainda estava tão zangado com ele.
— Ai da ganância dos humanos — Regis dizia sempre que os homens do Pasha
apareciam na cidade em que o halfling estabelecera residência, obrigando-o a
esticar seu exílio para uma terra ainda mais remota. Mas ele não precisara dessa
frase por um ano e meio, desde que chegara a Dez-Burgos. Os braços de Pook eram
longos, mas esse assentamento de fronteira, no meio da terra mais inóspita e
indomável que se possa imaginar, estava em um caminho ainda mais longo, e Regis
estava bem contente com a segurança de seu novo santuário. Havia riqueza aqui, e
para os ágeis e talentosos o suficiente para serem escultores, capazes de transformar
o osso parecido com marfim da truta cabeça dura em uma escultura artística, havia
uma vida confortável para se ganhar com uma quantidade mínima de trabalho.
E com a arte de Dez-Burgos tornando-se rapidamente a sensação do sul, o halfling
pretendia se livrar de sua letargia habitual e transformar seu novo ofício em um
negócio bem-sucedido.
Algum dia.

Drizzt Do’Urden trotou silenciosamente, as botas macias e baixas quase não


perturbando a poeira. Ele manteve o capuz de seu manto marrom puxado para baixo
sobre as ondas fluidas de seu cabelo branco e se movia tão graciosamente, com tão
pouco esforço, que um observador poderia achar que ele era apenas uma ilusão, um
truque óptico do mar marrom da tundra.
O elfo negro apertou mais a capa ao seu redor. Ele se sentia tão vulnerável à luz do
sol quanto um humano se sentiria na escuridão da noite. Mais de meio século
vivendo quilômetros abaixo do chão não se apagou com os vários anos na superfície
iluminada pelo sol. Até hoje, a luz do sol o drenava e o deixava tonto.
Mas Drizzt viajara durante toda a noite e fora incentivado a continuar. Já estava
atrasado para o encontro com Bruenor no vale do anão, e vira os sinais.
As renas haviam começado a migração de outono para o sudoeste até o mar, mas
nenhum rastro humano seguiu o rebanho. As cavernas ao norte de Dez-Burgos,
sempre uma parada para os bárbaros nômades em seu caminho de volta para a
tundra, não tinham sido sequer reabastecidas para serem usadas pelas tribos na
longa jornada. Drizzt entendia as implicações. Na vida bárbara normal, a
sobrevivência das tribos dependia do acompanhamento do rebanho de renas. O
aparente abandono de suas tradições era bem perturbador.
E Drizzt ouvira os tambores de batalha.
O retumbar sutil rolava sobre a planície vazia como um trovão distante, em padrões
reconhecíveis apenas para as outras tribos bárbaras. Mas Drizzt sabia o que
profetiza. Ele era um observador que compreendia o valor do conhecimento sobre
aliados ou inimigos, e usara com frequência sua destreza furtiva para observar as
rotinas diárias e as tradições dos orgulhosos nativos de Vale do Vento Gélido, os
bárbaros.
Drizzt acelerou o passo, forçando-se até os limites de sua resistência. Em cinco
anos, havia passado a se importar com o aglomerado de aldeias conhecido como
Dez-Burgos e com as pessoas que lá viviam. Como muitos dos outros párias que se
estabeleceram ali, o drow não fora bem-vindo em nenhum outro lugar dos Reinos.
Mesmo ali era apenas tolerado pela maioria, mas, no parentesco silencioso de
colegas renegados, poucas pessoas o incomodavam. Ele teve mais sorte do que a
maioria; encontrou alguns amigos que olhavam além de sua herança e viam seu
verdadeiro caráter.
Ansioso, o elfo negro apertou os olhos na direção do Sepulcro de Kelvin, a
montanha solitária que marcava a entrada do vale rochoso dos anões entre Maer
Dualdon e Lac Dinneshere. Mas seus olhos violeta, orbes maravilhosos que
rivalizavam com os de uma coruja à noite, não conseguiam penetrar o borrão da luz
diurna o suficiente para medir a distância.
Abaixou a cabeça sob o capuz de novo, preferindo uma corrida cega à tontura da
exposição prolongada ao sol, e afundou de volta nos sonhos sombrios de
Menzoberranzan, a cidade sem luz do submundo de seus ancestrais. Na verdade, os
elfos drow já tinham caminhado no mundo da superfície, dançando sob o sol e as
estrelas com seus primos de pele clara. Mas os elfos negros eram assassinos mal-
intencionados, maliciosos e sem emoções, além da tolerância até mesmo de seus
parentes que normalmente não julgavam ninguém. Na inevitável guerra das nações
élficas, os drow foram empurrados para as entranhas do solo. Lá, encontraram um
mundo de segredos obscuros e magia negra e se contentaram. Ao longo dos séculos,
floresceram e se fortaleceram mais uma vez, sintonizando-se com magias
misteriosas. Tornaram-se mais poderosos do que até mesmo seus primos que viviam
na superfície, cujas relações com as artes arcanas sob o calor vivificante do sol eram
um passatempo, não uma necessidade.
Como raça, porém, os drow perderam todo o desejo de ver o sol e as estrelas. Tanto
seus corpos quanto suas mentes se adaptaram às profundezas e, felizmente para
todos os que moravam sob o céu aberto, os malignos elfos negros estavam
contentes em permanecer onde estavam, ressurgindo vez ou outra para atacar e
saquear. Até onde Drizzt sabia, era o único do seu tipo vivendo na superfície. Tinha
aprendido a ter alguma tolerância à luz, mas ainda sofria as fraquezas hereditárias
que ela transmitia à sua espécie.
No entanto, mesmo considerando sua desvantagem sob condições diurnas, Drizzt
ficou indignado com seu próprio descuido quando dois iétis da tundra, com pelagem
desgrenhada ainda colorida no marrom do verão, surgiram de repente diante dele.

Uma bandeira vermelha ergueu-se do convés de um dos barcos de pesca,


sinalizando uma captura. Regis observou-a enquanto ela se erguia cada vez mais
alto.
— Uma de mais de um metro — o halfling resmungou com aprovação quando a
bandeira chegou logo abaixo da travessa do mastro. — Vai ter cantoria em alguma
casa hoje à noite!
Um segundo navio correu para o lado do que havia sinalizado a captura, batendo na
embarcação ancorada em sua pressa. As duas equipes imediatamente sacaram suas
armas e se encararam, embora cada uma permanecesse em seu respectivo navio.
Sem nada entre ele e os barcos além da água vazia, Regis ouviu claramente os
gritos dos capitães.
— Você roubou a minha pesca! — o capitão do segundo navio rugiu.
— Você está cansado por ficar tanto tempo na água! — o capitão do primeiro navio
respondeu. — Nunca foi sua! É nosso peixe, fisgado e puxado de forma justa!
Agora vá embora com sua banheira fedorenta antes que a gente tire você da água!
Previsivelmente, a tripulação do segundo navio estava sobre a amurada e
balançando-se antes que o capitão do primeiro navio tivesse terminado de falar.
Regis voltou os olhos para as nuvens; não tinha nenhum interesse na disputa nos
barcos, embora os ruídos da batalha fossem perturbadores. As brigas eram comuns
nos lagos, sempre por causa dos peixes, especialmente se alguém conseguisse um
grande. Em geral, não eram muito sérias, mais bravatas e bloqueios do que
combates reais, e raramente alguém ficava muito ferido ou era morto. Havia
exceções, porém. Em uma escaramuça envolvendo nada menos que dezessete
barcos, três tripulações completas e metade de uma quarta foram mortas e deixadas
flutuando na água ensanguentada. Naquele mesmo dia, aquele lago em particular, o
mais ao sul dos três, teve seu nome alterado de Dellon-lune para Águas Rubras.
— Ah, peixinhos, que problemas vocês trazem — resmungou Regis, ponderando a
ironia da devastação que os peixes prateados causavam nas vidas das pessoas
gananciosas de Dez-Burgos.
Essas dez comunidades deviam sua própria existência à truta cabeça-dura, com suas
cabeças enormes em forma de punho e ossos com a consistência de marfim de boa
qualidade. Os três lagos eram os únicos lugares no mundo onde se sabia que os
peixes valiosos nadavam, e embora a região fosse estéril e selvagem, invadida por
humanóides e bárbaros, ostentando frequentes tempestades que poderiam achatar o
mais resistente dos prédios, a atração da riqueza rápida trouxe pessoas vindas dos
confins dos Reinos.
Porém, da mesma forma que tantos chegavam, outros saíam. Vale do Vento Gélido
era uma terra árida e deserta de clima impiedoso e incontáveis perigos. A morte era
uma visita comum para os aldeões, perseguindo qualquer um incapaz de enfrentar a
dura realidade de Vale do Vento Gélido.
Ainda assim, as cidades haviam crescido consideravelmente no século que se
passara desde a descoberta das trutas. Inicialmente, as nove aldeias nos lagos não
eram mais do que barracos onde indivíduos fronteiriços tinham reivindicado um
buraco de pesca particularmente bom. A décima aldeia, Bryn Shander, embora
agora fosse um assentamento murado e movimentado de vários milhares de
pessoas, tinha sido apenas uma colina vazia ostentando uma cabana solitária onde
os pescadores se reuniam uma vez por ano, trocando histórias e bens com os
comerciantes de Luskan.
Nos primórdios de Dez-Burgos, era raro ver um barco, mesmo um bote a remo
individual, nos lagos de águas frias o bastante para matar em minutos quem tivesse
a infelicidade de cair em qualquer época do ano. Agora, todas as cidades dos lagos
tinham uma frota de navios a vela navegando sob sua bandeira. Só Targos, a maior
das cidades pesqueiras, poderia colocar mais de cem embarcações em Maer
Dualdon, algumas delas escunas de dois mastros com tripulações de dez ou mais.
Um grito mortal soou na direção dos navios em batalha, e o barulho de aço no aço
ecoou alto. Regis se perguntou, e não pela primeira vez, se o povo de Dez-Burgos
não estaria melhor sem o peixe encrenqueiro.
Porém, o halfling precisava admitir que Dez-Burgos tinha sido um paraíso para ele.
Seus dedos experientes e ágeis adaptaram-se facilmente aos instrumentos de
escultor e ele foi eleito porta-voz do conselho de uma das aldeias. Claro, Bosque
Solitário era a menor e mais setentrional das dez cidades, um lugar onde os
renegados dos renegados se escondiam, mas Regis ainda considerava sua nomeação
uma honra. Era conveniente também. Como único verdadeiro escultor de marfim de
Bosque Solitário, Regis era a única pessoa na cidade com motivo ou vontade de
viajar regularmente para Bryn Shander, o principal assentamento e mercado de Dez-
Burgos. Isso mostrou ser um grande benefício para o halfling. Ele se tornou o
principal mensageiro para trazer os produtos dos pescadores de Bosque Solitário ao
mercado, por uma comissão equivalente a um décimo das mercadorias. Isso por si
só o mantinha abastecido o suficiente de marfim para garantir uma vida fácil.
Uma vez por mês, durante a temporada de verão, e uma vez a cada três no inverno
quando o clima permitia, Regis tinha que comparecer às reuniões do conselho e
cumprir suas obrigações como porta-voz. Essas reuniões ocorriam em Bryn Shander
e, embora acontecessem algumas discussões triviais sobre os territórios de pesca
entre as aldeias, geralmente duravam apenas algumas horas. Regis considerava seu
comparecimento um pequeno preço a pagar por manter seu monopólio em viagens
ao mercado.
O combate nos barcos logo terminou, com apenas um homem morto, e Regis
retornou ao prazer silencioso das nuvens navegantes. O halfling olhou por cima do
ombro para as dezenas de cabanas baixas de madeira que pontilhavam as espessas
fileiras de árvores que compunham Bosque Solitário. Apesar da reputação de seus
habitantes, Regis considerava esta cidade a melhor da região. As árvores forneciam
uma medida de proteção contra o vento uivante e boas vigas de canto para as casas.
Apenas a distância de Bryn Shander impedia a cidade de ser um membro mais
proeminente de Dez-Burgos.
Abruptamente, Regis tirou o pingente de rubi de debaixo do colete e ficou olhando
para a maravilha da qual se apropriara de seu ex-mestre a bem mais de mil
quilômetros a sul, em Porto Calim.
— Ah, Pook — ele pensou — Se você pudesse me ver agora.

O elfo levou as mãos para as duas cimitarras embainhadas em seus quadris, mas os
iétis se aproximaram rapidamente. Por instinto, Drizzt girou para a esquerda,
sacrificando o flanco oposto para aceitar a investida do monstro mais próximo. Seu
braço direito ficou indefeso ao seu lado enquanto o iéti o envolvia em seus grandes
braços, mas ele conseguiu manter seu braço esquerdo livre o suficiente para sacar
sua segunda arma. Ignorando a dor do aperto do iéti, Drizzt apoiou o cabo da
cimitarra firmemente contra seu quadril e permitiu que o impulso do segundo
monstro o empalasse na lâmina curva.
Em meio à agonia da morte, o segundo iéti se afastou, levando a cimitarra com ele.
O monstro restante levou Drizzt ao chão sob seu peso. O drow manobrava a mão
livre para evitar que os dentes mortais lhe segurassem a garganta, mas sabia que era
apenas uma questão de tempo até que o inimigo mais forte acabasse com ele.
De repente, Drizzt ouviu um estalo agudo. O iéti estremeceu com força. Sua cabeça
se contorceu estranhamente e uma gota de sangue e cérebro se derramou por cima
de sua testa.
— Tá atrasado, elfo! — veio o som áspero de uma voz familiar. Bruenor Martelo de
Batalha andou até a parte de trás de seu inimigo morto, ignorando o fato do pesado
monstro estar em cima de seu amigo élfico. Apesar do desconforto adicional, o
nariz comprido e pontiagudo do anão, quebrado em vários pontos, e a barba
grisalha, embora ainda inconfundivelmente ruiva, eram uma visão bem-vinda para
Drizzt. — Sabia que ia te encontrar em apuros se saísse pra te procurar!
Sorrindo de alívio e também com os maneirismos do sempre surpreendente anão,
Drizzt conseguiu saiur debaixo do monstro enquanto Bruenor trabalhava para soltar
o machado do crânio espesso.
— A cabeça é dura como carvalho congelado — resmungou o anão. Ele plantou
seus pés atrás das orelhas do iéti e soltou o machado com um poderoso puxão. —
Onde está aquela sua gatinha, afinal?
Drizzt se atrapalhou em sua mochila por um momento e sacou uma pequena
estatueta de ônix de uma pantera.
— Eu dificilmente chamaria Guenhwyvar de “gatinha” — disse ele, com reverência
carinhosa. Ele girou a estatueta nas mãos, sentindo os detalhes intrincados do
trabalho para garantir que não tivesse sido danificada na queda sob o iéti.
— Ah, um gato é um gato! — insistiu o anão. — E por que não está aqui quando
você precisa?
— Mesmo um animal mágico precisa descansar — explicou Drizzt.
— Ah — Bruenor voltou a gritar. — Com certeza é um dia triste quando um drow,
um ranger ainda por cima, for pego de guarda baixa em uma planície aberta por
dois iétis da tundra! — Bruenor lambeu a lâmina manchada do machado e cuspiu
com nojo.
— Animais imundos! — ele resmungou. — Não posso nem comer as malditas
coisas! — Bateu o machado no chão para limpar a lâmina e saiu pisando duro em
direção ao Sepulcro de Kelvin.
Drizzt colocou Guenhwyvar de volta na mochila e foi recuperar a cimitarra no outro
monstro.
— Vamos, elfo — repreendeu o anão. — Ainda temos muita estrada a percorrer!
Drizzt sacudiu a cabeça e limpou a lâmina manchada de sangue no pêlo do monstro
abatido.
— Vamos lá, Bruenor Martelo de Batalha — ele sussurrou sob seu sorriso. — E
saiba que todos os monstros ao longo de nossa trilha marcarão bem sua passagem e
manterão suas cabeças escondidas em segurança.
CAPÍTULO 3

O Salão do Hidromel

MUITOS QUILÔMETROS AO NORTE DE DEZ-BURGOS, do outro lado da


tundra sem trilhas, no extremo norte de todos os Reinos, as geadas do inverno já
tinham endurecido o chão em um esmalte de pontas brancas. Não havia montanhas
ou árvores para bloquear a fria mordida do implacável vento oriental, carregando o
ar gelado da Geleira Reghed. Os grandes icebergs do Mar de Gelo Móvel passavam
lentamente, o vento uivando por entre seus cumes altos em um sombrio lembrete da
estação que se aproximava. No entanto, as tribos nômades que ali passavam o verão
com as renas não tinham viajado com a migração do rebanho para o sudoeste ao
longo da costa até o mar mais hospitaleiro no lado sul da península.
A lisura inabalável do horizonte era quebrada em um pequeno canto por um
acampamento solitário, o maior aglomerado de bárbaros tão ao norte em mais de
um século. Para acomodar os líderes das respectivas tribos, várias tendas de pele de
veado foram dispostas em um padrão circular, cada uma englobada em seu próprio
círculo de fogueiras. No centro deste círculo, um enorme salão de pele de veado foi
construído, projetado para abrigar todos os guerreiros. Os membros das tribos
chamavam-no de Hengorot, “O Salão do Hidromel”, e, para os bárbaros do norte,
era um lugar de reverência, onde comida e bebida eram compartilhadas em brindes
a Tempus, o Deus da Batalha.
As fogueiras do lado de fora do salão queimavam baixas esta noite, pois o Rei
Heafstaag e a Tribo do Alce, os últimos a chegar, eram esperados no acampamento
antes do pôr da lua. Todos os bárbaros que já estavam no acampamento haviam se
reunido em Hengorot e começado as festividades pré-conselho. Grandes garrafões
de hidromel espalhavam-se em todas as mesas, e disputas bem-humoradas de força
brotavam com frequência crescente. Embora as tribos muitas vezes guerreassem
umas com as outras, em Hengorot todas as diferenças eram postas de lado.
O rei Beorg, um homem robusto, com madeixas loiras despenteadas, barba se
desbotando em branco e rugas de experiência engastadas em seu rosto bronzeado,
estava em lugar solene na mesa principal. Representando seu povo, estava parado
alto e reto, com os ombros largos orgulhosamente em ângulos retos. Os bárbaros de
Vale do Vento Gélido eram mais altos que o habitante médio de Dez-Burgos em
uma cabeça ou mais, brotando como se quisessem aproveitar as amplas e imensas
extensões da tundra vazia.
Eles eram mesmo muito parecidos com sua terra. Como o chão em que vagavam,
seus rostos barbados eram bronzeados pelo sol e rachados pelo vento constante,
dando-lhes uma aparência endurecida similar a couro, uma máscara inexpressiva e
de maus presságios, que não dava boas-vindas a estrangeiros. Eles desprezavam o
povo de Dez-Burgos, a quem consideravam fracos caçadores de riquezas sem valor
espiritual algum.
No entanto, um desses caçadores de riquezas estava entre eles agora em seu mais
respeitado salão de reuniões. Ao lado de Beorg estava DeBenerzan, o sulista de
cabelos escuros, o único homem na sala nascido e criado fora das tribos bárbaras.
Tímido, DeBenerzan mantinha os ombros curvados enquanto olhava nervosamente
pelo salão. Ele estava bem ciente de que os bárbaros não gostavam muito de
forasteiros e que qualquer um deles, até mesmo o mais jovem participante, poderia
quebrá-lo ao meio com um movimento casual de suas enormes mãos.
— Fique firme! — Beorg instruiu ao sulista. — Essa noite, você levantará jarras de
hidromel com a Tribo do Lobo. Se sentirem o seu medo... — ele deixou o resto não
dito, mas DeBenerzan sabia como os bárbaros lidavam com a fraqueza. O
homenzinho respirou fundo para se acalmar e endireitou os ombros.
No entanto, Beorg também estava nervoso. O rei Heafstaag era seu principal rival
na tundra, comandando uma força tão dedicada, disciplinada e numerosa quanto a
sua. Ao contrário dos costumeiros ataques bárbaros, o plano de Beorg pedia a
conquista total de Dez-Burgos, escravizando os pescadores sobreviventes e vivendo
bem da riqueza que colhiam dos lagos. Beorg viu uma oportunidade para seu povo
abandonar a precária existência nômade e encontrar luxo em uma quantidade
desconhecida até então. Tudo agora dependia do consentimento de Heafstaag, um
rei brutal interessado apenas em glória pessoal e pilhagem triunfante. Mesmo que a
vitória sobre Dez-Burgos fosse alcançada, Beorg sabia que em algum momento
teria que lidar com seu rival, que não abandonaria fácil a fervorosa sede de sangue
que o colocara no poder. Essa era uma ponte que o Rei da Tribo do Lobo
atravessaria mais tarde; a principal questão agora era a conquista inicial, e se
Heafstaag se recusasse a seguir adiante, as tribos menores se dividiriam em suas
alianças entre os dois. A guerra poderia ser iniciada já na manhã seguinte. Isso seria
devastador para todo o seu povo, pois até mesmo os bárbaros que sobrevivessem às
batalhas iniciais enfrentariam uma luta brutal contra o inverno. As renas haviam
partido há muito tempo para as pastagens do sul e as cavernas ao longo da rota não
haviam sido estocadas em preparação. Heafstaag era um líder esperto; ele sabia que,
a essa altura, as tribos estavam comprometidas em seguir o plano inicial, mas Beorg
se perguntou que termos seu rival imporia.
Beorg se consolou com o fato de que nenhum conflito importante surgira entre as
tribos reunidas e, nessa noite, quando todos se encontraram no salão comunal, a
atmosfera era fraternal e jovial, com cada barba em Hengorot coberta de espuma de
bebida. A aposta de Beorg era que as tribos se unissem por um inimigo comum e a
promessa de prosperidade continuada. Tudo correra bem... até então.
Mas o bruto Heafstaag continuava sendo a chave para tudo isso.

As pesadas botas das fileiras de Heafstaag sacudiram o chão sob sua marcha
determinada. O enorme rei de um olho só liderava a procissão, seus grandes e
oscilantes passos característicos dos nômades da tundra. Intrigado com a proposta
de Beorg e cauteloso com o início precoce do inverno, o rei robusto escolhera
marchar direto pelas noites frias, parando apenas por curtos períodos de comida e
descanso. Embora conhecido principalmente por sua feroz habilidade em batalha,
Heafstaag era um líder que pesava cuidadosamente todos os seus movimentos. A
impressionante marcha aumentaria o respeito inicial dado a seu povo pelos
guerreiros das outras tribos, e Heafstaag era rápido em agarrar qualquer vantagem
que pudesse obter.
Não que esperasse algum problema em Hengorot. Ele tinha grande respeito por
Beorg. Duas vezes antes encontrara o Rei da Tribo do Lobo no campo de honra sem
ter uma vitória como sua. Se o plano de Beorg fosse tão promissor quanto parecia
inicialmente, Heafstaag o acompanharia, insistindo apenas em uma participação
igual na liderança com o rei loiro. Ele não se preocupava com a ideia de que os
homens da tribo, uma vez que conquistassem as cidades, pudessem acabar com seu
estilo de vida nômade e se contentar com uma nova vida vendendo trutas, mas
estava disposto a permitir que Beorg tivesse suas fantasias se elas lhe dessem a
emoção da batalha e uma vitória fácil. Deixe a pilhagem ser tomada e o calor
garantido durante o longo inverno antes que ele mudasse o acordo original e
redistribuísse o saque.
Quando as luzes das fogueiras apareceram, a coluna acelerou o passo.
— Cantem, meus orgulhosos guerreiros! — Heafstaag ordenou. — Cantem de
forma calorosa e forte! Que aqueles reunidos tremam com a aproximação da Tribo
do Alce.

Beorg estava de orelha erguida para o som da chegada de Heafstaag. Conhecendo


bem as táticas de seu rival, não ficou surpreso quando as primeiras notas da Canção
a Tempus surgiram da noite. O rei loiro reagiu imediatamente, pulando em uma
mesa e gritando silêncio para o encontro.
— Ouçam, homens do norte! — ele gritou. — Eis o desafio da canção!
Hengorot imediatamente explodiu em comoção quando os homens correram de seus
assentos e correram para se juntar aos grupos de suas respectivas tribos. Cada voz
foi levantada no refrão comum ao Deus da Batalha, cantando feitos de valor e
mortes gloriosas no campo de honra. Os versos eram ensinados a todo menino
bárbaro assim que dissesse suas primeiras palavras, pois a Canção de Tempus era,
na verdade, uma medida da força de uma tribo. A única variação nas palavras de
tribo para tribo era o refrão que identificava os cantores. Ali, os guerreiros
cantavam em um crescendo, porque o desafio da música era determinar qual
chamado ao Deus da Batalha seria mais claramente ouvido por Tempus.
Heafstaag levou seus homens até a entrada de Hengorot. Dentro do salão, os
chamados da Tribo do Lobo estavam obviamente afogando os outros, mas os
guerreiros de Heafstaag empatavam com a força dos homens de Beorg.
Uma a uma, as tribos menores silenciaram-se sob o domínio do Lobo e do Alce. O
desafio se arrastou entre as duas tribos restantes por muitos minutos, nenhum
disposto a renunciar a superioridade aos olhos de seu deus. Dentro do Salão de
Hidromel, homens das tribos vencidas colocavam nervosamente as mãos nas armas.
Mais de uma guerra irrompeu nas planícies porque o desafio da canção não pôde
determinar um vencedor claro.
Finalmente, a aba da tenda se abriu, admitindo o porta-estandarte de Heafstaag, um
jovem alto e orgulhoso, com olhos observadores que pesavam tudo ao seu redor e
desmentiam sua idade. Ele colocou um chifre de osso de baleia nos lábios e soprou
uma nota clara. Simultaneamente, de acordo com a tradição, ambas as tribos
pararam de cantar.
O porta-estandarte atravessou a sala em direção ao rei anfitrião, seus olhos nunca
piscavam ou se afastavam da imponente face de Beorg, embora Beorg pudesse ver a
juventude marcando as feições daquele à sua frente. Heafstaag havia escolhido seu
arauto bem, pensou Beorg.
— Bom rei Beorg — o porta-estandarte começou quando toda a comoção cessou.
— e outros reis reunidos, a Tribo do Alce pede permissão para entrar em Hengorot
e compartilhar o hidromel com vocês, para que possamos nos unir em um brinde a
Tempus.
Beorg estudou o arauto um pouco mais, testando para ver se conseguia abalar a
compostura do jovem com uma demora inesperada.
Mas o arauto não piscou nem desviou o olhar penetrante, e a postura de seu queixo
permaneceu firme e confiante.
— Concedido — respondeu Beorg, impressionado. — E bem-vindo. — Depois,
murmurou baixinho — É uma pena que Heafstaag não tenha a sua paciência.
— Anuncio Heafstaag, rei da Tribo do Alce — gritou o arauto em voz clara. —
filho de Hrothulf, o Forte, filho de Angaar, o Bravo; três vezes assassino do grande
urso; duas vezes conquistador de Termalaine ao sul; aquele que matou Raag
Doning, Rei da Tribo do Urso, em combate com um único golpe... — Esta fala
causou um remexer desconfortável entre a Tribo do Urso, especialmente seu rei,
Haalfdane, filho de Raag Doning. O arauto continuou por muitos minutos, listando
cada ação, cada honra, cada título acumulados por Heafstaag durante sua longa e
ilustre carreira.
Como o desafio da música era a competição entre as tribos, a lista de títulos e
talentos era uma competição pessoal entre homens, especialmente reis, cujo valor e
força refletiam diretamente em seus guerreiros. Beorg temia esse momento, pois a
lista de seu rival excedia até mesmo a dele. Ele sabia que uma das razões pelas
quais Heafstaag havia chegado por último era para que sua lista pudesse ser
apresentada a todos os presentes, homens que tinham ouvido o arauto de Beorg em
audiência privada na ocasião de sua chegada dias antes. Era a vantagem de um rei
anfitrião ter sua lista lida para todas as tribos presentes, enquanto os arautos dos reis
visitantes falavam apenas às tribos presentes na chegada imediata. Ao chegar por
último, numa época em que todas as outras tribos estariam reunidas, Heafstaag
havia apagado essa vantagem.
Por fim, o porta-estandarte terminou e retornou para o outro lado do salão para
segurar a aba da tenda para seu rei. Heafstaag caminhou com confiança por
Hengorot para encarar Beorg.
Se os homens estavam impressionados com a lista de feitos de Heafstaag,
certamente não se decepcionaram com sua aparência. O rei de barba vermelha tinha
quase dois metros de altura, com um tronco em formato de barril que ofuscava até
mesmo o de Beorg. Heafstaag ostentava suas cicatrizes de batalha com orgulho. Um
de seus olhos tinha sido arrancado pelos chifres de uma rena e sua mão esquerda
estava irremediavelmente quebrada por causa de uma briga com um urso polar. O
Rei da Tribo do Alce tinha visto mais batalhas do que qualquer homem na tundra e,
pelo que parecia, estava pronto e ansioso para lutar em muitas outras.
Os dois reis se olharam com dureza, sem piscar nem desviar o olhar por um
momento sequer.
— O Lobo ou o Alce? — Heafstaag fez, por fim, a pergunta apropriada depois de
um desafio da música sem vencedores.
Beorg teve o cuidado de dar a resposta apropriada.
— Um bom encontro e um bom embate — disse. — Deixe que os ouvidos atentos
de Tempus decidam, embora o próprio deus terá dificuldade em fazer tal escolha!
Com as formalidades devidamente cumpridas, a tensão diminuiu no rosto de
Heafstaag. Ele sorriu largamente para o rival.
— Olá, Beorg, rei da Tribo do Lobo. É bom encará-lo e não ver meu próprio sangue
manchando a ponta da sua lança mortal!
As palavras amistosas de Heafstaag pegaram Beorg de surpresa. Ele não poderia
querer um começo melhor para o conselho de guerra. Retornou o elogio com igual
fervor.
— E a mim por não precisar desviar do corte certo de seu machado cruel!
O sorriso deixou de repente o rosto de Heafstaag quando notou o homem de cabelos
escuros ao lado de Beorg.
— Que direito, por bravura ou por sangue, esse fracote sulista tem no salão do
hidromel de Tempus? — o rei de barba ruiva exigiu saber. — O lugar dele é com os
seus, ou com as mulheres, na melhor das hipóteses!
— Acalme-se, Heafstaag — explicou Beorg. — Este é DeBenerzan, um homem de
grande importância para a nossa vitória. É valiosa a informação que ele trouxe para
mim, porque ele morou em Dez-Burgos por dois invernos e mais.
— Então, qual é o papel dele? — Heafstaag pressionou.
— Ele informou — reiterou Beorg.
— Isso é passado — disse Heafstaag. — Que valor ele tem para nós agora?
Certamente, não é capaz de lutar ao lado de guerreiros como os nossos.
Beorg lançou um olhar para DeBenerzan, reprimindo seu próprio desprezo pelo cão
que havia traído seu povo em uma tentativa lamentável de encher seus próprios
bolsos.
— Defenda seu caso, sulista. E que Tempus encontre um lugar em seu campo para
seus ossos!
DeBenerzan tentou futilmente equiparar seu olhar com o olhar de ferro de
Heafstaag. Ele limpou a garganta e falou o mais alto e confiantemente que pôde.
— Quando as cidades forem conquistadas e sua riqueza garantida, você precisará de
alguém que conheça o mercado do sul. Eu sou esse homem.
— A que preço? — rosnou Heafstaag.
— Uma vida confortável — respondeu DeBenerzan. — Uma posição respeitada,
nada mais.
— Ah! — bufou Heafstaag. — Ele traiu aos seus, ele nos trairia! — O rei gigante
arrancou o machado do cinto e andou na direção de DeBenerzan. Beorg fez uma
careta, sabendo que esse momento crítico poderia derrotar todo o plano.
Com a mão mutilada, Heafstaag agarrou o cabelo negro oleoso de DeBenerzan e
puxou a cabeça do homem menor para o lado, expondo a carne de seu pescoço.
Girou o machado com força para o alvo, o olhar fixo no rosto do sulista. Mas
mesmo contra as regras inflexíveis da tradição, Beorg havia ensaiado DeBenerzan
bem para este momento. O homenzinho fora advertido em termos inequívocos de
que, se lutasse, morreria em qualquer caso. Mas se ele aceitasse o golpe e Heafstaag
estivesse apenas testando-o, sua vida provavelmente seria poupada. Reunindo toda
a sua força de vontade, DeBenerzan firmou o olhar em Heafstaag e não recuou ante
a aproximação da morte.
No último momento, Heafstaag desviou o machado, sua lâmina assobiando a um fio
de cabelo da garganta do sulista. Heafstaag soltou o homem de suas mãos, mas
continuou a mantê-lo preso sob o olhar intenso de seu único olho.
— Um homem honesto aceita todos os julgamentos dos reis que escolheu —
declarou DeBenerzan, tentando manter a voz o mais firme possível.
Um brado explodiu de todas as bocas em Hengorot e, quando este morreu,
Heafstaag virou-se para Beorg.
— Quem deve liderar? — o gigante perguntou sem rodeios.
— Quem venceu o desafio da canção? — Beorg respondeu.
— Bem resolvido, bom rei. — Heafstaag saudou seu rival. — Juntos, então, você e
eu, e que nenhum homem conteste nossa liderança!
Beorg assentiu.
— Morte a quem ousar!
DeBenerzan suspirou fundo e moveu as pernas defensivamente. Se Heafstaag, ou
mesmo Beorg, percebesse a poça entre seus pés, sua vida certamente seria perdida.
Ele mexeu as pernas outra vez e olhou ao redor, horrorizado ao ver o olhar do
jovem porta-estandarte. O rosto de DeBenerzan ficou branco em antecipação à sua
humilhação e morte vindouras. O porta-estandarte inesperadamente se virou e sorriu
divertido, mas, em um ato misericordioso sem precedentes para o seu povo bruto,
não disse nada.
Heafstaag jogou os braços para cima, erguendo o olhar e o machado para o teto.
Beorg pegou seu machado no cinto e rapidamente imitou o movimento. “Tempus!”
gritaram em uníssono. Então, olhando um para o outro mais uma vez, acertaram
seus braços com seus machados, molhando as lâminas com seu próprio sangue. Em
um movimento síncrono, eles giraram e lançaram as armas para o outro lado do
salão, cada machado encontrando seu alvo no mesmo barril de hidromel.
Imediatamente, os homens mais próximos pegaram os jarros e correram para pegar
as primeiras gotas derramadas do hidromel abençoado com o sangue de seus reis.
— Tracei um plano para sua aprovação — disse Beorg a Heafstaag.
— Mais tarde, nobre amigo — respondeu o monarca de um olho só. — Que hoje
seja um momento de música e bebida para celebrar a nossa vitória vindoura. — Ele
deu um tapinha no ombro de Beorg e piscou com o único olho. — Fique feliz com a
minha chegada, pois você estava muito despreparado para tal encontro — disse ele
com uma risada sincera. Beorg o olhou com curiosidade, mas Heafstaag deu-lhe
uma segunda piscada grotesca para extinguir suas suspeitas.
De repente, o gigante luxurioso estalou os dedos para um de seus tenentes de
campo, cutucando seu rival com o cotovelo como se fosse deixá-lo entrar na
brincadeira.
— Tragam as moças! — ele ordenou.
CAPÍTULO 4

O Fragmento de Cristal

HAVIA APENAS ESCURIDÃO.


Misericordiosamente, ele não conseguia lembrar o que tinha acontecido, onde
estava. Havia apenas escuridão, a reconfortante escuridão.
Então um calor arrepiante surgiu em suas bochechas, roubando-lhe a tranquilidade
da inconsciência. Aos poucos, foi obrigado a abrir os olhos, mas mesmo quando os
apertou, o brilho ofuscante era intenso demais.
Ele estava de bruços na neve. As montanhas se elevavam sobre ele, os picos
irregulares e as calotas de neve lembrando-o de sua localização. Eles o deixaram na
Espinha do Mundo. Eles o deixaram para morrer.
A cabeça de Akar Kessell latejou quando finalmente conseguiu levantá-la. O sol
brilhava intensamente, mas os ventos frios e turbulentos dissipavam qualquer calor
que os raios brilhantes pudessem transmitir. Sempre era inverno nesses lugares altos
e Kessell usava apenas mantos frágeis para protegê-lo da mordida mortal do frio.
Eles o deixaram para morrer.
Ele se levantou desajeitado, afundado até o joelho naquele pó branco, e olhou ao
redor. Lá embaixo, descendo pelo desfiladeiro profundo em direção ao norte, de
volta para a tundra e as trilhas ao redor das ameaçadores e intransitáveis montanhas,
Kessell viu as manchas pretas que marcavam a caravana dos magos começando sua
longa jornada de volta a Luskan. Eles o haviam enganado. Ele entendia agora que
não passara de um peão em seus projetos desonestos para se livrar de Morkai, o
Rubro.
Eldulac, Dendybar, o Manchado e os outros.
Nunca tiveram a menor intenção de conceder-lhe o título de mago.
— Como pude ser tão estúpido? — Kessell gemeu. Imagens de Morkai, o único
homem que já lhe mostrara algum respeito, passaram pela sua mente numa névoa
de culpa. Ele se lembrou de todas as alegrias que o mago permitira que
experimentasse. Morkai uma vez transformou-o em um pássaro para que ele
pudesse sentir a liberdade de voar; e uma vez em um peixe, para deixá-lo
experimentar o mundo submarino.
E ele havia recompensado aquele homem maravilhoso com uma adaga.
Ao longe nas trilhas, os magos viajantes ouviram o grito angustiado de Kessell
ecoando nas paredes montanhosas.
Eldulac sorriu, satisfeito pelo plano deles ter sido executado com perfeição, e
esporeou o cavalo.

Kessell se arrastou pela neve. Ele não sabia por que estava andando. Não tinha para
onde ir, não tinha como escapar. Eldulac jogara-o numa depressão arredondada
cheia de neve, e com os dedos entorpecidos a ponto de não ter mais tato, não havia
chance de sair dali.
Ele tentou novamente conjurar fogo mágico. Ele ergueu a palma da mão estendida
para o céu e, através dos dentes batendo, pronunciou as palavras de poder.
Nada.
Nem mesmo um fio de fumaça.
Começou a se mover de novo. Suas pernas doíam; podia jurar que vários dos seus
dedos já haviam caído do pé esquerdo. Mas não ousou tirar a bota para verificar sua
suspeita mórbida.
Ele começou a rodear o buraco outra vez, seguindo a mesma trilha que havia
deixado para trás em sua primeira passagem. Abruptamente, percebeu que estava
desviando para o centro da depressão. Ele não sabia o motivo, e em seu delírio, não
parou para tentar entender. O mundo todo se tornara um borrão branco. Um borrão
branco congelado. Kessell sentiu-se cair. Sentiu a mordida gelada da neve em seu
rosto novamente. Sentiu o formigamento que sinalizava o fim da vida de suas
extremidades inferiores.
Então sentiu... calor.
Imperceptível a princípio, mas ficando cada vez mais forte. Algo o chamava. Estava
abaixo dele, enterrado sob a neve, mas mesmo através da barreira congelada,
Kessell sentia o brilho vital de seu calor.
Ele cavou. Orientando visualmente as mãos que não podiam sentir seu trabalho,
cavou por sua vida. E então encontrou algo sólido e sentiu o calor se intensificar.
Lutando para empurrar a neve restante para longe, conseguiu finalmente soltá-lo.
Não conseguia entender o que estava vendo. Culpou o delírio. Em suas mãos
congeladas, Akar Kessell segurava o que parecia ser um pingente de gelo de lados
quadrados. No entanto, calor fluia através dele, e ele sentiu o formigar novamente,
desta vez sinalizando o renascimento de suas extremidades.
Kessell não tinha ideia do que estava acontecendo e não se importava nem um
pouco. Por enquanto, havia encontrado esperança de sobreviver, e isso era o
suficiente. Ele abraçou o Fragmento de Cristal contra o peito e voltou para a parede
rochosa do vale, procurando a área mais protegida possível.
Sob uma pequena saliência, encolhido em uma pequena área onde o calor do cristal
afastara a neve, Akar Kessell sobreviveu à sua primeira noite na Espinha do Mundo.
Seu companheiro era o Fragmento de Cristal, Crenshinibon, uma relíquia antiga,
senciente, que havia esperado ao longo de eras incontáveis para que alguém como
ele aparecesse ali. Desperto outra vez, estava pensando nos métodos que usaria para
controlar a mente fraca de Kessell. Era uma relíquia encantada nos primeiros dias
do mundo, uma perversão perdida por séculos, para tristeza daqueles senhores
malignos que buscavam sua força.
Crenshinibon era um enigma, uma força do mal mais sombrio que extraía sua força
da luz do dia. Era um instrumento de destruição, uma ferramenta para a visão, um
abrigo e um lar para aqueles que o usassem. Mas acima de tudo, entre os poderes de
Crenshinibon estava a força que transmitia ao seu possuidor.
Akar Kessell dormia confortavelmente, sem saber o que lhe acontecera. Sabia
apenas – e só isso importava – que sua vida ainda não estava no fim. Aprenderia as
consequências disso em breve. Entenderia que nunca mais faria o papel de fantoche
para cães pretensiosos como Eldulac, Dendybar, o Manchado e os outros.
Ele se tornaria o Akar Kessell de suas próprias fantasias, e todos se curvariam
diante dele.
— Respeito — murmurou dentro das profundezas do seu sonho, um sonho que
Crenshinibon estava impondo sobre ele.
Akar Kessell, o Tirano do Vale do Vento Gélido.


Kessell despertou para uma alvorada que não imaginara assistir. O Fragmento de
Cristal o havia preservado durante a noite, mas havia feito muito mais do que
simplesmente impedi-lo de morrer congelado. Kessell sentiu-se estranhamente
mudado naquela manhã. Na noite anterior, se preocupara apenas com a extensão de
sua vida, imaginando quanto tempo poderia simplesmente sobreviver. Mas agora
ponderava sobre a qualidade de sua vida. Sobrevivência não era mais uma questão;
ele sentia a força fluindo dentro de si.
Um cervo branco saltou ao longo da borda do buraco de gelo.
— Carne de cervo — Kessell sussurrou em voz alta. Ele apontou um dedo na
direção de sua presa e pronunciou as palavras de comando de um feitiço,
formigando de empolgação ao sentir o poder atravessar seu sangue. Um raio branco
saiu de sua mão e derrubou o cervo.
— Carne de cervo — declarou, levantando mentalmente o animal no ar em sua
direção sem pensar duas vezes no ato, embora telecinese fosse um feitiço que
sequer existia no considerável repertório de Morkai, o Rubro, o único professor de
Kessell. Ganancioso, Kessell não parou para pensar no súbito aparecimento de
habilidades que sentira ser muito acima de sua capacidade, embora o fragmento não
fosse permitir esse pensamento.
Agora ele tinha comida e o calor do fragmento. Ainda assim, um mago deveria ter
um castelo, ele raciocinou. Um lugar onde poderia praticar seus segredos mais
obscuros sem ser perturbado. Ele olhou para o fragmento em busca de uma resposta
para o seu dilema e encontrou um cristal duplicado ao lado do primeiro. Presumiu
que, por instinto (embora, na realidade, fosse outra sugestão subconsciente de
Crenshinibon o guiando), ele entendesse seu papel no cumprimento de seu próprio
pedido. Ele reconhecia o fragmento original do primeiro pelo calor e pela força que
exalava, mas esse segundo também o intrigava, mantendo uma impressionante aura
própria de poder. Ele pegou a cópia do fragmento e levou-a para o centro da
depressão de gelo, colocando-a na neve profunda.
— Ibssum dal abdur — murmurou sem saber o motivo, ou mesmo o que
significava.
Kessell recuou quando sentiu a força dentro da cópia da relíquia começar a se
expandir. Ela capturou os raios do sol e os atraiu para suas profundezas. A área ao
redor caiu em sombras enquanto roubava a própria luz do dia. Ela começou a pulsar
com uma luz interna ritmada.
E começou a crescer.
Ela se alargou na base, quase preenchendo a tigela de gelo, e por um tempo Kessell
temeu ser esmagado contra as paredes rochosas. E, conforme o alargamento do
cristal, sua ponta subiu para o céu da manhã, mantendo as dimensões alinhadas com
sua fonte de energia. Estava completo, ainda uma imagem exata de Crenshinibon,
mas agora de proporções gigantescas.
Uma torre cristalina. De alguma forma – da mesma forma que Kessell sabia
qualquer coisa sobre o Fragmento de Cristal – ele sabia seu nome.
Cryshal-Tirith.

Kessell teria ficado contente, pelo menos por enquanto, em permanecer em Cryshal-
Tirith e se banquetear com os desafortunados animais que vagavam por ali. Ele
viera de uma parca existência entre camponeses acomodados e, embora
externamente se gabasse de aspirações além de seu nível, sentia-se intimidado pelas
implicações do poder. Ele não entendia como ou por que aqueles que ganhavam
destaque haviam subido acima da turba comum, e até mentira para si mesmo,
colocando as realizações dos outros e, inversamente, a falta de sua própria, como
uma escolha aleatória do destino.
Agora que tinha poder ao seu alcance, não tinha noção do que fazer com ele.
Mas Crenshinibon tinha esperado tempo demais para ver seu retorno à vida ser
desperdiçado como um alojamento de caça para um humano insignificante. A falta
de iniciativa de Kessell era, na verdade, um atributo favorável na perspectiva do
artefato. Depois de um tempo, conseguiria persuadir Kessell a seguir quase
qualquer curso de ação com suas mensagens noturnas.
E Crenshinibon tinha esse tempo. A relíquia estava ansiosa para sentir novamente a
emoção da conquista, mas alguns anos não pareciam muito para um artefato criado
no alvorecer do mundo. Ele moldaria o desajeitado Kessell em um representante
adequado de seu poder, transformaria o homem fraco em uma luva de punho de
ferro para entregar sua mensagem de destruição. Fizera o mesmo uma centena de
vezes nas lutas iniciais do mundo, criando e moldando alguns dos oponentes da
ordem mais formidáveis e cruéis em qualquer um dos planos.
Poderia fazê-lo novamente.
Naquela mesma noite, Kessell, dormindo no segundo andar confortavelmente
adornado de Cryshal-Tirith, teve sonhos de conquista. Não campanhas violentas
travadas contra uma cidade como Luskan, nem mesmo na escala da batalha contra
um assentamento fronteiriço, como as aldeias de Dez-Burgos, mas um início menos
ambicioso e mais realista de seu reino. Ele sonhou que tinha forçado uma tribo de
goblins à servidão, usando-os para assumir os papéis de sua equipe pessoal,
atendendo a todas as suas necessidades. Quando acordou na manhã seguinte,
lembrou-se do sonho e descobriu que gostava da ideia.
Mais tarde naquela manhã, Kessell explorou o terceiro andar da torre, uma sala
como todas as outras, feita de cristal liso, mas resistente como pedra, cheia de
dispositivos de vidência. De repente, teve um impulso de fazer um gesto e falar uma
palavra de comando que presumiu ter ouvido na presença de Morkai. Obedeceu a
sensação e observou com espanto quando a dimensão dentro de um dos espelhos da
sala girou em uma névoa cinza. Quando o nevoeiro clareou, uma imagem entrou em
foco.
Kessell reconheceu a área representada como um vale próximo que atravessara
quando Eldulac, Dendybar, o Manchado e os outros o deixaram para morrer. A
imagem da região estava cheia de uma tribo de goblins trabalhando, construindo um
acampamento. Eram nômades, porque bandos de guerra raramente levavam
crianças em seus ataques. Centenas de cavernas pontuavam essas montanhas, mas
não eram numerosas o suficiente para conter as tribos de orcs, goblins, ogros e
monstros ainda mais poderosos. A competição por covis era feroz e as tribos
menores dos goblins eram geralmente forçadas a ficar acima do solo, escravizadas
ou abatidas.
— Que conveniente — Kessell pensou, imaginando se o assunto do seu sonho tinha
sido uma coincidência ou uma profecia. Em outro impulso súbito, enviou sua
vontade através do espelho em direção aos goblins. O efeito o assustou.
Como se fossem um, os goblins se viraram, confusos, na direção da força invisível.
Os guerreiros, apreensivos, sacaram seus porretes e machados de pedra, e as
crianças se amontoaram na parte de trás do grupo.
Um goblin maior, provavelmente o líder, segurando seu porrete diante de si, deu
alguns passos cautelosos à frente de seus soldados.
Kessell coçou o queixo, ponderando a extensão de seu poder recém-descoberto.
— Venha até mim — ele chamou o líder dos goblins. — Você não pode resistir!

Os goblins chegaram ao local pouco tempo depois, permanecendo a uma distância


segura enquanto tentavam descobrir o que era a torre e de onde ela viera. Kessell
deixou-os maravilhar-se com o esplendor da sua nova casa, depois chamou
novamente o chefe, obrigando o goblin a aproximar-se de Cryshal-Tirith.
Contra sua vontade, o grande goblin saiu das fileiras da tribo. Lutando a cada passo,
caminhou até a base da torre. Não via nenhuma porta, pois a entrada para Cryshal-
Tirith era invisível para todos, exceto habitantes de outros planos e aqueles que
Crenshinibon, ou seu portador, permitissem entrar.
Kessell guiou o goblin aterrorizado para o primeiro andar da estrutura. Uma vez lá
dentro, o chefe ficou sem movimento, os olhos se movendo nervosos em busca de
alguma indicação da força avassaladora que o convocara a essa estrutura de cristal
deslumbrante.
O mago (um título legitimamente dado ao possuidor de Crenshinibon, mesmo que
Kessell nunca tivesse conseguido ganhar por seus próprios atos) deixou a criatura
miserável esperar por um tempo, aumentando seu medo. Então, surgiu no topo da
escada através de uma porta espelhada secreta. Olhou para o pobre coitado e
gargalhou de alegria.
O goblin tremeu quando viu Kessell. Sentiu o mago se impor sobre ele mais uma
vez, obrigando-o a ficar de joelhos.
— Quem sou eu? — Kessell perguntou enquanto o goblin prostrava-se e
choramingava. A resposta dele foi arrancada por um poder do qual não conseguia
resistir:
— O mestre!
CAPÍTULO 5

Um Dia

BRUENOR SUBIU A ENCOSTA ROCHOSA com passos medidos, suas botas


encontrando os mesmos apoios que sempre usava quando subia para o ponto alto no
extremo sul do vale dos anões. Para o povo de Dez-Burgos, que muitas vezes via o
anão de pé no parapeito, refletindo, a coluna alta de pedras no cume rochoso que se
limitava o vale passara a ser conhecida como Escalada de Bruenor. Logo abaixo do
anão, a oeste, estavam as luzes de Termalaine e, além delas, as águas escuras de
Maer Dualdon, manchadas ocasionalmente pelas luzes de um barco de pesca cuja
resoluta tripulação recusava-se obstinadamente a desembarcar até fisgar uma truta
cabeça-dura.
O anão estava bem acima do chão da tundra e da estrela mais baixa entre as
incontáveis estrelas brilhantes naquela noite. A cúpula celestial parecia polida pela
brisa fria que soprava desde o pôr do sol, e Bruenor sentia como se tivesse escapado
das amarras da terra.
Neste lugar, encontrava seus sonhos, e eles sempre o levavam de volta para sua
antiga casa. O Salão de Mitral, lar de seus pais e dos pais de seus pais, onde veios
do metal brilhante corriam rica e profundamente e martelos de ferreiros anões
ressoavam em louvor a Moradin e Dumathoin. Bruenor era apenas um menino
imberbe quando seu povo mergulhou fundo demais nas entranhas do mundo e foi
expulso por criaturas sombrias em seus buracos sombrios. Ele era agora o mais
velho sobrevivente de seu pequeno clã e o único dentre eles que havia
testemunhado os tesouros do Salão de Mitral.
Eles tinham feito seu lar no vale rochoso entre os dois lagos mais ao norte muito
antes de qualquer humano além dos bárbaros ter chegado ao Vale do Vento Gélido.
Eles eram uma pobre lembrança do que outrora fora uma próspera sociedade anã,
um bando de refugiados abatidos e destruídos pela perda de seu lar e herança.
Continuavam a diminuir em números, os mais velhos morrendo tanto de tristeza
quanto de velhice. Embora a mineração sob os campos da região fosse boa, os
anões pareciam destinados a desaparecer no esquecimento.
Quando Dez-Burgos surgiu, a sorte dos anões melhorou consideravelmente. O vale
deles ficava logo ao norte de Bryn Shander, tão perto da cidade principal quanto as
vilas de pescadores, e os humanos, muitas vezes guerreando entre si e combatendo
invasores, ficavam felizes em negociar as maravilhosas armaduras e armas que os
anões forjavam.
Mas mesmo com o aumento na qualidade de suas vidas, Bruenor, particularmente,
ansiava por recuperar a antiga glória de seus ancestrais. Ele via a chegada de Dez-
Burgos como uma solução temporária para um problema que não seria resolvido até
que o Salão de Mitral fosse recuperado e restaurado.
— É uma noite muito fria para um poleiro tão alto, bom amigo — veio um chamado
por trás.
O anão virou-se para encarar Drizzt Do’Urden, embora soubesse que o drow estaria
invisível contra o fundo negro do Sepulcro de Kelvin. Daquele ponto, a montanha
era a única silhueta que quebrava a linha sem marcas do horizonte ao norte. O
Sepulcro tinha sido nomeado assim porque se assemelhava a um monte de
pedregulhos propositadamente empilhados; uma lenda bárbara dizia que realmente
era uma sepultura. O certo era que o vale em que os anões fizeram seu lar não se
parecia com nenhum marco natural.
A tundra se estendia em todas as direções, plana e terrosa. Mas o vale tinha apenas
trechos esparsos de terra espalhados entre pedregulhos quebrados e paredes de
pedra sólida. Ele, e a montanha na fronteira a norte, eram os únicos marcos em todo
o Vale do Vento Gélido com qualquer quantidade notável de rocha, como se
tivessem sido esquecidas por algum deus nos primórdios da criação.
Drizzt notou o olhar vidrado nos olhos do amigo.
— Você procura as visões que só sua memória pode ver — disse, bem ciente da
obsessão do anão com sua antiga pátria.
— Uma visão que verei de novo! — Bruenor insistiu. — Nós vamos chegar lá, elfo.
— Nós nem sabemos o caminho.
— Estradas podem ser encontradas — disse Bruenor. — Mas só quando você as
procura.
— Algum dia, meu amigo — Drizzt concedeu. Nos poucos anos de amizade entre
ele e Bruenor, o anão tinha constantemente atormentado Drizzt para acompanhá-lo
em sua aventura para encontrar o Salão de Mitral. Drizzt achava a ideia tola, porque
ninguém com quem havia falado tinha sequer uma pista sobre a localização do
antigo lar dos anões, e Bruenor só conseguia se lembrar de imagens desarticuladas
dos corredores prateados. Ainda assim, o drow era sensível ao desejo mais profundo
de seu amigo, e sempre respondia aos pedidos de Bruenor com a promessa de
“algum dia”.
— Temos assuntos mais urgentes no momento — lembrou Drizzt a Bruenor. Mais
cedo naquele dia, em uma reunião nos salões de pedra, o drow havia detalhado suas
descobertas para os anões.
— Tem certeza de que eles virão? — Bruenor perguntou.
— O ataque deles vai abalar as pedras do Sepulcro de Kelvin — respondeu Drizzt,
ao sair da escuridão da silhueta da montanha e se juntar ao amigo. — E se Dez-
Burgos não estiver unida contra eles, as pessoas estão condenadas.
Bruenor se agachou e virou os olhos para o sul, em direção às luzes distantes de
Bryn Shander.
— Eles não vão, aqueles tolos teimosos — murmurou.
— Eles poderiam, se o seu povo fosse até eles.
— Não — rosnou o anão. — Nós vamos lutar ao lado deles, se escolherem lutar
juntos, e, então, ai dos bárbaros! Vá até eles, se desejar, e boa sorte para você, mas
nada de anões. Vamos ver quanta coragem os pescadores podem reunir.
Drizzt sorriu ante a ironia da recusa de Bruenor. Ambos sabiam bem que o drow
não recebia confiança, nem mesmo boas-vindas abertamente, em qualquer outra
cidade além de Bosque Solitário, de onde seu amigo Regis era porta-voz. Bruenor
notou o olhar do drow, e isso o feria tanto quanto feria a Drizzt, embora o elfo
fingisse estoicamente que não.
— Eles te devem mais do que jamais saberão — disse Bruenor categoricamente,
virando um olhar compreensivo na direção do amigo.
— Eles não me devem nada!
Bruenor sacudiu a cabeça.
— Por que se importa? — ele rosnou. — Você está sempre protegendo as pessoas
que não te mostram boa vontade. O que você deve a eles?
Drizzt deu de ombros, sem encontrar resposta. Bruenor estava certo. Quando o
drow chegara a esta terra, o único que lhe mostrou alguma amizade foi Regis.
Frequentemente escoltava e protegia o halfling pelas perigosas partes da jornada
saindo de Bosque Solitário ao redor da tundra aberta ao norte de Maer Dualdon e
descendo em direção a Bryn Shander, quando Regis ia à cidade para reuniões de
negócios ou do conselho. Na verdade, eles haviam se encontrado em uma dessas
viagens: Regis tentara fugir de Drizzt porque ouvira rumores terríveis sobre ele.
Felizmente para ambos, Regis era um halfling capaz de manter a mente aberta sobre
as pessoas e fazer seus próprios julgamentos a respeito de seu caráter. Não demorou
muito para que os dois se tornassem amigos.
Mas, até o momento, Regis e os anões eram os únicos na área que consideravam o
drow um amigo.
— Não sei por que me importo — respondeu Drizzt honestamente. Seus olhos se
voltaram para sua antiga terra natal, onde lealdade era apenas um artifício para
ganhar vantagem sobre um inimigo comum. — Talvez me importe porque me
esforço para ser diferente do meu povo — disse ele, tanto para si quanto para
Bruenor. — Talvez me importe porque sou diferente do meu povo. Posso ser mais
parecido com as raças da superfície... é o que espero, pelo menos. Me importo
porque tenho que me importar com algo. Você não é tão diferente, Bruenor Martelo
de Batalha. Nós nos importamos para que nossas próprias vidas não sejam vazias.
Bruenor levantou um olhar curioso.
— Você pode negar seus sentimentos pelas pessoas de Dez-Burgos para mim, mas
não para si mesmo.
— Ah! — Bruenor bufou. — Claro que me importo com eles! Meu povo precisa do
comércio!
— Teimoso — murmurou Drizzt, sorrindo como quem sabe a verdade. — E
Cattibrie? — ele pressionou. — E a menina humana que ficou órfã naquele ataque
anos atrás em Termalaine? A criança que você pegou e criou como sua própria
filha? — Bruenor estava contente que a cobertura da noite protegia seu rubor
revelador. — Ela ainda vive com você, embora até você tenha que admitir que ela é
capaz de voltar para sua própria espécie. Será que, talvez, você se importe com ela,
anão rude?
— Ah, cala a boca — resmungou Bruenor. — Ela é uma empregada e torna minha
vida um pouco mais fácil, mas você não venha ficar meloso falando dela!
— Teimoso — reiterou Drizzt, mais alto desta vez. Ele tinha mais uma carta para
jogar nessa discussão. — E quanto a mim, então? Anões não gostam muito dos
elfos da superfície, muito menos dos drow. Como você justifica a amizade com que
você me presenteou? Não tenho nada para lhe oferecer em troca além de minha
própria amizade. Por que se importa?
Você me traz notícias quando ... Bruenor parou, consciente de que Drizzt o havia
encurralado.
Mas o drow não insistiu mais na questão.
Os amigos observaram em silêncio enquanto as luzes de Bryn Shander baixavam,
uma a uma. Apesar de sua insensibilidade externa, Bruenor percebeu como algumas
das acusações do drow haviam o tocado; ele passara a se importar com as pessoas
que se instalaram às margens dos três lagos.
— O que você pretende fazer? — o anão perguntou por fim.
— Quero avisá-los — Drizzt respondeu. — Você subestima seus vizinhos, Bruenor.
Eles são mais resistentes do que você imagina.
— Concordo — disse o anão — Mas minhas dúvidas são sobre o caráter deles.
Todos os dias vemos brigas nos lagos e sempre por causa dos malditos peixes. As
pessoas se apegam às suas próprias cidades, e que os goblins levem as outras que
eles não ligam! Agora têm que mostrar a mim e aos meus parentes que têm vontade
de lutar juntos!
Drizzt tinha que admitir a verdade nas observações de Bruenor. Os pescadores
haviam se tornado mais competitivos nos últimos dois anos, à medida que a truta
cabeça-dura ia para águas mais profundas dos lagos e se tornava mais difícil de
capturar. A cooperação entre as cidades estava em um ponto baixo, pois cada cidade
tentava obter uma vantagem econômica sobre as rivais em seu lago.
— Haverá um conselho em Bryn Shander daqui a dois dias — prosseguiu Drizzt. —
Acredito que ainda temos algum tempo antes que os bárbaros venham. Embora
tema por atrasos, não creio que possamos reunir os porta-vozes mais cedo. Levarei
esse tempo para instruir Regis sobre o curso de ação que ele precisa tomar com seus
pares, pois deve levar as notícias da invasão vindoura.
— Pança-furada? — bufou Bruenor, usando o apelido que tinha dado a Regis por
conta do apetite insaciável do halfling. — Ele se senta no conselho por nenhuma
razão melhor do que manter seu estômago bem abastecido! Vão ouvir a ele menos
do que te ouviriam, elfo.
— Você subestima o halfling, mais ainda do que subestima as pessoas de Dez-
Burgos — respondeu Drizzt. — Lembre-se sempre de que ele carrega a pedra.
— Ah! Uma joia bem cortada, mas nada mais do que isso! — Bruenor insistiu. —
Já a vi antes, e não tem nenhum feitiço sobre mim.
— A magia é muito sutil para os olhos de um anão e talvez não seja forte o
suficiente para penetrar seu crânio espesso — riu Drizzt. — Mas está lá, eu a vejo
claramente e conheço a lenda de uma pedra assim. Regis pode ser capaz de
influenciar o conselho mais do que você pensa, e certamente mais do que eu
poderia. Esperemos que sim, pois você sabe tão bem quanto eu que alguns dos
porta-vozes podem relutar em seguir qualquer plano de unidade, seja em sua
independência arrogante, seja em sua crença de que uma invasão bárbara contra
alguns de seus rivais menos protegidos poderia ajudar suas próprias ambições
egoístas. Bryn Shander continua sendo a chave, mas a cidade principal só será
estimulada à ação se as principais cidades pesqueiras, Targos em particular, se
juntarem.
— Você sabe que Refúgio Leste vai ajudar — disse Bruenor. — Eles são sempre a
favor de reunir todas as cidades.
— E Bosque Solitário também, com Regis falando por eles. Mas Kemp de Targos
acredita que sua cidade murada é poderosa o suficiente para ficar sozinha, enquanto
sua rival, Termalaine, seria duramente pressionada para conter a invasão.
— Ele provavelmente não vai querer se juntar a qualquer coisa que inclua
Termalaine. E você terá mais problemas então, drow, pois sem Kemp você nunca
conseguirá que Konig e Dineval calem a boca!
— Mas é aí que Regis entra — explicou Drizzt. — O rubi que ele possui pode fazer
coisas maravilhosas, eu garanto!
— E de novo você fala do poder da pedra — reclamou Bruenor. — Mas Pança-
furada afirma que seu antigo mestre tinha doze delas — ele raciocinou. — Magias
poderosas não vêm em dúzias!
— Regis disse que seu mestre tinha doze pedras semelhantes — corrigiu Drizzt. —
Na verdade, o halfling não tinha como saber se todos as doze, ou qualquer uma das
outras, eram mágicas.
— Então por que o homem daria a única poderosa para Pança-furada?
Drizzt deixou a pergunta sem resposta, mas seu silêncio logo levou Bruenor à
mesma conclusão inescapável. Regis tinha um jeito de colecionar coisas que não lhe
pertenciam e, embora o halfling tivesse justificado a posse da pedra como um
presente...
CAPÍTULO 6

Bryn Shander

BRYN SHANDER ERA DIFERENTE de qualquer outra comunidade de Dez-


Burgos. Sua flâmula orgulhosa voava alto do topo de uma colina no meio da tundra
seca entre os três lagos, logo ao sul da ponta sul do vale dos anões. Nenhum navio
hasteava as bandeiras desta cidade, que não tinha docas em nenhum dos lagos, mas
havia poucos argumentos de que não fosse apenas o centro geográfico da região,
mas também o centro de atividades.
Este era o lugar onde as principais caravanas de comerciantes de Luskan se
alocavam, onde os anões iam negociar, e onde ficava a maioria dos artesãos,
escultores e avaliadores das peças de arte feita com os ossos da truta cabeça-dura. A
proximidade de Bryn Shander só perdia para a quantidade de peixes fisgados como
fator determinante no sucesso e no tamanho das cidades pesqueiras. Logo,
Termalaine e Targos, nas margens sudeste de Maer Dualdon, e Caer-Konig e Caer-
Dineval, na costa ocidental de Lac Dinneshere, quatro cidades a menos de um dia
de viagem da cidade principal, eram as cidades dominantes na região.
Muros altos cercavam Bryn Shander, tanto como proteção contra o vento cortante
quanto contra a invasão de goblins ou bárbaros. Lá dentro, os prédios eram
semelhantes aos das outras cidades: estruturas baixas de madeira, exceto pelo fato
de que em Bryn Shander eram mais compactas e muitas vezes subdivididas para
abrigar várias famílias. Congestionada como era, porém, havia uma medida de
conforto e segurança na cidade, o maior sabor de civilização que se poderia
encontrar por mais de seiscentos quilômetros longos e desolados.
Regis sempre gostou dos sons e cheiros que o saudavam ao passar pelos portões de
madeira unidos por ferro na parede norte da cidade principal. Embora em escala
menor do que as grandes cidades do sul, a agitação e os gritos dos mercados abertos
de Bryn Shander e os abundantes vendedores de rua o lembravam de seus dias em
Porto Calim. E, como em Porto Calim, o povo das ruas de Bryn Shander era um
recorte de cada origem que os Reinos tinham para oferecer. O povo alto e de pele
escura do deserto se misturava entre os viajantes de pele clara das Moonshaes. As
bravatas barulhentas dos sulistas morenos e as histórias fantasiosas de amor e
batalha dos homens robustos da montanha trocadas em uma das muitas tavernas
ecoavam em quase todas as esquinas.
E Regis absorvia tudo, pois, embora o local fosse outro, o barulho continuava o
mesmo. Se fechasse os olhos enquanto descia uma das ruas estreitas, quase podia
recuperar o entusiasmo pela vida que conhecera naqueles anos em Porto Calim.
Desta vez, porém, os negócios do halfling eram tão graves que amorteciam até
mesmo sua boa disposição de sempre. Ele ficara horrorizado com as notícias
sombrias do drow e estava nervoso em ser o mensageiro que as entregaria ao
conselho.
Longe do mercado barulhento da cidade, Regis passou pela casa palaciana de
Cassius, porta-voz de Bryn Shander. Era o maior e mais luxuoso edifício de toda a
Dez-Burgos, com uma fachada de colunas e obras de arte em baixo relevo que
adornavam todas as suas paredes. Fora originalmente construído para as reuniões
dos dez porta-vozes, mas como o interesse pelos conselhos desapareceu, Cassius,
habilidoso na diplomacia e nem um pouco hesitante em usar táticas duras, se
apropriou do palácio como sua residência oficial e transferiu o salão do conselho
para um armazém vago escondido em um canto remoto da cidade. Vários outros
porta-vozes reclamaram da mudança, mas embora as cidades pesqueiras pudessem
exercer alguma influência na cidade principal em questões de interesse público, eles
tinham pouco recurso em uma questão tão trivial para a população em geral quanto
essa. Cassius entendia bem a posição de sua cidade e soube manter a maioria das
outras comunidades sob seu controle. A milícia de Bryn Shander poderia derrotar as
forças combinadas de quaisquer cinco das outras nove cidades combinadas, e os
oficiais de Cassius detinham o monopólio das conexões com os mercados
necessários ao sul. Os outros porta-vozes poderiam resmungar sobre a mudança no
local de encontro, mas sua dependência da cidade principal os impediria de tomar
qualquer ação contra Cassius.
Regis foi o último a entrar no pequeno salão. Ele olhou em volta para os nove
homens que se reuniram à mesa e percebeu o quão deslocado realmente estava. Ele
tinha sido eleito porta-voz porque ninguém mais em Bosque Solitário se importava
o suficiente para querer um lugar no conselho, mas seus pares tinham alcançado
suas posições através de ações valorosas e heroicas. Eles eram os líderes de suas
comunidades, os homens que organizaram a estrutura e as defesas das cidades. Cada
um desses porta-vozes tinha visto dezenas de batalhas e mais, pois os invasores
goblins e bárbaros recobriam Dez-Burgos com mais frequência do que os dias de
sol. Era uma regra simples da vida no Vale do Vento Gélido que se você não
pudesse lutar, não poderia sobreviver, e os porta-vozes do conselho eram alguns dos
lutadores mais competentes em toda a Dez-Burgos.
Regis nunca tinha ficado intimidado pelos porta-vozes antes, porque normalmente
não tinha nada a dizer no conselho. Bosque Solitário, uma cidade isolada escondida
em uma pequena e espessa floresta de pinheiros, não pedia nada a ninguém. E com
sua frota pesqueira insignificante, as outras três cidades que compartilhavam Maer
Dualdon não impunham demandas. Regis nunca deu opinião a menos que fosse
pressionado e sempre teve o cuidado de votar de acordo com o consenso geral. E se
o conselho estava dividido em um assunto, Regis simplesmente seguia o exemplo
de Cassius. Em Dez-Burgos, não se errarava seguindo Bryn Shander.
Neste dia, porém, Regis se viu intimidado pelo conselho. As notícias sombrias que
trazia o tornariam vulnerável às suas táticas de intimidação e represálias, muitas
vezes furiosas. Ele concentrou sua atenção nos dois porta-vozes mais poderosos,
Cassius de Bryn Shander e Kemp de Targos, enquanto eles se sentavam à cabeceira
da mesa retangular e conversavam. Kemp parecia um homem robusto da fronteira:
não muito alto, mas de peito largo, com braços musculosos, e um comportamento
severo que amedrontava amigos e inimigos.
Cassius, no entanto, mal parecia um guerreiro. Era pequeno de estrutura, com
cabelos grisalhos bem aparados e um rosto que nunca mostrava a sombra de barba
por fazer. Seus grandes e brilhantes olhos azuis sempre pareciam trancados em um
contentamento interior. Mas qualquer um que já tivesse visto o porta-voz de Bryn
Shander levantar uma espada em batalha ou manobrar uma investida não tinha
dúvidas sobre sua habilidade ou bravura. Regis realmente gostava do homem, mas
teve o cuidado de não cair em uma situação que o deixasse vulnerável. Cassius
ganhara a reputação de conseguir o que queria às custas de outro.
— Ordem — ordenou Cassius, batendo o martelo sobre a mesa. O porta-voz
anfitrião sempre abria a reunião com as Formalidades da Ordem, leituras de títulos
e propostas oficiais que pretenderam dar ao conselho uma aura de importância,
impressionando especialmente os rufiões que às vezes apareciam para falar pelas
comunidades mais remotas. Mas agora, com a degeneração do conselho como um
todo, as Formalidades da Ordem serviam apenas para atrasar o fim da reunião, para
a tristeza de todos os dez porta-vozes. Consequentemente, as Formalidades eram
reduzidas cada vez que o grupo se reunia, e até se falava em eliminá-las.
Quando a lista finalmente foi completada, Cassius voltou-se para as questões
importantes.
— O primeiro item da agenda — disse ele, mal olhando para as anotações que
foram feitas à sua frente — diz respeito à disputa territorial entre as cidades irmãs,
Caer-Konig e Caer-Dineval, em Lac Dinneshere. Vejo que Dorim Lugar de Caer-
Konig trouxe os documentos que prometeu na última reunião, então passo a palavra
para ele. Porta-voz Lugar.
Dorim Lugar, um homem esquelético e magro, cujos olhos nunca pareciam parar de
se mover nervosamente, quase saltou da cadeira quando foi apresentado.
— Eu tenho em minha mão — ele gritou, com seu punho erguido segurando um
velho pergaminho — o acordo original entre Caer-Konig e Caer-Dineval, assinado
pelos líderes de cada cidade. — ele disparou um dedo acusador em a direção do
porta-voz de Caer-Dineval — Incluindo sua própria assinatura, Jensin Brent!
— Um acordo assinado durante um tempo de amizade e em espírito de boa vontade
— retrucou Jensin Brent, um homem mais jovem e de cabelos dourados, com um
rosto inocente que muitas vezes lhe dava uma vantagem sobre as pessoas que o
consideravam ingênuo. — Desenrole o pergaminho, porta-voz Lugar, e deixe o
conselho vê-lo. Eles verão que não faz quaisquer provisões para Refúgio Leste. —
Olhou em volta para os outros porta-vozes. — Refúgio Leste mal poderia ser
chamado de aldeia quando o acordo de dividir o lago ao meio foi assinado —
explicou ele, e não pela primeira vez. — Eles não tinham um único barco para
colocar na água.
— Companheiros porta-vozes! — Dorim Lugar gritou, sacudindo alguns deles da
letargia que já começara a se infiltrar. Esse mesmo debate havia dominado os
últimos quatro conselhos sem nenhum terreno ganho por nenhum lado. A questão
não tinha importância nem interesse para qualquer um, exceto os dois porta-vozes e
o porta-voz de Refúgio Leste.
— Certamente Caer-Konig não pode ser culpada pela ascensão de Refúgio Leste —
suplicou Dorim Lugar. — Quem poderia prever a Estrada Leste? — perguntou ele,
referindo-se à estrada reta e lisa que Refúgio Leste construíra para Bryn Shander.
Fora uma jogada inteligente que provou ser um benefício para a pequena cidade no
canto sudeste de Lac Dinneshere. Combinando o apelo de uma comunidade remota
com acesso fácil a Bryn Shander, Refúgio Leste era a comunidade que mais crescia
em toda a Dez-Burgos, com uma frota pesqueira que tinha quase se igualado aos
barcos de Caer-Dineval.
— Quem? — retrucou Jensin Brent, agora deixando transparecer um pouco de
confusão em sua fachada calma. — É óbvio que o crescimento de Refúgio Leste
colocou Caer-Dineval para competir pelas águas do sul do lago, enquanto Caer-
Konig navega livre na metade norte. Ainda assim, Caer-Konig se recusou
terminantemente a renegociar os termos originais para compensar o desequilíbrio!
Não podemos prosperar sob tais condições!
Regis sabia que tinha que agir antes que a discussão entre Brent e Lugar saísse do
controle. Dois encontros anteriores haviam sido adiados por causa de seus debates
voláteis e Regis não podia deixar que esse conselho se desintegrasse antes de lhes
contar sobre o ataque bárbaro iminente.
Ele hesitou, tendo que admitir para si mesmo mais uma vez que não tinha opções e
não podia se afastar dessa missão urgente; seu refúgio seria destruído se não
dissesse nada. Embora Drizzt o tivesse assegurado do poder que possuía, ele
mantinha suas dúvidas a respeito da verdadeira magia da pedra. No entanto, devido
à sua própria insegurança, um traço comum entre os pequenos, Regis se viu
confiando cegamente no julgamento de Drizzt. O drow era a pessoa com maior
conhecimento que ele já encontrara, com uma lista de experiências muito além das
histórias que Regis podia contar. Agora era a hora da ação, e o halfling estava
determinado a dar uma chance ao plano do drow.
Ele fechou os dedos ao redor do pequeno martelo de madeira que estava colocado
na mesa diante dele. Parecia estranho ao seu toque, e percebeu então que era a
primeira vez que usava o instrumento. Ele bateu levemente na mesa de madeira,
mas os outros estavam concentrados na briga de gritos que havia irrompido entre
Lugar e Brent. Regis lembrou-se da urgência das notícias do drow mais uma vez e
bateu o martelo com ousadia.
Os outros porta-vozes imediatamente se voltaram para o halfling, com expressões
vazias estampadas em seus rostos. Regis raramente falava nas reuniões e só quando
encurralado com uma pergunta direta.
Cassius de Bryn Shander baixou seu pesado martelo.
— O conselho reconhece o porta-voz... uh... o porta-voz de Bosque Solitário —
disse ele, e, pelo seu tom descomposto, Regis pôde adivinhar que se esforçara para
responder seriamente ao pedido do halfling.
— Companheiros porta-vozes — Regis começou timidamente, sua voz se
quebrando em um guincho. — Com todo o respeito pela seriedade do debate entre
os porta-vozes de Caer-Dineval e Caer-Konig, acredito que temos um problema
mais urgente para discutir — Jensin Brent e Dorim Lugar ficaram furiosos ao serem
interrompidos, mas os outros olharam para o halfling com curiosidade. Bom
começo, pensou Regis, tenho toda a atenção deles.
Ele limpou a garganta, tentando acalmar sua voz e soar um pouco mais
impressionante.
— Descobri além de qualquer dúvida que as tribos bárbaras estão se reunindo para
um ataque unificado contra Dez-Burgos! — Embora tentasse tornar o anúncio
dramático, Regis viu-se diante de nove homens apáticos e confusos.
— A menos que formemos uma aliança — continuou Régis com os mesmos tons
urgentes. — a horda invadirá nossas comunidades, uma a uma, matando qualquer
um que ousar se opor a eles!
— Certamente, porta-voz Regis de Bosque Solitário — disse Cassius em uma voz
que pretendia acalmar, mas era, de fato, condescendente — Já resistimos a invasões
bárbaras antes. Não há necessidade de...
— Não como esta! — gritou Regis. — Todas as tribos se reuniram. Os ataques
antes eram de uma tribo contra uma cidade e geralmente nos saíamos bem. Mas
como Termalaine ou Caer-Konig, ou mesmo Bryn Shander, enfrentariam as tribos
combinadas de Vale do Vento Gélido?
Alguns dos porta-vozes recostaram-se em suas cadeiras para contemplar as palavras
do halfling; os outros começaram a conversar entre si, alguns em preocupação,
alguns em descrença irada. Finalmente, Cassius bateu o martelo novamente,
chamando o salão para o silêncio.
Então, com sua fanfarronice habitual, Kemp de Targos levantou-se lentamente de
seu assento.
— Posso falar, amigo Cassius? — perguntou com uma delicadeza desnecessária. —
Talvez eu possa ser capaz de colocar este pronunciamento grave na luz adequada.
Regis e Drizzt haviam feito algumas suposições sobre alianças quando planejaram
as ações do halfling no conselho. Eles sabiam que Refúgio Leste, fundada e
prosperando no princípio da fraternidade entre as comunidades de Dez-Burgos,
abraçaria o conceito de uma defesa comum contra a horda bárbara. Do mesmo
modo, Termalaine e Bosque Solitário, as duas cidades mais acessíveis e invadidas
das dez, aceitariam felizes qualquer oferta de ajuda.
No entanto, até mesmo o porta-voz Agorwal, de Termalaine, que tinha tanto a
ganhar com uma aliança defensiva, se protegeria e silenciaria se Kemp de Targos se
recusasse a aceitar o plano. Targos era a maior e mais poderosa das nove aldeias de
pescadores, com uma frota com o dobro do tamanho da segunda maior.
— Companheiros do conselho — começou Kemp, inclinando-se para a frente sobre
a mesa para se alargar aos olhos de seus colegas. — Vamos ouvir mais sobre a
história do halfling antes de começarmos a nos preocupar. Lutamos contra invasores
bárbaros e coisas piores por vezes demais para ter certeza de que as defesas até
mesmo das menores das nossas cidades são adequadas.
Regis sentiu a tensão aumentar quando Kemp entrou no discurso, construindo
pontos destinados a destruir a credibilidade do halfling. Drizzt decidira desde o
início em seu planejamento que Kemp de Targos era a chave, mas Regis conhecia
melhor o porta-voz do que o drow e sabia que Kemp não seria facilmente
manipulado. Kemp ilustrava as táticas da poderosa cidade de Targos em seus
próprios maneirismos. Ele era um grande valentão, muitas vezes tendo ataques
repentinos de raiva violenta que intimidavam até Cassius. Regis tentara afastar
Drizzt dessa parte do plano, mas o drow foi inflexível.
— Se Targos concordar em aceitar a aliança com Bosque Solitário — argumentou
Drizzt — Termalaine se juntará de bom grado e Bremen, sendo a única outra aldeia
no lago, não terá escolha a não ser ir junto. Bryn Shander certamente não se oporá a
uma aliança unificada das quatro cidades no maior e mais próspero lago, e Refúgio
Leste fará seis no pacto, uma clara maioria.
O resto não teria escolha senão juntar-se ao esforço. Drizzt acreditava que Caer-
Dineval e Caer-Konig, temendo que Refúgio Leste recebesse consideração especial
em futuros conselhos, fariam uma demonstração de lealdade, esperando que
ganhassem o favor aos olhos de Cassius. Bom Prado e Toca de Dougan, as duas
cidades em Águas Rubras, embora relativamente seguras de uma invasão do norte,
não ousariam se destacar das outras oito comunidades.
Mas tudo isso era só uma especulação esperançosa, como Regis percebeu
claramente ao ver Kemp o encarando do outro lado da mesa.
Drizzt admitiu que o maior obstáculo para formar a aliança seria Targos. Em sua
arrogância, a poderosa cidade poderosa acreditaria que poderia resistir a qualquer
ataque dos bárbaros. E se conseguisse sobreviver, a destruição de alguns de seus
concorrentes poderia se provar lucrativa.
— Você diz apenas que você soube de uma invasão — Kemp começou. — Onde
você poderia ter reunido essa informação valiosa e, sem dúvida, difícil de se
encontrar?
Regis sentiu suor em suas têmporas. Ele sabia onde a pergunta de Kemp levaria,
mas não havia como evitar a verdade.
— De um amigo que costuma viajar pela tundra — ele respondeu honestamente.
— O drow? — Kemp perguntou.
Com o pescoço dobrado e Kemp se elevando sobre ele, Regis logo se viu colocado
na defensiva. O pai do halfling uma vez o advertiu de que ele sempre ficaria em
desvantagem ao lidar com os humanos, porque eles precisavam abaixar o olhar
quando falavam com ele como fariam com seus próprios filhos. Em momentos
assim, as palavras de seu pai soavam dolorosamente verdadeiras para Regis. Ele
limpou uma gota de umidade do lábio superior.
— Não posso falar pelo resto de vocês — prosseguiu Kemp, acrescentando uma
risada para colocar a grave advertência do halfling sob uma luz absurda —, mas
tenho muito trabalho a fazer para me esconder pelas palavras de um elfo drow! —
Novamente o porta-voz corpulento riu, e desta vez ele não estava sozinho.
Agorwal de Termalaine ofereceu alguma assistência inesperada à causa perdida do
halfling.
— Talvez devêssemos deixar o porta-voz de Bosque Solitário continuar. Se as
palavras dele são verdadeiras...
— Suas palavras são os ecos das mentiras de um drow! — Kemp rosnou. — Não
lhes deem atenção. Já lutamos contra os bárbaros antes e...
Mas então Kemp também foi interrompido quando Regis subiu de repente na mesa
do conselho. Essa era a parte mais precária do plano de Drizzt. O drow demonstrara
fé nele, descrevendo-a com naturalidade, como se não representasse problemas.
Mas Regis sentiu o desastre iminente pairando sobre ele. Apertou as mãos atrás de
suas costas e tentou parecer no controle para que Cassius não tomasse nenhuma
ação imediata contra suas táticas incomuns.
Durante a distração de Agorwal, Regis tirou o pingente de rubi de baixo do colete.
Ela brilhava em seu peito enquanto ele andava para cima e para baixo, tratando a
mesa como se fosse seu palco pessoal.
— O que vocês sabem sobre o drow para zombar dele assim? — ele exigiu saber
dos outros, especificamente Kemp. — Algum de vocês pode nomear uma única
pessoa que ele tenha machucado? Não! Você o castiga pelos crimes de sua raça,
mas nenhum de vocês jamais considerou que Drizzt Do’Urden anda entre nós
porque ele rejeitou os caminhos de seu povo? — O silêncio no salão convenceu
Regis de que ele fora ou impressionante ou absurdo. De qualquer forma, ele não era
tão arrogante ou tolo de pensar que seu pequeno discurso fosse o suficiente para
cumprir a tarefa.
Ele se aproximou para encarar Kemp. Desta vez era ele quem olhava para baixo,
mas o porta-voz de Targos parecia prestes a explodir em gargalhadas.
Regis precisava agir rapidamente. Ele se abaixou um pouco e levantou a mão até o
queixo, aparentando coçá-lo, embora na verdade estivesse fazendo o pingente de
rubi girar, batendo-o com o braço enquanto passava. Então manteve o silêncio
pacientemente e contou como Drizzt havia instruído. Dez segundos se passaram e
Kemp não havia piscado. Drizzt dissera que isso bastaria, mas Regis, surpreso e
apreensivo com a facilidade com que cumprira a tarefa, deixou outros dez passarem
antes de se atrever a começar a testar as crenças do drow.
— Claro que você pode ver a sabedoria de se preparar para um ataque — Regis
sugeriu calmamente. Então, num sussurro que só Kemp pôde ouvir, acrescentou. —
Essas pessoas procuram orientação em você, grande Kemp. Uma aliança militar só
aumentaria sua estatura e influência.
O efeito foi deslumbrante.
— Talvez haja mais nas palavras do halfling do que acreditávamos — disse Kemp
mecanicamente, com seus olhos vidrados nunca deixando o rubi.
Atordoado, Regis se endireitou e colocou a pedra de volta sob o colete. Kemp
sacudiu a cabeça como se estivesse limpando um sonho confuso de seus
pensamentos, e esfregou os olhos secos. O porta-voz de Targos parecia não se
lembrar dos últimos momentos, mas a sugestão do halfling fora plantada no fundo
da sua mente. Kemp descobriu, para seu próprio espanto, que suas atitudes haviam
mudado.
— Devemos ouvir bem as palavras de Regis — ele declarou em voz alta. — Pois
não estaremos em desvantagem ao formar tal aliança, mas as consequências de não
fazer nada podem revelar-se graves, de fato!
Rápido para aproveitar uma vantagem, Jensin Brent saltou da cadeira:
— O porta-voz Kemp fala com sabedoria — disse. — Conte com o povo de Caer-
Dineval, sempre proponentes dos esforços unidos de Dez-Burgos, entre o exército
que repelirá a horda!
O resto dos porta-vozes se alinharam atrás de Kemp, como Drizzt esperava, com
Dorim Lugar fazendo uma demonstração ainda maior de lealdade do que a de
Brent.
Regis tinha muito do que se orgulhar quando saiu do conselho municipal naquele
dia e suas esperanças pela sobrevivência de Dez-Burgos haviam retornado. No
entanto, o halfling encontrou seus pensamentos consumidos pelas implicações do
poder que descobrira em seu rubi. Ele trabalhou para definir a maneira mais segura
que teria de transformar esse poder recém-descoberto de induzir cooperação em
lucro e conforto.
— Foi tão gentil da parte de Pasha Pook me dar esse daqui! — disse a si mesmo
enquanto atravessava o portão da frente de Bryn Shander e se dirigia para o local
designado onde se encontraria com Drizzt e Bruenor.
CAPÍTULO 7

A Tempestade Vindoura

ELES SAÍRAM DE MADRUGADA, atravessando a tundra como um redemoinho


furioso. Animais e monstros, mesmo os ferozes iétis, fugiam em terror diante deles.
O chão congelado rachava sob o peso de suas botas pesadas, e o murmúrio do vento
interminável da tundra foi enterrado sob a força de sua canção, a canção para o
Deus da Batalha.
Eles marcharam até tarde da noite e partiram novamente antes dos primeiros raios
da aurora, mais de dois mil guerreiros bárbaros ávidos por sangue e vitória.

Drizzt Do’Urden estava sentado na face norte do Sepulcro de Kelvin, com o manto
apertado contra o vento que uivava através das pedras da montanha. O drow passara
todas as noites ali desde o conselho em Bryn Shander, com seus olhos violetas
examinando a escuridão da planície em busca dos primeiros sinais da tempestade
que se aproximava. A pedido de Drizzt, Bruenor conseguiu que Regis se sentasse ao
seu lado. Com o vento amargo cortando-o, o halfling se espremia entre dois
pedregulhos para se proteger dos elementos inóspitos.
Se tivesse escolha, Regis teria ficado escondido no calor de sua própria cama macia
em Bosque Solitário, ouvindo o gemido silencioso dos galhos das árvores que
balançavam além de suas paredes quentes. Mas entendeu que, como porta-voz,
todos esperavam que ele ajudasse a concretizar o curso de ação que havia sugerido
no conselho. Tornou-se rapidamente óbvio para os outros porta-vozes e para
Bruenor, presente nas reuniões estratégicas seguintes como representante dos anões,
que o halfling não ajudaria muito a organizar as forças ou traçar planos de batalha.
Então quando Drizzt disse a Bruenor que precisaria de um mensageiro para montar
guarda com ele, o anão rapidamente voluntariou Regis.
Agora o halfling estava se sentindo terrivelmente infeliz. Seus pés e dedos estavam
entorpecidos pelo frio, e suas costas doíam por se sentar contra a pedra dura. Era a
terceira noite fora, e Regis resmungava e reclamava constantemente, pontuando seu
desconforto com um espirro ocasional. Durante tudo isso, Drizzt permanecia
sentado, imóvel e indiferente às condições, com sua dedicação estoica ao dever
sobrepujando qualquer aflição pessoal.
— Quantas noites mais temos que esperar? — Regis choramingou. — Tenho
certeza que em uma manhã dessas, talvez até amanhã, eles nos encontrarão aqui,
mortos e congelados nesta montanha amaldiçoada!
— Não tema, amiguinho — respondeu Drizzt com um sorriso. — O vento fala d
inverno. Os bárbaros virão logo, determinados a vencer as primeiras neves.
Enquanto falava, o drow captou um lampejo de luz minúsculo pelo canto do olho.
Ele se levantou do agachamento de repente, assustando o halfling, e virou na
direção do movimento, os músculos tensos em uma cautela reflexiva e seus olhos se
esforçando para identificar um sinal que confirmasse o que vira.
— O que... — Regis começou, mas Drizzt o silenciou com a palma da mão
estendida. Um segundo ponto de fogo brilhou na borda do horizonte.
— Você conseguiu o que desejava —disse Drizzt com certeza.
— Eles estão lá? — Regis sussurrou. Sua visão não era tão afiada quanto a do drow
durante a noite.
Drizzt ficou concentrado em silêncio por alguns instantes, tentando medir a
distância das fogueiras e calculando o tempo que os bárbaros levariam para
completar sua jornada.
— Vá até Bruenor e Cassius, amiguinho — disse por fim. — Diga a eles que a
horda chegará ao Caminho de Bremen quando o sol chegar ao ápice amanhã.
— Venha comigo — disse Regis. — Com certeza vão te enxotar quando você tem
essas notícias urgentes.
— Tenho uma tarefa mais importante — respondeu Drizzt. — Agora vá! Diga a
Bruenor, e apenas a ele, que o encontrarei no Caminho de Bremen à primeira luz da
madrugada.
Com isso, o drow caminhou até a escuridão. Ele tinha uma longa jornada diante de
si.
— Para onde você vai? — Regis gritou para ele.
— Encontrar o horizonte do horizonte! — veio um grito da noite negra.
E então havia apenas o murmúrio do vento.

Os bárbaros haviam terminado de montar o acampamento pouco antes de Drizzt


atingir o perímetro externo. Tão perto de Dez-Burgos, os invasores estavam em
guarda; a primeira coisa que Drizzt notou foi que havia muitos homens de vigia.
Mesmo tão alertas, as fogueiras do acampamento queimavam baixas e era noite, a
hora do drow. Os vigias, normalmente eficientes, eram superados pelo elfo de um
mundo que não conhecia luz, alguém que evocava uma escuridão mágica que
mesmo os olhos mais aguçados não podiam penetrar e a levava com ele como um
manto tangível. Invisível como uma sombra na escuridão, com passos tão
silenciosos quanto um gato à espreita, Drizzt passou pelos guardas e entrou nas
raias internas do acampamento.
Apenas uma hora antes, os bárbaros estavam cantando e falando da batalha que
iriam lutar no dia seguinte. No entanto, mesmo a adrenalina e a sede de sangue que
bombeavam em suas veias não dissipavam a exaustão de sua dura marcha. A
maioria dos homens dormia profundamente, a respiração pesada e ritmada
confortando Drizzt enquanto ele se aproximava em busca de seus líderes que, sem
dúvida, estavam finalizando os planos de batalha.
Várias tendas estavam agrupadas dentro do acampamento. Apenas uma, porém,
tinha guardas do lado de fora de sua entrada. Ela estava fechada, mas Drizzt podia
ver o brilho das velas dentro e ouvir vozes ásperas, muitas vezes elevadas e
enraivecidas. O drow escorregou para a parte de trás dela. Felizmente, nenhum
guerreiro tinha permissão para fazer sua cama perto da tenda, então Drizzt estava
bastante isolado. Como precaução, tirou a estatueta de pantera de sua mochila e,
sacando uma adaga fina, fez um pequeno buraco na tenda de pele de veado e espiou
para dentro.
Havia oito homens lá dentro, os sete chefes bárbaros e um homem menor de cabelos
escuros que Drizzt sabia que não era do norte. Os chefes estavam sentados no chão
em um semicírculo ao redor do sulista, fazendo perguntas sobre o terreno e as
forças que encontrariam no dia seguinte.
— Deveríamos destruir a cidade na floresta primeiro — insistiu o maior homem da
sala, possivelmente o maior homem que Drizzt já vira, que trazia o símbolo do
Alce. — Então podemos seguir seu plano até a cidade chamada Bryn Shander.
O homem menor parecia muito confuso e indignado, embora Drizzt pudesse ver que
o medo do enorme rei bárbaro iria moderar sua resposta.
— Grande Rei Heafstaag — respondeu ele, hesitante —, se as frotas de pesca
avistarem problemas e atracarem antes de chegarmos a Bryn Shander, poderemos
encontrar um exército que supere o nosso esperando por nós dentro das paredes
sólidas da cidade.
— Eles são apenas fracotes do sul! — rosnou Heafstaag, estufando seu peito largo
com orgulho.
— Poderoso rei, garanto-lhe que o meu plano irá satisfazer a sua fome por sangue
sulista — disse o homem de cabelos escuros.
— Então fale, DeBernezan de Dez-Burgos. Prove seu valor ao meu povo!
Drizzt podia ver que a última afirmação incomodou aquele chamado DeBernezan,
pois os tons da exigência do rei bárbaro mostravam claramente seu desprezo pelo
sulista. Sabendo como os bárbaros se sentiam em relação a forasteiros, o drow
percebeu que o menor erro durante qualquer parte dessa campanha provavelmente
custaria ao homenzinho sua vida.
DeBernezan enfiou a mão na lateral de sua bota e tirou um pergaminho. Ele o
desenrolou e segurou para os reis bárbaros verem. Era um mapa pobre, rudemente
desenhado, com suas linhas ainda mais embaçadas pelo leve tremor da mão do
homem do sul, mas Drizzt conseguiu distinguir muitos dos traços distintivos que
marcavam Dez-Burgos na planície que, fora as dez cidades, não tinham mais
detalhes.
— A oeste do Sepulcro de Kelvin — explicou DeBernezan, passando o dedo ao
longo da margem oeste do maior lago do mapa — há uma faixa clara de terreno alto
chamado Caminho de Bremen que vai para o sul entre a montanha e Maer Dualdon.
De nossa localização, esta é a rota mais direta para Bryn Shander e o caminho que
acredito que devemos seguir.
— A cidade às margens do lago — ponderou Heafstaag — deve ser a primeira a ser
esmagada!
— É Termalaine — respondeu DeBernezan. — Todos os seus homens são
pescadores e estarão no lago quando passarmos. Você não encontraria uma boa
diversão por lá!
— Não vamos deixar um inimigo vivo atrás de nós! — Heafstaag rugiu e vários
outros reis gritaram o acordo.
— Não, claro que não — disse DeBernezan. — Mas não será preciso muitos
homens para derrotar Termalaine quando os barcos estiverem fora. Deixe que o Rei
Haalfdane e a Tribo do Urso saqueiem a cidade enquanto o resto da força, liderada
por você e pelo rei Beorg, ataca Bryn Shander. O fogo da cidade em chamas deve
trazer toda a frota, até mesmo os navios das outras cidades de Maer Dualdon, para
Termalaine, onde o rei Haalfdane pode destruí-los nas docas. É importante que os
mantenhamos longe da fortaleza de Targos. O povo de Bryn Shander não receberá
ajuda dos outros lagos a tempo de apoiá-los e terá que ficar sozinho contra sua
investida. A tribo do Alce flanqueará ao redor da base da colina abaixo da cidade e
cortará qualquer possível fuga ou qualquer reforço de última hora.
Drizzt observou com atenção enquanto DeBernezan descrevia essa segunda divisão
das forças bárbaras em seu mapa. A mente calculista do drow já estava formulando
planos iniciais de defesa. A colina de Bryn Shander não era muito alta, mas sua
base era espessa, e os bárbaros que atacariam pela parte de trás da colina estariam
muito longe da força principal.
Muito longe de reforços.
— A cidade vai cair antes do pôr do sol! — DeBernezan declarou triunfalmente. —
E seus homens vão se deliciar com os melhores espólios em toda a Dez-Burgos! —
Um aplauso repentino foi dado pelos reis sentados ante a declaração de vitória do
sulista.
Drizzt virou-se de costas para a tenda e considerou o que ouvira. Esse homem de
cabelos escuros chamado DeBernezan conhecia bem as cidades e entendia suas
forças e fraquezas. Se Bryn Shander caísse, nenhuma resistência organizada poderia
ser formada para expulsar os invasores. De fato, uma vez que eles tomassem a
cidade fortificada, os bárbaros seriam capazes de atacar quando quisessem qualquer
uma das outras cidades.
— Mais uma vez você me mostrou o seu valor — Drizzt ouviu Heafstaag dizer ao
sulista e as conversas a seguir disse ao drow que os planos haviam sido aceitos
como definitivos. Drizzt então concentrou seus sentidos no acampamento ao redor
dele, procurando o melhor caminho para sua fuga. Ele notou de repente que dois
guardas estavam caminhando na sua direção e conversando. Embora estivessem
muito longe para que seus olhos humanos o vissem como algo além de uma sombra
ao lado da tenda, sabia que qualquer movimento de sua parte certamente os
alertaria.
Agindo imediatamente, Drizzt jogou a estatueta preta no chão:
— Guenhwyvar — chamou suavemente. — Venha até mim, minha sombra.

Em algum lugar em um canto do vasto Plano Astral, a entidade da pantera se movia


em passos súbitos e sutis enquanto espreitava a entidade do cervo. As feras desse
mundo natural haviam repassado esse cenário inúmeras vezes, seguindo a ordem
harmoniosa que guiava a vida de seus descendentes. A pantera se agachou para o
último salto, sentindo a doçura da matança próxima. Esse ataque era a harmonia da
ordem natural, o propósito da existência da pantera, e a carne, sua recompensa.
Parou imediatamente, porém, quando ouviu o chamado de seu nome verdadeiro,
compelida acima de quaisquer outras diretrizes a atender ao chamado de seu mestre.
O espírito do grande felino precipitou-se pelo longo e escuro corredor que marcava
o vazio entre os planos, buscando a mancha solitária de luz que era sua vida no
Plano Material. E então estava ao lado do elfo negro, sua alma gêmea e mestre,
agachada nas sombras ao lado das peles penduradas de uma habitação humana.
Ela entendeu a urgência do chamado de seu mestre e rapidamente abriu sua mente
para as instruções do drow.
Os dois guardas bárbaros se aproximaram com cuidado, tentando distinguir as
formas escuras que estavam ao lado da tenda dos reis. De repente, Guenhwyvar
disparou em direção deles e deu um poderoso salto passando por suas espadas
desembainhadas. Os guardas balançaram as armas inutilmente e atacaram a gata,
gritando um alerta para o resto do acampamento.
Ante a confusão, Drizzt se moveu calma e furtivamente em outro sentido. Ele ouviu
os gritos de alarme quando Guenhwyvar atravessou os acampamentos dos
guerreiros adormecidos e não pôde deixar de sorrir quando a gata cruzou com um
grupo em particular. Ao avistar o felino, que se movia com tanta graça e velocidade
que parecia um espírito de gato, a Tribo do Tigre, em vez de caçar, caiu de joelhos e
levantou as mãos e vozes em agradecimento a Tempus.
Drizzt não teve dificuldade em escapar do perímetro do acampamento, pois todas as
sentinelas estavam correndo na direção da comoção. Quando o drow atingiu o
negrume da tundra aberta, virou para o sul, em direção ao Sepulcro de Kelvin, e
disparou pela planície solitária em plena fuga, concentrando-se o tempo todo em
finalizar um contraplano mortal de defesa. As estrelas diziam que faltavam menos
de três horas para o amanhecer e ele sabia que não podia se atrasar para seu
encontro com Bruenor se quisesse montar devidamente a emboscada.
O barulho dos bárbaros surpreendidos logo desapareceu, exceto pelas orações da
Tribo do Tigre, que continuariam até o amanhecer. Poucos minutos depois,
Guenhwyvar estava trotando facilmente ao lado de Drizzt.
— Cem vezes você salvou minha vida, minha amiga de confiança — disse Drizzt
enquanto dava um tapinha no pescoço musculoso do grande felino. — Cem vezes e
ainda mais!

— Eles estão discutindo e brigando há dois dias — comentou Bruenor com


desgosto. — É uma bênção que o maior inimigo tenha finalmente chegado!
— É melhor chamar a vinda de bárbaros de alguma coisa diferente — respondeu
Drizzt, embora um sorriso tenha encontrado seu caminho em sua feição
normalmente estoica. Ele sabia que seu plano era sólido e que a batalha deste dia
pertenceria ao povo de Dez-Burgos. — Vá agora e prepare a armadilha, você não
tem muito tempo.
— Começamos a colocar as mulheres e crianças nos barcos assim que Pança-furada
nos passou suas novidades — explicou Bruenor. — Vamos expulsar os vermes das
nossas fronteiras antes que o dia termine! — O anão abriu bem os pés em sua
habitual posição de batalha e bateu com o machado no escudo para enfatizar seu
ponto. — Você tem um bom olho para a batalha, elfo. Seu plano virará a surpresa
para os bárbaros e ainda dividirá a glória igualmente entre aqueles que precisam de
glória.
— Até Kemp de Targos deve ficar satisfeito — concordou Drizzt.
Bruenor bateu no braço do amigo e virou-se para sair.
— Você vai lutar ao meu lado, então? — ele perguntou por cima do ombro, embora
já soubesse a resposta.
— Como deve ser — garantiu Drizzt.
— E a gata?
— Guenhwyvar já desempenhou seu papel nessa batalha — respondeu o drow. —
Vou mandar minha amiga para casa em breve.
Bruenor ficou satisfeito com a resposta; não confiava na fera estranha do drow.
— Não é natural — disse para si mesmo enquanto percorria o Caminho de Bremen
em direção às hostes reunidas de Dez-Burgos.
Bruenor estava longe demais para Drizzt distinguir suas últimas palavras, mas o
drow conhecia o anão bem o suficiente para perceber o significado geral de seus
resmungos. Ele entendia o desconforto que Bruenor e muitos outros sentiam em
torno da gata mística. A magia era uma parte proeminente do submundo de seu
povo, um fato necessário de sua existência cotidiana, mas era muito mais rara e
menos compreendida entre as pessoas comuns da superfície. Os anões, em
particular, geralmente se sentiam desconfortáveis com ela, exceto pelas armas
mágicas e armaduras que eles mesmos faziam.
O drow, no entanto, não tivera desconforto com Guenhwyvar desde o dia em que
conhecera a gata. A estatueta pertencera a Masoj Hun’ett, um drow de alta
reputação em uma importante família da grande cidade de Menzoberranzan, um
presente de um lorde demônio em troca de alguma ajuda que Masoj havia lhe dado
em um assunto relacionado a gnomos problemáticos. Drizzt e a gata se cruzaram
muitas vezes ao longo dos anos na cidade escura, muitas vezes em reuniões
planejadas. Eles compartilhavam uma empatia entre si que transcendia a relação
que a gata sentia com seu então mestre.
Guenhwyvar havia até mesmo resgatado Drizzt da morte certa sem ser requisitada,
como se a gata estivesse observando de forma protetora o drow que ainda não era
seu mestre. Drizzt tinha saído sozinho de Menzoberranzan em uma viagem a uma
cidade vizinha quando fora vítima de um pescador da caverna, um habitante das
cavernas escuras similar a um caranguejo que encontrava um nicho acima do chão
de um túnel e deixava cair teias invisíveis e pegajosas. Como um pescador, esta
criatura do subterrâneo esperara e, como um peixe, Drizzt caíra na armadilha. A
linha pegajosa o envolvera completamente, deixando-o impotente enquanto era
arrastado para cima ao longo da parede de pedra do corredor.
Ele não viu esperança de sobreviver aquele encontro e entendeu que uma morte
terrível certamente o aguardava.
Mas Guenhwyvar chegou, saltando entre as fendas e sulcos quebrados ao longo da
parede, no mesmo nível do monstro. Sem ter em conta a sua própria segurança e
sem seguir ordens, a gata atacou o pescador, derrubando-o do nicho. O monstro,
buscando apenas sua própria segurança, tentou se afastar, mas Guenhwyvar atacou
vingativa, como se quisesse puni-lo por prender Drizzt.
Tanto o drow quanto a gata souberam daquele dia em diante que estavam destinados
a correr juntos. No entanto, a gata não tinha poder para desobedecer à vontade de
seu mestre e Drizzt não tinha o direito de reivindicar a estatueta de Masoj,
especialmente porque a casa Hun’ett era muito mais poderosa do que a própria
família de Drizzt na hierarquia estruturada do submundo.
Assim, o drow e a gata continuaram seu relacionamento casual como camaradas
distantes.
Logo depois, porém, surgiu um incidente que Drizzt não pôde ignorar. Guenhwyvar
era levada muitas vezes por Masoj em ataques, fosse contra casas drow inimigas ou
contra outros habitantes do subterrâneo. A gata normalmente cumpria suas ordens
com eficiência, emocionada em ajudar seu mestre na batalha. Em uma incursão em
particular, porém, contra um clã de svirfneblin, os gnomos despretensiosos que
minavam nas profundezas e muitas vezes tiveram a infelicidade de enfrentar os
drows em seu habitat comum, Masoj fora longe demais em sua maldade.
Depois do ataque inicial ao clã, os gnomos sobreviventes se espalharam pelos
muitos corredores de suas minas labirínticas. O ataque fora bem sucedido; os
tesouros procurados foram retirados e o clã fora despachado, obviamente para
nunca mais incomodar os drow. Mas Masoj queria mais sangue.
Ele usou Guenhwyvar, a orgulhosa e majestosa caçadora, como seu instrumento de
assassinato. Ele enviou a gata atrás dos gnomos em fuga, um por um, até que todos
fossem mortos.
Drizzt e vários outros drows testemunharam o espetáculo. Os outros, em sua vileza
característica, acharam uma ótima demonstração, mas Drizzt se sentira enojado.
Além disso, reconhecera a humilhação dolorosamente gravada na expressão da gata
orgulhosa. Guenhwyvar era uma caçadora, não uma assassina, e usá-la em tal papel
era degradante, para não falar dos horrores que Masoj estava infligindo aos
inocentes gnomos.
Este fora o ultraje final em uma longa linha de ultrajes que Drizzt não podia mais
suportar. Ele sempre soubera que era diferente de seus parentes em vários aspectos,
embora muitas vezes temesse ser mais parecido com eles do que acreditava. No
entanto raramente ficava impassível, considerando a morte de outrém mais
importante do que o mero esporte que ela representava para a grande maioria dos
drow. Ele não podia rotular tal sensação, pois nunca havia encontrado uma palavra
na linguagem drow que falasse de tal característica, mas para os habitantes da
superfície que mais tarde vieram a conhecer Drizzt, chamava-se consciência.
Um dia, na semana seguinte, Drizzt conseguiu pegar Masoj sozinho do lado de fora
da área desordenada de Menzoberranzan. Sabia que não poderia voltar atrás depois
que desse o golpe fatal, mas não hesitou, deslizando sua cimitarra através das
costelas da vítima desprevenida. Essa foi a única vez em sua vida que matara
alguém de sua própria raça, um ato que o revoltara apesar de seus sentimentos em
relação ao seu povo.
Ele pegou a estatueta e fugiu, com a intenção apenas de encontrar outro dos
inúmeros buracos escuros no vasto subterrâneo para fazer sua morada, mas acabou
indo parar na superfície. Perseguido e sem ser aceito por sua herança em cidade
após cidade no sul populoso, ele se encaminhou para a fronteira selvagem de Dez-
Burgos, um caldeirão de párias, o último posto avançado da humanidade, onde pelo
menos era tolerado.
Ele não se importava muito com o fato de frequentemente ser evitado, mesmo ali.
Ele havia encontrado amizade com o halfling, com os anões, e a filha adotiva de
Bruenor, Cattibrie.
E ele tinha Guenhwyvar ao seu lado.
O drow deu um tapinha no pescoço musculoso da grande gata e saiu do Caminho de
Bremen para encontrar um buraco escuro onde pudesse descansar antes da batalha.
CAPÍTULO 8

Campos Sangrentos

A HORDA ADENTROU NO CAMINHO DE BREMEN pouco antes do meio-dia.


Eles queriam anunciar sua investida gloriosa com uma canção de guerra, mas
entendiam que um certo grau de furtividade era vital para o sucesso do plano de
batalha de DeBernezan.
DeBernezan ficou tranquilo com a visão familiar de velas que pontilhavam as águas
de Maer Dualdon enquanto corria ao lado do rei Haalfdane. Acreditava que a
surpresa seria completa e, com ironia divertida, notou que alguns dos navios já
navegavam com as bandeiras vermelhas que mostravam uma captura. “Mais riqueza
para os vencedores”, sussurrou em voz baixa. Os bárbaros ainda não tinham
começado a canção quando a Tribo do Urso se separou do grupo principal e se
dirigiu para Termalaine, embora a nuvem de poeira que seguiu sua corrida pudesse
dizer a um observador cauteloso que algo fora do comum estava acontecendo. Eles
seguiram em direção a Bryn Shander e gritaram pela primeira vez quando o
galhardete da cidade principal apareceu.
As forças combinadas das quatro cidades de Maer Dualdon estavam escondidas em
Termalaine. Seu objetivo era atacar com força a pequena tribo que avançava sobre a
cidade, subjugando-os o mais rápido possível, depois ir prestar reforço a Bryn
Shander, prendendo o resto da horda entre os dois exércitos. Kemp de Targos estava
no comando dessa operação, mas havia concedido o primeiro golpe a Agorwal,
porta-voz da cidade.
Tochas incendiaram os primeiros prédios da cidade quando o exército selvagem de
Haalfdane entrou correndo. Termalaine era menor apenas que Targos entre as nove
aldeias de pescadores em população, mas era uma cidade extensa e desimpedida,
com casas espalhadas por uma grande área e largas avenidas entre elas. Seu povo
mantinha sua privacidade e um tanto de espaço para respirar, dando à cidade um ar
de solidão que desmentia seus números. Ainda assim, DeBernezan sentiu que as
ruas pareciam extraordinariamente desertas. Mencionou sua preocupação ao rei
bárbaro ao seu lado, embora Haalfdane lhe assegurasse que os ratos haviam se
escondido ante a aproximação do Urso.
— Puxe-os para fora de seus buracos e queime suas casas! — o rei bárbaro rugiu.
— Deixe os pescadores no lago ouvirem os gritos de suas mulheres e verem a
fumaça de sua cidade em chamas!
Mas então uma flecha atingiu o peito de Haalfdane, enterrando-se profundamente
dentro de sua carne e rasgando seu coração. O bárbaro chocado baixou o olhar
horrorizado para a haste vibrante, embora não conseguisse proferir um último grito
antes que a escuridão da morte se aproximasse.
Com seu arco de madeira, Agorwal de Termalaine silenciara o rei da Tribo do Urso.
E com o sinal do ataque de Agorwal, os quatro exércitos de Maer Dualdon
ganharam vida.
Eles saltaram dos telhados de todos os edifícios, das vielas e portas de todas as ruas.
Contra o ataque feroz da multidão, os bárbaros confusos e aturdidos perceberam
imediatamente que sua batalha logo terminaria. Muitos foram abatidos antes que
pudessem preparar suas armas.
Alguns dos invasores endurecidos pelas batalhas conseguiram se unir em pequenos
grupos, mas o povo de Dez-Burgos, lutando por seus lares e pelas vidas de seus
entes queridos, com armas e escudos forjados por ferreiros anões, atacou
imediatamente. Sem medo, os defensores derrubaram os invasores restantes sob o
peso de seus números superiores.
Num beco nos limites de Termalaine, Regis mergulhou atrás da cobertura de uma
pequena carroça enquanto dois bárbaros em fuga passaram. O halfling lutava contra
um dilema pessoal: não queria ser rotulado de covarde, mas não tinha intenção de
saltar para a batalha das pessoas grandes. Quando o perigo passou, tornou a
caminhar ao redor da carroça e tentou planejar seu próximo movimento.
De repente, um homem de cabelos escuros, integrante da milícia de Dez-Burgos,
supôs Regis, entrou no beco e viu o halfling. Regis sabia que sua brincadeira de
esconde-esconde acabara, que chegara a hora de tomar alguma atitude.
— Dois da escória acabaram de passar por este caminho — ele gritou
corajosamente para o sulista de cabelos escuros. — Venha, se formos rápidos, ainda
podemos pegá-los!
DeBernezan tinha planos diferentes, no entanto. Em uma tentativa desesperada de
salvar sua própria vida, ele decidiu deslizar por um beco e sair de outro como um
membro da força das Dez-Burgos. Ele não tinha intenção de deixar nenhuma
testemunha de sua traição. Firmemente, caminhou em direção a Regis, com sua
espada delgada pronta.
Regis sentiu que os maneirismos do homem que se aproximava não estavam certos.
— Quem é você? — ele perguntou, embora não esperasse resposta. Achava que
conhecia quase todos na cidade e achava que nunca tinha aquele homem antes. Ele
já tinha a desconfortável suspeita de que esse era o traidor que Drizzt descrevera
para Bruenor. — Como é que não vi você chegar com os outros mais ce...
DeBernezan enfiou a espada na direção do olho do halfling. Regis, ágil e sempre
alerta, conseguiu sair do caminho, embora a lâmina tenha arranhado a lateral de sua
cabeça e o impulso de sua esquiva o mandado girando para o chão. Com uma calma
perturbadora, de sangue-frio e sem emoção, o homem de cabelos escuros se
aproximou novamente.
Regis ficou de pé e recuou passo a passo com seu agressor. Mas ele bateu contra a
lateral do pequeno carrinho. DeBernezan avançava metodicamente. O halfling não
tinha mais para onde fugir.
Desesperado, Regis puxou o pingente de rubi de baixo do colete.
— Por favor, não me mate — ele implorou, segurando a pedra pela corrente e
deixando-a dançar, sedutora. — Se você me deixar viver, vou te dar isso e mostrar
onde você pode encontrar muito mais! — Regis foi encorajado pela ligeira
hesitação de DeBernezan ao ver a pedra. — Certamente, é uma bela joia e vale todo
o tesouro de um dragão!
DeBernezan manteve a espada na frente dele, mas Regis contou enquanto os
segundos se passavam e o homem de cabelos escuros não piscava. A mão esquerda
do halfling começou a se firmar, enquanto a direita, escondida atrás das costas,
segurava com firmeza o cabo da pequena, mas pesada, maça feita para ele
pessoalmente por Bruenor.
— Venha, veja mais de perto — Regis sugeriu. DeBernezan, sob o feitiço da pedra
cintilante, inclinou-se para examinar melhor sua fascinante dança de luz.
— Isso não é realmente justo — Regis lamentou em voz alta, confiante de que
DeBernezan estava alheio a qualquer coisa que pudesse dizer naquele momento. Ele
bateu a cabeça da maça repleta de espinhos na parte de trás da cabeça do homem
curvado.
Regis observou o resultado de seu trabalho sujo e deu de ombros distraidamente. Só
havia feito o que era necessário.
Os sons da batalha na rua aproximaram-se de seu santuário e dissiparam sua
contemplação. Mais uma vez o halfling agiu por instinto. Ele se arrastou sob o
corpo de seu inimigo abatido, depois virou-se por baixo para dar a impressão de que
ele havia caído sob o peso do homem maior.
Quando inspecionou o dano causado por DeBernezan, ficou contente por não ter
perdido a orelha. Ele esperava que seu ferimento fosse sério o suficiente para dar
credibilidade a essa imagem de uma luta mortal.

O exército principal da força bárbara alcançou a longa e baixa colina que levava a
Bryn Shander sem saber o que acontecera com seus camaradas em Termalaine. Lá
se separaram novamente, com Heafstaag liderando a Tribo do Alce ao redor do lado
leste da colina e Beorg levando o resto da horda direto para a cidade murada. Agora
retomaram o seu canto de batalha, esperando enervar ainda mais as pessoas
chocadas e aterrorizadas de Dez-Burgos.
Mas por trás do muro de Bryn Shander havia uma cena muito diferente da que os
bárbaros imaginavam. O exército da cidade, junto com as forças de Caer-Konig e
Caer-Dineval, estava em prontidão com arcos, lanças e óleo quente.
Em uma sombria ironia, a Tribo do Alce, fora da vista da muralha da frente da
cidade, começou a aplaudir quando os primeiros gritos de morte ecoaram na colina,
pensando que as vítimas eram o povo desprevenido de Dez-Burgos. Alguns
segundos depois, quando Heafstaag conduziu seus homens pela curva mais ao leste
do morro, eles também encontraram o desastre. Os exércitos de Bom Prado e Toca
de Dougan estavam firmemente a postos e os aguardando, e os bárbaros foram
duramente atacados antes mesmo de saberem o que os atingira.
Após os primeiros momentos de confusão, Heafstaag conseguiu recuperar o
controle. Esses guerreiros tinham passado por muitas batalhas juntos, eram
guerreiros experientes e destemidos. Mesmo com as perdas do ataque inicial, não
foram ultrapassados em número pela força diante deles e Heafstaag estava confiante
de que poderia abater os pescadores rapidamente e ainda colocar seus homens em
posição.
Mas então, gritando ao chegar, o exército de Refúgio Leste veio ao longo da Estrada
Leste e atacou os bárbaros pelo flanco esquerdo. E Heafstaag, ainda inabalado,
acabara de ordenar a seus homens que fizessem os devidos ajustes para proteger-se
contra o novo inimigo quando noventa anões experientes e fortemente armados os
atacaram por trás. Os anões mal encarados atacaram em uma formação de cunha
com Bruenor como sua ponta mortal. Eles atravessaram a Tribo do Alce,
derrubando bárbaros como uma foice cortando baixo a grama alta.
Os bárbaros lutaram bravamente e muitos pescadores morreram nas encostas
orientais de Bryn Shander. Mas a Tribo do Alce fora superada em número e
cercada, e o sangue bárbaro vertia mais que o sangue de seus inimigos. Heafstaag se
esforçou muito para reunir seus homens, mas toda a semelhança de formação e
ordem se desintegrou em torno dele. Para seu horror e desgraça, o gigantesco rei
percebeu que todos os seus guerreiros morreriam neste campo se não encontrassem
uma maneira de escapar do círculo de inimigos e fugir para a segurança da tundra.
O próprio Heafstaag, que nunca antes recuara em batalha, liderou a fuga
desesperada. Ele e tantos guerreiros quanto conseguiu reunir contornaram correndo
as tropas anãs, procurando uma rota entre eles e o exército de Refúgio Leste. A
maioria dos membros da tribo fora cortada pelas lâminas do pessoal de Bruenor,
mas alguns conseguiram se libertar do círculo e se afastar em direção ao Sepulcro
de Kelvin.
Heafstaag passou pelo corredor de soldados, matando dois anões enquanto
escapava, mas de repente o rei gigante foi engolido por um globo de escuridão
absoluta e impenetrável. Ele mergulhou de cabeça e emergiu de volta para a luz,
apenas para se ver cara a cara com um elfo negro.

Bruenor tinha sete entalhes para colocar em sua machadinha, e atacava o número
oito, um jovem bárbaro alto e desengonçado, jovem demais para ostentar qualquer
barba no rosto bronzeado, mas ostentando o estandarte da Tribo do Alce com a
compostura de um guerreiro experiente. Bruenor, curioso, analisou o olhar fixo e o
rosto calmo enquanto se aproximava do jovem. Surpreendeu-o o fato de não ter
encontrado o fogo selvagem da sede de sangue dos bárbaros contorcendo as feições
do jovem, mas sim uma profundidade observadora e compreensiva. O anão se viu
lamentando de verdade ter que matar alguém tão jovem e incomum, e sua pena o
fez hesitar um pouco quando os dois se encontraram em batalha.
Porém, fruto de uma herança feroz, o jovem não demonstrava medo, e a hesitação
de Bruenor lhe concedera o primeiro golpe. Com precisão mortal, bateu seu bastão
sobre o seu inimigo, quebrando-o ao meio. O golpe poderoso amassou o elmo de
Bruenor e sacudiu o anão em um pequeno salto. Duro como a pedra da montanha
que minerava, Bruenor pôs as mãos nos quadris e olhou para o bárbaro, que quase
deixou cair a arma, tão chocado que estava pelo anão ainda permanecer de pé.
— Garoto tolo — Bruenor rosnou quando cortou as pernas do jovem debaixo dele.
— Você nunca ouviu que não se deve bater em um anão na cabeça? — o jovem
tentou desesperadamente recuperar o equilíbrio, mas Bruenor bateu o escudo de
ferro em seu rosto.
— Oito! — rugiu o anão enquanto se afastava em busca do número nove. Mas ele
olhou para trás por um momento para considerar o jovem caído, balançando a
cabeça ante a perda de alguém tão alto e ereto, com olhos inteligentes para
combinar com suas proezas físicas, uma combinação incomum entre os selvagens e
ferozes nativos de Vale do Vento Gélido.

A raiva de Heafstaag dobrou quando reconheceu seu mais novo oponente como um
elfo drow.
— Cão feiticeiro! — ele gritou, levantando seu enorme machado para o céu.
Enquanto ele falava, Drizzt sacudiu um dedo e chamas púrpuras cobriram o bárbaro
alto da cabeça aos pés. Heafstaag rugiu horrorizado com o fogo mágico, embora as
chamas não lhe queimassem a pele. Drizzt aproximou-se, com suas duas cimitarras
girando e apontando, atacando alto e baixo rápido demais para o rei bárbaro desviar
de ambas.
O sangue escorria de muitas pequenas feridas, mas Heafstaag parecia capaz de
aguentar os cortes das cimitarras delgadas como nada além de um desconforto. O
grande machado desceu e, embora Drizzt conseguisse interceptar o seu curso, o
esforço entorpeceu seu braço. Novamente o bárbaro brandiu seu machado. Desta
vez, Drizzt conseguiu desviar de seu arco mortal, e a conclusão da rotação do drow
deixou Heafstaag desequilibrado e tropeçando, aberto para um contra-ataque. Drizzt
não hesitou, empurrando uma de suas lâminas profundamente no flanco do rei
bárbaro.
Heafstaag uivou em agonia e lançou um golpe de costas de mão em retaliação.
Drizzt pensou que seu último ataque seria fatal, e sua surpresa foi total quando a
parte chata do machado de Heafstaag bateu em suas costelas e o lançou pelo ar. O
bárbaro atacou logo depois, na intenção de finalizar este perigoso oponente antes
que ele pudesse recuperar o equilíbrio.
Mas Drizzt era tão ágil quanto um gato. Ele aterrissou em um rolamento e foi ao
encontro da investida de Heafstaag com uma de suas cimitarras firmemente
colocada. Com seu machado posicionado impotente acima de sua cabeça, o
surpreso bárbaro não conseguiu parar seu impulso antes de empalar sua barriga na
ponta afiada. Ainda assim, olhou para o drow e começou a balançar o machado. Já
convencido da força sobre-humana do bárbaro, Drizzt mantivera a guarda dessa
vez. Ele golpeou sua segunda lâmina logo abaixo da primeira, abrindo a parte
inferior do abdômen de Heafstaag ao longo do quadril.
O machado de Heafstaag caiu inofensivamente no chão quando ele agarrou a ferida,
desesperado, tentando evitar que o conteúdo de sua barriga se esparramasse. Sua
cabeça enorme balançava de um lado para o outro, o mundo girava ao redor dele, e
se sentia caindo para sempre.
Vários outros homens da tribo, em plena fuga e com anões logo atrás deles,
chegaram naquele momento e viram seu rei antes que ele caísse no chão. Tão
grande era a dedicação deles a Heafstaag que dois deles o ergueram e o levaram
embora, enquanto os outros se viravam para enfrentar a próxima maré de anões,
sabendo que certamente seriam abatidos, mas esperando apenas dar aos seus
companheiros tempo suficiente para levar seu rei para a segurança.
Drizzt rolou para longe dos bárbaros e ficou de pé, querendo perseguir os dois que
carregavam Heafstaag. Ele tinha um sentimento doentio de que o terrível rei
sobreviveria até às últimas graves feridas, e estava determinado a terminar o
trabalho. Mas quando se levantou, também sentiu o mundo girando. O lado de sua
capa estava manchado com seu próprio sangue, e de repente ficou difícil recuperar
o fôlego. O sol escaldante do meio-dia queimava em seus olhos noturnos, e ele
estava ensopado de suor.
Drizzt desmoronou na escuridão.

Os três exércitos que esperavam atrás da muralha de Bryn Shander rapidamente


despacharam a primeira linha de invasores e conduziram o restante da hoste bárbara
até meio caminho morro abaixo. Destemida e acreditando que o tempo agiria em
seu favor, a horda se reagrupara em torno de Beorg e começara uma marcha firme e
cautelosa de volta à cidade.
Quando os bárbaros ouviram a investida subindo a encosta leste, presumiram que
Heafstaag havia terminado sua batalha ao lado da colina, ficou sabendo da
resistência no portão da frente e tinha voltado para ajudá-los a invadir a cidade.
Então Beorg viu tribos fugindo para o norte em direção ao Passo do Vento Gélido, o
trecho de terra oposto ao Caminho de Bremen que passava entre Lac Dinneshere e o
lado oeste do Sepulcro de Kelvin. O rei da Tribo do Lobo sabia que seu povo estava
em apuros. Não oferecendo nenhuma explicação além da promessa da ponta de sua
lança para qualquer um que questionasse suas ordens, Beorg virou seus homens
para se afastar da cidade, esperando se reagrupar com Haalfdane e a Tribo do Urso,
salvando o máximo de seu povo que pudesse.
Antes mesmo que terminassem a reversão da marcha, encontrou Kemp e os quatro
exércitos de Maer Dualdon atrás dele, com suas fileiras reduzidas pela matança em
Termalaine. Sobre o muro, vieram os exércitos de Bryn Shander, Caer-Konig e
Caer-Dineval, e ao redor da colina veio Bruenor, liderando o clã dos anões e os
últimos três exércitos de Dez-Burgos.
Beorg ordenou que seus homens fizessem um círculo apertado.
— Tempus está assistindo. — gritou para eles. — Deixe-o orgulhoso de seu povo!
Quase oitocentos bárbaros permaneceram e lutaram com a confiança da bênção de
seu deus. Eles mantiveram sua formação por quase uma hora, cantando e morrendo,
antes que as linhas quebrassem e o caos irrompesse.
Menos de cinquenta escaparam com suas vidas.

Depois que os últimos golpes finalmente foram dados, os exaustos guerreiros de


Dez-Burgos começaram a tarefa sombria de contar suas perdas. Mais de quinhentos
dos seus companheiros tinham sido mortos e duzentos mais eventualmente
morreriam por conta de seus ferimentos, ainda assim, o preço não era alto
considerando os dois mil bárbaros que jaziam mortos nas ruas de Termalaine e nas
encostas de Bryn Shander.
Muitos heróis haviam sido feitos naquele dia, e Bruenor, embora ansioso para voltar
aos campos de batalha orientais para procurar por companheiros desaparecidos,
parou por um longo momento enquanto o último deles era carregado em glória
colina acima para Bryn Shander.
— Pança-furada? — exclamou o anão.
— O nome é Regis — o halfling retrucou de seu poleiro, orgulhosamente cruzando
os braços sobre o peito.
— Respeito, anão — disse um dos homens carregando Regis. — Em duelo, o porta-
voz Regis de Bosque Solitário matou o traidor que trouxe a horda sobre nós, apesar
de ter sido ferido na batalha.
Bruenor bufou divertido enquanto a procissão passava.
— Há mais nesse conto do que o que foi dito, posso apostar! — ele riu para seus
companheiros. — Ou sou um gnomo com barba!

Kemp de Targos e um de seus tenentes foram os primeiros a passar pela forma caída
de Drizzt Do’Urden. Kemp cutucou o elfo negro com a ponta da bota manchada de
sangue, arrancando um gemido em resposta.
— Está vivo — disse Kemp ao seu tenente com um sorriso divertido. — Uma pena.
— ele chutou o drow ferido novamente, desta vez com mais entusiasmo. O outro
homem riu em aprovação e ergueu o próprio pé para se juntar à brincadeira.
De repente, um punho atingiu o rim de Kemp com força suficiente para lançar o
porta-voz sobre Drizzt e mandá-lo quicando ao longo do extenso declive da colina.
Seu tenente girou ao redor, convenientemente abaixando-se para receber o segundo
soco de Bruenor no rosto.
— Um para você também! — o anão enfurecido rosnou quando sentiu o nariz do
homem se despedaçar sob o golpe.
Cassius de Bryn Shander, vendo o incidente do alto da colina, gritou de raiva e
desceu correndo a encosta em direção a Bruenor.
— Você deveria aprender alguma diplomacia! — ele repreendeu.
— Fique onde está, filho de um porco do pântano! — foi a resposta ameaçadora de
Bruenor. — Vocês devem ao drow suas vidas e lares — rugiu a todos que podiam
ouvi-lo —, e vocês o tratam como um verme!
— Meça suas palavras, anão! — replicou Cassius, agarrando hesitante o punho da
espada. Os anões formaram uma linha ao redor de seu líder, e os homens de Cassius
se reuniram em torno dele.
Então uma terceira voz soou com clareza.
— Meça as suas, Cassius — advertiu Agorwal de Termalaine. — Eu teria feito a
mesma coisa com Kemp se tivesse a coragem do anão! — ele apontou para o norte.
— O céu está claro — gritou. — Mas, se não fosse pelo drow, estaria preenchido
com a fumaça de Termalaine em chamas!
O porta-voz de Termalaine e seus companheiros se aproximaram da linha de
Bruenor. Dois dos homens gentilmente levantaram Drizzt do chão.
— Não tema pelo seu amigo, valente anão — disse Agorwal. — Ele será bem
cuidado em minha cidade. Nunca mais eu, ou meus companheiros de Termalaine, o
julgaremos pela cor de sua pele e pela reputação de seus parentes!
Cassius estava ultrajado.
— Retire seus soldados do território de Bryn Shander! — gritou para Agorwal, mas
era uma ameaça vazia, pois os homens de Termalaine já estavam partindo.
Satisfeito pelo fato de o drow estar em boas mãos, Bruenor e seu clã passaram a
procurar pelo resto do campo de batalha.
— Eu não vou me esquecer disso! — Kemp gritou para ele de longe, colina abaixo.
Bruenor cuspiu na direção do porta-voz de Targos e continuou, inabalável.
E assim foi que a aliança do povo de Dez-Burgos só durou tanto quanto seu inimigo
comum.
Epílogo

AO LONGO DA COLINA, os pescadores de Dez--Burgos passavam entre seus


inimigos caídos, saqueando os bárbaros de qualquer pequena riqueza que
possuíssem e enterrando a espada nos infelizes que não estavam ainda mortos.
No entanto, em meio à carnificina da cena sangrenta, um dedo de misericórdia fora
encontrado. Um homem de Bom Prado rolou a forma inerte de um jovem bárbaro
inconsciente sobre suas costas, preparando-se para terminar o trabalho com sua
adaga. Bruenor aproximou-se deles e, reconhecendo o jovem como o porta-
estandarte que havia amassado seu capacete, parou o ataque do pescador.
— Não o mate. Ele é só um garoto, e não pode saber de verdade o que ele e seu
povo fizeram.
—Ah! — bufou o pescador. — Que misericórdia esses cães teriam mostrado aos
nossos filhos, eu pergunto? Ele está com o pé na cova, de qualquer maneira.
— Ainda assim, peço a você para deixá-lo! — Bruenor resmungou, com seu
machado quicando impaciente em seu ombro. — Na verdade, eu insisto!
O pescador devolveu a carranca do anão, mas havia testemunhado a habilidade de
Bruenor na batalha e achou que seria melhor não provocá-lo muito. Com um
suspiro de desgosto, caminhou pela colina para encontrar vítimas menos protegidas.
O garoto se mexeu na grama e gemeu.
— Então você ainda tem um pouco de vida aí — disse Bruenor.
Ele ajoelhou-se ao lado da cabeça do rapaz e levantou-a pelos cabelos para
encontrar seus olhos:
— Me ouça bem, garoto. Salvei sua vida aqui. Não sei bem o motivo... mas não
ache que foi perdoado pelo povo de Dez-Burgos. Quero que veja o desastre que seu
povo trouxe. Talvez matar esteja em seu sangue, e se estiver, que a lâmina do
pescador acabe com você aqui e agora! Mas estou sentindo que há mais em você e
você terá tempo para me mostrar isso. Você deve servir a mim e a meu povo em
nossas minas por cinco anos e um dia para provar que é digno de vida e liberdade.
Bruenor viu que o jovem havia caído de novo na inconsciência.
— Deixa pra lá — murmurou. — Você vai me ouvir bastante antes de tudo acabar,
tenha certeza disso — ele se levantou para deixar cair a cabeça de volta para a
grama, mas, ao invés disso, colocou-a suavemente em seu lugar.
As testemunhas do espetáculo do anão rude mostrando bondade para o jovem
bárbaro ficaram realmente surpresas, mas ninguém conseguiu adivinhar as
implicações do que haviam visto. O próprio Bruenor, apesar de todas as suas
suposições do caráter desse bárbaro, não poderia prever que esse menino, Wulfgar,
se tornaria o homem que reformularia essa região da tundra.

Ao longe, ao sul, entre os picos imponentes da Espinha do Mundo, Akar Kessell


esvaía-se na vida mansa que Crenshinibon lhe proporcionara. Seus escravos goblins
tinham capturado outra fêmea de uma caravana mercante para ele brincar, mas algo
mais chamou sua atenção. Fumaça, subindo no céu vazio na direção de Dez-Burgos.
— Bárbaros — adivinhou Kessell. Tinha ouvido rumores de que as tribos estavam
se reunindo quando ele e os magos de Luskan estavam visitando Refúgio Leste.
Mas isso não importava para ele, e por que deveria? Tinha tudo o que precisava ali
em Cryshal-Tirith e não queria viajar para outro lugar.
Nenhum desejo que viesse por sua própria vontade.
Crenshinibon era uma relíquia que estava verdadeiramente viva em sua magia. E
parte de sua vida era o desejo de conquistar e comandar. O Fragmento de Cristal
não estava contente com a existência em uma cordilheira desolada, onde os únicos
criados eram goblins quaisquer. Ele queria mais. Queria poder.
As lembranças subconscientes de Dez-Burgos de Kessell quando localizara a coluna
de fumaça despertaram a fome da relíquia, que agora usava o mesmo poder
empático de sugestão em Kessell.
Uma imagem repentina captou as necessidades mais profundas do mago. Ele se viu
sentado em um trono em Bryn Shander, imensamente rico e respeitado por todos em
sua corte. Imaginou a resposta da Torre Central do Arcano em Luskan quando os
magos de lá, especialmente Eldulac e Dendybar, soubessem sobre Akar Kessell,
Lorde de Dez-Burgos e Governante de todo o Vale do Vento Gélido! Será que então
eles lhe ofereceriam um manto em sua ordem insignificante?
Apesar do verdadeiro prazer de Kessell pela existência vagarosa que encontrara, o
pensamento lhe atraía. Ele deixou sua mente continuar pela fantasia, explorando os
caminhos que poderia seguir para atingir um objetivo tão ambicioso.
Ele descartou a tentativa de dominar os pescadores como dominara a tribo dos
goblins, pois até os menos inteligentes dos goblins resistiram à sua imponente
vontade por um bom tempo. E quando algum deles se afastava da área imediata da
torre, recuperava a capacidade de determinar suas próprias ações e fugia para as
montanhas. Não, a simples dominação não funcionaria contra os humanos.
Kessell ponderou usando o poder que sentia pulsando dentro da estrutura de
Cryshal-Tirith, forças destrutivas além de qualquer coisa de que já tivesse ouvido
falar, mesmo na Torre Central. Isso ajudaria, mas não seria suficiente. Até mesmo a
força de Crenshinibon era limitada, exigindo longos períodos de tempo sob o sol
para reunir poder para substituir a energia gasta. Além disso, em Dez-Burgos havia
pessoas demais, espalhadas demais para serem encurraladas por uma única esfera
de influência e Kessell não queria destruí-las todas. Goblins eram convenientes;
mas o mago desejava que os humanos se curvassem diante dele, homens de verdade
como os que o haviam perseguido por toda a sua vida.
Por toda a sua vida antes de ganhar o fragmento.
Suas ponderações acabaram por levá-lo inevitavelmente à mesma linha de
raciocínio. Ele precisaria de um exército.
Ele considerou os goblins que comandava. Fanaticamente dedicados a todos os seus
desejos, morreriam de bom grado por ele (na verdade, vários já haviam morrido).
No entanto, nem sequer eram numerosos o bastante para engolir a vasta região dos
três lagos com alguma força.
E um pensamento maligno, mais uma vez secretamente insinuado em sua vontade
pelo Fragmento de Cristal, encontrou o mago:
— Quantos buracos e cavernas — gritou Kessell em voz alta — estão nessa vasta e
acidentada cordilheira montanhosa? E quantos goblins, ogros, até mesmo trolls e
gigantes abrigam?
O começo de uma visão sinuosa tomou forma em sua mente. Ele se viu à frente de
um enorme exército de goblins e gigantes, varrendo as planícies, imbatível e
irresistível.
Como ele faria os homens tremerem!
Deitou-se em um travesseiro macio e chamou a nova garota do harém. Ele tinha
outro jogo em mente, um que também lhe ocorrera em um sonho estranho; ele a
faria implorar e choramingar e, finalmente, morrer. O mago decidiu, entretanto, que
consideraria as possibilidades de domínio de Dez-Burgos que se abriram à sua
frente. Mas não havia necessidade de se apressar; ele tinha tempo. Os goblins
sempre poderiam encontrar outro brinquedo para ele.
Crenshinibon também parecia estar em paz. Colocara a semente dentro da mente de
Kessell, uma semente que sabia que germinaria em um plano de conquista.
Mas, como Kessell, a relíquia não precisava de pressa. O Fragmento de Cristal
esperara dez mil anos para voltar à vida e ver essa oportunidade de poder tremeluzir
novamente. Poderia esperar mais alguns.
Parte 2

Wulfgar

TRADIÇÃO.
O próprio som da palavra invoca um senso de gravidade e solenidade. Tradição.
Suuz’chok na língua drow, e nela também, como em todas as línguas que já ouvi, a
palavra sai da sua língua com um tremendo peso e poder.
Tradição. É a raiz de quem somos, o elo com a nossa herança, o lembrete de que
nós, como povo, se não individualmente, atravessaremos as eras. Para muitas
pessoas e muitas sociedades, a tradição é a fonte da estrutura e da lei, o fato
permanente da identidade que nega as afirmações contrárias do fora da lei ou o mau
comportamento do renegado. É esse som ecoando no fundo de nossos corações,
nossas mentes e nossas almas que nos lembra de quem nós somos reforçando quem
nós éramos. Para muitos, é ainda mais que a lei; é a religião, guiando a fé enquanto
ela guia a moralidade e a sociedade. Para muitos, a tradição é um deus em si, os
antigos rituais e textos sagrados, rabiscados em pergaminhos ilegíveis amarelados
pela idade ou esculpidos em rochas eternas.
Para muitos, tradição é tudo.
Pessoalmente, a vejo como uma faca de dois gumes, e uma que pode cortar ainda
mais fundo no caminho do erro.
Vi o funcionamento da tradição em Menzoberranzan, o sacrifício ritualístico do
terceiro filho do sexo masculino (que quase fora meu próprio destino), o
funcionamento das três escolas drow. A tradição justificou os avanços de minha
irmã em minha direção na formatura de Arena-Magthere e negou-me quaisquer
reclamações contra aquela cerimônia infeliz. A tradição mantém as Matriarcas no
poder, limitando a ascensão de qualquer homem. Mesmo as guerras cruéis de
Menzoberranzan, casa contra casa, estão enraizadas na tradição, são justificadas
porque essa é a forma como tudo sempre foi.
Essas falhas não são exclusivas dos drow. Muitas vezes, sento-me na face norte do
Sepulcro de Kelvin, olhando a tundra vazia e as luzes cintilantes das fogueiras nos
vastos acampamentos bárbaros. Lá também existe um povo totalmente consumido
pela tradição, um povo agarrado a códigos e modos antigos que antes lhes
permitiam sobreviver como uma sociedade em uma terra inóspita, mas que agora os
atrapalham tanto ou mais do que os ajudam. Os bárbaros de Vale do Vento Gélido
seguem o rebanho de caribus de um lado do vale para o outro. Em dias que há
muito se foram, essa era a única maneira pela qual poderiam ter sobrevivido aqui,
mas quão mais fácil seria sua existência agora se eles apenas negociassem com o
povo de Dez-Burgos, oferecendo peles e boa carne em troca de materiais mais
fortes trazidos do sul para construir casas mais duradouras para si mesmos?
Em dias que há muito se foram, antes que qualquer civilização real se arrastasse até
tão a norte, os bárbaros se recusavam a falar, ou mesmo aceitar, qualquer outra
pessoa dentro do Vale do Vento Gélido, as várias tribos muitas vezes se unindo com
o único propósito de expulsar qualquer intruso. Naqueles tempos passados,
qualquer recém-chegado inevitavelmente se tornaria um rival pela parca comida e
outros suprimentos escassos, e assim a xenofobia era necessária para a
sobrevivência básica.
O povo de Dez-Burgos, com suas avançadas técnicas de pesca e seu rico comércio
com o Luskan, não são rivais dos bárbaros – a maioria nunca sequer comeu carne
de veado, imagino. E, no entanto, a tradição exige dos bárbaros que não façam
amizade com essas pessoas e, na verdade, muitas vezes guerreiem contra elas.
Tradição.
Que gravidade essa palavra transmite! Que poder ela exerce! Enquanto nos enraíza
e nos fundamenta e nos dá esperança por quem somos por causa de quem éramos,
também destrói e nega a mudança.
Nunca fingiria entender outro povo bem o suficiente para exigir que mudasse suas
tradições, mas como me parece tolo se manter firme e inflexível em relação a
costumes e modos sem nenhuma consideração por quaisquer mudanças que tenham
ocorrido no mundo ao nosso redor.
Pois esse mundo é um lugar em mudança, movido pelos avanços da tecnologia e da
magia, pela ascensão e queda das populações, até mesmo pela mistura de raças,
como nas comunidades de meio-elfos. O mundo não é estático, e se as raízes de
nossas percepções, tradições, se mantêm estáticas, então estamos condenados, eu
digo, a um dogma destrutivo.
Então nós caímos na lâmina mais sombria daquela espada de dois gumes.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 9

Não Mais Um Garoto

REGIS ESTICOU-SE PREGUIÇOSAMENTE contra a sua árvore favorita e


desfrutou de um bocejo prolongado, com as suas covinhas angelicais radiantes ante
o brilhante raio de sol que de alguma forma chegou até ele através dos galhos
densamente apertados. Sua vara de pescar estava parada ao lado dele, embora seu
anzol tivesse sido limpo de qualquer isca há muito tempo. Regis raramente pegava
qualquer peixe, mas se orgulhava de nunca desperdiçar mais do que uma minhoca.
Ele ia ali todos os dias desde o seu retorno a Bosque Solitário. Ele passava o
inverno em Bryn Shander agora, desfrutando da companhia de seu bom amigo,
Cassius. A cidade na colina não se comparava a Porto Calim, mas o palácio de seu
porta-voz era o mais próximo que havia de luxo em todo o Vale do Vento Gélido.
Regis achou-se bastante inteligente para persuadir Cassius a convidá-lo a passar os
invernos rigorosos ali.
Uma brisa fresca soprava ao longo de Maer Dualdon, arrancando um suspiro
contente do halfling. Embora Kythorn já tivesse passado da metade, este era o
primeiro dia quente da curta estação. E Regis estava determinado a aproveitá-lo ao
máximo. Pela primeira vez em mais de um ano ele tinha saído antes do meio dia, e
planejava ficar naquele lugar, despojado de suas roupas, deixando o sol afundar seu
calor em cada centímetro de seu corpo até o último brilho vermelho do pôr-do-sol.
Um grito de raiva no lago chamou sua atenção. Ele levantou a cabeça e abriu
parcialmente uma pálpebra pesada. A primeira coisa que notou, para sua completa
satisfação, foi que sua barriga crescera consideravelmente durante o inverno e,
desse ângulo, deitado de costas, podia ver apenas as pontas dos dedos dos pés.
No meio da água, quatro barcos, dois de Termalaine e dois de Targos, disputavam a
posição, correndo um atrás do outro com giros e curvas repentinas, enquanto seus
marinheiros xingavam e cuspiam nos barcos que brandiam a bandeira da outra
cidade. Nos últimos quatro anos e meio, desde a Batalha de Bryn Shander, as duas
cidades estavam virtualmente em guerra. Embora suas batalhas fossem mais
frequentemente combatidas com palavras e punhos do que com armas, mais de um
navio havia sido atingido por outro, ou forçosamente conduzido para rochas ou para
a praia em águas rasas.
Regis deu de ombros impotente e deixou cair a cabeça em seu colete dobrado. Nada
mudou muito em Dez-Burgos nos últimos anos. Regis e alguns dos outros porta-
vozes tinham alimentado grandes esperanças de uma comunidade unida, apesar da
discussão acalorada após a batalha entre Kemp de Targos e Agorwal de Termalaine
sobre o drow.
Mesmo às margens do lago, o período de boa vontade foi de curta duração entre os
rivais de longa data. A trégua entre Caer-Dineval e Caer-Konig durou apenas até a
primeira vez que um dos barcos de Caer-Dineval conseguiu uma truta valiosa e rara
de um metro e meio no trecho de Lac Dinneshere que Caer-Konig havia cedido
como compensação pelas águas que perdera para a frota em expansão de Refúgio
Leste.
Além disso, Bom Prado e Toca de Dougan, as cidades normalmente despretensiosas
e ferozmente independentes no lago mais ao sul, Águas Rubras, exigiram
corajosamente uma compensação de Bryn Shander e Termalaine. Eles haviam
sofrido mortes espantosas na batalha de Bryn Shander, embora nunca tivessem
considerado o caso como problema deles. Raciocinaram que as duas cidades que
mais tinham ganhado com o esforço unido deveriam ser forçadas a pagar. As
cidades do norte, é claro, recusaram a proposta.
E assim a lição dos benefícios da unificação fora ignorada.
As dez comunidades permaneciam tão divididas quanto antes.
Na verdade, a cidade que mais se beneficiara da batalha era Bosque Solitário. A
população de Dez-Burgos permaneceu razoavelmente constante. Muitos caçadores
de fortunas ou patifes fugitivos continuaram a infiltrar-se na região, mas um número
igual fora morto ou ficou desencantado com as condições brutais e voltou para o
sul, mais civilizado e hospitaleiro.
Bosque Solitário, no entanto, crescera consideravelmente. Maer Dualdon, com o
seu rendimento consistente da truta cabeça-dura, continuou a ser o mais rentável
dos lagos, e com os combates entre Termalaine e Targos, e Bremen empoleirada
precariamente nas margens do imprevisível e muitas vezes transbordante Rio
Shaengarne, Bosque Solitário parecia a mais atraente das quatro cidades. As
pessoas da pequena comunidade até lançaram uma campanha para atrair recém-
chegados, citando Bosque Solitário como a “Casa do Herói Halfling” e como o
único lugar com árvores que provinha sombra em um raio de quase cem
quilômetros.
Regis havia renunciado à sua posição de porta-voz logo após a batalha, uma escolha
mutualmente feita por ele e pelo povo de sua cidade. Com Bosque Solitário
ganhando maior destaque e se livrando de sua reputação como um caldeirão de
bandidos, a cidade precisava de uma pessoa mais agressiva para se sentar no
conselho. E Regis simplesmente não queria mais se incomodar com a
responsabilidade.
É claro que Regis havia encontrado uma maneira de transformar sua fama em lucro.
Todos os novos colonos da cidade tinham que pagar uma parte de suas primeiras
capturas em troca do direito de hastear a bandeira de Bosque Solitário, e Regis
persuadira o novo porta-voz e os outros líderes da cidade que, desde que seu nome
foi usado para ajudar a trazer nos novos colonos, ele deveria receber uma parte
dessas taxas.
O halfling ostentava um largo sorriso sempre que pensava em sua boa sorte. Ele
passava os dias em paz, indo e voltando à vontade, principalmente só deitando
contra o musgo de sua árvore favorita, jogando uma linha na água uma vez e
deixando o dia passar.
Sua vida tomara um rumo confortável, embora o único trabalho que ele tivesse
fosse esculpir os ossos das trutas. Suas peças produziam dez vezes seu valor antigo,
o preço inflacionado parcialmente pelo pequeno grau de fama do halfling, mas
principalmente porque ele havia persuadido alguns especialistas que visitavam Bryn
Shander que seu estilo e corte únicos davam à peça um valor artístico e estético
especial.
Regis deu um tapinha no pingente de rubi que descansava em seu peito nu. Parecia
que ele poderia “persuadir” quase qualquer pessoa de quase qualquer coisa hoje em
dia.

O martelo bateu no metal brilhante. Faíscas saltaram da plataforma da bigorna em


um arco de fogo, depois morreram na penumbra da câmara de pedra. O martelo
pesado bateu de novo e de novo, guiado sem esforço por um braço enorme e
musculoso.
O ferreiro usava apenas um par de calças e um avental de couro amarrado em volta
da cintura na câmara pequena e quente. Linhas negras de fuligem haviam se
acomodado nas ranhuras musculares de seus largos ombros e peito, e ele brilhava de
suor na luz alaranjada da forja. Seus movimentos eram marcados por uma facilidade
tão rítmica e incansável que pareciam quase sobrenaturais, como se ele fosse o deus
que forjara o mundo nos dias anteriores ao homem mortal.
Um sorriso de aprovação se espalhou por seu rosto quando ele sentiu a rigidez do
ferro finalmente ceder um pouco sob a força de seus golpes. Nunca antes ele sentira
tanta força no metal; isso o testou até os limites de sua própria resistência, e ele
sentiu um arrepio tão sedutor quanto a emoção da batalha quando finalmente se
provou mais forte.
— Bruenor ficará satisfeito.
Wulfgar parou por um momento e considerou as implicações de seus pensamentos,
sorrindo apesar de como lembrava de si mesmo nos primeiros dias nas minas dos
anões. Que jovem teimoso e raivoso ele tinha sido então, roubado de seu direito de
morrer no campo de honra por um anão reclamão que justificava a compaixão não
requisitada rotulando-a como um “bom negócio”.
Esta era a sua quinta e última primavera servindo aos anões em túneis que
mantinham sua estrutura de mais de dois metros continuamente curvada. Ansiava
pela liberdade da tundra aberta, onde podia esticar os braços para o calor do sol ou
para a atração intangível da lua. Ou deitado de costas com as pernas abertas, com o
vento incessante fazendo cócegas com sua mordida gelada e as estrelas cristalinas
enchendo sua mente com visões místicas de horizontes desconhecidos.
E, no entanto, apesar de todos os inconvenientes, Wulfgar tinha que admitir que
sentiria falta das cervejas quentes e do barulho constante dos corredores dos anões.
Ele havia se apegado ao código brutal de seu povo, que definia a captura como
desgraça, durante o primeiro ano de sua servidão, recitando a Canção de Tempus
como uma ladainha de força contra a insinuação de fraqueza na companhia dos
sulistas moles e civilizados.
No entanto, Bruenor era tão sólido quanto o metal que ele socava. O anão
abertamente professava não ter amor pela batalha, mas sacudia seu machado
marcado com precisão mortal e dava de ombros a golpes que derrubariam um ogro.
O anão tinha sido um enigma para Wulfgar nos primeiros dias de seu
relacionamento. O jovem bárbaro fora obrigado a conceder a Bruenor um certo
respeito, pois Bruenor o superara no campo de honra. Mesmo assim, com as linhas
de batalha definindo firmemente os dois como inimigos, Wulfgar havia reconhecido
uma genuína e profundamente enraizada afeição nos olhos do anão que o confundia.
Ele e seu povo haviam ido saquear Dez-Burgos, mas a atitude subjacente de
Bruenor parecia mais a preocupação de um pai severo do que a perspectiva
insensível do mestre de um escravo. Wulfgar sempre se lembrava de sua posição
nas minas, no entanto, porque Bruenor era muitas vezes rude e insultuoso, pondo
Wulfgar para trabalhar em tarefas servis, às vezes degradantes.
A raiva de Wulfgar se dissipou durante os meses. Ele chegara aceitar sua penitência
com estoicismo, atendendo aos comandos de Bruenor sem questionamento.
Gradualmente, as condições melhoraram.
Bruenor ensinara-o a trabalhar na forja e, mais tarde, a transformar o metal em belas
armas e ferramentas. E, finalmente, em um dia que Wulfgar jamais esqueceria,
recebera sua própria forja e bigorna, onde poderia trabalhar sozinho e sem
supervisão – embora Bruenor frequentemente enfiasse a cabeça para resmungar
ante um golpe inexato ou para dar algumas dicas. Mais do que o grau de liberdade,
porém, a pequena oficina restaurara o orgulho de Wulfgar. Desde a primeira vez em
que ergueu o martelo de ferreiro que chamava de seu, o estoicismo metódico de um
criado fora substituído pela ânsia e devoção meticulosa de um verdadeiro artesão. O
bárbaro viu-se preocupado com a menor rebarba, às vezes refazendo uma peça
inteira para corrigir uma ligeira imperfeição. Wulfgar ficou satisfeito com essa
mudança em sua perspectiva, encarando-a como um atributo que poderia servir-lhe
bem no futuro, embora ainda não entendesse como.
Bruenor chamava isso de “caráter”.
O trabalho também pagou dividendos fisicamente. Cortar pedras e martelar o metal
tinha forjado os músculos do bárbaro, redefinindo a estrutura desajeitada de sua
juventude em uma forma endurecida de força inigualável. E ele possuía grande
resistência, pois o ritmo dos incansáveis anões fortalecera seu coração e esticara
seus pulmões a novos limites.
Wulfgar mordeu o lábio, envergonhado, enquanto recordava vividamente seu
primeiro pensamento consciente depois da Batalha de Bryn Shander. Ele prometera
pagar a Bruenor com sangue assim que cumprisse os termos de sua servidão.
Compreendia agora, para sua própria surpresa, que se tornara um homem melhor
sob a tutela de Bruenor Martelo de Batalha, e o simples pensamento de erguer uma
arma contra o anão o deixava enjoado.
Ele transformou sua emoção repentina em movimento, batendo o martelo contra o
ferro, deixando sua cabeça incrivelmente dura cada vez mais na aparência de uma
lâmina. Esta peça faria uma boa espada.
Bruenor ficaria satisfeito.
CAPÍTULO 10

A União Sombria

TORGA, O ORC, ENCARAVA GROCK, O GOBLIN, com claro desprezo. Suas


respectivas tribos estiveram em guerra por muitos anos, desde quanto qualquer
membro vivo dos dois grupos poderia se lembrar. Eles dividiam um vale na Espinha
do Mundo e competiam por terra e comida com a brutalidade indicativa de suas
raças bélicas.
E agora estavam em terra comum sem armas sacadas, compelidos a este local por
uma força ainda maior do que o ódio que sentiam um pelo outro. Em qualquer outro
lugar, em qualquer outro momento, as tribos nunca poderiam ter estado tão
próximas sem entrar em uma batalha feroz. Mas agora, tinham que se contentar com
ameaças vazias e olhares perigosos, pois tinham sido ordenados a deixar de lado
suas diferenças.
Torga e Grock se viraram e caminharam, lado a lado, até a estrutura que continha o
homem que seria seu mestre.
Entraram em Cryshal-Tirith e pararam diante de Akar Kessell.

Mais duas tribos se juntaram a suas fileiras crescentes. Por todo o planalto que
abrigava sua torre via-se os estandartes de vários bandos de goblins: os Goblins das
Lanças Sinuosas, os Orcs Retalhadores, os Orcs da Língua Cortada e muitos outros,
todos vindos para servir ao mestre. Kessell tinha até mesmo atraído um grande clã
de ogros, um punhado de trolls e quarenta verbeegs renegados, os menores dos
gigantes, mas gigantes, de qualquer forma.
Porém, sua maior conquista foi um grupo de gigantes de gelo que simplesmente
apareceu, desejando apenas agradar o portador de Crenshinibon.
Kessell estivera bastante contente com sua vida em Cryshal-Tirith, com todos os
seus caprichos obededecidos pela primeira tribo de goblins que havia encontrado.
Os goblins tinham até mesmo sido capazes de invadir uma caravana comercial e
fornecer ao mago algumas mulheres humanas para seus prazeres. A vida de Kessell
era suave e fácil, do jeito que ele gostava.
Mas Crenshinibon não estava contente. A fome de poder da relíquia era insaciável.
Ele iria se contentar com pequenos ganhos por um curto período de tempo e, então,
exigiria que o seu usuário passasse para conquistas maiores. Não se oporia
abertamente a Kessell, pois, na constante guerra de vontades, Kessell detinha o
poder da decisão. O pequeno fragmento de cristal continha uma reserva de incrível
poder, mas, sem um portador, era semelhante a uma espada embainhada sem uma
mão para sacá-la. Logo, Crenshinibon exercia sua vontade através da manipulação,
insinuando ilusões de conquista nos sonhos do mago, permitindo que Kessell visse
as possibilidades do poder. Ele balançava uma isca diante do nariz do ex-aprendiz
desajeitado que ele não conseguiria recusar – respeito.
Kessell, que sempre fora alvo de desprezo para os magos pretensiosos de Luskan (e
para todo mundo, pelo que parecia) era presa fácil para tais ambições. Ele, que
estivera no chão ao lado das botas das pessoas importantes, ansiava pela chance de
reverter os papéis.
E agora tinha a oportunidade de transformar suas fantasias em realidade,
Crenshinibon muitas vezes lhe assegurava. Com a relíquia em seu poder, ele
poderia se tornar o conquistador; poderia fazer as pessoas, até mesmo os magos da
Torre Central, tremerem com a simples menção a seu nome.
Ele precisava permanecer paciente. Havia passado vários anos aprendendo as
sutilezas de controlar uma e depois uma segunda tribo goblin. No entanto, a tarefa
de reunir dezenas de tribos e dobrar sua inimizade natural em uma causa comum de
servidão a ele era muito mais desafiadora. Tinha que trazê-los um de cada vez no
início, e garantir que os tivesse escravizado completamente à sua vontade antes que
ousasse convocar outro grupo.
Mas estava funcionando, e agora havia trazido duas tribos rivais simultaneamente
com resultados positivos. Torga e Grock tinham entrado em Cryshal-Tirith, cada um
procurando uma maneira de matar o outro sem causar a ira do mago. Quando
partiram, porém, depois de uma breve discussão com Kessell, estavam conversando
como velhos amigos sobre a glória de suas batalhas vindouras no exército de Akar
Kessell.
Kessell recostou-se nos travesseiros e considerou sua boa sorte. Seu exército estava
realmente tomando forma. Ele tinha gigantes de gelo como seus comandantes de
campo, ogres como seus guardas de campo, verbeegs como uma força de ataque
mortal, e trolls, vis trolls inspiradores do medo, como seus guarda-costas pessoais.
E por sua conta, até agora, dez mil tropas de goblins fanaticamente leais para levar a
cabo sua faixa de destruição.
— Akar Kessell! — gritou para a garota do harém que cuidava de suas longas unhas
enquanto ele se sentava em contemplação, embora a mente da garota tivesse sido
destruída há muito tempo por Crenshinibon. — Toda a glória para o Tirano do Vale
do Vento Gélido!

Longe, ao sul das estepes congeladas, nas terras civilizadas onde os homens tinham
mais tempo para atividades de lazer e contemplação, e cada ação não era
determinada por pura necessidade, magos e pretensos magos eram menos raros. Os
verdadeiros magos, estudantes vitalícios das artes arcanas, praticavam seu ofício
com o devido respeito pela magia, sempre cautelosos com as consequências
potenciais de seus feitiços.
A menos que fossem consumidos pela fome de poder, o que era uma coisa muito
perigosa, os verdadeiros magos temperavam seus experimentos com cautela e
raramente causavam desastres.
Os pretensos magos, no entanto, os homens que de alguma forma tinham alcançado
um certo grau de habilidade mágica, quer tenham encontrado um pergaminho, um
livro de feitiços de um mestre ou alguma relíquia, eram com frequência os
perpetradores de calamidades colossais.
Foi o caso daquela noite, em uma terra a mais de mil e quinhentos quilômetros de
Akar Kessell e Crenshinibon. Um aprendiz de mago, um jovem que mostrara
grande promessa a seu mestre, entrou em posse de um diagrama de um poderoso
círculo mágico, então procurou e encontrou um feitiço de convocação. O aprendiz,
atraído pela promessa de poder, conseguiu extrair o verdadeiro nome de um
demônio das anotações particulares de seu mestre.
A conjuração, a arte de evocar entidades de outros planos em servidão, era o amor
particular desse jovem. Seu mestre havia permitido que ele trouxesse aberrações e
demônios menores através de um portal mágico – supervisionado de perto – na
esperança de demonstrar os perigos potenciais da prática e reforçar as lições de
cautela. Na verdade, as manifestações serviram apenas para aumentar o apetite do
jovem pela arte. Ele implorou a seu mestre para permitir que ele tentasse um
verdadeiro demônio, mas o bruxo sabia que ele não estava nem perto de estar
pronto para tal teste.
O aprendiz discordava.
Ele havia completado a inscrição do círculo naquele mesmo dia. Tão confiante
estava em seu trabalho que não passou um dia a mais (alguns magos passavam uma
semana) checando as runas e símbolos ou se preocupando em testar o círculo em
uma entidade menor.
Agora estava sentado dentro dele, com seus olhos focados no fogo do braseiro que
serviria como o portão para o Abismo. Com um sorriso confiante e por demais
orgulhoso, o pretenso feiticeiro chamou o demônio.
Errtu, um grande demônio de proporções catastróficas, ouviu seu nome ser
pronunciado de forma vaga no plano distante. Normalmente, a grande fera teria
ignorado uma chamado tão fraco; o conjurador não demonstrara qualquer
habilidade de força suficiente para obrigar o demônio a obedecer.
No entanto, Errtu ficou feliz com o chamado fatídico. Alguns anos antes, o demônio
sentiu uma onda de poder no Plano Material e acreditava que terminaria uma
missão que havia empreendido um milênio atrás. O demônio havia sofrido nos
últimos anos, impaciente, ansioso que um mago abrisse um caminho para que
pudesse chegar ao Plano Material e investigar essa onda.
O jovem aprendiz sentiu-se atraído pela dança hipnótica do fogo do braseiro. As
chamas haviam se unificado em uma única flama, como a queima de uma vela
apenas muitas vezes maior, que se agitava tentadora, para frente e para trás, para
frente e para trás.
O aprendiz hipnotizado não estava sequer ciente da intensidade cada vez maior do
fogo. A chama saltou mais e mais alto, seu tremeluzir acelerou e sua cor moveu-se
pelo espectro em direção ao calor supremo da brancura.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
Mais rápido agora, abanando descontroladamente e construindo sua força para
apoiar a poderosa entidade que esperava do outro lado.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
O aprendiz estava suando. Ele sabia que o poder do feitiço estava crescendo além
de seus limites, que a magia havia assumido o controle e estava com vida própria.
Que era impotente para detê-la.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
Via a sombra escura dentro da chama, as grandes mãos com garras e as asas de
couro, similares às de um morcego. E o tamanho da fera! Um gigante mesmo para
os padrões de seu tipo.
— Errtu! — o jovem chamou, as palavras forçadas para fora dele pelas exigências
do feitiço. Não havia identificado totalmente o nome nas anotações de seu mestre,
mas viu claramente que pertencia a um poderoso demônio, um monstro logo abaixo
dos lordes demoníacos na hierarquia do Abismo.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
A grotesca cabeça símia, com a boca e o focinho de um cão e os grandes incisivos
de um javali, estava visível, com os enormes olhos vermelho-sangue piscando de
dentro da chama do braseiro. A baba ácida chiava enquanto caía no fogo.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
O fogo se elevou em um clímax final de poder, e Errtu atravessou. O demônio
sequer fez uma pausa para analisar o jovem humano apavorado que chamara seu
nome de maneira insensata. Começou uma caminhada lenta ao redor do círculo
mágico em busca de pistas sobre a extensão do poder desse mago.
O aprendiz finalmente conseguiu se recompor. Ele havia acabado de evocar um
demônio maior! Esse fato ajudou-o a restabelecer sua confiança em suas
habilidades como feiticeiro.
— Fique diante de mim! — ele comandou, ciente de que uma mão firme era
necessária para controlar uma criatura dos caóticos planos inferiores.
Errtu, sem prestar atenção ao jovem, continuou sua análise.
O aprendiz ficou zangado.
— Você vai me obedecer! — ele gritou. — Eu te trouxe aqui e tenho a chave para
seu tormento! Você obedecerá ao meu comando e libertá-lo-ei,
misericordiosamente, de volta ao seu próprio mundo sujo! Agora, fique diante de
mim!
O aprendiz estava desafiante. O aprendiz estava orgulhoso.
Mas Errtu havia encontrado um erro no traçado de uma runa, uma imperfeição fatal
em um círculo mágico que não podia se dar ao luxo de ser quase perfeito.
O aprendiz estava morto.

Errtu sentia a familiar sensação de poder mais nitidamente no Plano Material e teve
pouca dificuldade em discernir de onde emanavam. Ele voou com suas grandes asas
sobre as cidades dos humanos, espalhando pânico onde quer que fosse notado, mas
sem atrasar sua jornada para saborear o caos que irrompia abaixo.
Em linha reta e a toda velocidade, Errtu voou sobre lagos e montanhas, através de
grandes extensões de terra. Rumo ao extremo norte nos Reinos, à Espinha do
Mundo e à antiga relíquia que procurou durante séculos.

Kessell estava ciente do demônio que se aproximava muito antes de suas tropas
reunidas começarem a se espalhar em terror sob as ondas de sombra de escuridão.
Crenshinibon transmitira a informação ao mago, a relíquia viva antecipava os
movimentos da poderosa criatura dos planos inferiores que a perseguia por
incontáveis eras.
Kessell não estava preocupado, porém. Dentro de sua torre de força, estava
confiante de que poderia lidar com um inimigo tão poderoso quanto Errtu. E tinha
uma vantagem distinta sobre o demônio. Ele era o legítimo portador da relíquia. Ela
estava sintonizada com ele e, como tantos outros artefatos mágicos da aurora do
mundo, Crenshinibon não podia ser arrancado de seu possuidor por pura força.
Errtu desejava empunhar a relíquia e, portanto, não ousaria se opor a Kessell e
invocar a ira de Crenshinibon.
A baba ácida escorregou livremente da boca do demônio quando viu a torre à
imagem da relíquia.
— Quantos anos? — berrou, vitorioso.
Errtu viu a porta da torre, pois não era uma criatura do Plano Material, e
aproximou-se imediatamente. Nenhum dos goblins de Kessell, nem mesmo os
gigantes, impediu a entrada do demônio.
Flanqueado por seus trolls, o mago estava esperando por Errtu na câmara principal
de Cryshal-Tirith, o primeiro andar da torre. O mago sabia que os trolls seriam de
pouca utilidade contra um demônio controlador de fogo, mas os queria presentes
para melhorar a primeira impressão que o demônio teria. Sabia que detinha o poder
de mandar Errtu embora facilmente, mas outro pensamento, implantado através de
uma sugestão do Fragmento de Cristal, chegara até ele.
O demônio poderia ser muito útil.
Errtu parou ao atravessar o estreito caminho de entrada e encontrar o séquito do
bruxo. Por causa da localização remota da torre, o demônio esperava encontrar um
orc, ou talvez um gigante, segurando o fragmento. Tinha a intenção de intimidar e
enganar o manejador de raciocínio lento para que entregasse a relíquia, mas a visão
de um humano em mantos, provavelmente até mesmo um mago, lançou um
obstáculo em seus planos.
— Saudações, poderoso demônio — Kessell disse educadamente, curvando-se
baixo. — Bem-vindo à minha humilde moradia.
Errtu rosnou de raiva e avançou, esquecendo as desvantagens de destruir o portador,
consumido por seu ódio e sua inveja do humano presunçoso.
Crenshinibon lembrou o demônio.
Um súbito clarão de luz pulsou das paredes da torre, engolfando Errtu no doloroso
brilho de uma dúzia de sóis do deserto. O demônio parou e cobriu seus olhos
sensíveis. A luz se dissipou logo, mas Errtu se manteve firme e não se aproximou
do mago novamente.
Kessell sorriu. A relíquia o apoiara. Cheio de confiança, dirigiu-se ao demônio
novamente, desta vez com uma expressão severa em sua voz.
— Você veio para pegar isso — disse ele, alcançando dentro das dobras de seu
manto para sacar o fragmento. Os olhos de Errtu se estreitaram e travaram no objeto
que havia perseguido por tanto tempo.
— Você não pode tê-lo — disse Kessell sem rodeios, e o recolocou sob o roupão. —
É meu, legitimamente encontrado, e você não tem direito sobre ele! — O orgulho
tolo de Kessell, a falha fatal em sua personalidade que sempre o empurrou por uma
estrada de tragédia certa, queria que continuasse com a provocação do demônio em
sua situação indefesa.
“Chega” avisou uma sensação dentro dele, a voz silenciosa que suspeitava ser a
vontade consciente do fragmento.
— Isso não é da sua conta — retrucou Kessell em voz alta. Errtu olhou ao redor da
sala, perguntando-se a quem o mago estava se dirigindo. Os trolls não lhe deram
atenção. Como cautela, o demônio invocou vários feitiços de detecção, temendo um
agressor invisível.
“Você insulta um inimigo perigoso”, o fragmento persistiu. “Protegi você do
demônio, mas você persiste em alienar uma criatura que se mostraria um valioso
aliado!”
Como era o caso quando Crenshinibon se comunicava com o mago, Kessell
começou a ver as possibilidades. Decidiu-se por um caminho de concessão, um
acordo benéfico para si mesmo e para o demônio.
Errtu considerou sua situação. Não poderia matar o humano impertinente, embora
tivesse saboreado tal ato.
No entanto, sair sem a relíquia, adiando a busca que havia sido sua motivação
primária durante séculos, não era uma opção aceitável.
— Tenho uma proposta a oferecer, uma barganha que pode lhe interessar — disse
Kessell tentadoramente, evitando o olhar promissor de morte que o demônio lhe
lançava. — Fique ao meu lado e sirva como comandante das minhas forças! Com
você liderando-as e o poder de Crenshinibon e Akar Kessell, elas irão varrer a terra
do norte!
—Servi-lo? — Errtu riu. — Você não tem poder sobre mim, humano.
— Você vê a situação incorretamente — retrucou Kessell. — Pense nisso não como
servidão, mas como uma oportunidade de participar de uma campanha que promete
destruição e conquista! Você tem o meu maior respeito, poderoso demônio. Eu não
pretendo me chamar de seu mestre.
Crenshinibon, com suas intrusões subconscientes, havia treinado bem Kessell. A
postura menos ameaçadora de Errtu mostrou que estava intrigado com a proposta
do mago.
— E considere os ganhos que você um dia terá — continuou Kessell. — Os seres
humanos não vivem muito tempo considerando a sua expectativa além das eras.
Quem, então, levará o Fragmento de Cristal quando Akar Kessell não existir mais?
Errtu sorriu maliciosamente e curvou-se diante do mago.
— Como eu poderia recusar uma oferta tão generosa? — o demônio rosnou em sua
voz horrível e sobrenatural. — Mostre-me, mago, que conquistas gloriosas estão em
nosso caminho.
Kessell quase dançou de alegria. Seu exército estava, de fato, completo.
Ele tinha seu general.
CAPÍTULO 11

Presa de Égide

O SUOR SE ACUMULAVA EM GOTAS nas mãos de Bruenor enquanto ele punha


a chave na fechadura empoeirada na porta de madeira. Era o começo do processo
que seria o teste supremo de toda a sua habilidade e experiência. Como todos os
mestres ferreiros anões, ansiava apreensivo e empolgado por esse momento desde o
início de seu longo treino.
Precisou empurrar com força para abrir a porta na pequena câmara. A madeira
rangeu e gemeu em protesto, por ter se acostumado a ficar fechada desde que fora
aberta muitos anos antes. Entretanto, isso era um consolo para Bruenor, pois temia a
ideia de alguém passando para dar uma olhada em suas posses mais valiosas. Ele
olhou em volta para os corredores escuros da seção pouco usada do complexo anão,
certificando-se mais uma vez que não tinha sido seguido. Então, entrou na sala,
colocando sua tocha à sua frente para queimar as franjas penduradas das muitas
teias de aranha.
A única peça de mobília da sala era uma caixa de madeira e ferro, atada por duas
pesadas correntes unidas por um enorme cadeado. Teias de aranha se cruzavam e
fluíam de todos os ângulos do baú, e uma espessa camada de poeira cobria seu topo.
Outro bom sinal, observou Bruenor. Ele olhou de novo para o corredor, depois
fechou a porta de madeira o mais silenciosamente que pôde.
O anão se ajoelhou diante do baú e colocou a tocha no chão ao lado dele. Várias
teias, lambidas por sua chama, se incharam em chamas laranjas por apenas um
instante e depois desapareceram. Bruenor pegou um pequeno bloco de madeira da
bolsa do cinto e tirou uma chave de prata pendurada em uma corrente em seu
pescoço. Ele segurou o bloco de madeira à sua frente com firmeza e, mantendo os
dedos de sua outra mão abaixo do nível do cadeado tanto quanto possível,
gentilmente deslizou a chave na fechadura.
Agora vinha a parte delicada. Bruenor virou a chave devagar, escutando. Quando
ouviu o ferrolho da fechadura clicar, ele se preparou e rapidamente tirou a mão da
chave, permitindo que a massa do cadeado se soltasse de seu anel, liberando uma
alavanca com mola pressionada entre ele e o baú. O pequeno dardo bateu no bloco
de madeira e Bruenor soltou um suspiro de alívio. Embora houvesse armado a
armadilha quase um século antes, sabia que o veneno da cobra Enviuvadora da
Tundra tinha mantido sua letalidade.
A empolgação suplantou a reverência de Bruenor pelo momento, e o anão
apressadamente jogou as correntes de cima do baú e soprou a poeira de sua tampa.
Ele agarrou a tampa e começou a levantá-la, mas de repente diminuiu a velocidade,
recuperando sua calma solene e lembrando-se da importância de cada ação.
Qualquer um que tivesse chegado a esse baú e conseguido passar pela armadilha
mortal teria ficado satisfeito com os tesouros que encontraria. Um cálice de prata,
um saco de ouro e uma adaga cravejada de pedras preciosas, embora mal
equilibrada, estavam misturados entre outros itens mais pessoais e menos valiosos:
um elmo amassado, botas velhas e outras peças semelhantes que não teriam
interesse para um ladrão.
No entanto, tais itens eram apenas uma distração. Bruenor tirou´-os e os deixou cair
no chão sujo sem pensar duas vezes.
A parte de baixo do baú pesado estava logo acima do nível do chão, não dando
nenhuma indicação de que algo mais pudesse ser encontrado ali. Mas Bruenor tinha
astuciosamente cortado o chão abaixo do baú, encaixando-o no buraco tão
perfeitamente que até um ladrão que o investigasse juraria que estava no chão. O
anão procurou um pequeno buraco na madeira na parte inferior da caixa e
enganchou um dedo curto na abertura. Essa madeira também se acostumara a ficar
parada ao longo dos anos, e Bruenor teve que puxar com força para finalmente
soltá-la. Saiu com um estalo repentino, fazendo Bruenor quase cair para trás. Ele
estava de volta ao baú em um instante, examinando cautelosamente sobre a borda
seus maiores tesouros.
Um bloco do mais puro mitral, uma pequena bolsa de couro, um cofre dourado e
um tubo de pergaminho prateado com um diamante em uma das suas extremidades
estavam espaçados exatamente como Bruenor os havia deixado há muito tempo.
As mãos de Bruenor tremeram, e ele teve que parar e limpar a transpiração delas
várias vezes enquanto removia os itens preciosos do baú, pondo aqueles que
caberiam em sua mochila e colocando o bloco de mitral em um cobertor que
desenrolara. Então, ele rapidamente substituiu o fundo falso, tomando o cuidado de
encaixar o buraco na madeira perfeitamente, e colocou seu falso tesouro de volta no
lugar. Ele acorrentou e trancou a caixa, deixando tudo exatamente como havia
encontrado, exceto que ele não via motivo para arriscar um acidente rearmando a
armadilha.

Bruenor construiu sua forja ao ar livre em um recanto escondido na base do


Sepulcro de Kelvin. Era uma porção do vale dos anões raramente visitada, no
extremo norte, com o Caminho de Bremen se alargando na tundra aberta ao redor
do lado oeste da montanha, e o Passo do Vento Gélido fazendo o mesmo no leste.
Para sua surpresa, Bruenor descobriu que a pedra ali era dura e pura, profundamente
imbuída da força da terra, e serviria bem ao seu pequeno templo.
Como sempre, Bruenor se aproximou desse lugar sagrado com passos medidos e
reverentes. Transportando agora os tesouros de sua herança, sua mente retornou ao
longo dos séculos para o Salão de Mitral, antigo lar de seu povo, e ao discurso que
seu pai lhe fizera no dia em que recebeu seu primeiro martelo de ferreiro.
— Se o seu talento para a arte for bom — dissera o pai — e se você tiver a sorte de
viver muito e sentir a força da terra, encontrará um dia especial. Uma bênção
especial, que alguns chamariam de maldição, foi colocada sobre o nosso povo,
porque uma vez, e apenas uma vez, os melhores de nossos ferreiros podem criar
uma arma de sua escolha que supera todo o trabalho que já fez. Seja cauteloso com
esse dia, filho, pois vai pôr muito de si nessa arma. Nunca mais alcançará a
perfeição em sua vida novamente e, sabendo disso, perderá muito do desejo de
artesão que impulsiona o balanço de seu martelo. Pode encontrar uma vida vazia
depois, mas, se for bom como sua linha diz que será, terá criado uma arma lendária
que viverá muito depois de seus ossos se tornarem pó.
O pai de Bruenor, interrompido pela chegada da escuridão ao Salão de Mitral, não
vivera o suficiente para encontrar seu dia especial; se tivesse, vários dos itens que
Bruenor agora carregava teriam sido usados por ele. Mas o anão não viu desrespeito
ao tomar os tesouros como seus, pois sabia que iria fabricar uma arma que iria
deixar o espírito de seu pai orgulhoso.
O dia de Bruenor tinha chegado.

A imagem de um martelo de duas cabeças escondido dentro do bloco de mitral


chegara a Bruenor em um sonho na semana anterior. O anão entendera o aviso e
sabia que teria que se mover rapidamente para deixar tudo pronto para a noite de
poder que estava se aproximando. A lua já estava grande e brilhante no céu. Ficaria
completamente cheia na noite do solstício, o tempo cinzento entre as estações,
quando o ar fica carregado com magia. A lua cheia só aumentaria a magia daquela
noite, e Bruenor acreditava que capturaria um poderoso feitiço quando pronunciasse
o encantamento do poder.
O anão tinha muito trabalho adiante se quisesse estar preparado. Seu trabalho havia
começado com a construção da pequena forja. Aquela tinha sido a parte fácil e ele a
fez mecanicamente, tentando manter seus pensamentos na tarefa em mãos e longe
da antecipação perturbadora de forjar a arma.
Agora o momento que esperava chegou. Ele puxou o pesado bloco de mitral de sua
mochila, sentindo sua pureza e força. O anão já havia segurado blocos semelhantes
e ficou apreensivo. Ele olhou para o metal prateado.
Por um longo momento, permaneceu um bloco quadrado. Então seus lados
pareciam se arredondar enquanto a imagem do maravilhoso martelo de guerra se
tornava clara para o anão. O coração de Bruenor disparou e ele respirava em breves
arquejos.
Sua visão tinha sido real.
Ele acendeu a forja e começou seu trabalho imediatamente, trabalhando durante a
noite até a luz do amanhecer dissipar o encanto que estava sobre ele. Ele retornou à
sua casa naquele dia apenas para recolher a vara de adamantita que havia reservado
para a arma, voltando à forja para dormir e depois andar nervosamente enquanto
esperava que a escuridão caísse.
Assim que a luz do dia desapareceu, Bruenor voltou ansioso ao trabalho. O metal
moldava-se facilmente com sua habilidade, e ele sabia que a cabeça do martelo
estaria formada antes que o amanhecer pudesse interrompê-lo. Embora ainda tivesse
horas de trabalho pela frente, Bruenor sentiu uma onda de orgulho naquele
momento. O anão sabia que iria cumprir seu cronograma exigente. Ele prenderia o
cabo de adamantita na noite seguinte, e tudo estaria pronto para o encantamento sob
a lua cheia na noite do solstício de verão.

A coruja voou silenciosa sobre o pequeno coelho, guiada em direção a sua presa por
sentidos mais aguçados do que os de qualquer criatura viva. Seria uma morte
rotineira, sem o animal infeliz sequer perceber o predador que se aproximava. No
entanto, a coruja estava agitada e sua concentração de caçadora oscilou no último
momento. Raramente o grande pássaro errava, mas desta vez voou de volta para sua
casa ao lado do Sepulcro de Kelvin sem uma refeição.
Lá longe na tundra, um lobo solitário estava parado como uma estátua, ansioso, mas
paciente, enquanto o disco de prata da imensa lua do verão surgia na borda plana do
horizonte. Ele esperou até que o orbe sedutor surgisse completamente no céu,
depois soltou o uivo ancestral de sua raça. Foi respondido, de novo e de novo, por
lobos distantes e outros seres noturnos da noite, todos clamando pelo poder dos
céus.
A noite do solstício de verão, quando a magia permeava o ar, empolgando a todos,
menos os seres racionais que rejeitaram tais impulsos primitivos, havia começado.
Em seu estado emocional, Bruenor sentiu a magia distintamente. Mas, absorto no
ápice do trabalho de sua vida, atingiu um nível de concentração calma. Suas mãos
não tremiam quando abriu a tampa dourada do pequeno cofre.
O poderoso martelo de guerra estava preso à bigorna diante do anão. Representava
o melhor trabalho de Bruenor, poderoso e lindamente trabalhando mesmo
incompleto, mas aguardando pelas delicadas runas e encantamentos que o tornariam
uma arma de poder especial.
Bruenor retirou com reverência o pequeno martelo de prata e o cinzel do cofre e
aproximou-se do martelo de guerra. Sem hesitar, pois sabia que tinha pouco tempo
para um trabalho tão intrincado, colocou o cinzel no mitral e bateu nele solidamente
com o martelo. Os metais imaculados emitiram uma nota clara e pura que
provocava arrepios na espinha do anão contemplativo. Ele sabia em seu coração que
todas as condições eram perfeitas, e estremeceu novamente quando pensou no
resultado dos trabalhos dessa noite.
O anão não viu os olhos escuros olhando intensamente para ele de uma crista a uma
curta distância.
Bruenor não precisava de modelo para os primeiros entalhes; eram símbolos
gravados em seu coração e alma. Solenemente, inscreveu o martelo e a bigorna de
Moradin, o Forjador da Alma, na lateral de uma das cabeças do martelo de guerra, e
os machados cruzados de Clangeddin, o deus da batalha dos anões, no lado oposto
da outra parte da cabeça. Pegou o tubo de pergaminho de prata e gentilmente
removeu sua tampa de diamante. Suspirou de alívio quando viu que o pergaminho
havia sobrevivido às décadas. Limpou o suor oleoso de suas mãos, removeu o
pergaminho e lentamente o desenrolou, colocando-o sobre a bigorna. A princípio, a
página parecia vazia, mas gradualmente os raios da lua cheia fizeram seus símbolos,
as runas secretas de poder, aparecerem.
Essas eram a herança de Bruenor e, embora nunca as tivesse visto antes, suas linhas
e curvas arcanas lhe pareciam confortavelmente familiares. Com sua mão firme e
confiante, o anão colocou o cinzel prateado entre os símbolos que tinha inscrito dos
dois deuses e começou a gravar as runas secretas no martelo de guerra. Ele sentiu a
magia transferindo-se do pergaminho para a arma através dele e observou com
assombro enquanto cada uma desaparecia do pergaminho depois de tê-la inscrito no
mitral. O tempo não tinha significado para ele, imerso profundamente no transe de
seu trabalho, mas quando completou as runas, notou que a lua tinha passado o seu
pico e estava em declínio.
O primeiro teste real da perícia do anão veio quando ele cobriu os entalhes das
runas com a gema dentro do símbolo da montanha de Dumathoin, o Guardião dos
Segredos. As linhas do símbolo do deus alinhavam-se perfeitamente com as das
runas, obscurecendo os traços secretos de poder.
Bruenor sabia que seu trabalho estava quase completo. Ele removeu o martelo de
guerra pesado da prensa e pegou a pequena bolsa de couro. O anão teve que respirar
fundo várias vezes para se recompor, pois este era o teste final e mais decisivo de
sua habilidade. Ele afrouxou o cordão no topo da sacola e se maravilhou com o
suave brilho do pó de diamante na luz suave da lua.
De trás do cume, Drizzt Do’Urden ficou tenso em antecipação, mas teve o cuidado
de não perturbar a completa concentração do amigo.
Bruenor se firmou e de repente sacudiu a sacola no ar, liberando seu conteúdo alto
na noite. Ele jogou a bolsa de lado, agarrou o martelo de guerra com as duas mãos e
levantou-o acima da cabeça. O anão sentiu sua força ser sugada enquanto
pronunciava as palavras de poder, mas não saberia como havia se saído até seu
trabalho estar completo. O nível de perfeição de seus entalhes determinava o
sucesso de suas entonações, pois como havia gravado as runas na arma, sua força
fluía em seu coração. Esse poder atraía a poeira mágica para a arma cujo poder, por
sua vez, poderia ser medido pela quantidade de pó de diamante cintilante que
capturasse.
Sombras caíram sobre o anão. Sua cabeça girou e ele não entendeu o que o manteve
em pé. Mas o poder das palavras tinha ido além dele. Embora nem estivesse
consciente, continuaram a sair de seus lábios em um fluxo inegável, minando cada
vez mais sua força. Então, misericordiosamente, ele estava caindo, embora o vazio
da inconsciência o tivesse tomado muito antes de sua cabeça atingir o chão.
Drizzt se virou e recostou-se contra a crista rochosa; ele também estava exausto do
espetáculo. Não sabia se seu amigo sobreviveria à provação desta noite, mas estava
empolgado por Bruenor. Pois havia testemunhado o momento mais triunfante do
anão, mesmo que Bruenor não tivesse visto, quando a cabeça de mitral do martelo
queimava com a vida da magia e sugava a chuva de diamante.
E nem uma única partícula da poeira brilhante escapara do chamado de Bruenor.
CAPÍTULO 12

O Presente

WULFGAR SENTOU-SE NO ALTO DA FACE NORTE da Escalada de Bruenor,


com os olhos presos no vale rochoso abaixo, buscando atentamente qualquer
movimento que pudesse indicar o retorno do anão. O bárbaro ia a esse local com
frequência para ficar sozinho com seus pensamentos e com o uivo do vento. Bem na
sua frente, do outro lado do vale dos anões, estavam o Sepulcro de Kelvin e a parte
norte de Lac Dinneshere. Entre eles, ficava o trecho plano conhecido como Passo
do Vento Gélido, que levava ao nordeste e à planície aberta.
Para o bárbaro, o passo que levava à sua terra natal. Bruenor havia explicado que
estaria fora por alguns dias e a princípio, Wulfgar ficou feliz com o alívio das
constantes reclamações e críticas do anão. Mas descobriu que seu alívio era de curta
duração.
— Preocupado com ele? — veio uma voz por detrás dele. Wulfgar não precisou se
virar para saber que era Cattibrie.
Ele deixou a pergunta sem resposta, imaginando que ela havia feito uma pergunta
retórica e que não acreditaria se negasse.
— Ele vai voltar — Cattibrie disse com um dar de ombros em sua voz. — Bruenor
é tão duro quanto a pedra da montanha, e não há nada na tundra que possa detê-lo.
Agora o jovem bárbaro se virou para considerar a garota. Há muito tempo, quando
um nível confortável de confiança havia sido alcançado entre Bruenor e Wulfgar, o
anão apresentara o jovem bárbaro à sua “filha”, uma menina humana da idade do
próprio bárbaro.
Era uma garota exteriormente calma, mas cheia de um fogo interior e um espírito
que Wulfgar não estava acostumado a ver em uma mulher. Garotas bárbaras eram
criadas para manter seus pensamentos e opiniões, sem importância pelos padrões
dos homens, em silêncio. Como seu mentor, Cattibrie dizia exatamente o que estava
em sua mente e deixava poucas dúvidas sobre como ela se sentia sobre uma
situação. Brigas verbais entre ela e Wulfgar eram quase constantes e muitas vezes
acaloradas, mas ainda assim, Wulfgar estava feliz por ter uma companheira da sua
idade, alguém que não o desprezasse do alto de um pedestal de experiência.
Cattibrie o ajudara durante o primeiro ano difícil de sua servidão, tratando-o com
respeito (embora raramente concordasse com ele), quando ele não tinha nenhum por
si mesmo. Wulfgar teve até a impressão de que ela tinha indiretamente algo a ver
com a decisão de Bruenor de submetê-lo à sua tutela.
Ela era da sua idade, mas, em muitos aspectos, Cattibrie parecia muito mais velha,
com um sólido senso interno de realidade que mantinha seu temperamento estável.
Em outros, no entanto, como o saltitar de seus passos, Cattibrie seria para sempre
uma criança. Esse equilíbrio incomum de espírito e calma, de serenidade e alegria
desenfreada, intrigava Wulfgar e o deixava desnorteado sempre que falava com a
garota.
É claro que havia outras emoções que colocavam Wulfgar em desvantagem quando
estava com Cattibrie. Ela era inegavelmente linda, com ondas densas de cabelo
castanho avermelhado caindo sobre os ombros e olhos penetrantes do azul mais
escuro que fariam qualquer pretendente corar sob seu escrutínio. Ainda assim, havia
algo além de qualquer atração física que interessava a Wulfgar. Cattiebrie estava
além de sua experiência, uma jovem que não se encaixava no papel feminino que
havia sido definido para ele na tundra. Ele não tinha certeza se gostava dessa
independência ou não. Mas se viu incapaz de negar a atração que sentia por ela.
— Você vem aqui muitas vezes, não é? — Cattibrie perguntou. — O que você
procura?
Wulfgar deu de ombros, sem saber por completo a resposta.
— Seu lar?
— Isso e outras coisas que uma mulher não entenderia.
Cattibrie dispensou o insulto não intencional com um sorriso.
— Então me diga — ela pressionou, com insinuações de sarcasmo afiando seu tom.
— Talvez minha ignorância traga uma nova perspectiva para tais problemas.
Ela pulou da rocha para circundar o bárbaro e se sentar na borda ao lado dele.
Wulfgar ficou maravilhado com seus movimentos graciosos. Como a polaridade de
sua curiosa mistura emocional, Cattibrie também provava ser um enigma
fisicamente. Era alta e magra, delicada em todas as aparências, mas tornado-se
mulher nas cavernas dos anões, estava acostumada ao trabalho pesado.
— Em aventuras e um voto não cumprido — disse Wulfgar misteriosamente, talvez
para impressionar a jovem, mas mais ainda para reforçar sua própria opinião sobre
com o que uma mulher deveria e não deveria se importar.
— Um juramento que você pretende cumprir — concluiu Cattibrie — assim que
tiver a oportunidade.
Wulfgar assentiu solenemente.
— É minha herança, um fardo passado para mim quando meu pai foi morto. O dia
chegará... — ele deixou sua voz sumir e olhou para trás, ansioso, para o vazio da
tundra aberta além do Sepulcro de Kelvin.
Cattibrie balançou a cabeça, e as madeixas arruivadas saltaram sobre os ombros.
Ela via além da fachada misteriosa de Wulfgar o suficiente para entender que ele
pretendia empreender uma missão muito perigosa, provavelmente suicida, em nome
da honra.
— O que te impulsiona, não posso dizer. Boa sorte para você em sua aventura, mas
se você está assumindo-a sem nenhuma razão melhor do que você nomeou, você
está desperdiçando sua vida.
— O que uma mulher poderia saber sobre honra? — Wulfgar rebateu com raiva.
Mas Cattibrie não se intimidou e não recuou.
— O que, de fato? — ela ecoou. — Você acha que a mantém toda em suas mãos
grandes sem um motivo melhor do que o que você tem nas calças? — Wulfgar
corou profundamente e se virou, incapaz de aceitar tal descaramento em uma
mulher.
— Além disso — Cattibrie continuou — você pode dizer o que quiser sobre o
motivo de ter vindo aqui hoje. Sei que está preocupado com Bruenor e não vou
ouvi-lo negar.
— Você sabe apenas o que deseja saber!
— Você é muito parecido com ele — Cattibrie disse abruptamente, mudando o
assunto e desconsiderando os comentários de Wulfgar. — Mais parecido com o
anão do que você jamais admitiria.— ela riu. — Ambos teimosos, ambos
orgulhosos, e nenhum capaz de admitir um sentimento honesto pelo outro. Faça
como quiser, então, Wulfgar do Vale do Vento Gélido. Para mim você pode mentir,
mas para si mesmo... é outra história! — ela saltou de seu poleiro e desceu as rochas
em direção às cavernas dos anões.
Wulfgar observou-a ir embora, admirando o balanço de seus quadris esguios e a
dança graciosa de seu passo, apesar da raiva que sentia. Ele não parou para pensar
no motivo de estar tão bravo com Cattibrie.
Ele sabia que, se o fizesse, descobriria, como sempre, que estava zangado porque
suas observações estavam certas.

Drizzt Do’Urden manteve uma vigília estoica por seu amigo inconsciente durante
dois longos dias. Preocupado com Bruenor e curioso com o maravilhoso martelo de
guerra, o drow permaneceu a uma distância respeitosa da forja secreta.
Finalmente, enquanto a manhã surgia no terceiro dia, Bruenor se mexeu e se
espreguiçou. Drizzt afastou-se em silêncio, percorrendo o caminho que ele sabia
que o anão tomaria. Encontrando uma clareira apropriada, montou apressadamente
um pequeno acampamento.
A luz do sol chegou a Bruenor como apenas um borrão no início, e levou vários
minutos para que se reorientasse ao ambiente. Então sua visão que retornava se
concentrou na brilhante glória do martelo de guerra.
Olhou ao redor, procurando por sinais da poeira caída. Ele não encontrou nenhum e
sua expectativa aumentou. Ele estava tremendo mais uma vez quando levantou a
arma magnífica, virando-a nas mãos, sentindo o equilíbrio perfeito e a força
incrível. O fôlego de Bruenor sumiu ao ver os símbolos dos três deuses no mitral,
com o pó de diamante magicamente fundido em suas linhas profundas. Em transe
pela aparente perfeição de seu trabalho, Bruenor entendeu o vazio de que seu pai
havia falado. Ele sabia que nunca iria reproduzir tal nível em seu ofício, e se
perguntou se, sabendo disso, seria capaz de levantar seu martelo novamente.
Tentando analisar suas emoções confusas, o anão colocou o martelo e o cinzel de
prata de volta em seu cofre dourado e recolocou o pergaminho em seu tubo, embora
estivesse em branco e ele soubesse que as runas mágicas nunca mais reapareceriam.
Bruenor então percebeu que não comia há vários dias e que sua força não havia se
recuperado totalmente do dreno da magia. Coletou tudo que podia carregar, içou o
imenso martelo de guerra por cima do ombro e caminhou em direção à sua casa.
O doce aroma de carne assada o saudou quando chegou ao acampamento de Drizzt
Do’Urden.
— Então você está de volta de suas viagens — disse cumprimentando seu amigo.
Drizzt prendeu os olhos nos do anão, não querendo revelar sua curiosidade
esmagadora pelo martelo de guerra.
— A seu pedido, bom anão — disse ele, curvando-se baixo. — Você mandou gente
o bastante me procurar para saber que eu voltaria.
Bruenor admitiu o argumento, embora no presente ele só oferecesse um distraído
“Eu precisava de você”, como explicação. Uma necessidade mais urgente se
apoderou dele ao ver a carne assada.
Drizzt sorriu, compreensivo. Ele já havia comido, apanhara e cozinhara este coelho
especialmente para Bruenor.
— Junta-se a mim? — perguntou ele.
Antes mesmo de terminar a oferta, Bruenor estava ansiosamente procurando o
coelho. Ele parou de repente, porém, e olhou desconfiado para o drow.
— Há quanto tempo você está aqui? — o anão perguntou, nervoso.
— Acabei de chegar esta manhã — mentiu Drizzt, respeitando a privacidade da
cerimônia especial do anão. Bruenor sorriu com a resposta e atacou o coelho
enquanto Drizzt colocava outro no espeto.
O drow esperou até que Bruenor estivesse absorto em sua refeição, então
rapidamente pegou o martelo de guerra. Quando Bruenor pôde reagir, Drizzt já
havia levantado a arma.
— Grande demais para um anão — observou Drizzt casualmente. — E muito
pesado para os meus braços esguios. — Olhou para Bruenor, que estava com os
braços cruzados e o pé batendo impaciente. — Quem, então?
— Você tem talento para colocar seu nariz onde não é chamado, elfo — o anão
respondeu rispidamente.
Drizzt riu em resposta.
— O garoto, Wulfgar? — perguntou, fingindo descrença. Sabia muito bem que o
anão nutria fortes sentimentos pelo jovem bárbaro, embora também percebesse que
Bruenor jamais o admitiria abertamente. — Uma boa arma para dar a um bárbaro.
Você mesmo a fez?
Apesar de sua reprimenda, Drizzt estava mesmo impressionado com a obra de
Bruenor. Embora o martelo fosse pesado demais para ele empunhar, podia sentir
claramente seu incrível equilíbrio.
— Só um martelo velho, só isso — resmungou Bruenor. — O garoto perdeu seu
tacape; eu não poderia soltá-lo nesse lugar selvagem sem uma arma!
— E o nome dele?
— Presa de Égide — Bruenor respondeu sem pensar, o nome fluindo dele antes
mesmo que tivesse tempo para refletir. Ele não se lembrava do incidente, mas o
anão determinara o nome da arma quando a encantara como parte das intenções
mágicas da cerimônia.
— Compreendo — disse Drizzt, devolvendo o martelo a Bruenor. — Um martelo
velho, mas bom o suficiente para o garoto. Mitral, adamantita e diamante
simplesmente terão que servir.
— Ah, cale a boca — retrucou Bruenor, com o rosto vermelho de vergonha. Drizzt
se curvou em um pedido desculpas.
— Por que você pediu a minha presença, meu amigo? — o drow perguntou,
mudando de assunto.
Bruenor limpou a garganta.
— O garoto — ele resmungou baixinho. Drizzt viu o desconfortável nó na garganta
de Bruenor e enterrou sua próxima provocação antes que ele falasse.
— Ele estará livre antes do inverno — continuou Bruenor — e não está treinado
apropriadamente. É mais forte que qualquer homem que eu já vi e se move com a
graça de um cervo em fuga, mas é verde nos caminhos da batalha.
— Você quer que eu o treine? — Drizzt perguntou incrédulo.
— Bom, eu não posso! — Bruenor rebateu de repente. — Ele tem mais de dois
metros de altura e não daria certo com os cortes baixos de um anão!
O drow olhou curioso para o seu companheiro frustrado. Como todos que estavam
perto de Bruenor, ele sabia que havia um vínculo entre o anão e o jovem bárbaro,
mas não havia percebido o quão profundo era.
— Eu não o mantive sob meus cuidados por cinco anos apenas para deixá-lo ser
abatido por um iéti fedorento! — Bruenor deixou escapar, impaciente com a
hesitação do drow e nervoso por seu amigo ter adivinhado mais do que deveria. —
Você vai fazer isso?
Drizzt sorriu de novo, mas desta vez não havia provocação. Lembrou-se de sua
própria batalha contra iétis da tundra quase cinco anos antes. Bruenor salvara sua
vida e não tinha sido a primeira e nem seria a última vez em que ele deveria ao
anão.
— Os deuses sabem que eu te devo mais que isso, meu amigo. Claro que vou
treiná-lo.
Bruenor grunhiu e agarrou o próximo pedaço de coelho.

O som das batidas de Wulfgar ecoou pelos corredores dos anões. Irritado com as
revelações que fora forçado a ver na conversa com Cattibrie, ele retornou ao seu
trabalho com fervor.
— Pare de martelar, garoto — veio uma voz rouca atrás dele. Wulfgar se virou. Ele
estava tão absorto em seu trabalho que não ouvira Bruenor entrar. Um sorriso
involuntário de alívio se alargou em seu rosto. Mas pegou a demonstração de
fraqueza rapidamente e repintou uma máscara severa.
Bruenor considerou a grande altura e circunferência do jovem bárbaro e o começo
desgrenhado de uma barba loura na pele dourada de seu rosto.
— Eu não posso mais chamar você de garoto — o anão admitiu.
— Você tem o direito de me chamar como quiser — retrucou Wulfgar. — Sou seu
escravo.
— Você tem um espírito selvagem como a tundra — disse Bruenor, sorrindo. —
Você nunca foi, nem jamais será, um escravo de qualquer anão ou homem!
Wulfgar foi pego de surpresa pelo elogio não característico do anão. Ele tentou
responder, mas não encontrou palavras.
— Nunca vi você como um escravo, garoto — continuou Bruenor. — Você me
serviu para pagar pelos crimes de seu povo, e eu lhe ensinei muito em troca. Agora,
largue seu martelo.
Ele parou por um momento para considerar a bela obra de Wulfgar.
— Você é um bom ferreiro, com uma boa impressão da pedra, mas não pertence à
caverna de um anão. É hora de sentir o sol em seu rosto novamente.
— Liberdade? — sussurrou Wulfgar.
— Tire a ideia da cabeça! — rebateu Bruenor. Ele apontou um dedo curto para o
bárbaro e rosnou ameaçadoramente. — Você é meu até os últimos dias do outono,
não se esqueça disso!
Wulfgar teve que morder o lábio para conter uma risada. Como sempre, a
combinação desajeitada de compaixão e raiva do anão o confundia e o
desequilibrava. Já não era mais um choque, porém. Quatro anos ao lado de Bruenor
ensinaram-no a esperar, e desconsiderar, as repentinas explosões de grosseria.
— Termine o que quer que você tenha vindo fazer aqui — instruiu Bruenor. — Vou
levá-lo para conhecer seu professor amanhã de manhã, e por sua promessa, você vai
prestar atenção a ele como prestaria em mim!
Wulfgar fez uma careta ao pensar em servir a outro, mas aceitou sua servidão sob
Bruenor incondicionalmente por um período de cinco anos e um dia, e não se
desonraria ao voltar atrás em seu juramento. Acenou com a cabeça.
— Não vou mais te ver muito — continuou Bruenor —, então quero seu juramento
agora de que nunca mais erguerá uma arma contra o povo das Dez-Burgos.
Wulfgar se colocou com firmeza.
— Isso você pode não ter — respondeu corajosamente. — Quando eu tiver
cumprido os termos que você colocou para mim, sairei daqui como um homem de
livre vontade!
— Justo — admitiu Bruenor, com o orgulho teimoso de Wulfgar na verdade
aumentando o respeito do anão por ele. Parou por um momento para olhar o jovem
guerreiro orgulhoso e se viu satisfeito por sua própria parte no crescimento de
Wulfgar.
— Você quebrou aquele bastão fedorento na minha cabeça — Bruenor começou
timidamente. Ele limpou a garganta. Essa parte final deixou o severo anão
desconfortável. Não tinha certeza de como poderia passar por isso sem parecer
sentimental e tolo. — O inverno cairá rapidamente sobre você depois que seu
serviço terminar. Não posso mandá-lo para a natureza sem uma arma — ele voltou
para o corredor rapidamente e pegou o martelo de guerra.
— Presa de Égide — disse rispidamente enquanto o jogava para Wulfgar. — Não
colocarei vínculos em sua vontade, mas terei seu juramento, por minha própria boa
consciência, de que nunca erguerá esta arma contra o povo de Dez-Burgos!
Assim que suas mãos se fecharam ao redor do cabo de adamantita, Wulfgar sentiu o
valor do martelo de guerra mágico. As runas preenchidas por diamante pegaram o
brilho da forja e enviaram uma miríade de reflexos dançando pela sala. Os bárbaros
da tribo de Wulfgar sempre se orgulharam das belas armas que mantinham,
medindo o valor de um homem pela qualidade de sua lança ou espada, mas Wulfgar
nunca tinha visto nada que se comparasse com o requintado detalhe e a pura força
de Presa de Égide. Equilibrou-se tão bem em suas enormes mãos e sua altura e peso
se ajustaram tão perfeitamente que ele sentiu como se tivesse nascido para
empunhar tal arma. Disse a si mesmo que oraria por muitas noites aos deuses do
destino por entregar este prêmio a ele. Certamente mereciam seu agradecimento.
Assim como Bruenor.
— Você tem a minha palavra — gaguejou Wulfgar, tão dominado pelo magnífico
presente que mal conseguia falar. Ele se firmou para poder dizer mais, mas, quando
conseguiu tirar o olhar do magnífico martelo, Bruenor se fora.
O anão percorreu os longos corredores em direção aos seus aposentos particulares,
xingando sua fraqueza e esperando que nenhum de seus parentes viesse em sua
direção. Com um olhar cauteloso ao redor, limpou a umidade de seus olhos
cinzentos.
CAPÍTULO 13

Como o Portador Ordenar

— REÚNA O SEU POVO E VÁ, CARRANCA — disse o mago ao enorme gigante


de gelo que estava diante dele na sala do trono de Cryshal-Tirith. — Lembre-se de
que vocês representam o exército de Akar Kessell. Vocês são o primeiro grupo a
entrar na área e o sigilo é a chave para nossa vitória! Não falhem comigo! Estarei
observando todos os seus movimentos.
— Não vamos falhar, mestre — respondeu o gigante. — O covil estará pronto e
preparado para a sua vinda!
— Eu tenho fé em vocês — Kessell assegurou ao imenso comandante. — Agora vá!
O gigante de gelo levantou o espelho coberto que Kessell lhe dera, fez uma última
reverência a seu mestre e saiu da sala.
— Você não deveria tê-los mandado — sibilou Errtu, que estivera de pé invisível ao
lado do trono durante a conversa. — Os verbeegs e seu líder gigante de gelo se
destacarão facilmente em uma comunidade de humanos e anões.
— Carranca é um líder sábio — retrucou Kessell, irritado com a impertinência do
demônio. — O gigante é esperto o suficiente para manter as tropas fora de vista!
— No entanto, os humanos teriam sido mais adequados para esta missão, como
Crenshinibon lhe mostrou.
— Eu sou o líder — gritou Kessell. Ele puxou o Fragmento de Cristal debaixo das
vestes e acenou-o para Errtu, inclinando-se para a frente na tentativa de enfatizar a
ameaça. — Crenshinibon aconselha, mas eu decido! Não esqueça seu lugar,
poderoso demônio. Eu sou o portador do fragmento e não tolerarei que você
questione cada movimento meu.
Os olhos vermelhos de Errtu se estreitaram perigosamente, e Kessell se endireitou
em seu trono, repensando a sabedoria de ameaçar o demônio. Mas Errtu acalmou-se
logo, aceitando os inconvenientes menores das explosões tolas de Kessell pelos
ganhos de longo prazo que teria.
— Crenshinibon existe desde o alvorecer do mundo — o demônio disse, ríspido, em
um último argumento. — Orquestrou mil campanhas muito mais grandiosas do que
a que você está prestes a empreender. Talvez seja prudente dar mais ouvidos ao seu
conselho.
Kessell se contorceu nervoso. O fragmento de fato o aconselhara a usar os humanos
que logo comandaria na primeira excursão à região. Conseguira criar uma dúzia de
desculpas para validar sua escolha de mandar os gigantes, mas, na verdade, enviara
o pessoal de Carranca mais para ilustrar seu comando inegável para si mesmo, para
o fragmento e para o demônio impertinente do que por quaisquer possíveis ganhos
militares.
— Vou seguir os conselhos de Crenshinibon quando julgar apropriado — disse a
Errtu. Ele puxou um segundo cristal, uma duplicata exata de Crenshinibon e o
cristal que havia usado para erguer esta torre, de um dos muitos bolsos de seu
manto. — Leve isso para o local apropriado e realize a cerimônia de criação — ele
instruiu. — Eu vou me juntar a você através de um portal de espelho quando tudo
estiver pronto.
— Você deseja levantar uma segunda Cryshal-Tirith enquanto a primeira ainda está
de pé? — Errtu relutou. — O dreno da relíquia será enorme!
— Silêncio! — Kessell ordenou, tremendo. — Vá e execute a cerimônia! Deixe o
fragmento continuar sendo minha preocupação!
Errtu pegou a réplica da relíquia e curvou-se. Sem mais uma palavra, o demônio
saiu da sala. Ele entendia que Kessell, como um tolo, estava demonstrando seu
controle sobre o fragmento, a custo de uma contenção adequada e de táticas
militares sábias. O mago não tinha capacidade nem experiência para orquestrar essa
campanha, mas o fragmento continuava a apoiá-lo.
Errtu fizera uma oferta secreta para que se desfizesse de Kessell e assumisse o
controle. Mas Crenshinibon recusara o demônio. Ele preferia as demonstrações que
Kessell exigia para apaziguar suas próprias inseguranças à luta constante de
controle que enfrentaria contra o poderoso ser.

Embora andasse entre gigantes e trolls, a estatura do orgulhoso rei bárbaro não
diminuiu. Ele caminhou desafiadoramente pela porta de ferro da torre negra e
empurrou os miseráveis guardas trolls com um rosnado ameaçador. Ele odiava esse
lugar de feitiçaria e decidira ignorar o chamado quando a torre singular apareceu no
horizonte como um dedo gelado subindo do solo plano. No entanto, no final, ele
não pôde resistir à convocação do mestre de Cryshal-Tirith.
Heafstaag odiava o mago. Por todas as medidas de sua tribo, Akar Kessell era fraco,
usando truques e conjurações demoníacas para fazer o trabalho do músculo. E
Heafstaag o odiava ainda mais porque não podia refutar o poder que o mago
comandava.
O rei bárbaro jogou de lado os fios de contas pendentes que separavam o auditório
particular de Akar Kessell no segundo andar da torre. O feiticeiro reclinava-se numa
enorme almofada de cetim no meio da sala, com as unhas compridas e pintadas
batendo impacientemente no chão. Várias meninas escravas nuas, com as mentes
dobradas e quebradas sob o domínio do fragmento, esperavam por cada capricho do
portador do fragmento.
Irritava a Heafstaag ver mulheres escravizadas por um arremedo de homem tão
insignificante e miserável. Ele considerou, e não pela primeira vez, uma investida
repentina, enterrando seu grande machado no fundo do crânio do mago. Mas a sala
estava repleta de telas e pilares estrategicamente localizados, e o bárbaro sabia,
mesmo se recusando a acreditar que a vontade do mago poderia apagar sua raiva,
que o demônio de estimação de Kessell não estaria longe de seu mestre.
— Que bom que você pôde se juntar a mim, nobre Heafstaag — disse Kessell de
uma maneira calma e desarmada. Errtu e Crenshinibon estavam por perto. Ele
sentia-se bastante seguro, mesmo na presença do robusto rei bárbaro. Ele acariciou
uma das escravas distraidamente, mostrando seu domínio absoluto. — Você deveria
ter vindo mais cedo. Muitas das minhas forças já estão reunidas; o primeiro grupo
de batedores já partiu.
Ele se inclinou na direção do bárbaro para enfatizar seu ponto.
— Se eu não puder encontrar espaço para o seu povo em meus planos — ele disse
com uma risadinha malvada —, então não terei necessidade alguma de vocês.
Heafstaag não recuou nem mudou em nada sua expressão.
— Venha agora, poderoso rei — o mago cantarolou — sente-se e compartilhe das
riquezas de minha mesa.
Heafstaag agarrou-se ao orgulho e permaneceu imóvel.
— Muito bem — rebateu Kessell. Ele cerrou o punho e pronunciou uma palavra de
comando. — A quem você deve sua fidelidade? — ele exigiu saber.
O corpo de Heafstaag ficou rígido.
— A Akar Kessell! — ele respondeu, para sua própria repulsa.
— E me diga de novo quem é que comanda as tribos da tundra.
— Elas me seguem — respondeu Heafstaag — e eu sigo Akar Kessell. Akar
Kessell comanda as tribos da tundra!
O mago soltou o punho e o rei bárbaro caiu para trás.
— Não fico feliz em fazer isso com você — disse Kessell, esfregando uma rebarba
em uma de suas unhas pintadas. — Não me faça fazer isso de novo.— ele puxou
um pergaminho de trás do travesseiro de cetim e jogou-o no chão. — Sente-se
diante de mim — instruiu Heafstaag. Fale de novo sobre sua derrota.
Heafstaag assumiu o seu lugar no chão em frente ao seu mestre e desenrolou o
pergaminho.
Era um mapa de Dez-Burgos.
CAPÍTULO 14

Olhos Lavanda

BRUENOR JÁ HAVIA RECUPERADO sua expressão austera quando visitou


Wulfgar na manhã seguinte. Ainda assim, o anão ficou profundamente emocionado,
embora conseguisse esconder, ao ver Presa de Égide casualmente no ombro do
jovem bárbaro como se sempre tivesse estado ali – e sempre pertencido a ele.
Wulfgar também vestia uma máscara de severidade. Ele fingia que era de raiva por
ser colocado a serviço de outro; se tivesse examinado suas emoções mais de perto,
teria reconhecido que estava na verdade triste por se separar do anão.
Cattibrie estava esperando por eles na junção da passagem final que levava ao ar
livre.
— Vocês certamente estão azedos nesta manhã linda! — disse quando se
aproximaram. — Mas não importa, o sol vai colocar um sorriso em seus rostos.
— Você pareceu satisfeita com essa separação — respondeu Wulfgar, um pouco
perturbado, embora o brilho em seus olhos ao ver a garota desmentisse sua raiva. —
Você sabe, é claro, que devo deixar a cidade dos anões hoje?
Cattibrie acenou com a mão indiferente.
— Logo, você vai estar de volta — ela sorriu. — E fique feliz por ir! Considere as
lições que você aprenderá em breve como necessárias se quiser alcançar suas metas.
Bruenor se virou para o bárbaro. Wulfgar nunca havia falado com ele sobre o que
viria depois do prazo da servidão, e o anão, embora quisesse prepara-lo da melhor
forma possível, honestamente ainda não havia aceitado a decisão de Wulfgar de
partir.
Wulfgar franziu o cenho para a garota, mostrando-lhe, sem sombra de dúvida, que a
discussão deles sobre a promessa não cumprida era um assunto particular. Cattibrie
tinha decidido, por si mesma, que não pretendia discutir mais a questão. Ela
simplesmente gostava de provocar Wulfgar. Cattibrie reconhecia o fogo que
queimava no jovem orgulhoso. Via-o sempre que ele olhava para Bruenor, seu
mentor, quer admitisse ou não. E ela o notava sempre que Wulfgar olhava para ela.
— Eu sou Wulfgar, filho de Beornegar — gabou-se orgulhosamente, jogando para
trás seus ombros largos e endireitando a mandíbula firme. — Cresci entre a Tribo
do Alce, os melhores guerreiros em todo o Vale do Vento Gélido! Não conheço
nada deste tutor, mas ele terá dificuldade em me ensinar qualquer coisa sobre os
caminhos da batalha!
Cattibrie trocou um sorriso conspiratório com Bruenor quando o anão e Wulfgar
passaram por ela.
— Adeus, Wulfgar, filho de Beornegar — gritou para eles. — Na próxima vez que
nos encontrarmos, eu vou marcar bem suas lições de humildade!
Wulfgar olhou para trás e franziu o cenho novamente, mas o largo sorriso de
Cattibrie não diminuiu em nada.
Os dois deixaram a escuridão das minas pouco depois do amanhecer, viajando pelo
vale rochoso até o ponto onde deveriam encontrar o drow. Era um dia quente de
verão sem nuvens, com o azul do céu empalidecido pela neblina da manhã. Wulfgar
se esticou alto no ar, alcançando os limites de seus longos músculos. Seu povo fora
feito para viver nas amplas extensões da tundra aberta, e ficou aliviado por estar
fora do ambiente fechado e sufocante das cavernas feitas pelos anões.
Drizzt Do’Urden estava esperando por eles quando chegaram. O drow se apoiava
contra o lado sombreado de um pedregulho, buscando alívio do brilho do sol. O
capuz de sua capa estava puxado para baixo em frente ao rosto como proteção
adicional. Drizzt considerava uma maldição de sua herança que, não importava
quantos anos permanecesse entre os habitantes da superfície, seu corpo nunca se
adaptaria totalmente à luz do sol.
Manteve-se imóvel, embora estivesse plenamente consciente da aproximação de
Bruenor e Wulfgar. Deixe-os fazer os primeiros movimentos, pensou, querendo
julgar como o garoto reagiria à nova situação.
Curioso sobre a misteriosa figura que seria seu novo tutor e mestre, Wulfgar
corajosamente se aproximou e parou diante do drow. Drizzt observou-o aproximar-
se sob as sombras do seu capuz, maravilhado com a interação graciosa dos
músculos robustos do homem enorme. No começo, o drow planejara alegrar
Bruenor em seu ultrajante pedido por um curto período, depois dar alguma desculpa
e seguir seu caminho. Mas ao notar o fluxo suave e o alcance dos longos passos do
bárbaro, uma agilidade incomum em alguém do tamanho dele, Drizzt se viu cada
vez mais interessado no desafio de desenvolver o potencial aparentemente ilimitado
do jovem.
Drizzt percebeu que a parte mais dolorosa do encontro com esse homem, como era
com todos que encontrava, seria a reação inicial de Wulfgar a ele. Ansioso para
acabar com isso, ele puxou o capuz e encarou o bárbaro.
Os olhos de Wulfgar se arregalaram de horror e nojo.
— Um elfo negro! — ele gritou incrédulo. — Cão feiticeiro! — Ele se virou para
Bruenor como se tivesse sido traído. — Você não pode pedir isso de mim! Não
tenho necessidade nem desejo de aprender os enganos mágicos de sua raça
decrépita!
— Ele vai ensiná-lo a lutar, nada mais — disse Bruenor. O anão estava esperando
por isso. Não estava nem um pouco preocupado, plenamente consciente, como
Cattibrie, de que Drizzt ensinaria ao jovem orgulhoso demais um pouco de
humildade necessária.
Wulfgar bufou, desafiador.
— O que eu posso aprender sobre como lutar de um elfo fracote? Meu povo luta
como verdadeiros guerreiros! — Olhou para Drizzt com claro desprezo. — Não
como cães trapaceiros como o tipo dele!
Drizzt olhou calmamente para Bruenor, pedindo permissão para começar a lição do
dia. O anão sorriu com a ignorância do bárbaro e acenou com a cabeça.
Em um piscar de olhos, as duas cimitarras saltaram de suas bainhas e desafiaram o
bárbaro. Instintivamente, Wulfgar levantou seu martelo de guerra para atacar.
Mas Drizzt foi mais rápido. Os lados planos de suas armas bateram em rápida
sucessão contra as bochechas de Wulfgar, arrancando finos traços de sangue.
Mesmo quando o bárbaro se moveu para contra-atacar, Drizzt girou uma das
lâminas mortais em um arco descendente, com seu fio mergulhando na parte de trás
do joelho de Wulfgar. O bárbaro conseguiu tirar a perna do caminho, mas a ação,
como Drizzt previra, o desequilibrou. O drow deslizou casualmente as cimitarras de
volta para suas bainhas de couro enquanto seu pé batia no estômago do bárbaro,
fazendo-o cair no chão, o martelo mágico voando de suas mãos.
— Agora que vocês se entenderam — declarou Bruenor, tentando esconder sua
diversão pelo bem do ego frágil de Wulfgar — vou deixá-los! — Deu um olhar
questionador para Drizzt para se certificar de que o drow estava confortável com a
situação.
— Me dê algumas semanas — respondeu Drizzt com uma piscadela, devolvendo o
sorriso do anão.
Bruenor voltou-se para Wulfgar, que recuperara Presa de Égide e estava apoiado em
um dos joelhos, olhando para o elfo com uma expressão de puro espanto.
— Preste atenção às palavras dele, garoto — o anão instruiu uma última vez. — Ou
ele vai te cortar em pedaços pequenos o suficiente para a garganta de um abutre.

Pela primeira vez em quase cinco anos, Wulfgar olhou além das fronteiras das Dez-
Burgos para o trecho aberto do Vale do Vento Gélido que se estendia à sua frente.
Ele e o drow passaram o resto do primeiro dia juntos caminhando pelo vale e em
torno das esporas orientais do Sepulcro de Kelvin. Ali, logo acima da base do lado
norte da montanha, ficava a caverna rasa onde Drizzt morava.
Escassamente mobiliada com algumas peles e algumas panelas, a caverna não tinha
nenhum luxo, mas servia bem ao despretensioso drow ranger, permitindo-lhe a
privacidade e isolamento que preferia às provocações e ameaças dos humanos. Para
Wulfgar, cujo povo raramente ficava em qualquer lugar por mais de uma única
noite, a própria caverna parecia um luxo.
Quando o crepúsculo começou a se instalar sobre a tundra, Drizzt, nas sombras
confortáveis da caverna, despertou de seu curto cochilo. Wulfgar ficou satisfeito
pelo drow ter confiado nele o suficiente para dormir facilmente, tão vulnerável, em
seu primeiro dia juntos. Isso, junto com a surra que Drizzt lhe dera antes, levaram
Wulfgar a questionar sua indignação inicial ao ver um elfo negro.
— Começamos nossas sessões esta noite, então? — Drizzt perguntou.
— Você é o mestre — disse Wulfgar, amargo. — Eu sou apenas o escravo!
— Não mais um escravo do que eu — respondeu Drizzt. Wulfgar se virou para ele
com curiosidade.
— Ambos devemos ao anão — explicou Drizzt. — Devo minha vida a ele muitas
vezes e, portanto, concordei em ensinar-lhe minha habilidade em batalha. Você
segue um juramento que fez a ele em troca de sua vida. Assim, você é obrigado a
aprender o que tenho para ensinar. Eu não sou o mestre de ninguém, tampouco
desejaria ser.
Wulfgar tornou a ollhar para a tundra. Ele ainda não confiava totalmente em Drizzt,
embora não conseguisse descobrir que segundas intenções o drow poderia ter ao
manter a fachada amigável.
— Pagamos nossas dívidas com Bruenor juntos — disse Drizzt. Ele sentiu empatia
com as emoções que Wulfgar experimentava ao olhar pela planície de sua terra
natal pela primeira vez em anos. — Aproveite esta noite, bárbaro. Ande como
quiser e lembre-se novamente da sensação do vento em seu rosto. Vamos começar
ao anoitecer de amanhã.
Ele foi embora para dar a Wulfgar a privacidade que desejava.
Wulfgar não podia negar que apreciava o respeito que o drow lhe mostrara.

Durante o dia, Drizzt descansava nas sombras frescas da caverna enquanto Wulfgar
se acostumava à nova área e caçava para o jantar.
À noite, eles lutavam.
Drizzt pressionava o jovem bárbaro sem descanso, dando-lhe um tapa com a lateral
da lâmina da cimitarra toda vez que abria uma brecha em suas defesas. As trocas
muitas vezes escalavam perigosamente, pois Wulfgar era um guerreiro orgulhoso e
ficava enfurecido e frustrado com a superioridade do drow. Isso só colocava o
bárbaro em desvantagem, pois, em sua raiva, toda a aparência disciplinada sumia.
Drizzt foi rápido em apontar isso com uma série de tapas e torções que deixaram
Wulfgar esparramado no chão.
Para seu crédito, entretanto, Drizzt nunca insultou o bárbaro ou tentou humilhá-lo.
O drow seguia sua tarefa metodicamente, entendendo que a primeira coisa a se
fazer era aguçar os reflexos do bárbaro e ensinar-lhe alguma preocupação pela
defesa.
Drizzt ficou mesmo impressionado com a habilidade crua de Wulfgar. O incrível
potencial do jovem guerreiro o surpreendeu. A princípio, temia que o obstinado
orgulho e a amargura de Wulfgar o tornassem impossível de se treinar, mas o
bárbaro enfrentara o desafio. Reconhecendo os benefícios que poderia obter de
alguém tão hábil com as armas quanto Drizzt, Wulfgar ouvia com atenção. Seu
orgulho, em vez de limitá-lo a acreditar que já era um guerreiro poderoso e não
precisava de mais instrução, o empurrou para agarrar todas as vantagens que
pudesse encontrar para ajudá-lo a alcançar seus objetivos ambiciosos. No final da
primeira semana, quando conseguiu controlar seu temperamento volátil, ele já se
desviava de muitos dos ataques astutos de Drizzt.
Drizzt disse pouco durante a primeira semana, embora ocasionalmente
cumprimentasse o bárbaro por um bom bloqueio ou contra-ataque, e no geral, sobre
a melhora que Wulfgar estava mostrando em tão pouco tempo. Wulfgar se viu
esperando ansioso pelas observações do drow sempre que executava uma manobra
especialmente difícil, e temendo a inevitável bofetada sempre que ele se deixava
vulnerável.
O respeito do jovem bárbaro por Drizzt continuou a crescer. Alguma coisa sobre o
drow, vivendo sem reclamar em solidão estoica, tocou o senso de honra de Wulfgar.
Ainda não sabia por que Drizzt escolhera tal existência, mas tinha certeza do que já
vira do drow que tinha algo a ver com princípios.
No meio da segunda semana, Wulfgar tinha controle total de Presa de Égide,
torcendo a empunhadura e a cabeça habilmente para bloquear as duas cimitarras
que zumbiam e respondendo com seus próprios ataques medidos com cautela.
Drizzt podia ver a mudança sutil ocorrendo quando o bárbaro parou de reagir de
pronto aos cortes e estocadas habilidosos das cimitarras e passou a reconhecer suas
próprias áreas vulneráveis e a antecipar o próximo ataque.
Quando se convenceu de que as defesas de Wulfgar estavam suficientemente
fortalecidas, Drizzt começou as lições de ataque. O drow sabia que seu estilo de
ataque não seria o mais eficaz para Wulfgar. O bárbaro poderia usar sua força
inigualável com mais eficiência do que fintas e reviravoltas enganadoras. O povo de
Wulfgar era naturalmente agressivo, e o ataque era mais fácil para eles do que o
bloqueio. O poderoso bárbaro poderia derrubar um gigante com um único golpe
bem colocado.
Tudo o que ele ainda precisava aprender era paciência.

No início de uma noite escura e sem lua, enquanto se preparava para a aula da noite,
Wulfgar notou o clarão de uma fogueira na planície. Ele assistiu, hipnotizado,
quando várias outras surgiram de repente, imaginando se poderia ser as fogueiras de
sua própria tribo.
Drizzt aproximou-se silenciosamente, sem ser notado pelo bárbaro absorto. Os
olhos élficos do drow notaram os movimentos do acampamento distante muito
antes que a luz do fogo se tornasse forte o suficiente para Wulfgar ver.
— Seu povo sobreviveu — disse ele para confortar o jovem.
Wulfgar se assustou com a aparição repentina de seu professor.
— Você sabe deles? — ele perguntou.
Drizzt foi para o seu lado e ficou olhando a tundra.
— Suas perdas foram grandes na Batalha de Bryn Shander — disse. — E o inverno
que se seguiu foi muito difícil para as muitas mulheres e crianças que não tinham
homens para caçar por elas. Eles fugiram para o oeste para encontrar as renas,
unindo-se a outras tribos para se fortalecer. Os povos ainda se apegam aos nomes
das tribos originais, mas na verdade só restam duas: a Tribo do Alce e a Tribo do
Urso.
— Você era da Tribo do Alce, acredito — continuou Drizzt, recebendo um aceno de
Wulfgar. — Seu povo fez bem. Eles dominam a planície agora, e embora mais anos
tenham que passar antes que o povo da tundra recupere a força que possuía antes da
batalha, os guerreiros mais jovens já estão chegando à idade adulta.
Alívio inundou Wulfgar. Ele temia que a Batalha de Bryn Shander tivesse dizimado
seu povo a um ponto do qual eles nunca poderiam se recuperar. A tundra era duas
vezes mais rígida no inverno gelado, e Wulfgar frequentemente considerava a
possibilidade de que a súbita perda de tantos guerreiros – algumas das tribos haviam
perdido todos os seus homens – condenasse o povo restante a uma morte lenta.
— Você sabe muito sobre o meu povo — comentou Wulfgar.
— Passei muitos dias observando-os — explicou Drizzt, sabendo que linha de
pensamento o bárbaro estava traçando — aprendendo seus métodos e truques para
prosperar em uma terra tão hostil.
Wulfgar riu baixinho e sacudiu a cabeça, ainda mais impressionado com a sincera
reverência que o drow demonstrava sempre que falava dos nativos do Vale do Vento
Gélido. Conhecia o drow há menos de duas semanas, mas já entendia bem o caráter
de Drizzt Do’Urden para saber que sua próxima observação sobre o drow era fiel.
— Eu aposto que você até derrubou veados silenciosamente na escuridão, para ser
encontrado na luz da manhã por pessoas famintas demais para questionar sua boa
sorte.
Drizzt não respondeu nem mudou sua expressão, mas Wulfgar confiava em seu
palpite.
— Você sabe sobre Heafstaag? — o bárbaro perguntou depois de alguns momentos
de silêncio. — Ele era o rei da minha tribo, um homem de muitas cicatrizes e
grande renome.
Drizzt se lembrava bem do bárbaro caolho. A mera menção de seu nome enviou
uma dor surda ao ombro do drow, onde havia sido ferido pelo pesado machado do
enorme homem.
— Ele vive — Drizzt respondeu, de certa forma escondendo seu desprezo. —
Heafstaag fala por todo o norte agora. Ninguém de sangue real resta para opor-se a
ele em combate ou falar contra ele para mantê-lo sob controle.
— Ele é um rei poderoso — disse Wulfgar, indiferente ao veneno na voz do drow.
— Ele é um lutador selvagem — corrigiu Drizzt. Seus olhos lavanda perfuraram
Wulfgar, pegando o bárbaro completamente de surpresa com o súbito lampejo de
raiva. Wulfgar viu o caráter incrível naquelas poças violetas, uma força interior
dentro do drow cuja qualidade pura faria o mais nobre dos reis invejoso.
— Você se transformou em um homem à sombra de um anão de caráter irrefutável
— repreendeu Drizzt. — Você não ganhou nada com a experiência?
Wulfgar ficou perplexo e não conseguiu encontrar palavras para responder.
Drizzt decidiu que chegara a hora de desnudar os princípios do bárbaro e julgar a
sabedoria e o valor de ensinar o jovem.
— Um rei é um homem forte de caráter e convicção, que lidera pelo exemplo e
realmente se importa com o sofrimento de seu povo — ele lecionou. — Não um
bruto que governa só por ser o mais forte. Achei que você teria aprendido a
entender a diferença.
Drizzt notou o embaraço no rosto de Wulfgar e soube que os anos nas cavernas dos
anões abalaram as convicções em que o bárbaro crescera. Esperava que a crença de
Bruenor na consciência e princípios de Wulfgar fosse verdadeira, pois ele também,
como Bruenor anos antes, passara a reconhecer como o jovem inteligente era
promissor e descobriu que se importava com o futuro de Wulfgar. Ele se virou de
repente e partiu, deixando o bárbaro para encontrar as respostas para suas próprias
perguntas.
— A aula? — Wulfgar chamou-o, ainda confuso e surpreso.
— Você teve sua aula desta noite — respondeu Drizzt, sem se virar ou diminuir a
velocidade. — Talvez tenha sido a lição mais importante que ensinarei.
O drow desapareceu na escuridão da noite, embora a imagem distinta dos olhos
lavanda permanecesse impressa nos pensamentos de Wulfgar.
O bárbaro voltou-se novamente para a fogueira distante.
E refletiu.
CAPÍTULO 15

Nas Asas da Danação

ELES CHEGARAM SOB UM VENDAVAL violento que varreu Dez-Burgos vindo


do leste. Ironicamente, seguiram a mesma trilha ao longo da lateral do Sepulcro de
Kelvin pela qual Drizzt e Wulfgar haviam viajado apenas duas semanas antes. Este
bando de verbeegs, porém, dirigiu-se a sul, em direção aos assentamentos, em vez
de seguir para o norte, para a tundra aberta. Embora altos e magros – os menores
dos gigantes – ainda eram uma força formidável.
Um gigante de gelo liderava os batedores avançados do vasto exército de Akar
Kessell. Sem serem ouvidos sob as rajadas uivantes do vento, avançavam com toda
a velocidade para um covil secreto que havia sido descoberto por batedores orcs em
um esporão rochoso no lado sul da montanha. Havia apenas cerca de vinte
monstros, mas cada um carregava um enorme amontoado de armas e suprimentos.
O líder prosseguiu em direção ao seu destino. Seu nome era Carranca, um gigante
astuto e imensamente forte cujo lábio superior fora arrancado pela mordida de um
enorme lobo, deixando a grotesca caricatura de um sorriso estampada para sempre
em seu rosto. Essa desfiguração só acrescentava à estatura do gigante, instilando o
respeito causado pelo medo em suas tropas normalmente incontroláveis. Akar
Kessell havia escolhido a dedo Carranca como o líder de seus batedores avançados,
embora o mago tivesse sido aconselhado a enviar um grupo menos notável, do povo
de Heafstaag, para a delicada missão. Mas Kessell tinha Carranca em grande
consideração e ficara impressionado com a enorme quantidade de suprimentos que
o pequeno bando de verbeegs podia carregar.
A tropa instalou-se em seus novos aposentos antes da meia-noite e imediatamente
passou a criar áreas para dormir, depósitos e uma pequena cozinha. Então
esperaram, silenciosamente posicionados para dar os primeiros golpes letais no
glorioso ataque de Akar Kessell a Dez-Burgos.
Um mensageiro orc vinha a cada dois dias para checar o bando e entregar as últimas
instruções do mago, informando Carranca sobre o progresso da próxima tropa de
suprimentos programada para chegar. Tudo estava seguindo de acordo com o plano
de Kessell, mas Carranca notou preocupado que muitos de seus guerreiros ficavam
mais ávidos e ansiosos sempre que um novo mensageiro aparecia, na esperança da
hora de marchar para a guerra finalmente ter chegado.
As instruções eram sempre as mesmas: fiquem escondidos e esperem.
Em menos de duas semanas na atmosfera tensa da caverna abafada, a camaradagem
entre os gigantes se desintegrou. Verbeegs eram criaturas de ação, não
contemplação, e o tédio os levava à frustração.
Discussões se tornaram comuns, muitas vezes levando a lutas cruéis. Carranca
nunca ficava longe, e o imponente gigante de gelo geralmente conseguia acabar
com as brigas antes que qualquer um se ferisse a sério. O gigante sabia, sem
nenhuma dúvida, que não conseguiria manter o controle do bando faminto pela
batalha por muito mais tempo.
O quinto mensageiro entrou na caverna em uma noite particularmente quente e
desconfortável. Assim que o desafortunado orc entrou na sala comunal, foi cercado
por uma vintena de verbeegs aos resmungos.
— Qual é a novidade, então? — um deles exigiu saber, impaciente. Pensando que o
apoio de Akar Kessell era proteção suficiente, o orc olhou para o gigante em desafio
aberto.
— Vá buscar seu mestre, soldado — ordenou.
De repente, uma mão enorme agarrou o orc pela nuca e sacudiu a criatura
bruscamente.
— Eu fiz pergunta, escória — disse um segundo gigante. — O que tem de novo?
O orc, agora visivelmente nervoso, lançou uma ameaça furiosa contra seu agressor
gigante.
— O mago vai arrancar a pele do seu couro enquanto você assiste!
— Escutei bastante — rosnou o primeiro gigante, esticando-se para apertar uma
mão enorme em volta do pescoço do orc. Ele levantou a criatura do chão, usando
apenas um de seus braços imensos. O orc se debateu e retorceu lamentavelmente,
sem incomodar o verbeeg em nada.
— Ah, esmaga esse pescoço imundo — veio um grito.
— Bota os olhos dele pra fora e joga ele num buraco escuro! — disse outro.
Carranca entrou na sala, abrindo caminho aos empurrões pelas fileiras para
descobrir a fonte da bagunça. O gigante não ficou surpreso ao encontrar o verbeeg
atormentando um orc. Na verdade, o líder gigante se divertiu com o espetáculo, mas
entendia o perigo de irritar o volátil Akar Kessell. Tinha visto mais de um goblin
indisciplinado ser morto por desobedecer ou só para satisfazer o gosto distorcido do
mago.
— Coloque a coisa miserável no chão — ordenou Carranca com calma.
Vários gemidos e grunhidos furiosos surgiram ao redor do gigante de gelo.
— Esmaga cabeça dele! — gritou um.
— Morde nariz! — gritou outro.
A essa altura, o rosto do orc estava inchado pela falta de ar, e ele mal se debatia. O
verbeeg, segurando-o, retornou o olhar ameaçador de Carranca por mais alguns
instantes, depois jogou a vítima indefesa em frente às botas do gigante de gelo.
— Fica, então — o verbeeg rosnou para Carranca. — Mas soltar língua para mim
de novo, eu come com certeza!
— Eu cansei de buraco — reclamou um gigante, na parte de trás das fileiras. —
Com vale de anões imundos pra gente pegar! — o resmungo renovou-se com
intensidade aumentada.
Carranca olhou em volta e estudou a raiva fervilhante que se infiltrara nas tropas,
ameaçando derrubar todo o covil em um súbito ataque de violência irreprimível.
— Amanhã à noite começamos a sair para ver como estão as coisas — Carranca
ofereceu. Era um movimento perigoso, o gigante do gelo sabia, mas a alternativa
era o desastre certo. — Apenas três de cada vez, e ninguém pode saber!
O orc havia recuperado um pouco de compostura e ouviu a proposta de Carranca.
Ele foi reclamar, mas o líder gigante silenciou-o imediatamente.
— Cala a boca, cão orc — ordenou Carranca, olhando para o verbeeg que ameaçara
o corredor e sorrindo ironicamente. — Ou vou deixar meu amigo te comer!
Os gigantes uivaram sua alegria e trocaram tapas nos ombros com seus
companheiros, camaradas novamente. Carranca havia devolvido a promessa de
ação, embora as dúvidas do líder gigante sobre sua decisão estivessem longe de ser
dissipadas pelo entusiasmo vigoroso dos soldados. Gritos das várias receitas dos
anões que os verbeegs tinham inventado – “Anão com Maçã” e “Barbado, Regado e
Assado” para citar duas – soaram como uma aprovação esmagadora.
Carranca temia o que poderia acontecer se algum dos verbeegs encontrasse alguém
do povo atarracado.

Carranca deixou os verbeegs saírem do covil em grupos de três e somente durante


as horas noturnas. O líder gigante achava improvável que qualquer anão viajasse tão
ao norte no vale, mas sabia que estava fazendo uma aposta grande. Um suspiro de
alívio escapava da boca do gigante sempre que uma patrulha retornava sem
incidentes.
Só ter permissão de sair da caverna apertada melhorou a moral dos verbeegs em dez
vezes. A tensão dentro do covil desapareceu enquanto as tropas recuperaram seu
entusiasmo pela guerra vindoura. Da lateral do Sepulcro de Kelvin, eles muitas
vezes viam as luzes de Caer-Konig e Caer-Dineval, Termalaine do outro lado a o
oeste, e até Bryn Shander, bem ao sul. Ver as cidades permitiu-lhes fantasiar sobre
suas próximas vitórias e os pensamentos foram suficientes para sustentá-los em sua
longa espera.
Outra semana se passou. Tudo parecia estar indo bem. Testemunhando a melhora
que a pequena medida de liberdade trouxe a suas tropas, Carranca gradualmente
começou a relaxar sobre a decisão arriscada.
Mas então dois anões, tendo sido informados por Bruenor que havia boa pedra sob a
sombra do Sepulcro de Kelvin, fizeram a viagem para o extremo norte do vale para
investigar seu potencial de mineração. Eles chegaram na encosta sul da montanha
rochosa no final de uma tarde e, ao anoitecer, acamparam em uma rocha plana ao
lado de um riacho veloz.
Este era o vale deles e não haviam tido problemas nos últimos anos. Tomaram
poucas precauções.
Então a primeira patrulha de verbeegs a deixar o covil naquela noite logo avistou as
chamas de uma fogueira e ouviu o distinto dialeto dos odiados anões.

Do outro lado da montanha, Drizzt Do’Urden abriu os olhos de seu sono diurno.
Emergindo da caverna para a crescente penumbra, encontrou Wulfgar no lugar
habitual, meditativo sobre uma pedra alta, olhando para a planície.
— Você anseia por sua casa? — o drow perguntou retoricamente.
Wulfgar deu de ombros e respondeu, distraído:
— Talvez.
O bárbaro havia começado se perguntar coisas perturbadoras a respeito de seu povo
e seu modo de vida desde que aprendera a respeitar Drizzt. O drow era um enigma
para ele, uma combinação confusa de brilhantismo de luta e controle absoluto.
Drizzt parecia capaz de pesar todos os movimentos que já fizera nas escalas da alta
aventura e da moral indiscutível.
Wulfgar dirigiu um olhar interrogativo ao drow.
— Por que você está aqui? — perguntou de repente.
Agora era Drizzt quem olhava pensativo para o campo aberto diante deles. As
primeiras estrelas da noite apareceram, seus reflexos brilhando distintamente nas
profundezas escuras dos olhos do elfo. Mas Drizzt não as estava vendo; sua mente
vendo imagens antigas das cidades sem luz do drow em seus imensos complexos de
cavernas abaixo do solo.
— Eu me lembro — Drizzt recordou vividamente, pois memórias terríveis são
muitas vezes vívidas — da primeira vez que vi esse mundo da superfície. Eu era um
elfo muito mais jovem então, membro de um grande grupo de ataque. Saímos de
uma caverna secreta e descemos sobre uma pequena aldeia élfica — O drow se
encolheu com as imagens que voltaram a brilhar em sua mente. — Meus
companheiros massacraram todos os membros do clã dos elfos da floresta. Cada
mulher. Cada criança.
Wulfgar ouviu com crescente horror. O ataque que Drizzt estava descrevendo
poderia muito bem ter sido um perpetrado pela feroz Tribo do Alce.
— Meu povo mata — Drizzt continuou, sombrio. — Eles matam sem piedade. —
Travou seu olhar em Wulfgar para se certificar de que o bárbaro o ouvia bem. —
Eles matam sem paixão.
Ele parou por um momento para deixar o bárbaro absorver todo o peso de suas
palavras. A descrição simples, mas definitiva, dos assassinos frios confundira
Wulfgar. Ele havia sido educado e nutrido entre guerreiros apaixonados,
combatentes cujo propósito na vida era a busca da glória da batalha, lutando em
louvor a Tempus. O jovem bárbaro simplesmente não conseguia entender essa
crueldade sem emoção. Uma diferença sutil, porém, Wulfgar teve que admitir.
Drow ou bárbaro, os resultados dos ataques foram praticamente os mesmos.
— A deusa demoníaca que eles servem não deixa espaço para as outras raças —
explicou Drizzt. — Principalmente as outras raças de elfos.
— Mas você nunca chegará a ser aceito neste mundo — disse Wulfgar. — Você
sabe que os humanos sempre vão evitar você.
Drizzt assentiu.
— A maioria — ele concordou. — Tenho poucos que posso chamar de amigos,
ainda assim estou contente. Veja, bárbaro, tenho meu próprio respeito, sem culpa,
sem vergonha. — Ele se levantou de seu agachamento e começou a andar na
escuridão. — Venha — instruiu. — Vamos lutar bem esta noite, pois estou satisfeito
com a melhoria de suas habilidades e essa parte de suas lições se aproxima do fim.
Wulfgar ficou um momento a mais em contemplação. O drow vivia uma existência
rústica e materialmente vazia, mas era mais rico do que qualquer homem que
Wulfgar já conhecera. Drizzt tinha se agarrado aos seus princípios contra
circunstâncias esmagadoras, deixando o mundo familiar de seu próprio povo por
escolha própria para permanecer em um mundo onde nunca seria aceito ou
apreciado.
Ele olhou para o elfo que partia, agora uma mera sombra na escuridão.
— Talvez não sejamos tão diferentes — murmurou baixinho.

— Espiões! — sussurrou um dos verbeegs.


— Burros espionarem com fogueira — disse outro.
— Vamos esmagar! — disse o primeiro, indo na direção da luz laranja.
— O chefe disse não! — o terceiro lembrou aos outros. — Olhar, sem esmagar!
Eles começaram a descer o caminho rochoso em direção ao pequeno acampamento
dos anões com o máximo de discrição que conseguiam, o que os tornava tão
silenciosos quanto uma rocha rolante.
Os dois anões estavam conscientes de que alguém ou alguma coisa estava se
aproximando. Eles sacaram suas armas como precaução, mas imaginaram que
Wulfgar e Drizzt, ou talvez alguns pescadores de Caer-Konig, tivessem visto sua
luz e estivessem vindo para compartilhar o jantar.
Quando o acampamento apareceu logo abaixo, os verbeegs viram os anões firmes
de pé, com as armas na mão.
— Eles viram! — disse um gigante, mergulhando na escuridão.
— Ah, cala boca — ordenou o segundo.
O terceiro gigante, sabendo como o segundo que os anões ainda não sabiam quem
eram, agarrou o ombro do segundo e piscou, maldoso.
— Se viram — raciocinou — temos que esmagar!
O segundo gigante riu suavemente, posicionou o porrete pesado em seu ombro e
partiu para o acampamento.
Os anões ficaram completamente atordoados quando os verbeegs chegaram por trás
de uns pedregulhos a poucos metros de seu acampamento e se aproximaram deles.
Mas um anão encurralado é mais duro do que qualquer coisa no mundo, e esses
eram do clã do Salão de Mitral e vinham travando batalhas na impiedosa tundra por
todas as suas vidas. Essa luta não seria tão fácil quanto os verbeegs esperavam.
O primeiro anão abaixou-se diante de um movimento pesado do verbeeg que
liderava e revidou batendo seu martelo nos dedos do pé do monstro. O gigante
instintivamente ergueu o pé machucado e pulou em uma perna, e o guerreiro anão o
derrubou, golpeando-o no joelho.
O outro anão reagiu de pronto, lançando seu martelo com precisão. Ele pegou outro
gigante no olho e fez a criatura cair em algumas pedras.
Mas o terceiro verbeeg, o mais esperto dos três, pegou uma pedra antes de atacar e
devolveu o lance do anão com uma força tremenda.
A pedra acertou a têmpora do anão azarado, quebrando o seu pescoço com
violência para o lado. Sua cabeça pendia sobre seus ombros quando caiu morto no
chão.
O primeiro anão teria acabado com o gigante que havia derrubado, mas o último
dos monstros logo estava em cima dele. Os dois combatentes bloquearam e contra-
atacaram, com o anão na verdade ganhando um pouco de vantagem. Uma vantagem
que durou apenas até o gigante atingido no olho pelo martelo lançado se recuperar o
suficiente.
Os dois verbeegs lançaram uma chuva de golpe pesado em cima de golpe pesado no
anão. Ele conseguiu se esquivar e desviá-los por um curto período, mas um acertou
bem no seu ombro e o fez cair de costas. Ele recuperou o fôlego em pouco tempo,
pois era tão resistente quanto a pedra em que havia pousado, mas uma bota pesada
pisou nele e o prendeu.
— Esmaga! — implorou o gigante ferido que o anão havia derrubado com um
golpe no joelho. — E levamos pro cozinheiro!
— Levamos não! — rosnou o gigante acima do anão. Ele enterrou sua imensa bota
na terra, lentamente pressionando a vida para fora da infeliz vítima.
— Carranca vai levar nós ao cozinheiro se descobrir! — Os outros dois sentiram
um medo genuíno quando foram lembrados da ira de seu líder brutal. Eles olharam
impotentes para o companheiro mais esperto esperando uma solução.
— Vamos botar eles e coisas sujas em buraco escuro e não falar nada!

Muitos quilômetros a leste, em sua torre solitária, Akar Kessell esperava


pacientemente. No outono, a última – e a maior – das caravanas de comércio
recuaria para Dez-Burgos a partir de Luskan, carregada de riquezas e suprimentos
para o longo inverno. Seus vastos exércitos seriam reunidos e postos em
movimento, marchando gloriosamente para destruir os pescadores miseráveis. O
mero pensamento dos frutos de sua fácil vitória causava arrepios de prazer no
mago.
Ele não tinha como saber que os primeiros golpes da guerra já haviam sido dados.
CAPÍTULO 16

Covas Rasas

QUANDO WULFGAR ACORDOU um pouco antes do meio-dia, descansado de


sua longa noite de trabalho, ficou surpreso ao ver Drizzt já de pé e andando para
todo lado, ocupado preparando um pacote para uma longa caminhada.
— Hoje começamos um tipo diferente de aula — explicou Drizzt ao bárbaro. —
Vamos sair logo depois de você ter comido algo.
— Para onde?
— Primeiro, as minas dos anões — respondeu Drizzt. — Bruenor vai querer ver
você para que possa medir ele mesmo seu progresso. — Ele sorriu para o
grandalhão. — Não ficará desapontado!
Wulfgar sorriu, confiante de que sua habilidade recém-descoberta com o martelo
impressionaria até o anão rabugento.
— E então?
— Para Termalaine, às margens de Maer Dualdon. Eu tenho um amigo lá. Um dos
poucos — acrescentou rápido com uma piscada, arrancando um sorriso de Wulfgar.
— Um homem chamado Agorwal. Eu quero que você conheça algumas das pessoas
de Dez-Burgos para que você possa julgá-las melhor.
— O que tenho para julgar? — indagou Wulfgar, irritado. O olhar escuro e sábio do
drow caiu sobre ele. Wulfgar sabia bem o que Drizzt tinha em mente. O elfo negro
estava tentando humanizar as pessoas que os bárbaros tinham declarado inimigos,
mostrar a Wulfgar a existência cotidiana dos homens, mulheres e crianças que
poderiam ter sido vítimas de seu próprio mastro pesado se a luta nas encostas
tivesse sido diferente. Destemido em qualquer batalha, Wulfgar estava com medo
de enfrentar essas pessoas. O jovem bárbaro já começara a questionar as virtudes de
seu povo guerreiro; os rostos inocentes que ele encontraria na cidade que seu povo
havia marcado casualmente para queimar poderiam completar a destruição dos
alicerces de todo o seu mundo.
Os dois companheiros partiram pouco tempo depois, refazendo seus passos em
torno das trilhas a leste do Sepulcro de Kelvin. Um vento empoeirado soprava
constantemente do leste, atacando-os com grãos finos de areia pungente enquanto
cruzavam a face exposta da montanha. Embora o sol escaldante estivesse cansando
Drizzt, ele manteve um ritmo forte e não parou para descansar.
No final da tarde, quando finalmente rodearam um esporão ao sul, estavam
exaustos, mas de bom humor.
— Abrigado nas minas, eu havia esquecido como o vento da tundra poderia ser
cruel! — riu Wulfgar.
— Nós vamos ter alguma proteção abaixo da borda do vale — disse Drizzt. Ele deu
um tapinha no odre vazio ao seu lado. — Venha, eu sei onde podemos reabastecer
esses aqui antes de continuarmos.
Ele conduziu Wulfgar para o oeste, abaixo das encostas do sul da montanha. O
drow sabia de um córrego gelado a uma curta distância, que tinha suas águas
alimentadas pela neve derretida sobre o Sepulcro de Kelvin.
O riacho cantava alegremente enquanto dançava através das pedras. Pássaros
próximos gralharam e grasnaram com a aproximação dos companheiros, e um lince
deslizou silenciosamente para longe. Tudo parecia estar como deveria, mas a partir
do momento em que chegaram à grande rocha plana que era usada pelos viajantes
como acampamento, Drizzt sentiu que algo estava muito errado. Movendo-se com
hesitação, procurou por algum sinal tangível que confirmasse sua crescente
suspeita.
Wulfgar, porém, mergulhou de barriga para baixo na pedra e afundou ansiosamente
o rosto suado e coberto de poeira na água fria. Quando o puxou de volta, o brilho
voltou aos seus olhos, como se a água gelada tivesse devolvido sua vitalidade.
Então o bárbaro notou manchas vermelhas na rocha e seguiu sua trilha sangrenta até
o pedaço peludo de pele que havia sido pego na ponta afiada de uma pedra logo
acima da correnteza.
Sendo ambos rastreadores habilidosos, o ranger e o bárbaro tiveram pouca
dificuldade em verificar que uma batalha havia sido travada recentemente neste
local. Eles reconheceram o pelo grosso no pedaço de pele como um pedaço de
barba, o que, é claro, os levou a pensar nos anões. Eles encontraram três conjuntos
de pegadas de tamanho gigante nas proximidades. Seguindo uma linha tangente de
trilhas que se estendiam para o sul por uma curta distância até um pedaço arenoso
de terra, logo encontraram as covas rasas.
— Não é Bruenor — disse Drizzt de forma sombria, examinando os dois cadáveres.
— Anões mais jovens. Bundo, filho de Martelo Caído e Dourgas, filho de Argo
Lâmina Sombria, creio eu.
— Devemos correr para as minas — sugeriu Wulfgar.
— Em breve — respondeu o drow. — Ainda temos muito a aprender sobre o que
aconteceu aqui e esta noite pode ser a nossa única chance. Esses gigantes eram
simplesmente renegados de passagem ou estão se alojando pela área? E há mais
dessas feras imundas?
— Bruenor deve ser informado — argumentou Wulfgar.
— E ele vai ser — disse Drizzt. — Mas se esses três ainda estão por perto, como
acredito que estejam, já que tiveram tempo para enterrar suas vítimas, podem voltar
para um pouco mais de diversão quando a noite cair. — Ele dirigiu o olhar de
Wulfgar para o oeste, onde o céu já começara a se aguçar nos tons rosados do
crepúsculo. — Você está pronto para uma luta, bárbaro?
Com um grunhido determinado, Wulfgar tirou Presa de Égide do ombro e deu um
tapa no cabo de adamantita.
— Vamos ver quem encontra diversão esta noite.
Eles foram para trás de um penhasco rochoso ao sul da pedra plana, ficando ocultos,
à espera, enquanto o sol passava abaixo do horizonte e as sombras escuras se
aprofundavam na noite.
Não foi uma espera muito longa, pois os mesmos verbeegs que haviam matado os
anões na noite anterior foram novamente os primeiros a sair do covil, ansiosos por
procurar novas vítimas. Logo, a patrulha desceu sobre as encostas da montanha e
surgiu na rocha plana ao lado do riacho.
Wulfgar imediatamente se moveu para atacar, mas Drizzt o fez parar antes que
entregasse sua posição. O drow tinha toda a intenção de matar os gigantes, mas
queria ver se poderia aprender alguma coisa sobre a presença deles ali primeiro.
— Droga — resmungou um dos gigantes. — Não tem anão aqui!
— Azar — gemeu outro. — Nossa última noite fora. — Os companheiros da
criatura a olharam, curiosos.
— Outros chegam amanhã — explicou o verbeeg. — Nossos números aumentam,
orcs e ogros fedorentos pra encher saco, e chefe não vai deixar sair até tudo acalmar
de novo.
— Vinte mais no buraco fedorento — reclamou um dos outros. — Deixar a gente
doido!
— Vambora, então — disse o terceiro. — Não tem caça aqui e não quero perder
noite.
Os dois aventureiros por trás da rocha ficaram tensos quando os gigantes falaram
em sair.
— Se pudermos chegar a essa rocha — argumentou Wulfgar, sem saber que
apontava para a mesma rocha que os gigantes usaram para a emboscada na noite
anterior —, vamos pegá-los antes de perceberem que estamos aqui!
Ele virou-se ansioso para Drizzt, mas recuou imediatamente quando viu o drow. Os
olhos lavanda queimavam com um brilho que Wulfgar nunca havia testemunhado
antes.
— Há apenas três deles — disse Drizzt, com sua voz contendo uma frágil ponta de
calma que ameaçava explodir a qualquer momento. — Não precisamos de surpresa.
Wulfgar não sabia muito bem como aceitar essa mudança inesperada no elfo negro.
— Você me ensinou a procurar todas as vantagens — disse, cauteloso.
— Na batalha, sim — respondeu Drizzt. — Isso é vingança. Deixe os gigantes nos
verem, deixe-os sentir o terror da morte iminente! — As cimitarras apareceram de
repente em suas mãos delgadas enquanto caminhava ao redor do penhasco, com seu
passo firme segurando a inabalável promessa da morte.
Um dos gigantes gritou surpreso, e todos congelaram quando viram o drow aparecer
diante deles. Apreensivos e confusos, formaram uma linha defensiva na rocha
plana. Os verbeegs ouviram lendas dos drow, até algumas em que os elfos negros
haviam se unido a gigantes, mas o súbito aparecimento de Drizzt os pegou
totalmente de surpresa.
Drizzt gostou de vê-los tremendo nervosos e se deteve para saborear o momento.
— O que quer? — um dos gigantes perguntou com cautela.
— Sou um amigo dos anões — Drizzt respondeu com uma risada cruel. Wulfgar
saltou ao lado dele enquanto o maior dos gigantes atacava sem hesitar. Mas Drizzt o
fez parar. O drow apontou uma de suas cimitarras para o gigante que avançava e
declarou com uma calma mortal:
— Você está morto. — Imediatamente, o verbeeg foi cercado por chamas
arroxeadas. Ele gritou aterrorizado e recuou um passo, mas Drizzt o perseguiu
metodicamente.
Um tremendo impulso veio sobre Wulfgar de lançar o martelo de guerra, como se
Presa de Égide estivesse exercendo uma vontade própria. A arma assobiou pelo ar
da noite e explodiu no gigante do meio, arremessando seu corpo quebrado no
riacho.
Wulfgar ficou impressionado com o poder e a letalidade do arremesso, mas se
preocupou com a eficácia de lutar contra o terceiro gigante com uma pequena
adaga, a única arma que havia restado. O gigante também reconheceu a vantagem e
atacou descontroladamente. A mão de Wulfgar foi na direção da adaga.
Mas em vez disso ela encontrou Presa de Égide magicamente de volta a seu
alcance. Ele não sabia do poder especial que Bruenor colocara na arma e agora não
tinha tempo para parar e ponderar.
Aterrorizado, mas sem ter para onde correr, o gigante maior atacou Drizzt com
abandono, dando ao elfo ainda mais uma vantagem. O monstro ergueu a clava
pesada, o movimento exagerado pela raiva, e Drizzt cutucou rapidamente as
lâminas pontudas através da túnica de couro e na barriga exposta. Com apenas uma
ligeira hesitação, o gigante continuou seu poderoso balanço, mas o ágil drow ainda
tinha tempo suficiente para evitar o golpe. Como o balanço do tacape deixou o
gigante desajeitado sem equilíbrio, Drizzt espetou mais dois pequenos buracos em
seu ombro e pescoço.
— Você está vendo, garoto? — o drow gritou alegremente para Wulfgar. — Ele luta
como alguém de seu povo.
Wulfgar estava em combate direto com o gigante remanescente, manobrando Presa
de Égide com facilidade para desviar os golpes poderosos do monstro, mas ainda
era capaz de ter vislumbres da batalha ao seu lado. A cena pintava um sinistro
lembrete do valor do que Drizzt lhe ensinara, pois o drow estava brincando com o
verbeeg, usando sua raiva descontrolada contra ele. De novo e de novo, o monstro
se preparava para um golpe mortal, e Drizzt era sempre rápido em atacar e dançar
para longe. Sangue de verbeeg fluía aos jorros de uma dúzia de ferimentos, e
Wulfgar sabia que Drizzt poderia terminar o trabalho a qualquer momento. Mas
estava embasbacado com o fato de o elfo negro estar gostando do jogo
atormentador que jogava.
Wulfgar ainda não havia acertado um golpe sólido em seu oponente, ganhando
tempo, como Drizzt lhe ensinara, até que o verbeeg enfurecido se esgotasse. O
bárbaro já podia ver que os golpes do gigante vinham com menos frequência e
vigor. Finalmente, coberto de suor e respirando com esforço, o verbeeg escorregou
e baixou a guarda. Presa de Égide acertou uma vez, e depois novamente, e o gigante
tombou em um nó.
O verbeeg lutando contra o Drizzt estava agora de joelhos, após o drow ter cortado
habilmente um de seus tendões. Quando Drizzt viu o segundo gigante cair diante de
Wulfgar, decidiu acabar com a brincadeira. O gigante deu mais um golpe fútil e
Drizzt entrou atrás do fluxo da arma, apontando com uma cimitarra e desta vez
seguindo o ponto cruel com todo o seu peso. A lâmina escorregou pelo pescoço do
gigante e subiu até o cérebro.

Mais tarde, uma pergunta foi feita por Drizzt enquanto ele e Wulfgar, descansando
sobre um joelho, consideravam os resultados de sua obra.
— O martelo? — ele perguntou.
Wulfgar olhou para Presa de Égide e deu de ombros.
— Eu não sei — respondeu honestamente. — Ele retornou à minha mão por sua
própria magia!
Drizzt sorriu para si mesmo. Ele sabia. Que maravilhosa a criação de Bruenor,
pensou. E quão profundamente o anão deve se importar com o garoto ter lhe dado
tal presente!
— Vinte verbeegs chegando — gemeu Wulfgar.
— E outros vinte já estão aqui — acrescentou Drizzt. — Vá imediatamente até
Bruenor — instruiu. — Esses três acabaram de chegar do covil; não vou ter muita
dificuldade em rastrear os passos deles e descobrir onde estão os outros!
Wulfgar acenou com a cabeça, embora olhasse preocupado para Drizzt. O arder
estranho que ele vira nos olhos do drow antes de atacar os verbeegs o deixara
inquieto. Ele não tinha certeza do quão ousado o elfo negro poderia ser.
— O que você pretende fazer quando encontrar o covil?
Drizzt não disse nada, mas sorriu ironicamente, aumentando a apreensão do
bárbaro. Finalmente, aliviou as preocupações do amigo.
— Encontre-me de volta neste ponto de manhã. Garanto que não vou começar a
diversão sem você!
— Devo voltar antes da primeira luz do amanhecer — respondeu Wulfgar, sombrio.
Ele girou e desapareceu na escuridão, avançando o mais rápido que pôde sob a luz
das estrelas.
Drizzt também se afastou, traçando o rastro dos três gigantes para o oeste através da
face do Sepulcro de Kelvin. Depois de um tempo, ouviu as vozes barítonas de
gigantes, e logo depois viu as portas de madeira construídas às pressas que
marcavam seu covil, astuciosamente escondidas atrás de um arbusto a meio
caminho de um contraforte rochoso.
Drizzt esperou pacientemente e logo viu uma segunda patrulha de três gigantes
emergir do covil. E mais tarde, quando eles retornaram, um terceiro grupo saiu. O
drow estava tentando descobrir se houve algum alarme devido à ausência da
primeira patrulha. Mas os verbeegs quase sempre eram indisciplinados e nada
confiáveis, e Drizzt se sentiu seguro com os pequenos trechos de conversa que
ouvira dizer que os gigantes supunham que seus companheiros desaparecidos
tinham se perdido ou simplesmente desertado. Quando o drow se afastou algumas
horas depois para definir seus próximos planos, estava confiante de que ainda tinha
o elemento surpresa.

Wulfgar correu a noite toda. Entregou sua mensagem a Bruenor e voltou para o
norte sem esperar que o clã fosse despertado. Seus grandes passos o levaram para a
rocha plana mais de uma hora antes da primeira luz, antes mesmo de Drizzt voltar
do covil. Ele voltou para trás do desfiladeiro para esperar, sua preocupação com o
drow crescendo a cada segundo que passava.
Finalmente, incapaz de aguentar o suspense por mais tempo, procurou a trilha dos
verbeegs e começou a segui-la em direção ao covil, determinado a descobrir o que
estava acontecendo. Não tinha andado seis metros quando uma mão o segurou na
parte de trás da cabeça. Reflexivamente, girou para encontrar seu atacante, mas seu
espanto se transformou em alegria quando viu Drizzt parado diante dele.
Drizzt havia retornado à rocha pouco depois de Wulfgar, mas ficara escondido,
observando o bárbaro para ver se o jovem guerreiro impulsivo confiaria em seu
pacto ou decidiria resolver o problema com as próprias mãos.
— Nunca duvide de um encontro marcado até que sua hora passe — o drow
repreendeu severamente, mesmo tocado pela preocupação do bárbaro por seu bem-
estar.
Qualquer resposta que pudesse ter vindo de Wulfgar foi interrompida, pois de
repente os dois companheiros ouviram um grito áspero de uma voz familiar.
— Traga-me um maldito gigante para matar! — Bruenor gritou da pedra plana perto
do riacho por detrás deles. Anões enfurecidos podiam viajar a uma velocidade
incrível. Em menos de uma hora, o clã de Bruenor se reunira e começou a perseguir
o bárbaro, quase acompanhando seu ritmo frenético.
— Olá — Drizzt chamou enquanto ia se juntar ao anão. Ele encontrou Bruenor
olhando para os três verbeegs mortos com satisfação sombria. Cinquenta anões com
elmos de ferro e prontos para a batalha, mais da metade do clã, estavam em volta do
líder.
— Elfo — Bruenor cumprimentou com sua consideração habitual. — Um covil, é?
Drizzt assentiu:
— A um quilômetro e meio a oeste, mas essa não é a sua maior preocupação. Os
gigantes não irão a lugar algum, mas estão esperando companhia ainda hoje.
— O garoto me disse — respondeu Bruenor. — Vinte deles de reforços! —
Balançou o machado casualmente. — De alguma forma, sinto que não vão
conseguir chegar ao covil! Alguma ideia de onde estão vindo?
— Norte e leste são os únicos caminhos — raciocinou Drizzt. — Em algum lugar
abaixo do Passo do Vento Gélido, ao norte de Lac Dinneshere. Seu povo vai
cumprimentá-los, então?
— É claro — respondeu Bruenor. — Eles vão passar por Queda do Vale com
certeza! — Um brilho cintilou nos olhos dele. — O que pretende fazer? — ele
perguntou a Drizzt. — E quanto ao garoto?
— O garoto fica comigo — insistiu Drizzt. — Ele precisa descansar. Vamos vigiar o
covil.
O brilho ansioso no olho de Drizzt deu a Bruenor a impressão de que o drow tinha
mais em mente do que assistir.
— Elfo doido — disse em voz baixa. — Provavelmente vai atacar todos sozinho!
— Olhou em volta, curioso, para os gigantes mortos. — E ganhar! — Bruenor
estudou os dois aventureiros, tentando combinar suas armas com os tipos de feridas
no verbeeg.
— O garoto derrubou dois — respondeu Drizzt à pergunta não formulada do anão.
Uma sugestão de um raro sorriso apareceu no rosto de Bruenor.
— Dois para um seu, né? Você está escorregando, elfo.
— Bobagem — retrucou Drizzt. — Eu reconheci que ele precisava da prática!
Bruenor sacudiu a cabeça, surpreso com a extensão do orgulho que sentia em
relação a Wulfgar, embora, é claro, não estivesse disposto a dizer ao garoto para que
isso subisse à cabeça dele.
— Você está escorregando! — falou de novo enquanto assumia mais uma vez sua
posição à frente do clã. Os anões cantaram um canto rítmico, uma velha melodia
que antigamente ecoava nos corredores prateados de sua pátria perdida.
Bruenor olhou de volta para seus dois amigos aventureiros e se perguntou
honestamente o que restaria do covil dos gigantes quando ele e seus companheiros
anões voltassem.
CAPÍTULO 17

Vingança

INCANSAVELMENTE, OS ANÕES SOBRECARREGADOS continuaram


marchando. Eles vieram preparados para a guerra, alguns trazendo mochilas
pesadas e outros levando nos ombros o grande peso de imensas vigas de madeira.
O palpite do drow sobre de qual direção os reforços viriam parecia o único caminho
possível, e Bruenor sabia exatamente onde encontrá-los. Havia apenas uma
passagem que permitia o acesso fácil ao vale rochoso: Queda do Vale, no nível da
tundra, porém abaixo das encostas ao sul da montanha.
Embora tivessem marchado sem descanso durante metade da noite e a maior parte
da manhã, os anões começaram a trabalhar imediatamente. Eles não sabiam quando
os gigantes chegariam e, embora não fosse acontecer sob a luz do dia; queriam ter
certeza de que tudo estivesse pronto. Bruenor estava determinado a acabar com esse
grupo de guerra rapidamente e com perdas mínimas para o seu povo. Batedores
foram colocados nos pontos altos da encosta da montanha, e outros foram enviados
para a planície. Sob a direção de Bruenor, o restante do clã preparou a área para
uma emboscada. Um grupo se preparou para cavar uma trincheira e outro começou
a remontar as vigas de madeira em duas balistas. Anões com bestas pesadas
procuravam os melhores pontos de vantagem entre as pedras da encosta próxima da
montanha de onde lançariam seu ataque.
Em pouco tempo, tudo estava pronto. Mas os anões ainda não tinham parado para
descansar. Eles continuaram vasculhando cada centímetro da área, procurando por
qualquer possível vantagem que pudessem obter sobre os verbeegs.
No final do dia, quando o sol já mergulhava suas bordas abaixo do horizonte, um
dos olheiros na montanha anunciou que havia avistado uma nuvem de poeira
crescendo no leste distante. Logo depois, um batedor veio da planície para informar
que uma tropa de vinte verbeegs, alguns ogros e pelo menos uma dúzia de orcs
estava se aproximando de Queda do Vale. Bruenor sinalizou para os besteiros em
suas posições ocultas. As equipes das balistas inspecionaram a camuflagem nos
grandes arcos e acrescentaram toques finais para aperfeiçoá-las. Então os mais
fortes guerreiros do clã, com o próprio Bruenor entre eles, cavaram-se em pequenos
buracos ao longo do caminho desgastado de Queda do Vale, cortando
cuidadosamente os tufos de grama grossa para que pudessem rolar de volta sobre
eles.
Eles dariam os primeiros golpes.

Drizzt e Wulfgar haviam assumido posição entre as pedras do Sepulcro de Kelvin,


acima do covil dos gigantes. Eles dormiram em turnos ao longo do dia. A única
preocupação do drow com Bruenor e seu clã era que alguns dos gigantes deixassem
o covil para encontrar os reforços que chegavam e estragassem a vantagem da
surpresa dos anões.
Depois de várias horas sem complicações, as preocupações de Drizzt se mostraram
verdadeiras. O drow estava descansando na sombra de uma saliência enquanto
Wulfgar vigiava o covil. O bárbaro mal podia ver as portas de madeira encastradas
atrás do mato, mas ouviu claramente o rangido de uma dobradiça quando uma delas
se abriu. Ele esperou por alguns momentos antes de se mover para despertar o drow
para ter certeza de que alguns dos gigantes estavam realmente saindo do buraco.
Ele ouviu gigantes conversando dentro da escuridão da porta aberta e, de repente,
seis verbeegs emergiram na luz do sol.
Ele virou-se para Drizzt, mas encontrou o drow sempre alerta já de pé atrás dele,
seus olhos apertados enquanto observava os gigantes sob a luz brilhante.
— Eu não sei o que estão falando — disse Wulfgar a Drizzt.
— Eles estão procurando seus companheiros desaparecidos — respondeu Drizzt.
Ele tinha ouvido, mais claramente com seus ouvidos sensíveis do que os de seu
amigo, partes da conversa que tinham ocorrido antes que os gigantes surgissem.
Esses verbeegs foram instruídos a exercer toda a cautela possível, mas deveriam
encontrar a patrulha há muito atrasada, ou pelo menos determinar para onde os
gigantes desaparecidos tinham ido. Eles deveriam voltar naquela mesma noite, com
ou sem os outros.
— Devemos avisar Bruenor — disse Wulfgar.
— Este grupo teria encontrado seus companheiros mortos e alertado o covil muito
antes de podermos voltar — respondeu Drizzt. — Além disso, acredito que Bruenor
já tenha gigantes suficientes para lidar.
— O que vamos fazer, então? — perguntou Wulfgar. — Certamente o covil será dez
vezes mais difícil de derrotar se eles esperarem problemas.
O bárbaro notou que a chama latente havia retornado ao olhar do drow.
— O covil não saberá se esses gigantes nunca voltarem — disse Drizzt com
naturalidade, como se a tarefa de deter seis verbeegs caçadores fosse um pequeno
incômodo. Wulfgar ouviu sem acreditar, embora já tivesse adivinhado o que Drizzt
tinha em mente.
O drow notou a apreensão de Wulfgar e deu um amplo sorriso.
— Venha, garoto — ele instruiu, usando o título condescendente para agitar o
orgulho do bárbaro. — Você treinou duro por muitas semanas se preparando para
um momento como este. — Ele saltou de leve através de um pequeno abismo no
parapeito de pedra e voltou-se para Wulfgar, com seus olhos brilhando
selvagemente enquanto captavam o sol da tarde.
— Venha — repetiu o drow, acenando com uma mão. — Há apenas seis deles!
Wulfgar balançou a cabeça, resignado, e suspirou. Durante as semanas de
treinamento, ele conhecera Drizzt como um espadachim controlado e mortal que
pesava cada finta e golpeava com calma e precisão. Mas nos últimos dois dias,
Wulfgar tinha visto um lado ousado por demais – até mesmo imprudente – do drow.
A confiança inabalável de Drizzt era a única coisa que convencia Wulfgar de que o
elfo não era suicida, e a única coisa que o obrigava a segui-lo contra seu próprio
julgamento. Ele se perguntou se haveria algum limite para o quanto confiaria no
drow.
Ele soube ali e então que Drizzt um dia o levaria a uma situação da qual não haveria
escapatória.

A patrulha de gigantes viajou para o sul por um breve momento, com Drizzt e
Wulfgar secretamente atrás deles. Os verbeegs não encontraram nenhum rastro
imediato dos gigantes desaparecidos e temiam que estivessem chegando muito
perto das minas dos anões, então voltaram rapidamente para o nordeste, na direção
geral da rocha onde a luta ocorrera.
— Devemos ir na direção deles em breve — disse Drizzt ao companheiro. —
Vamos nos aproximar de nossa presa.
Wulfgar assentiu. Pouco tempo depois, eles se aproximaram de uma área quebrada
de pedras irregulares, onde o caminho estreito se contorcia e virava de repente. O
chão estava ligeiramente inclinado para cima e os companheiros reconheciam que o
caminho que percorriam se deslocava até a borda de um pequeno abismo. A luz do
dia tinha desbotado o suficiente para fornecer alguma cobertura. Drizzt e Wulfgar
trocaram olhares cúmplices; chegara a hora da ação.
Drizzt, de longe o mais experiente em batalhas dos dois, rapidamente discerniu o
modo de ataque que oferecia a melhor chance de sucesso. Fez um gesto silencioso
para Wulfgar fazer uma pausa.
— Temos que atacar e nos afastar — ele sussurrou —, e depois atacar novamente.
— Não é uma tarefa fácil contra um inimigo cauteloso — disse Wulfgar.
— Eu tenho algo que pode nos ajudar. — O drow tirou a mochila das costas, sacou
a pequena estatueta e chamou sua sombra. Quando o felino maravilhoso apareceu
abruptamente, o bárbaro ofegou em horror e saltou para longe.
— Que demônio você conjurou? — ele gritou tão alto quanto ousou, fazendo os nós
dos dedos embranquecerem com a pressão de seu aperto em Presa de Égide.
— Guenhwyvar não é um demônio — assegurou Drizzt a seu companheiro. — Ela
é uma amiga e uma valiosa aliada. — A gata rosnou, como se entendesse, e Wulfgar
deu mais um passo para longe dela.
— Não é um animal natural — retrucou o bárbaro. — Eu não vou lutar ao lado de
um demônio conjurado com feitiçaria!
Os bárbaros do Vale do Vento Gélido não temiam nenhum homem nem fera, mas as
artes negras eram absolutamente estranhas para eles, e sua ignorância os deixava
vulneráveis.
— Se os verbeegs souberem a verdade sobre a patrulha desaparecida, Bruenor e os
seus estarão em perigo — disse Drizzt, sombrio. — A gata nos ajudará a parar este
grupo. Você permitirá que seus medos impeçam o resgate dos anões?
Wulfgar se endireitou e recuperou de sua compostura. O jogo de Drizzt com seu
orgulho e a ameaça muito real aos anões o estavam pressionando a deixar
temporariamente de lado sua repulsa pelas artes negras.
— Mande a fera embora, não precisamos de ajuda.
— Com a gata, com certeza pegaremos a todos. Não vou arriscar a vida do anão por
causa do seu desconforto — Drizzt sabia que levaria muitas horas para Wulfgar
aceitar Guenhwyvar como aliada, se é que isso aconteceria, mas, por enquanto, tudo
o que ele precisava era da cooperação dele no ataque.
Os gigantes estavam marchando a horas. Drizzt assistiu pacientemente enquanto sua
formação começava a se soltar, com um ou dois dos monstros ficando para trás dos
outros. As coisas estavam se encaixando bem como o drow esperava.
O caminho dava uma última volta entre duas pedras gigantescas, depois se alargava
consideravelmente e se inclinava de forma mais íngreme até a extensão final da
borda do abismo. Ali virava bruscamente e continuava ao longo da borda, uma
sólida parede de pedra de um lado e uma queda rochosa do outro. Drizzt fez sinal
para que Wulfgar ficasse pronto, depois mandou a grande gata entrar em ação.

O grupo de guerra, um bando de verbeegs com três ogros e uma dúzia de orcs ao
lado deles, movia-se a um passo fácil, alcançando Queda do Vale bem depois que a
noite caiu. Havia mais monstros do que os anões originalmente esperavam, mas eles
não estavam muito preocupados com os orcs e sabiam como lidar com os ogros. Os
gigantes eram a chave para esta batalha.
A longa espera não fez nada para temperar os nervos expostos dos anões. Ninguém
do clã havia dormido em quase um dia, e permaneciam tensos e ansiosos para
vingar seus parentes.
O primeiro dos verbeegs pisou no campo inclinado sem incidentes, mas quando o
último dos invasores atingiu os limites da zona de emboscada, os anões do Salão de
Mitral atacaram. O grupo de Bruenor investiu primeiro, saltando de seus buracos,
muitas vezes ao lado de um gigante ou orc e atacando o alvo mais próximo. Eles
miraram seus golpes para aleijar, usando o princípio básico da filosofia de luta
contra gigantes dos anões: a ponta afiada de um machado corta o tendão e os
músculos na parte de trás de um joelho, a cabeça chata de um martelo esmaga a
rótula na frente.
Bruenor derrubou um gigante com um balanço, depois se virou para fugir, mas se
viu de frente para a espada pronta de um orc. Não tendo tempo para trocar golpes,
Bruenor jogou a arma para o ar, gritando:
— Pensa rápido!
Os olhos do orc seguiram estupidamente o voo de distração do machado. Bruenor
atacou batendo a testa protegida com capacete no queixo da criatura, pegou o
machado quando caiu e saiu correndo pela noite, parando apenas por um segundo
para chutar o orc ao passar.
Os monstros foram pegos de surpresa, e muitos deles já estavam gritando no chão.
Então vieram as balistas. Virotes do tamanho de uma lança explodiram nas filas da
frente, derrubando gigantes para o lado e um no outro. Os besteiros saltaram de seu
esconderijo e lançaram uma barragem mortal, depois soltaram suas bestas e
investiram encosta abaixo. O grupo de Bruenor, agora lutando na formação em V,
correu de volta para a briga.
Os monstros nunca tiveram a chance de se reagrupar, e quando conseguiram
levantar suas armas em resposta, suas fileiras haviam sido dizimadas.
A Batalha de Queda do Vale acabou em três minutos.
Nenhum anão estava sequer gravemente ferido, e, dos invasores, apenas o orc que
Bruenor havia derrubado permanecia vivo.

Guenhwyvar compreendeu os desejos de seu mestre e saltou silenciosamente entre


as pedras quebradas ao lado da trilha, circulando à frente dos verbeegs e fixando-se
na parede de rochas acima do caminho. Ela se agachou, só mais uma entre as
sombras que se aprofundavam. O primeiro dos gigantes passou por baixo, mas a
gata esperou obediente, imóvel como a morte, pelo momento apropriado. Drizzt e
Wulfgar se aproximaram, movendo-se furtivamente para dentro do campo de visão
da retaguarda da patrulha.
O último dos gigantes, um verbeeg muito gordo, parou por um momento para
recuperar o fôlego.
Guenhwyvar atacou rapidamente.
A ágil pantera saltou da parede e rasgou o rosto do gigante com suas garras longas,
depois continuou o salto sobre o monstro, usando o enorme ombro como trampolim
e voltou para outro ponto na parede. O gigante uivou em agonia, segurando o rosto
rasgado.
Presa de Égide pegou a criatura na parte de trás da cabeça, soltando-a no pequeno
desfiladeiro.
O gigante atrás do grupo restante ouviu o grito de dor e imediatamente voltou,
contornando a última curva bem a tempo de ver seu infeliz companheiro caindo
pela queda rochosa. A grande gata não hesitou, caindo sobre sua segunda vítima
com suas garras afiadas pegando firme no peito do gigante. O sangue espirrou
descontroladamente quando as presas de cinco centímetros cravaram fundo no
pescoço carnudo. Não se arriscando, Guenhwyvar arranhou com todas as suas
quatro poderosas patas para desviar qualquer contra-ataque, mas o gigante aturdido
mal conseguia erguer os braços em resposta antes que a escuridão se abatesse sobre
ele.
Com o resto da patrulha vindo rapidamente, Guenhwyvar saltou para longe,
deixando o gigante afogar-se em seu próprio sangue. Drizzt e Wulfgar se
posicionaram atrás dos pedregulhos dos dois lados da trilha, o drow sacando as
cimitarras e o bárbaro segurando o martelo que havia retornado a suas mãos.
A gata não hesitou. Havia repassado esse cenário com seu mestre muitas vezes
antes e entendia bem a vantagem da surpresa. Ela hesitou por um momento até que
o resto dos gigantes a avistou, depois correu pela trilha, disparando entre as rochas
que escondiam seu mestre e Wulfgar.
— Caramba! — gritou um dos verbeegs, despreocupado com seu companheiro
moribundo. — Que gato grande enorme! Preto como minhas panelas!
— Vamos atrás! — gritou outro. — Vai ser casaco novo de quem pegar! — Eles
saltaram sobre o gigante caído, sequer prestando atenção nele, e investiram trilha
abaixo atrás da pantera.
Drizzt era o mais próximo dos gigantes em investida. Deixou os dois primeiros
passarem, concentrando-se nos dois restantes. Atravessaram o rochedo lado a lado,
e ele saltou para o caminho diante deles, enfiando a cimitarra na mão esquerda
profundamente no peito de um gigante e cegando o outro com um corte nos olhos
usando a mão direita. Usando a cimitarra que foi plantada no primeiro gigante como
um pivô, o drow girou atrás de seu inimigo cambaleante e enfiou a outra lâmina nas
costas do monstro. Ele conseguiu soltar as duas lâminas com uma torção sutil,
dançando para longe enquanto o gigante moribundo tombava no chão.
Wulfgar também deixou o gigante à frente passar. O segundo parou quase ao lado
do bárbaro quando Drizzt atacou os dois de trás. Ele girou, querendo ajudar os
outros, mas, por detrás da pedra, Wulfgar brandiu Presa de Égide em um arco e
pousou o pesado martelo direto no peito do verbeeg. O monstro caiu de costas e o ar
explodiu para fora de seus pulmões. Wulfgar inverteu seu balanço rapidamente e
lançou Presa de Égide na direção oposta. O gigante à frente girou a tempo de
receber a arma diretamente no rosto.
Sem hesitar, Wulfgar atacou o gigante derrubado mais próximo, envolvendo o
pescoço enorme com seus poderosos braços. O gigante se recuperou rapidamente e
colocou o bárbaro em um abraço de urso e, embora ainda estivesse sentado, teve
pouca dificuldade em levantar completamente seu inimigo menor do chão. Mas os
anos balançando um martelo e cortando pedras nas minas dos anões tinham
imbuído o bárbaro com a força do ferro. Ele aumentou seu aperto no gigante e
lentamente girou seus braços musculosos. Com um estalo alto, a cabeça do verbeeg
tombou para o lado.
O gigante que Drizzt havia cegado agitava seu imenso porrete sem controle. O drow
mantinha-se em constante movimento, dançando em volta de cada flanco conforme
a oportunidade permitia, acertando estocada após estocada no monstro impotente.
Drizzt mirava em qualquer área vital que pudesse alcançar com segurança, na
esperança de acabar com seu oponente com eficiência.
Com Presa de Égide em segurança de volta às suas mãos, Wulfgar foi até o verbeeg
que havia acertado no rosto para ter certeza de que estava morto. Ele manteve um
olho cautelosamente focado na trilha atrás de qualquer sinal do retorno de
Guenhwyvar. Tendo visto a gata poderosa agindo, ele não tinha nenhuma vontade
de lutar com ela.
Quando o último gigante estava morto, Drizzt desceu o caminho para se juntar ao
amigo.
— Você ainda não entendeu sua própria habilidade em batalha! — ele riu, batendo
nas costas do homenzarrão. — Seis gigantes não estão além de nossa capacidade!
— Agora vamos encontrar Bruenor? — perguntou Wulfgar, embora visse que o
fogo ainda tremulava perigosamente nos olhos de lavanda do drow. Ele percebeu
que não iriam embora ainda.
— Não há necessidade — respondeu Drizzt. — Estou confiante que os anões têm a
situação sob controle.
— Mas nós temos um problema — continuou ele. — Fomos capazes de matar o
primeiro grupo de gigantes e ainda reter o elemento surpresa. Muito em breve,
porém, com mais seis desaparecidos, o covil ficará alerta a qualquer indício de
perigo.
— Os anões devem voltar de manhã — disse Wulfgar. — Podemos atacar o covil
antes do meio-dia.
— Tarde demais — disse Drizzt, fingindo desapontamento. — Temo que você e eu
tenhamos que atacá-los hoje à noite, sem demora.
Wulfgar não ficou surpreso; sequer discutiu. O bárbaro temia que ele e o drow
estivessem assumindo coisas demais, que o plano do drow fosse ultrajante demais,
mas estava começando a aceitar um fato indiscutível: seguiria Drizzt em qualquer
aventura, por mais improváveis que fossem as chances de sobreviver.
E estava começando a admitir para si mesmo que gostava de apostar ao lado do elfo
negro.
CAPÍTULO 18

Casa de Carranca

DRIZZT E WULFGAR FICARAM AGRADAVELMENTE SURPRESOS quando


encontraram a entrada dos fundos para o covil dos verbeegs. Ela ficava no alto do
declive íngreme no lado oeste do afloramento rochoso. Pilhas de lixo e ossos jaziam
espalhadas pelo chão no fundo das rochas, e uma fina, mas constante, corrente de
fumaça saía da caverna aberta, perfumada com os sabores de carne de carneiro
assada.
Os dois companheiros se agacharam no mato abaixo da entrada por um tempo,
observando o grau de atividade. A lua tinha surgido, alta e brilhante, e a noite
clareara muito.
— Eu me pergunto se chegaremos a tempo para o jantar — observou o drow, ainda
sorrindo com ironia. Wulfgar balançou a cabeça e riu da compostura inquietante do
elfo negro.
Embora os dois frequentemente ouvissem sons das sombras logo além da abertura,
panelas ressoando e vozes ocasionais, nenhum gigante apareceu do lado de fora da
caverna até pouco antes da lua se pôr. Um verbeeg gordo, pela forma como estava
vestido seria o cozinheiro da toca, arrastou-se até a porta e jogou uma monte de lixo
de uma grande panela de ferro encosta abaixo.
— Ele é meu — disse Drizzt, subitamente sério. — Você pode providenciar uma
distração?
— A gata vai servir — respondeu Wulfgar, embora não gostasse da ideia de ficar
sozinho com Guenhwyvar.
Drizzt subiu a encosta rochosa, tentando ficar nas sombras escuras enquanto se
aproximava. Ele sabia que permaneceria vulnerável sob a luz da lua até chegar
acima da entrada, mas a escalada se mostrou mais difícil do que esperava e
avançava devagar. Quando estava quase na abertura, ouviu o cozinheiro gigante
mexendo em algo perto da entrada, aparentemente levantando uma segunda panela
de lixo para despejar.
O drow não tinha para onde ir. Um chamado de dentro da caverna desviou a atenção
do cozinheiro. Percebendo o pouco tempo que tinha para chegar em segurança,
Drizzt correu os últimos metros até o nível da porta e espiou pela quina a cozinha
iluminada por tochas.
A sala era mais ou menos quadrada, com um grande forno de pedra na parede em
frente à entrada da caverna. Ao lado do forno havia uma porta de madeira
ligeiramente entreaberta, e atrás dela, Drizzt ouviu várias vozes de gigantes. O
cozinheiro não estava à vista, mas havia um pote de lixo no chão, logo perto da
entrada.
— Ele estará de volta em breve — o drow murmurou para si mesmo enquanto
procurava pontos de apoio e subia silenciosamente pela parede, acima da entrada da
caverna. Na base da encosta, um Wulfgar nervoso estava sentado absolutamente
imóvel enquanto Guenhwyvar andava de um lado para o outro.
Poucos minutos depois, o cozinheiro gigante saiu com a panela. Quando o verbeeg
jogou o lixo, Guenhwyvar apareceu. Um grande salto levou a gata à base da
encosta. Inclinando a cabeça para o cozinheiro, a pantera negra rosnou.
— Ah, sai, gato sujo — retrucou o gigante, indiferente e não surpreso com a súbita
aparição da pantera. — Ou esmago cabeça e coloco na panela de cozido!
A ameaça do verbeeg era vã. Enquanto ele estava balançando seu punho enorme,
com toda sua atenção na gata, a forma escura que era Drizzt Do’Urden saltou da
parede em suas costas. Com suas cimitarras já prontas, o drow não perdeu tempo
em cortar um sorriso de orelha a orelha na garganta do gigante. Sem proferir um
grito, o verbeeg caiu nas rochas para se acomodar com o resto do lixo.
Abruptamente, Drizzt desceu ao chão da caverna e se virou, rezando para que
nenhum outro gigante tivesse entrado na cozinha.
Ele estava seguro no momento. O cômodo estava vazio. Quando Guenhwyvar e
depois Wulfgar chegaram ao topo da crista, ele fez um sinal silencioso para que o
seguissem. A cozinha era pequena (para gigantes) e escassamente abastecida. Havia
uma mesa na parede da direita com várias panelas. Junto a ela, havia um grande
bloco de corte com um cutelo espalhafatoso, enferrujado e serrilhado, e
aparentemente sem ser lavado há semanas, enterrado nele. À esquerda de Drizzt,
havia prateleiras com especiarias, ervas e outros suprimentos. O drow foi investigá-
las enquanto Wulfgar se aproximava da sala adjacente – e ocupada.
Também quadrada, esta segunda área era um pouco maior que a cozinha. Uma
longa mesa dividia a sala ao meio e, além dela, bem a sua frente, Wulfgar viu uma
segunda porta. Três gigantes sentavam-se ao lado da mesa mais próxima de
Wulfgar, um quarto ficava entre eles e a porta, e outros dois estavam sentados do
lado oposto. O grupo se deliciava com carne de carneiro e um cozido espesso, o
tempo todo xingando e provocando um ao outro – um jantar típico de verbeegs.
Wulfgar notou com mais do que um interesse passageiro que os monstros rasgavam
a carne dos ossos usando apenas suas mãos. Não havia nenhuma arma na sala.
Drizzt, segurando uma sacola que encontrara nas prateleiras, puxou uma de suas
cimitarras de novo e foi com Guenhwyvar se juntar a Wulfgar.
— Seis — sussurrou Wulfgar, apontando para a sala. O grande bárbaro içou Presa
de Égide e assentiu, ansioso. Drizzt espiou pela porta e rapidamente formulou um
plano de ataque.
Ele apontou para Wulfgar e depois para a porta.
— Direita — sussurrou. Então indicou a si mesmo. — Atrás de você, esquerda.
Wulfgar o entendeu perfeitamente, mas se perguntou por que ele não havia incluído
Guenhwyvar. O bárbaro apontou para a gata.
Drizzt apenas deu de ombros e sorriu, e Wulfgar entendeu. Até mesmo o cético
bárbaro estava confiante de que Guenhwyvar descobriria onde se encaixaria melhor.
Wulfgar sacudiu os formigamentos nervosos de seus músculos e apertou Presa de
Égide com força. Com uma rápida piscadela para o companheiro, ele atravessou a
porta e atacou o alvo mais próximo. O gigante, o único do grupo de pé no momento,
conseguiu se virar e encarar seu atacante, mas isso foi tudo. Presa de Égide
balançou em uma varredura baixa e subiu com precisão mortal, esmagando sua
barriga. Dirigindo-se para cima, esmagou a parte inferior do peito do gigante. Com
sua força incrível, Wulfgar levantou o enorme monstro a vários metros do chão. Ele
caiu, quebrado e sem fôlego, ao lado do bárbaro, que não lhe deu mais atenção; já
estava planejando seu segundo ataque.
Drizzt, com Guenwyvar logo atrás, correu, passando por seu amigo em direção aos
dois gigantes atordoados sentados mais à esquerda na mesa. Ele abriu a sacola que
segurava e girou quando chegou a seus alvos, cegando-os com uma nuvem de
farinha. O drow sequer reduziu a velocidade, cravando sua cimitarra na garganta de
um dos verbeegs cobertos de farinha e depois rolando para trás por cima da mesa de
madeira. Guenhwyvar saltou sobre o outro gigante, com suas poderosas mandíbulas
rasgando a virilha do monstro.
Os dois verbeegs do outro lado da mesa foram os primeiros do grupo a reagir de
verdade. Um saltou, pronto para enfrentar a investida de Drizzt, enquanto o
segundo, inconscientemente se destacando como o próximo alvo de Wulfgar, correu
para a porta dos fundos.
Wulfgar marcou o gigante que escapava e lançou Presa de Égide sem hesitação. Se
Drizzt, em meio a seu rolamento sobre a mesa, tivesse percebido o quão perto sua
forma chegara de interceptar o martelo de guerra, teria algumas boas palavras para
dizer ao amigo. Mas o martelo encontrou seu alvo, batendo no ombro do verbeeg e
derrubando o monstro na parede com força suficiente para quebrar seu pescoço.
O gigante que Drizzt havia atacado se agitava no chão, apertando a garganta em
uma tentativa fútil de conter o fluxo de sangue. E Guenhwyvar estava tendo pouca
dificuldade em despachar o outro. Restavam apenas dois verbeegs.
Drizzt terminou o rolamento e pousou de pé no lado mais distante da mesa,
desviando-se agilmente do alcance do verbeeg que o aguardava. Ele deu a volta,
colocando-se entre o seu adversário e a porta. O gigante, com as mãos enormes
estendidas, girou e investiu. Mas a segunda cimitarra do drow saiu com a primeira,
entrelaçando-se numa hipnotizante dança da morte. Quando cada lâmina se
aproximava, mandava outro dos dedos retorcidos do gigante girando até o chão.
Logo o verbeeg tinha apenas dois tocos ensanguentados onde suas mãos haviam
estado. Enfurecido além da sanidade, balançou os braços selvagemente como
porretes. A cimitarra de Drizzt escorregou rapidamente para o lado de seu crânio,
acabando com sua loucura.
Enquanto isso, o último gigante havia corrido na direção do bárbaro desarmado. Ele
envolveu seus enormes braços ao redor de Wulfgar e levantou-o no ar, tentando
espremer a vida para fora dele. Wulfgar apertou os músculos numa tentativa
desesperada de impedir que seu inimigo, maior, quebrasse os ossos de suas costas.
O bárbaro teve dificuldade em respirar. Enfurecido, bateu com o punho no queixo
do gigante e ergueu a mão para um segundo golpe.
Mas então, seguindo a magia que Bruenor lançara, o martelo de guerra mágico
estava de volta em sua mão. Com um uivo de alegria, Wulfgar atacou com a
extremidade do martelo e acertou o olho do gigante, que afrouxou o aperto,
recuando em agonia. O mundo havia se tornado um borrão de dor para o monstro,
que sequer viu Presa de Égide arqueando-se sobre a cabeça de Wulfgar e acelerando
em direção a seu crânio. Ele sentiu uma explosão quente quando o martelo pesado
abriu sua cabeça, jogando o corpo sem vida na mesa e derrubando ensopado e carne
de carneiro pelo chão.
— Não derrame a comida! — exclamou Drizzt com raiva fingida enquanto se
apressava para recuperar uma costeleta particularmente suculenta.
De repente, ouviram passos pesados e gritos vindo pelo corredor atrás da segunda
porta.
— Vamos sair! — gritou Wulfgar enquanto se virava para a cozinha.
— Espere! — gritou Drizzt. — A diversão só está começando! — Apontou para um
túnel escuro, iluminado por tochas, que saía da parede esquerda da sala. — Lá
embaixo! Rápido!
Wulfgar sabia que estavam abusando da sorte, mas mais uma vez se viu ouvindo o
elfo.
E mais uma vez o bárbaro sorria.
Wulfgar passou pelos pesados suportes de madeira no começo do túnel e correu
para a penumbra. Havia percorrido cerca de nove metros, Guenhwyvar
desconfortavelmente perto, quando percebeu que Drizzt não estava seguindo. Se
virou bem a tempo de ver o drow sair da sala e passar pelas vigas de madeira.
Drizzt havia embainhado suas cimitarras. Em vez disso, segurava uma longa adaga,
sua ponta afiada firmemente plantada em um pedaço de carne de carneiro.
— Os gigantes? — perguntou Wulfgar da escuridão.
Drizzt deu um passo para o lado, atrás de uma das enormes vigas de madeira.
— Bem atrás de mim — ele explicou calmamente enquanto arrancava outra
mordida de sua refeição. A boca de Wulfgar se abriu quando um bando de verbeegs
se lançou no túnel, sem notar o drow oculto.
— Prayne de crabug ahm keike rinedere be-yogt iglo kes gron! — gritou Wulfgar,
girando e correndo pelo corredor, esperando que não o levasse a um beco sem saída.
Drizzt puxou o carneiro da ponta da lâmina e sem querer deixou-o cair no chão,
xingando silenciosamente pela perda de boa comida. Lambendo a adaga para limpá-
la, esperou. Quando o último verbeeg passou, disparou de seu esconderijo, lançou a
adaga na parte de trás do joelho do gigante à direita e correu para o outro lado da
viga. O gigante ferido uivou de dor, mas no momento em que ele e seus
companheiros se viraram, o drow não estava em lugar nenhum.
Wulfgar fez uma curva e escorregou contra a parede, adivinhando facilmente o que
havia parado a perseguição. O bando havia se virado quando descobriram que havia
outro intruso mais perto da saída.
Um gigante saltou através dos suportes e ficou de pé com as pernas afastadas e o
porrete pronto, os olhos indo de porta em porta enquanto tentava descobrir qual
caminho o atacante invisível havia tomado. Atrás dele e ao lado, Drizzt tirou uma
pequena faca de cada uma de suas botas e imaginou como os gigantes poderiam ser
estúpidos o suficiente para cair no mesmo truque duas vezes em um intervalo de
dez segundos. Sem querer reclamar de sua boa sorte, o elfo se arrastou para trás de
sua próxima vítima e, antes que seus companheiros ainda no túnel pudessem gritar
um aviso, levou uma das facas até a coxa do gigante, cortando o tendão. O gigante
cambaleou para o lado e Drizzt, pulando, maravilhou-se ao ver como as veias
grossas no pescoço de um verbeeg davam um alvo tão maravilhoso quando a
mandíbula do monstro estava cerrada de dor.
Mas o drow não teve tempo de parar e ponderar sobre as boas sortes da batalha. O
resto do bando – cinco gigantes furiosos – já havia deixado o companheiro ferido
no túnel e estava a apenas alguns passos atrás. Ele enfiou profundamente a segunda
faca no pescoço do verbeeg e dirigiu-se para a porta que levava mais fundo no
covil. Ele teria conseguido, exceto que o primeiro gigante voltando para a sala
estava carregando uma pedra. Os verbeegs são adeptos do lançamento de pedras, e
este era melhor que a maioria. A cabeça desprotegida do drow era o alvo, e o
lançamento acertara.
O arremesso de Wulfgar também acertou o alvo. Presa de Égide quebrou a espinha
dorsal do gigante enquanto passava por seu companheiro ferido no túnel. O verbeeg
ferido, tentando tirar o punhal de Drizzt do joelho, olhou incrédulo para a seu
companheiro repentinamente morto e para a mortal investida furiosa do bárbaro
feroz.
Com sua visão periférica, Drizzt viu a pedra se aproximando. Ele conseguiu desviar
o suficiente para evitar que sua cabeça fosse atingida, mas o projétil pesado o pegou
no ombro e o lançou voando para o chão. O mundo girou em torno dele como se
fosse seu eixo. Ele lutou para se reorientar, pois sua mente entendia que o gigante
estava chegando para acabar com ele. Mas tudo parecia borrado. Algo próximo ao
seu rosto conseguiu prender sua atenção. Ele fixou os olhos naquilo, esforçando-se
para encontrar um foco e forçar todo o resto a parar de girar.
Um dedo de verbeeg.
O drow estava de volta. Rapidamente, alcançou sua arma.
Ele sabia que era tarde demais quando viu o gigante, com o porrete erguido para um
golpe mortal, elevando-se acima dele.
O gigante ferido parou no meio do túnel para encarar a investida do bárbaro. A
perna do monstro tinha ficado entorpecida e não conseguia firmar seus pés com
segurança. Wulfgar, com Presa de Égide confortavelmente de volta em suas mãos,
deixou-o de lado e continuou até a sala. Dois dos gigantes esperavam por ele.
Guenhwyvar meteu-se entre as pernas de um gigante quando este se virou, e ela
lançou-se tão alto e distante quanto seus músculos permitiam. Assim que o verbeeg
em pé sobre Drizzt começou a balançar seu porrete na direção do elfo prostrado,
Drizzt viu um tom de negro cruzar na frente do rosto do gigante. Um rasgo dentado
cobriu a bochecha dele. Drizzt entendeu o que acontecera quando ouviu as patas
acolchoadas de Guenhwyvar tocarem a mesa e impulsionarem a gata para o outro
lado da sala. Embora um segundo gigante agora se juntasse ao primeiro e ambos
tivessem seus porretes prontos para atacar, Drizzt ganhara todo o tempo que
precisava. Em um movimento rápido como um raio, deslizou uma das cimitarras de
sua bainha e a enfiou na virilha do primeiro gigante. O monstro se dobrou em
agonia, servindo de escudo para Drizzt, e recebeu o golpe de seu companheiro na
parte de trás de sua cabeça. O drow resmungou um “obrigado” enquanto rolava
sobre o cadáver, aterrissando de pé e novamente golpeando para cima, dessa vez
levantando o corpo para seguir a lâmina.
A hesitação havia custado a vida a outro gigante. Pois, enquanto o verbeeg
atordoado olhava estupefato para o cérebro de seu amigo espalhado por todo seu
porrete, a lâmina curva do drow cortou sob suas costelas, rasgando os pulmões e
encontrando seu alvo no coração do monstro.
O tempo passou devagar para o gigante mortalmente ferido. O porrete que havia
deixado cair parecia levar minutos para chegar ao chão. Com o movimento quase
imperceptível de uma árvore caindo, o verbeeg deslizou para fora do alcance da
cimitarra. Ele sabia que estava caindo, mas o chão nunca veio ao seu encontro.
Wulfgar esperava ter acertado o gigante ferido no túnel com força suficiente para
mantê-lo fora da briga por um tempo – estaria em uma situação difícil se o verbeeg
surgisse atrás dele. Já estava lidando com coisas demais ao bloquear e contra-atacar
os dois gigantes que enfrentava agora. Mas não precisava se preocupar com sua
retaguarda, pois o verbeeg ferido caiu contra a parede do túnel, indiferente a seus
arredores. E, na direção oposta, Drizzt acabara de finalizar os outros dois gigantes.
Wulfgar riu alto quando viu seu amigo limpando o sangue de sua lâmina e
caminhando de volta do outro lado da sala. Um dos verbeegs notou o elfo negro
também e saltou de sua luta com o bárbaro para enfrentar esse novo inimigo.
— Ei, nanico, acha que pode me enfrentar e viver para contar? — berrou o gigante.
Fingindo desespero, Drizzt olhou para ele. Como de costume, encontrou uma
maneira fácil de vencer essa luta. Se arrastando com a barriga no chão, Guenhwyvar
deslizou para trás dos corpos dos gigantes, tentando assumir uma posição favorável.
Drizzt deu um pequeno passo para trás, atraindo o gigante para o caminho do
grande felino.
O porrete do gigante colidiu com as costelas de Wulfgar e o empurrou contra a viga
de madeira. O bárbaro era feito de um material mais resistente que madeira, porém,
e recebeu o golpe estoicamente, devolvendo-o duas vezes mais forte com Presa de
Égide. Mais uma vez o verbeeg atacou e novamente Wulfgar contra-atacou. O
bárbaro estava lutando sem nenhuma pausa por mais de dez minutos, mas a
adrenalina percorria suas veias e ele mal se sentia ofegante. Começou a apreciar as
intermináveis horas de labuta nas minas de Bruenor e os quilômetros e quilômetros
de corrida que Drizzt conduzira durante suas aulas quando seus golpes passaram a
cair com frequência crescente em seu oponente que começava a se cansar.
O gigante avançou na direção de Drizzt.
— Ah, pare, rato miserável! — ele rosnou. — Sem truques! Vamos ter luta justa.
Assim que os dois se juntaram, Guenhwyvar deu os poucos passos restantes e
afundou suas presas na parte de trás do tornozelo do verbeeg. Reflexivamente, o
gigante lançou um olhar para o atacante da retaguarda, mas se recuperou rápido e
tornou a olhar para o elfo...
...Bem a tempo de ver a cimitarra entrando em seu peito.
Drizzt respondeu à expressão intrigada do monstro com uma pergunta.
— Onde nos nove infernos você tirou a ideia de que eu lutaria de forma justa?
O verbeeg cambaleou para trás. A lâmina não encontrara seu coração, mas sabia
que a ferida logo seria fatal se não fosse tratada. Sangue escorria pela túnica de
couro do monstro e se esforçava visivelmente para tentar respirar.
Drizzt alternou seus ataques com Guenhwyvar, golpeando e afastando-se dos
contra-ataques desajeitados, enquanto sua parceira corria para o outro lado do
monstro. Eles sabiam, e o gigante também, que essa luta terminaria em breve.
O gigante que lutava contra Wulfgar não podia mais sustentar uma postura
defensiva com seu porrete pesado. Wulfgar estava começando a se cansar também,
então cantou a antiga canção de guerra da tundra, a Canção de Tempus, com suas
notas estimulantes que o inspiraram em uma torrente final. Ele esperou que o
porrete do verbeeg se inclinasse inevitavelmente para baixo e então lançou Presa de
Égide uma, duas e depois uma terceira vez. Wulfgar quase desmaiou de exaustão
após o terceiro balanço, mas o gigante estava caído no chão. O bárbaro inclinou-se
cansado em sua arma e observou seus dois companheiros arranharem e cortarem
seu verbeeg em pedaços.
— Muito bem! — Wulfgar riu quando o último gigante caiu. Drizzt foi até o
bárbaro, com o braço esquerdo pendurado ao lado do corpo. Sua jaqueta e camisa
estavam rasgadas onde a pedra havia batido, e a pele exposta de seu ombro estava
inchada e com hematomas.
Wulfgar olhou para a ferida com genuína preocupação, mas Drizzt respondeu à sua
pergunta não formulada levantando o braço acima dele, embora fizesse uma careta
de dor com o esforço.
— Vai ser rápido de consertar — ele assegurou a Wulfgar. — Apenas um solavanco
desagradável, e acho que é um pequeno custo contra os corpos de treze verbeegs!
Um gemido baixo saiu do túnel.
— Doze até agora — corrigiu Wulfgar. — Aparentemente, um ainda não foi
finalizado. — Com uma respiração profunda, Wulfgar levantou Presa de Égide e se
virou para terminar a tarefa.
— Antes, um momento — insistiu Drizzt, com um pensamento pressionando sua
mente. — Quando os gigantes te atacaram no túnel, você gritou alguma coisa em
seu idioma nativo, acho. O que foi que você disse?
Wulfgar riu com vontade.
— Um velho grito de batalha da Tribo do Alce — explicou ele. — Força para meus
amigos e morte para meus inimigos!
Drizzt olhou para o bárbaro com desconfiança e se perguntou o quão boa seria a
habilidade de Wulfgar de criar uma mentira quando surgisse a necessidade.

O verbeeg ferido ainda estava encostado na parede do túnel quando os dois


companheiros e Guenhwyvar se aproximaram. A adaga do drow estava enterrada
profundamente no joelho do gigante, sua lâmina presa entre dois ossos. O gigante
olhou-os cheios de ódio e ainda assim estranhamente calmos quando se
aproximaram.
— Vão pagar por isso — ele cuspiu para Drizzt. — Carranca vai brincar com vocês
antes de matar, certeza!
— Então ele tem uma língua — disse Drizzt a Wulfgar. Depois, virou-se para o
gigante. — Carranca?
— Senhor da caverna — respondeu o gigante. — Carranca vai querer conhecer
vocês.
— E nós vamos querer conhecer Carranca! — explodiu Wulfgar. — Temos uma
dívida a pagar, um pequeno problema envolvendo dois anões! — Assim que
Wulfgar mencionou os anões, o gigante cuspiu de novo. A cimitarra de Drizzt se
aproximou e parou a um centímetro da garganta do monstro.
— Mata e acaba isso — riu o gigante, genuinamente despreocupado. A
tranquilidade do monstro enervava Drizzt. — Eu sirvo ao mestre! —proclamou o
gigante. — Glória é morrer por Akar Kessell!
Wulfgar e Drizzt se entreolharam, desconfortáveis. Eles nunca tinham visto ou
ouvido falar desse tipo de dedicação fanática em um verbeeg, e a visão os
perturbou. A principal falha dos verbeeg que sempre os impediu de dominar as
raças menores era a relutância em dedicar-se sinceramente a qualquer causa e sua
incapacidade de seguir um líder.
— Quem é Akar Kessell? — Wulfgar exigiu saber.
O gigante riu maldosamente.
— Se vocês são amigos das cidades, logo vão saber!
— Achei que você tinha dito que Carranca era o senhor desta caverna — disse
Drizzt.
— Da caverna — respondeu o gigante. — E já foi de uma tribo. Mas Carranca
segue o mestre agora!
— Temos problemas — murmurou Drizzt para Wulfgar. — Você já ouviu falar de
um líder verbeeg desistir de seu domínio para outro sem uma luta?
— Temo pelos anões — disse Wulfgar.
Drizzt voltou-se para o gigante e decidiu mudar de assunto para poder extrair
alguma informação mais imediata.
— O que há no final deste túnel?
— Nada — disse o verbeeg, rápido demais. — Er, lugar para dormir, só.
Leal, mas estúpido, observou Drizzt. Ele se virou para Wulfgar novamente.
— Temos que derrubar Carranca e quaisquer outros na caverna que possam voltar
para avisar este tal Akar Kessell.
— E quanto a esse aqui? — perguntou Wulfgar. Mas o gigante respondeu à
pergunta por Drizzt. Delírios de glória forçaram-no a procurar a morte a serviço do
mago. Apertou os músculos, ignorando a dor no joelho, e atacou os companheiros.
Presa de Égide esmagou a clavícula e o pescoço do verbeeg ao mesmo tempo em
que a cimitarra de Drizzt escorregava por entre suas costelas e Guenhwyvar mordia
seu estômago.
Mas a máscara mortuária do gigante era um sorriso.

O corredor atrás da porta traseira da sala de jantar estava escuro, e os companheiros


tiveram que puxar uma tocha de seu apoio no outro corredor para levar com eles.
Enquanto percorriam o longo túnel, indo mais e mais fundo dentro da montanha,
passaram por muitas pequenas câmaras, a maioria vazias, mas algumas com
recipientes de vários tipos de conteúdo: comidas, peles, porretes e lanças extras.
Drizzt supôs que Akar Kessell planejava usar esta caverna como base para seu
exército.
A escuridão foi absoluta por alguns metros e Wulfgar, sem a visão no escuro de seu
companheiro élfico, ficou nervoso quando a tocha começou a querer se apagar. Mas
chegaram a uma câmara ampla, de longe a maior que tinham visto e, além de seu
alcance, o túnel se derramava na noite aberta.
— Chegamos à porta da frente — disse Wulfgar. — E está entreaberta. Você
acredita que Carranca foi embora?
— Sssh — sussurrou Drizzt. O drow pensou ter ouvido algo na escuridão à direita.
Fez sinal para que Wulfgar ficasse no meio da sala com a tocha enquanto se
arrastava para as sombras.
Drizzt parou quando ouviu vozes rudes de gigantes à frente, embora não
conseguisse entender por que não conseguia ver suas silhuetas volumosas. Quando
viu uma grande lareira, entendeu. As vozes ecoavam pela chaminé.
— Carranca? — perguntou Wulfgar quando ele surgiu.
— Deve ser — raciocinou Drizzt. — Você acha que cabe na chaminé?
O bárbaro assentiu. Ele levantou Drizzt primeiro – o braço esquerdo do drow ainda
não era de muita utilidade – e seguiu, deixando Guenhwyvar vigiando.
A chaminé serpenteou alguns metros para cima e depois chegou a um cruzamento.
Um caminho conduzia a um quarto de onde vinham as vozes e o outro diminuía à
medida que subia à superfície. A conversa estava alta agora, e Drizzt se moveu para
investigar. Wulfgar segurou os pés do drow para ajudá-lo a fazer a descida final,
enquanto a inclinação se tornava quase vertical. Pendurado de cabeça para baixo,
Drizzt espiou sob a borda da lareira em outro quarto. Ele viu três gigantes: um perto
de uma porta na extremidade da sala, com a aparência de querer sair, e um segundo
de costas para a lareira, sendo repreendido pelo terceiro, um enorme gigante de
gelo. Drizzt soube pelo sorriso distorcido e sem lábios que olhava para Carranca.
— ...contar para Carranca! — suplicou o gigante menor.
— Você fugiu de uma briga — Carranca fez uma careta. — Você deixou seus
amigos morrerem!
— Não... — Protestou o gigante, mas Carranca ouvira o suficiente. Com um golpe
de seu enorme machado, ele decepou a cabeça do gigante menor.

Os dois encontraram Guenhwyvar diligentemente de vigia quando saíram da


chaminé. A grande gata virou-se e rosnou em reconhecimento quando viu seus
companheiros, e Wulfgar, não entendendo o ronronar rouco como um som
amigável, deu um passo cauteloso para longe.
— Tem de haver um túnel lateral no corredor principal mais abaixo — raciocinou
Drizzt, sem tempo para se divertir com o nervosismo de seu amigo.
— Vamos acabar logo com isso, então — disse Wulfgar.
Encontraram a passagem como o drow havia previsto e logo chegaram a uma porta
que imaginaram levar à sala com os gigantes remanescentes. Eles bateram um no
ombro do outro para dar sorte e Drizzt deu um tapinha em Guenhwyvar, embora
Wulfgar tenha recusado o convite do drow para fazer o mesmo. Então invadiram.
O cômodo estava vazio. Uma porta, antes invisível para Drizzt, de seu ponto de
vista na lareira, estava entreaberta.


Carranca enviou seu último soldado pela porta lateral secreta com uma mensagem
para Akar Kessell. O gigante imenso caíra em desgraça e sabia que o mago não
aceitaria prontamente a perda de tantas tropas valiosas. A única chance de Carranca
era cuidar dos dois guerreiros intrusos e esperar que suas cabeças apaziguassem seu
chefe impiedoso. O gigante pressionou o ouvido na porta e esperou que suas
vítimas entrassem na sala adjacente.

Wulfgar e Drizzt passaram pela segunda porta e chegaram a uma sala luxuosa, o
chão adornado com peles felpudas e travesseiros grandes e fofos. Duas outras portas
saíam da sala. Uma estava ligeiramente aberta, um corredor escurecido além, e a
outra estava fechada.
De repente, Wulfgar parou Drizzt com a mão estendida e fez sinal para que o drow
ficasse quieto. A qualidade intangível de um verdadeiro guerreiro, o sexto sentido
que lhe permitia sentir o perigo invisível, entrou em ação. Lentamente, o bárbaro
virou-se para a porta fechada e levantou Presa de Égide acima de sua cabeça. Ele
parou por um momento e inclinou a cabeça, esforçando-se para ouvir um som que
confirmasse suas suspeitas. Nenhum veio, mas Wulfgar confiava em seus instintos.
Ele rugiu para Tempus e lançou o martelo. Ele partiu a porta com um estalo
trovejante e derrubou as tábuas – e Carranca – no chão.
Drizzt notou o balanço da porta secreta aberta do outro lado da sala, além do chefe
gigante, e percebeu que o último dos gigantes deveria ter escapado. Rapidamente, o
drow pôs Guenhwyvar em movimento. A pantera também entendeu, pois correu
para longe, passando pela forma contorcida de Carranca com um grande salto, e
saiu da caverna para perseguir o verbeeg que escapava.
O sangue escorria pela lateral da cabeça do grande gigante, mas o osso grosso de
seu crânio havia repelido o martelo. Drizzt e Wulfgar olharam incrédulos quando o
imenso gigante de gelo sacudiu as papadas e se levantou para encontrá-los.
— Ele não pode fazer isso — reclamou Wulfgar.
— Este gigante é um teimoso — Drizzt deu de ombros.
O bárbaro esperou que Presa de Égide retornasse ao seu alcance, depois foi com o
drow encarar Carranca.
O gigante ficou na porta para impedir que qualquer um de seus inimigos o
flanqueasse enquanto Wulfgar e Drizzt se aproximavam confiantes. Os três
trocaram olhares ameaçadores e alguns ataques fáceis enquanto sentiam o estilo um
do outro.
— Você deve ser Carranca — Drizzt disse, curvando-se.
— Sou eu — proclamou o gigante. — Carranca! O último inimigo que seus olhos
verão!
— Tão confiante quanto teimoso — comentou Wulfgar.
— Humaninho — replicou o gigante — eu esmaguei uns cem do seu povo fracote!
— Mais um motivo para matarmos você — declarou Drizzt com calma.
Com velocidade e ferocidade repentinas que surpreenderam seus dois oponentes,
Carranca fez uma ampla varredura com seu enorme machado. Wulfgar recuou de
seu alcance mortal e Drizzt conseguiu se abaixar sob o golpe, mas o drow
estremeceu ao ver a lâmina do machado arrancando um pedaço de tamanho
considerável da parede de pedra.
Wulfgar pulou de volta para o monstro enquanto o machado passava por ele,
batendo no peito largo de Carranca com Presa de Égide. O gigante se encolheu, mas
levou o golpe.
— Tem que bater forte, fracote! — ele berrou enquanto lançava um poderoso golpe
vindo de trás com a parte chata do machado.
Novamente, Drizzt escorregou abaixo do golpe. Wulfgar, no entanto, cansado da
batalha como estava, não se moveu rápido o suficiente para sair do alcance. O
bárbaro conseguiu colocar Presa de Égide à frente dele, mas a força da arma pesada
de Carranca o esmagou contra a parede. Ele desabou no chão.
Drizzt sabia que estavam em apuros. Seu braço esquerdo permanecia inútil, seus
reflexos estavam diminuindo pela exaustão, e esse gigante era simplesmente
poderoso demais para conseguir bloquear seus golpes. Conseguiu fazer uma
estocada curta com sua cimitarra enquanto o gigante se recuperava para sua
próxima investida, e então correu em direção ao corredor principal.
— Corra, seu cão covarde! — rugiu o gigante. — Vou atrás e vou pegar você! —
Carranca correu atrás de Drizzt, farejando a matança.
O drow embainhou sua cimitarra quando chegou à passagem principal e procurou
um local para emboscar o monstro. Nada apareceu, então foi a meio caminho da
saída e esperou.
— Onde pode se esconder? — Carranca provocou quando seu enorme volume
entrou no corredor. Em prontidão nas sombras, o drow jogou suas duas facas.
Ambos acertaram o alvo, mas Carranca mal desacelerou.
Drizzt saiu da caverna. Ele sabia que, se Carranca não o seguisse, teria que voltar;
não podia deixar Wulfgar ali para morrer. Os primeiros raios da aurora encontravam
o caminho para a montanha e Drizzt temia que a luz crescente estragasse qualquer
chance de emboscada. Subindo uma das pequenas árvores que escondiam a saída,
puxou sua adaga.
Carranca correu para a luz do sol e olhou em volta, buscando sinais do drow em
fuga.
— Você está perto, cão miserável! Não tem pronde correr!
De repente, Drizzt estava em cima do monstro, arranhando seu rosto e pescoço
numa barragem de facadas e cortes. O gigante uivou de raiva e empurrou o corpo
volumoso para trás violentamente, enviando Drizzt, que não conseguiu se segurar
firme com o braço enfraquecido, voando de volta para dentro do túnel. O drow caiu
pesadamente sobre seu ombro machucado e quase desmaiou de agonia. Ele se
debateu e contorceu por um momento, tentando se levantar, mas esbarrou em uma
bota pesada. Ele sabia que Carranca não poderia ter chegado a ele tão rapidamente.
Virou-se lentamente de costas, imaginando de onde esse novo gigante tinha vindo.
Mas a visão do drow mudou drasticamente ao ver Wulfgar por cima dele, com Presa
de Égide firme em sua mão e um olhar soturno estampado em seu rosto. Wulfgar
não tirou os olhos do gigante enquanto este entrava no túnel.
— Ele é meu — disse o bárbaro sério.
Carranca estava mesmo hediondo. O lado de sua cabeça, onde o martelo o havia
golpeado, estava coberto de sangue escuro e seco, enquanto no outro, e em vários
pontos em seu rosto e pescoço, corria intensamente o sangue de novos ferimentos.
As duas facas que Drizzt jogara ainda estavam grudadas no peito do gigante como
medalhas mórbidas de honra.
— Você pode aguentar de novo? — Wulfgar desafiou quando enviou Presa de
Égide em um segundo voo na direção do gigante.
Em resposta, Carranca, desafiador, estufou o peito para bloquear o golpe.
— Aguento o que você tiver pra dar! — gabou-se.
Presa de Égide acertou e Carranca deu um passo para trás. O martelo tinha
quebrado uma costela ou duas, mas o gigante podia lidar com isso.
Mais mortal, porém, e sem que Carranca soubesse, Presa de Égide levara uma das
facas do Drizzt a encostar em seu coração.
— Posso correr agora — sussurrou Drizzt para Wulfgar quando viu o gigante
avançando de novo.
— Eu fico — o bárbaro insistiu sem o menor tremor de medo em sua voz.
Drizzt puxou a cimitarra.
— Bem falado, bravo amigo. Tombemos esta fera imunda, há comida para ser
comida!
— Vai ver que é fácil falar, não fazer! — retrucou Carranca. Ele sentiu um súbito
ardor no peito, mas apenas resmungou de dor. — Senti seus melhores golpes e
ainda avanço! Vocês não podem ganhar!
Tanto Drizzt quanto Wulfgar temiam que houvesse mais verdade nas bravatas do
gigante do que qualquer um deles admitiria. Eles estavam em suas últimas forças,
feridos e sem fôlego, mas determinados a permanecer e terminar a tarefa.
Porém, a total confiança do gigante, à medida que se aproximava, era mais do que
um pouco desconcertante.
Carranca percebeu que algo estava terrivelmente errado quando chegou a poucos
passos dos dois companheiros. Wulfgar e Drizzt também viram que o passo do
gigante de repente diminuía.
O gigante olhou para eles com indignação, como se tivesse sido enganado.
— Cães! — ofegou, com uma gota de sangue saindo de sua boca. — Que truque...
Carranca caiu morto sem outra palavra.

— Devemos ir atrás da gata? — perguntou Wulfgar quando voltaram para a porta


secreta.
Drizzt estava fazendo uma tocha dm alguns trapos que encontrara.
— Fé na sombra — ele respondeu. — Guenhwyvar não deixará o verbeeg escapar.
Além disso, tenho uma boa refeição esperando por mim na caverna.
— Você vai — Wulfgar disse. — Eu ficarei aqui e esperarei o retorno da gata.
Drizzt apertou o ombro do grande homem quando começou a sair. Eles tinham
passado por muito no curto tempo em que estiveram juntos e Drizzt suspeitava que
a empolgação estava apenas começando. O drow cantou uma canção festiva quando
começou a caminhar pela passagem principal, mas apenas como um embuste para
Wulfgar, pois a mesa de jantar não seria sua primeira parada. O gigante com quem
conversaram anteriormente fora evasivo quando perguntado sobre o que havia no
túnel que ainda não tinham explorado. E com tudo o que haviam encontrado, Drizzt
acreditava que isso só poderia significar uma coisa – tesouro.

A grande pantera saltou sobre as pedras quebradas, alcançando facilmente o gigante


de pés pesados. Logo, Guenhwyvar podia ouvir a respiração ofegante do verbeeg
enquanto a criatura lutava a cada salto e subida. O gigante estava indo para Queda
do Vale e a tundra aberta adiante. Mas tão frenética fora sua fuga que não se afastou
do Sepulcro de Kelvin para o solo mais fácil do vale. Ele buscou um caminho mais
reto, acreditando ser o mais rápido, para a segurança.
Guenhwyvar conhecia as áreas da montanha tão bem quanto seu mestre, sabia onde
todas as criaturas da montanha viviam. A gata já havia decidido para onde queria
que o gigante fosse. Como um cão pastor, ela diminuiu a distância restante e
arranhou os flancos do gigante, virando-o na direção de uma profunda piscina
montanhosa. O verbeeg aterrorizado, certo de que o martelo de guerra mortal ou a
cimitarra ágil não estavam muito atrás, não ousou parar e lutar contra a pantera. Ele
disparou às cegas ao longo do caminho que Guenhwyvar escolhera.
Pouco tempo depois, Guenhwyvar se separou do gigante e correu à frente. Quando
a gata chegou à beira da água fria, inclinou a cabeça e concentrou seus sentidos
afiados, querendo encontrar algo que pudesse ajudá-la a completar a tarefa.
Guenhwyvar notou um minúsculo tremeluzir de movimento sob os brilhos da
primeira luz na água. Seus olhos aguçados perceberam a longa forma que
permanecia mortalmente imóvel. Satisfeita com a armadilha, Guenhwyvar foi para
trás de uma saliência próxima para esperar.
O gigante se arrastou até a piscina, respirando pesadamente. Encostou-se num
pedregulho por um momento, apesar de seu terror. As coisas pareciam seguras o
suficiente naquele momento. Assim que recuperou o fôlego, o gigante olhou em
volta em busca de sinais de perseguição e, em seguida, começou a avançar
novamente.
Havia apenas um caminho até o outro lado da piscina, um tronco caído que se
estendia pelo centro e todas as rotas alternativas ao redor da piscina, embora a água
não fosse muito larga, envolviam quedas íngremes e faces rochosas salientes e que
prometiam ser lentas.
O verbeeg testou o tronco. Parecia resistente, então o monstro começou a atravessar
com cuidado. A gata esperou que o gigante se aproximasse do centro da piscina,
saltou de seu esconderijo e lançou-se ao ar no verbeeg. A gata pousou pesadamente
no gigante surpreso, plantando suas patas no peito do monstro e voltando para a
segurança da costa. Guenhwyvar mergulhou na piscina gelada, mas logo saiu da
água perigosa. O gigante, no entanto, balançou os braços por um momento,
tentando manter o equilíbrio, depois tombou, lançando respingos para todo lado. A
água correu para sugá-lo. Desesperado, o gigante alcançou um tronco flutuante
próximo, a forma que Guenhwyvar havia reconhecido antes.
Mas quando as mãos do verbeeg desceram, a forma que pensava ser um tronco
explodiu em movimento quando a enorme serpente d’água de quinze metros se
lançou ao redor de sua presa em velocidade estonteante. As espirais implacáveis
logo prenderam os braços do gigante ao seu lado e começaram seu aperto
impiedoso.
Guenhwyvar sacudiu a água gelada de seu casaco preto brilhante e olhou de volta
para a piscina. Quando outra parte da monstruosa cobra se prendeu sob o queixo do
verbeeg e puxou o monstro indefeso para baixo da superfície, a pantera estava
convencida de que a missão estava completa. Com um longo e alto rugido
proclamando vitória, Guenhwyvar saltou em direção ao covil.
CAPÍTULO 19

Notícias Sombrias

DRIZZT ATRAVESSOU SILENCIOSAMENTE os túneis e passou pelos corpos


dos gigantes mortos, diminuindo o passo apenas para pegar outro pedaço de carne
de carneiro da mesa. Passou pelas vigas de apoio e começou a descer o corredor
escuro, atenuando sua ânsia com bom senso. Se os gigantes tivessem escondido seu
tesouro aqui embaixo, a câmara que o continha poderia estar atrás de uma porta
oculta, ou talvez até houvesse alguma fera, embora não fosse provável encontrar
outro gigante, já que ele teria se juntado à luta.
O túnel era bastante longo, indo direto para o norte, e Drizzt imaginou que estava se
movendo sob a massa do Sepulcro de Kelvin. Ele havia passado a última tocha, mas
estava feliz pela escuridão. Ele vivera a maior parte de sua vida viajando em túneis
no mundo subterrâneo sem luz de seu povo, e seus olhos o guiavam na escuridão
absoluta com mais precisão do que em áreas de luz.
O corredor terminou abruptamente em uma porta com barras de ferro, com uma
barra de metal presa no lugar por uma grande corrente e um cadeado. Drizzt sentiu
uma pontada de culpa por deixar Wulfgar para trás. O drow tinha duas fraquezas:
acima de tudo, a emoção da batalha, mas em segundo lugar estava o arrepio de
descobrir o espólio de seus inimigos vencidos. Não era o ouro ou pedras preciosas
que atraíam Drizzt; ele não se importava com a riqueza e raramente guardava os
tesouros que havia conquistado. Era simplesmente a emoção de vê-los pela primeira
vez, a excitação de peneirá-los e, talvez, descobrir algum artefato incrível que se
perdera no conhecimento de eras passadas, ou talvez o livro de feitiços de um mago
antigo e poderoso.
Sua culpa voou para longe quando ele puxou uma pequena ferramenta da bolsa em
seu cinto. Ele nunca tinha sido formalmente treinado nas artes da ladinagem, mas
era tão ágil e coordenado quanto qualquer mestre ladrão. Com os dedos sensíveis e
a audição afiada, o cadeado desajeitado não foi exatamente um desafio; em questão
de segundos, caiu aberto. Drizzt ouviu com atenção, em busca de sons atrás da
porta. Não percebendo nada, gentilmente levantou a grande barra e colocou-a de
lado. Ouvindo uma última vez, sacou uma de suas cimitarras, prendeu a respiração
em antecipação e empurrou a porta.
Sua respiração voltou com um suspiro desapontado. A sala além brilhava com a luz
minguante de duas tochas. Era pequena e estava vazia, exceto por um grande
espelho com uma moldura de metal em seu centro. Drizzt se desviou do caminho do
espelho, ciente de algumas das estranhas propriedades mágicas que esses itens
podem por exibir, e se aproximou para examiná-lo mais de perto.
Tinha cerca da metade da altura de um homem, apoiada no nível dos olhos por uma
base de ferro intrincadamente trabalhada. O fato de estar forrado de prata e em uma
câmara tão afastada levou Drizzt a acreditar que havia algo mais ali do que um
espelho comum. No entanto, sua inspeção minuciosa não revelou runas ou marcas
arcanas de qualquer tipo que sugerissem suas propriedades.
Incapaz de descobrir algo incomum sobre a peça, Drizzt, descuidado, se aproximou
do vidro. De repente, uma névoa rosada começou a girar dentro do espelho, dando a
aparência de um espaço tridimensional preso dentro da superfície plana do vidro.
Drizzt saltou para o lado, mais curioso do temeroso, e observou o crescente
espetáculo.
A névoa se espessava e inchava como se alimentada por algum fogo oculto. Seu
centro se expandiu e se abriu em uma imagem clara do rosto de um homem, um
rosto magro e de olhos fundos pintados na tradição de algumas das cidades do sul.
— Por que me incomoda? — o rosto perguntou na sala vazia diante do espelho.
Drizzt deu outro passo para o lado, afastando-se da linha de visão da aparição. Ele
considerou confrontar o mago misterioso, mas lembrou que seus amigos tinham
muito em jogo para fazer algo tão imprudente.
— Fique diante de mim, Carranca! — comandou a imagem. Esperou por vários
segundos, desdenhando impaciente e ficando cada vez mais tenso. — Quando eu
descobrir qual de vocês idiotas me convocou sem querer, vou transformá-lo em um
coelho e colocá-lo em um poço de lobos! — a imagem gritou descontrolada. O
espelho piscou de repente e voltou ao normal.
Drizzt coçou o queixo e se perguntou se havia algo mais que ele pudesse fazer ou
descobrir ali. Decidiu que os riscos eram simplesmente grandes demais neste
momento.


Quando Drizzt retornou pelo covil, encontrou Wulfgar sentado com Guenhwyvar na
passagem principal, a poucos metros das portas da frente fechadas e gradeadas. O
bárbaro acariciava os ombros e pescoço musculosos da gata.
— Vejo que Guenhwyvar ganhou sua amizade — Drizzt disse ao se aproximar.
Wulfgar sorriu.
— Uma boa aliada — disse, dando ao animal uma sacudida brincalhona. — E uma
verdadeira guerreira! — Ele começou a se levantar, mas foi jogado violentamente
de volta ao chão.
Um tremor sacudiu o covil quando um tiro de balista bateu nas pesadas portas,
estilhaçando a barra de madeira e explodindo-as. Uma das portas quebrou-se ao
meio e a dobradiça superior da outra se partiu, deixando a porta pendurada
desajeitadamente pela dobradiça inferior torcida.
Drizzt sacou a cimitarra e ficou, protetor, na frente de Wulfgar enquanto o bárbaro
tentava recuperar o equilíbrio.
Abruptamente, um guerreiro barbudo saltou para a porta, com seu escudo circular
portando o estandarte de uma caneca de cerveja espumante pendurado em um braço
e um machado de batalha entalhado e ensanguentado posicionado no outro.
— Saiam para brincar, gigantes! — gritou Bruenor, batendo o escudo no machado,
como se o seu clã já não tivesse feito barulho suficiente para despertar o covil todo!
— Fique em paz, anão selvagem — riu Drizzt. — Os verbeegs estão todos mortos.
Bruenor avistou seus amigos e desceu para o túnel, logo seguido pelo resto do clã
barulhento.
— Todos mortos! — o anão gritou. — Droga, elfo, eu sabia que você ficaria com
toda a diversão!
— E quanto aos reforços? — Wulfgar perguntou.
Bruenor riu maliciosamente.
— Tenha fé, garoto. Eles estão jogados no mesmo buraco, embora o sepultamento
seja bom demais para eles, te digo! Apenas um vivo, um orc miserável que respirará
apenas enquanto mantiver aquela língua fedorenta solta!
Depois do episódio com o espelho, Drizzt estava mais do que um pouco interessado
em falar com o orc.
— Você já o interrogou? — ele perguntou a Bruenor.
— Ah, ele está mudo por enquanto — respondeu o anão. — Mas eu tenho algumas
coisas que podem fazê-lo falar!
Drizzt era mais esperto. Orcs não eram criaturas leais, mas sob o encantamento de
um mago, técnicas de tortura não costumavam ser muito boas. Eles precisavam de
algo para neutralizar a magia, e Drizzt tinha uma ideia do que poderia funcionar.
— Vá até Regis — ele instruiu Bruenor. — O halfling pode fazer o orc nos dizer
tudo o que queremos saber.
— Torturar seria mais divertido — lamentou Bruenor, mas também entendia a
sabedoria da sugestão do drow. Ele estava mais que um pouco curioso, além de
preocupado, com tantos gigantes trabalhando juntos. E agora com orcs ao lado
deles...

Drizzt e Wulfgar estavam sentados no canto mais distante da pequena câmara, tão
longe de Bruenor e dos outros dois anões quanto conseguiam. Uma das tropas de
Bruenor retornara de Bosque Solitário com Regis naquela mesma noite e, embora
estivessem exaustos de marchar e lutar, estavam ansiosos demais com a informação
para dormir. Regis e o orc cativo foram para a sala adjacente para uma conversa
particular assim que o halfling colocou o prisioneiro sob seu controle com o
pingente de rubi.
Bruenor se ocupou preparando uma nova receita – ensopado de cérebro de gigante –
fervendo os ingredientes miseráveis e malcheirosos em um crânio oco de verbeeg.
— Usem suas cabeças! — ele argumentara em resposta às expressões de horror e
nojo de Drizzt e Wulfgar. — Um ganso de curral tem um sabor melhor do que um
selvagem porque ele não usa seus músculos. O mesmo deve valer para o cérebro de
um gigante!
Drizzt e Wulfgar não viam assim. Eles não queriam deixar a área e perder qualquer
coisa que Regis pudesse ter a dizer, então se amontoaram no canto mais distante da
sala, mantendo uma conversa particular.
Bruenor se esforçou para ouvi-los, pois estavam falando de algo no qual ele tinha
mais do que um interesse passageiro.
— Metade para o último na cozinha — insistiu Wulfgar — e metade para a gata.
— E você só recebe metade pelo que está no buraco — retrucou Drizzt.
— Concordo — disse Wulfgar. — E nós dividimos o do corredor e Carranca?
Drizzt assentiu.
— Então, com todas as mortes compartilhadas somadas, são dez e meio para mim e
dez e meio para você.
— E quatro para a gata — acrescentou Wulfgar.
— Quatro para a gata — Drizzt ecoou. — Boa luta, amigo. Você se saiu bem até
agora, mas tenho a sensação de que temos muito mais combates diante de nós, e
minha maior experiência vai vencer no final!
— Você está ficando velho, bom elfo — brincou Wulfgar, recostando-se contra a
parede, a brancura de um sorriso confiante aparecendo em sua barba loura.
— Veremos. Veremos.
Bruenor também estava sorrindo, tanto pela competição bem-humorada entre seus
amigos quanto por seu orgulho contínuo pelo jovem bárbaro. Wulfgar estava indo
bem, acompanhando um veterano habilidoso como Drizzt Do’Urden.
Regis emergiu do quarto e a mortalha cinzenta em seu rosto normalmente jovial
matou a atmosfera leve.
— Temos problemas — disse o halfling de forma soturna.
— Onde está o orc? — Bruenor exigiu saber enquanto tirava o machado do cinto,
entendendo mal o que o halfling queria dizer.
— Ali. Ele está bem — respondeu Regis. O orc ficara feliz em contar para seu novo
amigo tudo sobre os planos de Akar Kessell de invadir Dez--Burgos e o tamanho
das forças que se reuniam. Regis tremia visivelmente ao contar a seus amigos a
notícia.
— Todas as tribos de orcs e goblins e clãs de verbeegs desta região da Espinha do
Mundo estão se unindo sob o controle de um mago chamado Akar Kessell — o
halfling começou a dizer. Drizzt e Wulfgar se entreolharam, reconhecendo o nome
de Kessell. O bárbaro pensara que Akar Kessell era um enorme gigante de gelo
quando o verbeeg falara dele, mas Drizzt suspeitava de algo diferente,
especialmente depois do incidente no espelho.
— Eles planejam atacar Dez-Burgos — Regis continuou. — E até mesmo os
bárbaros, liderados por algum líder poderoso e caolho, juntaram-se a suas fileiras!
O rosto de Wulfgar ficou vermelho de raiva e vergonha. Seu povo lutando ao lado
de orcs! Ele conhecia o líder ao qual Regis se referia, pois Wulfgar era da Tribo do
Alce e até mesmo ostentara o estandarte da tribo como arauto de Heafstaag. Drizzt
também se lembrou dolorosamente do rei caolho. Ele colocou uma mão
reconfortante no ombro de Wulfgar.
— Vão para Bryn Shander — disse o drow a Bruenor e Regis. — As pessoas devem
se preparar!
Regis se encolheu. Se a estimativa do orc sobre o exército que se reunia estivesse
correta, toda a Dez-Burgos unida não suportaria o ataque. O halfling baixou a
cabeça e murmurou silenciosamente, sem querer alarmar seus amigos mais do que
era necessário:
— Temos que ir embora!

Embora Bruenor e Regis tenham conseguido convencer Cassius da urgência e


importância de suas notícias, levou vários dias para reunir os outros porta-vozes do
conselho. Era o auge da temporada de trutas cabeças-duras, o final do verão, e os
últimos barcos estavam na água para conseguir uma grande pesca para a última
caravana de mercadores de Luskan. Os porta-vozes das nove aldeias de pescadores
entendiam suas responsabilidades para com a comunidade, mas relutavam em
deixar os lagos mesmo que por um único dia.
E assim, com as exceções de Cassius de Bryn Shander, Muldoon, o novo porta-voz
de Bosque Solitário que via Regis como o herói de sua cidade, Glensather de
Refúgio Leste, a comunidade sempre disposta a se juntar para o bem de Dez-
Burgos, e Agorwal de Termalaine, que detinha uma feroz lealdade a Bruenor, o
humor do conselho não era muito receptivo.
Kemp, ainda rancoroso contra Bruenor pelo incidente com Drizzt depois da Batalha
de Bryn Shander, estava especialmente dedicado a atrapalhar. Antes que Cassius
tivesse a oportunidade de apresentar as Formalidades da Ordem, o grosseiro porta-
voz de Targos saltou de seu assento e bateu os punhos na mesa.
— Dane-se as leituras formais e acabe logo com isso! — Kemp rosnou. — Com
que direito nos ordena a sair dos lagos, Cassius? Enquanto estamos sentados ao
redor desta mesa, os mercadores de Luskan estão se preparando para a jornada
deles!
— Temos notícias de uma invasão, Porta-Voz Kemp — Cassius respondeu
calmamente, entendendo a raiva do pescador. — Eu não teria convocado você,
nenhum de vocês, neste momento da temporada, se não fosse urgente.
— Então os rumores são verdadeiros — Kemp zombou. — Uma invasão, você diz?
Hah. Eu vejo além desta farsa de conselho!
Ele se virou para Agorwal. A disputa entre Targos e Termalaine havia aumentado
nas últimas semanas, apesar dos esforços de Cassius para amenizá-la e trazer os
porta-vozes das cidades em guerra para a mesa de negociações. Agorwal
concordara com uma reunião, mas Kemp era firmemente contra isso. E assim, com
as suspeitas altas, o momento desse conselho urgente não poderia ter sido pior.
— Esta é uma tentativa lamentável, de fato! — Kemp rugiu. Ele olhou ao redor para
seus colegas porta-vozes. — Um esforço lamentável por parte de Agorwal e seus
conspiradores para conseguir um acordo favorável para Termalaine em sua disputa
com Targos!
Incitado pela aura de suspeita que Kemp levantara, Schermont, o novo porta-voz de
Caer-Konig, apontou um dedo acusador contra Jensin Brent, de Caer-Dineval.
— Que papel você teve nessa traição? — ele cuspiu em seu amargo rival.
Schermont assumira seu cargo depois que o primeiro porta-voz de Caer-Konig foi
morto nas águas de Lac Dinneshere em uma batalha com um barco de Dineval.
Dorim Lugar era amigo e líder de Schermont, e as políticas do novo porta-voz em
odiar Caer-Dineval eram ainda mais rígidas do que as de seu antecessor.
Regis e Bruenor sentaram-se em silêncio, consternados com todas as brigas iniciais.
Finalmente, Cassius bateu com o martelo, quebrando a empunhadura ao meio e
acalmando os outros por tempo suficiente para dar seu argumento.
— Alguns momentos de silêncio! — ele ordenou. — Segure suas palavras
venenosas e ouça o mensageiro de notícias sombrias! — Os outros voltaram para
seus lugares e permaneceram em silêncio, mas Cassius temia que o dano já tivesse
sido feito.
Ele passou a palavra para Regis.
Honestamente aterrorizado com o que aprendera com o orc capturado, Regis contou
com paixão a batalha que seus amigos conquistaram sobre o covil verbeeg e sobre a
grama de Queda do Vale:
— E Bruenor capturou um dos orcs que estava escoltando os gigantes — disse
enfaticamente. Alguns dos porta-vozes prenderam a respiração com a ideia de tais
criaturas se unindo, mas Kemp e alguns dos outros, sempre desconfiados das
ameaças mais imediatas de seus rivais e já decididos sobre o verdadeiro propósito
da reunião, continuaram não convencidos.
— O orc nos contou — continuou Regis sombriamente — sobre a chegada de um
poderoso mago, Akar Kessell e seu vasto exército de goblins e gigantes! Eles
querem conquistar Dez-Burgos! — Ele achava que sua dramatização seria eficaz,
mas Kemp ficou indignado.
— A palavra de um orc, Cassius? Você nos chamou dos lagos neste momento
crítico por causa da ameaça de um orc fedorento?
— Essa história do halfling não é incomum — acrescentou Schermont. — Todos
nós já ouvimos um goblin capturado abanar a língua em qualquer direção se achasse
que poderia salvar sua cabeça sem valor.
— Ou talvez você tivesse outros motivos — Kemp sibiliou, novamente olhando
para Agorwal.
Cassius, embora acreditasse verdadeiramente nas notícias sombrias, recostou-se na
cadeira e não disse nada. Com as tensões nos lagos tão altas e a última feira
comercial de uma estação de pesca infrutífera se aproximando rápido, ele suspeitara
que isso ocorreria. Ele olhou resignado para Bruenor e Regis, e deu de ombros
quando mais uma vez o conselho degenerou em uma competição de gritos.
Em meio à comoção que se seguiu, Regis tirou o pingente de rubi de debaixo do
colete e cutucou Bruenor. Eles olharam um para o outro, desapontados; eles
esperavam que a pedra mágica não fosse necessária.
Regis bateu o martelo em uma chamada pela palavra e a teve concedida por
Cassius. Então, como havia feito cinco anos antes, ele pulou na mesa e caminhou
em direção ao seu principal antagonista.
Mas desta vez o resultado não foi o que Regis esperava. Kemp havia passado
muitas horas nos últimos cinco anos refletindo sobre aquele conselho antes da
invasão dos bárbaros. O porta-voz ficou contente com o resultado de toda aquela
situação e, na verdade, percebeu que ele e toda a Dez-Burgos estavam em dívida
com o halfling por fazê-los atender a sua advertência. No entanto, incomodava
Kemp que sua postura inicial tivesse sido tão facilmente influenciada. Ele era um
tipo briguento, cujo primeiro amor, mesmo acima da pesca, era a batalha, mas sua
mente estava atenta e sempre alerta ao perigo. Ele observara Regis várias vezes nos
últimos anos e ouvira com atenção as histórias das proezas do halfling na arte da
persuasão. Quando Regis se aproximou, o corpulento porta-voz desviou os olhos.
— Saia daqui, trapaceiro! — ele rosnou, empurrando a cadeira defensivamente para
trás — Você parece ter um jeito estranho de convencer as pessoas do seu ponto de
vista, mas não vou cair sob o seu feitiço desta vez! — ele se dirigiu aos outros
porta-vozes. — Cuidado com o halfling! Ele tem alguma magia, tenham certeza!
Kemp entendeu que não teria como provar suas afirmações, mas também percebeu
que não precisaria fazê-lo. Regis olhou em volta, confuso e incapaz de sequer
responder às acusações do porta-voz. Mesmo Agorwal, embora tentasse dissimular
o fato, não mais olhava Regis diretamente nos olhos.
— Sente-se, trapaceiro! — Kemp provocou. — Sua magia não é boa quando
sabemos o que esperar de você!
Bruenor, silencioso até agora, subitamente saltou, com o rosto contorcido de raiva.
— Isso também é um truque, cão de Targos? — o anão desafiou. Ele puxou um saco
do cinto e rolou seu conteúdo, uma cabeça verbeeg cortada, descendo a mesa em
direção a Kemp. Vários porta-vozes pularam horrorizados, mas Kemp permaneceu
inabalável.
— Já lidamos com gigantes desgarrados muitas vezes — respondeu friamente o
porta-voz.
— Desgarrados? — Bruenor ecoou incrédulo. — Tombamos quarenta desses
monstros, além de orcs e ogros!
— Um bando de passagem — explicou Kemp, teimosamente. — E todos mortos,
pelo que você disse. Por que, então, isso se torna uma questão para o conselho? Se é
louvores que você deseja, poderoso anão, então você deve tê-los! — sua voz
gotejava de veneno e ele observou o rosto avermelhado de Bruenor com profundo
prazer. — Talvez Cassius possa fazer um discurso em sua honra diante de todas as
pessoas de Dez-Burgos.
Bruenor bateu com os punhos na mesa, olhando para todos os homens à sua volta,
em uma ameaça aberta a qualquer um que continuasse com os insultos de Kemp.
— Nós viemos até vocês para ajudá-los a salvar suas casas e seus parentes! — ele
rugiu. — Pode ser que vocês acreditem em nós e façam algo para sobreviver. Ou
pode ser que vocês ouçam a palavra do cão de Targos e não façam nada. De
qualquer forma, já cansei de vocês! Façam como quiserem, e que os deuses
mostrem seu favor! — ele se virou e saiu da sala.
O tom sombrio de Bruenor levou muitos dos porta-vozes a perceberem que a
ameaça era simplesmente grave demais para ser passada como a mentira de um
cativo desesperado ou até mesmo como um plano mais insidioso de Cassius e
alguns conspiradores. No entanto, Kemp, orgulhoso e arrogante, e certo de que
Agorwal e seus amigos não-humanos, o halfling e o anão, estavam usando a
fachada de uma invasão para obter alguma vantagem sobre a cidade superior de
Targos, não voltaria atrás. Perdendo apenas para Cassius em toda a Dez-Burgos, a
opinião de Kemp tinha grande peso, especialmente para o povo de Caer-Konig e
Caer-Dineval, que, à luz da inabalável neutralidade de Bryn Shander em sua
disputa, procuravam o favor de Targos.
Porta-vozes demais continuavam desconfiados de seus rivais e estavam dispostos a
aceitar a explicação de Kemp para impedir que Cassius levasse o conselho a uma
ação decisiva. Os limites logo ficaram definidos.
Regis observou o espetáculo enquanto os lados opostos voavam para a frente e para
trás, mas a credibilidade do halfling tinha sido destruída e ele não teve impacto no
resto da reunião. No final, pouco foi decidido. O máximo que Agorwal, Glensather
e Muldoon conseguiram extrair de Cassius foi uma declaração pública de que “uma
advertência geral deveria ir a todos os lares de Dez-Burgos. Que as pessoas saibam
de nossas notícias sombrias e que tenham certeza de que abrirei espaço dentro das
paredes de Bryn Shander para todas as pessoas que desejarem nossa proteção.”
Regis olhou para os porta-vozes divididos. Sem unidade, o halfling se perguntou
quanta proteção até mesmo os altos muros de Bryn Shander poderiam oferecer.
CAPÍTULO 20

Um Escravo de Ninguém

— SEM DISCUTIR — rosnou Bruenor, embora nenhum dos quatro amigos ao seu
lado nas encostas rochosas da subida tivesse intenção de falar contra a decisão. Em
sua tola mesquinhez, a maioria dos porta-vozes havia condenado suas comunidades
à destruição quase certa e Drizzt, Wulfgar, Cattibrie e Regis não esperavam que os
anões se unissem a uma causa tão irremediável.
— Quando você vai bloquear as minas? — perguntou Drizzt. O drow ainda não
havia decidido se ele se juntaria aos anões na prisão autoimposta de suas cavernas,
mas planejara agir como batedor de Bryn Shander pelo menos até o exército de
Akar Kessell vir para a região.
— Os preparativos começarão esta noite — disse Bruenor. — Mas quando que tudo
estiver no lugar, não vamos ter pressa. Vamos deixar os orcs fedorentos mirarem nas
nossas gargantas antes de derrubarmos os túneis e pegá-los na queda. Você vai ficar
conosco?
Drizzt deu de ombros. Embora ainda fosse evitado pela maioria das pessoas de Dez-
Burgos, o drow sentia um forte senso de lealdade e não sabia se conseguiria dar as
costas ao seu lar escolhido, mesmo em circunstâncias suicidas. E Drizzt tinha pouca
vontade de retornar ao submundo sem luz, mesmo nas cavernas hospitaleiras da
cidade dos anões.
— E qual é a sua decisão? — Bruenor perguntou a Regis.
O halfling também estava dividido entre seus instintos de sobrevivência e sua
lealdade a Dez-Burgos. Com a ajuda do rubi, vivera bem nos últimos anos em Maer
Dualdon. Mas agora sua cobertura havia sido arrancada. Depois dos rumores saídos
do conselho, todos em Bryn Shander sussurravam sobre a influência mágica do
halfling. Não demoraria muito para que todas as comunidades soubessem das
acusações de Kemp e o evitassem, ou até mesmo o acusassem abertamente. De
qualquer maneira, Regis sabia que seus dias de vida fácil em Bosque Solitário
estavam chegando ao fim.
— Obrigado pelo convite — disse a Bruenor. — Eu vou entrar antes que Kessell
chegue.
— Bom — respondeu o anão. — Você vai ter um quarto perto do quarto do garoto,
pra nenhum dos anões ter que ouvir sua barriga roncar! — ele deu a Drizzt uma
piscadela bem humorada.
— Não — disse Wulfgar. Bruenor olhou para ele com curiosidade, entendendo mal
as intenções do bárbaro e se perguntando por que ele se opunha a ter Regis ao seu
lado.
— Cuidado, garoto — brincou o anão. — Se você acha que deve ficar ao lado da
garota, vai ter que pensar em desviar a cabeça do meu machado!
Cattibrie riu baixinho, envergonhada, mas verdadeiramente tocada.
— Suas minas não são lugar para mim — disse Wulfgar de repente. — Minha vida
está na planície.
— Você esquece que sua vida é minha! — rebateu Bruenor. Na verdade, seus gritos
eram mais fruto do pavio curto de um pai do que da indignação de um mestre.
Wulfgar levantou-se diante do anão, orgulhoso e severo. Drizzt entendeu e ficou
satisfeito. Agora Bruenor também fazia ideia do que o bárbaro estava dizendo e,
embora odiasse pensar em separação, sentia mais orgulho do garoto naquele
momento do que nunca.
— Meu tempo de servidão não terminou — começou Wulfgar — no entanto, já
paguei minha dívida a você, meu amigo, e ao seu povo muitas vezes. Eu sou
Wulfgar! — proclamou orgulhosamente, com sua mandíbula firme e seus músculos
tensos. — Não mais um garoto, mas um homem! Um homem livre!
Bruenor sentiu os olhos ficando úmidos. Pela primeira vez, não fez nada para
esconder. Ele parou diante do imenso bárbaro e retribuiu o olhar inflexível de
Wulfgar com um olhar de sincera admiração.
— Você é — Bruenor observou. — Então eu poderia perguntar se, por sua escolha,
você ficaria e lutaria ao meu lado?
Wulfgar balançou a cabeça.
— Minha dívida com você foi paga, de verdade. E para sempre eu vou te chamar de
amigo. Um amigo querido. Mas tenho outra dívida ainda a pagar. — Olhou para o
Sepulcro de Kelvin e além. As inúmeras estrelas brilhavam claramente sobre a
tundra, fazendo a planície aberta parecer ainda mais vasta e vazia. — Lá fora, em
outro mundo!
Cattibrie suspirou e se mexeu, desconfortável. Só ela entendia completamente o
quadro vago que Wulfgar estava pintando. E não estava satisfeita com a escolha
dele.
Bruenor assentiu, respeitando a decisão do bárbaro.
— Vá, então e viva bem — disse ele, esforçando-se para manter sua voz embargada
firme enquanto ia na direção da trilha rochosa. Ele parou por um último momento e
olhou para o bárbaro jovem e alto. — Você é um homem, não há quem discuta isso
— disse por cima do ombro. — Mas nunca se esqueça de que você sempre será meu
garoto!
— Não irei — sussurrou Wulfgar suavemente enquanto Bruenor desaparecia no
túnel. Ele sentiu a mão de Drizzt em seu ombro.
— Quando você sai? — perguntou o drow.
— Hoje à noite — respondeu Wulfgar. — Estes dias sombrios não são divertidos.
— E para onde você vai? — perguntou Cattibrie, já sabendo da verdade, e também
da vaga resposta que Wulfgar daria.
O bárbaro voltou o olhar enevoado para a planície.
— Para casa.
Ele começou a descer a trilha, com Regis o seguindo. Mas Cattibrie esperou atrás e
fez sinal para Drizzt fazer o mesmo.
— Diga adeus a Wulfgar esta noite — disse ela ao drow. — Eu não acredito que ele
vá retornar.
— Lar é um lugar que ele deve escolher — respondeu Drizzt, supondo que as
notícias sobre Heafstaag se juntando a Kessell tivessem algo a ver com a decisão de
Wulfgar. Ele observou o bárbaro que partia com respeito. — Ele tem alguns
assuntos pessoais para tratar.
— Mais do que você sabe — disse Cattibrie. Drizzt olhou para ela com curiosidade.
— Wulfgar tem uma aventura em mente — explicou. Não pretendia quebrar a
confiança de Wulfgar, mas imaginou que Drizzt Do’Urden, acima de qualquer outra
pessoa, poderia encontrar uma maneira de ajudar.— Uma que acredito ter sido
colocada diante dele antes que estivesse pronto.
— Assuntos da tribo são problema dele — disse Drizzt, adivinhando o que a garota
estava sugerindo. — Os bárbaros têm seus próprios caminhos e não aceitam
estrangeiros.
— Das tribos, eu concordo — disse Cattibrie. — No entanto, o caminho de
Wulfgar, a menos que eu esteja enganada, não leva diretamente para casa. Ele tem
outra coisa diante dele, uma aventura que muitas vezes ele deu a entender, mas
nunca explicou completamente. Só sei que envolve um grande perigo e uma
promessa que mesmo ele teme estar acima de sua capacidade de cumprir sozinho.
Drizzt olhou para a planície estrelada e considerou as palavras da garota. Ele sabia
que Cattibrie era perspicaz e observadora além do que se podia esperar de sua
idade. Não duvidou dos palpites dela.
As estrelas brilhavam acima da noite fria, a cúpula celestial engolfando a borda
plana do horizonte. Um horizonte ainda não marcado pelo fogo de um exército que
avançava, observou Drizzt.
Talvez tivesse tempo.

Embora a proclamação de Cassius tenha atingido até a mais remota das cidades em
dois dias, poucos grupos de refugiados desciam as estradas para Bryn Shander.
Cassius já esperava por isso, ou nunca teria feito a ousada oferta de abrigar todos os
que viriam.
Bryn Shander era uma cidade de tamanho razoável, e sua população atual não era
tão grande quanto fora. Havia muitos prédios vazios dentro das muralhas e uma
seção inteira da cidade, reservada para as caravanas de comerciantes, estava
desocupada no momento. No entanto, se metade das pessoas das outras nove
comunidades buscasse refúgio, Cassius teria dificuldades em honrar sua promessa.
O porta-voz não estava preocupado. O povo de Dez-Burgos era um povo
endurecido e vivia sob a ameaça da invasão de goblins todos os dias. Cassius sabia
que seria necessário mais do que um aviso abstrato para fazê-los sair de seus lares.
E com a lealdade entre as cidades em um ponto tão baixo, poucos líderes das
cidades fariam alguma coisa para convencer seu povo a fugir.
No fim das contas, Glensather e Agorwal foram os únicos porta-vozes a chegar aos
portões de Bryn Shander. Quase todo Refúgio Leste estava atrás do líder, mas
Agorwal tinha menos da metade do povo de Termalaine atrás dele. Os rumores da
arrogante cidade de Targos, quase tão bem defendida quanto Bryn Shander,
deixaram claro que nenhum de seus habitantes partiria. Muitos dos pescadores de
Termalaine, temendo a vantagem econômica que os Targos obteriam sobre eles,
recusaram-se a desistir do mês mais lucrativo da temporada de pesca.
Esse também foi o caso de Caer-Konig e Caer-Dineval. Nenhum dos inimigos
declarados ousou dar qualquer vantagem ao outro, e nem uma única pessoa de
ambas as cidades fugiu para Bryn Shander. Para essas comunidades em conflito, os
orcs eram apenas uma ameaça distante, a ser enfrentada se algum dia se
concretizasse, mas a luta com seus vizinhos imediatos era brutalmente real e
evidente em suas rotinas diárias.
A oeste, a cidade de Bremen permaneceu ferozmente independente das outras
comunidades, vendo a oferta de Cassius como uma tentativa fraca de Bryn Shander
de reafirmar sua posição de liderança. Bom Prado e Toca de Dougan, ao sul, não
tinham intenção de se esconder na cidade murada ou de enviar tropas para ajudar no
combate. Essas duas cidades em Águas Rubras, o menor dos lagos e o mais pobre
em termos de trutas cabeça-dura, não podiam se dar ao luxo de passar qualquer
tempo longe dos barcos. Haviam atendido ao apelo à unidade cinco anos antes, sob
a ameaça de uma invasão bárbara, e, embora tivessem sofrido as piores perdas,
foram os que menos ganharam. Vários grupos chegaram de Bosque Solitário, mas
muitas pessoas da cidade mais ao norte preferiram ficar fora do caminho. O herói
deles havia perdido prestígio, e até Muldoon agora via o halfling sob uma luz
diferente e via o aviso de invasão como um mal-entendido ou talvez até uma farsa
calculada.
O bem maior da região caíra diante dos ganhos pessoais menores de um orgulho
teimoso, com a maioria das pessoas das Dez-Burgos confundindo unidade com
dependência.

Regis retornou a Bryn Shander para fazer alguns arranjos pessoais na manhã
seguinte à partida de Wulfgar. Ele tinha um amigo vindo de Bosque Solitário com
seus valiosos pertences, então permaneceu na cidade, observando consternado os
dias passarem sem nenhum preparo real sendo feito para enfrentar o exército
vindouro. Mesmo depois do conselho, o halfling tinha alguma esperança de que o
povo percebesse a destruição iminente e se unisse, mas agora acreditava que a
decisão dos anões de abandonar Dez-Burgos e se trancar em suas minas era a única
opção que tinham se quisessem sobreviver.
Regis culpou-se parcialmente pela tragédia que se aproximava, convencido de que
havia se descuidado. Quando ele e Drizzt planejaram usar situações políticas e o
poder do rubi para forçar as cidades a se unirem contra os bárbaros, passaram
muitas horas prevendo as respostas iniciais dos porta-vozes e avaliando o valor da
aliança de cada cidade. Dessa vez, porém, Regis havia depositado mais fé no povo
de Dez-Burgos e na pedra, imaginando que poderia simplesmente empregar seu
poder para influenciar qualquer um dos poucos que duvidassem da gravidade da
situação.
No entanto, Regis não pôde sustentar sua própria culpa ao ouvir as respostas
arrogantes e desconfiadas que vieram das cidades. Por que deveria ter que induzir
as pessoas a se defenderem? Se eles eram estúpidos o suficiente para deixar seu
próprio orgulho provocar sua destruição, então que responsabilidade, ou mesmo que
direito, ele tinha de resgatá-los?
— Você tem o que merece! — disse o halfling em voz alta, sorrindo apesar de tudo
quando percebeu que estava começando a soar tão cínico quanto Bruenor.
Mas a insensibilidade era sua única proteção contra uma situação em que estava tão
impotente. Ele esperava que seu amigo de Bosque Solitário chegasse em breve.
Seu santuário estava debaixo da terra.

Akar Kessell estava sentado no trono de cristal do Salão de Vidência, o terceiro


andar de Cryshal-Tirith, os dedos nervosos batendo no braço da grande cadeira
enquanto olhava atentamente para o espelho escuro diante dele. Carranca estava
muito atrasado com o relatório sobre a caravana de reforço. A última convocação
que o mago recebera do covil havia sido suspeita, sem ninguém no outro lado para
receber sua resposta. Agora, o espelho no covil revelava apenas escuridão,
resistindo a todas as tentativas do mago de espiar a sala.
Se o espelho tivesse sido quebrado, Kessell seria capaz de sentir a mudança em suas
visões. Mas isso era mais misterioso, pois algo que ele não conseguia entender
estava bloqueando sua visão à distância. O dilema o enervava, o fazia pensar que
havia sido enganado ou descoberto. Seus dedos continuaram a bater nervosamente.
— Talvez seja hora de tomar uma decisão — sugeriu Errtu, em seu lugar habitual ao
lado do trono do mago.
— Ainda não atingimos nossa força máxima — Kessell respondeu. — Muitas tribos
de goblins e um grande clã de gigantes não chegaram. E os bárbaros ainda não estão
prontos.
— As tropas estão sedentas pela batalha — apontou Errtu. — Eles lutam entre si.
Você poderá ver seu exército logo se desmoronando ao seu redor!
Kessell concordava que manter tantas tribos de goblins por muito tempo era uma
proposta arriscada e perigosa. Talvez fosse melhor se marchassem de uma vez. Mas,
ainda assim, o mago queria ter certeza. Queria que suas forças estivessem o mais
poderosas possível.
— Onde está Carranca? — lamentou Kessell. — Por que ele não respondeu às
minhas convocações?
— Que preparativos os humanos estão fazendo agora? — Errtu perguntou
abruptamente.
Mas Kessell não estava ouvindo. Ele esfregou o suor do rosto. Talvez o fragmento e
o demônio tivessem razão em enviar os bárbaros menos suspeitos ao covil. O que os
pescadores deveriam estar pensando se encontraram uma combinação tão incomum
de monstros em sua área? Quanto teriam adivinhado?
Errtu notou o desconforto de Kessell com uma satisfação sombria.
O demônio e o fragmento estavam pressionando Kessell a atacar muito mais cedo,
assim que as mensagens de Carranca pararam de chegar. Mas o mago covarde,
necessitando de mais garantia de que seus números eram avassaladores, continuava
a procrastinar.
— Devo ir até as tropas? — Errtu perguntou, confiante de que a resistência de
Kessell se fora.
— Envie mensageiros aos bárbaros e às tribos que ainda não se juntaram a nós —
instruiu Kessell. — Diga a eles que lutar ao nosso lado é se juntar ao banquete da
vitória! Mas aqueles que não lutarem ao nosso lado cairão diante de nós! Amanhã
marcharemos!
Errtu saiu correndo da torre sem demora, e logo comemorações pelo início da
guerra ecoaram por todo o enorme acampamento. Goblins e gigantes corriam
empolgados, desfazendo tendas e empacotando suprimentos. Eles haviam
antecipado esse momento por longas semanas e agora não perdiam tempo em fazer
os preparativos finais.
Naquela mesma noite, o vasto exército de Akar Kessell levantou acampamento e
começou sua longa marcha em direção a Dez-Burgos.
De volta ao covil dos verbeegs, o espelho estava imóvel e intacto, coberto com
segurança pelo cobertor pesado que Drizzt Do’Urden havia jogado sobre ele.
Epílogo

ELE CORREU SOB O SOL BRILHANTE DO DIA, correu sob as estrelas pálidas
da noite, sempre com o vento leste no rosto. Suas pernas compridas e passos longos
o carregavam incansavelmente, um mero grão em movimento na planície vazia. Por
dias, Wulfgar forçou ao máximo os limites de sua resistência, caçando e comendo
enquanto corria, parando apenas quando a exaustão o derrubava.
Muito ao sul dele, saindo da Espinha do Mundo como uma nuvem tóxica de
vapores malcheirosos, vieram as forças de goblins e gigantes de Akar Kessell. Com
mentes dobradas pela força de vontade do Fragmento de Cristal, queriam apenas
matar, apenas destruir. Apenas agradar Akar Kessell.
A três dias do vale dos anões, o bárbaro se deparou com as trilhas desordenadas de
muitos guerreiros, todas levando a um destino comum. Ele ficou feliz por poder
encontrar seu povo com tanta facilidade, mas a presença de tantas trilhas dizia que
as tribos estavam se reunindo, fato que apenas enfatizava a urgência de sua missão.
Impulsionado pela necessidade, avançou.
Não era o cansaço, mas a solidão que era o maior inimigo de Wulfgar.
Ele lutou muito para manter seus pensamentos no passado durante longas horas,
recordando seu juramento ao pai morto e contemplando as possibilidades de suas
vitórias. Evitou qualquer pensamento sobre seu caminho atual, entendendo que o
puro desespero de seu plano acabaria com sua determinação.
No entanto, essa era sua única chance. Ele não era de sangue nobre e não tinha
Direitos de Desafio contra Heafstaag. Mesmo que derrotasse o rei escolhido,
ninguém de seu povo o reconheceria como líder. A única maneira de alguém como
ele legitimar uma reivindicação ao reinado tribal era através de um ato de
proporções heroicas.
Ele seguiu em direção ao mesmo objetivo que havia atraído muitos possíveis reis
antes dele para suas mortes. E, nas sombras atrás dele, navegando com a graciosa
facilidade que marcava sua raça, vinha Drizzt Do’Urden.
Sempre para o leste, em direção à Geleira Reghed e um lugar chamado Degelo
Eterno.
Em direção ao covil de Ingeloakastimizilian, o dragão branco que os bárbaros
simplesmente chamavam de “Morde Gélida”.
Parte 3

Cryshal Tirith

O QUE WULFGAR VÊ QUANDO OLHA PARA A TUNDRA, quando seus olhos


azuis cristalinos encaram a planície escura até os pontos de luz que marcam as
fogueiras no acampamento de seu povo?
Será que ele vê o passado, talvez, com um desejo de voltar a esse lugar e a suas
tradições? Será que vê o presente, comparando o que aprendeu comigo e Bruenor
com aquelas duras lições de vida entre os membros das tribos nômades?
Ou será que Wulfgar vê o futuro, o potencial de mudança, para trazer maneiras
novas e melhores ao seu povo?
Um pouco dos três, eu acho. Essa é a turbulência em Wulfgar, suspeito, o fogo
fervendo por trás daqueles olhos azuis. Ele luta com tanta paixão! Parte disso vem
de sua educação entre os ferozes homens de sua tribo, as brincadeiras de guerra dos
meninos bárbaros, muitas vezes sangrentas, às vezes até fatais. Parte dessa paixão
pela batalha deriva do tumulto interno de Wulfgar, a frustração que deve sentir
quando contrasta suas lições nas minhas mãos e nas mãos de Bruenor com as
obtidas em seus anos entre seu próprio povo.
O povo de Wulfgar invadiu Dez-Burgos, investiu com raiva impiedosa, pronto para
matar qualquer um que estivesse no seu caminho sem pensar duas vezes. Como
Wulfgar reconcilia essa verdade com o fato de Bruenor Martelo de Batalha não o
deixar morrer no campo, de que o anão o salvou, embora ele houvesse tentado
matar Bruenor em batalha (embora o jovem tolo houvesse cometido o erro de
golpear Bruenor na cabeça!)? Como Wulfgar reconcilia o amor que Bruenor lhe
mostrou contra suas noções anteriores de anões como inimigos odiosos e
impiedosos? Pois é assim que os bárbaros de Vale do Vento Gélido certamente
veem os anões, uma mentira que perpetuam entre si para que possam justificar seus
modos assassinos de invasão. Não é tão diferente das mentiras que os drow dizem a
si mesmos para justificar seu ódio por qualquer um que não seja drow.
Mas agora Wulfgar foi confrontado com a verdade sobre Bruenor e os anões.
Irrevogavelmente. Ele deve pesar essa revelação pessoal contra toda a “verdade”
que ele passou aprendendo durante seus anos de infância. Deve vir a aceitar que o
que seus pais e todos os anciãos da tribo lhe disseram eram mentiras. Sei por
experiência pessoal que isso não é algo fácil de se conciliar. Porque fazer isso é
admitir que grande parte de sua própria vida não passou de uma mentira, que grande
parte daquilo que faz de você quem você é está errada. Reconheci os males de
Menzoberranzan bem cedo, porque seus ensinamentos iam contra a lógica e contra
o que estava em meu coração. Ainda que esses erros fossem dolorosamente óbvios,
os primeiros passos que me levaram para fora de minha terra natal não foram fáceis.
Os erros dos bárbaros do Vale do Vento Gélido empalidecem em comparação com
os dos drow, e por isso os passos que Wulfgar deve dar para se afastar
emocionalmente de seu povo serão ainda mais difíceis, temo eu. Há de longe muito
mais verdade nos modos dos bárbaros, mais justificativa para suas ações, por mais
bélicas que sejam, mas cabe aos fortes e dolorosamente jovens ombros de Wulfgar
diferenciar os modos de seu povo e os de seus novos amigos, aceitar compaixão e
aceitação acima dos sólidos muros de preconceito que tanto encapsularam toda a
sua juventude.
Não invejo ele ou a tarefa diante dele, a confusão, a frustração.
É bom que ele lute todos os dias – eu só rezo para que, de maneira cega, durante
essa frustração, meu companheiro de lutas não arranque a cabeça dos meus ombros.
— Drizzt Do’Urden
Capítulo 21

A Tumba de Gelo

NA BASE DA GRANDE GELEIRA, escondida em um pequeno vale onde um dos


esporões de gelo serpenteia através de fendas e pedregulhos, havia um lugar que os
bárbaros chamavam de Degelo Eterno. Uma fonte termal alimentava uma pequena
piscina, e as águas aquecidas travavam uma batalha implacável contra blocos de
gelo e temperaturas congelantes. Homens da tribo presos no interior por causa das
nevascas surpresas que não conseguiam encontrar o caminho para o mar com o
rebanho de renas procuravam refúgio em Degelo Eterno, pois mesmo nos meses
mais frios do inverno podiam encontrar ali água descongelada para sustentá-los. E
os vapores quentes da piscina tornavam as temperaturas da área imediata
suportáveis, se não confortáveis. No entanto, o calor e a água potável eram apenas
uma parte do valor de Degelo Eterno.
Sob a superfície opaca da água enevoada, havia um tesouro de gemas e joias, ouro e
prata, que rivalizavam com o tesouro de qualquer rei em toda a região do mundo.
Todos os bárbaros ouviram falar da lenda do dragão branco, mas a maioria
considerava ser apenas um conto fantasioso narrado por velhos para a diversão das
crianças, pois o dragão não havia emergido de seu covil escondido em muitos,
muitos anos.
Wulfgar sabia mais do que a maioria, no entanto. Na juventude, seu pai tropeçara
acidentalmente na entrada da caverna secreta. Mais tarde, quando Beornegar
aprendeu a lenda do dragão, descobriu o potencial de sua descoberta e passou anos
coletando todas as informações que pôde encontrar sobre dragões, especialmente
dragões brancos, e Ingeloakastimizilian em particular.
Beornegar havia sido morto em uma batalha entre tribos antes que pudesse tentar
alcançar o tesouro, mas vivendo em uma terra onde a morte era um visitante
comum, ele havia previsto essa possibilidade sombria e transmitido seu
conhecimento ao filho. O segredo não morreu com ele.


Wulfgar derrubou um cervo com um golpe de Presa de Égide e carregou o animal
pelos últimos quilômetros até Degelo Eterno. Já havia estado naquele lugar duas
vezes, mas quando chegou lá, sua estranha beleza roubou seu fôlego como sempre.
O ar acima da piscina estava coberto de vapor, e pedaços de gelo flutuavam pelas
águas enevoadas como navios fantasmas sinuosos. Os enormes pedregulhos que
cercavam a área eram especialmente coloridos, com tons variados de vermelho e
laranja, e estavam encapsulados em uma fina camada de gelo que pegava o fogo do
sol e refletia rajadas brilhantes de cores berrantes em contraste surpreendente com o
cinza morto da geleira enevoada. Era um lugar silencioso, protegido do choro
enlutado do vento por paredes de gelo e rocha, livre de qualquer distração.
Depois que seu pai foi morto, Wulfgar jurara, em homenagem a ele, fazer essa
jornada e realizar o sonho de seu pai. Agora ele se aproximava da piscina com
reverência e, embora outros assuntos o pressionassem, parou para refletir.
Guerreiros de todas as tribos da tundra haviam chegado a Degelo Eterno com as
mesmas esperanças. Ninguém nunca havia retornado.
O jovem bárbaro resolveu mudar isso. Firmou sua mandíbula orgulhosa e começou
a retirar o couro do cervo. A primeira barreira que teria que superar era a própria
piscina de água quente. Sob sua superfície, as águas eram enganosamente quentes e
confortáveis, mas quem emergisse da piscina para o ar seria congelado até a morte
em questão de minutos.
Wulfgar arrancou o couro do animal e começou a raspar a camada subjacente de
gordura. Ele a derreteu em uma pequena fogueira até atingir a consistência da tinta
espessa, depois a espalhou sobre cada centímetro do corpo. Respirando fundo para
se firmar e focar seus pensamentos na tarefa em mãos, ele pegou Presa de Égide e
entrou em Degelo Eterno.
Sob o véu mortal da névoa, as águas pareciam serenas, mas assim que se afastou
das margens, Wulfgar pôde sentir as fortes e agitadas correntes da água quente.
Usando uma saliência de pedra como guia, se aproximou do centro exato da piscina.
Uma vez lá, respirou fundo uma última vez. Confiante nas instruções de seu pai,
soltou-se nas correntes e deixou-se afundar na água. Desceu por um momento, e de
repente foi arrastado pelo fluxo principal em direção ao extremo norte da piscina.
Mesmo sob a névoa, a água estava nublada, forçando Wulfgar a confiar cegamente
que se soltaria da água antes que seu fôlego acabasse.
Ele estava a poucos metros da parede de gelo na beira da piscina antes que pudesse
ver o perigo. Ele se preparou para a colisão, mas a corrente de repente girou,
enviando-o mais fundo. A escuridão ficou total quando entrou em uma abertura
oculta sob o gelo, larga o suficiente apenas para ele passar, embora o fluxo
incessante do córrego não lhe desse opção.
Seus pulmões gritavam por ar. Ele mordeu o lábio para impedir que sua boca se
abrisse e lhe roubasse as últimas porções de precioso oxigênio.
Ele então entrou em um túnel mais amplo, onde a água escorria e caía abaixo do
nível de sua cabeça. Ele arfou, ávido por ar, mas ainda deslizava impotente na água
corrente.
Um perigo havia passado.
A corrente girou e revirava, e o rugido de uma cachoeira soou claramente à frente.
Wulfgar tentou reduzir a velocidade, mas não conseguiu encontrar um apoio para as
mãos ou para o corpo, pois o chão e as paredes eram de gelo alisado ao longo de
séculos de corrente. O bárbaro sacudiu loucamente, com Presa de Égide voando de
suas mãos enquanto tentava afundá-lo no gelo sólido sem conseguir. Ele entrou em
uma caverna larga e profunda e viu a queda diante dele.
Alguns metros além da crista da queda, havia vários pingentes de gelo enormes que
se estendiam do teto abobadado abaixo da linha de visão de Wulfgar. Ele viu sua
única chance. Quando se aproximou da borda da queda, saltou, envolvendo os
braços em torno de um dos pingentes de gelo. Escorregou logo, uma vez que o
pingente se afunilava, mas viu que se alargava novamente ao se aproximar do chão,
como se um segundo pingente tivesse crescido do chão para encontrá-lo.
Seguro por um momento, olhou pela caverna estranha, admirado. A cachoeira
capturou sua imaginação. Vapor subia do abismo, adicionando um sabor surrealista
ao espetáculo. O riacho transbordava sobre a queda, a maior parte continuando em
um pequeno desfiladeiro, apenas uma rachadura no chão a dez metros abaixo na
base da queda. As gotículas que se afastavam do desfiladeiro, no entanto, se
solidificavam quando se separavam do fluxo principal do córrego e ricocheteavam
em todas as direções ao atingir o chão de gelo da caverna. Ainda não
completamente endurecidos, os pedaços de gelo grudavam rapidamente onde
aterrissavam, e por toda a base da cachoeira havia pilhas estranhamente esculpidas
de gelo quebrado.
Presa de Égide voou sobre a queda, passando facilmente pelo pequeno abismo para
esmagar uma dessas esculturas, espalhando fragmentos de gelo. Embora seus
braços estivessem entorpecidos após escorregar no pingente, Wulfgar correu para o
martelo, que já congelava rapidamente onde havia aterrissado, e o soltou das garras
do gelo.
Sob o chão vítreo onde o martelo rachara as camadas superiores, o bárbaro notou
uma sombra escura. Ele a examinou mais de perto, depois se afastou da visão
cinzenta. Perfeitamente preservado, um de seus antecessores aparentemente havia
percorrido a longa queda, morrendo no gelo profundo onde pousara. Quantos
outros, pensou Wulfgar, haviam encontrado o mesmo destino?
Ele não teve tempo para contemplar mais. Uma de suas outras preocupações havia
sido dissipada, pois grande parte do teto da caverna ficava a apenas poucos metros
abaixo da superfície iluminada pelo dia e o sol encontrou seu caminho através das
partes que eram puramente gelo. Até o menor brilho que vinha do teto era refletido
mil vezes nos pisos e paredes que lembravam vidro, e toda a caverna parecia
explodir em rajadas de luz cintilantes.
Wulfgar sentia muito frio, mas a gordura derretida o protegera o suficiente. Ele
sobreviveria aos primeiros perigos da aventura.
Mas o espectro do dragão pairava em algum lugar à frente.
Vários túneis sinuosos saíam da câmara principal, esculpidos pelo córrego em dias
há muito passados, quando suas águas corriam mais forte. Porém, apenas um deles
era grande o suficiente para um dragão. Wulfgar pensou em procurar pelos outros
antes, para ver se poderia encontrar um caminho menos óbvio para o covil. Mas o
brilho e as distorções da luz e os incontáveis pingentes de gelo pendurados no teto
como os dentes de um predador o atordoavam, e ele sabia que se se perdesse ou
desperdiçasse muito tempo, a noite chegaria, roubando a luz e diminuindo a
temperatura abaixo até mesmo de sua considerável tolerância.
Então, ele bateu com Presa de Égide no chão para limpar qualquer gelo restante
ainda agarrado e começou a seguir adiante pelo túnel que acreditava que o levaria
ao covil de Ingeloakastimizilian.

O dragão dormia profundamente ao lado de seu tesouro na maior câmara das


cavernas de gelo, confiante, após muitos anos de solidão, de que não seria
perturbado. Ingeloakastimizilian, mais conhecido como Morte Gélida, cometera o
mesmo erro que muitos de seus semelhantes, com suas tocas em cavernas de gelo
parecidas, haviam cometido. O riacho que oferecia entrada e saída das cavernas
havia diminuído ao longo dos anos, deixando o dragão preso em uma tumba
cristalina.
Morte Gélida desfrutara de seus anos caçando veados e humanos. No curto espaço
de tempo em que a fera esteve ativa, ganhara uma reputação bastante respeitável de
caos e terror. No entanto, dragões, especialmente os brancos que raramente são
ativos em seus ambientes frios, podem viver muitos séculos sem carne. Seu amor
egoísta ao tesouro pode sustentá-los indefinidamente, e o tesouro de Morte Gélida,
embora pequeno comparado aos vastos montes de ouro coletados pelos imensos
vermelhos e azuis que viviam em áreas mais populosas, era o maior do que o de
qualquer dragão das tundras.
Se o dragão realmente desejasse liberdade, provavelmente poderia ter rompido o
teto de gelo da caverna. Mas Morte Gélida considerava o risco alto demais e,
portanto, dormia, contando suas moedas e pedras preciosas em sonhos que os
dragões consideravam bastante agradáveis.
A fera adormecida não percebia, porém, o quão descuidado havia se tornado. Em
seu sono ininterrupto, Morte Gélida não se movia há décadas. Uma manta fria de
gelo rastejara sobre a forma comprida, gradualmente engrossando até que o único
ponto limpo era um buraco na frente das grandes narinas, onde as rajadas rítmicas
de roncos exalados mantinham a geada longe.
E assim Wulfgar, seguindo com cuidado a fonte dos roncos retumbantes, chegou até
a criatura.
Vendo o esplendor de Morte Gélida, aprimorado pela manta de gelo cristalino,
Wulfgar olhou para o dragão com profundo fascínio. Pilhas de pedras preciosas e
ouro espalhavam-se por toda a caverna sob cobertores semelhantes, mas Wulfgar
não conseguia desviar os olhos. Nunca havia visto tanta magnitude, tanta força.
Confiante de que o animal estava preso e impotente, ele deixou cair a cabeça do
martelo ao seu lado.
— Saudações, Ingeloakastimizilian — ele chamou, respeitosamente usando o nome
completo da fera.
Os orbes azuis pálidos se abriram; chamas incandescentes apareceram de imediato
nos olhos, mesmo sob o véu gelado. Wulfgar parou ante o olhar penetrante.
Após o choque inicial, recuperou a confiança.
— Não tema, poderoso dragão — disse corajosamente. — Sou um guerreiro de
honra e não o matarei sob essas circunstâncias injustas. — ele sorriu ironicamente.
— Minha cobiça será sanada simplesmente por pegar seu tesouro!
Mas o bárbaro cometera um erro crítico.
Um guerreiro mais experiente, mesmo um cavaleiro honrado, teria olhado além do
seu código cavalheiresco, aceitado sua boa sorte como uma bênção e matado o
dragão enquanto dormia. Poucos aventureiros, mesmo grupos inteiros de
aventureiros, já deram a um dragão maligno de qualquer cor uma chance e viveram
para se gabar disso.
Até mesmo Morte Gélida, no choque inicial de sua situação, havia se considerado
impotente quando acabara de acordar e encarara o bárbaro. Os grandes músculos,
atrofiados pela inatividade, não poderiam resistir ao peso e ao aperto da prisão de
gelo. Mas quando Wulfgar mencionou o tesouro, uma nova onda de energia afastou
a letargia do dragão.
Morte Gélida encontrou força na raiva, e com uma explosão de poder além de
qualquer coisa que o bárbaro já tivesse imaginado, o dragão flexionou seus
músculos imensos, enviando grandes pedaços de gelo voando para longe. Toda
caverna tremeu violentamente, e Wulfgar, de pé no chão escorregadio, foi jogado de
costas. Ele rolou para o lado no último momento para desviar da ponta de uma
lança de gelo, deslocada pelo tremor.
Wulfgar levantou-se rapidamente, mas quando se virou, viu-se diante de uma
cabeça branca com chifres, nivelada para encontrar seus olhos. As grandes asas do
dragão se estendiam, sacudindo os últimos restos de sua cobertura gelada, e os
olhos azuis travaram em Wulfgar.
O bárbaro olhou desesperado ao redor, procurando por uma rota de fuga.
Considerou lançar Presa de Égide, mas sabia que não mataria o monstro com um
único golpe. E, inevitavelmente, o sopro mortífero viria.
Morte Gélida analisou seu inimigo por um momento. Se usasse seu sopro, teria que
se contentar com carne congelada. Era um dragão, afinal, um verme aterrorizante, e
acreditava, provavelmente com razão, que nenhum humano poderia derrotá-lo
sozinho. Esse homem imenso, no entanto, e particularmente o martelo mágico, pois
o dragão podia sentir sua força, incomodava o verme. A cautela manteve Morte
Gélida vivo por muitos séculos. Ele não se envolveria em combate corpo-a-corpo
com este homem.
O ar frio se acumulou em seus pulmões.
Wulfgar ouviu a entrada de ar e mergulhou reflexivamente para o lado. Ele não
conseguiu escapar completamente da explosão que se seguiu, um cone gélido
indescritivelmente frio, mas sua agilidade, combinada com a gordura do cervo, o
manteve vivo. Ele caiu atrás de um bloco de gelo, com suas pernas queimadas pelo
frio e seus pulmões doendo. Precisava de um momento para se recuperar, mas viu a
cabeça branca se erguer lentamente no ar, vencendo o ângulo da escassa barreira.
O bárbaro não sobreviveria a um segundo sopro.
De repente, um globo de trevas envolveu a cabeça do dragão e uma flecha de ponta
negra e depois outra zuniram pelo bárbaro, batendo invisíveis atrás da escuridão.
— Ataque, garoto! Agora! — gritou Drizzt Do’Urden da entrada da câmara.
O bárbaro disciplinado obedeceu instintivamente ao professor. Fazendo uma careta
de dor, andou ao redor do bloco de gelo e se aproximou do verme que se debatia.
Morte Gélida balançava sua grande cabeça para lá e para cá, tentando se livrar do
feitiço do elfo negro. O ódio consumiu a besta quando mais uma flecha encontrou
seu alvo. O único desejo do dragão era matar. Mesmo cego, seus sentidos eram
superiores; marcou a direção do drow com facilidade e soprou novamente.
Mas Drizzt era bem versado na tradição dos dragões. Havia medido sua distância de
Morte Gélida perfeitamente, e a força da geada mortal não o alcançou. O bárbaro
investiu pelo lado do dragão distraído e golpeou Presa de Égide com toda a sua
grande força contra as escamas brancas. O dragão estremeceu em agonia. As
escamas sustentaram o golpe, mas o dragão nunca sentira tanta força vinda de um
humano antes e não quis testar sua pele contra um segundo ataque. Ele se virou para
soltar um terceiro sopro no bárbaro exposto.
Mas outra flecha o acertou.
Wulfgar viu uma grande gota de sangue de dragão respingar no chão ao lado dele e
observou o globo da escuridão se afastar. O dragão rugiu de raiva. Presa de Égide o
atingiu novamente, e uma terceira vez. Uma das escamas rachou e lascou, e a visão
da carne exposta renovou as esperanças de vitória de Wulfgar.
Porém, Morte Gélida havia passado por muitas batalhas e estava longe de seu fim.
O dragão sabia o quão vulnerável era ao poderoso martelo e mantinha sua
concentração focada o suficiente para retaliar. A cauda longa circulou sobre as
costas escamosas e se chocou contra Wulfgar, justo quando o bárbaro começara
outro golpe. Ao invés da satisfação de sentir Presa de Égide esmagando a carne do
dragão, Wulfgar se viu batendo contra um monte congelado de moedas de ouro a
seis metros de distância.
A caverna girou ao redor dele, seus olhos lacrimejantes aumentando os reflexos
estrelados de luz e sua consciência se esvaindo. Mas ele viu Drizzt, com suas
cimitarras sacadas, avançando corajosamente em direção a Morte Gélida. Ele viu o
dragão pronto para soprar de novo.
Ele viu, com clareza cristalina, o imenso pingente de gelo pendurado no teto acima
do dragão.
Drizzt avançou. Ele não tinha estratégia contra um inimigo tão formidável; esperava
encontrar alguma fraqueza antes que o dragão o matasse. Acreditou que Wulfgar
estava fora de combate, provavelmente morto, após o poderoso golpe da cauda, e
ficou surpreso ao ver o movimento repentino ao lado.
Morte Gélida também sentiu o movimento do bárbaro e usou sua cauda longa para
esmagar qualquer ameaça adicional ao seu flanco.
Mas Wulfgar já havia feito sua jogada. Com a última explosão de força que
conseguiu reunir, levantou-se do monte e lançou Presa de Égide.
A cauda do dragão acertou e Wulfgar não sabia se sua tentativa desesperada foi
bem-sucedida. Ele pensou ter visto um ponto mais claro aparecer no teto antes de
ser lançado na escuridão.
Drizzt testemunhou sua vitória. Hipnotizado, o drow assistiu à descida silenciosa da
enorme estalactite.
Morte Gélida, cego ao perigo pelo globo de escuridão e achando que o martelo
voara a esmo, agitou suas asas. As patas dianteiras com garras estavam começando
a se erguer quando a lança de gelo bateu nas costas do dragão, levando-o de volta
ao chão.
Com o globo de escuridão plantada em sua cabeça, Drizzt não pôde ver a expressão
moribunda do dragão.
Mas ele ouviu o “estalo” mortal quando o pescoço, similar a um chicote, lançado
pela repentina inversão de impulso, rolou para cima e se quebrou.
Capítulo 22

Por Sangue ou Por Feito

O CALOR DE UMA PEQUENA FOGUEIRA trouxe Wulfgar de volta à


consciência. Ele recuperou os sentidos, meio grogue e, a princípio, não conseguiu
compreender o ambiente enquanto tirava um cobertor que não se lembrava de ter
trazido. Então reconheceu Morte Gélida, morto a poucos metros de distância, com o
enorme pingente fincado firmemente nas costas do dragão. O globo de escuridão se
dissipara e Wulfgar ficou boquiaberto com o quão precisos os tiros de arco do drow
haviam sido. Uma flecha se projetava do olho esquerdo do dragão, e as penas
negras de duas outras se projetavam da boca.
Wulfgar estendeu a mão para a segurança familiar do cabo de Presa de Égide. Mas
o martelo não estava perto dele. Lutando contra a dormência penetrante em suas
pernas, o bárbaro conseguiu se levantar, procurando freneticamente por sua arma. E
onde, se perguntava, estava o drow?
Ouviu as batidas vindo de uma câmara lateral. Com suas pernas duras, ele foi
cautelosamente ao redor de uma curva. Lá estava Drizzt, de pé no topo de uma
colina de moedas, rompendo a cobertura gelada com o martelo de guerra de
Wulfgar.
Drizzt notou Wulfgar se aproximando e fez uma reverência baixa.
— Olá, Ruína do Dragão! — ele chamou.
— Olá, amigo elfo — respondeu Wulfgar, satisfeito por ver o drow novamente. —
Você me seguiu por um longo caminho.
— Não tão longe — respondeu Drizzt, cortando outro pedaço de gelo do tesouro.
— Havia pouca empolgação em Dez-Burgos, e eu não podia deixar você avançar
em nossa competição! Dez e meio a dez e meio — declarou ele, sorrindo
amplamente — e um dragão para dividir entre nós. Eu reivindico metade da morte!
— Sua e merecida — concordou Wulfgar. — E reivindico a metade da recompensa.
Drizzt revelou uma pequena bolsa pendurada em uma fina corrente de prata em
volta do pescoço.
— Algumas bugigangas — explicou. — Não preciso de riquezas e duvido que
possa levar muito daqui, de qualquer maneira! Algumas bugigangas serão
suficientes.
Ele vasculhou a porção da pilha que tinha acabado de libertar do gelo, descobrindo
um pomo de espada incrustado de pedras preciosas, com sua empunhadura preta de
adamantita esculpida magistralmente à semelhança da mandíbula dentada de um
gato caçador. O entalhe detalhado atraiu Drizzt e, com dedos trêmulos, ele deslizou
o resto da arma para fora do ouro.
Uma cimitarra. Sua lâmina curva era de prata, com diamantes na borda. Drizzt
levantou-a diante dele, maravilhado com sua leveza e perfeito equilíbrio.
— Algumas bugigangas... e isso — ele corrigiu.

Mesmo antes de encontrar o dragão, Wulfgar se perguntou como escaparia das


cavernas subterrâneas.
— A corrente é forte demais e a borda da queda d’água é alta demais para voltar a
Degelo Eterno — disse a Drizzt, embora soubesse que o drow teria suposto a
mesma coisa. — Mesmo que encontremos o caminho através dessas barreiras, não
tenho mais gordura de cervo para nos proteger do frio quando sairmos da água.
— Eu não pretendo atravessar as águas de Degelo Eterno novamente — Drizzt
assegurou ao bárbaro. — No entanto, conto com a minha experiência considerável
para chegar em tais situações preparado! Por isso, a madeira para o fogo e o
cobertor que eu coloquei sobre você, ambos embrulhados em pele de foca. E isso
também. — Tirou um gancho de três pontas e uma corda leve, mas forte, do cinto.
Ele já havia descoberto uma rota de fuga.
Drizzt apontou para um pequeno buraco no teto acima deles. O pingente de gelo
desalojado por Presa de Égide havia levado com ele parte do teto da câmara.
— Não espero conseguir jogar o gancho tão alto, mas seus braços poderosos devem
achar o arremesso um desafio menor.
— Em um bom dia, talvez — respondeu Wulfgar. — Mas não tenho forças para
tentar — O bárbaro chegara mais perto da morte do que imaginara quando o sopro
do dragão caíra sobre ele, e com a adrenalina da luta agora esgotada, sentia o frio
penetrante. — Temo que minhas mãos insensíveis não possam nem se fechar ao
redor do gancho!
— Então, corra! — gritou o drow. — Deixe seu corpo frio se aquecer.
Wulfgar saiu imediatamente, correndo pela ampla câmara, forçando o sangue a
circular pelas pernas e dedos entorpecidos. Em pouco tempo, começou a sentir o
calor interior de seu próprio corpo retornando.
Foram necessários apenas dois arremessos para enfiar o gancho no buraco e fazer
com que se prendesse em um pouco de gelo. Drizzt foi o primeiro a partir, o elfo
ágil correndo corda acima.
Wulfgar terminou seus negócios na caverna, coletando um saco de riquezas e alguns
outros itens que sabia que precisaria. Ele teve muito mais dificuldade do que Drizzt
em subir a corda, mas com a ajuda do drow, conseguiu escalar o gelo antes que o
sol mergulhasse no horizonte a oeste.
Acamparam ao lado de Degelo Eterno, banqueteando-se com carne de veado e
desfrutando de um descanso muito necessário e muito merecido no conforto dos
vapores quentes.
Então partiram novamente antes do amanhecer, correndo para oeste. Eles correram
lado a lado por dois dias, acompanhando o ritmo frenético que os levara tão longe.
Quando se depararam com as trilhas das tribos bárbaras, os dois sabiam que havia
chegado a hora de se separarem.
— Adeus, bom amigo — disse Wulfgar, curvando-se para inspecionar as trilhas. —
Nunca esquecerei o que fez por mim.
— E para você, Wulfgar — Drizzt respondeu sério. — Que seu poderoso martelo de
guerra aterrorize seus inimigos nos anos vindouros! — Acelerou, sem olhar para
trás, mas imaginando se algum dia veria seu grande companheiro vivo novamente.

Wulfgar deixou de lado a urgência de sua missão para fazer uma pausa e refletir
sobre suas emoções quando viu pela primeira vez o grande acampamento das tribos
reunidas. Cinco anos antes, orgulhosamente carregando o estandarte da Tribo do
Alce, o jovem Wulfgar marchara para uma reunião semelhante, cantando a Canção
de Tempus e compartilhando o hidromel forte com homens que lutariam, e
possivelmente morreriam, ao seu lado. Ele via a batalha de maneira diferente na
época, como um teste glorioso de um guerreiro.
— Selvageria inocente — ele murmurou, ouvindo a contradição das palavras ao
recordar sua ignorância naqueles dias há tanto tempo. Mas suas percepções
sofreram uma mudança considerável. Bruenor e Drizzt, tornando-se seus amigos e
ensinando-lhe os meandros de seu mundo, haviam humanizado as pessoas que ele
considerava anteriormente apenas como inimigos, forçando-o a enfrentar as
consequências brutais de suas ações.
A bile amarga brotou na garganta de Wulfgar com o pensamento das tribos
lançando outro ataque contra Dez-Burgos. Ainda mais repulsivo era seu povo
orgulhoso marchando para a guerra ao lado de goblins e gigantes.
Ao se aproximar do perímetro, viu que não havia Hengorot, nenhum Salão do
Hidromel cerimonial em todo o acampamento. Uma série de pequenas tendas, cada
uma com os respectivos estandartes dos reis tribais, marcava o centro da
assembleia, cercado pelas fogueiras abertas de soldados comuns. Ao revisar os
estandartes, Wulfgar pôde ver que quase todas as tribos estavam presentes, mas sua
força combinada era pouco mais da metade do tamanho da assembleia de cinco
anos atrás. As observações de Drizzt de que os bárbaros ainda não haviam se
recuperado do massacre nas encostas de Bryn Shander soaram dolorosamente
verdadeiras.
Dois guardas saíram para encontrar Wulfgar. Ele não fez nenhuma tentativa de
esconder sua abordagem, colocou Presa de Égide a seus pés e levantou as mãos para
mostrar que suas intenções eram honradas.
— Quem é você que vem sem acompanhante e sem convite ao conselho de
Heafstaag? — perguntou um dos guardas. Ele avaliou o estranho, impressionado
com a força óbvia de Wulfgar e pela arma poderosa que estava a seus pés. —
Certamente você não é um mendigo, nobre guerreiro, e ainda assim é desconhecido
para nós.
— Sou conhecido por você, Revjak, filho de Jorn, o Vermelho — respondeu
Wulfgar, reconhecendo o homem como um membro da tribo. Sou Wulfgar, filho de
Beornegar, guerreiro da Tribo do Alce. Fui perdido por vocês cinco anos atrás,
quando marchamos contra Dez-Burgos – explicou ele, escolhendo cuidadosamente
suas palavras para evitar o assunto de sua derrota. Os bárbaros não falavam de
lembranças tão desagradáveis.
Revjak estudou o jovem de perto. Ele era amigo de Beornegar e lembrava-se do
garoto, Wulfgar. Ele contou os anos, comparando a idade do garoto quando o viu
pela última vez com a idade aparente desse jovem. Logo ficou satisfeito ao
constatar que as semelhanças eram mais que coincidentes.
— Bem-vindo ao lar, jovem guerreiro! — disse calorosamente. — Você se saiu
bem!
— Foi mesmo — respondeu Wulfgar. — Vi coisas grandes e maravilhosas e aprendi
muitas coisas sábias. Muitas são as histórias que irei contar, mas, na verdade, não
tenho tempo para conversar ociosamente. Eu vim ver Heafstaag.
Revjak assentiu e começou a guiar Wulfgar pelas fileiras de fogueiras.
— Heafstaag ficará feliz com o seu retorno.
Baixo demais para ser ouvido, Wulfgar respondeu:
— Não tão feliz.

Uma multidão curiosa se reuniu ao redor do impressionante jovem guerreiro


enquanto ele se aproximava da tenda central do acampamento. Revjak entrou para
anunciar Wulfgar a Heafstaag e retornou imediatamente com a permissão do rei
para Wulfgar entrar.
Wulfgar colocou Presa de Égide em seu ombro, mas não se moveu em direção à aba
que Revjak mantinha aberta.
— O que tenho a dizer será falado abertamente e diante de todos — disse em voz
alta o suficiente para Heafstaag ouvir. — Deixe Heafstaag vir até mim!
Sussurros confusos surgiram ao seu redor com essas palavras de desafio, pois os
rumores que corriam pela multidão não falavam de Wulfgar, filho de Beornegar,
como descendente de linhagens reais.
Heafstaag logo saiu da tenda. Ele foi até alguns metros do desafiante, com seu peito
inflado e seu único olho encarando Wulfgar. A multidão silenciou, esperando que o
rei cruel matasse o jovem impertinente de uma só vez.
Mas Wulfgar segurou o olhar perigoso de Heafstaag e não recuou um centímetro.
— Eu sou Wulfgar — proclamou orgulhoso — filho de Beornegar, filho de Beorne
antes dele; guerreiro da Tribo do Alce, que lutou na batalha de Bryn Shander;
portador de Presa de Égide, o Inimigo dos Gigantes — ele segurou o grande martelo
bem alto diante dele — amigo de artesãos anões e aluno de um ranger de Gwaeron
Windstrom, matador de gigantes e invasor de covis, matador do chefe gigante do
gelo, Carranca. — Parou por um momento, seus olhos apertados por um sorriso
aberto, aumentando a antecipação de sua próxima proclamação.
Quando ficou satisfeito por ter mantido toda a atenção da multidão, ele continuou:
— Eu sou Wulfgar, a Ruína do Dragão!
Heafstaag se encolheu. Nenhum homem vivo em toda a tundra reivindicara um
título tão elevado.
— Eu reivindico o Direito do Desafio — Wulfgar rosnou em um tom baixo e
ameaçador.
— Eu vou matar você — Heafstaag respondeu com tanta calma quanto pôde. Ele
não temia ninguém, mas ficou cauteloso com os enormes ombros e músculos tensos
de Wulfgar. O rei não queria arriscar sua posição naquele momento, à beira de uma
aparente vitória sobre os pescadores de Dez-Burgos. Se pudesse desacreditar o
jovem guerreiro, o povo nunca permitiria tal luta. Forçariam Wulfgar a desistir de
sua reivindicação ou o matariam lá mesmo.
— Por qual direito de nascimento você faz tal afirmação?
— Você lideraria nosso povo pelas ordens de um mago — respondeu Wulfgar. Ele
ouviu atentamente aos sons do povo para medir a aprovação ou desaprovação de
sua acusação. — Você os faria levantar suas espadas em uma causa comum com
goblins e orcs! — Ninguém se atreveu a protestar em voz alta, mas Wulfgar podia
sentir que muitos dos outros guerreiros estavam secretamente enfurecidos com a
batalha que se aproximava. Isso explicaria também a ausência do Salão do
Hidromel, pois Heafstaag era sábio o suficiente para perceber que a raiva muitas
vezes explodia nas emoções elevadas de uma celebração.
Revjak interpôs-se antes que Heafstaag pudesse responder com palavras ou com
arma.
— Filho de Beornegar — disse Revjak com firmeza — você ainda não ganhou o
direito de questionar as ordens do rei. Você declarou um desafio aberto; as leis
exigem que você justifique, por sangue ou feito, o seu direito a essa luta.
A emoção se revelou nas palavras de Revjak, e Wulfgar soube imediatamente que o
velho amigo de seu pai havia intervindo para impedir o início de uma briga não
reconhecida e, portanto, não oficial. Estava claro que o homem mais velho
acreditava que o impressionante jovem guerreiro pudesse cumprir as exigências. E
Wulfgar sentiu ainda que Revjak, e talvez muitos outros, esperavam que o desafio
fosse realizado com sucesso.
Wulfgar endireitou os ombros e sorriu confiante para o oponente, ganhando força na
prova contínua de que seu povo estava seguindo o rumo ignóbil de Heafstaag
porque estavam presos ao rei caolho e não tinham nenhum desafiante adequado
para derrotá-lo.
— Por feito —disse. Sem soltar Heafstaag de seu olhar, Wulfgar largou o cobertor
enrolado que carregava nas costas e produziu dois objetos em forma de lança. Ele
os jogou casualmente no chão diante do rei. Aqueles na multidão que podiam ver
claramente o espetáculo ofegaram em uníssono, e até o inabalável Heafstaag
empalideceu e retrocedeu um passo.
— O desafio não pode ser negado! — gritou Revjak.
Os chifres de Morte Gélida.

O suor frio no rosto de Heafstaag revelou sua tensão enquanto ele limpava as
últimas rebarbas da cabeça de seu enorme machado.
— A Ruína do Dragão! — bufou sem convicção ao seu porta-estandarte, que
acabara de entrar na tenda. — Mais provável que tenha tropeçado em um verme
adormecido!
— Perdão, rei poderoso — disse o jovem. — Revjak me enviou para lhe dizer que o
momento marcado está chegando.
— Bom! — zombou Heafstaag, passando o polegar pela borda brilhante do
machado. — Ensinarei o filho de Beornegar a respeitar seu rei!
Os guerreiros da Tribo do Alce formaram um círculo ao redor dos combatentes.
Embora este fosse um evento particular para o povo de Heafstaag, as outras tribos
assistiam com interesse a uma distância respeitável. O vencedor não teria
autoridade formal sobre eles, mas seria o rei da tribo mais poderosa e dominante da
tundra.
Revjak entrou no círculo e ficou entre os dois oponentes.
— Eu proclamo Heafstaag! — ele gritou. — Rei da Tribo do Alce! — continuou a
ler a longa lista de atos heroicos do rei caolho.
A confiança de Heafstaag pareceu retornar durante a recitação, embora ele estivesse
confuso e zangado por Revjak ter escolhido proclamá-lo primeiro. Colocou as mãos
nos quadris largos e olhou em volta ameaçadoramente para os espectadores mais
próximos, sorrindo ao se afastarem dele, um por um. Fez o mesmo com seu
oponente, mas novamente suas táticas de ameaça não conseguiram intimidar
Wulfgar.
— E proclamo Wulfgar — continuou Revjak — filho de Beornegar e desafiador do
trono da Tribo do Alce! — A recitação da lista de Wulfgar levou muito menos
tempo do que a de Heafstaag, é claro. Mas a ação final que Revjak proclamou
trouxe um certo grau de paridade aos dois.
— A Ruína do Dragão! — gritou Revjak, e a multidão, respeitosamente silenciosa
até esse ponto, passou a contar com entusiasmo os numerosos rumores que haviam
começado sobre a vitória de Wulfgar sobre Morte Gélida.
Revjak olhou para os dois combatentes e saiu do círculo.
O momento de honra havia chegado para eles.
Eles andavam pelo círculo de batalha, observando cautelosamente e medindo um ao
outro por indícios de fraqueza. Wulfgar notou a impaciência no rosto de Heafstaag,
uma falha comum entre os guerreiros bárbaros. Ele seria do mesmo jeito, não fosse
pelas lições francas de Drizzt Do’Urden. Mil tapas humilhantes das cimitarras dos
drow haviam ensinado a Wulfgar que o primeiro golpe não era tão importante
quanto o último.
Finalmente, Heafstaag bufou e, com um rugido, avançou. Wulfgar também rosnou
alto, movendo-se como se fosse encarar o ataque de frente. Mas então se desviou no
último momento e Heafstaag, puxado pelo impulso de sua arma pesada, passou aos
tropeços por seu inimigo e foi direto na primeira fila de espectadores.
O rei de um olho só se recuperou rápido e recuou, duplamente enfurecido, ou pelo
menos Wulfgar acreditava. Heafstaag fora rei por muitos anos e lutara em inúmeras
batalhas. Se nunca tivesse aprendido a ajustar sua técnica de luta, teria sido morto
há muito tempo. Ele foi até Wulfgar novamente, parecendo mais fora de controle do
que da primeira vez. Mas quando Wulfgar saiu do caminho, encontrou o grande
machado de Heafstaag esperando por ele. O rei de um olho só, antecipando a
esquiva, balançou a arma para o lado, fazendo um corte no braço de Wulfgar do
ombro ao cotovelo.
Wulfgar reagiu rapidamente, empurrando Presa de Égide defensivamente para
impedir qualquer ataque subsequente. Ele tinha pouco peso por detrás do balanço,
mas sua mira era boa e o poderoso martelo fez Heafstaag dar um passo atrás.
Wulfgar levou um momento para examinar o sangue em seu braço.
Ele poderia continuar a luta.
— Você bloqueia bem — Heafstaag rosnou quando se afastou a poucos passos de
seu desafiante. — Você teria servido bem ao nosso povo nas fileiras. É uma pena ter
que te matar!
Mais uma vez o machado entrou em ação, lançando golpe após golpe em um ataque
furioso com o objetivo de terminar a luta rapidamente.
Mas, comparado às lâminas sibilantes de Drizzt Do’Urden, o machado de Heafstaag
parecia mover-se lentamente. Wulfgar não teve problemas em desviar os ataques,
mesmo contra-atacando de vez em quando com um soco medido que batia no peito
largo de Heafstaag.
Sangue de frustração e cansaço avermelhou o rosto do rei caolho.
— Um oponente cansado geralmente se move com toda a sua força de uma vez —
Drizzt havia explicado a Wulfgar durante as semanas de treinamento. — Mas
raramente se move na direção aparente, em que ele pensa que você pensa que está
se movendo.
Wulfgar observou atentamente a finta esperada.
Resignado por não conseguir romper as defesas hábeis de seu inimigo mais jovem e
mais rápido, o rei suado ergueu o grande machado por cima da cabeça e avançou,
gritando loucamente para enfatizar o ataque.
Mas os reflexos de Wulfgar foram aperfeiçoados até o seu melhor ponto de combate
e a ênfase exagerada que Heafstaag colocou no ataque disse-lhe que esperasse uma
mudança de direção. Ele levantou Presa de Égide como se quisesse bloquear o
golpe fingido, mas inverteu sua pegada enquanto o machado caía do ombro de
Heafstaag e vinha enganosamente baixo em um golpe lateral.
Confiando plenamente em sua arma anã, Wulfgar moveu o pé da frente para trás,
virando-se para encontrar a lâmina que se aproximava com uma posição igualmente
angulada de Presa de Égide.
As cabeças das duas armas se chocaram com força incrível. O machado de
Heafstaag quebrou em suas mãos, e as violentas vibrações o derrubaram.
Presa de Égide estava ileso. Wulfgar poderia facilmente ter se aproximado e
finalizado Heafstaag com um único golpe.
Revjak apertou o punho em antecipação à vitória iminente de Wulfgar.
— Nunca confunda honra com estupidez! — Drizzt havia repreendido Wulfgar após
sua perigosa inação com o dragão. Mas Wulfgar queria mais desta batalha do que
simplesmente ganhar a liderança de sua tribo; queria deixar uma impressão
duradoura em todas as testemunhas. Ele jogou Presa de Égide no chão e se
aproximou de Heafstaag em termos justos.
O rei bárbaro não questionou sua boa sorte. Ele saltou para Wulfgar, apertando os
braços ao redor do homem mais jovem, na tentativa de levá-lo de costas ao chão.
Wulfgar se inclinou para frente para enfrentar o ataque, plantando as pernas
poderosas com firmeza e parou o homem mais pesado.
Eles lutaram violentamente, trocando golpes pesados antes de conseguir se prender
um ao outro perto o suficiente para tornar os socos ineficazes. Os olhos de ambos os
combatentes estavam roxos e inchados, hematomas e cortes brotavam no rosto e no
peito.
Heafstaag estava mais cansado, porém, com seu peito largo arfando a cada
respiração difícil. Ele passou os braços em volta da cintura de Wulfgar e tentou
novamente lançar seu oponente implacável ao chão.
Os longos dedos de Wulfgar se prenderam aos lados da cabeça de Heafstaag. Os nós
dos dedos do jovem embranqueceram, os músculos enormes em seus braços e
ombros se contraíram. Ele começou a apertar.
Heafstaag soube que estava com problemas, pois o aperto de Wulfgar era mais
poderoso que o de um urso branco. O rei se debateu, com seus punhos enormes
batendo nas costelas do bárbaro mais jovem, esperando quebrar a concentração
mortal de Wulfgar.
Dessa vez, uma das lições de Bruenor o estimulou:
— Pense na doninha, garoto, aceite os golpes menores, mas nunca, nunca deixe que
escapem depois de agarrar! — Os músculos do pescoço e dos ombros estavam
inchados quando ele levou o rei caolho a ficar de joelhos.
Horrorizado com o poder do aperto, Heafstaag puxou os antebraços duros do
jovem, tentando em vão aliviar a pressão crescente.
Wulfgar percebeu que estava prestes a matar alguém de sua tribo.
— Renda-se! — ele gritou para Heafstaag, procurando uma alternativa mais
aceitável.
O rei orgulhoso respondeu com um soco final.
Wulfgar voltou os olhos para o céu.
— Eu não sou como ele! — gritou impotente, justificando-se a quem quisesse ouvir.
Mas havia apenas um caminho para ele.
Os enormes ombros do jovem bárbaro se avermelharam quando o sangue bombeou
através deles. Ele viu o terror nos olhos de Heafstaag transcender para
incompreensão. Ele ouviu um estalo de osso, sentiu o crânio esmagar sob suas
poderosas mãos.
Revjak deveria ter entrado no círculo e anunciado o novo rei da Tribo do Alce.
Mas, como as outras testemunhas ao seu redor, ficou parado, de pé, sem piscar, com
sua boca aberta.

Ajudado pelas rajadas de vento frio nas costas, Drizzt acelerou pelos últimos
quilômetros até Dez-Burgos. Na mesma noite em que se separou de Wulfgar, a
ponta coberta de neve do Sepulcro de Kelvin apareceu. A visão de sua casa levou o
drow adiante ainda mais rápido, mas uma sugestão persistente no limite de seus
sentidos lhe dizia que algo estava fora do normal. Um olho humano nunca poderia
ter percebido, mas a visão noturna aguçada do drow finalmente o esclareceu, um
crescente pilar de escuridão apagando as estrelas mais baixas do horizonte ao sul da
montanha. E uma segunda coluna menor, ao sul da primeira.
Drizzt parou subitamente. Ele apertou os olhos para ter certeza de seu palpite. Então
começou a andar de novo, lentamente, precisando de tempo para encontrar um
caminho alternativo que poderia seguir.
Caer-Konig e Caer-Dineval estavam queimando.
Capítulo 23

Sitiados

A FROTA DE CAER-DINEVAL PASSEAVA PELAS ÁGUAS mais ao sul de Lac


Dinneshere, aproveitando as áreas deixadas em aberto quando o povo de Refúgio
Leste fugira para Bryn Shander.
Os navios de Caer-Konig estavam pescando em seus locais familiares às margens a
norte do lago. Eles foram os primeiros a ver a desgraça se aproximando.
Como um enxame furioso de abelhas, o exército imundo de Kessell varreu a curva
norte de Lac Dinneshere e rugiu pelo Passo do Vento Gélido.
— Levantar âncora! — exclamou Schermont e muitos outros capitães de navios
assim que se recuperaram do choque inicial. Mas sabiam que não poderiam voltar
no tempo.
O braço principal do exército de goblins destroçou Caer-Konig.
Os homens nos barcos viram as chamas subirem quando os prédios foram
incendiados. Eles ouviram os gritos enlouquecidos dos invasores vis.
Eles ouviram os gritos moribundos de seus parentes.
As mulheres, crianças e idosos que estavam em Caer-Konig não pensaram em
resistência. Eles fugiram. Por suas vidas, eles fugiram. E os goblins os perseguiram
e os retalharam.
Gigantes e ogros correram para as docas, esmagando os humanos lamentáveis que
acenavam impotentes para a frota que retornava ou forçando-os à fria morte das
águas do lago.
Os gigantes carregavam sacos enormes e, quando os bravos pescadores correram
para o porto, seus navios foram esmagados e danificados por pedras arremessadas.
Os goblins continuaram a fluir para a cidade condenada, mas a maior parte da
grande fronteira do exército passou direto e continuou em direção à segunda cidade,
Caer-Dineval. A essa altura, as pessoas em Caer-Dineval já haviam visto a fumaça e
ouvido os gritos e já estavam em plena fuga para Bryn Shander, ou nas docas
implorando aos marinheiros que voltassem para casa.
Mas a frota de Caer-Dineval, embora tivesse a força do vento leste em sua corrida
para atravessar o lago, tinha quilômetros de água à sua frente. Os pescadores viram
os pilares de fumaça crescendo sobre Caer-Konig, suspeitaram do que estava
acontecendo e entenderam que sua corrida, mesmo com as velas tão cheias de
vento, seria em vão. Ainda assim, gemidos de choque e descrença podiam ser
ouvidos em todos os conveses quando a nuvem negra começou sua escalada sinistra
vinda das seções mais ao norte de Caer-Dineval.
Então Schermont tomou uma decisão galante. Aceitando que sua própria cidade
estava condenada, ofereceu sua ajuda aos vizinhos.
— Não podemos entrar! — ele gritou para o capitão de um navio próximo. — Passe
a palavra: vá para o sul! As docas de Dineval ainda estão livres!

De um parapeito no muro de Bryn Shander, Regis, Cassius, Agorwal e Glensather


assistiram horrorizados enquanto a força perversa fluía pelo trecho que se afastava
das duas cidades saqueadas, se aproximando do povo fugitivo de Caer-Dineval.
— Abra os portões, Cassius! — gritou Agorwal. — Temos que ir até eles! Eles não
têm chance de chegar à cidade, a menos que retardemos seus perseguidores!
— Não — respondeu Cassius, dolorosamente consciente de suas maiores
responsabilidades. — Todo homem é necessário para defender a cidade. Sair para a
planície aberta contra números tão avassaladores seria inútil. As cidades de Lac
Dinneshere estão condenadas!
— Eles estão desamparados! — Agorwal revidou. — Quem somos nós se não
podemos defender os nossos? Que direito temos de ficar observando por trás desse
muro enquanto nosso povo é massacrado?
Cassius balançou a cabeça, resoluto em sua decisão de proteger Bryn Shander.
Mas outros refugiados vieram correndo pela segunda passagem, Caminho de
Bremen, fugindo da cidade aberta de Termalaine em histeria quando viram as
cidades do outro lado do caminho sendo incendiadas. Mais de mil refugiados
estavam agora à vista de Bryn Shander. Julgando a velocidade e a distância restante,
Cassius calculou que convergiriam no amplo campo logo abaixo dos portões norte
da cidade principal.
Onde os goblins os pegariam.
— Vá — disse ele a Agorwal. Bryn Shander não podia desperdiçar os homens, mas
o campo logo ficaria vermelho com o sangue de mulheres e crianças.
Agorwal levou seus homens valentes pela estrada nordeste em busca de uma
posição defensável onde pudessem se instalar. Eles escolheram um pequeno cume,
na verdade mais uma crista onde a estrada descia um pouco. Entrincheirados e
prontos para lutar e morrer, esperaram o último dos refugiados passar aterrorizado,
gritando porque acreditavam que não tinham chance de alcançar a segurança da
cidade antes que os goblins caíssem sobre eles.
Cheirando sangue humano, os batedores mais rápidos do exército invasor estavam
logo atrás dos retardatários, principalmente mães segurando seus bebês. Animados
com as vítimas fáceis, os monstros na dianteira nem notaram a força de Agorwal até
que os guerreiros à espera estavam sobre eles.
Mas a essa altura já era tarde demais.
Os bravos homens de Termalaine pegaram os goblins em um fogo cruzado de
flechas e seguiram Agorwal em uma feroz investida de espada. Lutaram sem medo,
como homens que já aceitavam o que o destino os reservara.
Dezenas de monstros jaziam mortos em seus rastros e mais caíam a cada minuto
que passava, enquanto os guerreiros enfurecidos pressionavam suas fileiras.
Mas a linha parecia interminável. Quando um goblin caía, dois o substituíam.
Os homens de Termalaine logo foram engolfados em um mar de goblins.
Agorwal alcançou um ponto alto e olhou de volta para a cidade. As mulheres em
fuga estavam a uma boa distância do campo, mas se movendo devagar. Se seus
homens quebrassem suas fileiras e fugissem, eles ultrapassariam os refugiados antes
das encostas de Bryn Shander. E os monstros estariam logo atrás.
— Precisamos sair e apoiar Agorwal! — Glensather gritou para Cassius. Mas desta
vez o porta-voz de Bryn Shander permaneceu resoluto.
— Agorwal cumpriu sua missão — respondeu Cassius. — Os refugiados alcançarão
a muralha. Não enviarei mais homens para morrer! Mesmo que a força combinada
de toda Dez-Burgos estivesse em campo, não seria capaz de derrotar o inimigo
diante de nós! — O porta-voz sábio já havia entendido que não podiam lutar contra
Kessell em termos justos.
O gentil Glensather parecia abatido.
— Leve algumas tropas colina abaixo — concedeu Cassius. — Ajude os refugiados
exaustos na subida final.
Os homens de Agorwal estavam em dificuldade. O porta-voz de Termalaine olhou
para trás novamente e ficou apaziguado; as mulheres e crianças estavam seguras.
Ele examinou o muro alto, ciente de que Regis, Cassius e os outros podiam vê-lo,
uma figura solitária na pequena elevação, embora não pudesse discerni-los entre a
multidão de espectadores que se alinhavam nos parapeitos de Bryn Shander.
Mais goblins entraram na briga, agora com ogros e verbeegs. Agorwal saudou seus
amigos na cidade. Seu sorriso satisfeito era sincero quando se virou e avançou de
volta para baixo para se juntar às suas tropas vitoriosas no seu melhor momento.
Regis e Cassius assistiram a maré negra avançar sobre cada um dos bravos homens
de Termalaine.
Abaixo deles, os pesados portões se fecharam. Os últimos refugiados estavam lá
dentro.

Enquanto os homens de Agorwal haviam conquistado uma vitória de honra, a única


força que realmente lutou contra o exército de Kessell naquele dia e sobreviveu
foram os anões. O clã do Salão de Mitral havia passado dias em diligente
preparação para essa invasão, mas ela quase passou por eles completamente.
Mantido pela vontade coercitiva do mago em disciplina inédita entre os goblins,
especialmente sendo de tribos variadas e rivais, o exército de Kessell tinha planos
diretos e definidos para o que deveriam realizar na onda inicial. E, naquele
momento, os anões não haviam sido incluídos.
Mas os rapazes de Bruenor tinham outros planos. Eles não estavam prestes a se
enterrar em suas minas sem conseguir cortar pelo menos algumas cabeças de
goblins, ou sem esmagar as rótulas de um gigante ou dois.
Muitos do povo barbado subiram ao extremo sul do vale. Quando a ponta do
exército maligno passou, os anões começaram a provocá-los, gritando desafios e
xingamentos contra suas mães. Os insultos nem eram necessários. Orcs e goblins
desprezam os anões mais do que qualquer outra coisa viva, e o plano direto de
Kessell voou de suas mentes à simples vista de Bruenor e seus parentes. Sempre
faminta por sangue anão, uma força substancial se separou do exército principal.
Os anões os deixaram se aproximar, provocando-os com insultos até que os
monstros estivessem quase sobre eles. Bruenor e os seus deslizaram sobre a borda
rochosa e desceram a íngreme queda.
— Venham brincar, cães estúpidos — Bruenor riu maliciosamente enquanto
desaparecia de vista. Ele puxou uma corda às suas costas. Havia um pequeno truque
que tinha imaginado e que estava ansioso para experimentar.
Os goblins investiram pelo vale rochoso, superando em número os anões de quatro
para um. Estavam apoiados por cerca de vinte ogros furiosos.
Os monstros não tiveram chance.
Os anões continuaram a atraí-los, descendo a parte mais íngreme do vale, até as
bordas estreitas e inclinadas na face do penhasco que se cruzavam em frente às
inúmeras entradas das cavernas dos anões.
Um lugar óbvio para uma emboscada, mas os goblins estúpidos, frenéticos ao ver
seus inimigos mais odiados, foram mesmo assim, sem prestar atenção ao perigo.
Quando a maioria dos monstros estava nas bordas e o resto fazia a descida inicial ao
vale, a primeira armadilha foi lançada. Cattibrie, fortemente armada, mas
posicionada na parte de trás dos túneis internos, puxou uma alavanca, largando um
poste na crista superior do vale. Toneladas de pedras e cascalho caíram sobre a
retaguarda da linha de monstros, e aqueles que conseguiram manter seu equilíbrio
precário e escapar do impacto da avalanche encontraram as trilhas atrás deles
fechadas para qualquer fuga.
Bestas zuniam de cantos escondidos, e um grupo de anões saiu correndo para
encontrar os goblins da frente.
Bruenor não estava com eles. Ele se escondera ainda mais na trilha e viu os goblins,
concentrados no desafio adiante, passarem por ele. Ele poderia ter atacado, mas
estava atrás de uma presa maior, esperando que os ogros chegassem ao alcance. A
corda já havia sido cuidadosamente medida e amarrada. Ele passou uma das pontas
em volta da cintura e a outra por cima de uma pedra, depois puxou dois machados
do cinto.
Era uma manobra arriscada, talvez a mais perigosa que o anão já tentara, mas a pura
emoção se tornou óbvia na forma de um sorriso largo no rosto de Bruenor quando
ouviu os ogros pesados e desajeitados se aproximando. Ele mal conseguiu conter o
riso quando dois deles cruzaram diante dele na trilha estreita.
Saltando de seu esconderijo, Bruenor atacou os ogros surpresos e lançou os
machados em suas cabeças. Os ogros torceram e conseguiram desviar os arremessos
medíocres, mas as armas arremessadas eram apenas uma distração.
O corpo de Bruenor era a verdadeira arma no ataque.
Surpresos e esquivando-se dos machados, os dois ogros foram desequilibrados. O
plano estava se encaixando perfeitamente; os ogros mal conseguiam ficar de pé.
Contraindo os músculos poderosos em suas pernas grossas, Bruenor se lançou no ar,
colidindo com o monstro mais próximo, derrubando-o sobre o outro.
E eles caíram, todos os três, além da borda.
Um dos ogros conseguiu prender a mão enorme no rosto do anão, mas Bruenor
prontamente a mordeu, e o monstro a recolheu. Por um momento, eles foram uma
confusão de pernas e braços agitados, mas a corda de Bruenor alcançou seu
comprimento e os separou.
— Tenham uma boa aterrissagem, rapazes — gritou Bruenor quando se libertou da
queda. — Dêem um beijão nas pedras por mim!
O balanço da corda fez Bruenor aterrizar na entrada de uma mina na próxima
plataforma mais baixa, enquanto suas vítimas desamparadas caíam para a morte.
Vários goblins em linha atrás dos ogros assistiram ao espetáculo com espanto.
Agora eles reconheciam a oportunidade de usar o cabo pendurado como atalho para
uma das cavernas e, um a um, escalavam a corda e desciam.
Mas Bruenor havia previsto isso. Os goblins descendentes não conseguiam entender
por que a corda parecia tão escorregadia em suas mãos.
Quando Bruenor apareceu na borda inferior, com a ponta da corda em uma mão e
uma tocha acesa na outra, eles entenderam.
As chamas lamberam a corda coberta de óleo. O goblin que estava mais alto
conseguiu voltar à borda; o resto seguiu o mesmo caminho que os infelizes ogros
diante deles. Um quase se escapou da queda fatal, aterrissando pesadamente na
borda inferior. Porém antes que pudesse sequer se levantar, Bruenor o chutou.
O anão assentiu com aprovação enquanto admirava os resultados bem-sucedidos de
sua obra. Esse era um truque do qual pretendia se lembrar. Ele bateu as mãos e
tornou a correr duto abaixo. Ele se inclinava mais para trás para se juntar aos túneis
mais altos.
Na borda superior, os anões estavam lutando em retirada. O plano deles não era
entrar em confronto mortal lá fora, mas atrair os monstros para as entradas dos
túneis. Com o desejo de matar apagando qualquer semelhança de razão, os
invasores idiotas concordaram prontamente, assumindo que seus números maiores
estavam encurralando os anões.
Vários túneis logo soaram com o choque de espadas. Os anões continuaram a
recuar, levando os monstros completamente para a armadilha final. Então, de algum
lugar mais profundo nas cavernas, uma corneta soou. Seguindo a deixa, os anões se
separaram da confusão e fugiram pelos túneis.
Os goblins e ogros, achando que haviam derrotado seus inimigos, pararam apenas
para gritar gritos de vitória e depois correram atrás dos anões.
Mas no fundo dos túneis várias alavancas foram puxadas. A armadilha final fora
acionada e todas as entradas do túnel simplesmente desabaram. O chão tremeu
violentamente sob o peso da queda da rocha; toda a face do penhasco desabou.
Os únicos monstros que sobreviveram foram os que estavam nas fileiras da frente.
E desorientados, atingidos pela força da queda e atordoados pela explosão de
poeira, foram imediatamente derrubados pelos anões que esperavam.
Até as pessoas distantes em Bryn Shander ficaram abaladas com a tremenda
avalanche. Eles correram para a parede norte para assistir a crescente nuvem de
poeira, consternados, pois acreditavam que os anões haviam sido destruídos.
Mas Regis sabia. O halfling invejava os anões, sepultados em segurança em seus
longos túneis. Ele percebera assim que viu os incêndios subindo de Caer-Konig que
seu atraso na cidade, esperando seu amigo de Bosque Solitário, lhe custara a chance
de escapar.
Agora ele assistia, impotente e sem esperança, enquanto a massa negra avançava
em direção a Bryn Shander.

As frotas de Maer Dualdon e Águas Rubras haviam retornado aos seus portos assim
que perceberam o que estava acontecendo. Encontraram suas famílias seguras no
momento, exceto pelos pescadores de Termalaine que navegaram para uma cidade
deserta. Tudo o que os homens de Termalaine tinham quando relutantemente
voltaram para o lago era a esperança de que seus parentes tivessem chegado a Bryn
Shander ou algum outro santuário, pois viram o flanco norte do exército de Kessell
atravessando o campo em direção à sua cidade condenada
Targos, a segunda cidade mais forte e a única além de Bryn Shander com alguma
esperança de se manter por algum tempo contra o vasto exército, convidou os
navios de Termalaine a aportarem em suas docas. E os homens de Termalaine, que
em breve estariam entre os sem-teto, aceitaram a hospitalidade de seus amargos
inimigos ao sul. Suas disputas com o povo de Kemp pareciam mesquinhas com o
peso do desastre que havia acontecido nas cidades.

De volta à batalha principal, os generais goblins que lideravam o exército de


Kessell estavam confiantes de que poderiam invadir Bryn Shander antes do
anoitecer. Eles seguiam o plano do líder à risca. O corpo principal do exército se
afastou de Bryn Shander e desceu a faixa de terreno aberto entre a cidade principal
e Targos, logo, cortando qualquer possibilidade das duas cidades poderosas unirem
suas forças.
Várias das tribos dos goblins haviam se separado do grupo principal e estavam
atacando Termalaine, com a intenção de saquear sua terceira cidade do dia. Mas
quando encontraram o lugar deserto, desistiram de queimar os prédios. Parte do
exército de Kessell agora tinha um acampamento pronto para esperar o cerco que se
aproximava com conforto.
Como dois grandes braços, milhares de monstros correram para o sul a partir da
força principal. O exército de Kessell era tão vasto que encheu os quilômetros de
campo entre Bryn Shander e Termalaine e ainda tinha números suficientes para
cercar a colina da cidade principal com espessas tropas.
Tudo acontecera tão rapidamente que, quando os goblins finalmente pararam sua
investida frenética, a mudança parecia excessivamente dramática. Após alguns
minutos de calma desconfortável, Regis sentiu a tensão aumentar de novo.
— Por que eles simplesmente não acabam com isso? — perguntou aos dois porta-
vozes que estavam ao seu lado.
Cassius e Glensather, mais conhecedores dos modos de guerra, entendiam
exatamente o que estava acontecendo.
— Eles não têm pressa, amiguinho — explicou Cassius. — O tempo os favorece.
Então Regis entendeu. Durante seus muitos anos nas terras mais populosas do sul,
ouvira muitas histórias vívidas descrevendo os terríveis horrores de um cerco.
A imagem da última saudação de Agorwal à distância retornou a ele, o olhar
contente no rosto do porta-voz e sua vontade de morrer valentemente. Regis não
queria morrer de maneira alguma, mas podia imaginar o que estava diante dele e do
povo encurralado de Bryn Shander.
Ele se viu invejando Agorwal.
Capítulo 24

Cryshal-Tirith

DRIZZT LOGO CHEGOU AO TERRENO SURRADO onde o exército havia


passado. Os rastros não surpreenderam o drow, pois os pilares de fumaça já haviam
lhe dito muito do que havia acontecido. Sua única pergunta restante era se alguma
das cidades havia resistido ou não, e ele correu em direção à montanha, se
perguntando se ainda tinha um lar para onde voltar.
Então sentiu uma presença, uma aura de outro mundo que estranhamente o lembrou
dos dias de sua juventude. Ele se inclinou para verificar o terreno novamente.
Algumas das marcas eram trilhas frescas de trolls e um tipo de marca no chão que
não poderia ter sido causada por nenhum ser mortal. Drizzt olhou em volta
nervosamente, mas o único som era o luto do vento e as únicas silhuetas no
horizonte eram os picos do Sepulcro de Kelvin diante dele e a Espinha do Mundo,
ao sul. Drizzt fez uma pausa para refletir sobre a presença por alguns momentos,
tentando colocar a familiaridade que sentia mais em foco.
Ele avançou hesitantemente. Agora entendia a fonte de suas lembranças, embora
seus detalhes exatos continuassem elusivos. Ele sabia o que estava seguindo.
Um demônio havia chegado a Vale do Vento Gélido.
O Sepulcro de Kelvin parecia muito maior antes de Drizzt alcançar o bando. Sua
sensibilidade às criaturas dos planos inferiores, provocada por séculos de associação
com eles em Menzoberranzan, disse-lhe que estava se aproximando do demônio
antes mesmo que ele se tornasse visível.
Viu as formas distantes, meia dúzia de trolls marchando em uma fila apertada, e no
meio deles, erguendo-se sobre eles, havia um enorme monstro do Abismo. Não
menor ou mediano, Drizzt soube de cara, mas um demônio maior. Kessell deveria
ser realmente poderoso se mantinha tal monstro formidável sob seu controle!
Drizzt os seguiu a uma distância cautelosa. O bando estava concentrado em seu
destino, e sua cautela era desnecessária. Mas Drizzt não estava disposto a se
arriscar, pois havia testemunhado muitas vezes a ira de tais demônios. Eles eram
comuns nas cidades dos drow, mais uma prova para Drizzt Do’Urden de que os
caminhos de seu povo não eram para ele.
Ele se aproximou, pois algo mais havia prendido sua atenção. O demônio estava
segurando um pequeno objeto que irradiava uma magia tão poderosa que os drow,
mesmo a essa distância, podiam senti-lo claramente. Estava muito mascarado pelas
próprias emanações do demônio para Drizzt ter uma perspectiva clara, então recuou
cautelosamente mais uma vez.
As luzes de milhares de fogueiras surgiram quando o grupo e Drizzt se
aproximaram da montanha. Os goblins haviam posto batedores nessa mesma área, e
Drizzt percebeu que havia ido tão ao sul quanto podia. Ele interrompeu sua busca e
seguiu para os melhores pontos de vista montanha acima.
O momento mais adequado à visão subterrânea dos drow eram as horas de leve
claridade pouco antes do nascer do sol e, embora estivesse cansado, Drizzt estava
determinado a estar em posição naquele momento. Ele rapidamente subiu as rochas,
escalando gradualmente até a face sul da montanha.
Então viu as fogueiras que cercavam Bryn Shander. Mais ao leste, brasas brilhavam
nos escombros que haviam sido Caer-Konig e Caer-Dineval. Gritos selvagens
soaram de Termalaine, e Drizzt soube que a cidade em Maer Dualdon estava nas
mãos do inimigo.
E então o pré-amanhecer azulou o céu noturno, e muito mais ficou aparente. Drizzt
olhou pela primeira vez para o extremo sul do vale dos anões e sentiu-se confortado
pela parede à sua frente ter desmoronado. O pessoal de Bruenor estava seguro, pelo
menos, e Regis com eles, supôs o drow.
Mas a visão de Bryn Shander era menos reconfortante. Drizzt ouvira as informações
do orc capturado e vira os rastros do exército e suas fogueiras, mas nunca poderia
imaginar a vasta assembleia que se descortinava diante dele quando a luz aumentou.
A visão o deixou cambaleante.
— Quantas tribos de goblins você reuniu, Akar Kessell? — ele ofegou. — E
quantos gigantes te chamam de mestre?
Ele sabia que as pessoas em Bryn Shander sobreviveriam apenas enquanto Kessell
deixasse. Não conseguiriam resistir a essa força.
Desanimado, se virou para procurar um buraco onde pudesse descansar um pouco.
Ele não seria de ajuda imediata ali e a exaustão aumentava sua desesperança,
impedindo-o de pensar construtivamente.
Quando se afastou da face da montanha, uma atividade repentina no campo distante
chamou sua atenção. Não conseguia distinguir indivíduos a essa distância, o
exército parecia apenas uma massa negra, mas sabia que o demônio havia surgido.
Viu o ponto mais escuro de sua presença maligna percorrer uma área limpa apenas a
algumas centenas de metros abaixo dos portões de Bryn Shander. E sentiu a aura
sobrenatural da poderosa magia que havia sentido anteriormente, como o coração
vivo de uma forma de vida desconhecida, pulsando nas garras do demônio.
Goblins se juntaram para assistir ao espetáculo, mantendo uma distância respeitável
entre eles e o general perigosamente imprevisível de Kessell.
— O que é isso? — perguntou Regis, esmagado entre a multidão que assistia na
muralha de Bryn Shander.
— Um demônio — respondeu Cassius. — Um demônio grande.
— Zomba de nossas defesas escassas! — gritou Glensather. — Como podemos
esperar enfrentar um inimigo desses?
O demônio se abaixou, envolvido no ritual para evocar o encantamento do objeto
cristalino. Ele pôs o Fragmento de Cristal de pé na grama e deu um passo para trás,
berrando as palavras obscuras de um feitiço antigo, subindo a um crescendo quando
o céu começou a brilhar com a iminente aparição do sol.
— Uma adaga de vidro? — Regis perguntou, intrigado com o objeto pulsante.
Então o primeiro raio do amanhecer surgiu do horizonte. O cristal cintilou e
convocou a luz, dobrando o caminho do raio de sol e absorvendo sua energia.
O fragmento tornou a brilhar. As pulsações se intensificaram à medida que mais do
sol surgia no céu oriental, apenas para ter sua luz sugada pela imagem faminta de
Crenshinibon.
Os espectadores na muralha ficaram boquiabertos de horror, se perguntando se Akar
Kessell tinha poder sobre o próprio sol. Somente Cassius teve a presença de espírito
para conectar o poder do fragmento à luz do sol.
O cristal começou a crescer. Ele inchava quando cada pulso atingia seu pico, depois
encolhia um pouco enquanto a próxima pulsação se preparava. Tudo ao seu redor
permaneceu nas sombras, pois o fragmento consumia avidamente toda a luz do sol.
Lenta, mas inevitavelmente, sua circunferência aumentou e sua ponta subiu no ar.
As pessoas na muralha e os monstros no campo tiveram que desviar os olhos do
poder iluminado de Cryshal-Tirith. Somente o drow, de seu ponto de vista distante,
e o demônio, que era imune, testemunharam outra imagem de Crenshinibon sendo
elevada. A terceira Cryshal-Tirith ganhou vida. A torre soltou o sol quando o ritual
foi concluído e toda a região foi banhada pela luz da manhã.
O demônio rugiu pelo feitiço bem sucedido e entrou orgulhosamente na porta
espelhada da nova torre, seguido pelos trolls, a guarda pessoal do mago.
Os habitantes sitiados de Bryn Shander e Targos contemplavam a estrutura incrível
com uma mistura confusa de admiração, apreço e terror. Não conseguiam resistir à
beleza sobrenatural de Cryshal-Tirith, mas sabiam as consequências da aparição da
torre. Akar Kessell, mestre dos goblins e gigantes, havia chegado.

Goblins e orcs caíram de joelhos, e todo o vasto exército começou o canto de


Kessell! Kessell!, prestando homenagem ao mago com uma devoção fanática que
provocava arrepios nas testemunhas humanas do espetáculo.
Drizzt também ficou nervoso com a extensão da influência e devoção que o mago
exercia sobre as tribos dos normalmente independentes goblins. O drow determinou
naquele momento que a única chance de sobrevivência para o povo de Dez-Burgos
estava na morte de Akar Kessell. Sabia antes mesmo de ter considerado qualquer
opção possível que tentaria chegar ao mago. Porém, por enquanto, precisava
descansar. Ele encontrou um buraco escuro logo atrás da face do Sepulcro de
Kelvin e deixou sua exaustão derrubá-lo.
Cassius também estava cansado. O porta-voz permaneceu na muralha durante toda
a noite fria, examinando os acampamentos para determinar quanto da inimizade
natural entre as tribos indisciplinadas restava. Vira rixas menores e xingamentos,
mas nada extremo o suficiente para lhe dar esperança de que o exército
desmoronasse ainda durante o começo do cerco. Ele não conseguia entender como o
mago alcançara uma unificação tão dramática dos arqui-inimigos. A aparição do
demônio e a criação de Cryshal-Tirith haviam mostrado o incrível poder que
Kessell comandava. Ele logo chegou à mesmas conclusão que o drow.
Ao contrário de Drizzt, o porta-voz de Bryn Shander não descansou quando o
campo se acalmou, apesar dos protestos de Regis e Glensather, preocupados com
sua saúde. Cassius carregava nos ombros a responsabilidade pelas milhares de
pessoas aterrorizadas e amontoadas dentro das muralhas da cidade e não haveria
descanso para ele. Precisava de informações; precisava encontrar um elo fraco na
armadura aparentemente invencível do mago.
E assim o porta-voz observou diligente e pacientemente durante o primeiro dia
longo e sem eventos do cerco, observando os limites que as tribos dos goblins
estabeleceram como seus e a ordem da hierarquia que determinava a distância de
cada grupo do ponto central de Cryshal-Tirith.

Longe, a leste, as frotas de Caer-Konig e Caer-Dineval atracavam ao lado das docas


da cidade abandonada de Refúgio Leste. Várias tripulações haviam desembarcado
para coletar suprimentos, mas a maioria das pessoas continuava nos barcos, sem
saber até que ponto o braço de Kessell se estendia.
Jensin Brent e seu colega de Caer-Konig haviam assumido o controle total de sua
situação imediata nos conveses do Perseguidor da Névoa, a nau principal de Caer-
Dineval. Todas as disputas entre as duas cidades foram suspensas, pelo menos
temporariamente – embora promessas de amizade continuada fossem ouvidas nos
conveses de todos os navios de Lac Dinneshere. Ambos os porta-vozes
concordaram que ainda não iriam sair das águas do lago e fugir, pois perceberam
que não tinham para onde ir. Todas as dez cidades foram ameaçadas por Kessell, e
Luskan estava a 400 quilômetros de distância do outro lado do exército de Kessell.
Os refugiados mal equipados não podiam esperar alcançá-la antes que a primeira
neve do inverno chegasse.
Os marinheiros que desembarcaram logo retornaram às docas com as boas notícias
apreciadas de que Refúgio Leste ainda não fora tocada pela escuridão. Mais equipes
foram ordenadas a irem em terra para coletar alimentos e cobertores extras, mas
Jensin Brent jogou com cautela, pensando que seria sensato manter a maioria dos
refugiados na água além do alcance de Kessell.
Mais notícias promissoras vieram pouco tempo depois.
— Sinais de Águas Rubras, porta-voz Brent! — o vigia no topo do cesto da gávea
da Perseguidor da Névoa gritou. — As pessoas de Bom Prado e Toca de Dougan
estão ilesas! — Ele ergueu o porta-notícias, uma pequena peça de vidro criada em
Termalaine e projetada para focalizar a luz do sol para sinalizar através dos lagos,
usando códigos de sinalização intricados, embora limitados. — Meus sinais foram
atendidos!
— Onde eles estão? — Brent perguntou animado.
— Nas margens do leste — respondeu o vigia. — Eles navegaram para longe de
suas aldeias, achando-as indefensáveis. Nenhum dos monstros se aproximou, mas
os porta-vozes acharam que o outro lado do lago seria mais seguro até os invasores
partirem.
— Mantenha a comunicação aberta — ordenou Brent. — Avise quando tiver mais
notícias.
— Até os invasores partirem? — Schermont ecoou incrédulo quando foi para perto
de Jensin Brent.
— Uma avaliação tolamente esperançosa da situação, concordo — disse Brent. —
Mas estou aliviado que nossos primos do sul ainda estejam vivos!
— Vamos até eles? Unir nossas forças?
— Ainda não — respondeu Brent. — Receio que ficaríamos vulneráveis demais em
campo aberto entre os lagos. Precisamos de mais informações antes de tomar
qualquer ação eficaz. Vamos manter as comunicações fluindo entre os dois lagos.
Reúna voluntários para levar mensagens para Águas Rubras.
— Eles serão enviados imediatamente — concordou Schermont enquanto se
afastava.
Brent assentiu e olhou para o outro lado do lago, para a nuvem de fumaça
moribunda acima de seu lar.
— Mais informações — murmurou para si mesmo.
Outros voluntários saíram mais tarde naquele dia para o oeste traiçoeiro para
explorar a situação na cidade principal.
Brent e Schermont fizeram um trabalho magistral para conter o pânico, mas mesmo
com os ganhos substanciais na organização, o choque da invasão repentina e mortal
deixou a maioria dos sobreviventes de Caer-Konig e Caer-Dineval em um estado de
total desespero. Jensin Brent foi a exceção brilhante. O porta-voz de Caer-Dineval
era um lutador corajoso que se recusava firmemente a ceder até o último suspiro
deixar seu corpo. Ele navegou em seu orgulhoso navio pelos ancoradouros dos
outros, reunindo as pessoas com seus gritos de vingança prometida contra Akar
Kessell.
Agora observava e esperava no Perseguidor da Névoa pelas notícias críticas do
oeste. No meio da tarde, ouviu o chamado pelo qual havia orado.
— Ela está de pé! — o observador no cesto da gávea gritou em êxtase quando o
sinal do porta-notícias se acendeu. — Bryn Shander está de pé!
De repente, o otimismo de Brent ganhou credibilidade. O miserável bando de
vítimas sem-teto assumiu uma postura de raiva apoiada no desejo de vingança. Mais
mensageiros foram despachados imediatamente para Águas Rubras levando a
notícia de que Kessell ainda não havia alcançado a vitória completa.
Em ambos os lagos, a tarefa de separar os guerreiros dos civis logo começou a
sério, com mulheres e crianças se mudando para os barcos mais pesados e menos
navegáveis, e os combatentes embarcando nos navios mais rápidos. Os navios de
guerra designados foram transferidos para as amarras de saída, onde poderiam
zarpar rapidamente através dos lagos. Suas velas foram verificadas e apertadas, em
preparação para a incursão selvagem que levaria suas bravas tripulações à guerra.
Ou, pelo furioso decreto de Jensin Brent, “a incursão que levaria suas bravas
tripulações à vitória!”

Regis juntou-se a Cassius na muralha quando o sinal do porta-notícias foi detectado


nas margens sudoeste de Lac Dinneshere. O halfling dormiu a maior parte da noite
e do dia, imaginando que poderia ao menos morrer fazendo o que mais amava.
Ficou surpreso quando acordou, esperando que seu sono durasse pela eternidade.
Cassius estava começando a ver as coisas de forma um pouco diferente, porém.
Havia compilado uma longa lista de possíveis colapsos no exército rebelde de Akar
Kessell: orcs intimidando goblins, e gigantes, por sua vez, intimidando ambos. Se
pudesse encontrar uma maneira de aguentar tempo suficiente para que o óbvio ódio
entre as raças goblinoides causasse um impacto sobre a força de Kessell...
O sinal de Lac Dinneshere e relatos subsequentes de sinais semelhantes no outro
lado de Águas Rubras deram ao porta-voz sincera esperança de que o cerco pudesse
se desintegrar e Dez-Burgos sobreviver.
Mas o mago fez sua aparição dramática e as esperanças de Cassius foram
esmagadas.
Tudo começou como um pulso de luz vermelha circulando dentro da parede de
vidro na base de Cryshal-Tirith. Então, um segundo pulso, este azul, surgiu no topo
da torre, girando na direção oposta. Lentamente, circularam o diâmetro da torre,
misturando-se em verde enquanto convergiam, depois se separando e continuando o
caminho. Todos os que podiam ver o espetáculo hipnotizador olhavam apreensivos,
sem saber o que aconteceria a seguir, mas convencidos de que uma demonstração
de tremendo poder estava por vir.
As luzes em círculo aceleraram, sua intensidade aumentando com a velocidade.
Logo toda a base da torre foi rodeada por um borrão verde, tão brilhante que os
espectadores tiveram que desviar os olhos. Para fora do borrão surgiram dois trolls
hediondos, cada um portando um espelho ornamentado.
As luzes diminuíram e pararam completamente.
A mera visão dos trolls nojentos encheu o povo de Bryn Shander de repulsa, mas,
intrigados, ninguém se afastou. Os monstros caminharam direto para a base da
colina inclinada da cidade e ficaram de frente, apontando os espelhos
diagonalmente um para o outro, mas ainda assim pegando o reflexo de Cryshal-
Tirith.
Dois feixes de luz disparavam da torre, cada um atingindo um dos espelhos e
convergindo com o outro na metade do caminho entre os trolls. Um pulso repentino
da torre, como um relâmpago, deixou a área entre os monstros encoberta por
fumaça, e, quando se dissipou, em vez dos raios convergentes de luz, havia uma
casca fina e torta de um homem em um manto acetinado vermelho.
Goblins caíram de joelhos novamente e esconderam o rosto no chão.
Akar Kessell havia chegado.
Ele olhou na direção de Cassius na muralha, com um sorriso arrogante esticado em
seus lábios finos.
— Saudações, porta-voz de Bryn Shander! — gargalhou. — Bem-vindo à minha
bela cidade! — riu ironicamente.
Cassius não tinha dúvida de que o mago o havia identificado, embora não se
lembrasse de ter visto o homem e não entendesse como tinha sido reconhecido. Ele
olhou para Regis e Glensather em busca de uma explicação, mas ambos deram de
ombros.
— Sim, conheço você, Cassius — disse Kessell. — E para você, bom porta-voz
Glensather, minhas saudações. Eu deveria ter adivinhado que você estaria aqui; o
povo de Refúgio Leste sempre esteve disposto a participar de uma causa, não
importa o quão desesperada!
Agora foi a vez de Glensather olhar pasmo para seus companheiros. Mas,
novamente, não havia explicações.
— Você nos conhece — Cassius respondeu à aparição — mas é desconhecido para
nós. Parece que você tem uma vantagem injusta.
— Injusta? — protestou o mago. — Eu tenho todas as vantagens, homem tolo! —
mais uma vez a gargalhada. — Vocês me conhecem... pelo menos Glensather
conhece.
O porta-voz de Refúgio Leste deu de ombros novamente em resposta ao olhar
indagador de Cassius. O gesto pareceu irritar Kessell.
— Passei vários meses morando em Refúgio Leste — retrucou o mago. — Sob o
disfarce de um aprendiz de mago de Luskan! Inteligente, você não concorda?
— Você se lembra dele? — Cassius perguntou a Glensather suavemente. — Pode
ser de grande importância.
— É possível que tenha ficado em Refúgio Leste — respondeu Glensather nos
mesmos tons sussurrados — embora nenhum grupo da Torre Central tenha entrado
em minha cidade há vários anos. No entanto, somos uma cidade aberta e muitos
estrangeiros chegam com todas as caravanas comerciais que passam. Eu digo a
verdade, Cassius, não me lembro desse homem.
Kessell ficou indignado. Bateu o pé com impaciência, e o sorriso no rosto foi
substituído por um beicinho franzido.
— Talvez meu retorno a Dez-Burgos se mostre mais memorável, tolos! —
vociferou. Ele estendeu os braços em proclamação auto importante. — Contemplem
Akar Kessell, o Tirano do Vale do Vento Gélido. — gritou. — Povo de Dez-Burgos,
seu mestre chegou!
— Suas palavras são um pouco prematuras — Cassius começou, mas Kessell
interrompeu-o com um grito frenético.
— Nunca me interrompa! — o mago gritou, as veias em seu pescoço esticadas e
salientes e seu rosto ficando vermelho como sangue.
Então, quando Cassius se silenciou em descrença, Kessell pareceu recuperar um
pouco de sua compostura.
— Você vai aprender, orgulhoso Cassius — ameaçou. — Você vai aprender!
Ele voltou-se para Cryshal-Tirith e pronunciou uma simples palavra de comando. A
torre ficou negra por um momento, como se estivesse se recusando a liberar os
reflexos da luz do sol. Então começou a brilhar, bem no fundo, com uma luz que
parecia mais própria do que um reflexo do dia. A cada segundo que passava, a
tonalidade mudava e a luz começava a subir e a circular pelas paredes estranhas.
— Contemplem Akar Kessell! — o mago proclamou, ainda franzindo a testa. —
Olhe para o esplendor de Crenshinibon e abandone toda a esperança! — Mais luzes
começaram a piscar dentro das paredes da torre, subindo, descendo e girando sobre
a estrutura em uma dança frenética que clamava por libertação. Gradualmente
estavam subindo até o pináculo pontiagudo, que começou a brilhar passando pelas
cores do espectro até sua luz branca rivalizar com o brilho do próprio sol.
Kessell gritou como um homem em êxtase.
O fogo foi liberado.
Ele disparou em uma linha fina e abrasadora para o norte, em direção à infeliz
cidade de Targos. Muitos espectadores alinhavam-se na muralha alta de Targos,
embora a torre estivesse muito mais longe deles do que de Bryn Shander, e parecia
não mais do que um ponto brilhante na planície distante. Eles não tinham ideia do
que estava acontecendo abaixo da cidade principal, apesar de terem visto o raio de
fogo vindo em sua direção.
A essa altura já era tarde demais.
A ira de Akar Kessell rugiu na cidade orgulhosa, cortando uma faixa de devastação
instantânea. Incêndios brotaram ao longo de sua linha de matança. As pessoas
apanhadas no caminho sequer tiveram a chance de gritar antes de serem
simplesmente vaporizadas. Mas aqueles que sobreviveram ao ataque inicial,
mulheres e crianças e homens endurecidos pela tundra, que enfrentaram a morte mil
vezes e mais, gritaram. E seus lamentos foram levados pelo lago calmo até Bosque
Solitário e Bremen, até os goblins que aplaudiam em Termalaine e pela planície até
as testemunhas horrorizadas em Bryn Shander.
Kessell acenou com a mão e alterou levemente o ângulo da liberação, armando
assim a destruição por toda a Targos. Logo, todas as grandes estruturas da cidade
estavam queimando, e centenas de pessoas estavam mortas ou rolando no chão para
extirpar as chamas que engolfavam seus corpos ou ofegando impotentes em uma
busca desesperada por ar na fumaça pesada.
Kessell rejubilou-se com o momento.
Mas então sentiu um arrepio atingir sua coluna. A torre também pareceu tremer. O
mago agarrou a relíquia, ainda enfiada sob as dobras de sua túnica. Entendeu que
havia levado os limites da força de Crenshinibon longe demais.
Lá na Espinha do Mundo, a primeira torre que Kessell erguera desmoronou. E lá
fora, na tundra aberta, a segunda fizera o mesmo. O fragmento puxou suas
fronteiras, destruindo as imagens da torre que minaram sua força.
Kessell também estava cansado pelo esforço, e as luzes da Cryshal-Tirith que
sobraram começaram a se acalmar e depois a diminuir. O raio tremulou e morreu.
Mas havia já havia feito o que deveria fazer.
Quando a invasão chegou, Kemp e os outros orgulhosos líderes de Targos
prometeram ao povo que manteriam a cidade até que o último homem caísse, mas
até o teimoso porta-voz percebeu que não havia escolha além de fugir. Felizmente, a
cidade propriamente dita, que havia sofrido o impacto do ataque de Kessell, estava
em terreno alto, com vista para a área protegida da baía. As frotas permaneciam
ilesas. E os pescadores desabrigados de Termalaine já estavam nas docas, tendo
ficado com seus barcos depois de atracar em Targos. Assim que perceberam a
extensão inacreditável da destruição que estava ocorrendo na cidade, começaram a
se preparar para o afluxo iminente dos últimos refugiados da guerra. A maioria dos
barcos de ambas as cidades partiu minutos depois do ataque, desesperada para
afastar suas velas vulneráveis com segurança das faíscas e detritos soprados pelo
vento. Alguns poucos navios ficaram para trás, enfrentando os perigos crescentes
para resgatar qualquer chegada posterior nas docas.
As pessoas em Bryn Shander choravam com os contínuos gritos dos moribundos.
Cassius, no entanto, consumido por sua busca de procurar e entender a aparente
fraqueza que Kessell acabara de revelar, não tinha tempo para lágrimas. Na verdade,
os gritos o afetaram tão profundamente quanto a qualquer um, mas, não querendo
deixar que o lunático Kessell visse qualquer indício de fraqueza dele, transformou
seu rosto de tristeza em uma careta de ferro de pura raiva.
Kessell riu dele.
— Não fique amuado, pobre Cassius — o mago provocou — é impróprio.
— Você é um cão — respondeu Glensather. — E cães indisciplinados devem ser
espancados!
Cassius parou seu companheiro porta-voz com a mão estendida.
— Fique calmo, meu amigo — sussurrou. — Kessell vai se alimentar do nosso
pânico. Deixe-o falar, ele revela mais para nós do que imagina.
— Pobre Cassius — Kessell repetiu sarcasticamente. Então, de repente, o rosto do
mago se torceu de indignação. Cassius notou a mudança repentina, arquivando-a
com as outras informações que ele havia coletado.
— Marque bem o que vocês testemunharam aqui, povo de Bryn Shander! —
Kessell zombou. — Curve-se ao seu mestre, ou o mesmo destino pode recair sobre
vocês! E não há água atrás de vocês! Vocês não têm para onde correr!
Ele riu loucamente de novo e olhou por toda a colina, como se estivesse procurando
alguma coisa.
— O que vocês vão fazer? — ele gargalhou. — Vocês não têm lago! Eu disse,
Cassius. Ouça-me bem. Você me enviará um emissário amanhã, um emissário para
dar a notícia da sua rendição incondicional! E se seu orgulho impedir tal ato,
lembre-se dos gritos moribundos de Targos! Olhe para a cidade nas margens de
Maer Dualdon para conseguir alguma orientação, lamentável Cassius. Os incêndios
não terão morrido quando o dia amanhecer!
Nesse momento, um mensageiro correu até o porta-voz.
— Muitos navios foram vistos saindo de debaixo do manto de fumaça em Targos.
Os sinais dos porta-notícias já começaram a chegar dos refugiados.
— E quanto a Kemp? — Cassius perguntou ansiosamente.
— Ele vive — respondeu o mensageiro. — E jurou vingança.
Cassius deu um suspiro de alívio. Não gostava muito de seu colega de Targos, mas
sabia que o porta-voz experiente seria valioso para a causa de Dez-Burgos antes que
tudo terminasse.
Kessell ouviu a conversa e rosnou com desdém.
— E para onde eles vão correr? — perguntou para Cassius.
O porta-voz, com a intenção de estudar esse adversário imprevisível e
desequilibrado, não respondeu, mas Kessell respondeu à pergunta por ele:
— Para Bremen? Mas eles não podem! — estalou os dedos, começando a cadeia de
uma mensagem previamente combinada às forças mais ocidentais. Imediatamente,
um grande grupo de goblins se destacou e partiu para o oeste.
Em direção a Bremen.
— Viu só? Bremen cai antes que a noite acabe, e mais uma frota irá correr para o
lago precioso. A cena deve ser repetida na cidade no bosque, com resultados
previsíveis. Mas que proteção os lagos oferecerão a essas pessoas quando o inverno
implacável começar? — gritou. — Com que rapidez seus navios velejarão para
longe de mim quando as águas estiverem congeladas ao seu redor? — ele riu de
novo, mas desta vez mais a sério, mais perigosamente. — Que proteção vocês têm
contra Akar Kessell? — Cassius e o mago se prenderam com olhares inflexíveis. O
mago mal falou as palavras, mas Cassius o ouviu claramente. — Que proteção?

Em Maer Dualdon, Kemp reprimiu sua raiva enquanto observava sua cidade cair
em chamas. Rostos enegrecidos de fuligem olhavam para as ruínas em chamas com
descrença horrorizada, gritando e chorando por seus amigos e parentes perdidos.
Mas, como Cassius, Kemp converteu seu desespero em raiva construtiva. Assim
que soube da força de goblins que partia para Bremen, despachou seu navio mais
rápido para avisar às pessoas daquela cidade distante e informá-los dos
acontecimentos do outro lado do lago. Então enviou um segundo navio em direção
a Bosque Solitário para pedir comida e curativos, e talvez um convite para atracar.
Apesar de suas diferenças óbvias, os porta-vozes de Dez-Burgos eram parecidos de
muitas formas. Como Agorwal, que ficara feliz em sacrificar tudo para o bem do
povo, e Jensin Brent, que se recusava a ceder ao desespero, Kemp de Targos
começou a reunir seu povo para um ataque de retaliação. Ele ainda não sabia como
iria realizar tal feito, mas sabia que não tinha tido sua última palavra na guerra do
mago.
E, posicionado na muralha de Bryn Shander, Cassius também sabia.
Capítulo 25

Errtu

DRIZZT RASTEJOU PARA FORA da câmara escondida enquanto as últimas luzes


do sol poente começaram a desaparecer. Examinou o horizonte sul e ficou
novamente consternado. Precisara descansar, mas não pôde deixar de sentir uma
pontada de culpa ao ver a cidade de Targos queimando, como se tivesse
negligenciado seu dever de testemunhar o sofrimento das vítimas indefesas de
Kessell.
No entanto, o drow não havia ficado ocioso nem mesmo durante as horas de transe
meditativo que os elfos chamavam de sono. Ele havia retornado ao submundo de
suas memórias distantes em busca de uma sensação específica, a aura de uma
presença poderosa que ele conhecera uma vez. Embora não tivesse chegado perto o
suficiente para dar uma boa olhada no demônio que havia seguido na noite anterior,
algo sobre a criatura atingiu um acorde familiar em suas lembranças mais antigas.
Uma emanação não natural e penetrante cercava criaturas dos planos inferiores
quando elas caminhavam no mundo material, uma aura que os elfos negros, mais do
que qualquer outra raça, entendia e reconhecia. Não apenas esse tipo de demônio,
mas essa criatura em particular, era conhecida por Drizzt. Ele havia servido a seu
povo em Menzoberranzan por muitos anos.
— Errtu — sussurrou enquanto organizava seus sonhos.
Drizzt sabia o verdadeiro nome do demônio. Ele viria ao seu chamado.

A busca para encontrar um local apropriado a partir do qual pudesse chamar o


demônio fez com que Drizzt demorasse mais de uma hora, e passou várias outras
preparando a área. Seu objetivo era tirar o maior número possível de vantagens de
Errtu – tamanho e voo em particular – que pudesse, embora esperasse sinceramente
que o encontro não envolvesse combate. As pessoas que conheciam o drow o
consideravam ousado, às vezes até imprudente, mas isso era contra inimigos
mortais que recuariam ante a dor ardente de suas lâminas sibilantes. Demônios,
especialmente um do tamanho e força de Errtu, eram uma história diferente. Muitas
vezes, durante a juventude, Drizzt havia testemunhado a ira de um monstro assim.
Vira prédios derrubados, pedra sólida rasgada pelas garras enormes. Ele vira
poderosos guerreiros humanos batendo no monstro com golpes que tombariam um
ogro, apenas para descobrir, em seu horror agonizante, que suas armas eram inúteis
contra um ser tão poderoso dos planos inferiores.
Seu próprio povo geralmente se saía melhor contra os demônios, na verdade
recebendo até um pouco de respeito deles. Os demônios costumavam aliar-se aos
drows em termos uniformes, ou até mesmo serviam os elfos negros, pois eram
cautelosos com as armas poderosas e a magia que os drow possuíam. Mas isso era
no subterrâneo, onde as estranhas emanações das formações rochosas únicas
abençoavam os metais usados pelos artesãos drow com propriedades misteriosas e
mágicas. Drizzt não possuía nenhuma das armas de sua terra natal, pois sua estranha
magia não suportava a luz diurna; embora tivesse tido o cuidado de mantê-las
protegidos do sol, elas se tornaram inúteis logo depois de ter se mudado para a
superfície. Ele duvidava que as armas que agora carregava fossem capazes de
prejudicar Errtu. E mesmo que o fizessem, os demônios da estatura de Errtu não
poderiam ser verdadeiramente destruídos longe de seus planos nativos. Se
chegassem a um combate, o máximo que Drizzt podia esperar era banir a criatura
do Plano Material por cem anos.
Ele não tinha intenção de lutar.
No entanto, tinha que tentar algo contra o mago que ameaçava as cidades. Seu
objetivo agora era obter conhecimento que pudesse revelar uma fraqueza no mago,
e seu método era enganar e disfarçar, esperando que Errtu se lembrasse o suficiente
dos elfos negros para tornar sua história crível, mas não tanto para reconhecer as
mentiras frágeis que deixaria seu conto coeso.
O local que escolhera para a reunião era um vale abrigado a alguns metros da face
do penhasco da montanha. Um teto de pináculos formado por paredes convergentes
cobria metade da área – a outra metade estava aberta para o céu –, mas todo o local
ficava na encosta da montanha, atrás de muros altos, fora da vista de Cryshal-Tirith.
Agora Drizzt trabalhava com uma adaga, raspando runas de proteção nas paredes e
no chão na frente de onde se sentaria. Sua imagem mental desses símbolos mágicos
havia se enevoado ao longo dos anos, e sabia que o desenho deles estava longe de
ser perfeito. No entanto, percebeu que precisaria de qualquer proteção possível que
pudessem oferecer se Errtu se voltasse contra ele.
Quando terminou, sentou-se de pernas cruzadas sob a parte coberta, atrás da área
protegida, e jogou a pequena estatueta que carregava na mochila. Guenhwyvar seria
um bom teste para suas inscrições de proteção.
A grande gata respondeu à convocação. Apareceu do outro lado do cubículo, seus
olhos afiados examinando a área em busca de qualquer perigo potencial que
ameaçasse seu mestre. Então, não sentindo nada, deu uma olhada curiosa para
Drizzt.
— Venha até mim — Drizzt chamou, acenando com a mão. A gata andou a passos
largos na direção dele, depois parou abruptamente, como se tivesse acertado uma
parede. Drizzt suspirou de alívio quando viu que suas runas tinham alguma força.
Sua confiança foi bem reforçada, embora percebesse que Errtu levaria o poder das
runas a seus limites absolutos – e provavelmente além.
Guenhwyvar balançou sua cabeça enorme em um esforço para entender o que a
deteve. A resistência não tinha sido realmente muito forte, mas os sinais mistos de
seu mestre, chamando-a, porém a mantendo longe, confundiram a gata. Considerou
reunir forças e atravessar a barreira fraca, mas seu mestre pareceu satisfeito por ela
ter parado. Então, a gata sentou-se onde estava e esperou.
Drizzt estava ocupado estudando a área, procurando o lugar ideal para Guenhwyvar
surgir e surpreender o demônio. Uma saliência profunda em um dos muros altos
logo depois da porção que convergia para o telhado parecia oferecer o melhor
esconderijo. Ele apontou a posição para a gata e instruiu-a a não atacar até seu sinal.
Então se recostou e tentou relaxar, concentrado em seus últimos preparativos
mentais antes de chamar o demônio.

Do outro lado do vale, na torre mágica, Errtu estava agachado em um canto sombrio
do harém de Kessell, mantendo sua guarda sempre vigilante sobre o mago maligno
que brincava com as garotas já sem mente. Um fogo ardente de ódio ardeu nos
olhos de Errtu enquanto olhava para o tolo Kessell. O mago quase arruinara tudo
com sua demonstração de poder naquela tarde e sua recusa em derrubar as torres
vazias atrás dele, drenando ainda mais a força de Crenshinibon.
Errtu ficou terrivelmente satisfeito quando Kessell voltou a Cryshal-Tirith e
confirmou, através do uso dos espelhos, que as outras duas torres haviam se
despedaçado. Errtu alertara Kessell contra erguer uma terceira torre, mas o mago,
de ego frágil, se tornava mais teimoso a cada dia de campanha, vendo os conselhos
do demônio, ou mesmo de Crenshinibon, como uma manobra para minar seu
controle absoluto.
Logo, Errtu foi bastante receptivo, até aliviado, ao ouvir o chamado de Drizzt
flutuando pelo vale. A princípio, negou a possibilidade de tal convocação, mas as
inflexões de seu nome verdadeiro sendo pronunciadas em voz alta provocaram
arrepios involuntários ao longo da espinha do demônio. Mais intrigado do que
irritado com a impertinência de um mortal que ousasse pronunciar seu nome, Errtu
se afastou do mago distraído e foi para fora de Cryshal-Tirith.
O chamado veio novamente, cortando através da harmoniosa da canção
interminável do vento como uma onda quebrando em um lago calmo.
Errtu abriu suas grandes asas e voou para o norte sobre a planície, acelerando em
direção ao invocador. Goblins aterrorizados fugiram da escuridão da sombra
passageira do demônio, pois mesmo no brilho fraco de uma lua fina, a criatura do
Abismo deixava um rastro escuro que fazia a noite parecer brilhante em
comparação.
Drizzt respirou fundo. Ele sentiu a aproximação infalível do demônio enquanto se
afastava do Caminho de Bremen e varria as encostas mais baixas do Sepulcro de
Kelvin. Guenhwyvar levantou a cabeça das patas e rosnou, também sentindo a
aproximação do monstro maligno. A gata se abaixou para o fundo da borda
profunda e ficou parada e imóvel, esperando o comando de seu mestre, confiante de
que suas habilidades aumentadas de furtividade poderiam protegê-lo mesmo contra
os sentidos altamente desenvolvidos de um demônio.
As asas de couro de Errtu dobraram-se firmemente quando pousaram na borda. Ele
imediatamente identificou a localização exata do invocador e, embora tivesse que
dobrar seus ombros largos para passar pela estreita entrada, passou direto, com a
intenção de apaziguar sua curiosidade e depois matar o tolo blasfemo que ousava
dizer seu nome em voz alta.
Drizzt lutou para manter seu controle quando o enorme demônio entrou, seu volume
preenchendo a pequena área além de seu pequeno santuário, bloqueando a luz das
estrelas diante dele. Não havia como voltar atrás de seu curso perigoso. Ele não
tinha para onde correr.
O demônio parou de repente, espantado. Fazia séculos desde que Errtu tinha olhado
para um drow, e certamente nunca esperava encontrar um na superfície, nas terras
congeladas do norte mais distante.
De alguma forma, Drizzt encontrou sua voz.
— Saudações, mestre do caos — disse calmamente, curvando-se. — Sou Drizzt
Do’Urden, da casa de Daermon N’a’shezbaernon, nona família do trono de
Menzoberranzan. Bem-vindo ao meu humilde acampamento.
— Você está muito longe de casa, drow — disse o demônio com suspeita óbvia.
— Assim como você, grande demônio do Abismo — Drizzt respondeu friamente.
— E atraído para este canto alto do mundo por razões semelhantes, a menos que
meu palpite esteja errado.
— Eu sei por que estou aqui — respondeu Errtu. — Os negócios dos drow já estão
além do que eu entenda ou me importe.
Drizzt acariciou seu queixo esbelto e riu com confiança fingida. Seu estômago
parecia amarrado e sentiu o começo de um suor frio chegando. Riu de novo e lutou
contra o medo. Se o demônio sentisse sua inquietação, sua credibilidade seria
grandemente diminuída.
— Ah, mas desta vez, pela primeira vez em muitos anos, parece que as estradas de
nossos negócios se cruzaram, poderoso fornecedor da destruição. Meu povo tem
curiosidade, talvez até um interesse pessoal, no mago que você aparentemente
serve!
Errtu ergueu os ombros, com os primeiros tremores de uma chama perigosa
evidente em seus olhos vermelhos.
— Serve? — ecoou incrédulo, o tom uniforme de sua voz tremendo, como se
estivesse à beira de uma raiva incontrolável.
Drizzt foi rápido em qualificar sua observação.
— Por todas as aparências, guardião de intenções caóticas, o mago detém algum
poder sobre você. Certamente você trabalha ao lado de Akar Kessell!
— Não sirvo a humano nenhum! — Errtu rugiu, sacudindo o alicerce da caverna
com uma batida enfática de seu pé.
Drizzt se perguntou se a luta que não esperava vencer estava prestes a começar. Ele
pensou em chamar Guenhwyvar para que pudessem pelo menos acertar os
primeiros golpes.
Mas o demônio de repente se acalmou. Convencido de que havia adivinhado a
razão da presença inesperada dos drow, Errtu olhou com atenção para Drizzt.
— Servir o mago? — riu. — Akar Kessell é insignificante mesmo pelos baixos
padrões humanos! Mas você sabe disso, drow, e não ouse negar. Você está aqui,
como eu estou aqui, por Crenshinibon, e que se dane Kessel!
O olhar confuso no rosto de Drizzt era genuíno o suficiente para deixar Errtu
desequilibrado. O demônio ainda acreditava que tinha adivinhado corretamente,
mas não conseguia entender por que o drow não entendia o nome.
— Crenshinibon — explicou, varrendo a mão com garras para o sul. — Um bastião
antigo de poder indizível.
— A torre? — Drizzt perguntou.
A incerteza de Errtu borbulhou na forma de fúria explosiva.
— Não banque o ignorante comigo! — o demônio gritou. — Os senhores drow
conhecem bem o poder do artefato de Akar Kessell, caso contrário não teriam
aparecido à superfície para procurá-lo!
— Muito bem, você sabe a verdade — admitiu Drizzt. — No entanto, eu tinha que
ter certeza de que a torre na planície era realmente o artefato antigo que eu procuro.
Meus mestres mostram pouca piedade para espiões descuidados. — Errtu sorriu
maliciosamente ao se lembrar das câmaras de tortura profanas de Menzoberranzan.
Aqueles anos que passara entre os elfos negros foram mesmo agradáveis!
Drizzt rapidamente levou a conversa em uma direção que poderia revelar algumas
fraquezas de Kessell ou de sua torre:
— Uma coisa me deixou desconcertado, espectro impressionante do mal
desenfreado — começou, tomando o cuidado de continuar sua série de elogios sem
duplicação. — Com que direito esse mago possui Crenshinibon?
— Nenhum — disse Errtu. — Mago. Hah! Medido pelo seu próprio povo, ele é
apenas um aprendiz. Sua língua se contrai inquieta quando ele pronuncia até o mais
simples dos feitiços. Mas o destino costuma jogar esses jogos. E mais por diversão,
digo eu! Deixe Akar Kessell ter seu breve momento de triunfo. Os humanos não
vivem por muito tempo!
Drizzt sabia que estava indo por uma linha perigosa de perguntas, mas aceitava o
risco. Mesmo com um demônio maior parado a apenas três metros de distância,
Drizzt imaginou que suas chances de sobrevivência naquele momento eram
melhores do que as de seus amigos em Bryn Shander.
— Ainda assim, meus mestres estão preocupados que a torre possa ser prejudicada
na próxima batalha com os humanos — ele blefou.
Errtu levou outro momento para considerar Drizzt. A aparição dos elfos negros
complicava o plano simples do demônio de herdar Crenshinibon de Kessell. Se os
poderosos senhores drows da imensa cidade de Menzoberranzan realmente tinham
planos para a relíquia, o demônio sabia que eles a teriam. Certamente Kessell,
mesmo com o poder do fragmento por trás dele, não poderia resistir a eles. A mera
presença desse drow mudou as percepções do demônio sobre sua relação com
Crenshinibon. Como Errtu desejou que pudesse simplesmente devorar Kessell e
fugir com a relíquia antes que os elfos negros estivessem envolvidos demais!
No entanto, Errtu nunca considerou os drow como inimigos e o demônio passara a
desprezar o mago trapalhão. Talvez uma aliança com os elfos negros pudesse ser
benéfica para ambos os lados.
— Diga-me, campeão inigualável das trevas — Drizzt pressionou, — Crenshinibon
está em perigo?
— Ah! — bufou Errtu. — Até a torre, que é meramente um reflexo de
Crenshinibon, é impermeável. Ela absorve todos os ataques direcionados contra
suas paredes espelhadas e os reflete de volta à sua fonte! Apenas o cristal pulsante
da força, o próprio coração de Cryshal-Tirith, é vulnerável, e ele está escondido em
segurança.
— Dentro?
— É claro.
— Mas se alguém entrasse na torre — Drizzt argumentou — quão bem protegido
estaria o coração?
— Uma tarefa impossível — respondeu o demônio. — A menos que os pescadores
simples de Dez-Burgos tenham algum espírito a seu serviço. Ou talvez um sumo
sacerdote, ou um arquimago para tecer feitiços de revelação. Certamente seus
mestres sabem que a porta de Cryshal-Tirith é invisível e indetectável para
quaisquer seres inerentes ao plano atual sobre o qual a torre repousa. Nenhuma
criatura deste mundo material, incluindo sua raça, poderia entrar!
— Mas... — Drizzt pressionou ansiosamente.
Errtu o interrompeu:
— Mesmo se alguém tropeçasse na estrutura — ele rosnou, impaciente com o fluxo
implacável de suposições impossíveis — teria que passar por mim. E o limite do
poder de Kessell dentro da torre é considerável, pois o mago se tornou uma
extensão do próprio Crenshinibon, uma fonte viva da força insondável do
Fragmento de Cristal! O coração está além do ponto focal da interação de Kessell
com a torre e na ponta...
O demônio parou, subitamente desconfiado da linha de perguntas de Drizzt. Se os
senhores drow sabiam muito bem sobre Crenshinibon, por que não estavam mais
conscientes de seus pontos fortes e fracos?
Errtu entendeu seu erro então. Ele examinou Drizzt mais uma vez, mas com um
foco diferente. Quando encontrou o drow pela primeira vez, atordoado pela mera
presença de um elfo negro nessa região, procurara por enganação nos atributos
físicos do próprio Drizzt para determinar se seus traços de drow eram uma ilusão,
uma alteração de forma inteligente, porém simples, um truque ao alcance de um
mago menor.
Quando Errtu estava convencido de que um verdadeiro drow e nenhuma ilusão
estavam diante dele, havia aceitado a credibilidade da história de Drizzt como
consistente com as características dos elfos negros.
Agora, porém, o demônio vasculhou as pistas periféricas além da pele negra de
Drizzt, observando os itens que ele carregava e a área que havia apostado para a
reunião deles. Nada que Drizzt tivesse sobre sua pessoa, nem mesmo as armas
embainhadas em seus quadris, emanavam as distintas propriedades mágicas do
subterrâneo. Talvez os mestres drow tivessem equipado seus espiões de maneira
mais apropriada para o mundo da superfície, Errtu raciocinou. Pelo que aprendeu
dos elfos negros durante seus muitos anos de serviço em Menzoberranzan, a
presença desse drow certamente não era ultrajante.
Mas criaturas do caos sobreviviam por não confiar.
Errtu continuou sua busca por uma pista da autenticidade de Drizzt. O único item
que o demônio viu que refletia sobre a herança de Drizzt era uma fina corrente de
prata pendurada em seu pescoço esbelto, uma joia comum entre os elfos das trevas
por segurar uma pequena bolsa de riqueza. Concentrando-se nisso, Errtu descobriu
uma segunda corrente, mais fina que a primeira, entrelaçando-se e saindo da outra.
O demônio seguiu o vinco quase imperceptível no gibão de Drizzt, criado pela
longa corrente.
Incomum, observou, e possivelmente revelador. Errtu apontou para a corrente,
pronunciou uma palavra de comando e levantou o dedo estendido no ar.
Drizzt ficou tenso quando sentiu o emblema deslizar por baixo do gibão de couro.
Passou pela abertura do pescoço e caiu na extensão da corrente, pendendo
abertamente no peito.
O sorriso maligno de Errtu se alargou junto com seus olhos apertados.
— Escolha incomum para um drow — sibilou sarcasticamente. — Eu esperava o
símbolo de Lolth, a rainha demoníaca do seu povo. Ela não ficaria satisfeita! — Do
nada, um chicote de várias pontas apareceu em uma das mãos do demônio e uma
lâmina irregular e cruelmente recortada na outra.
A princípio, a mente de Drizzt girou por centenas de probabilidades, explorando as
mentiras mais viáveis que poderia contar para tirá-lo daquela situação. Mas
balançou a cabeça resoluto e afastou as mentiras. Não desonraria sua divindade.
No final da corrente de prata pendia um presente de Regis, uma escultura que o
halfling havia feito do osso de uma das poucas cabeça-duras que ele já havia
capturado. Drizzt ficou profundamente emocionado quando Regis o apresentou a
ele, e o considerava o melhor trabalho do halfling. Girava na longa corrente, com
notas e sombras suaves, dando a profundidade de uma verdadeira obra de arte.
Era uma cabeça branca de unicórnio, o símbolo da deusa Mielikki.
— Quem é você, drow? — Errtu exigiu saber. O demônio já havia decidido que
teria que matar Drizzt, mas ficou intrigado com uma reunião tão incomum. Um elfo
negro que seguia a Dama da Floresta? E morador de superfície também! Errtu
conhecera muitos drow ao longo dos séculos, mas nunca ouvira falar de algum que
abandonara os caminhos perversos dos drow. Assassinos de coração frio, um e
todos, que haviam ensinado até o grande demônio do caos um truque ou dois a
respeito de métodos de tortura excruciante.
— Eu sou Drizzt Do’Urden, isso é verdade — Drizzt respondeu uniformemente. —
Aquele que abandonou a Casa de Daermon N’a’shezbaernon. — Todo o medo fugiu
de Drizzt quando ele aceitou além de qualquer esperança que teria que lutar contra
o demônio. Agora assumia a prontidão calma de um lutador experiente, preparado
para aproveitar qualquer vantagem que pudesse surgir em seu caminho. — Um
ranger servindo humildemente a Gwaeron Windstrom, herói da deusa Mielikki. —
Ele se curvou de acordo com uma introdução adequada.
Ao se endireitar, sacou as cimitarras.
— Preciso derrotá-lo, cicatriz da vileza — declarou — e enviá-lo de volta às nuvens
rodopiantes do abismo sem fundo. Não há lugar no mundo iluminado pelo sol para
alguém do seu tipo!
— Você está confuso, elfo — disse o demônio. — Perdeu o caminho de sua
herança e agora ousa presumir que pode me derrotar! — Chamas surgiram da pedra
ao redor de Errtu. — Eu teria matado você com um golpe limpo, por respeito a seus
parentes. Mas seu orgulho me incomoda. Vou ensiná-lo a desejar a morte! Venha,
sinta a dor do meu fogo!
Drizzt já estava quase derrotado pelo calor do fogo demoníaco de Errtu e o brilho
das chamas ardia em seus olhos sensíveis, de modo que a maior parte do demônio
parecia apenas o borrão embotado de uma sombra. Ele viu a escuridão se estender à
direita do demônio e sabia que Errtu havia erguido sua terrível espada. Preparou-se
para se defender, mas de repente o demônio se inclinou para o lado e rugiu de
surpresa e indignação.
Guenhwyvar havia se agarrado firmemente ao braço erguido.
O enorme demônio segurou a pantera à distância de um braço, tentando prender a
gata entre o antebraço e a parede de pedra para manter as garras e os dentes longe
de uma área vital. Guenhwyvar roía e mordia o braço enorme, rasgando carne e
músculo de demônio.
Errtu afastou o ataque cruel e decidiu lidar com a gata mais tarde. A principal
preocupação do demônio continuava sendo o drow, pois respeitava o poder
potencial de qualquer um dos elfos negros. Errtu tinha visto muitos inimigos caírem
sob um dos inúmeros truques deles.
O chicote de várias pontas atacou as pernas de Drizzt, rápido demais para o drow,
ainda cambaleando pela explosão repentina de brilho das chamas, aparar o golpe ou
desviar. Errtu puxou o cabo enquanto as tiras se enroscavam nas pernas e tornozelos
esguios, a grande força do demônio fazendo Drizzr cair de costas.
Drizzt sentiu a dor ardente por todas as suas pernas e ouviu a onda de ar sair de seus
pulmões quando tombou na pedra dura. Ele sabia que devia reagir sem demora, mas
o brilho do fogo e o ataque repentino de Errtu o deixaram desorientado. O drow se
sentiu sendo arrastado ao longo da pedra, sentiu a intensidade do calor aumentando.
Ele conseguiu levantar a cabeça bem a tempo de ver seus pés emaranhados entrando
no fogo demoníaco.
— E assim eu morro — afirmou categoricamente.
Mas suas pernas não queimaram.
Babando de antecipação para ouvir os gritos agonizantes de sua vítima indefesa,
Errtu deu um puxão mais forte no chicote e puxou Drizzt completamente para as
chamas. Embora estivesse totalmente imolado, o drow mal se sentiu aquecido pelo
fogo.
E com um último assobio de protesto, as chamas quentes desapareceram.
Nenhum dos oponentes entendeu o que havia acontecido, ambos assumindo que o
outro tinha sido o responsável.
Errtu atacou rapidamente novamente. Colocando um pé pesado sobre o peito de
Drizzt, começou a esmagá-lo contra a pedra. O drow atacou em desespero com uma
arma, mas não teve efeito no monstro do outro mundo.
Drizzt balançou a outra cimitarra, a lâmina que havia retirado do tesouro do dragão.
Sibilando como água no fogo, a cimitarra entrou na articulação do joelho de Errtu.
O punho da arma esquentou quando a lâmina rasgou a carne do demônio, quase
queimando a mão de Drizzt. Depois, ficou gelada, como se mergulhasse a força de
vida quente de Errtu com uma força fria própria. Drizzt entendeu então o que havia
extinguido o fogo.
O demônio ficou boquiaberto, horrorizado, depois gritou de agonia. Nunca sentira
tanta dor! Ele saltou para trás e lançou-se loucamente, tentando escapar da terrível
mordida da arma, arrastando Drizzt, que não conseguia se soltar. Guenhwyvar foi
jogada na violência da raiva do demônio, voando do braço do monstro para bater
fortemente em uma parede.
Drizzt olhou para a ferida incrédulo quando o demônio se afastou. Vapor
derramava-se do buraco no joelho de Errtu; e as bordas do corte foram congeladas!
Mas Drizzt também havia sido enfraquecido pelo ataque. Em sua luta com o
poderoso demônio, a cimitarra utilizou a força vital de seu portador, puxando Drizzt
para a batalha com o monstro de fogo. O drow sentia-se como se não tivesse forças
para levantar. Mas se viu pulando para frente, com a lâmina totalmente estendida
diante dele, como se puxada pela fome da cimitarra.
A entrada do cubículo era estreita demais. Errtu não podia se esquivar nem saltar.
A cimitarra encontrou a barriga do demônio.
A explosão quando a lâmina tocou o núcleo da força vital de Errtu drenou a força
de Drizzt, lançando-o para trás. Ele bateu contra a parede de pedra e desabou, mas
conseguiu manter-se alerta o suficiente para testemunhar a luta titânica que ainda
continuava .
Errtu desceu para a borda. O demônio estava cambaleando agora, tentando abrir as
asas. Mas elas caíram fracas. A cimitarra brilhava branca com poder enquanto
continuava seu ataque. O demônio não suportava agarrá-la e libertar-se, embora a
lâmina cravada, com sua magia sufocando o fogo que fora forjada para destruir,
certamente estivesse vencendo o conflito.
Errtu sabia que tinha sido descuidado, confiante demais em sua capacidade de
destruir qualquer mortal em combate único. O demônio não havia considerado a
possibilidade de uma lâmina tão perversa; nunca tinha ouvido falar de uma arma
que causasse tanta dor.
O vapor jorrou das entranhas expostas de Errtu e envolveu os combatentes.
— E então você me baniu, drow traiçoeiro! — ele cuspiu.
Atordoado, Drizzt observou com espanto o brilho branco intensificar-se e a sombra
negra diminuir.
— Cem anos, drow! — Errtu uivou. — Não é muito tempo para gente como você
ou eu! — o vapor engrossou quando a sombra pareceu derreter.
— Um século, Drizzt Do’Urden! — veio o grito enfraquecido de Errtu de algum
lugar distante. — Olhe por cima do ombro, então. Errtu não estará muito atrás!
O vapor flutuou no ar e desapareceu.
O último som que Drizzt ouviu foi o estrondo da cimitarra de metal caindo na borda
da pedra.
Capítulo 26

Direitos de Vitória

WULFGAR RECOSTOU-SE NA CADEIRA À CABECEIRA da mesa principal


do Salão de Hidromel, construído às pressas, batendo o pé nervosamente ante os
longos atrasos necessários pelas exigências da tradição apropriada. Acreditava que
seu povo já deveria estar em movimento, mas foi a restauração das cerimônias e
celebrações tradicionais que imediatamente o destacou, e o colocou acima, do tirano
Heafstaag aos olhos dos bárbaros céticos e sempre suspeitos.
Afinal, Wulfgar havia entrado no meio deles após uma ausência de cinco anos e
desafiado seu rei de longa data. Um dia depois, ganhou a coroa e, no dia seguinte,
foi coroado rei Wulfgar, da Tribo do Alce.
E ele estava determinado que seu reinado, por mais curto que pretendesse ser, não
seria marcado pelas ameaças e táticas de intimidação de seu antecessor. Ele pediria
aos guerreiros das tribos reunidas que o seguissem para a batalha, não os
comandaria, pois sabia que um guerreiro bárbaro era um homem dirigido quase que
exclusivamente por um orgulho feroz. Despojados de sua dignidade, como
Heafstaag fizeram ao se recusar a honrar a soberania de cada rei, os homens da tribo
não eram melhores na batalha do que homens comuns. Wulfgar sabia que eles
precisariam recuperar sua vantagem orgulhosa se tivessem alguma chance contra os
números esmagadores do mago.
Assim, Hengorot, o Salão de Hidromel, havia sido criado e o Desafio da Canção
iniciado pela primeira vez em quase cinco anos. Foi um período curto e feliz de
competição bem humorada entre tribos que havia sido sufocado sob o domínio
incansável de Heafstaag.
A decisão de levantar o salão de peles de cervo tinha sido difícil para Wulfgar.
Supondo que ainda tivesse tempo até o exército de Kessell atacar, ele pesara os
benefícios de recuperar a tradição contra a necessidade premente de pressa. Só
esperava que, no frenesi dos preparativos antes da batalha, Kessell ignorasse a
ausência do rei bárbaro, Heafstaag. Se o mago fosse esperto, não era provável.
Agora esperava calma e pacientemente, observando o fogo voltar aos olhos dos
homens da tribo.
— Como nos velhos tempos? — Revjak perguntou, sentando-se ao lado dele.
— Bons tempos — respondeu Wulfgar.
Satisfeito, Revjak recostou-se na parede de pele de cervo da tenda, concedendo ao
novo chefe a solidão que ele obviamente desejava. Wulfgar retomou a espera,
procurando o melhor momento para revelar sua proposta.
No outro extremo do corredor, começava uma competição de arremesso de
machado. Semelhante às táticas que Heafstaag e Beorg haviam usado para selar um
pacto entre as tribos no último Hengorot, o desafio era arremessar um machado da
maior distância possível e afundá-lo fundo o suficiente em um barril de hidromel
para abrir um buraco. O número de canecas que poderiam ser preenchidas com o
esforço dentro de uma contagem específica de tempo determinava o sucesso do
arremesso.
Wulfgar viu sua oportunidade. Ele saltou do banquinho e exigiu, pelo direito de ser
o anfitrião, o primeiro arremesso. O homem que foi escolhido para julgar o desafio
reconheceu o direito de Wulfgar e o convidou a descer para a primeira distância
selecionada.
— A partir daqui — disse Wulfgar, colocando Presa de Égide em seu ombro.
Murmúrios de descrença e empolgação surgiram de todos os cantos do salão. O uso
de um martelo de guerra em tal desafio era sem precedentes, mas nenhum deles
reclamou ou citou regras. Todo homem que ouvira as histórias, mas não
testemunhou em primeira mão a quebra do grande machado de Heafstaag, estava
ansioso por ver a arma em ação. Um barril de hidromel foi colocado em um
banquinho no fundo do corredor.
— Outro atrás dele! — Wulfgar exigiu. — E outro atrás daquele!
Sua concentração focou na tarefa em questão e ele decidiu que não teria tempo de
tentar entender os sussurros que ouvia ao seu redor.
Os barris estavam prontos, e a multidão se afastou da linha de visão do jovem rei.
Wulfgar agarrou Presa de Égide com força em suas mãos e respirou fundo,
segurando-o para se manter firme. Os espectadores incrédulos assistiram com
espanto o novo rei explodir em movimento, lançando o poderoso martelo com um
movimento fluido e uma força incomparável entre suas fileiras.
Presa de Égide foi lançado, com a cabeça à frente, pela extensão do longo corredor,
atravessando o primeiro barril e depois o segundo e além, tirando não apenas os três
alvos de seus bancos, mas continuando a abrir um buraco nos fundos do Salão de
Hidromel. Os guerreiros mais próximos correram para a abertura para assistir o
restante de seu voo, mas o martelo desapareceu na noite. Eles saíram para recuperá-
lo.
Mas Wulfgar os deteve. Ele pulou sobre a mesa, levantando os braços diante dele.
— Ouçam-me, guerreiros das planícies do norte! — gritou. Suas bocas já estavam
boquiabertas com o feito sem precedentes, alguns caíram de joelhos quando Presa
de Égide reapareceu de repente nas mãos do jovem rei.
— Sou Wulfgar, filho de Beornegar, e Rei da Tribo do Alce. No entanto, agora falo
com vocês, não como seu rei, mas como um irmão guerreiro, horrorizado com a
desonra que Heafstaag tentou colocar sobre todos nós! — Estimulado pelo
conhecimento de que havia conquistado a atenção e o respeito deles, e pela
confirmação de que suas suposições de seus verdadeiros desejos não estavam
errados, Wulfgar aproveitou o momento. Essas pessoas haviam clamado por
libertação do reinado tirânico do rei caolho e sido espancadas até a extinção em sua
última campanha, e agora estiveram prestes a lutar ao lado de goblins e gigantes.
Eles desejavam um herói que recuperasse seu orgulho perdido.
— Eu sou o matador de dragões! — ele continuou. — E, por direito de vitória,
possuo os tesouros de Morte Gélida!
Mais uma vez, as conversas particulares o interromperam, pois o tesouro agora
desprotegido se tornara objeto de debate. Wulfgar deixou que continuassem
fofocando por um longo momento para aumentar seu interesse no ouro do dragão.
Quando finalmente se aquietaram, continuou:
— As tribos da tundra não lutam em uma causa em comum com goblins e gigantes!
— ele decretou, arrancando gritos de aprovação. — Lutamos contra eles!
A multidão de repente se calou. Um guarda entrou correndo na tenda, mas não se
atreveu a interromper o novo rei.
— Saio com o amanhecer para Dez-Burgos — afirmou Wulfgar. — Lutarei contra o
mago Kessell e a horda imunda que ele arrancou dos buracos da Espinha do
Mundo!
A multidão não respondeu. Eles aceitaram a noção de batalha contra Kessell
ansiosamente, mas o pensamento de retornar a Dez-Burgos para ajudar as pessoas
que quase as destruíram cinco anos antes nunca lhes ocorreu.
Mas o guarda agora interveio.
— Temo que sua busca seja em vão, jovem rei — disse ele. Wulfgar lançou um
olhar angustiado para o homem, adivinhando as notícias que ele trazia. — As
nuvens de fumaça dos grandes incêndios estão agora subindo acima da planície sul.
Wulfgar considerou a notícia angustiante. Ele pensou que teria mais tempo.
— Então saio hoje à noite! — ele rugiu para a assembleia atordoada. — Venham
comigo, meus amigos, meus companheiros guerreiros do norte! Vou mostrar-lhe o
caminho para as glórias perdidas do nosso passado!
A multidão parecia dividida e incerta. Wulfgar jogou sua cartada final:
— A qualquer homem que ir comigo, ou a seus parentes sobreviventes, se ele cair,
ofereço uma parte igual do tesouro do dragão!
Ele havia entrado como uma poderosa tempestade no Mar de Gelo Móvel. Ele havia
capturado a imaginação e o coração de todos os guerreiros bárbaros e prometeu a
eles um retorno à riqueza e glória de seus dias mais brilhantes.
Naquela mesma noite, o exército mercenário de Wulfgar saiu do acampamento e
trovejou pela planície aberta.
Nenhum homem ficou para trás.
Capítulo 27

O Relógio da Desgraça

BREMEN FOI INCENDIADA AO AMANHECER.


As pessoas da pequena vila sem muralhas sabiam que não ia adiantar lutar quando a
onda de monstros veio pelo Rio Shaengarne. Eles fizeram uma resistência simbólica
no vau, disparando algumas rajadas de flechas nos goblins da frente apenas para
diminuir a velocidade das fileiras por tempo suficiente para que os navios mais
pesados e lentos saíssem do porto e alcançassem a segurança de Maer Dualdon. Os
arqueiros então fugiram para as docas e seguiram seus companheiros.
Quando os goblins finalmente entraram na cidade, encontraram-na completamente
deserta. Assistiram com raiva enquanto os navios navegavam de volta para o leste
para se juntar à flotilha de Targos e Termalaine. Bremen estava muito longe para ser
útil para Akar Kessell; assim, diferentemente da cidade de Termalaine, que havia
sido convertida em acampamento, essa cidade foi totalmente queimada.
As pessoas no lago, as mais novas da longa fila de vítimas sem lar da destruição de
Kessell, assistiram desamparadas enquanto suas casas caíam em lascas fumegantes.
Da muralha de Bryn Shander, Cassius e Regis também observavam.
— Ele cometeu outro erro — disse Cassius ao halfling.
— Como assim?
— Kessell deixou o povo de Targos e Termalaine, Caer-Konig e Caer-Dineval, e
agora Bremen encurralado — explicou Cassius. — Eles não têm para onde ir agora;
a única esperança deles reside na vitória.
— Não há muita esperança — comentou Regis. — Você viu o que a torre pode
fazer. E mesmo sem ela, o exército de Kessell poderia destruir todos nós! Como ele
disse, tem todas as vantagens.
— Talvez — admitiu Cassius. — O mago acredita que é invencível, isso é certo. E
esse é o erro dele, meu amigo. O mais manso dos animais lutará bravamente quando
estiver encurralado, pois não tem mais nada a perder. Um homem pobre é mais
mortal do que um homem rico, porque valoriza menos a própria vida. E um homem
sem teto preso nas estepes congeladas, com os primeiros ventos do inverno já
começando a soprar, é realmente um inimigo formidável!
— Não tema, amiguinho — continuou Cassius. — No nosso conselho nesta manhã,
encontraremos uma maneira de explorar as fraquezas do mago.
Regis assentiu, incapaz de contestar a lógica simples do porta-voz e não querendo
refutar seu otimismo. Ainda assim, enquanto examinava as longas fileiras de
goblins e orcs que cercavam a cidade, o halfling tinha pouca esperança.
Ele olhou para o norte, onde a poeira finalmente se depositara no vale dos anões. A
Escalada de Bruenor não existia mais, tendo tombado com o resto da face do
penhasco quando os anões fecharam suas cavernas.
— Abra uma porta para mim, Bruenor — Regis sussurrou distraidamente. — Por
favor, me deixe entrar.

Coincidentemente, Bruenor e seu clã estavam, naquele exato momento, discutindo a


viabilidade de abrir uma porta em seus túneis. Mas não para deixar ninguém entrar.
Logo após seu sucesso esmagador contra os orcs e goblins nas bordas do lado de
fora de suas minas, os guerreiros barbudos perceberam que não podiam ficar
sentados à toa enquanto orcs e goblins e monstros ainda piores destruíam o mundo
ao seu redor. Eles estavam ansiosos para dar um segundo golpe em Kessell. No
ventre subterrâneo, não faziam ideia se Bryn Shander ainda estava de pé, ou se o
exército de Kessell já havia atropelado toda a Dez-Burgos, mas podiam ouvir os
sons de um acampamento acima das seções mais ao sul de seu enorme complexo.
Bruenor foi quem propôs a ideia de uma segunda batalha, principalmente por causa
de sua própria raiva pela perda iminente de seus amigos não-anões mais próximos.
Logo após os goblins que haviam escapado do colapso do túnel terem sido
derrubados, o líder do clã do Salão de Mitral reuniu todo o seu povo ao seu redor.
— Envie alguém para as extremidades mais distantes dos túneis — ele instruiu. —
Descubra onde os cães vão dormir.
Naquela noite, os sons dos monstros em marcha tornaram-se óbvios no sul, sob o
campo ao redor de Bryn Shander. Os anões diligentes imediatamente
recondicionaram os túneis pouco usados que corriam naquela direção. E quando
chegaram sob o exército, cavaram dez dutos ascendentes separados, parando um
pouco antes de atingir a superfície.
Um brilho especial voltou aos seus olhos: o brilho de um anão que sabe que está
prestes a cortar algumas cabeças de goblins. O plano sinuoso de Bruenor tinha um
potencial infinito de vingança com risco mínimo. Com cinco minutos de
antecedência, eles poderiam concluir suas novas saídas. Menos de um minuto
depois disso, toda a sua força estaria no meio do exército adormecido de Kessell.

A reunião que Cassius havia rotulado de conselho era realmente mais um fórum
onde o porta-voz de Bryn Shander poderia revelar suas primeiras estratégias de
retaliação. No entanto, nenhum dos líderes reunidos, nem Glensather, o único outro
porta-voz presente, protestou. Cassius havia estudado todos os aspectos do exército
de goblinoides entrincheirados e do mago com atenção meticulosa aos detalhes. O
porta-voz fez um esboço de toda a força, detalhando as rivalidades mais
potencialmente explosivas entre as fileiras de goblins e de orcs e suas melhores
estimativas sobre o tempo que levaria para o combate interno enfraquecer
suficientemente o exército.
Todos os presentes concordaram, no entanto, que a pedra angular que mantinha o
cerco unido era Cryshal-Tirith. O poder impressionante da estrutura cristalina
colocaria até os orcs mais agitados em obediência inquestionável. No entanto, os
limites desse poder, como Cassius via, eram a verdadeira questão.
— Por que Kessell foi tão insistente em uma rendição imediata? — o porta-voz
argumentou. — Ele poderia nos deixar sob o estresse de um cerco por alguns dias
para amenizar nossa resistência!
Os outros concordaram com a lógica da linha de pensamento de Cassius, mas não
tinham respostas para ele.
— Talvez Kessell não domine com tanta intensidade sua força quanto acreditamos
— propôs o próprio Cassius. — Será que o mago teme que seu exército se
desintegre ao seu redor se ficar parado por algum tempo?
— Talvez — respondeu Glensather de Refúgio Leste. — Ou talvez Akar Kessell
simplesmente perceba a força de sua vantagem e saiba que não temos escolha a não
ser nos render. Talvez você esteja confundindo confiança com preocupação?
Cassius parou por um momento para refletir sobre a pergunta.
— Um argumento bem válido — disse, por fim. — Mas imaterial para nossos
planos. — Glensather e vários outros olharam curiosamente para o porta-voz.
— Devemos supor que seja o último — explicou Cassius. — Se o mago estiver
realmente no controle absoluto do exército reunido, qualquer coisa que possamos
tentar será inútil em qualquer caso. Portanto, devemos agir com base no pressuposto
de que a impaciência de Kessell revela uma preocupação bem fundamentada.
— Não acho o mago um estrategista excepcional. Ele embarcou em um caminho de
destruição que supôs que nos levaria à submissão, mas que, na realidade, fortaleceu
a determinação de muitos de nosso povo a lutar até o fim. As rivalidades de longa
data entre várias cidades, o amargor que o sábio líder de uma força invasora
certamente teria transformado em uma excelente vantagem, foram consertadas pela
flagrante falta de consideração de Kessel pela sutileza e suas demonstrações de
brutalidade ultrajante.
Cassius sabia pelos olhares atentos que estava recebendo que estava ganhando
apoio de todos os cantos. Estava tentando fazer duas coisas nesta reunião:
convencer os outros a concordar com a aposta que estava prestes a revelar, além de
elevar a perspectiva deles e devolver-lhes um pouco de esperança.
— Nosso pessoal está lá fora — disse, varrendo o braço em um amplo arco. — Em
Maer Dualdon e Lac Dinneshere, as frotas se reuniram, aguardando algum sinal de
Bryn Shander de que as apoiaríamos. As pessoas de Bom Prado e Toca de Dougan
fazem o mesmo no lago sul, totalmente armadas e sabendo muito bem que nesta
luta não resta nada para os sobreviventes se não formos vitoriosos! — Ele se
inclinou sobre a mesa, alternadamente capturando e mantendo o olhar de cada
homem sentado diante dele e concluiu sombriamente — Nem lares. Nem esperança
para nossas esposas. Nem esperança para nossos filhos. Nenhum lugar para correr.
Cassius continuou a reunir os outros ao seu redor e logo foi apoiado por Glensather,
que adivinhou o objetivo do porta-voz de aumentar o moral e reconhecia o valor
disso. Cassius procurou o momento mais oportuno. Quando a maioria dos líderes
reunidos substituiu suas carrancas de desespero pela determinada careta de
sobrevivência, ele apresentou seu plano ousado.
— Kessell exigiu um emissário — disse —, então devemos entregar um.
— Você ou eu pareceríamos a escolha mais óbvia — Glensather interveio. — Qual
deve ser?
Um sorriso irônico se espalhou pelo rosto de Cassius.
— Nenhum — ele respondeu. — Um de nós seria a escolha óbvia se
pretendêssemos atender às demandas de Kessell. Mas nós temos uma outra opção.
— ele voltou o olhar para Regis. O halfling se contorceu desconfortável, meio
adivinhando o que o porta-voz tinha em mente. — Há um entre nós que alcançou
uma reputação quase lendária por suas consideráveis habilidades de convencimento.
Talvez seu apelo carismático ganhe um tempo valioso em nossas relações com o
mago.
Regis sentiu-se mal. Ele sempre se perguntava quando o pingente de rubi iria
colocá-lo em problemas grandes demais para que conseguisse sair.
Várias outras pessoas olhavam para Regis agora, aparentemente intrigadas com o
potencial da sugestão de Cassius. As histórias do encanto e da capacidade de
persuasão do halfling, e a acusação que Kemp havia feito no conselho algumas
semanas antes haviam sido contadas e recontadas mil vezes em todas as cidades,
cada contador de histórias tipicamente aprimorando e exagerando os contos para
aumentar sua própria importância. Embora Regis não estivesse feliz por perder o
poder de seu segredo – as pessoas raramente o olhavam nos olhos agora –, ele
chegara a desfrutar de um certo grau de fama. Não tinha considerado os possíveis
efeitos colaterais negativos de ter tantas pessoas o admirando.
— Que o halfling, ex-porta-voz de Bosque Solitário, nos represente na corte de
Akar Kessell — declarou Cassius com a aprovação quase unânime da assembleia.
— Talvez nosso pequeno amigo consiga convencer o mago do erro de seus maus
caminhos!
— Você está errado — reclamou Regis. — São apenas rumores...
— Humildade — interrompeu Cassius — é uma característica excelente, bom
halfling. E todos reunidos aqui apreciam a sinceridade de suas dúvidas de si mesmo
e mais ainda sua disposição de colocar seus talentos contra Kessell diante dessas
dúvidas!
Regis fechou os olhos e não respondeu, sabendo que a moção certamente passaria,
quer ele aprovasse ou não.
Ela passou, sem um único voto dissidente. As pessoas encurraladas estavam
bastante dispostas a agarrar qualquer lasca de esperança que encontrassem.
Cassius agiu rapidamente para encerrar o conselho, pois acreditava que todos os
outros assuntos – problemas de superlotação e alimentação – eram de pouca
importância num momento como este. Se Regis falhasse, todos os outros
inconvenientes se tornariam irrelevantes.
Regis permaneceu calado. Havia apenas participado do conselho para apoiar seus
amigos porta-vozes. Quando se sentou à mesa, não tinha sequer a intenção de
participar das discussões, muito menos de se tornar o ponto focal do plano de
defesa.
E assim a reunião foi encerrada. Cassius e Glensather trocaram piscadelas
reconhecedoras de sucesso, pois todos saíram da sala se sentindo um pouco mais
otimistas.
Cassius segurou Regis quando ele se levantou para sair com os outros. O porta-voz
de Bryn Shander fechou a porta atrás do último deles, desejando uma conversa
particular com o personagem principal dos primeiros estágios de seu plano.
— Você poderia ter falado comigo sobre tudo isso primeiro! — Regis resmungou
nas costas do porta-voz assim que a porta foi fechada. — Seria justo que eu tivesse
a oportunidade de tomar uma decisão sobre este assunto!
Cassius tinha um rosto sombrio quando se virou para encarar o halfling.
— Que escolha qualquer um de nós tem? — perguntou. — Pelo menos assim,
demos a todos alguma esperança.
— Você me superestima — protestou Regis.
— Talvez você se subestime — disse Cassius. Embora o halfling tenha percebido
que Cassius não se afastaria do plano que havia posto em ação, a confiança do
porta-voz transmitiu a Regis um espírito altruísta que era reconfortante.
— Vamos rezar, pelo nosso bem, que esta seja a verdade — continuou Cassius, indo
para o seu lugar na mesa. — Mas realmente acredito que seja o caso. Eu tenho fé
em você, mesmo que você não tenha. Lembro-me bem do que você fez com o
porta-voz Kemp no conselho, cinco anos atrás, apesar de ter sido necessária sua
própria declaração de que ele havia sido enganado para me fazer perceber a
verdade. Um trabalho magistral de persuasão, Regis de Bosque Solitário, e mais
ainda porque manteve seu segredo por tanto tempo!
Regis corou e aceitou o argumento.
— E se você pode lidar com o teimoso Kemp de Targos, você deve achar Akar
Kessell uma presa fácil!
— Eu concordo com suas percepções de Kessell como algo menos que um homem
de força interior — disse Regis —, mas os magos têm uma maneira de descobrir
truques de magia. E você esquece o demônio. Eu nem tentaria enganar alguém
desse tipo!
— Vamos torcer para que você não precise lidar com aquele lá — Cassius
concordou com um visível estremecimento. — No entanto, sinto que você deve ir à
torre e tentar dissuadir o mago. Se, de alguma maneira, não pudermos deter o
exército reunido até que seu próprio tumulto interno se torne nosso aliado,
certamente estamos condenados. Acredite em mim, como seu amigo, que não
pediria que enfrentasse tal perigo se visse qualquer outro caminho possível. — Um
olhar doloroso de empatia desamparada claramente se manifestou através da
fachada anterior do porta-voz, que provocava otimismo. Sua preocupação tocou
Regis, assim como um homem faminto clamando por comida.
Mesmo sem seus sentimentos pelo porta-voz excessivamente pressionado, Regis foi
forçado a admitir a lógica do plano e a ausência de outros caminhos. Kessell não
lhes deu muito tempo para se reagruparem após o ataque inicial. Na destruição de
Targos, o mago demonstrou sua capacidade de destruir Bryn Shander da mesma
forma, e o halfling tinha poucas dúvidas de que Kessell cumpriria sua ameaça vil.
Então Regis passou a aceitar seu papel como sua única opção. O halfling não era
facilmente estimulado a agir, mas quando se decidia a fazer algo, geralmente
tentava fazê-lo corretamente.
— Antes de tudo — ele começou —, devo lhe dizer, na mais estrita confiança, que
realmente tenho ajuda mágica.
Um vislumbre de esperança voltou aos olhos de Cassius. Ele se inclinou para a
frente, ansioso para ouvir mais, mas Regis o acalmou com a palma da mão
estendida.
— Você deve entender, no entanto — explicou o halfling — que eu, ao contrário do
que afirmam alguns contos, não tenho o poder de perverter o que está no coração de
uma pessoa. Não conseguiria convencer Kessell a abandonar seu caminho maligno,
assim como não poderia convencer o porta-voz Kemp a fazer as pazes com
Termalaine.
Ele se levantou da cadeira almofadada e andou em volta da mesa, com as mãos
cruzadas atrás das costas. Cassius o observava com antecipação incerta, incapaz de
descobrir exatamente aonde ele queria chegar com sua admissão, e depois com sua
ressalva, de poder.
— Às vezes, porém, tenho uma maneira de fazer alguém ver o ambiente a partir de
uma perspectiva diferente — admitiu Regis. — Como o incidente a que você se
referiu, quando convenci Kemp de que iniciar um determinado curso de ação
preferível realmente o ajudaria a alcançar suas próprias aspirações.
Então me diga novamente, Cassius, tudo o que você aprendeu sobre o mago e seu
exército. Vamos ver se podemos descobrir uma maneira de fazer Kessell duvidar
das mesmas coisas em que ele confiou!
A eloquência do halfling surpreendeu o porta-voz. Ainda que não tenha olhado
Regis nos olhos, podia ver a promessa da verdade nas histórias que sempre
presumira serem exageradas.
— Sabemos pelo porta-notícias que Kemp assumiu o comando das forças
remanescentes das quatro cidades em Maer Dualdon — explicou Cassius. — Da
mesma forma, Jensin Brent e Schermont estão posicionados em Lac Dinneshere e,
combinados com as frotas de Águas Rubras, devem ser uma força poderosa de fato!
Kemp já prometeu vingança, e duvido que algum dos outros refugiados tenha
pensamentos de rendição ou fuga.
— Para onde eles poderiam ir? — murmurou Regis. Ele olhou tristemente para
Cassius, que não tinha palavras de conforto. Cassius havia demonstrado confiança e
esperança para os outros membros do conselho e para as pessoas da cidade, mas não
podia olhar para Regis agora e fazer promessas vazias.
Glensather repentinamente entrou na sala.
— O mago está de volta ao campo! — gritou. — Ele exigiu nosso emissário e as
luzes da torre voltaram!
Os três saíram correndo do prédio, Cassius reiterando o máximo de informações
pertinentes que podia.
Regis o silenciou.
— Estou preparado — ele assegurou a Cassius. — Eu não sei se esse seu esquema
ultrajante tem alguma chance de funcionar, mas você tem o meu voto de que vou
trabalhar muito para enganá-lo.
Eles estavam no portão.
— Tem que funcionar — disse Cassius, batendo no ombro de Regis. — Não temos
outra esperança. — Ele começou a se virar para ir embora, mas Regis tinha uma
pergunta final para a qual precisava de uma resposta.
— E se eu descobrir que Kessell está além do meu poder? —perguntou
sombriamente. — O que devo fazer se o plano falhar?
Cassius olhou em volta para os milhares de mulheres e crianças amontoadas contra
o vento frio nos terrenos comuns da cidade.
— Se falhar — ele começou devagar —, se Kessell não puder ser dissuadido de
usar o poder da torre contra Bryn Shander — fez uma pausa novamente, apenas
para adiar a necessidade de ouvir a si mesmo pronunciar as palavras — você então
está sob minhas ordens pessoais para render a cidade.
Cassius se virou e foi em direção aos parapeitos para testemunhar o confronto
crítico. Regis não hesitou mais, pois sabia que qualquer pausa nesse momento
assustador provavelmente o faria mudar de ideia e correr para encontrar um
esconderijo em algum buraco escuro da cidade. Antes mesmo de ter a chance de
reconsiderar, atravessou o portão e marchou corajosamente colina abaixo em
direção ao espectro de Akar Kessell.
Kessell apareceu novamente entre dois espelhos carregados por trolls, de pé com os
braços cruzados e um pé batendo impaciente. A carranca maligna em seu rosto deu
a Regis a nítida impressão de que o mago, em um acesso de raiva incontrolável, o
mataria antes mesmo de chegar ao pé da colina. No entanto, o halfling tinha que
manter os olhos focados em Kessell para continuar sua abordagem. Os trolls
malditos o enojavam e o repugnavam além de qualquer coisa que já havia
encontrado, e precisou de toda a sua força de vontade para passar perto deles.
Mesmo do portão, podia sentir o fedor do cheiro podre deles.
Mas de alguma maneira chegou aos espelhos e ficou de frente para o mago maligno.
Kessell estudou o emissário por um bom tempo. Certamente não esperava que um
halfling representasse a cidade e se perguntou por que Cassius não tinha ido
pessoalmente a uma reunião tão importante.
— Você vem à minha frente como representante oficial de Bryn Shander e todos os
que agora residem dentro de seus muros?
Regis assentiu.
— Sou Regis de Bosque Solitário — respondeu —, um amigo de Cassius e ex-
membro do Conselho dos Dez. Fui designado para falar pelas pessoas da cidade.
Os olhos de Kessell se estreitaram em antecipação à sua vitória.
— E você carrega a mensagem de rendição incondicional?
Regis moveu-se inquieto, se mexendo de propósito para que o pendente de rubi
começasse a se mover em seu peito.
— Desejo uma reunião privativa contigo, poderoso mago, para que possamos
discutir os termos do acordo.
Os olhos de Kessell se arregalaram. Ele olhou para Cassius na muralha.
— Eu disse incondicional! — ele gritou. Atrás dele, as luzes de Cryshal-Tirith
começaram a girar e crescer. — Agora você deve testemunhar a loucura de sua
insolência!
— Espere! — rogou Regis, pulando para recuperar a atenção do mago. — Há
algumas coisas que você deve estar ciente antes que tudo esteja decidido!
Kessell prestou pouca atenção às divagações do halfling, mas o pingente de rubi
chamou sua atenção de repente. Mesmo através da proteção oferecida pela distância
entre seu corpo físico e a janela de sua projeção de imagem, ele achou a pedra
fascinante.
Regis não pôde resistir à vontade de sorrir, embora apenas levemente, quando
percebeu que os olhos do mago não piscavam mais.
— Tenho algumas informações que tenho certeza de que você considerará valiosas
— disse o halfling em voz baixa.
Kessell sinalizou para ele continuar.
— Não aqui — Regis sussurrou. — Existem ouvidos curiosos demais. Nem todos
os goblins reunidos ficariam satisfeitos em ouvir o que tenho a dizer!
Kessell considerou as palavras do halfling por um momento. Ele se sentiu
curiosamente subjugado por algum motivo que ainda não conseguia entender.
— Muito bem, halfling — concordou. — Eu ouvirei suas palavras.
Com um clarão e uma nuvem de fumaça, o mago se foi.
Regis olhou por cima do ombro para as pessoas na parede e assentiu.
Sob comando telepático de dentro da torre, os trolls deslocaram os espelhos para
captar o reflexo de Regis. Um segundo lampejo e nuvem de fumaça e Regis,
também, se foi.
Na muralha, Cassius devolveu o aceno do halfling, embora Regis já tivesse
desaparecido. O porta-voz respirou um pouco melhor, confortado pelo último olhar
que Regis lhe lançara e pelo fato de o sol estar se pondo e Bryn Shander ainda estar
de pé. Se seu palpite, com base nos momentos das ações do mago, estava correto,
Cryshal-Tirith extraía a maior parte de sua energia da luz do sol.
Parecia que seu plano havia comprado pelo menos mais uma noite.


Mesmo através dos olhos turvos, Drizzt reconheceu a forma escura que pairava
sobre ele. O drow havia batido a cabeça quando fora jogado para longe do punho da
cimitarra e Guenhwyvar, sua fiel companheira, manteve vigília silenciosa durante as
longas horas em que o drow permaneceu inconsciente, mesmo que a gata também
tivesse sido ferida durante a briga com Errtu.
Drizzt rolou para sentar e tentou se reorientar ao redor. A princípio, pensou que
chegara o amanhecer, mas depois percebeu que a fraca luz do sol vinha do oeste.
Esteve desmaiado pela maior parte do dia, drenado completamente, pois a cimitarra
consumira sua energia vital em sua batalha com o demônio.
Guenhwyvar parecia ainda mais abatida. O ombro da gata pendia flácido da colisão
com a parede de pedra, e Errtu havia feito um corte profundo em uma de suas patas
dianteiras.
Mais do que ferimentos, porém, a fadiga estava desgastando a fera mágica. Ela
ultrapassara os limites normais de sua visita ao Plano Material por muitas horas. O
cordão entre seu plano de origem e o do drow só era mantido intacto pela energia
mágica da gata, e cada minuto que passava neste mundo diminuía um pouco sua
força.
Drizzt acariciou o pescoço musculoso com ternura. Entendeu o sacrifício que
Guenhwyvar fizera por ele e desejou poder atender às necessidades da gata e enviá-
la de volta ao seu próprio mundo.
Mas não podia. Se ela retornasse ao seu próprio plano, levaria horas para recuperar
a força necessária para restabelecer um vínculo com este mundo. E ele precisava da
gata agora.
— Um pouco mais — ele implorou. O animal fiel se deitou ao lado dele, sem
qualquer sinal de protesto. Drizzt olhou para ela com pena e acariciou seu pescoço
mais uma vez. Como desejava libertar a gata de seu serviço! Mas não podia.
Pelo que Errtu havia lhe dito, a porta de Cryshal-Tirith era invisível apenas para os
seres do Plano Material.
Drizzt precisava dos olhos da gata.
Capítulo 28

Uma Mentira Dentro da Outra

REGIS ESFREGOU OS OLHOS para remover a imagem que ficara marcada em


seus olhos do clarão cegante e se viu de frente para o mago de novo. Kessel
relaxava em um trono de cristal, recostado em um de seus braços, com as pernas
jogadas casualmente sobre o outro. Eles estavam em uma sala quadrada de cristal,
dando uma impressão visual de ser escorregadia, mas parecendo tão sólida quanto
rocha. Regis soube imediatamente que estava dentro da torre. A sala estava cheia de
dezenas de espelhos ornamentados e de formas estranhas. Um deles, em particular,
o maior e mais decorativo, chamou a atenção do halfling, pois um fogo ardia em
suas profundezas. A princípio, Regis olhou para o lado oposto do espelho,
esperando ver a fonte da imagem, mas então percebeu que as chamas não eram um
reflexo, mas um evento de fato acontecendo nas dimensões do espelho em si.
— Bem-vindo à minha casa — o mago riu. — Você deve se considerar afortunado
por testemunhar seu esplendor! — Regis olhou fixamente para Kessell, estudando o
mago de perto, pois o tom de sua voz não se assemelhava ao balbuciar característico
de outros que ele havia encantado com o rubi.
— Você deve perdoar minha surpresa quando nos conhecemos — continuou
Kessell. — Eu não esperava que os homens fortes de Dez-Burgos mandassem um
halfling para fazer o trabalho deles! — Ele riu de novo e Regis sabia que algo havia
interrompido o encantamento que lançara sobre o mago quando estavam do lado de
fora.
O halfling podia adivinhar o que tinha acontecido. Ele podia sentir o poder pulsante
desta sala; era evidente que Kessell se alimentava disso. Com sua psique do lado de
fora, o mago estava vulnerável à magia da pedra preciosa, mas aqui sua força estava
muito além da influência do rubi.
— Você disse que tinha informações para me contar — exigiu Kessell de repente.
— Fale agora, por completo, ou farei com que sua morte seja desagradável!
Regis gaguejou, tentando improvisar uma história alternativa. As mentiras
insidiosas que planejara tecer teriam pouco valor para o mago se ele não estivesse
afetado. De fato, em suas fraquezas óbvias, poderiam revelar grande parte da
verdade sobre as estratégias de Cassius.
Kessell se endireitou no trono e se inclinou sobre o halfling, impondo o olhar sobre
ele.
— Fale! — ele ordenou.
Regis sentiu uma vontade de ferro se insinuar em todos os seus pensamentos,
obrigando-o a obedecer a todos os comandos de Kessell. Sentiu que a força
dominante não emanava do mago, no entanto. Pelo contrário, parecia vir de alguma
fonte externa, talvez o objeto invisível que o mago segurava ocasionalmente no
bolso de suas vestes.
No entanto, os membros da raça halfling possuíam uma forte resistência natural a
esse tipo de magia, e uma força contrária – o rubi – ajudou Regis a lutar contra a
vontade insinuante e gradualmente afastá-la. Uma ideia repentina surgiu sobre
Regis. Ele certamente vira pessoas suficientes caírem sob seus próprios encantos
para poder imitar sua postura reveladora. Ele se encolheu um pouco, como se de
repente tivesse ficado completamente à vontade, e concentrou seu olhar vazio em
uma imagem no canto da sala além do ombro de Kessell. Ele sentiu os olhos
secando, mas resistiu à tentação de piscar.
— Que informação você deseja? — ele respondeu mecanicamente.
Kessell se recostou de novo com confiança.
— Dirija-se a mim como Mestre Kessell — ordenou.
— Que informação você deseja, Mestre Kessell?
— Bom — o mago sorriu para si mesmo. — Admita a verdade, halfling, a história
que você foi enviado para me contar era um truque.
“Por que não?” Regis pensou. Uma mentira temperada com pitadas de verdade se
torna muito mais forte.
— Sim — ele respondeu. — Para fazer você pensar que seus verdadeiros aliados
conspiraram contra você.
— E qual era o propósito? — Kessell pressionou, bastante satisfeito consigo
mesmo. — Certamente o povo de Bryn Shander sabe que eu poderia esmagá-los
facilmente, mesmo sem aliados. Parece um plano fraco para mim.
— Cassius não tinha intenção de tentar derrotá-lo, mestre Kessell — disse Regis.
— Então, por que está aqui? E por que Cassius não entregou a cidade como eu
exigi?
— Fui enviado para plantar algumas dúvidas — respondeu Regis, improvisando
cegamente para manter Kessell intrigado e ocupado. Por trás da fachada de suas
palavras, estava tentando montar algum tipo de plano alternativo. — Para dar a
Cassius mais tempo para definir seu verdadeiro curso de ação.
Kessell se inclinou para frente.
— E qual seria esse curso de ação?
Regis parou, procurando uma resposta.
— Você não pode resistir a mim! — rugiu Kessell. — Minha força de vontade é
grande demais! Responda ou arrancarei a verdade da sua mente!
— Fugir — Regis deixou escapar, e depois que disse isso, várias possibilidades se
abriram diante dele.
Kessell reclinou-se.
— Impossível — ele respondeu casualmente. — Meu exército é forte demais em
todos os pontos para os humanos avançarem.
— Talvez não seja tão forte quanto você acredita, Mestre Kessell — Regis lançou a
isca. Seu caminho agora estava claro diante dele. Uma mentira dentro da outra. Ele
gostou da fórmula.
— Explique — exigiu Kessell, com uma sombra de preocupação nublando seu rosto
arrogante.
— Cassius tem aliados dentro de suas fileiras.
O mago saltou da cadeira, tremendo de raiva. Regis ficou maravilhado com a
eficácia de sua simples imitação. Ele se perguntou por um instante se alguma de
suas próprias vítimas também havia feito o mesmo com ele. Afastou o pensamento
perturbador para contemplação futura.
— Os orcs vivem entre o povo de Dez-Burgos há muitos meses — continuou Regis.
— Uma tribo na verdade iniciou uma relação comercial com os pescadores. Eles
também responderam à sua convocação de armas, mas ainda mantêm lealdades, se
alguém de sua espécie realmente mantém, a Cassius. Mesmo quando seu exército
estava entrincheirado no campo em torno de Bryn Shander, as primeiras
comunicações foram trocadas entre o chefe orc e os mensageiros orcs que
escaparam de Bryn Shander.
Kessell alisou o cabelo para trás e passou a mão pelo rosto. Seria possível que seu
exército aparentemente invencível tivesse uma fraqueza secreta?
Não, ninguém ousaria se opor a Akar Kessell!
Mas ainda assim, se alguns deles estivessem conspirando contra ele – se todos
estivessem conspirando – ele saberia? E onde estava Errtu? Será que o demônio
poderia estar por trás disso?
— Qual tribo? — perguntou a Regis suavemente, seu tom revelando que as notícias
do halfling o haviam tornado menos confiante.
Regis havia fisgado o mago.
— O grupo que você enviou para saquear a cidade de Bremen, os Orcs da Língua
Cortada — disse ele, observando os olhos arregalados do mago com satisfação
completa. — Meu trabalho era apenas impedir que você agisse contra Bryn Shander
antes do cair da noite, pois os orcs retornariam antes do amanhecer, provavelmente
para se reagruparem na posição designada no campo, mas na realidade, para abrir
uma brecha em seu flanco ocidental. Cassius levará o povo pela encosta ocidental
até a tundra aberta. Eles só querem mantê-lo desorganizado por tempo suficiente
para dar a eles uma liderança sólida. Então você seria forçado a persegui-los até
Luskan!
Muitos pontos fracos eram aparentes no plano, mas parecia uma aposta razoável
para pessoas em uma situação tão desesperada. Kessell bateu com o punho no braço
do trono.
— Tolos! — ele rosnou.
Regis respirou com um pouco mais de facilidade. Kessell estava convencido.
— Errtu! — ele gritou de repente, sem saber que o demônio havia sido banido do
mundo.
Não houve resposta.
— Oh, maldição, demônio! — Kessell amaldiçoou. — Você nunca está por perto
quando eu mais preciso de você! — Ele tornou a olhar para Regis. — Você espere
aqui. Terei muito mais perguntas para você mais tarde! — Os fogos estrondosos de
sua raiva ferviam perversamente. — Mas primeiro preciso falar com alguns de
meus generais. Ensinarei os Orcs da Língua Cortada a não se oporem a mim!
Na verdade, as observações feitas por Cassius rotularam os Orcs da Língua Cortada
como os mais fortes e fanáticos apoiadores de Kessell.
Uma mentira dentro da outra.

Nas águas de Maer Dualdon, mais tarde naquela noite, a frota reunida das quatro
cidades observou com desconfiança um segundo grupo de monstros sair da força
principal e seguir em direção a Bremen.
— Curioso — comentou Kemp para Muldoon de Bosque Solitário e o porta-voz da
cidade queimada de Bremen, que estavam no convés do navio principal de Targos
ao lado dele. Toda a população de Bremen estava no lago. Certamente o primeiro
grupo de orcs, depois dos primeiros disparos de flechas, não encontrou mais
resistência na cidade. E Bryn Shander permanecia intacta. Por que, então, o mago
estava estendendo ainda mais sua linha de poder?
— Akar Kessell me confunde — disse Muldoon. — Ou o gênio dele está
simplesmente além de mim ou ele realmente comete erros táticos flagrantes!
— Assuma a segunda possibilidade — instruiu Kemp, esperançoso —, pois
qualquer coisa que possamos tentar será em vão se a primeira for a verdade!
Eles continuaram reposicionando seus guerreiros para um ataque oportuno, levando
seus filhos e mulheres nos barcos restantes para os ancoradouros ainda não atacados
de Bosque Solitário, semelhantes às estratégias das forças de refugiados nos outros
dois lagos.
No muro de Bryn Shander, Cassius e Glensather observavam a divisão das forças de
Kessell com um entendimento mais profundo.
— Feito com maestria, halfling — Cassius sussurrou no vento da noite.
Sorrindo, Glensather colocou a mão firmemente no ombro de seu colega porta-voz.
— Vou informar nossos comandantes de campo — disse. — Se chegar a hora de
atacar, estaremos prontos!
Cassius apertou a mão de Glensather e assentiu em aprovação. Enquanto o porta-
voz de Refúgio Leste se afastava, Cassius se inclinou sobre a cumeeira da muralha,
olhando com determinação as paredes agora escuras de Cryshal-Tirith. Entre dentes
cerrados, ele declarou abertamente:
— A hora vai chegar!

Do alto ponto de vantagem do Sepulcro de Kelvin, Drizzt Do’Urden também


testemunhara a mudança abrupta do exército de monstros. Acabara de terminar os
preparativos finais para o seu corajoso ataque a Cryshal-Tirith quando os
tremeluzires distantes de uma grande massa de tochas subitamente subiram para o
oeste. Ele e Guenhwyvar sentaram-se em silêncio e estudaram a situação por um
tempo, tentando encontrar alguma pista sobre o que havia motivado tal ação.
Nada ficou aparente, mas a noite estava se estendendo e ele teria que se apressar.
Não tinha certeza se a atividade o ajudaria, diminuindo as fileiras do campo, ou
atrapalharia, aumentando o estado de prontidão dos monstros restantes. No entanto,
sabia que, para ajudar o povo de Bryn Shander, não podia se dar ao luxo de se
atrasar. Começou a descer a trilha da montanha, com a grande pantera seguindo
silenciosamente atrás dele.
Ele chegou ao terreno aberto a tempo e começou seu trote ao longo do Caminho de
Bremen. Se tivesse parado para estudar o ambiente ou colocado um de seus ouvidos
sensíveis no chão, poderia ter ouvido o barulho distante da tundra ao norte de mais
um exército que se aproximava.
Mas o foco do drow estava no sul, com sua visão concentrada na escuridão de
Cryshal-Tirith enquanto se apressava. Estava viajando com pouca carga, carregando
apenas itens que considerava essenciais para a tarefa. Ele tinha suas cinco armas: as
duas cimitarras embainhadas em suas bainhas de couro nos quadris, uma adaga
enfiada no cinto no meio das costas e as duas facas escondidas em suas botas. Seu
símbolo sagrado e bolsa de riqueza estavam em volta do pescoço e um pequeno
saco de farinha, uma sobra do ataque ao covil dos gigantes, ainda pendurado no
cinto – uma escolha sentimental, uma lembrança reconfortante das aventuras
ousadas que compartilhara com Wulfgar. Todos os outros suprimentos, mochila,
corda, odres e outros itens básicos da sobrevivência cotidiana na dura tundra, havia
deixado no pequeno cubículo.
Ele ouviu os gritos festivos dos goblins quando atravessou a fronteira oriental de
Termalaine.
— Ataquem agora, marinheiros de Maer Dualdon — disse o drow em voz baixa.
Mas quando pensou sobre isso, ficou feliz que os barcos permanecessem no lago.
Mesmo que pudessem entrar e atacar rapidamente os monstros da cidade, não
poderiam se dar ao luxo de ter as perdas que sofreriam. Termalaine poderia esperar;
havia uma batalha mais importante ainda a ser travada.
Drizzt e Guenhwyvar se aproximaram do perímetro externo do acampamento
principal de Kessell. O drow foi consolado por sinais de que a comoção dentro do
acampamento havia se acalmado. Um guarda orc solitário se apoiava cansado na
lança, observando sem entusiasmo a escuridão vazia do horizonte norte. Mesmo que
tivesse sido cauteloso, não teria notado a abordagem furtiva das duas formas, mais
negras que a escuridão da noite.
— Reporte! — veio um comando de algum lugar distante.
— Tudo calmo! — respondeu o guarda.
Drizzt ouviu a checagem ser feita em vários pontos distantes. Fez um sinal para
Guenhwyvar esperar e depois se arrastou para ficar a distância de um arremesso do
guarda.
O orc cansado nem sequer ouviu o silvo da adaga que se aproximava.
Drizzt foi para o lado dele, silenciosamente aparando sua queda na escuridão. O
drow puxou a adaga da garganta do orc e deitou sua vítima no chão. Ele e
Guenhwyvar, sombras despercebidas da morte, seguiram em frente.
Eles haviam rompido a única fila de guardas montada no perímetro norte e agora
seguiam facilmente pelo acampamento adormecido. Drizzt poderia ter matado
dezenas de orcs e goblins, até mesmo um verbeeg, embora o sumiço de seus roncos
trovejantes pudesse ter chamado a atenção, ele não podia se dar ao luxo de diminuir
o ritmo. Cada minuto cansava Guenhwyvar, e agora os primeiros indícios de um
segundo inimigo, o amanhecer revelador, estavam se tornando aparentes no céu
oriental.
As esperanças do drow aumentaram consideravelmente com o progresso que fez,
mas ficou desanimado ao encontrar Cryshal-Tirith. Um grupo de guardas ogros
prontos para a batalha cercava a torre, bloqueando seu caminho.
Ele se agachou ao lado da gata, indeciso sobre o que deveriam fazer. Para escapar
da amplitude do enorme acampamento antes que o amanhecer os expusesse, teriam
que fugir por onde vieram. Drizzt duvidava que Guenhwyvar, em seu estado
lamentável, pudesse sequer tentar essa rota. No entanto, continuar significava uma
luta sem esperança com um grupo de ogros. Parecia não haver resposta para o
dilema.
Então, algo aconteceu na seção nordeste do acampamento, abrindo caminho para os
companheiros furtivos. Gritos repentinos de alarme surgiram, afastando os ogros
alguns passos largos de seus postos. Drizzt pensou a princípio que o guarda orc
assassinado havia sido descoberto, mas os gritos vinham de muito a leste.
Logo o som de aço se chocando ecoou no ar antes do amanhecer. Uma batalha foi
iniciada. Tribos rivais, Drizzt supunha, embora não pudesse identificar os
combatentes a essa distância.
Sua curiosidade não era esmagadora, no entanto. Os ogros indisciplinados se
afastaram ainda mais de suas posições designadas. E Guenhwyvar havia avistado a
porta da torre. Os dois não hesitaram por um segundo.
Os ogros nem notaram as duas sombras que entraram na torre atrás deles.

Uma sensação estranha, um zumbido vibrante, tomou conta de Drizzt quando ele
passou pela entrada de Cryshal-Tirith, como se tivesse entrado nas entranhas de
uma entidade viva. Ele continuou, no entanto, pelo corredor escuro que levava ao
primeiro andar da torre, maravilhado com o estranho material cristalino que
constituía as paredes e o piso da estrutura.
Ele estava em um salão quadrado, a câmara inferior da estrutura de quatro andares.
Este era o salão onde Kessell costumava se reunir com seus generais de campo, o
principal salão de audiência do mago para todos, exceto seus comandantes de alto
escalão.
Drizzt espiou as formas escuras na sala e as sombras mais profundas que elas
criavam. Embora não visse nenhum movimento, sentiu que não estava sozinho. Ele
sabia que Guenhwyvar tinha os mesmos sentimentos desagradáveis, pois o pelo da
nuca negra estava arrepiado e a gata soltava um rosnado baixo.
Kessell considerava essa sala uma zona de amortecimento entre ele e a multidão do
mundo exterior. Era a única câmara na torre que ele raramente visitava. Este era o
lugar onde Akar Kessell abrigava seus trolls.
Capítulo 29

Outras Opções

OS ANÕES DO SALÃO DE MITRAL completaram a primeira de suas saídas


secretas logo após o pôr do sol. Bruenor foi o primeiro a subir para o topo da escada
e espiar o exército de monstros por baixo da grama cortada. Os mineiros anões eram
tão especializados que conseguiram cavar um duto no meio de um grande grupo de
goblins e ogros sem sequer alertar os monstros.
Bruenor estava sorrindo quando voltou para se juntar aos homens do clã.
— Termine os outros nove — instruiu enquanto descia o túnel, com Cattibrie ao seu
lado. — O sono de hoje à noite será bom para os garotos de Kessell! — ele
declarou, dando um tapinha na cabeça do machado em seu cinto.
— Qual o meu papel na próxima batalha? — Cattibrie perguntou quando eles se
afastaram dos outros anões.
— Você poderá puxar uma das alavancas e desmoronar os túneis, se algum dos
suínos descer — respondeu Bruenor.
— E se todos vocês forem mortos em campo? — Cattibrie argumentou. — Estar
enterrada sozinha nesses túneis não é muito promissor.
Bruenor acariciou sua barba ruiva. Ele não havia considerado essa consequência,
imaginando apenas que, se ele e seu clã fossem derrubados no campo, Cattibrie
estaria a salvo atrás dos túneis desabados. Mas como ela poderia viver ali sozinha?
Que preço ela pagaria pela sobrevivência?
— Você quer subir e lutar? Você é boa o bastante com uma espada e eu estarei bem
ao seu lado!
Cattibrie considerou a proposta por um momento.
— Eu vou ficar com a alavanca — ela decidiu. — Você vai ter preocupação o
suficiente lá em cima. E alguém tem que estar aqui para tombar os túneis; não
podemos deixar que os goblins reivindiquem nossos salões como sua casa! Além
disso — acrescentou com um sorriso — foi idiota da minha parte me preocupar. Eu
sei que você vai voltar para mim, Bruenor. Nunca você, nem ninguém de seu clã,
falhou comigo! — ela beijou o anão na testa e pulou para longe.
Bruenor sorriu.
— Você é uma garota corajosa, minha Cattibrie — murmurou.
O trabalho nos túneis terminou algumas horas depois. Os poços haviam sido
cavados e todo o complexo do túnel ao redor deles havia sido equipado para
desmoronar e cobrir qualquer ação de retirada ou esmagar qualquer avanço dos
goblins. O clã inteiro, seus rostos propositalmente enegrecidos de fuligem e suas
pesadas armaduras e armas abafadas sob camadas de pano escuro, estava alinhado
na base dos dez dutos. Bruenor subiu primeiro para investigar. Ele espiou e sorriu
sombriamente. Ao seu redor, ogros e goblins estavam adormecidos.
Ele estava prestes a dar o sinal para seus parentes se moverem quando uma
comoção surgiu de repente no campo. Bruenor permaneceu no topo do duto,
embora mantivesse a cabeça sob a camada de grama (o que o fez levar um pisão de
um goblin que passava), e tentava descobrir o que havia alertado os monstros. Ele
ouviu gritos de comando e um barulho como uma grande força se reunindo.
Mais gritos se seguiram, pedidos pela morte dos Língua Cortada. Embora nunca
tivesse ouvido esse nome antes, o anão adivinhou facilmente que descrevia uma
tribo orc.
— Então eles estão brigando entre si, né? — murmurou, rindo. Percebendo que o
ataque dos anões teria que esperar, desceu a escada.
Mas o clã, decepcionado com o atraso, não se dispersou. Estavam determinados e o
trabalho desta noite seria realizado. Então, esperaram.
A noite passou do ponto médio e ainda assim os sons do movimento vinham do
acampamento acima. No entanto, a espera não estava atrapalhando a determinação
dos anões. Por outro lado, o atraso estava aumentando sua intensidade, aumentando
sua sede de sangue de goblinoides. Esses lutadores também eram ferreiros, artesãos
que passavam longas horas adicionando uma única escama em uma estátua de
dragão. Eles sabiam ter paciência.
Finalmente, quando tudo voltou a ficar quieto, Bruenor voltou a subir a escada.
Antes mesmo de enfiar a cabeça no relvado, ouviu sons reconfortantes de respiração
rítmica e roncos altos.
Sem mais demoras, o clã escapou dos buracos e metodicamente começou seu
trabalho assassino. Eles não se divertiam com seus papéis de assassinos, preferindo
lutar espada contra espada, mas entendiam a necessidade desse tipo de ataque e não
davam nenhum valor à vida da escória.
A área gradualmente se acalmou quando mais e mais monstros entraram no sono
silencioso da morte. Os anões se concentraram primeiro nos ogros, caso o ataque
deles fosse descoberto antes que pudessem causar muito dano. Mas a estratégia
deles era desnecessária. Muitos minutos se passaram sem retaliação.
Quando um dos guardas percebeu o que estava acontecendo e conseguiu soar um
grito de alarme, o sangue de mais de mil soldados de Kessell molhava o campo.
Gritos se espalharam ao redor, mas Bruenor não ordenou uma retirada.
— Em formação! — ordenou. — Mais fechada ao redor dos túneis!
Ele sabia que a corrida louca da primeira onda de contra-atacantes seria
desorganizada e despreparada.
Os anões formaram uma postura defensiva firme e tiveram poucos problemas para
derrubar os goblins. O machado de Bruenor foi marcado com muitas ranhuras antes
que qualquer goblin sequer desse um golpe nele.
Gradualmente, porém, as tropas de Kessell tornaram-se mais organizadas. Eles
chegaram aos anões em formações próprias, e seu número crescente, à medida que
o campo foi despertando, alertado, começou a pressionar os invasores. E então um
grupo de ogros, a guarda de elite de Kessell, veio correndo pelo campo.
Os primeiros dos anões a recuar, os especialistas em túneis que deveriam fazer a
verificação final dos preparativos para o colapso, colocaram seus pés nos degraus
superiores das escadas do duto. A fuga para os túneis seria uma operação delicada,
e a pressa eficiente seria o fator decisivo em seu sucesso ou fracasso.
Mas Bruenor inesperadamente ordenou que os especialistas em túneis voltassem
dos dutos e que os anões mantivessem a formação.
Ele ouvira as primeiras notas de uma música antiga, uma música que, anos antes, o
encheria de pavor. Agora, porém, elevava seu coração com esperança.
Reconheceu a voz que conduzia as palavras emocionantes.


Um braço cortado de carne podre se espalhou pelo chão, mais uma vítima das
cimitarras sibilantes de Drizzt Do’Urden.
Mas os trolls destemidos se amontoavam. Normalmente, Drizzt saberia da presença
deles assim que entrasse na câmara quadrada. Seu fedor terrível dificultava a
ocultação. Esses, no entanto, não estavam na câmara quando o drow entrara.
Quando Drizzt foi mais fundo na sala, ele disparou um alarme mágico que banhou a
área em luz mágica e deu a deixa para os guardas. Eles entraram pelos espelhos
mágicos que Kessell havia plantado como postos de vigilância por toda a sala.
Drizzt já havia derrubado um dos animais miseráveis, mas agora ele estava mais
preocupado em correr do que em lutar. Cinco outros substituíram o primeiro, mais
do que o suficiente para derrubar qualquer guerreiro. Drizzt balançou a cabeça em
descrença quando o corpo do troll que ele decapitou subitamente subiu novamente e
começou a debater-se às cegas.
E então, uma mão com garras agarrou seu tornozelo. Ele sabia sem olhar que era o
membro que acabara de cortar.
Horrorizado, ele chutou o braço grotesco para longe e se virou, correndo para a
escada em espiral que ia até o segundo andar da torre, na parte de trás da câmara. A
seu comando anterior, Guenhwyvar já havia subido mancando fracamente as
escadas e agora esperava na plataforma no topo.
Drizzt ouviu os passos arrastados de seus perseguidores doentios e o arranhar das
unhas imundas da mão decepada, que também estava em perseguição. O drow subiu
a escada sem olhar para trás, esperando que sua velocidade e agilidade lhe dessem
vantagem o suficiente para encontrar uma maneira de escapar.
Pois não havia porta na plataforma.
O patamar no topo da escada era retangular e tinha cerca de três metros de largura
em seu comprimento mais largo. Dois lados estavam abertos para a sala, um
terceiro atingia a borda da escada e o quarto era um espelho plano, com o
comprimento exato da plataforma e preso entre ela e o teto da câmara. Drizzt
esperava que fosse capaz de entender as nuances dessa porta incomum, se era isso o
que realmente era o espelho, quando a examinou a partir da plataforma.
Não seria assim tão fácil.
Embora o espelho estivesse tomado pelo reflexo de uma tapeçaria ornamentada
pendurada na parede da câmara em frente a ele, sua superfície parecia perfeitamente
lisa e intacta sem quaisquer rachaduras ou puxadores que pudessem indicar uma
abertura oculta. Drizzt embainhou suas armas e passou as mãos pela superfície para
ver se havia uma maçaneta escondida de seus olhos aguçados, mas o deslizamento
uniforme do vidro apenas confirmou sua observação.
Os trolls estavam na escadaria.
Drizzt tentou abrir caminho através do vidro, falando todas as palavras de comando
de abertura que já havia aprendido, procurando um portal extradimensional
semelhante ao que mantinha os hediondos guardas de Kessell. A parede
permaneceu uma barreira tangível.
O troll da frente chegou ao meio do caminho nas escadas.
— Deve haver uma pista em algum lugar! — o drow reclamou. — Magos adoram
um desafio, e não há nada de divertido nisso!
A única resposta possível estava nos intrincados desenhos e imagens da tapeçaria.
Drizzt olhou para ela, tentando examinar as milhares de imagens entrelaçadas em
busca de alguma dica especial que lhe mostrasse o caminho para a segurança.
O fedor fluiu até ele. Ele podia ouvir o babar dos monstros sempre famintos.
Mas teve que controlar sua repulsa e se concentrar nas inúmeras imagens.
Uma coisa na tapeçaria chamou sua atenção: as linhas de um poema que passavam
por todas as outras imagens ao longo da borda superior. Em contraste com as cores
opacas do restante da obra de arte antiga, as letras desenhadas do poema continham
o brilho contrastante de uma adição mais recente. Algo que Kessell havia
acrescentado?

Venha se quiser
Para a orgia interior,
Mas primeiro a tranca deve encontrar!
Visto sem ser visto,
Sido sem ter sido
E uma maçaneta que a carne não pode pegar.

Uma linha em particular se destacou na mente do drow. Ele ouvira a frase “sido sem
ter sido” em sua infância em Menzoberranzan. Ela se referia a Urgutha Forka, um
demônio cruel que devastara o planeta com uma praga particularmente virulenta nos
tempos antigos, quando os ancestrais de Drizzt ainda caminhavam na superfície. Os
elfos da superfície sempre negaram a existência de Urgutha Forka, culpando os
drow pela praga, mas os elfos negros sabiam da verdade. Algo em sua composição
física os mantinha imunes ao demônio, e depois que perceberam o quão mortal era
para seus inimigos, trabalharam para satisfazer as suspeitas dos outros elfos,
recrutando Urgutha como aliado.
Assim, a referência “sido sem ter sido” era uma linha pejorativa em um conto drow
mais longo, uma piada secreta sobre seus odiados primos que haviam perdido
milhares dos seus para uma criatura que eles negavam que existisse.
O enigma teria sido impossível para alguém que desconhecesse a história de
Urgutha Forka. O drow havia encontrado uma vantagem valiosa. Ele examinou o
reflexo da tapeçaria em busca de alguma imagem que tivesse uma conexão com o
demônio. E o encontrou na extremidade do espelho, na altura da cintura: um retrato
do própria Urgutha, revelado em todo o seu horrível esplendor. O demônio estava
representado quebrando o crânio de um elfo com um bastão negro, seu símbolo.
Drizzt já tinha visto o mesmo retrato antes. Nada parecia deslocado ou sugeria algo
incomum.
Os trolls haviam dobrado a esquina final de sua subida. Drizzt estava quase sem
tempo.
Ele se virou e procurou na fonte da imagem por alguma discrepância. Então, algo o
atingiu imediatamente. Na tapeçaria original, Urgutha batia no elfo com o punho;
não havia bastão!
— Visto sem ser visto.
Drizzt girou de volta no espelho, agarrando a arma ilusória do demônio. Mas tudo o
que sentiu foi o vidro liso. Ele quase gritou de frustração.
Sua experiência lhe ensinou disciplina e rapidamente recuperou a compostura.
Afastou a mão do espelho, tentando posicionar seu próprio reflexo na mesma
profundidade em que julgava estar o bastão. Ele lentamente fechou os dedos,
observando a imagem de sua mão se fechar ao redor do bastão com a empolgação
do sucesso esperado.
Ele mexeu a mão levemente.
Uma rachadura fina apareceu no espelho.
O troll principal chegou ao topo da escada, mas Drizzt e Guenhwyvar não estavam
mais ali.
O drow deslizou a estranha porta de volta à sua posição fechada, recostou-se e
suspirou de alívio. Uma escada mal iluminada se erguia diante dele, terminando em
uma plataforma que dava para o segundo andar da torre. Nenhuma porta bloqueava
o caminho, apenas fios de contas, cintilando em laranja à luz da tocha da sala
adiante. Drizzt ouviu risadinhas.
Silenciosamente, ele e a gata subiram as escadas e espiaram por cima da borda do
patamar. Eles haviam chegado ao harém de Kessell.
Estava suavemente iluminado com tochas brilhando sob cortinas. A maior parte do
chão estava coberta de travesseiros estofados, e seções da sala eram cortinadas. As
garotas do harém, os brinquedos irracionais de Kessell, sentavam-se em círculo no
centro do chão, rindo com o entusiasmo desinibido de crianças brincando. Drizzt
duvidava que o perceberiam, mas mesmo que notassem, não estava muito
preocupado. Entendeu imediatamente que essas criaturas lamentáveis e quebradas
eram incapazes de iniciar qualquer ação contra ele.
No entanto, ficou alerta, principalmente em relação às alcovas acortinadas. Ele
duvidava que Kessell tivesse colocado guardas ali, certamente nenhum tão
imprevisivelmente cruel quanto trolls, mas não podia se dar ao luxo de cometer
erros.
Com Guenhwyvar ao seu lado, deslizou de sombra em sombra, e quando os dois
companheiros subiram as escadas e estavam no patamar diante da porta do terceiro
andar, Drizzt estava mais relaxado.
Mas então o zumbido que Drizzt ouvira quando entrou na torre retornou. Ganhou
força enquanto continuava, como se seu canto viesse das vibrações das próprias
paredes da torre. Drizzt procurou ao redor por uma possível fonte.
Sininhos pendurados no teto da sala começaram a tilintar assustadoramente.
Os fogos das tochas nas paredes dançavam.
Então Drizzt entendeu.
A estrutura estava despertando com uma vida própria. O campo lá fora permaneceu
sob a sombra da noite, mas os primeiros dedos do amanhecer iluminaram o alto
pináculo da torre.
De repente, a porta se abriu no terceiro andar, a sala do trono de Kessell.
— Muito bem! — exclamou o mago. Ele estava de pé além do trono de cristal do
outro lado da sala, segurando uma vela apagada e de frente para a porta aberta.
Regis estava obedientemente ao seu lado, ostentando uma expressão vazia no rosto.
— Por favor, entre — disse Kessell com falsa cortesia. — Não tema pelos meus
trolls que você machucou, eles certamente se curarão! — Jogou a cabeça para trás e
riu.
Drizzt se sentiu um tolo; e pensar que toda sua cautela e furtividade não serviram a
um propósito melhor do que divertir o mago! Descansou as mãos nos punhos das
cimitarras embainhadas e passou pela porta.
Guenhwyvar permaneceu agachada nas sombras da escada, em parte porque o mago
não disse nada para indicar que sabia da gata, e em parte porque a gata enfraquecida
não queria gastar sua energia ao andar.
Drizzt parou diante do trono e curvou-se. A visão de Regis ao lado do mago o
perturbou mais do que um pouco, mas conseguiu esconder que reconhecia o
halfling. Da mesma forma, Regis não demonstrou familiaridade quando viu o drow
pela primeira vez, embora Drizzt não tivesse certeza se isso era um esforço
consciente ou se o halfling estava sob a influência de algum tipo de encantamento.
— Saudações, Akar Kessell — Drizzt gaguejou no sotaque quebrado dos habitantes
do submundo, como se a língua comum da superfície fosse estranha para ele. Ele
imaginou que poderia muito bem tentar usar as mesmas táticas que havia usado
contra o demônio. — Fui enviado por meu povo de boa fé para conversar com você
sobre questões relacionadas aos nossos interesses comuns.
Kessell riu alto.
— É mesmo? — Um sorriso largo se espalhou por seu rosto, substituído
abruptamente por uma carranca. Os olhos dele se estreitaram, maldosos. — Eu
conheço você, elfo negro. Qualquer um que já morou em Dez-Burgos ouviu o nome
de Drizzt Do’Urden em história ou em tom de brincadeira! Portanto, mantenha suas
mentiras não ditas!
— Peço seu perdão, poderoso mago — Drizzt disse calmamente, mudando de
tática. — De muitas maneiras, ao que parece, você é mais sábio que seu demônio.
O olhar seguro de si desapareceu do rosto de Kessell. Ele se perguntava o que
impedira Errtu de responder às suas convocações. Olhou para o drow com mais
respeito. Será que esse guerreiro solitário havia matado um demônio maior?
— Permita-me começar de novo — disse Drizzt. — Saudações, Akar Kessell. —
ele fez uma reverência. — Eu sou Drizzt Do’Urden, ranger de Gwaeron Windstrom,
guardião do Vale do Vento Gélido. Eu vim para matá-lo.
As cimitarras saltaram de suas bainhas.
Mas Kessell também se mexeu. A vela que ele segurava subitamente voltou à vida.
Sua chama fora capturada no labirinto de prismas e espelhos que enchiam toda a
câmara, focada e afiada em cada ponto refletido. Instantaneamente, com a
iluminação da vela, três feixes de luz concentrados envolveram o drow em uma
prisão triangular. Nenhum dos feixes o tocou, mas o drow sentiu o poder deles e não
ousou cruzar seu caminho.
Drizzt ouviu a torre zumbindo enquanto a luz do dia se filtrava por seu
comprimento. A sala iluminou-se consideravelmente quando vários painéis de
parede que pareciam espelhos à luz das tochas mostraram-se janelas.
— Você acreditava que poderia entrar aqui e simplesmente se desfazer de mim? —
Kessell perguntou incrédulo. — Eu sou Akar Kessell, seu tolo! O Tirano de Vale do
Vento Gélido! Eu comando o maior exército que já marchou nas estepes congeladas
desta terra abandonada!
— Eis o meu exército! — Ele acenou com a mão e um dos espelhos de visão
ganhou vida, revelando parte do vasto acampamento que cercava a torre, completo
com os gritos do campo ao despertar.
Então, um grito de morte soou de algum lugar nas encostas invisíveis do campo.
Instintivamente, o drow e o mago ouviram o clamor distante e ouviram o retinir
contínuo da batalha. Drizzt olhou curiosamente para Kessell, se perguntando se o
mago sabia o que estava acontecendo na seção norte de seu acampamento.
Kessell respondeu à pergunta não dita do drow com um aceno de mão. A imagem
no espelho ficou nublada por uma névoa interna por um momento, depois mudou
para o outro lado do campo. Os gritos e barulhos da batalha soavam alto das
profundezas do instrumento de visão. Então, quando a névoa se dissipou, a imagem
dos homens do clã de Bruenor, lutando de costas um para o outro no meio de um
mar de goblins, ficou clara. O campo ao redor dos anões estava cheio de cadáveres
de goblins e ogros.
— Você vê como é tolice se opor a mim? — gritou Kessell.
— Para mim, parece que os anões se saíram bem.
— Bobagem! — gritou Kessell. Ele acenou com a mão novamente, e a névoa
voltou ao espelho. Abruptamente, a Canção de Tempus ressoou de suas
profundezas. Drizzt se inclinou para frente e se esforçou para vislumbrar uma
imagem através do véu, ansioso para ver o líder da música.
— Enquanto os anões estúpidos matam alguns dos meus combatentes menores,
mais guerreiros se aglomeram para se juntar às fileiras do meu exército! A desgraça
está sobre todos vocês, Drizzt Do’Urden! Akar Kessell chegou!
A névoa se dissipou.
Com mil guerreiros fervorosos atrás dele, Wulfgar se aproximou dos monstros, que
de nada suspeitavam. Os goblins e orcs que estavam mais próximos dos bárbaros
atacantes, mantendo fé inflexível nas palavras de seu mestre, aplaudiram a vinda de
seus aliados prometidos.
Então eles morreram.
A horda bárbara atravessou suas fileiras, cantando e matando com abandono
selvagem. Mesmo com o barulho das armas, o som dos anões se unindo à Canção
de Tempus podia ser ouvido.
De olhos arregalados, mandíbula aberta, tremendo de raiva, Kessell afastou a
imagem chocante e voltou-se para Drizzt.
— Não importa! — ele disse, lutando para manter seu tom firme. — Vou lidar com
eles sem piedade! E então Bryn Shander cairá em chamas!
— Mas primeiro você, drow traidor — o mago sibilou. — Assassino dos seus, quais
deuses sobraram para você orar? — Ele soprou a vela, fazendo sua chama dançar de
lado.
O ângulo de reflexão mudou e um dos feixes encostou em Drizzt, abrindo um
buraco através do punho de sua velha cimitarra e depois foi mais fundo, cortando a
pele negra de sua mão. Drizzt fez uma careta de agonia e agarrou seu ferimento
quando a cimitarra caiu no chão e o raio voltou ao seu caminho original.
— Você vê como é fácil? — provocou Kessell. — Sua mente fraca não pode
começar a imaginar o poder de Crenshinibon! Sinta-se abençoado por permitir que
você sinta uma amostra desse poder antes de morrer!
Drizzt manteve sua mandíbula firme, e não havia sinal de súplica em seus olhos
enquanto ele encarava o mago. Há muito tempo havia abraçado a possibilidade da
morte como um risco aceitável de seu ofício e estava determinado a morrer com
dignidade.
Kessell tentou fazê-lo suar. O mago balançou a vela mortal provocativamente,
fazendo os raios se moverem de um lado para o outro. Quando ele finalmente
percebeu que não ouviria nenhum gemido ou pedido do orgulhoso ranger, Kessell
se cansou do jogo.
— Adeus, seu tolo — ele rosnou e franziu os lábios para soprar a chama.
Regis apagou a vela.
Tudo pareceu parar por vários segundos. O mago olhou para o halfling, que
acreditava ser seu escravo, com espanto horrorizado. Regis apenas deu de ombros,
como se estivesse tão surpreso com seu ato incomumente corajoso quanto Kessell.
Confiando no instinto, o mago jogou a placa de prata que segurava a vela através do
vidro do espelho e correu gritando em direção ao canto de trás da sala para uma
pequena escada escondida nas sombras. Drizzt tinha acabado de dar seus primeiros
passos quando o fogo dentro do espelho rugiu. Quatro olhos vermelhos malignos
olhavam para fora, chamando a atenção do drow, e dois cães infernais saltaram
através do vidro quebrado.
Guenhwyvar interceptou um, saltando além de seu mestre e colidindo de cabeça no
cão demoníaco. As duas feras voltaram para a parte traseira da sala, um borrão
preto e vermelho-amarelado de presas e garras, derrubando Regis de lado.
O segundo cão soltou seu sopro de fogo em Drizzt, mas novamente, como com o
demônio, o fogo não incomodou o drow. Então foi a sua vez de atacar. A cimitarra
pirofóbica retiniu em êxtase, cortando a fera ao meio quando Drizzt a derrubou.
Espantado com o poder da lâmina, mas não tendo tempo nem de encarar sua vítima
mutilada, Drizzt retomou sua perseguição.
Ele chegou ao pé da escada. Lá em cima, através do alçapão aberto até o andar mais
alto da torre, vinha o piscar rítmico de uma luz pulsante. Drizzt sentiu a intensidade
das vibrações aumentando a cada pulso. O coração de Cryshal-Tirith estava batendo
mais forte com o sol nascente. Drizzt entendia o perigo que estava enfrentando, mas
não tinha tempo de parar e refletir sobre as probabilidades.
Estava mais uma vez encarando Kessell, desta vez na menor sala da estrutura. Entre
eles, pairando assustadoramente no ar, estava o pedaço pulsante de cristal – o
coração de Cryshal-Tirith. Ele tinha quatro lados e era afilado como um pingente de
gelo. Drizzt a reconheceu como uma réplica em miniatura da torre em que se
encontrava, embora mal tivesse uns trinta centímetros de comprimento.
Uma imagem exata de Crenshinibon.
Uma parede de luz emanava dele, cortando a câmara ao meio, com o drow de um
lado e o mago do outro. Drizzt sabia pela risada do mago que era uma barreira tão
tangível quanto uma de pedra. Ao contrário da desorganizada sala de vigia abaixo,
apenas um espelho, parecendo mais uma janela na parede da torre, adornava a sala,
logo ao lado do mago.
— Ataque o coração, drow — Kessell riu. — Tolo! O coração de Cryshal-Tirith é
mais poderoso do que qualquer arma do mundo! Nada do que você pudesse fazer,
mágico ou não, poderia colocar o menor arranhão em sua superfície pura! Ataque-o;
que sua tola impertinência seja revelada!
Drizzt tinha outros planos, porém. Ele era flexível e astuto o suficiente para
perceber que alguns inimigos não podiam ser derrotados apenas com força. Sempre
havia outras opções.
Ele embainhou sua arma restante, a cimitarra mágica, e começou a desatar a corda
que prendia o saco ao cinto. Kessell olhou com curiosidade, perturbado pela calma
do drow, mesmo quando sua morte parecia inevitável.
— O que você está fazendo? — o mago exigiu saber.
Drizzt não respondeu. Suas ações foram metódicas e inabaláveis.
Ele afrouxou o cordão do saco e o abriu.
— Eu perguntei o que você está fazendo! — Kessell fez uma careta quando Drizzt
começou a caminhar em direção ao coração. De repente, a réplica parecia
vulnerável para o mago. Ele teve a sensação desconfortável de que talvez esse elfo
negro fosse mais perigoso do que havia imaginado.
Crenshinibon também sentiu. O Fragmento de Cristal telepaticamente instruiu
Kessell a liberar um raio mortal e acabar com o drow.
Mas Kessell estava com medo.
Drizzt se aproximou do cristal. Tentou colocar a mão sobre ele, mas a parede de luz
o repelia. Ele assentiu, esperando por isso, e puxou a abertura do saco o mais largo
possível. Sua concentração estava apenas na própria torre; nunca olhou para o mago
ou reconheceu seu esbravejar.
Ele esvaziou o saco de farinha sobre a pedra.
A torre parecia gemer em protesto e escureceu.
A parede de luz que separava o drow do mago desapareceu.
Mas Drizzt continuava concentrado na torre. Ele sabia que a camada de farinha
sufocante só poderia bloquear as radiações poderosas da pedra por um curto período
de tempo.
Tempo suficiente, porém, para ele deslizar a bolsa agora vazia sobre ela e puxar o
cordão com força. Kessell choramingou e avançou, mas parou diante da cimitarra
sacada.
— Não! — o mago gritou em protesto impotente. — Você percebe as consequências
do que fez? — Como se respondesse, a torre tremeu. O tremor se acalmou
rapidamente, mas tanto o drow quanto o mago sentiram o perigo que se
aproximava. Em algum lugar nas entranhas de Cryshal-Tirith, a ruína já havia
começado.
— Eu entendo perfeitamente — respondeu Drizzt. — Eu te derrotei, Akar Kessell.
Seu breve reinado como autoproclamado governante de Dez-Burgos acabou.
— Você se matou, drow! — Kessell retrucou quando Cryshal-Tirith estremeceu de
novo, desta vez ainda mais violentamente. — Você não pode esperar escapar antes
que a torre desmorone sobre você!
O tremor veio de novo. E de novo.
Drizzt deu de ombros, despreocupado.
— Assim seja — disse ele. — Meu objetivo será cumprido, pois você também
perecerá.
Uma gargalhada súbita e louca explodiu dos lábios do mago. Ele se afastou de
Drizzt e mergulhou no espelho embutido na parede da torre. Em vez de bater no
vidro e cair no campo abaixo, como Drizzt esperava, Kessell deslizou para dentro
do espelho e se foi.
A torre tremeu novamente, e desta vez o tremor não cedeu. Drizzt correu para o
alçapão, mas mal conseguia se manter de pé. Rachaduras apareceram ao longo das
paredes.
— Regis! — ele gritou, mas não houve resposta. Parte da parede na sala abaixo já
havia desabado, Drizzt podia ver os escombros na base da escada. Rezando para
que seu amigo já tivesse escapado, tomou o único caminho que lhe restava.
Mergulhou pelo espelho mágico atrás de Kessell.
Capítulo 30

A Batalha de Vale do Vento Gélido

O POVO DE BRYN SHANDER ouviu a luta no campo, mas foi só no clarear do


amanhecer que puderam ver o que estava acontecendo. Eles aplaudiram os anões
loucamente e ficaram maravilhados quando os bárbaros colidiram com as fileiras de
Kessell, atacando goblins com alegre abandono.
Cassius e Glensather, em suas posições habituais na muralha, ponderaram sobre a
reviravolta inesperada dos acontecimentos, indecisos quanto a se deveriam ou não
liberar suas forças para a batalha.
— Bárbaros? — Glensather ficou boquiaberto. — Eles são nossos amigos ou
inimigos?
— Eles matam orcs — respondeu Cassius. — Eles são amigos!
Em Maer Dualdon, Kemp e os outros também ouviram o som da batalha, embora
não pudessem ver quem estava envolvido. Ainda mais confuso de tudo, uma
segunda batalha havia começado, esta a sudoeste, na cidade de Bremen. Será que os
homens de Bryn Shander haviam saído e atacado? Ou era a força de Akar Kessell se
destruindo ao seu redor?
Então Cryshal-Tirith de repente escureceu, seus lados outrora vítreos e vibrantes
assumindo uma quietude opaca e mortal.
— Regis — murmurou Cassius, sentindo a perda de poder da torre. — Um
verdadeiro herói!
A torre estremeceu e sacudiu. Grandes rachaduras apareceram ao longo de suas
paredes. Então, desmoronou.
O exército de monstros observou com horror e descrença o bastião do mago que
eles haviam começado a adorar como a um deus desabar.
As cornetas em Bryn Shander começaram a soar. O povo de Kemp aplaudiu
loucamente e correu para os remos. Os batedores avançados de Jensin Brent
sinalizaram a notícia surpreendente para a frota em Lac Dinneshere, que por sua vez
transmitiu a mensagem para Águas Rubras. Nos santuários temporários que
ocultavam o povo derrotado de Dez-Burgos, veio o mesmo comando.
— Carga!
O exército reunido dentro dos grandes portões da muralha de Bryn Shander saiu do
pátio e entrou no campo. As frotas de Caer-Konig e Caer-Dineval em Lac
Dinneshere e Bom Prado e Toca de Dougan, no sul, levantaram suas velas para
pegar o vento leste e correram para atravessar os lagos. As quatro frotas reunidas
em Maer Dualdon remaram com força, indo contra aquele mesmo vento na pressa
de ter sua vingança.
Em um turbilhão de caos e surpresa, a batalha final do Vale do Vento Gélido havia
começado.

Regis saiu do caminho quando as criaturas em luta passaram novamente, garras e


presas arrancando e rasgando em uma luta desesperada. Normalmente, Guenhwyvar
teria tido poucos problemas em despachar o cão infernal, mas em seu estado
enfraquecido a gata se viu lutando por sua vida. O hálito quente do cão queimava
seu pelo negro; suas grandes presas mordiam o pescoço musculoso.
Regis queria ajudar a gata, mas ele não conseguia nem chegar perto o suficiente
para chutar seu inimigo. Por que Drizzt saíra tão abruptamente?
Guenhwyvar sentiu seu pescoço ser esmagado pela poderosa boca. A gata rolou,
com seu peso maior fazendo-a levar o cão com ela, mas o aperto das mandíbulas
caninas não foi quebrado. A tontura varreu a gata por falta de ar. Ela começou a
enviar sua mente de volta pelos planos, para seu verdadeiro lar, embora lamentasse
ter falhado com seu mestre nesse momento de necessidade.
Então a torre ficou escura. O assustado cão infernal relaxou um pouco sua mordida
e Guenhwyvar aproveitou a oportunidade rapidamente. A gata plantou as patas
contra as costelas do cão e se soltou das garras, rolando na escuridão.
O cão infernal procurou sua inimiga, mas os poderes furtivos da pantera estavam
além da considerável consciência de seus sentidos aguçados. Então o cão viu uma
segunda presa. Um único salto o levou a Regis.
Guenhwyvar estava jogando um jogo que conhecia melhor agora. A pantera era
uma criatura da noite, um predador que atacava na escuridão e matava antes que sua
presa sentisse sua presença. O cão infernal agachou-se para atacar Regis, depois
caiu quando a pantera pousou pesadamente sobre suas costas, com as garras
arranhando profundamente sua pele cor de ferrugem.
O cão uivou apenas uma vez antes que as presas matadoras encontrassem seu
pescoço. Espelhos racharam e quebraram-se. Um súbito buraco no chão engoliu o
trono de Kessell. Blocos de entulho cristalino começaram a cair enquanto a torre
estremecia em seus espasmos de morte. Gritos da câmara do harém abaixo disseram
à Regis que uma cena semelhante de destruição era comum em toda a estrutura. O
halfling ficou satisfeito ao ver Guenhwyvar despachar o cão infernal, mas entendeu
a futilidade dos atos heroicos da gata. Eles não tinham para onde correr, não havia
como escapar da morte de Cryshal-Tirith.
Regis chamou Guenhwyvar ao seu lado. Ele não podia ver o corpo da gata na
escuridão, mas viu os olhos, concentrados nele e circulando ao redor, como se a
gata o estivesse rondando.
— O quê? — o halfling ficou surpreso, se perguntando se o estresse e as feridas que
o cachorro infligira a Guenhwyvar haviam levado a gata à loucura.
Um pedaço de parede caiu ao lado dele, fazendo-o cair esparramado no chão. Ele
viu os olhos da gata elevarem-se no ar; Guenhwyvar havia saltado.
A poeira o sufocou e ele sentiu o colapso final da torre de cristal começar. Então
veio uma escuridão mais profunda quando a gata preta o envolveu.

Drizzt sentiu-se cair.


A luz estava brilhante demais; não podia ver. Não ouviu nada, nem mesmo o som
do ar passando. No entanto, sabia com certeza que estava caindo.
E então a luz diminuiu em uma névoa cinzenta, como se ele estivesse passando por
uma nuvem. Tudo parecia tão onírico, tão completamente irreal. Não conseguia se
lembrar de como havia entrado em tal posição. Não conseguia se lembrar de seu
próprio nome.
Então caiu em uma pilha profunda de neve e soube que não estava sonhando. Ouviu
o uivo do vento e sentiu seu cortar congelante. Tentou se levantar e ter uma ideia
melhor de seu entorno.
E então ouviu, de longe e abaixo, os gritos da batalha furiosa. Ele se lembrou de
Cryshal-Tirith, lembrou-se de onde estivera. Só poderia haver uma resposta.
Ele estava no topo do Sepulcro de Kelvin.

Os soldados de Bryn Shander e Refúgio Leste, lutando lado a lado com Cassius e
Glensather à frente, avançaram colina abaixo e se dirigiram com força para as
confusas fileiras de goblins. Os dois porta-vozes tinham um objetivo particular em
mente: queriam atravessar as fileiras de monstros e se unir às tropas de Bruenor.
Alguns momentos antes, na muralha, haviam visto os bárbaros tentando a mesma
estratégia e imaginaram que, se todos os três exércitos pudessem se reunir e
flanqueá-los, suas poucas chances aumentariam muito.
Os goblins cederam ao ataque. Em seu absoluto desânimo e surpresa com a virada
repentina dos acontecimentos, os monstros não conseguiram organizar qualquer
arremedo de linha defensiva.
Quando as quatro frotas de Maer Dualdon desembarcaram ao norte das ruínas de
Targos, encontraram a mesma resistência desorganizada e desorientada. Kemp e os
outros líderes imaginaram que poderiam facilmente se estabelecer na terra, mas sua
principal preocupação era que as grandes forças de goblins que ocupavam
Termalaine fossem atrás deles caso se afastassem da praia e removessem sua única
rota de fuga.
Eles não precisavam se preocupar, no entanto. Nos primeiros estágios da batalha, os
goblins em Termalaine haviam realmente corrido com toda a intenção de apoiar seu
mago. Mas então Cryshal-Tirith desabara. Os goblins já estavam céticos, depois de
ouvirem rumores durante toda a noite de que Kessell havia despachado uma grande
força para acabar com os Orcs da Língua Cortada na cidade conquistada de
Bremen. E quando viram a torre, o auge da força de Kessell, desabar em ruínas, eles
reconsideraram suas alternativas, avaliando as consequências das escolhas diante
deles. Fugiram para o norte, para a segurança da planície aberta.


A neve soprada pelo vento foi somada ao véu pesado no topo da montanha. Drizzt
manteve os olhos baixos, mas mal conseguia ver seus próprios pés enquanto
colocava um na frente do outro. Ele ainda segurava a cimitarra mágica, que brilhava
com uma luz pálida, como se aprovasse as temperaturas geladas.
O corpo entorpecido do drow implorava para que começasse a descer a montanha, e
ainda assim ele estava indo mais ao longo da face alta, para um dos picos
adjacentes. O vento carregava um som perturbador em seus ouvidos – a gargalhada
de uma risada insana.
Ele viu a forma turva do mago, debruçada sobre o precipício do sul, tentando
vislumbrar o que estava acontecendo no campo de batalha abaixo.
— Kessell! — gritou Drizzt. Ele viu a forma se mexer abruptamente e sabia que o
mago o ouvira, mesmo através do uivo do vento. — Em nome do povo de Dez-
Burgos, exijo que você se renda a mim! Agora, antes que esse sopro implacável do
inverno nos congele onde estamos!
Kessell sorriu desdenhoso.
— Você ainda não entende o que enfrenta, entende? — ele perguntou surpreso. —
Você realmente acredita que venceu esta batalha?
— Como as pessoas abaixo estão se saindo, ainda não sei — respondeu Drizzt. —
Mas você está derrotado! Sua torre está destruída, Kessell, e sem ela você é apenas
um charlatão! — Ele continuou avançando enquanto falavam e agora estava a
poucos metros do mago, embora seu oponente ainda fosse um mero borrão preto em
um campo cinza.
— Deseja saber como eles estão se saindo, drow? — perguntou Kessell. — Então
olhe! Testemunhe a queda de Dez-Burgos! Ele enfiou a mão por baixo da capa e
puxou um objeto brilhante – um fragmento de cristal. As nuvens pareciam recuar
ante a visão dele. O vento parou no amplo raio de sua influência. Drizzt podia ver
seu poder incrível. O drow sentiu o sangue retornar às mãos entorpecidas à luz do
cristal. Então o véu cinza foi queimado e o céu diante deles ficou claro.
— A torre foi destruída? — zombou Kessell. — Você quebrou apenas uma das
inúmeras imagens de Crenshinibon! Um saco de farinha? Derrotar a relíquia mais
poderosa do mundo? Olhe para os homens tolos que ousam se opor a mim!
O campo de batalha estava espalhado diante do drow. Ele podia ver as velas brancas
e cheias de vento dos barcos de Caer-Dineval e Caer-Konig enquanto se
aproximavam das margens ocidentais de Lac Dinneshere.
No sul, as frotas de Bom Prado e Toca de Dougan já haviam aportado. Os
marinheiros não encontraram resistência inicial e, mesmo agora, estavam se
preparando para um ataque em terra. Os goblins e orcs que formaram a metade sul
do anel de Kessell não testemunharam a queda de Cryshal-Tirith. Embora sentissem
a perda de poder e orientação, tantos deles permaneceram onde estavam ou
abandonaram seus companheiros e fugiram quantos correram ao redor da colina de
Bryn Shander para participar da batalha.
As tropas de Kemp também estavam em terra, saindo cuidadosamente das praias,
com um olhar cauteloso para o norte. Esse grupo havia desembarcado na
concentração mais espessa das forças de Kessell, mas também na área que estava
sob a sombra da torre, onde a queda de Cryshal-Tirith fora mais desanimadora. Os
pescadores encontraram mais goblins interessados em fugir do que com a intenção
de lutar.
No centro do campo, onde a luta mais pesada estava ocorrendo, os homens de Dez-
Burgos e seus aliados também pareciam estar se saindo bem. Os bárbaros haviam
quase se juntado aos anões. Estimulados pelo poder do martelo de Wulfgar e pela
coragem incomparável de Bruenor, as duas forças estavam destruindo tudo o que
havia entre elas. E logo se tornariam ainda mais formidáveis, pois Cassius e
Glensather estavam por perto e avançavam em ritmo constante.
— Pelo que meus olhos me dizem, seu exército não está se saindo muito bem —
Drizzt replicou. — Os homens “tolos” de Dez-Burgos ainda não foram derrotados!
Kessell levantou o Fragmento de Cristal bem acima dele, sua luz queimando em um
nível ainda maior de poder. No campo de batalha, mesmo a grande distância, os
combatentes entendiam ao mesmo tempo o ressurgimento da presença poderosa que
haviam conhecido como Cryshal-Tirith. Humanos, anões e goblins, mesmo aqueles
travados em combate mortal, pararam por um segundo para olhar o farol na
montanha. Os monstros, sentindo o retorno de seu deus, aplaudiram loucamente e
abandonaram sua postura até então defensiva. Encorajados pelo glorioso
reaparecimento de Kessell, eles renovaram o ataque com fúria selvagem.
— Você vê como minha mera presença os incita! — Kessell se gabou com orgulho.
Mas Drizzt não estava prestando atenção no mago ou na batalha abaixo. Ele agora
estava de pé sobre poças de água, da neve que derretera sob o calor da relíquia
brilhante. Ele estava atento a um barulho que seus ouvidos aguçados haviam
captado em meio ao barulho da luta distante. Um estrondo de protesto dos picos
congelados do Sepulcro de Kelvin.
— Eis a glória de Akar Kessell! — o mago gritou, sua voz aumentada para
proporções ensurdecedoras pelo poder da relíquia que possuía. — Quão fácil será
para mim destruir os barcos no lago abaixo!
Drizzt percebeu que Kessell, em seu desprezo arrogante pelos perigos que o
cercavam, estava cometendo um erro óbvio. Tudo o que ele tinha que fazer era
atrasar o mago em qualquer ação decisiva nos próximos momentos.
Reflexivamente, ele pegou a adaga na parte de trás do cinto e a atirou em Kessell,
embora soubesse que Kessell estava envolvido em alguma simbiose pervertida com
Crenshinibon e que a pequena arma não tinha chance de atingir seu alvo. O drow
esperava distrair e enfurecer o mago para desviar sua fúria do campo de batalha.
A adaga acelerou no ar. Drizzt virou-se e correu.
Um feixe fino disparou de Crenshinibon e derreteu a arma antes de encontrar seu
alvo, mas Kessell ficou indignado.
— Você deveria se curvar diante de mim! — gritou para Drizzt. — Cão blasfemo,
você ganhou a distinção de ser minha primeira vítima do dia! — Ele afastou o
fragmento da borda para apontá-lo para o drow em fuga. Mas quando girou,
afundou, subitamente até os joelhos na neve derretida.
Então também ouviu os rugidos furiosos da montanha.
Drizzt se soltou da esfera de influência da relíquia e, sem hesitar para olhar para
trás, correu, aumentando o máximo possível a distância entre ele e a face sul do
Sepulcro de Kelvin.
Imerso até o peito agora, Kessell lutava para se livrar da neve derretida. Ele invocou
o poder de Crenshinibon novamente, mas sua concentração vacilou sob o intenso
estresse da destruição iminente.
Akar Kessell sentiu-se fraco novamente pela primeira vez em anos. Não era o tirano
do Vale do Vento Gélido, mas o aprendiz desajeitado que matara seu professor.
Como se o Fragmento de Cristal o tivesse rejeitado.
Todo o lado da calota de neve da montanha caiu. O estrondo sacudiu a terra por
muitos quilômetros ao redor. Homens e orcs, goblins e até ogros, foram jogados ao
chão.
Kessell apertou o fragmento mais para perto quando começou a cair. Mas
Crenshinibon queimou suas mãos, afastando-o. Kessell falhara vezes demais. A
relíquia não o aceitaria mais como portador.
Kessell gritou quando sentiu o fragmento deslizando por entre seus dedos. Seu
grito, no entanto, foi abafado pelo trovão da avalanche. A fria escuridão da neve se
fechou ao seu redor, caindo, tombando com ele na descida. Kessell acreditava
desesperadamente que, se ainda mantivesse o Fragmento de Cristal, poderia
sobreviver até a isso. Um pequeno conforto o atingiu quando ele se instalou em um
pico mais baixo do Sepulcro de Kelvin.
E metade do pico da montanha caiu em cima dele.

O exército de monstros viu seu deus cair novamente. O fio que incitara seu impulso
rapidamente começou a se desfazer. Mas no tempo em que Kessell reapareceu,
alguma coordenação havia ocorrido. Dois gigantes do gelo, os únicos verdadeiros
gigantes restantes em todo o exército do mago, assumiram o comando. Eles
chamaram a guarda de elite de ogros para o lado deles e depois pediram que as
tribos orcs e goblins se reunissem ao seu redor e seguissem sua liderança.
Ainda assim, o desinteresse do exército era óbvio. As rivalidades tribais que haviam
sido enterradas sob o domínio de punhos de ferro de Akar Kessell ressurgiram na
forma de flagrante desconfiança. Apenas o medo de seus inimigos os mantinha
lutando, e apenas o medo dos gigantes os mantinha alinhados ao lado das outras
tribos.
— É bom vê-lo, Bruenor! — Wulfgar gritou, esmagando outra cabeça de goblin,
quando a horda bárbara finalmente chegou aos anões.
— Te digo o mesmo, garoto! — o anão respondeu, enterrando o machado no peito
de seu oponente. — Demorou muito para você voltar! Achei que teria que matar sua
parte da escória também!
A atenção de Wulfgar estava em outro lugar, porém. Ele descobrira os dois gigantes
que comandavam a força.
— Gigantes de gelo — disse a Bruenor, direcionando o olhar do anão para o anel de
ogros. — Eles são tudo o que mantém as tribos unidas!
— Mais diversão! — Bruenor riu. — Vá na frente!
E assim, com seus principais assistentes e Bruenor ao seu lado, o jovem rei
começou a abrir caminho pelas fileiras de goblins.
Os ogros se aglomeraram na frente de seus novos comandantes para bloquear o
caminho dos bárbaros.
A essa altura, Wulfgar já estava perto o suficiente.
Presa de Égide assobiou além das fileiras dos ogros e pegou um dos gigantes na
cabeça, largando-o sem vida no chão. O outro, incrédulo por um humano ter sido
capaz de dar um golpe tão mortal contra um de seu tipo a uma distância tão grande,
hesitou por apenas um breve momento antes de fugir da batalha.
Destemidos, os ogros cruéis atacaram o grupo de Wulfgar, empurrando-os para trás.
Mas Wulfgar estava satisfeito e, de bom grado, cedeu espaço, ansioso para se juntar
à maior parte do exército humano e anão.
Bruenor não estava tão disposto, porém. Esse era o tipo de luta caótica que ele mais
gostava. Desapareceu sob as longas pernas da linha principal de ogros e passou,
invisível no pó e na confusão, entre suas fileiras.
Pelo canto do olho, Wulfgar viu a estranha partida do anão.
— Aonde você vai? — gritou atrás dele, mas Bruenor, sedento pela batalha, não
podia ouvir o chamado e não teria prestado atenção.
Wulfgar não conseguia ver a corrida do anão selvagem, mas podia se aproximar da
posição de Bruenor, ou pelo menos onde o anão acabara de estar, já que ogro após
ogro se dobrava em agonia surpresa, segurando um joelho, um tendão ou uma
virilha.
Acima de toda a comoção, aqueles orcs e goblins que não estavam envolvidos em
combate direto mantinham um olhar atento ao Sepulcro de Kelvin, aguardando o
segundo ressurgimento.
Mas agora, nas colinas mais baixas da montanha, havia apenas neve.

Desejosos de vingança, os combatentes de Caer-Konig e Caer-Dineval trouxeram


seus navios o mais rápido possível, deslizando-os de forma imprudente nas areias
das águas rasas para evitar os atrasos de atracar em águas mais profundas. Eles
saltaram dos barcos e caíram em terra, correndo para a batalha em um frenesi
destemido que afastava seus oponentes. Uma vez que se estabeleceram em terra,
Jensin Brent os uniu em uma formação fechada e os virou para o sul. O porta-voz
ouviu os combates longínquos naquela direção e sabia que os homens de Bom
Prado e Toca de Dougan estavam cortando uma faixa ao norte para se unir a seus
homens. Seu plano era encontrá-los na Estrada Leste e depois dirigir para o oeste
em direção a Bryn Shander com seus números reforçados.
Muitos dos goblins deste lado da cidade haviam fugido há muito tempo, e muitos
outros foram para o noroeste, até as ruínas de Cryshal-Tirith e os principais
combates. O exército de Lac Dinneshere acelerou em direção ao objetivo.
Chegaram à estrada com poucas perdas e se prepararam para esperar os sulistas.

Kemp observou ansiosamente o sinal do navio solitário navegando nas águas de


Maer Dualdon. O porta-voz de Targos, nomeado comandante das forças das quatro
cidades do lago, havia se movido cautelosamente até agora, por medo de um forte
ataque do norte. Manteve seus homens sob controle, permitindo que lutassem
apenas contra os monstros que os atacavam, embora tal postura conservadora, com
os sons de uma batalha furiosa uivando pelo campo, estivesse partindo seu coração
aventureiro.
Como os minutos se arrastavam sem nenhum sinal de reforços de goblins, o porta-
voz havia enviado uma pequena escuna para subir a costa e descobrir o que estava
atrasando a força de ocupação em Termalaine.
Então ele notou as velas brancas deslizando à vista. No alto da proa do pequeno
navio estava a bandeira de sinalização que Kemp mais desejava, mas menos
esperava: a bandeira vermelha da captura, embora neste caso, sinalizasse que
Termalaine estava limpa e os goblins estavam fugindo para o norte.
Kemp correu para o ponto mais alto que pôde encontrar, seu rosto corado pelo
desejo de vingança. “Rompam a linha, rapazes!” ele gritou para seus homens.
“Abram caminho até a cidade na colina! Deixe Cassius voltar e nos encontrar
sentados na porta de sua cidade!”
Eles gritavam loucamente a cada passo, homens que haviam perdido casas e
parentes e visto suas cidades queimarem debaixo deles. Muitos deles não tinham
mais nada a perder. Tudo o que eles esperavam ganhar era um pequeno gosto de
amarga satisfação.

A batalha durou pelo resto da manhã, tanto homens quanto monstros levantando
espadas e lanças que pareciam ter dobrado seu peso. No entanto, a exaustão,
embora retardasse seus reflexos, não fez nada para amenizar a raiva que ardia no
sangue de todo combatente.
As linhas de batalha tornaram-se indistinguíveis à medida que a luta prosseguia,
com as tropas ficando irremediavelmente separadas de seus comandantes. Em
muitos lugares, goblins e orcs lutavam entre si, incapazes, mesmo com um inimigo
comum tão prontamente disponível, de sublimar seu ódio de longa data pelas tribos
rivais. Uma espessa nuvem de poeira envolvia as mais pesadas concentrações da
luta; o clamor vertiginoso de aço contra aço, espadas batendo contra escudos e os
crescentes gritos de morte, agonia e vitória degeneraram o choque estruturado em
uma briga generalizada.
A única exceção era o grupo de anões experientes em batalha. Suas fileiras não
vacilaram nem se desintegraram, apesar de Bruenor ainda não ter retornado após
sua estranha saída.
Os anões forneceram uma plataforma sólida para os bárbaros atacarem e para
Wulfgar e seu pequeno grupo marcarem seu retorno. O jovem rei estava de volta
entre as fileiras de seus homens, justamente quando Cassius e sua força se uniram.
O porta-voz e Wulfgar trocaram olhares atentos, nenhum deles certo de em que pé
um estava com o outro. Ambos eram sábios o suficiente para confiar plenamente
em sua aliança no presente, porém. Ambos entendiam que inimigos inteligentes
deixavam de lado suas diferenças diante de um inimigo maior.
Apoiar um ao outro seria a única vantagem que os aliados recém unidos
desfrutariam. Juntos, superavam em número e podiam derrotar qualquer tribo de
orcs ou goblins. E, uma vez que as tribos dos goblins não funcionariam em
uníssono, cada grupo não possuía suporte em seus flancos. Wulfgar e Cassius,
seguindo e apoiando os movimentos um do outro, enviavam guerreiros para impedir
grupos de perímetro, enquanto a força principal do exército combinado explodia em
uma tribo de cada vez.
Embora suas tropas estivessem derrubando dez goblins para cada homem que
perdiam, Cassius estava genuinamente preocupado. Milhares de monstros sequer
haviam entrado em contato com os humanos ou erguido uma arma ainda, e seus
homens estavam quase caindo de fadiga. Ele tinha que levá-los de volta à cidade.
Ele deixou os anões liderarem o caminho.
Wulfgar, também apreensivo com a capacidade de seus guerreiros em manter o
ritmo e sabendo que não havia outra rota de fuga, instruiu seus homens a seguir
Cassius e os anões. Era uma aposta, pois o bárbaro não sabia se o povo de Bryn
Shander deixaria seus guerreiros entrar na cidade.
A força de Kemp havia feito progressos iniciais impressionantes em suas investidas
nas encostas da cidade principal, mas, ao se aproximarem de seu objetivo, eles se
depararam com concentrações mais pesadas e mais desesperadas de humanóides. A
apenas cem metros da colina, estavam atolados e lutando por todos os lados.
Os exércitos que vinham do leste haviam se saído melhor. A corrida deles pela
Estrada Leste encontrou pouca resistência e foram os primeiros a alcançar a colina.
Eles navegaram loucamente pelos lagos, correram e lutaram por toda a planície,
mas Jensin Brent, o único porta-voz sobrevivente dos quatro originais, pois
Schermont e os dois das cidades do sul haviam caído na Estrada Leste, não os
deixou descansar. Ele ouvia a batalha acalorada e sabia que os bravos homens nos
campos do norte, enfrentando a massa do exército de Kessell, precisavam de
qualquer apoio que pudessem obter.
No entanto, quando o porta-voz conduziu suas tropas pela curva final até o portão
norte da cidade, eles pararam e olharam para o espetáculo da batalha mais brutal
que já haviam visto ou ouvido falar em histórias exageradas. Combatentes lutavam
sobre os corpos mutilados dos caídos e guerreiros que de alguma forma perderam
suas armas mordiam e arranhavam seus oponentes.
Brent supôs imediatamente que Cassius e sua grande força seriam capazes de voltar
à cidade por conta própria. Os exércitos de Maer Dualdon, no entanto, estavam em
uma situação difícil.
— Para o oeste! — gritou para seus homens enquanto avançava em direção à força
aprisionada. Uma nova onda de adrenalina enviou o exército cansado em fuga para
o resgate de seus camaradas. Sob ordens de Brent, desceram das encostas em uma
longa fila lado a lado, mas quando chegaram ao campo de batalha, apenas o grupo
do meio continuou avançando. Os grupos no final da formação desmoronaram para
o meio, e toda a força logo formou uma cunha, sua ponta quebrando todo o caminho
através dos monstros para alcançar os exércitos em apuros de Kemp.
Os homens de Kemp aceitaram o apoio e a força unida logo conseguiu recuar para a
face norte da colina. Os últimos retardatários chegaram ao mesmo tempo que o
exército de Cassius, os bárbaros de Wulfgar, e os anões se libertaram das fileiras
mais próximas de goblins e escalaram o terreno aberto da colina. Agora, com os
humanos e os anões unidos, os goblins se moviam timidamente. Suas perdas
haviam sido surpreendentes. Nenhum gigante ou ogro permanecia e várias tribos
inteiras de goblins e orcs jaziam mortas. Cryshal-Tirith era uma pilha de entulho
enegrecido e Akar Kessell estava enterrado em uma cova congelada.
Os homens na colina de Bryn Shander estavam feridos e vacilantes de exaustão,
mas a expressão sombria de suas faces dizia aos monstros restantes
inequivocamente que lutariam até o último suspiro. Eles haviam voltado para o
canto final, não haveria mais retirada.
Dúvidas surgiram na mente de todos os goblins e orcs que restavam para continuar
a guerra. Embora seus números ainda fossem provavelmente suficientes para
completar a tarefa, muitos outros ainda cairiam antes que os homens ferozes de
Dez-Burgos e seus aliados mortais fossem derrotados. Mesmo assim, qual das tribos
sobreviventes reivindicaria a vitória? Sem a orientação do mago, os sobreviventes
da batalha certamente teriam dificuldade em dividir os despojos de maneira justa
sem mais brigas.
A Batalha de Vale do Vento Gélido não seguira o curso que Akar Kessell havia
prometido.Os exércitos que vinham do leste haviam se saído melhor. A corrida
deles pela Estrada Leste encontrou pouca resistência e foram os primeiros a
alcançar a colina. Navegaram loucamente pelos lagos, correram e lutaram por toda
a planície, mas Jensin Brent, o único porta-voz sobrevivente dos quatro originais,
pois Schermont e os dois das cidades do sul haviam caído na Estrada Leste, não os
deixou descansar. Ele ouvia a batalha acalorada e sabia que os bravos homens nos
campos do norte, enfrentando a massa do exército de Kessell, precisavam de apoio.
No entanto, quando o porta-voz conduziu suas tropas pela curva final até o portão
norte da cidade, eles pararam e olharam para o espetáculo mais brutal que já haviam
visto ou ouvido falar. Combatentes lutavam sobre os corpos mutilados dos caídos.
Aqueles que haviam perdido suas armas mordiam e arranhavam seus oponentes.
Brent supôs imediatamente que Cassius e sua grande força seriam capazes de voltar
à cidade por conta própria. Os exércitos de Maer Dualdon, no entanto, estavam em
uma situação difícil.
— Para o oeste! — gritou para seus homens enquanto avançava em direção à força
aprisionada. Uma nova onda de adrenalina enviou o exército cansado em fuga para
o resgate de seus camaradas. Sob ordens de Brent, desceram das encostas em uma
longa fila lado a lado, mas quando chegaram ao campo de batalha, apenas o grupo
do meio continuou avançando. Os grupos no final da formação desmoronaram para
o meio, e toda a força logo formou uma cunha, sua ponta quebrando todo o caminho
através dos monstros para alcançar os exércitos em apuros de Kemp.
Os homens de Kemp aceitaram ansiosamente o apoio e a força unida logo
conseguiu recuar para a face norte da colina. Os últimos retardatários chegaram ao
mesmo tempo que o exército de Cassius, os bárbaros de Wulfgar, e os anões se
libertaram das fileiras mais próximas de goblins e escalaram o terreno aberto da
colina. Agora, com os humanos e os anões unidos como uma força, os goblins se
moviam timidamente. Suas perdas haviam sido surpreendentes. Nenhum gigante ou
ogro permanecia, e várias tribos inteiras de goblins e orcs jaziam mortas. Cryshal-
Tirith era uma pilha de entulho enegrecido e Akar Kessell estava enterrado em uma
cova congelada.
Os homens na colina de Bryn Shander estavam feridos e vacilantes de exaustão,
mas a expressão sombria de suas faces dizia aos monstros restantes
inequivocamente que lutariam até o último suspiro. Eles haviam voltado para o
canto final, não haveria mais retirada.
Dúvidas surgiram na mente de todos os goblins e orcs que restavam para continuar
a guerra. Embora seus números ainda fossem provavelmente suficientes para
completar a tarefa, muitos outros ainda cairiam antes que os homens ferozes de
Dez-Burgos e seus aliados mortais fossem derrotados. Mesmo assim, qual das tribos
sobreviventes reivindicaria a vitória? Sem a orientação do mago, os sobreviventes
da batalha certamente teriam dificuldade em dividir os despojos de maneira justa
sem mais brigas.
A Batalha de Vale do Vento Gélido não seguira o curso que Akar Kessell havia
prometido.
Capítulo 31

Vitória?

OS HOMENS DE DEZ-BURGOS, juntamente com seus aliados anões e bárbaros,


abriram caminho lutando por todos os lados do campo e agora estavam unificados
diante do portão norte de Bryn Shander. Enquanto o exército deles alcançava uma
posição singular de combate, com todos os grupos antes separados unidos em
direção ao objetivo comum de sobrevivência, o exército de Kessell seguira o
caminho oposto. Quando os goblins invadiram o Passo do Vento Gélido pela
primeira vez, seu objetivo comum era a vitória para a glória de Akar Kessell. Mas
Kessell se fora e Cryshal-Tirith havia sido destruída, e o cordão que mantinha
unidos os inimigos amargos de longa data, as tribos rivais dos orcs e dos goblins,
começou a se desfazer.
Os humanos e os anões olhavam para a massa de invasores com suas esperanças
retornando, pois em todas as margens externas da vasta força, formas escuras
continuavam a se afastar e a fugir do campo de batalha de volta à tundra.
Ainda assim, os defensores de Dez-Burgos estavam cercados por três lados, de
costas para a muralha de Bryn Shander. Nesse ponto, os monstros não fizeram
nenhum movimento para forçar o ataque, mas milhares de goblins mantiveram suas
posições ao redor dos campos ao norte da cidade.
No início da batalha, quando os ataques iniciais pegaram os invasores de surpresa,
os líderes das forças de defesa envolvidas considerariam essa calmaria no combate
desastrosa, roubando seu ímpeto e permitindo que seus inimigos atordoados se
reagrupassem em formações mais favoráveis.
Agora, porém, o intervalo foi uma bênção dupla: deu aos soldados um descanso
desesperadamente necessário e deixou os goblins e orcs absorverem a surra que
haviam levado. O campo deste lado da cidade estava cheio de cadáveres, muito
mais de goblins do que humanos, e a pilha demolida de Cryshal-Tirith apenas
aumentava a percepção dos monstros sobre suas perdas impressionantes. Não
restavam gigantes ou ogros para reforçar suas linhas fracas, e a cada segundo que
passava viam mais de seus aliados abandonando a causa.
Cassius teve tempo de chamar todos os porta-vozes sobreviventes ao seu lado para
um breve conselho.
A uma curta distância, Wulfgar e Revjak se encontravam com Fender Mallot, o
líder designado das forças anãs à luz da perturbadora ausência de Bruenor.
— Estamos felizes com seu retorno, poderoso Wulfgar — disse Fender. — Bruenor
sabia que você voltaria.
Wulfgar olhou para o campo, procurando algum sinal de que Bruenor ainda estava
por lá.
— Você tem alguma notícia de Bruenor?
— Você foi o último a vê-lo — Fender respondeu sombriamente.
Então, ficaram em silêncio, examinando o campo.
— Me deixe ouvir novamente o retinir do seu machado — sussurrou Wulfgar.
Mas Bruenor não podia ouvi-lo.

— Jensin — Cassius perguntou ao porta-voz de Caer-Dineval —, onde estão suas


mulheres e crianças? Eles estão seguros?
— A salvo em Refúgio Leste — respondeu Jensin Brent. — Juntos, agora, com o
povo de Bom Prado e Toca de Dougan. Estão todos bem provisionados e vigiados.
Se os desgraçados de Kessell chegarem à cidade, as pessoas saberão sobre o perigo
iminente com tempo suficiente para voltarem a Lac Dinneshere.
— Mas quanto tempo eles poderiam sobreviver na água? — perguntou Cassius.
Jensin Brent deu de ombros.
— Até o inverno cair, acho. No entanto, sempre terão um lugar para aportar, pois os
goblins e orcs restantes não poderiam abranger nem metade da costa do lago.
Cassius parecia satisfeito. Ele se virou para Kemp.
— Bosque Solitário — Kemp respondeu à pergunta não dita. — E aposto que estão
melhor do que nós! Eles têm barcos suficientes no cais para fundar uma cidade no
meio de Maer Dualdon.
— Isso é bom — disse Cassius. — Isso deixa outra opção em aberto para nós.
Talvez pudéssemos nos manter aqui por um tempo e depois recuar para dentro dos
muros da cidade. Os goblins e orcs, mesmo com seu maior número, não podem
esperar conquistar-nos lá!
A ideia tinha apelo para Jensin Brent, mas Kemp fez uma careta.
—Então nosso povo pode estar seguro o suficiente — disse ele — mas e os
bárbaros?
— Suas mulheres são resistentes e capazes de sobreviver sem eles — respondeu
Cassius.
— Não me importo nem um pouco com as mulheres fedorentas — Kemp falou com
raiva, levantando a voz propositalmente para que Wulfgar e Revjak, mantendo seu
próprio conselho não muito longe, pudessem ouvi-lo. — Eu falo desses cães
selvagens mesmo! Certamente você não vai abrir sua porta para convidá-los!
O orgulhoso Wulfgar foi em direção aos porta-vozes.
Cassius virou-se furioso para Kemp.
— Babaca teimoso! — ele sussurrou severamente. — Nossa única esperança está na
unidade!
— Nossa única esperança está em atacar! — rebateu Kemp. — Nós os
aterrorizamos e você nos pede para fugir e nos esconder!
O enorme rei bárbaro apareceu diante dos dois porta-vozes, elevando-se acima
deles.
— Saudações, Cassius de Bryn Shander — disse educadamente. — Sou Wulfgar,
filho de Beornegar, e líder das tribos que vieram se juntar à sua nobre causa.
— O que seu tipo poderia saber sobre nobreza? — Kemp interrompeu e Wulfgar o
ignorou.
— Eu ouvi muito de sua discussão — continuou ele, inabalável. — Considero que
seu conselheiro mal-educado e ingrato — fez uma pausa para se controlar — propôs
a única solução.
Cassius, ainda esperando que Wulfgar se enfurecesse com os insultos de Kemp,
ficou inicialmente confuso.
— Ataque — explicou Wulfgar. — Os goblins estão incertos agora sobre quais
ganhos podem obter. Eles se perguntam por que seguiram o mago maligno até este
lugar de desgraça. Se lhes for permitido reencontrar sua sede pela batalha, serão um
inimigo mais formidável.
— Agradeço suas palavras, rei bárbaro — respondeu Cassius. — No entanto, acho
que essa gentalha não será capaz de suportar um cerco. Eles deixarão os campos
antes que uma semana tenha passado!
— Talvez — disse Wulfgar. — Mesmo assim, seu povo pagará caro. Os goblins
partindo por sua própria escolha não retornarão a suas cavernas de mãos vazias.
Ainda existem várias cidades desprotegidas que eles poderiam atacar ao sair do
Vale do Vento Gélido. E, pior ainda, não sairão com medo nos olhos. Sua retirada
salvará a vida de alguns de seus homens, Cassius, mas não impedirá o futuro
retorno de seus inimigos!
— Então você concorda que devemos atacar? — Cassius perguntou.
— Nossos inimigos passaram a nos temer. Eles olham em volta e veem a ruína que
trouxemos sobre eles. O medo é uma ferramenta poderosa, especialmente contra
goblins covardes. Vamos completar a derrota, como seu povo fez com o meu há
cinco anos — Cassius reconheceu a dor nos olhos de Wulfgar ao se lembrar do
incidente — e mandar essas bestas sujas correndo de volta para suas casas nas
montanhas! Muitos anos se passarão antes que se aventurem a atacar suas cidades
novamente.
Cassius olhou para o jovem bárbaro com profundo respeito e profunda curiosidade.
Ele mal podia acreditar que esses orgulhosos guerreiros da tundra, que se
lembravam vividamente do massacre que haviam sofrido nas mãos dos homens de
Dez-Burgos, haviam vindo em socorro das comunidades de pescadores.
— Meu povo realmente derrotou o seu, nobre rei. Brutalmente. Por que, então, você
veio?
— Essa é uma questão que discutiremos depois de concluirmos nossa tarefa —
respondeu Wulfgar. — Agora, vamos cantar! Vamos aterrorizar os corações de
nossos inimigos e quebrá-los!
Ele se voltou para Revjak e alguns de seus outros líderes.
— Cantem, orgulhosos guerreiros! — ordenou. — Deixe a Canção de Tempus
anunciar a morte dos goblins!
Uma comemoração empolgante subiu pelas fileiras bárbaras e eles ergueram suas
vozes orgulhosamente ao seu deus da guerra.
Cassius notou o efeito imediato que a música teve nos monstros mais próximos.
Eles recuaram um passo e apertaram suas armas com força.
Um sorriso cruzou o rosto do porta-voz. Ele ainda não conseguia entender a
presença dos bárbaros, mas as explicações teriam que esperar.
— Juntem-se aos nossos aliados bárbaros! — gritou para seus soldados. — Hoje é
um dia de vitória!
Os anões adotaram o sombrio canto de guerra de sua antiga pátria. Os pescadores de
Dez-Burgos seguiram as palavras da Canção de Tempus, hesitantemente a princípio,
até que as inflexões e frases estrangeiras rolassem facilmente de seus lábios. E
então se uniram completamente, proclamando a glória de suas cidades individuais,
como os bárbaros faziam com suas tribos. O andamento ficou mais rápido, o
volume se moveu em direção a um crescendo poderoso. Os goblins tremeram com o
crescente frenesi de seus inimigos mortais. O fluxo de desertores que corria para
longe das bordas do grupo principal crescia cada vez mais.
Então, como uma onda mortal, os aliados humanos e anões avançaram colina
abaixo.

Drizzt conseguiu se afastar o suficiente da face sul para escapar da fúria da


avalanche, mas ainda se encontrava em uma situação perigosa. O Sepulcro de
Kelvin não era uma montanha alta, mas o terço superior era perpetuamente coberto
de neve, profunda e brutalmente exposto ao vento gélido que batizava o local.
Pior ainda para o drow, seus pés se molharam no derretimento causado por
Crenshinibon, e agora, à medida que a umidade endurecia em torno de sua pele, o
movimento pela neve era doloroso.
Ele resolveu seguir em frente, procurando a face ocidental que oferecia a melhor
proteção contra o vento. Seus movimentos eram violentos e exagerados, gastando
toda a energia que podia para manter a circulação fluindo em suas veias. Quando
ele alcançou a borda do pico da montanha e começou a descer, teve que se mover
com mais hesitação, temendo que qualquer choque repentino o levasse ao mesmo
destino sombrio que havia caído sobre Akar Kessell.
Suas pernas estavam completamente dormentes agora, mas as mantinha em
movimento, quase tendo que forçar seus reflexos automáticos.
Mas então ele escorregou.

Os ferozes guerreiros de Wulfgar foram os primeiros a colidir com a linha dos


goblins, forçando e empurrando para trás a primeira fila de monstros. Nenhum
goblin ou orc ousou ficar diante do rei poderoso, mas na confusão lotada da luta
poucos conseguiam sair de seu caminho. Um após o outro, caíam ao chão.
O medo havia praticamente paralisado os goblins, e sua ligeira hesitação garantiu a
desgraça sobre os primeiros grupos a encontrar os bárbaros selvagens.
No entanto, a queda do exército veio por completo das fileiras mais ao fundo. As
tribos que sequer estavam envolvidas nos combates começaram a refletir sobre a
sabedoria de continuar tal campanha, pois entenderam ter ganho vantagem
suficiente sobre os rivais de sua pátria, enfraquecidos por fortes perdas, para
expandir seus territórios na Espinha do Mundo. Logo após o início da segunda
explosão de combates, a nuvem de poeira levantada por passos mais uma vez subiu
acima do Passo do Vento Gélido, quando dezenas de tribos orcs e goblins voltaram
para casa.
E o efeito das deserções em massa sobre os goblins que não podiam fugir
facilmente foi devastador. Até o goblin mais tolo sabia que a chance de vitória de
seu povo contra os teimosos defensores de Dez-Burgos estava no peso esmagador
de seus números.
Presa de Égide batia repetidamente enquanto Wulfgar, avançando sozinho, varria
um caminho de devastação diante dele. Até os homens de Dez-Burgos se afastaram
dele, impressionados por sua força selvagem. Mas seu próprio povo o olhava com
reverência e fez o possível para seguir sua liderança gloriosa.
Wulfgar adentrou um grupo de orcs. Presa de Égide acertou um, matando-o e
derrubando aqueles atrás dele no chão. O golpe de Wulfgar com o martelo produziu
os mesmos resultados em seu outro flanco. Em uma sequência de golpes, mais da
metade do grupo de orcs estava morta ou atordoada.
Os demais não queriam enfrentar o poderoso humano.
Glensather de Refúgio Leste também entrou em um grupo de goblins, esperando
incitar seu povo com a mesma fúria que seu colega bárbaro. Mas Glensather não era
um gigante imponente como Wulfgar, e não usava uma arma tão poderosa quanto
Presa de Égide. Sua espada cortou o primeiro goblin que encontrou, depois girou
para trás habilmente e tombou um segundo. O porta-voz se saiu bem, mas um
elemento estava faltando em seu ataque – o fator crítico que elevava Wulfgar acima
de outros homens. Glensather havia matado dois goblins, mas não havia causado o
caos em suas fileiras que ele precisava para continuar. Em vez de fugir, como
fizeram com Wulfgar, os goblins restantes foram atrás dele.
Glensather tinha acabado de chegar ao lado do rei bárbaro quando a ponta cruel de
uma lança mergulhou em suas costas e o atravessou, saindo pela frente do peito.
Testemunhando o horrível espetáculo, Wulfgar levou Presa de Égide por cima do
porta-voz, empurrando a cabeça do goblin que empunhava a lança para dentro do
peito. Glensather ouviu o martelo acertar atrás dele e até conseguiu sorrir em
agradecimento antes de cair morto na grama.
Os anões trabalhavam de maneira diferente dos seus aliados. Mais uma vez em sua
formação firme e de suporte, derrubavam fileiras de goblins simultaneamente. E os
pescadores, guerreando pela vida de suas mulheres e filhos, lutavam, e morriam,
sem medo.
Em menos de uma hora, todos os grupos de goblins foram esmagados, e meia hora
depois disso, o último dos monstros caiu morto no campo manchado de sangue.

Drizzt desceu com a onda branca de neve caindo ao lado da montanha. Ele tropeçou
impotente, tentando se preparar sempre que via se sobressair a ponta de uma pedra
em seu caminho. Ao se aproximar da base da calota de neve, foi jogado para longe
do escorregador e enviado saltitando pelas rochas e pedregulhos cinzentos, como se
os orgulhosos e inconquistáveis picos da montanha o tivessem cuspido como um
penetra.
Sua agilidade – e uma forte dose de pura sorte – o salvaram. Quando finalmente
conseguiu parar seu impulso e encontrar um apoio, descobriu que seus numerosos
ferimentos eram superficiais, um arranhão no joelho, um nariz ensanguentado e um
pulso torcido sendo os piores deles. Em retrospecto, Drizzt teve que considerar a
pequena avalanche uma bênção, pois descera rapidamente a montanha e sequer
tinha certeza se poderia ter escapado do destino gelado de Kessell sem ela.
A batalha no sul havia recomeçado a essa altura. Ouvindo os sons dos combates,
Drizzt observou curioso milhares de goblins passarem do outro lado do vale dos
anões, subindo o Passo do Vento Gélido na primeira etapa de sua longa jornada para
casa. O drow não podia ter certeza do que estava acontecendo, embora estivesse
familiarizado com a reputação covarde dos goblins.
Ele não pensou muito nisso, porém, pois a batalha não era mais sua preocupação
principal. Sua visão seguiu um caminho direto até o monte de pedra preta quebrada
que fora Cryshal-Tirith. Ele terminou sua descida do Sepulcro de Kelvin e desceu o
Caminho de Bremen em direção aos escombros.
Ele tinha que descobrir se Regis ou Guenhwyvar haviam escapado.

Vitória.
Parecia um pequeno conforto para Cassius, Kemp e Jensin Brent, enquanto olhavam
ao redor para a carnificina no campo marcado. Eles foram os únicos três porta-
vozes que sobreviveram à luta; sete outros haviam caído.
— Nós vencemos — declarou Cassius de forma sombria. Ele assistiu, impotente, à
medida que mais soldados caíam mortos, homens que sofreram ferimentos mortais
mais cedo na batalha, mas se recusaram a cair e morrer até que ela houvesse
acabado. Mais da metade de todos os homens de Dez-Burgos estavam mortos e
muitos mais morreriam depois, porque quase metade dos que ainda estavam vivos
haviam sido gravemente feridos. Quatro cidades foram queimadas por completo e
outra saqueada e destruída pela ocupação dos goblins.
Eles pagaram um preço terrível por sua vitória.
Os bárbaros também foram dizimados. A maioria jovens e inexperientes, lutaram
com a tenacidade de seu povo e morreram aceitando seu destino como um final
glorioso para a história de suas vidas.
Somente os anões, disciplinados por muitas batalhas, tinham passado relativamente
incólumes. Vários foram mortos, outros feridos, mas a maioria estava mais do que
pronta para retomar à luta se pudessem encontrar mais goblins para golpear! Seu
único grande lamento, no entanto, era o desaparecimento de Bruenor.
— Vão para o seu povo — disse Cassius a seus colegas porta-vozes. — E voltem
hoje à noite para um conselho. Kemp falará por todo o povo das quatro cidades de
Maer Dualdon, Jensin Brent pelo povo dos outros lagos.
— Temos muito a decidir e pouco tempo para isso — disse Jensin Brent. — O
inverno está se aproximando rapidamente.
— Vamos sobreviver! — Kemp declarou com seu ar de desafio característico. Mas
então percebeu os olhares soturnos que seus colegas lhe lançavam e cedeu um
pouco ao realismo deles. — Mas será uma luta amarga.
— Assim será para o meu povo — disse outra voz. Os três porta-vozes se viraram
para ver o gigante Wulfgar saindo da cena surrealista e empoeirada de carnificina.
O bárbaro estava coberto de terra e salpicado com o sangue de seus inimigos, mas
parecia em cada parte o nobre rei que era. — Peço um convite ao seu conselho,
Cassius. Há muito que nosso povo pode oferecer um ao outro neste momento
difícil.
Kemp rosnou:
— Se precisarmos de animais de carga, compraremos bois.
Cassius lançou um olhar perigoso a Kemp e dirigiu-se ao seu aliado inesperado.
— Você pode se juntar ao conselho, Wulfgar, filho de Beornegar. Por sua ajuda
neste dia, meu povo deve muito ao seu. Mais uma vez pergunto: por que você veio?
Pela segunda vez naquele dia, Wulfgar ignorou os insultos de Kemp.
— Para pagar uma dívida — respondeu a Cassius. — E talvez para melhorar a vida
de nossos povos.
— Matando goblins? — Jensin Brent perguntou, suspeitando que o bárbaro tinha
mais em mente.
— Um começo — respondeu Wulfgar. — Ainda há muito mais que podemos
realizar. Meu povo conhece a tundra melhor até mesmo do que os iétis. Entendemos
seus caminhos e sabemos como sobreviver. Seu povo se beneficiaria com a nossa
amizade, especialmente nos tempos difíceis que estão à sua frente.
— Hah! — Kemp bufou, mas Cassius o silenciou. O porta-voz de Bryn Shander
estava intrigado com as possibilidades.
— E o que seu povo ganharia com essa união?
— Uma conexão — respondeu Wulfgar. — Um elo para um mundo de luxos que
nunca conhecemos. As tribos têm nas mãos o tesouro de um dragão, mas ouro e
joias não fornecem calor em uma noite de inverno, nem comida quando a caça é
escassa. Seu povo tem muito a reconstruir. Meu povo tem a riqueza para ajudar
nessa tarefa. Em troca, Dez-Burgos levará a meu povo a uma vida melhor!
Cassius e Jensin Brent assentiram com aprovação enquanto Wulfgar traçava seu
plano.
— Finalmente, e talvez o mais importante — concluiu o bárbaro — é o fato de que
precisamos um do outro, pelo menos por enquanto. Ambos os nossos povos foram
enfraquecidos e estão vulneráveis aos perigos desta terra. Juntos, nossa força
restante nos ajudaria a atravessar o inverno.
— Você me intriga e me surpreende — disse Cassius. — Participe do conselho,
portanto, com minhas boas-vindas pessoais, e ponhamos em movimento um plano
que beneficiará todos os que sobreviveram à luta contra Akar Kessell!
Quando Cassius se virou, Wulfgar pegou a camisa de Kemp com uma de suas mãos
enormes e levantou com facilidade o porta-voz de Targos. Kemp deu um tapa no
antebraço musculoso, mas percebeu que não tinha chance de quebrar o aperto de
ferro do bárbaro.
Wulfgar olhou para ele perigosamente.
— Por enquanto — disse ele — sou responsável por todo o meu povo. Por isso,
desconsiderei seus insultos. Mas quando chegar o dia em que eu não for mais rei,
você faria bem em não cruzar mais o meu caminho! — com um movimento do
pulso, jogou o porta-voz no chão.
Kemp, intimidado demais no momento para ficar furioso ou envergonhado, ficou
sentado onde caiu e não respondeu. Cassius e Brent se cutucaram e compartilharam
uma risada baixa.
Isso durou apenas até que eles viram a garota se aproximando, com o braço em uma
tipoia sangrenta e o rosto e o cabelo arruivado coberto de camadas de poeira.
Wulfgar também a viu, e a visão de suas feridas causou mais dor do que as suas
poderiam.
— Cattibrie! — ele gritou, correndo para ela, que o acalmou com a palma da mão
estendida.
— Não estou gravemente ferida — assegurou estoicamente a Wulfgar, embora fosse
óbvio para o bárbaro que ela havia se ferido muito. — Embora não ouse pensar no
que teria acontecido comigo se Bruenor não houvesse chegado!
— Você viu Bruenor?
— Nos túneis — explicou Cattibrie. — Alguns orcs conseguiram entrar... talvez eu
devesse ter desmoronado o túnel. No entanto, não havia muitos, e eu pude ouvir que
os anões estavam indo bem no campo acima.
— Bruenor desceu, mas havia mais orcs atrás dele. Uma viga de apoio desabou;
acho que Bruenor a cortou, e havia muita poeira e confusão.
— E Bruenor? — Wulfgar perguntou ansiosamente.
Cattibrie olhou para trás, para o outro lado do campo.
— Lá fora. Ele perguntou por você.

Quando Drizzt alcançou os escombros que haviam sido Cryshal-Tirith, a batalha já


havia acabado. As imagens e os sons das horríveis consequências o deixaram
abalado, mas seu objetivo permaneceu inalterado. Começou a subir as pedras
quebradas.
Na verdade, o drow se considerava um tolo por seguir uma causa tão sem
esperanças. Mesmo se Regis e Guenhwyvar não houvessem saído da torre, como
ele poderia esperar encontrá-los?
Ele continuou teimosamente, recusando-se a ceder à lógica inevitável que o
repreendia. Era nisso que se diferenciava do seu povo; era isso que o levara,
finalmente, para longe da escuridão ininterrupta de suas vastas cidades. Drizzt
Do’Urden se permitia sentir compaixão.
Ele subiu a lateral dos escombros e começou a cavar entre os destroços com as
próprias mãos. Blocos maiores o impediram de penetrar muito fundo na pilha, mas
ele não cedeu, até mesmo espremendo-se em fendas precariamente apertadas e
instáveis. Usou pouco a mão esquerda queimada e logo a direita estava sangrando
de tanto raspar. Mas continuou, movendo-se primeiro pela pilha e depois escalando
em direção ao centro.
Ele foi recompensado por sua persistência, por suas emoções. Quando alcançou o
topo das ruínas, sentiu uma aura familiar de poder mágico, que o guiou a uma
pequena fenda entre duas pedras. Ele colocou a mão com cuidado, na esperança de
encontrar o objeto intacto, e puxou a pequena estatueta felina. Seus dedos tremiam
enquanto ele a examinava em busca de algum dano. Mas não encontrou nenhum – a
magia dentro do objeto havia resistido ao peso dos escombros.
Os sentimentos do drow com a descoberta foram confusos, no entanto. Embora
estivesse aliviado por Guenhwyvar ter sobrevivido, a presença da estatueta lhe dizia
que Regis provavelmente não havia escapado para o campo. Seu coração doía. E
doeu ainda mais quando um brilho dentro da mesma fenda chamou sua atenção. Ele
alcançou e puxou a corrente de ouro com o pingente de rubi, e seus medos foram
confirmados.
— Uma tumba apropriada para você, corajoso amiguinho — disse sobriamente, e
decidiu naquele momento nomear a pilha de Sepulcro de Regis. No entanto, não
conseguia entender o que havia acontecido para separar o halfling do colar, pois não
havia sangue ou qualquer outra coisa na corrente para indicar que Regis o usava
quando morreu.
— Guenhwyvar — chamou. — Venha até mim, minha sombra. — Sentiu as
sensações familiares na estatueta quando a colocou no chão diante dele. Então a
névoa negra apareceu e se transformou na grande gata, ilesa e restaurada pelas
horas que passara em seu próprio plano.
Drizzt se moveu rapidamente em direção à companheira felina, mas parou quando
uma segunda névoa apareceu e começou a se solidificar.
Regis.
O halfling estava sentado com os olhos fechados e a boca aberta, como se estivesse
prestes a dar uma mordida agradável e enorme em alguma iguaria invisível. Uma de
suas mãos estava apertada ao lado de suas bochechas ansiosas e a outra aberta
diante dele.
Quando sua boca se fechou no ar vazio, seus olhos se abriram de surpresa.
— Drizzt! — clamou. — Realmente, você deveria perguntar antes de me roubar!
Esta gata perfeitamente maravilhosa havia conseguido para mim a refeição mais
suculenta!
Drizzt balançou a cabeça e sorriu em uma mistura de alívio e descrença.
— Oh, esplêndido — gritou Regis. — Você encontrou minha pedra. Eu pensei que
tinha perdido; por alguma razão, ela não fez a jornada comigo e com a gata.
Drizzt devolveu o rubi para ele. A gata poderia levar alguém em suas viagens pelos
planos? Drizzt resolveu explorar tal faceta do poder de Guenhwyvar mais tarde.
Ele acariciou o pescoço da gata, depois a permitiu retornar ao seu próprio mundo,
onde poderia se recuperar melhor.
— Venha, Regis — disse, sério. — Vamos ver onde podemos ajudar!
Regis deu de ombros resignado e se levantou para seguir o drow. Quando chegaram
ao topo das ruínas e viram a carnificina se espalhando abaixo deles, o halfling
percebeu a enormidade da destruição. Suas pernas quase vacilaram sob ele, mas
conseguiu, com alguma ajuda de seu amigo ágil, fazer a descida.
— Nós ganhamos? — ele perguntou a Drizzt quando se aproximaram do nível do
campo, sem saber se o povo de Dez-Burgos havia rotulado o que via diante dele de
vitória ou derrota.
— Nós sobrevivemos — corrigiu Drizzt.
Um grito subiu repentinamente quando um grupo de pescadores, vendo os dois
companheiros, correu na direção deles, gritando com abandono.
— Matador do Mago e Destruidor da Torre! — eles gritaram.
Drizzt, sempre humilde, baixou os olhos.
— Saúdem Regis — continuaram os homens — o herói de Dez-Burgos! — Drizzt
olhou surpreso, mas divertido, para o amigo. Regis apenas deu de ombros,
impotente, agindo tanto como vítima do erro quanto Drizzt.
Os homens agarraram o halfling e o levaram aos ombros.
— Vamos levá-lo em glória ao conselho que está acontecendo dentro da cidade! —
um proclamou.
— Você, acima de todos os outros, deve ter voz nas decisões que serão tomadas! —
Quase como uma reflexão tardia, o homem disse a Drizzt. — Você pode vir
também, drow.
Drizzt recusou.
— Todos saúdem Regis — disse ele, com um sorriso espalhado em seu rosto. —
Ah, amiguinho, você sempre tem a sorte de encontrar ouro na lama onde outros se
afundam! — Ele bateu nas costas do halfling e ficou de lado enquanto a procissão
começava.
Regis olhou por cima do ombro e revirou os olhos como se estivesse apenas
seguindo o fluxo.
Mas Drizzt sabia a verdade.

A diversão do drow durou pouco.


Antes que ele se afastasse, dois anões o saudaram.
— Que bom que encontramos você, amigo elfo — disse um deles. O drow soube
imediatamente que traziam notícias sombrias.
— Bruenor? — ele perguntou.
Os anões assentiram.
— Ele está perto da morte, já pode mesmo ter morrido. Ele perguntou por você.
Sem outra palavra, os anões levaram Drizzt através do campo para uma pequena
tenda que montaram perto da saída do túnel e o escoltaram para dentro.
Lá dentro, velas tremeluziam suavemente. Do outro lado da cama, contra a parede
oposta à entrada, estavam Wulfgar e Cattibrie, com as cabeças inclinadas em
reverência.
Bruenor estava deitado na cabana, com a cabeça e o peito envoltos em bandagens
manchadas de sangue. Sua respiração era rouca e superficial, como se cada
inspiração fosse ser sua última. Drizzt se moveu solenemente ao seu lado,
determinado a conter as lágrimas incomuns que brotavam em seus olhos lavanda.
Bruenor preferiria força.
— É... o elfo? — Bruenor ofegou quando viu a forma escura sobre ele.
— Eu vim, meu mais querido amigo — respondeu Drizzt.
— Para me ver... na minha partida?
Drizzt não conseguia honestamente responder a uma pergunta tão franca.
— Na sua partida? — ele forçou uma risada de sua garganta apertada. — Você já
sofreu pior! Não ouvirei falar de morte... quem encontraria o Salão de Mitral?
— Ah, meu lar... — Bruenor recuou com o nome e pareceu relaxar, como se
sentisse que seus sonhos o levariam pela jornada sombria à sua frente. — Você vem
comigo, então?
— Claro — Drizzt concordou. Ele olhou para Wulfgar e Cattibrie em busca de
apoio, mas perdidos na própria dor, mantiveram os olhos desviados.
— Mas não agora, não, não — explicou Bruenor. — Não daria certo com o inverno
tão perto! — ele tossiu. — Na primavera. Sim, na primavera! — Sua voz sumiu e
seus olhos se fecharam.
— Sim, meu amigo — Drizzt concordou. — Na primavera. Verei você em seu lar
na primavera!
Os olhos de Bruenor se abriram novamente, seu olhar mortal lavado por uma pitada
do brilho antigo. Um sorriso satisfeito se abriu no rosto do anão, e Drizzt ficou feliz
por ter conseguido confortar seu amigo moribundo.
O drow olhou para Wulfgar e Cattibrie e eles também estavam sorrindo.
Um para o outro, Drizzt notou intrigado.
De repente, para a surpresa e horror de Drizzt, Bruenor sentou-se e arrancou os
curativos.
— Isso! — rugiu para a diversão dos outros na tenda. — Você disse, e eu tenho
testemunhas!
Drizzt, depois de quase cair com o choque inicial, fez uma careta para Wulfgar. O
bárbaro e Cattibrie lutaram muito para subjugar o riso.
Wulfgar deu de ombros e uma risada escapou.
— Bruenor disse que me reduziria à altura de um anão se eu dissesse uma palavra!
— E teria mesmo! — Cattibrie acrescentou. Os dois saíram apressados.
— Um conselho em Bryn Shander — explicou Wulfgar às pressas. Do lado de fora
da tenda, suas risadas começaram a ser ouvidas.
— Maldito seja, Bruenor Martelo de Batalha! — o drow fez uma careta. Incapaz de
se conter, ele passou os braços em volta do anão em forma de barril e o abraçou.
— Supere isso — Bruenor gemeu, aceitando o abraço. — Mas seja rápido. Temos
muito trabalho a fazer durante o inverno! A primavera vai chegar mais cedo do que
você pensa, e no primeiro dia quente partimos para o Salão de Mitral!
— Onde quer que ele esteja — Drizzt riu, aliviado demais para se irritar com o
truque.
— Nós vamos conseguir, drow! — gritou Bruenor. — Nós sempre conseguimos.
Epílogo

O POVO DE DEZ-BURGOS e seus aliados bárbaros consideraram difícil o inverno


seguinte à batalha, mas por unirem seus talentos e recursos, conseguiram
sobreviver. Muitos conselhos foram realizados durante esses longos meses, com
Cassius, Jensin Brent e Kemp representando o povo de Dez-Burgos, e Wulfgar e
Revjak falando pelas tribos bárbaras. A primeira ordem do dia era reconhecer e
tolerar oficialmente a aliança dos dois povos, embora muitos nos dois lados se
opusessem.
As cidades deixadas intocadas pelo exército de Akar Kessell ficaram repletas de
refugiados durante o inverno brutal. A reconstrução começou com os primeiros
sinais da primavera. Quando a região estava a caminho da recuperação, e depois
que a expedição bárbara instruída por Wulfgar retornou com o tesouro do dragão,
foram realizados conselhos para dividir as cidades entre os sobreviventes. As
relações entre os dois povos quase se deterioraram várias vezes e eles se
mantiveram unidos apenas pela presença dominante de Wulfgar e pela calma
contínua de Cassius.
Quando tudo estava finalmente resolvido, os bárbaros receberam as cidades de
Bremen e Caer-Konig para reconstruir, os sem-teto de Caer-Konig foram
transferidos para a cidade reconstruída de Caer-Dineval e os refugiados de Bremen
que não desejavam viver entre os bárbaros receberam casas na cidade recém-
construída de Targos.
Era uma situação difícil, onde inimigos tradicionais foram forçados a deixar de lado
suas diferenças e viver em locais próximos. Embora vitoriosos na batalha, o povo
das cidades não podia se chamar de vencedores. Todos sofreram perdas trágicas e
ninguém saiu melhor da luta.
Exceto Regis.
O halfling oportunista recebeu o título de Primeiro Cidadão e a melhor casa em
Dez-Burgos por sua parte na batalha. Cassius entregou seu palácio ao “Destruidor
da Torre”. Regis aceitou a oferta do porta-voz e todos os numerosos presentes que
chegavam de todas as cidades. Embora não merecesse os elogios, justificou sua boa
sorte por se considerar um parceiro do drow despretensioso. E como Drizzt
Do’Urden não viria a Bryn Shander para receber as recompensas, Regis imaginou
que era seu dever fazê-lo.
Esse era o estilo de vida mimado que o halfling sempre desejara. Apreciava a
riqueza e os luxos excessivos, embora futuramente viesse a descobrir que havia
mesmo um preço alto a ser pago pela fama.

Drizzt e Bruenor haviam passado o inverno se preparando para sua busca pelo Salão
de Mitral. O drow pretendia honrar sua palavra, embora tivesse sido enganado,
porque a vida não havia mudado muito para ele após a batalha. Embora houvesse
sido o verdadeiro herói da batalha, ainda era mal e mal tolerado entre o povo de
Dez-Burgos. E os bárbaros, além de Wulfgar e Revjak, o evitavam abertamente,
resmungando orações para seus deuses sempre que inadvertidamente cruzavam seu
caminho.
Mas o drow aceitou as esquivas com seu estoicismo característico.

— Os rumores na cidade dizem que você deu sua voz no conselho a Revjak —
disse Cattibrie a Wulfgar em uma de suas visitas a Bryn Shander.
Wulfgar assentiu.
— Ele é mais velho e mais sábio em muitos aspectos. — Cattibrie lançou Wulfgar
sob o desconfortável escrutínio de seus olhos escuros. Ela sabia que havia outras
razões para Wulfgar deixar o cargo de rei.
— Você quer ir com eles — afirmou sem rodeios.
— Devo isso ao drow — foi a única explicação de Wulfgar quando se virou, sem
querer discutir com a garota.
— Mais uma vez, você evita a pergunta — Cattibrie riu. — Você não vai para pagar
uma dívida! Você vai porque escolhe a estrada!
— O que você poderia saber sobre a estrada? — Wulfgar rosnou, tocado pela
observação dolorosamente precisa da garota. — O que você poderia saber sobre
aventura?
Os olhos de Cattibrie brilharam de forma desarmante.
— Eu sei — ela declarou categoricamente. — Todo dia em todo lugar é uma
aventura. Isso você ainda não aprendeu. E assim, você persegue as estradas
distantes, esperando satisfazer a fome por empolgação que queima em sua alma.
Então vá, Wulfgar de Vale do Vento Gélido. Siga a trilha do seu coração e seja feliz!
Talvez quando voltar, entenderá a emoção de estar vivo. — Ela o beijou na
bochecha e saltitou até a porta.
Wulfgar a chamou, agradavelmente surpreendido por seu beijo.
— Talvez então nossas discussões sejam mais agradáveis!
— Mas não tão interessantes — foi sua resposta de despedida.

Em uma bela manhã no início da primavera, finalmente chegou a hora de Drizzt e


Bruenor partirem. Cattibrie os ajudou a arrumar suas sacolas excessivamente
cheias.
— Quando limparmos o lugar, vou te levar lá! — Bruenor disse à garota mais uma
vez. — Com certeza seus olhos vão brilhar ao ver os veios de prata correndo pelo
Salão de Mitral!
Cattibrie sorriu com indulgência.
— Você tem certeza de que ficará bem? — Bruenor perguntou, sério. Ele sabia que
iria, mas seu coração se enchia de preocupação paterna.
O sorriso de Cattibrie aumentou. Eles haviam passado por essa discussão centenas
de vezes durante o inverno. Cattibrie ficou contente que o anão estivesse indo,
embora soubesse que sentiria muita falta dele, pois estava claro que Bruenor nunca
ficaria verdadeiramente satisfeito até pelo menos tentar encontrar sua casa ancestral.
E ela sabia, melhor do que ninguém, que o anão estaria em boa companhia.
Bruenor estava satisfeito. Chegara a hora de ir.
Os companheiros se despediram dos anões e partiram para Bryn Shander para se
despedir de seus dois amigos mais próximos.
Chegaram à casa de Regis no final da manhã e encontraram Wulfgar sentado nos
degraus esperando por eles, com Presa de Égide e sua mochila ao lado.
Drizzt olhou desconfiado para os pertences do bárbaro enquanto se aproximavam,
em parte adivinhando as intenções de Wulfgar.
— Olá, rei Wulfgar — disse ele. — Você está indo para Bremen, ou talvez Caer-
Konig, para supervisionar o trabalho de seu povo?
Wulfgar balançou a cabeça.
— Eu não sou rei — respondeu ele. — É melhor deixar conselhos e discursos para
homens mais velhos; eu já tive mais do que posso tolerar. Revjak fala pelos homens
da tundra agora.
— Então, o que você é? — perguntou Bruenor.
— Eu vou com você — respondeu Wulfgar. — Para pagar minha última dívida.
— Você não me deve nada! — declarou Bruenor.
— Minha dívida com você já foi paga — concordou Wulfgar. — E paguei tudo o
que devo a Dez-Burgos e também ao meu próprio povo. Mas há uma dívida da qual
ainda não estou livre. — Ele se virou para encarar Drizzt diretamente. — Para com
você, amigo elfo.
Drizzt não soube como responder. Deu um tapinha no ombro do homem enorme e
sorriu calorosamente.

— Venha conosco, Pança-furada — disse Bruenor depois que terminaram um


excelente almoço no palácio. — Quatro aventureiros, na planície aberta. Vai lhe
fazer bem e tirar um pouco dessa barriga!
Regis agarrou seu amplo estômago com as duas mãos e o sacudiu.
— Gosto da minha barriga e pretendo mantê-la, obrigado. Posso até aumentá-la um
pouco mais! Não consigo nem começar a entender por que todos vocês insistem em
ir nessa busca, de qualquer forma — disse com mais seriedade. Ele havia passado
muitas horas durante o inverno tentando convencer Bruenor e Drizzt a desistirem do
caminho escolhido. — Temos uma vida boa aqui; por que vocês quereriam ir
embora?
— Há muito mais na vida do que boa comida e travesseiros macios, amiguinho —
disse Wulfgar. — A fome de aventura queima nosso sangue. Com a paz na região,
Dez-Burgos não pode oferecer a emoção do perigo ou a satisfação da vitória. —
Drizzt e Bruenor assentiram, embora Regis tenha balançado a cabeça.
— E você chama esse lugar lamentável de riqueza? — Bruenor riu, estalando os
dedos grossos. — Quando eu voltar do Salão de Mitral, vou construir para você
uma casa duas vezes maior e engastada em pedras preciosas como você nunca viu
antes!
Mas Regis estava determinado de que tinha testemunhado sua última aventura.
Depois que a refeição terminou, ele acompanhou seus amigos até a porta.
— Se vocês voltarem...
— Sua casa será nossa primeira parada — assegurou Drizzt.
Eles encontraram Kemp de Targos quando saíram. Ele estava do outro lado da rua,
em frente à porta de Regis, aparentemente procurando por eles.
— Ele está esperando por mim — explicou Wulfgar, sorrindo com a noção de que
Kemp faria o possível para se livrar dele.
— Adeus, bom porta-voz — disse Wulfgar, curvando-se. — Prayne de crabug ahm
keike rinedere ser-yogt iglo kes gron!
Kemp lançou um gesto obsceno para o bárbaro e se afastou. Regis quase se dobrou
de tanto rir.
Drizzt reconheceu as palavras, mas ficou intrigado com o motivo pelo qual Wulfgar
as havia falado para Kemp.
— Você me disse uma vez que essas palavras eram um velho grito de guerra da
tundra — comentou para o bárbaro. — Por que você as ofereceria ao homem que
mais despreza?
Wulfgar gaguejou sobre uma explicação que o tiraria dessa confusão, mas Regis
respondeu por ele.
— Grito de guerra? — o halfling exclamou. — Esse é um xingamento de uma velha
dona de casa bárbara, geralmente reservada para velhos bárbaros adúlteros. — Os
olhos lavanda do drow se estreitaram no bárbaro enquanto Regis continuava. —
Significa: “que as pulgas de mil renas se aninhem em seus órgãos genitais”.
Bruenor caiu na gargalhada, logo Wulfgar se juntou a ele.
Drizzt não pôde evitar fazer o mesmo.
— Venha, o dia será longo — disse o drow. — Vamos começar esta aventura… vai
ser interessante!
— Para onde vão? — Regis perguntou, sério. Uma pequena parte do halfling
invejava seus amigos; teve que admitir que sentiria falta deles.
— Para Bremen, primeiro — respondeu Drizzt. — Vamos terminar de buscar
provisões lá e depois partiremos para sudoeste.
— Luskan?
— Talvez, se o destino assim desejar.
— Boa sorte — ofereceu Regis quando os três companheiros saíram sem mais
demoras.
Regis observou-os desaparecer, imaginando como havia escolhido amigos tão tolos.
Deu de ombros e voltou para o palácio – havia muita comida sobrando do almoço.
Foi parado antes de entrar pela porta.
— Primeiro cidadão! — veio um chamado da rua. A voz pertencia a um dono de
um armazém da parte sul da cidade, onde as caravanas mercantes carregavam e
descarregavam. Regis esperou que ele se aproximasse.
— Um homem perguntou por você — disse o dono do armazém, curvando-se em
um pedido de desculpas por incomodar uma pessoa tão importante. — Ele afirma
ser um representante da Sociedade dos Heróis em Luskan, enviado para solicitar sua
presença na próxima reunião. Disse que pagaria bem a você.
— O nome dele?
— Ele não deu nada, apenas isso! — o dono do armazém abriu uma pequena bolsa
de ouro.
Era tudo o que Regis precisava ver. Partiu para o encontro com o homem de
Luskan.
Mais uma vez, a pura sorte salvou a vida do halfling, pois ele viu o estranho antes
que o estranho o visse. Reconheceu o homem, embora não o visse há anos, pelo
cabo da adaga incrustado de joias que se projetava da bainha no quadril. Regis
costumava pensar em roubar aquela bela arma, mas até ele tinha um limite para sua
tolice. A adaga pertencia a Artemis Entreri.
O principal assassino de Pasha Pook.

Os três companheiros deixaram Bremen antes do amanhecer no dia seguinte.


Ansiosos para começar a aventura, já estavam longe na tundra quando os primeiros
raios de sol espiaram o horizonte oriental atrás deles.
Ainda assim, Bruenor não ficou surpreso quando notou Regis correndo pela
planície vazia para alcançá-los.
— Se meteu em problemas de novo, ou sou um gnomo com barba — o anão riu
para Wulfgar e Drizzt.
— Olá — disse Drizzt. — Nós já não nos despedimos?
— Decidi que não podia deixar Bruenor se meter em problemas sem eu estar lá para
tirá-lo — Regis bufou, tentando recuperar o fôlego.
— Você vem? — Bruenor gemeu. — Você não trouxe suprimentos, halfling tolo!
— Eu não como muito — implorou Regis, com um tom de desespero rastejando em
sua voz.
— Hah! Você come mais do que nós três juntos! Mas não importa, vamos deixá-lo
acompanhar de qualquer maneira.
O rosto do halfling se iluminou, e Drizzt suspeitou que o palpite do anão sobre
problemas não estivesse muito longe da realidade.
— Nós quatro, então! — proclamou Wulfgar. — Um para cada uma das quatro
raças comuns: Bruenor para os anões, Regis para os halflings, Drizzt Do’Urden
para os elfos e eu para os humanos. Um grupo apropriado!
— Não acho que os elfos escolheriam um drow para representá-los — observou
Drizzt.
Bruenor bufou.
— Você acha que os halflings escolheriam Pança-furada como campeão?
— Você é louco, anão — respondeu Regis.
Bruenor jogou o escudo no chão, pulou ao redor de Wulfgar e se levantou diante de
Regis. Seu rosto se contorceu de raiva fingida quando agarrou Regis pelos ombros e
o ergueu no ar.
— Isso mesmo, Pança-furada! — Bruenor gritou loucamente. — Sou louco! E
nunca se meta com quem é mais louco do que você!
Drizzt e Wulfgar se entreolharam sorrindo.
Seria de fato uma aventura interessante.
E com o sol nascente nas costas, com as sombras se estendendo muito à frente
deles, eles partiram.
Para encontrar o Salão de Mitral.
DRIZZT DO’URDEN VAI VOLTAR
Visite www.jamboeditora.com.br para saber
mais sobre nossos títulos e acessar conteúdo extra.
Table of Contents
Capa
Orelhas
Créditos
Mapa
Prelúdio
Parte 1 — O Medo Inspirador
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Epílogo
Parte 2 — Wulfgar
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Epílogo
Parte 3 — Cryshal Tirith
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Epílogo
Contracapa

Você também pode gostar