Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
4 — O Fragmento de
Cristal
©2005 Wizards of the Coast, LLC. Todos os direitos reservados. Dungeons &
Dragons, D&D, Forgotten Realms, Wizards of the Coast, The Legend of Drizzt e
seus respectivos logos são marcas registradas de Wizards of the Coast, LLC.
CRÉDITOS
Rua Coronel Genuíno, 209 • Porto Alegre, RS • CEP 90010-350 • Tel (51) 3391-
0289 • editora@jamboeditora.com.br • www.jamboeditora.com.br
Por favor, não compartilhe e não baixe livros ilegalmente. Valorize o trabalho dos
nossos autores nacionais.
À minha esposa, Diane, e a
◆
Muito além da escuridão do Abismo, Crenshinibon caiu no mundo. Lá no alto das
montanhas ao norte de Faerûn, o Fragmento de Cristal, a derradeira perversão,
acomodou-se no meio da neve de um vale em formato de tigela.
E esperou.
Parte 1
O Medo Inspirador
SE PUDESSE ESCOLHER QUE VIDA TERIA, seria a vida que tenho agora, neste
momento. Estou em paz e, no entanto, o mundo ao meu redor se revolve com a
turbulência, com a ameaça sempre presente de invasões bárbaras e guerras dos
goblins, com iétis da tundra e gigantescos vermes polares. A realidade da existência
aqui no Vale do Vento Gélido é realmente dura, um ambiente implacável, onde um
erro pode (e vai) custar sua vida.
Essa é a alegria do lugar, o estar à beira do desastre sem ser por causa da traição,
como era no meu antigo lar em Menzoberranzan. Eu posso aceitar os riscos do Vale
do Vento Gélido. Posso me divertir com eles e usá-los para manter meus instintos
de guerreiro afiados. Eu posso usá-los para me lembrar todos os dias da alegria
gloriosa da vida. Não há complacência aqui, neste lugar onde a segurança não pode
ser tida como certa, onde uma curva do vento pode acumular neve sobre sua cabeça,
onde um único passo em falso num barco pode colocá-lo na água que irá roubar seu
fôlego e tornar músculos inúteis em meros segundos, ou um simples lapso na tundra
pode colocá-lo na barriga de um iéti feroz.
Quando se vive com a morte tão perto, aprecia-se a vida ainda mais.
E quando você compartilha essa vida com amigos como aqueles que conheci nos
últimos anos, você conhece o paraíso. Nunca teria imaginado em meus anos em
Menzoberranzan, ou nas cavernas do Subterrâneo nem mesmo quando cheguei à
superfície pela primeira vez, que me cercaria de amigos como esses. Eles são de
raças diferentes, todos os três, e todos diferentes de mim; no entanto, são mais
parecidos com o que está em meu coração do que qualquer um que já conheci,
exceto, talvez, pelo meu pai Zaknafein e pelo ranger Montólio, que me treinou nos
caminhos de Mielikki.
Eu conheci muitas pessoas aqui em Dez-Burgos, na terra selvagem do Vale do
Vento Gélido, que me aceitam apesar de ser um elfo negro. Ainda assim, esses três,
acima de todos os outros, se tornaram uma família para mim.
Por que eles? Por que Bruenor, Regis e Cattibrie acima dos outros, três amigos que
eu valorizo tanto quanto Guenhwyvar, minha companheira por todos esses anos?
Todos conhecem Bruenor por ser ríspido – é a marca registrada de muitos anões,
mas em Bruenor, a característica é pura. Ou é o que ele quer que todos acreditem.
Mas eu o conheço bem. Conheço o outro lado de Bruenor, o lado oculto, aquele
lugar macio e aconchegante. Sim, ele tem um coração, embora se esforce para
enterrá-lo! Ele é ríspido, sim, especialmente ao criticar. Ele fala de erros sem
desculpas e sem julgamento, dizendo apenas a verdade crua e deixando ao outro
corrigir ou não a situação. Bruenor nunca permite que tato ou empatia atrapalhem
sua maneira de dizer ao mundo como ele pode ser melhor!
Porém, essa é apenas metade da história sobre o anão, no outro lado da moeda, ele
está longe de ser ríspido. Em relação a elogios, Bruenor não é desonesto, apenas
quieto.
Talvez seja por isso que eu o ame. Vejo nele o próprio Vale do Vento Gélido: frio,
duro e implacável, mas, no fim das contas, honesto. Ele me mantém no meu melhor
o tempo todo e, ao fazer isso, me ajuda a sobreviver neste lugar. Há apenas um Vale
do Vento Gélido e apenas um Bruenor Martelo de Batalha, e se alguma vez eu
encontrei uma criatura e uma terra criadas uma para a outra...
Por outro lado, para mim, Regis se ergue (ou, mais apropriadamente, se reclina)
como um lembrete dos objetivos e recompensas de um trabalho bem feito – não que
seja Regis a fazê-lo. Regis lembra a mim, e talvez também a Bruenor, que há mais
na vida do que responsabilidade, que há momentos para relaxar e apreciar
pessoalmente as recompensas trazidas pelo bom trabalho e pela vigilância. Ele é
mole demais para a tundra, redondo demais na barriga e lento demais nos pés. Suas
habilidades de combate não são boas o suficiente e ele não consegue rastrear um
rebanho de caribus na neve fresca. Porém ele sobrevive e até mesmo prospera aqui
com inteligência e atitude, com uma compreensão melhor do que a de Bruenor,
melhor até do que a minha, de como apaziguar e agradar aqueles que o rodeiam, de
como se antecipar, em vez de apenas reagir, aos movimentos dos outros. Regis não
sabe apenas o que as pessoas fazem, mas sabe por que elas o fazem, e essa
habilidade de entender a motivação das pessoas permitiu que ele enxergasse além
da cor da minha pele e da reputação de meu povo. Se Bruenor é honesto ao
expressar suas observações, então Regis é honesto ao seguir o curso de seu coração.
Por fim, Cattibrie, maravilhosa e cheia de vida. Cattibrie é o lado oposto da minha
moeda, um raciocínio diferente para chegar às mesmas conclusões. Somos almas
gêmeas que veem e julgam coisas diferentes no mundo para chegar ao mesmo lugar.
Talvez assim nós nos validemos mutuamente. Talvez ao ver Cattibrie chegando ao
mesmo lugar que eu, sabendo que chegou lá por uma estrada diferente, isso me diz
que segui meu coração de verdade. Será que é isso? Será que eu confio nela mais do
que em mim?
A pergunta não é nem uma acusação aos meus sentimentos, nem autoincriminação.
Compartilhamos crenças sobre como o mundo é e como o mundo deveria ser. Ela
está alinhada com o meu coração assim como Mielikki, e se eu encontrei minha
deusa ao olhar honestamente para meu próprio coração, assim também encontrei
minha mais querida amiga e aliada.
Eles estão comigo, todos os três, e Guenhwyvar, minha querida Guenhwyvar,
também. Estou vivendo em uma terra de extrema beleza e realidade rústica, um
lugar onde você tem que ser cauteloso e alerta e em seu melhor em todos os
momentos.
Eu o chamo de paraíso.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 1
O Fantoche
A facilidade com que a adaga fina escorregou pelas dobras do manto do homem
mais velho e penetrou mais fundo na carne enrugada maravilhou o jovem.
Morkai, o Rubro, virou-se para seu aprendiz, os olhos fixos em uma expressão
arregalada e pasma diante da traição do homem que criara como filho durante um
quarto de século.
Akar Kessell soltou a adaga e se afastou de seu mestre, horrorizado pelo homem
mortalmente ferido ainda estar de pé. Ficou sem espaço para fugir, trombando na
parede traseira da pequena cabana que os magos de Luskan receberam como
alojamento pela cidade anfitriã de Refúgio Leste. Kessell tremeu, refletindo sobre
as consequências que enfrentaria à luz da possibilidade cada vez maior dos talentos
mágicos do velho terem encontrado uma maneira de derrotar a própria morte.
Que destino terrível seu mentor lhe imporia por sua traição? Que tormentos
mágicos um mago poderoso como Morkai evocaria para superar a mais angustiante
das torturas comuns?
O velho manteve seu olhar firme em Akar Kessell, mesmo quando a luz começou a
desaparecer de seus olhos agonizantes. Ele não perguntou o porquê, sequer
questionou Kessell sobre os possíveis motivos. Ele sabia que havia ganho de poder
envolvido em algum lugar – era sempre o caso em tais traições. O que o confundiu
foi o instrumento, não o motivo. Kessell? Como Kessell, o aprendiz desajeitado
cujos lábios gaguejantes mal conseguiam evocar os truques mais simples, esperava
lucrar com a morte do único homem que lhe algo além de uma consideração
educada?
Morkai, o Rubro, caiu morto. Aquela foi uma das poucas perguntas para a qual
nunca encontrou resposta.
Kessell ficou apoiado na parede, precisando de um apoio tangível, e continuou a
tremer por longos minutos. Aos poucos, a confiança que o colocara nessa posição
perigosa voltou a crescer dentro dele. Agora, ele era o chefe. Eldeluc, Dendybar, o
Manchado, e os demais magos da caravana haviam dito isso. Com seu mestre
morto, ele, Akar Kessell, receberia sua própria câmara de meditação e seu próprio
laboratório de alquimia na Torre Central do Arcano em Luskan.
Eldeluc, Dendybar, o Manchado, e os outros haviam dito isso.
O passo de Kessell era vigoroso enquanto atravessava a aldeia de Refúgio Leste até
o celeiro onde os cavalos dos magos estavam guardados. Ele sentiu que se tornar
um mago mudaria todos os aspectos de sua vida diária, como se alguma força
mística tivesse sido infundida em seus talentos antes incompetentes.
Ele formigava em antecipação ao poder que seria dele. Um gato de rua cruzou-se
diante dele, olhando-o cauteloso enquanto passeava.
Estreitando os olhos, Kessell prestou atenção em volta para ver se alguém estava
vigiando.
— Por que não? — murmurou.
Apontando um dedo mortal para o gato, proferiu as palavras de comando para
invocar uma explosão de energia. O espetáculo fez felino nervoso disparar, mas
nenhum raio mágico bateu nele, ou mesmo perto dele.
Kessell olhou para o dedo chamuscado e se perguntou o que fizera de errado.
Mas ele não estava completamente desanimado. Sua própria unha enegrecida era o
efeito mais forte que ele já havia obtido daquele feitiço em particular.
CAPÍTULO 2
O elfo levou as mãos para as duas cimitarras embainhadas em seus quadris, mas os
iétis se aproximaram rapidamente. Por instinto, Drizzt girou para a esquerda,
sacrificando o flanco oposto para aceitar a investida do monstro mais próximo. Seu
braço direito ficou indefeso ao seu lado enquanto o iéti o envolvia em seus grandes
braços, mas ele conseguiu manter seu braço esquerdo livre o suficiente para sacar
sua segunda arma. Ignorando a dor do aperto do iéti, Drizzt apoiou o cabo da
cimitarra firmemente contra seu quadril e permitiu que o impulso do segundo
monstro o empalasse na lâmina curva.
Em meio à agonia da morte, o segundo iéti se afastou, levando a cimitarra com ele.
O monstro restante levou Drizzt ao chão sob seu peso. O drow manobrava a mão
livre para evitar que os dentes mortais lhe segurassem a garganta, mas sabia que era
apenas uma questão de tempo até que o inimigo mais forte acabasse com ele.
De repente, Drizzt ouviu um estalo agudo. O iéti estremeceu com força. Sua cabeça
se contorceu estranhamente e uma gota de sangue e cérebro se derramou por cima
de sua testa.
— Tá atrasado, elfo! — veio o som áspero de uma voz familiar. Bruenor Martelo de
Batalha andou até a parte de trás de seu inimigo morto, ignorando o fato do pesado
monstro estar em cima de seu amigo élfico. Apesar do desconforto adicional, o
nariz comprido e pontiagudo do anão, quebrado em vários pontos, e a barba
grisalha, embora ainda inconfundivelmente ruiva, eram uma visão bem-vinda para
Drizzt. — Sabia que ia te encontrar em apuros se saísse pra te procurar!
Sorrindo de alívio e também com os maneirismos do sempre surpreendente anão,
Drizzt conseguiu saiur debaixo do monstro enquanto Bruenor trabalhava para soltar
o machado do crânio espesso.
— A cabeça é dura como carvalho congelado — resmungou o anão. Ele plantou
seus pés atrás das orelhas do iéti e soltou o machado com um poderoso puxão. —
Onde está aquela sua gatinha, afinal?
Drizzt se atrapalhou em sua mochila por um momento e sacou uma pequena
estatueta de ônix de uma pantera.
— Eu dificilmente chamaria Guenhwyvar de “gatinha” — disse ele, com reverência
carinhosa. Ele girou a estatueta nas mãos, sentindo os detalhes intrincados do
trabalho para garantir que não tivesse sido danificada na queda sob o iéti.
— Ah, um gato é um gato! — insistiu o anão. — E por que não está aqui quando
você precisa?
— Mesmo um animal mágico precisa descansar — explicou Drizzt.
— Ah — Bruenor voltou a gritar. — Com certeza é um dia triste quando um drow,
um ranger ainda por cima, for pego de guarda baixa em uma planície aberta por
dois iétis da tundra! — Bruenor lambeu a lâmina manchada do machado e cuspiu
com nojo.
— Animais imundos! — ele resmungou. — Não posso nem comer as malditas
coisas! — Bateu o machado no chão para limpar a lâmina e saiu pisando duro em
direção ao Sepulcro de Kelvin.
Drizzt colocou Guenhwyvar de volta na mochila e foi recuperar a cimitarra no outro
monstro.
— Vamos, elfo — repreendeu o anão. — Ainda temos muita estrada a percorrer!
Drizzt sacudiu a cabeça e limpou a lâmina manchada de sangue no pêlo do monstro
abatido.
— Vamos lá, Bruenor Martelo de Batalha — ele sussurrou sob seu sorriso. — E
saiba que todos os monstros ao longo de nossa trilha marcarão bem sua passagem e
manterão suas cabeças escondidas em segurança.
CAPÍTULO 3
O Salão do Hidromel
As pesadas botas das fileiras de Heafstaag sacudiram o chão sob sua marcha
determinada. O enorme rei de um olho só liderava a procissão, seus grandes e
oscilantes passos característicos dos nômades da tundra. Intrigado com a proposta
de Beorg e cauteloso com o início precoce do inverno, o rei robusto escolhera
marchar direto pelas noites frias, parando apenas por curtos períodos de comida e
descanso. Embora conhecido principalmente por sua feroz habilidade em batalha,
Heafstaag era um líder que pesava cuidadosamente todos os seus movimentos. A
impressionante marcha aumentaria o respeito inicial dado a seu povo pelos
guerreiros das outras tribos, e Heafstaag era rápido em agarrar qualquer vantagem
que pudesse obter.
Não que esperasse algum problema em Hengorot. Ele tinha grande respeito por
Beorg. Duas vezes antes encontrara o Rei da Tribo do Lobo no campo de honra sem
ter uma vitória como sua. Se o plano de Beorg fosse tão promissor quanto parecia
inicialmente, Heafstaag o acompanharia, insistindo apenas em uma participação
igual na liderança com o rei loiro. Ele não se preocupava com a ideia de que os
homens da tribo, uma vez que conquistassem as cidades, pudessem acabar com seu
estilo de vida nômade e se contentar com uma nova vida vendendo trutas, mas
estava disposto a permitir que Beorg tivesse suas fantasias se elas lhe dessem a
emoção da batalha e uma vitória fácil. Deixe a pilhagem ser tomada e o calor
garantido durante o longo inverno antes que ele mudasse o acordo original e
redistribuísse o saque.
Quando as luzes das fogueiras apareceram, a coluna acelerou o passo.
— Cantem, meus orgulhosos guerreiros! — Heafstaag ordenou. — Cantem de
forma calorosa e forte! Que aqueles reunidos tremam com a aproximação da Tribo
do Alce.
O Fragmento de Cristal
Kessell se arrastou pela neve. Ele não sabia por que estava andando. Não tinha para
onde ir, não tinha como escapar. Eldulac jogara-o numa depressão arredondada
cheia de neve, e com os dedos entorpecidos a ponto de não ter mais tato, não havia
chance de sair dali.
Ele tentou novamente conjurar fogo mágico. Ele ergueu a palma da mão estendida
para o céu e, através dos dentes batendo, pronunciou as palavras de poder.
Nada.
Nem mesmo um fio de fumaça.
Começou a se mover de novo. Suas pernas doíam; podia jurar que vários dos seus
dedos já haviam caído do pé esquerdo. Mas não ousou tirar a bota para verificar sua
suspeita mórbida.
Ele começou a rodear o buraco outra vez, seguindo a mesma trilha que havia
deixado para trás em sua primeira passagem. Abruptamente, percebeu que estava
desviando para o centro da depressão. Ele não sabia o motivo, e em seu delírio, não
parou para tentar entender. O mundo todo se tornara um borrão branco. Um borrão
branco congelado. Kessell sentiu-se cair. Sentiu a mordida gelada da neve em seu
rosto novamente. Sentiu o formigamento que sinalizava o fim da vida de suas
extremidades inferiores.
Então sentiu... calor.
Imperceptível a princípio, mas ficando cada vez mais forte. Algo o chamava. Estava
abaixo dele, enterrado sob a neve, mas mesmo através da barreira congelada,
Kessell sentia o brilho vital de seu calor.
Ele cavou. Orientando visualmente as mãos que não podiam sentir seu trabalho,
cavou por sua vida. E então encontrou algo sólido e sentiu o calor se intensificar.
Lutando para empurrar a neve restante para longe, conseguiu finalmente soltá-lo.
Não conseguia entender o que estava vendo. Culpou o delírio. Em suas mãos
congeladas, Akar Kessell segurava o que parecia ser um pingente de gelo de lados
quadrados. No entanto, calor fluia através dele, e ele sentiu o formigar novamente,
desta vez sinalizando o renascimento de suas extremidades.
Kessell não tinha ideia do que estava acontecendo e não se importava nem um
pouco. Por enquanto, havia encontrado esperança de sobreviver, e isso era o
suficiente. Ele abraçou o Fragmento de Cristal contra o peito e voltou para a parede
rochosa do vale, procurando a área mais protegida possível.
Sob uma pequena saliência, encolhido em uma pequena área onde o calor do cristal
afastara a neve, Akar Kessell sobreviveu à sua primeira noite na Espinha do Mundo.
Seu companheiro era o Fragmento de Cristal, Crenshinibon, uma relíquia antiga,
senciente, que havia esperado ao longo de eras incontáveis para que alguém como
ele aparecesse ali. Desperto outra vez, estava pensando nos métodos que usaria para
controlar a mente fraca de Kessell. Era uma relíquia encantada nos primeiros dias
do mundo, uma perversão perdida por séculos, para tristeza daqueles senhores
malignos que buscavam sua força.
Crenshinibon era um enigma, uma força do mal mais sombrio que extraía sua força
da luz do dia. Era um instrumento de destruição, uma ferramenta para a visão, um
abrigo e um lar para aqueles que o usassem. Mas acima de tudo, entre os poderes de
Crenshinibon estava a força que transmitia ao seu possuidor.
Akar Kessell dormia confortavelmente, sem saber o que lhe acontecera. Sabia
apenas – e só isso importava – que sua vida ainda não estava no fim. Aprenderia as
consequências disso em breve. Entenderia que nunca mais faria o papel de fantoche
para cães pretensiosos como Eldulac, Dendybar, o Manchado e os outros.
Ele se tornaria o Akar Kessell de suas próprias fantasias, e todos se curvariam
diante dele.
— Respeito — murmurou dentro das profundezas do seu sonho, um sonho que
Crenshinibon estava impondo sobre ele.
Akar Kessell, o Tirano do Vale do Vento Gélido.
◆
Kessell despertou para uma alvorada que não imaginara assistir. O Fragmento de
Cristal o havia preservado durante a noite, mas havia feito muito mais do que
simplesmente impedi-lo de morrer congelado. Kessell sentiu-se estranhamente
mudado naquela manhã. Na noite anterior, se preocupara apenas com a extensão de
sua vida, imaginando quanto tempo poderia simplesmente sobreviver. Mas agora
ponderava sobre a qualidade de sua vida. Sobrevivência não era mais uma questão;
ele sentia a força fluindo dentro de si.
Um cervo branco saltou ao longo da borda do buraco de gelo.
— Carne de cervo — Kessell sussurrou em voz alta. Ele apontou um dedo na
direção de sua presa e pronunciou as palavras de comando de um feitiço,
formigando de empolgação ao sentir o poder atravessar seu sangue. Um raio branco
saiu de sua mão e derrubou o cervo.
— Carne de cervo — declarou, levantando mentalmente o animal no ar em sua
direção sem pensar duas vezes no ato, embora telecinese fosse um feitiço que
sequer existia no considerável repertório de Morkai, o Rubro, o único professor de
Kessell. Ganancioso, Kessell não parou para pensar no súbito aparecimento de
habilidades que sentira ser muito acima de sua capacidade, embora o fragmento não
fosse permitir esse pensamento.
Agora ele tinha comida e o calor do fragmento. Ainda assim, um mago deveria ter
um castelo, ele raciocinou. Um lugar onde poderia praticar seus segredos mais
obscuros sem ser perturbado. Ele olhou para o fragmento em busca de uma resposta
para o seu dilema e encontrou um cristal duplicado ao lado do primeiro. Presumiu
que, por instinto (embora, na realidade, fosse outra sugestão subconsciente de
Crenshinibon o guiando), ele entendesse seu papel no cumprimento de seu próprio
pedido. Ele reconhecia o fragmento original do primeiro pelo calor e pela força que
exalava, mas esse segundo também o intrigava, mantendo uma impressionante aura
própria de poder. Ele pegou a cópia do fragmento e levou-a para o centro da
depressão de gelo, colocando-a na neve profunda.
— Ibssum dal abdur — murmurou sem saber o motivo, ou mesmo o que
significava.
Kessell recuou quando sentiu a força dentro da cópia da relíquia começar a se
expandir. Ela capturou os raios do sol e os atraiu para suas profundezas. A área ao
redor caiu em sombras enquanto roubava a própria luz do dia. Ela começou a pulsar
com uma luz interna ritmada.
E começou a crescer.
Ela se alargou na base, quase preenchendo a tigela de gelo, e por um tempo Kessell
temeu ser esmagado contra as paredes rochosas. E, conforme o alargamento do
cristal, sua ponta subiu para o céu da manhã, mantendo as dimensões alinhadas com
sua fonte de energia. Estava completo, ainda uma imagem exata de Crenshinibon,
mas agora de proporções gigantescas.
Uma torre cristalina. De alguma forma – da mesma forma que Kessell sabia
qualquer coisa sobre o Fragmento de Cristal – ele sabia seu nome.
Cryshal-Tirith.
Kessell teria ficado contente, pelo menos por enquanto, em permanecer em Cryshal-
Tirith e se banquetear com os desafortunados animais que vagavam por ali. Ele
viera de uma parca existência entre camponeses acomodados e, embora
externamente se gabasse de aspirações além de seu nível, sentia-se intimidado pelas
implicações do poder. Ele não entendia como ou por que aqueles que ganhavam
destaque haviam subido acima da turba comum, e até mentira para si mesmo,
colocando as realizações dos outros e, inversamente, a falta de sua própria, como
uma escolha aleatória do destino.
Agora que tinha poder ao seu alcance, não tinha noção do que fazer com ele.
Mas Crenshinibon tinha esperado tempo demais para ver seu retorno à vida ser
desperdiçado como um alojamento de caça para um humano insignificante. A falta
de iniciativa de Kessell era, na verdade, um atributo favorável na perspectiva do
artefato. Depois de um tempo, conseguiria persuadir Kessell a seguir quase
qualquer curso de ação com suas mensagens noturnas.
E Crenshinibon tinha esse tempo. A relíquia estava ansiosa para sentir novamente a
emoção da conquista, mas alguns anos não pareciam muito para um artefato criado
no alvorecer do mundo. Ele moldaria o desajeitado Kessell em um representante
adequado de seu poder, transformaria o homem fraco em uma luva de punho de
ferro para entregar sua mensagem de destruição. Fizera o mesmo uma centena de
vezes nas lutas iniciais do mundo, criando e moldando alguns dos oponentes da
ordem mais formidáveis e cruéis em qualquer um dos planos.
Poderia fazê-lo novamente.
Naquela mesma noite, Kessell, dormindo no segundo andar confortavelmente
adornado de Cryshal-Tirith, teve sonhos de conquista. Não campanhas violentas
travadas contra uma cidade como Luskan, nem mesmo na escala da batalha contra
um assentamento fronteiriço, como as aldeias de Dez-Burgos, mas um início menos
ambicioso e mais realista de seu reino. Ele sonhou que tinha forçado uma tribo de
goblins à servidão, usando-os para assumir os papéis de sua equipe pessoal,
atendendo a todas as suas necessidades. Quando acordou na manhã seguinte,
lembrou-se do sonho e descobriu que gostava da ideia.
Mais tarde naquela manhã, Kessell explorou o terceiro andar da torre, uma sala
como todas as outras, feita de cristal liso, mas resistente como pedra, cheia de
dispositivos de vidência. De repente, teve um impulso de fazer um gesto e falar uma
palavra de comando que presumiu ter ouvido na presença de Morkai. Obedeceu a
sensação e observou com espanto quando a dimensão dentro de um dos espelhos da
sala girou em uma névoa cinza. Quando o nevoeiro clareou, uma imagem entrou em
foco.
Kessell reconheceu a área representada como um vale próximo que atravessara
quando Eldulac, Dendybar, o Manchado e os outros o deixaram para morrer. A
imagem da região estava cheia de uma tribo de goblins trabalhando, construindo um
acampamento. Eram nômades, porque bandos de guerra raramente levavam
crianças em seus ataques. Centenas de cavernas pontuavam essas montanhas, mas
não eram numerosas o suficiente para conter as tribos de orcs, goblins, ogros e
monstros ainda mais poderosos. A competição por covis era feroz e as tribos
menores dos goblins eram geralmente forçadas a ficar acima do solo, escravizadas
ou abatidas.
— Que conveniente — Kessell pensou, imaginando se o assunto do seu sonho tinha
sido uma coincidência ou uma profecia. Em outro impulso súbito, enviou sua
vontade através do espelho em direção aos goblins. O efeito o assustou.
Como se fossem um, os goblins se viraram, confusos, na direção da força invisível.
Os guerreiros, apreensivos, sacaram seus porretes e machados de pedra, e as
crianças se amontoaram na parte de trás do grupo.
Um goblin maior, provavelmente o líder, segurando seu porrete diante de si, deu
alguns passos cautelosos à frente de seus soldados.
Kessell coçou o queixo, ponderando a extensão de seu poder recém-descoberto.
— Venha até mim — ele chamou o líder dos goblins. — Você não pode resistir!
◆
Um Dia
Bryn Shander
A Tempestade Vindoura
Drizzt Do’Urden estava sentado na face norte do Sepulcro de Kelvin, com o manto
apertado contra o vento que uivava através das pedras da montanha. O drow passara
todas as noites ali desde o conselho em Bryn Shander, com seus olhos violetas
examinando a escuridão da planície em busca dos primeiros sinais da tempestade
que se aproximava. A pedido de Drizzt, Bruenor conseguiu que Regis se sentasse ao
seu lado. Com o vento amargo cortando-o, o halfling se espremia entre dois
pedregulhos para se proteger dos elementos inóspitos.
Se tivesse escolha, Regis teria ficado escondido no calor de sua própria cama macia
em Bosque Solitário, ouvindo o gemido silencioso dos galhos das árvores que
balançavam além de suas paredes quentes. Mas entendeu que, como porta-voz,
todos esperavam que ele ajudasse a concretizar o curso de ação que havia sugerido
no conselho. Tornou-se rapidamente óbvio para os outros porta-vozes e para
Bruenor, presente nas reuniões estratégicas seguintes como representante dos anões,
que o halfling não ajudaria muito a organizar as forças ou traçar planos de batalha.
Então quando Drizzt disse a Bruenor que precisaria de um mensageiro para montar
guarda com ele, o anão rapidamente voluntariou Regis.
Agora o halfling estava se sentindo terrivelmente infeliz. Seus pés e dedos estavam
entorpecidos pelo frio, e suas costas doíam por se sentar contra a pedra dura. Era a
terceira noite fora, e Regis resmungava e reclamava constantemente, pontuando seu
desconforto com um espirro ocasional. Durante tudo isso, Drizzt permanecia
sentado, imóvel e indiferente às condições, com sua dedicação estoica ao dever
sobrepujando qualquer aflição pessoal.
— Quantas noites mais temos que esperar? — Regis choramingou. — Tenho
certeza que em uma manhã dessas, talvez até amanhã, eles nos encontrarão aqui,
mortos e congelados nesta montanha amaldiçoada!
— Não tema, amiguinho — respondeu Drizzt com um sorriso. — O vento fala d
inverno. Os bárbaros virão logo, determinados a vencer as primeiras neves.
Enquanto falava, o drow captou um lampejo de luz minúsculo pelo canto do olho.
Ele se levantou do agachamento de repente, assustando o halfling, e virou na
direção do movimento, os músculos tensos em uma cautela reflexiva e seus olhos se
esforçando para identificar um sinal que confirmasse o que vira.
— O que... — Regis começou, mas Drizzt o silenciou com a palma da mão
estendida. Um segundo ponto de fogo brilhou na borda do horizonte.
— Você conseguiu o que desejava —disse Drizzt com certeza.
— Eles estão lá? — Regis sussurrou. Sua visão não era tão afiada quanto a do drow
durante a noite.
Drizzt ficou concentrado em silêncio por alguns instantes, tentando medir a
distância das fogueiras e calculando o tempo que os bárbaros levariam para
completar sua jornada.
— Vá até Bruenor e Cassius, amiguinho — disse por fim. — Diga a eles que a
horda chegará ao Caminho de Bremen quando o sol chegar ao ápice amanhã.
— Venha comigo — disse Regis. — Com certeza vão te enxotar quando você tem
essas notícias urgentes.
— Tenho uma tarefa mais importante — respondeu Drizzt. — Agora vá! Diga a
Bruenor, e apenas a ele, que o encontrarei no Caminho de Bremen à primeira luz da
madrugada.
Com isso, o drow caminhou até a escuridão. Ele tinha uma longa jornada diante de
si.
— Para onde você vai? — Regis gritou para ele.
— Encontrar o horizonte do horizonte! — veio um grito da noite negra.
E então havia apenas o murmúrio do vento.
Campos Sangrentos
O exército principal da força bárbara alcançou a longa e baixa colina que levava a
Bryn Shander sem saber o que acontecera com seus camaradas em Termalaine. Lá
se separaram novamente, com Heafstaag liderando a Tribo do Alce ao redor do lado
leste da colina e Beorg levando o resto da horda direto para a cidade murada. Agora
retomaram o seu canto de batalha, esperando enervar ainda mais as pessoas
chocadas e aterrorizadas de Dez-Burgos.
Mas por trás do muro de Bryn Shander havia uma cena muito diferente da que os
bárbaros imaginavam. O exército da cidade, junto com as forças de Caer-Konig e
Caer-Dineval, estava em prontidão com arcos, lanças e óleo quente.
Em uma sombria ironia, a Tribo do Alce, fora da vista da muralha da frente da
cidade, começou a aplaudir quando os primeiros gritos de morte ecoaram na colina,
pensando que as vítimas eram o povo desprevenido de Dez-Burgos. Alguns
segundos depois, quando Heafstaag conduziu seus homens pela curva mais ao leste
do morro, eles também encontraram o desastre. Os exércitos de Bom Prado e Toca
de Dougan estavam firmemente a postos e os aguardando, e os bárbaros foram
duramente atacados antes mesmo de saberem o que os atingira.
Após os primeiros momentos de confusão, Heafstaag conseguiu recuperar o
controle. Esses guerreiros tinham passado por muitas batalhas juntos, eram
guerreiros experientes e destemidos. Mesmo com as perdas do ataque inicial, não
foram ultrapassados em número pela força diante deles e Heafstaag estava confiante
de que poderia abater os pescadores rapidamente e ainda colocar seus homens em
posição.
Mas então, gritando ao chegar, o exército de Refúgio Leste veio ao longo da Estrada
Leste e atacou os bárbaros pelo flanco esquerdo. E Heafstaag, ainda inabalado,
acabara de ordenar a seus homens que fizessem os devidos ajustes para proteger-se
contra o novo inimigo quando noventa anões experientes e fortemente armados os
atacaram por trás. Os anões mal encarados atacaram em uma formação de cunha
com Bruenor como sua ponta mortal. Eles atravessaram a Tribo do Alce,
derrubando bárbaros como uma foice cortando baixo a grama alta.
Os bárbaros lutaram bravamente e muitos pescadores morreram nas encostas
orientais de Bryn Shander. Mas a Tribo do Alce fora superada em número e
cercada, e o sangue bárbaro vertia mais que o sangue de seus inimigos. Heafstaag se
esforçou muito para reunir seus homens, mas toda a semelhança de formação e
ordem se desintegrou em torno dele. Para seu horror e desgraça, o gigantesco rei
percebeu que todos os seus guerreiros morreriam neste campo se não encontrassem
uma maneira de escapar do círculo de inimigos e fugir para a segurança da tundra.
O próprio Heafstaag, que nunca antes recuara em batalha, liderou a fuga
desesperada. Ele e tantos guerreiros quanto conseguiu reunir contornaram correndo
as tropas anãs, procurando uma rota entre eles e o exército de Refúgio Leste. A
maioria dos membros da tribo fora cortada pelas lâminas do pessoal de Bruenor,
mas alguns conseguiram se libertar do círculo e se afastar em direção ao Sepulcro
de Kelvin.
Heafstaag passou pelo corredor de soldados, matando dois anões enquanto
escapava, mas de repente o rei gigante foi engolido por um globo de escuridão
absoluta e impenetrável. Ele mergulhou de cabeça e emergiu de volta para a luz,
apenas para se ver cara a cara com um elfo negro.
Bruenor tinha sete entalhes para colocar em sua machadinha, e atacava o número
oito, um jovem bárbaro alto e desengonçado, jovem demais para ostentar qualquer
barba no rosto bronzeado, mas ostentando o estandarte da Tribo do Alce com a
compostura de um guerreiro experiente. Bruenor, curioso, analisou o olhar fixo e o
rosto calmo enquanto se aproximava do jovem. Surpreendeu-o o fato de não ter
encontrado o fogo selvagem da sede de sangue dos bárbaros contorcendo as feições
do jovem, mas sim uma profundidade observadora e compreensiva. O anão se viu
lamentando de verdade ter que matar alguém tão jovem e incomum, e sua pena o
fez hesitar um pouco quando os dois se encontraram em batalha.
Porém, fruto de uma herança feroz, o jovem não demonstrava medo, e a hesitação
de Bruenor lhe concedera o primeiro golpe. Com precisão mortal, bateu seu bastão
sobre o seu inimigo, quebrando-o ao meio. O golpe poderoso amassou o elmo de
Bruenor e sacudiu o anão em um pequeno salto. Duro como a pedra da montanha
que minerava, Bruenor pôs as mãos nos quadris e olhou para o bárbaro, que quase
deixou cair a arma, tão chocado que estava pelo anão ainda permanecer de pé.
— Garoto tolo — Bruenor rosnou quando cortou as pernas do jovem debaixo dele.
— Você nunca ouviu que não se deve bater em um anão na cabeça? — o jovem
tentou desesperadamente recuperar o equilíbrio, mas Bruenor bateu o escudo de
ferro em seu rosto.
— Oito! — rugiu o anão enquanto se afastava em busca do número nove. Mas ele
olhou para trás por um momento para considerar o jovem caído, balançando a
cabeça ante a perda de alguém tão alto e ereto, com olhos inteligentes para
combinar com suas proezas físicas, uma combinação incomum entre os selvagens e
ferozes nativos de Vale do Vento Gélido.
A raiva de Heafstaag dobrou quando reconheceu seu mais novo oponente como um
elfo drow.
— Cão feiticeiro! — ele gritou, levantando seu enorme machado para o céu.
Enquanto ele falava, Drizzt sacudiu um dedo e chamas púrpuras cobriram o bárbaro
alto da cabeça aos pés. Heafstaag rugiu horrorizado com o fogo mágico, embora as
chamas não lhe queimassem a pele. Drizzt aproximou-se, com suas duas cimitarras
girando e apontando, atacando alto e baixo rápido demais para o rei bárbaro desviar
de ambas.
O sangue escorria de muitas pequenas feridas, mas Heafstaag parecia capaz de
aguentar os cortes das cimitarras delgadas como nada além de um desconforto. O
grande machado desceu e, embora Drizzt conseguisse interceptar o seu curso, o
esforço entorpeceu seu braço. Novamente o bárbaro brandiu seu machado. Desta
vez, Drizzt conseguiu desviar de seu arco mortal, e a conclusão da rotação do drow
deixou Heafstaag desequilibrado e tropeçando, aberto para um contra-ataque. Drizzt
não hesitou, empurrando uma de suas lâminas profundamente no flanco do rei
bárbaro.
Heafstaag uivou em agonia e lançou um golpe de costas de mão em retaliação.
Drizzt pensou que seu último ataque seria fatal, e sua surpresa foi total quando a
parte chata do machado de Heafstaag bateu em suas costelas e o lançou pelo ar. O
bárbaro atacou logo depois, na intenção de finalizar este perigoso oponente antes
que ele pudesse recuperar o equilíbrio.
Mas Drizzt era tão ágil quanto um gato. Ele aterrissou em um rolamento e foi ao
encontro da investida de Heafstaag com uma de suas cimitarras firmemente
colocada. Com seu machado posicionado impotente acima de sua cabeça, o
surpreso bárbaro não conseguiu parar seu impulso antes de empalar sua barriga na
ponta afiada. Ainda assim, olhou para o drow e começou a balançar o machado. Já
convencido da força sobre-humana do bárbaro, Drizzt mantivera a guarda dessa
vez. Ele golpeou sua segunda lâmina logo abaixo da primeira, abrindo a parte
inferior do abdômen de Heafstaag ao longo do quadril.
O machado de Heafstaag caiu inofensivamente no chão quando ele agarrou a ferida,
desesperado, tentando evitar que o conteúdo de sua barriga se esparramasse. Sua
cabeça enorme balançava de um lado para o outro, o mundo girava ao redor dele, e
se sentia caindo para sempre.
Vários outros homens da tribo, em plena fuga e com anões logo atrás deles,
chegaram naquele momento e viram seu rei antes que ele caísse no chão. Tão
grande era a dedicação deles a Heafstaag que dois deles o ergueram e o levaram
embora, enquanto os outros se viravam para enfrentar a próxima maré de anões,
sabendo que certamente seriam abatidos, mas esperando apenas dar aos seus
companheiros tempo suficiente para levar seu rei para a segurança.
Drizzt rolou para longe dos bárbaros e ficou de pé, querendo perseguir os dois que
carregavam Heafstaag. Ele tinha um sentimento doentio de que o terrível rei
sobreviveria até às últimas graves feridas, e estava determinado a terminar o
trabalho. Mas quando se levantou, também sentiu o mundo girando. O lado de sua
capa estava manchado com seu próprio sangue, e de repente ficou difícil recuperar
o fôlego. O sol escaldante do meio-dia queimava em seus olhos noturnos, e ele
estava ensopado de suor.
Drizzt desmoronou na escuridão.
Kemp de Targos e um de seus tenentes foram os primeiros a passar pela forma caída
de Drizzt Do’Urden. Kemp cutucou o elfo negro com a ponta da bota manchada de
sangue, arrancando um gemido em resposta.
— Está vivo — disse Kemp ao seu tenente com um sorriso divertido. — Uma pena.
— ele chutou o drow ferido novamente, desta vez com mais entusiasmo. O outro
homem riu em aprovação e ergueu o próprio pé para se juntar à brincadeira.
De repente, um punho atingiu o rim de Kemp com força suficiente para lançar o
porta-voz sobre Drizzt e mandá-lo quicando ao longo do extenso declive da colina.
Seu tenente girou ao redor, convenientemente abaixando-se para receber o segundo
soco de Bruenor no rosto.
— Um para você também! — o anão enfurecido rosnou quando sentiu o nariz do
homem se despedaçar sob o golpe.
Cassius de Bryn Shander, vendo o incidente do alto da colina, gritou de raiva e
desceu correndo a encosta em direção a Bruenor.
— Você deveria aprender alguma diplomacia! — ele repreendeu.
— Fique onde está, filho de um porco do pântano! — foi a resposta ameaçadora de
Bruenor. — Vocês devem ao drow suas vidas e lares — rugiu a todos que podiam
ouvi-lo —, e vocês o tratam como um verme!
— Meça suas palavras, anão! — replicou Cassius, agarrando hesitante o punho da
espada. Os anões formaram uma linha ao redor de seu líder, e os homens de Cassius
se reuniram em torno dele.
Então uma terceira voz soou com clareza.
— Meça as suas, Cassius — advertiu Agorwal de Termalaine. — Eu teria feito a
mesma coisa com Kemp se tivesse a coragem do anão! — ele apontou para o norte.
— O céu está claro — gritou. — Mas, se não fosse pelo drow, estaria preenchido
com a fumaça de Termalaine em chamas!
O porta-voz de Termalaine e seus companheiros se aproximaram da linha de
Bruenor. Dois dos homens gentilmente levantaram Drizzt do chão.
— Não tema pelo seu amigo, valente anão — disse Agorwal. — Ele será bem
cuidado em minha cidade. Nunca mais eu, ou meus companheiros de Termalaine, o
julgaremos pela cor de sua pele e pela reputação de seus parentes!
Cassius estava ultrajado.
— Retire seus soldados do território de Bryn Shander! — gritou para Agorwal, mas
era uma ameaça vazia, pois os homens de Termalaine já estavam partindo.
Satisfeito pelo fato de o drow estar em boas mãos, Bruenor e seu clã passaram a
procurar pelo resto do campo de batalha.
— Eu não vou me esquecer disso! — Kemp gritou para ele de longe, colina abaixo.
Bruenor cuspiu na direção do porta-voz de Targos e continuou, inabalável.
E assim foi que a aliança do povo de Dez-Burgos só durou tanto quanto seu inimigo
comum.
Epílogo
Wulfgar
TRADIÇÃO.
O próprio som da palavra invoca um senso de gravidade e solenidade. Tradição.
Suuz’chok na língua drow, e nela também, como em todas as línguas que já ouvi, a
palavra sai da sua língua com um tremendo peso e poder.
Tradição. É a raiz de quem somos, o elo com a nossa herança, o lembrete de que
nós, como povo, se não individualmente, atravessaremos as eras. Para muitas
pessoas e muitas sociedades, a tradição é a fonte da estrutura e da lei, o fato
permanente da identidade que nega as afirmações contrárias do fora da lei ou o mau
comportamento do renegado. É esse som ecoando no fundo de nossos corações,
nossas mentes e nossas almas que nos lembra de quem nós somos reforçando quem
nós éramos. Para muitos, é ainda mais que a lei; é a religião, guiando a fé enquanto
ela guia a moralidade e a sociedade. Para muitos, a tradição é um deus em si, os
antigos rituais e textos sagrados, rabiscados em pergaminhos ilegíveis amarelados
pela idade ou esculpidos em rochas eternas.
Para muitos, tradição é tudo.
Pessoalmente, a vejo como uma faca de dois gumes, e uma que pode cortar ainda
mais fundo no caminho do erro.
Vi o funcionamento da tradição em Menzoberranzan, o sacrifício ritualístico do
terceiro filho do sexo masculino (que quase fora meu próprio destino), o
funcionamento das três escolas drow. A tradição justificou os avanços de minha
irmã em minha direção na formatura de Arena-Magthere e negou-me quaisquer
reclamações contra aquela cerimônia infeliz. A tradição mantém as Matriarcas no
poder, limitando a ascensão de qualquer homem. Mesmo as guerras cruéis de
Menzoberranzan, casa contra casa, estão enraizadas na tradição, são justificadas
porque essa é a forma como tudo sempre foi.
Essas falhas não são exclusivas dos drow. Muitas vezes, sento-me na face norte do
Sepulcro de Kelvin, olhando a tundra vazia e as luzes cintilantes das fogueiras nos
vastos acampamentos bárbaros. Lá também existe um povo totalmente consumido
pela tradição, um povo agarrado a códigos e modos antigos que antes lhes
permitiam sobreviver como uma sociedade em uma terra inóspita, mas que agora os
atrapalham tanto ou mais do que os ajudam. Os bárbaros de Vale do Vento Gélido
seguem o rebanho de caribus de um lado do vale para o outro. Em dias que há
muito se foram, essa era a única maneira pela qual poderiam ter sobrevivido aqui,
mas quão mais fácil seria sua existência agora se eles apenas negociassem com o
povo de Dez-Burgos, oferecendo peles e boa carne em troca de materiais mais
fortes trazidos do sul para construir casas mais duradouras para si mesmos?
Em dias que há muito se foram, antes que qualquer civilização real se arrastasse até
tão a norte, os bárbaros se recusavam a falar, ou mesmo aceitar, qualquer outra
pessoa dentro do Vale do Vento Gélido, as várias tribos muitas vezes se unindo com
o único propósito de expulsar qualquer intruso. Naqueles tempos passados,
qualquer recém-chegado inevitavelmente se tornaria um rival pela parca comida e
outros suprimentos escassos, e assim a xenofobia era necessária para a
sobrevivência básica.
O povo de Dez-Burgos, com suas avançadas técnicas de pesca e seu rico comércio
com o Luskan, não são rivais dos bárbaros – a maioria nunca sequer comeu carne
de veado, imagino. E, no entanto, a tradição exige dos bárbaros que não façam
amizade com essas pessoas e, na verdade, muitas vezes guerreiem contra elas.
Tradição.
Que gravidade essa palavra transmite! Que poder ela exerce! Enquanto nos enraíza
e nos fundamenta e nos dá esperança por quem somos por causa de quem éramos,
também destrói e nega a mudança.
Nunca fingiria entender outro povo bem o suficiente para exigir que mudasse suas
tradições, mas como me parece tolo se manter firme e inflexível em relação a
costumes e modos sem nenhuma consideração por quaisquer mudanças que tenham
ocorrido no mundo ao nosso redor.
Pois esse mundo é um lugar em mudança, movido pelos avanços da tecnologia e da
magia, pela ascensão e queda das populações, até mesmo pela mistura de raças,
como nas comunidades de meio-elfos. O mundo não é estático, e se as raízes de
nossas percepções, tradições, se mantêm estáticas, então estamos condenados, eu
digo, a um dogma destrutivo.
Então nós caímos na lâmina mais sombria daquela espada de dois gumes.
— Drizzt Do’Urden
CAPÍTULO 9
A União Sombria
Mais duas tribos se juntaram a suas fileiras crescentes. Por todo o planalto que
abrigava sua torre via-se os estandartes de vários bandos de goblins: os Goblins das
Lanças Sinuosas, os Orcs Retalhadores, os Orcs da Língua Cortada e muitos outros,
todos vindos para servir ao mestre. Kessell tinha até mesmo atraído um grande clã
de ogros, um punhado de trolls e quarenta verbeegs renegados, os menores dos
gigantes, mas gigantes, de qualquer forma.
Porém, sua maior conquista foi um grupo de gigantes de gelo que simplesmente
apareceu, desejando apenas agradar o portador de Crenshinibon.
Kessell estivera bastante contente com sua vida em Cryshal-Tirith, com todos os
seus caprichos obededecidos pela primeira tribo de goblins que havia encontrado.
Os goblins tinham até mesmo sido capazes de invadir uma caravana comercial e
fornecer ao mago algumas mulheres humanas para seus prazeres. A vida de Kessell
era suave e fácil, do jeito que ele gostava.
Mas Crenshinibon não estava contente. A fome de poder da relíquia era insaciável.
Ele iria se contentar com pequenos ganhos por um curto período de tempo e, então,
exigiria que o seu usuário passasse para conquistas maiores. Não se oporia
abertamente a Kessell, pois, na constante guerra de vontades, Kessell detinha o
poder da decisão. O pequeno fragmento de cristal continha uma reserva de incrível
poder, mas, sem um portador, era semelhante a uma espada embainhada sem uma
mão para sacá-la. Logo, Crenshinibon exercia sua vontade através da manipulação,
insinuando ilusões de conquista nos sonhos do mago, permitindo que Kessell visse
as possibilidades do poder. Ele balançava uma isca diante do nariz do ex-aprendiz
desajeitado que ele não conseguiria recusar – respeito.
Kessell, que sempre fora alvo de desprezo para os magos pretensiosos de Luskan (e
para todo mundo, pelo que parecia) era presa fácil para tais ambições. Ele, que
estivera no chão ao lado das botas das pessoas importantes, ansiava pela chance de
reverter os papéis.
E agora tinha a oportunidade de transformar suas fantasias em realidade,
Crenshinibon muitas vezes lhe assegurava. Com a relíquia em seu poder, ele
poderia se tornar o conquistador; poderia fazer as pessoas, até mesmo os magos da
Torre Central, tremerem com a simples menção a seu nome.
Ele precisava permanecer paciente. Havia passado vários anos aprendendo as
sutilezas de controlar uma e depois uma segunda tribo goblin. No entanto, a tarefa
de reunir dezenas de tribos e dobrar sua inimizade natural em uma causa comum de
servidão a ele era muito mais desafiadora. Tinha que trazê-los um de cada vez no
início, e garantir que os tivesse escravizado completamente à sua vontade antes que
ousasse convocar outro grupo.
Mas estava funcionando, e agora havia trazido duas tribos rivais simultaneamente
com resultados positivos. Torga e Grock tinham entrado em Cryshal-Tirith, cada um
procurando uma maneira de matar o outro sem causar a ira do mago. Quando
partiram, porém, depois de uma breve discussão com Kessell, estavam conversando
como velhos amigos sobre a glória de suas batalhas vindouras no exército de Akar
Kessell.
Kessell recostou-se nos travesseiros e considerou sua boa sorte. Seu exército estava
realmente tomando forma. Ele tinha gigantes de gelo como seus comandantes de
campo, ogres como seus guardas de campo, verbeegs como uma força de ataque
mortal, e trolls, vis trolls inspiradores do medo, como seus guarda-costas pessoais.
E por sua conta, até agora, dez mil tropas de goblins fanaticamente leais para levar a
cabo sua faixa de destruição.
— Akar Kessell! — gritou para a garota do harém que cuidava de suas longas unhas
enquanto ele se sentava em contemplação, embora a mente da garota tivesse sido
destruída há muito tempo por Crenshinibon. — Toda a glória para o Tirano do Vale
do Vento Gélido!
Longe, ao sul das estepes congeladas, nas terras civilizadas onde os homens tinham
mais tempo para atividades de lazer e contemplação, e cada ação não era
determinada por pura necessidade, magos e pretensos magos eram menos raros. Os
verdadeiros magos, estudantes vitalícios das artes arcanas, praticavam seu ofício
com o devido respeito pela magia, sempre cautelosos com as consequências
potenciais de seus feitiços.
A menos que fossem consumidos pela fome de poder, o que era uma coisa muito
perigosa, os verdadeiros magos temperavam seus experimentos com cautela e
raramente causavam desastres.
Os pretensos magos, no entanto, os homens que de alguma forma tinham alcançado
um certo grau de habilidade mágica, quer tenham encontrado um pergaminho, um
livro de feitiços de um mestre ou alguma relíquia, eram com frequência os
perpetradores de calamidades colossais.
Foi o caso daquela noite, em uma terra a mais de mil e quinhentos quilômetros de
Akar Kessell e Crenshinibon. Um aprendiz de mago, um jovem que mostrara
grande promessa a seu mestre, entrou em posse de um diagrama de um poderoso
círculo mágico, então procurou e encontrou um feitiço de convocação. O aprendiz,
atraído pela promessa de poder, conseguiu extrair o verdadeiro nome de um
demônio das anotações particulares de seu mestre.
A conjuração, a arte de evocar entidades de outros planos em servidão, era o amor
particular desse jovem. Seu mestre havia permitido que ele trouxesse aberrações e
demônios menores através de um portal mágico – supervisionado de perto – na
esperança de demonstrar os perigos potenciais da prática e reforçar as lições de
cautela. Na verdade, as manifestações serviram apenas para aumentar o apetite do
jovem pela arte. Ele implorou a seu mestre para permitir que ele tentasse um
verdadeiro demônio, mas o bruxo sabia que ele não estava nem perto de estar
pronto para tal teste.
O aprendiz discordava.
Ele havia completado a inscrição do círculo naquele mesmo dia. Tão confiante
estava em seu trabalho que não passou um dia a mais (alguns magos passavam uma
semana) checando as runas e símbolos ou se preocupando em testar o círculo em
uma entidade menor.
Agora estava sentado dentro dele, com seus olhos focados no fogo do braseiro que
serviria como o portão para o Abismo. Com um sorriso confiante e por demais
orgulhoso, o pretenso feiticeiro chamou o demônio.
Errtu, um grande demônio de proporções catastróficas, ouviu seu nome ser
pronunciado de forma vaga no plano distante. Normalmente, a grande fera teria
ignorado uma chamado tão fraco; o conjurador não demonstrara qualquer
habilidade de força suficiente para obrigar o demônio a obedecer.
No entanto, Errtu ficou feliz com o chamado fatídico. Alguns anos antes, o demônio
sentiu uma onda de poder no Plano Material e acreditava que terminaria uma
missão que havia empreendido um milênio atrás. O demônio havia sofrido nos
últimos anos, impaciente, ansioso que um mago abrisse um caminho para que
pudesse chegar ao Plano Material e investigar essa onda.
O jovem aprendiz sentiu-se atraído pela dança hipnótica do fogo do braseiro. As
chamas haviam se unificado em uma única flama, como a queima de uma vela
apenas muitas vezes maior, que se agitava tentadora, para frente e para trás, para
frente e para trás.
O aprendiz hipnotizado não estava sequer ciente da intensidade cada vez maior do
fogo. A chama saltou mais e mais alto, seu tremeluzir acelerou e sua cor moveu-se
pelo espectro em direção ao calor supremo da brancura.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
Mais rápido agora, abanando descontroladamente e construindo sua força para
apoiar a poderosa entidade que esperava do outro lado.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
O aprendiz estava suando. Ele sabia que o poder do feitiço estava crescendo além
de seus limites, que a magia havia assumido o controle e estava com vida própria.
Que era impotente para detê-la.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
Via a sombra escura dentro da chama, as grandes mãos com garras e as asas de
couro, similares às de um morcego. E o tamanho da fera! Um gigante mesmo para
os padrões de seu tipo.
— Errtu! — o jovem chamou, as palavras forçadas para fora dele pelas exigências
do feitiço. Não havia identificado totalmente o nome nas anotações de seu mestre,
mas viu claramente que pertencia a um poderoso demônio, um monstro logo abaixo
dos lordes demoníacos na hierarquia do Abismo.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
A grotesca cabeça símia, com a boca e o focinho de um cão e os grandes incisivos
de um javali, estava visível, com os enormes olhos vermelho-sangue piscando de
dentro da chama do braseiro. A baba ácida chiava enquanto caía no fogo.
Para frente e para trás. Para frente e para trás.
O fogo se elevou em um clímax final de poder, e Errtu atravessou. O demônio
sequer fez uma pausa para analisar o jovem humano apavorado que chamara seu
nome de maneira insensata. Começou uma caminhada lenta ao redor do círculo
mágico em busca de pistas sobre a extensão do poder desse mago.
O aprendiz finalmente conseguiu se recompor. Ele havia acabado de evocar um
demônio maior! Esse fato ajudou-o a restabelecer sua confiança em suas
habilidades como feiticeiro.
— Fique diante de mim! — ele comandou, ciente de que uma mão firme era
necessária para controlar uma criatura dos caóticos planos inferiores.
Errtu, sem prestar atenção ao jovem, continuou sua análise.
O aprendiz ficou zangado.
— Você vai me obedecer! — ele gritou. — Eu te trouxe aqui e tenho a chave para
seu tormento! Você obedecerá ao meu comando e libertá-lo-ei,
misericordiosamente, de volta ao seu próprio mundo sujo! Agora, fique diante de
mim!
O aprendiz estava desafiante. O aprendiz estava orgulhoso.
Mas Errtu havia encontrado um erro no traçado de uma runa, uma imperfeição fatal
em um círculo mágico que não podia se dar ao luxo de ser quase perfeito.
O aprendiz estava morto.
◆
Errtu sentia a familiar sensação de poder mais nitidamente no Plano Material e teve
pouca dificuldade em discernir de onde emanavam. Ele voou com suas grandes asas
sobre as cidades dos humanos, espalhando pânico onde quer que fosse notado, mas
sem atrasar sua jornada para saborear o caos que irrompia abaixo.
Em linha reta e a toda velocidade, Errtu voou sobre lagos e montanhas, através de
grandes extensões de terra. Rumo ao extremo norte nos Reinos, à Espinha do
Mundo e à antiga relíquia que procurou durante séculos.
Kessell estava ciente do demônio que se aproximava muito antes de suas tropas
reunidas começarem a se espalhar em terror sob as ondas de sombra de escuridão.
Crenshinibon transmitira a informação ao mago, a relíquia viva antecipava os
movimentos da poderosa criatura dos planos inferiores que a perseguia por
incontáveis eras.
Kessell não estava preocupado, porém. Dentro de sua torre de força, estava
confiante de que poderia lidar com um inimigo tão poderoso quanto Errtu. E tinha
uma vantagem distinta sobre o demônio. Ele era o legítimo portador da relíquia. Ela
estava sintonizada com ele e, como tantos outros artefatos mágicos da aurora do
mundo, Crenshinibon não podia ser arrancado de seu possuidor por pura força.
Errtu desejava empunhar a relíquia e, portanto, não ousaria se opor a Kessell e
invocar a ira de Crenshinibon.
A baba ácida escorregou livremente da boca do demônio quando viu a torre à
imagem da relíquia.
— Quantos anos? — berrou, vitorioso.
Errtu viu a porta da torre, pois não era uma criatura do Plano Material, e
aproximou-se imediatamente. Nenhum dos goblins de Kessell, nem mesmo os
gigantes, impediu a entrada do demônio.
Flanqueado por seus trolls, o mago estava esperando por Errtu na câmara principal
de Cryshal-Tirith, o primeiro andar da torre. O mago sabia que os trolls seriam de
pouca utilidade contra um demônio controlador de fogo, mas os queria presentes
para melhorar a primeira impressão que o demônio teria. Sabia que detinha o poder
de mandar Errtu embora facilmente, mas outro pensamento, implantado através de
uma sugestão do Fragmento de Cristal, chegara até ele.
O demônio poderia ser muito útil.
Errtu parou ao atravessar o estreito caminho de entrada e encontrar o séquito do
bruxo. Por causa da localização remota da torre, o demônio esperava encontrar um
orc, ou talvez um gigante, segurando o fragmento. Tinha a intenção de intimidar e
enganar o manejador de raciocínio lento para que entregasse a relíquia, mas a visão
de um humano em mantos, provavelmente até mesmo um mago, lançou um
obstáculo em seus planos.
— Saudações, poderoso demônio — Kessell disse educadamente, curvando-se
baixo. — Bem-vindo à minha humilde moradia.
Errtu rosnou de raiva e avançou, esquecendo as desvantagens de destruir o portador,
consumido por seu ódio e sua inveja do humano presunçoso.
Crenshinibon lembrou o demônio.
Um súbito clarão de luz pulsou das paredes da torre, engolfando Errtu no doloroso
brilho de uma dúzia de sóis do deserto. O demônio parou e cobriu seus olhos
sensíveis. A luz se dissipou logo, mas Errtu se manteve firme e não se aproximou
do mago novamente.
Kessell sorriu. A relíquia o apoiara. Cheio de confiança, dirigiu-se ao demônio
novamente, desta vez com uma expressão severa em sua voz.
— Você veio para pegar isso — disse ele, alcançando dentro das dobras de seu
manto para sacar o fragmento. Os olhos de Errtu se estreitaram e travaram no objeto
que havia perseguido por tanto tempo.
— Você não pode tê-lo — disse Kessell sem rodeios, e o recolocou sob o roupão. —
É meu, legitimamente encontrado, e você não tem direito sobre ele! — O orgulho
tolo de Kessell, a falha fatal em sua personalidade que sempre o empurrou por uma
estrada de tragédia certa, queria que continuasse com a provocação do demônio em
sua situação indefesa.
“Chega” avisou uma sensação dentro dele, a voz silenciosa que suspeitava ser a
vontade consciente do fragmento.
— Isso não é da sua conta — retrucou Kessell em voz alta. Errtu olhou ao redor da
sala, perguntando-se a quem o mago estava se dirigindo. Os trolls não lhe deram
atenção. Como cautela, o demônio invocou vários feitiços de detecção, temendo um
agressor invisível.
“Você insulta um inimigo perigoso”, o fragmento persistiu. “Protegi você do
demônio, mas você persiste em alienar uma criatura que se mostraria um valioso
aliado!”
Como era o caso quando Crenshinibon se comunicava com o mago, Kessell
começou a ver as possibilidades. Decidiu-se por um caminho de concessão, um
acordo benéfico para si mesmo e para o demônio.
Errtu considerou sua situação. Não poderia matar o humano impertinente, embora
tivesse saboreado tal ato.
No entanto, sair sem a relíquia, adiando a busca que havia sido sua motivação
primária durante séculos, não era uma opção aceitável.
— Tenho uma proposta a oferecer, uma barganha que pode lhe interessar — disse
Kessell tentadoramente, evitando o olhar promissor de morte que o demônio lhe
lançava. — Fique ao meu lado e sirva como comandante das minhas forças! Com
você liderando-as e o poder de Crenshinibon e Akar Kessell, elas irão varrer a terra
do norte!
—Servi-lo? — Errtu riu. — Você não tem poder sobre mim, humano.
— Você vê a situação incorretamente — retrucou Kessell. — Pense nisso não como
servidão, mas como uma oportunidade de participar de uma campanha que promete
destruição e conquista! Você tem o meu maior respeito, poderoso demônio. Eu não
pretendo me chamar de seu mestre.
Crenshinibon, com suas intrusões subconscientes, havia treinado bem Kessell. A
postura menos ameaçadora de Errtu mostrou que estava intrigado com a proposta
do mago.
— E considere os ganhos que você um dia terá — continuou Kessell. — Os seres
humanos não vivem muito tempo considerando a sua expectativa além das eras.
Quem, então, levará o Fragmento de Cristal quando Akar Kessell não existir mais?
Errtu sorriu maliciosamente e curvou-se diante do mago.
— Como eu poderia recusar uma oferta tão generosa? — o demônio rosnou em sua
voz horrível e sobrenatural. — Mostre-me, mago, que conquistas gloriosas estão em
nosso caminho.
Kessell quase dançou de alegria. Seu exército estava, de fato, completo.
Ele tinha seu general.
CAPÍTULO 11
Presa de Égide
A coruja voou silenciosa sobre o pequeno coelho, guiada em direção a sua presa por
sentidos mais aguçados do que os de qualquer criatura viva. Seria uma morte
rotineira, sem o animal infeliz sequer perceber o predador que se aproximava. No
entanto, a coruja estava agitada e sua concentração de caçadora oscilou no último
momento. Raramente o grande pássaro errava, mas desta vez voou de volta para sua
casa ao lado do Sepulcro de Kelvin sem uma refeição.
Lá longe na tundra, um lobo solitário estava parado como uma estátua, ansioso, mas
paciente, enquanto o disco de prata da imensa lua do verão surgia na borda plana do
horizonte. Ele esperou até que o orbe sedutor surgisse completamente no céu,
depois soltou o uivo ancestral de sua raça. Foi respondido, de novo e de novo, por
lobos distantes e outros seres noturnos da noite, todos clamando pelo poder dos
céus.
A noite do solstício de verão, quando a magia permeava o ar, empolgando a todos,
menos os seres racionais que rejeitaram tais impulsos primitivos, havia começado.
Em seu estado emocional, Bruenor sentiu a magia distintamente. Mas, absorto no
ápice do trabalho de sua vida, atingiu um nível de concentração calma. Suas mãos
não tremiam quando abriu a tampa dourada do pequeno cofre.
O poderoso martelo de guerra estava preso à bigorna diante do anão. Representava
o melhor trabalho de Bruenor, poderoso e lindamente trabalhando mesmo
incompleto, mas aguardando pelas delicadas runas e encantamentos que o tornariam
uma arma de poder especial.
Bruenor retirou com reverência o pequeno martelo de prata e o cinzel do cofre e
aproximou-se do martelo de guerra. Sem hesitar, pois sabia que tinha pouco tempo
para um trabalho tão intrincado, colocou o cinzel no mitral e bateu nele solidamente
com o martelo. Os metais imaculados emitiram uma nota clara e pura que
provocava arrepios na espinha do anão contemplativo. Ele sabia em seu coração que
todas as condições eram perfeitas, e estremeceu novamente quando pensou no
resultado dos trabalhos dessa noite.
O anão não viu os olhos escuros olhando intensamente para ele de uma crista a uma
curta distância.
Bruenor não precisava de modelo para os primeiros entalhes; eram símbolos
gravados em seu coração e alma. Solenemente, inscreveu o martelo e a bigorna de
Moradin, o Forjador da Alma, na lateral de uma das cabeças do martelo de guerra, e
os machados cruzados de Clangeddin, o deus da batalha dos anões, no lado oposto
da outra parte da cabeça. Pegou o tubo de pergaminho de prata e gentilmente
removeu sua tampa de diamante. Suspirou de alívio quando viu que o pergaminho
havia sobrevivido às décadas. Limpou o suor oleoso de suas mãos, removeu o
pergaminho e lentamente o desenrolou, colocando-o sobre a bigorna. A princípio, a
página parecia vazia, mas gradualmente os raios da lua cheia fizeram seus símbolos,
as runas secretas de poder, aparecerem.
Essas eram a herança de Bruenor e, embora nunca as tivesse visto antes, suas linhas
e curvas arcanas lhe pareciam confortavelmente familiares. Com sua mão firme e
confiante, o anão colocou o cinzel prateado entre os símbolos que tinha inscrito dos
dois deuses e começou a gravar as runas secretas no martelo de guerra. Ele sentiu a
magia transferindo-se do pergaminho para a arma através dele e observou com
assombro enquanto cada uma desaparecia do pergaminho depois de tê-la inscrito no
mitral. O tempo não tinha significado para ele, imerso profundamente no transe de
seu trabalho, mas quando completou as runas, notou que a lua tinha passado o seu
pico e estava em declínio.
O primeiro teste real da perícia do anão veio quando ele cobriu os entalhes das
runas com a gema dentro do símbolo da montanha de Dumathoin, o Guardião dos
Segredos. As linhas do símbolo do deus alinhavam-se perfeitamente com as das
runas, obscurecendo os traços secretos de poder.
Bruenor sabia que seu trabalho estava quase completo. Ele removeu o martelo de
guerra pesado da prensa e pegou a pequena bolsa de couro. O anão teve que respirar
fundo várias vezes para se recompor, pois este era o teste final e mais decisivo de
sua habilidade. Ele afrouxou o cordão no topo da sacola e se maravilhou com o
suave brilho do pó de diamante na luz suave da lua.
De trás do cume, Drizzt Do’Urden ficou tenso em antecipação, mas teve o cuidado
de não perturbar a completa concentração do amigo.
Bruenor se firmou e de repente sacudiu a sacola no ar, liberando seu conteúdo alto
na noite. Ele jogou a bolsa de lado, agarrou o martelo de guerra com as duas mãos e
levantou-o acima da cabeça. O anão sentiu sua força ser sugada enquanto
pronunciava as palavras de poder, mas não saberia como havia se saído até seu
trabalho estar completo. O nível de perfeição de seus entalhes determinava o
sucesso de suas entonações, pois como havia gravado as runas na arma, sua força
fluía em seu coração. Esse poder atraía a poeira mágica para a arma cujo poder, por
sua vez, poderia ser medido pela quantidade de pó de diamante cintilante que
capturasse.
Sombras caíram sobre o anão. Sua cabeça girou e ele não entendeu o que o manteve
em pé. Mas o poder das palavras tinha ido além dele. Embora nem estivesse
consciente, continuaram a sair de seus lábios em um fluxo inegável, minando cada
vez mais sua força. Então, misericordiosamente, ele estava caindo, embora o vazio
da inconsciência o tivesse tomado muito antes de sua cabeça atingir o chão.
Drizzt se virou e recostou-se contra a crista rochosa; ele também estava exausto do
espetáculo. Não sabia se seu amigo sobreviveria à provação desta noite, mas estava
empolgado por Bruenor. Pois havia testemunhado o momento mais triunfante do
anão, mesmo que Bruenor não tivesse visto, quando a cabeça de mitral do martelo
queimava com a vida da magia e sugava a chuva de diamante.
E nem uma única partícula da poeira brilhante escapara do chamado de Bruenor.
CAPÍTULO 12
O Presente
Drizzt Do’Urden manteve uma vigília estoica por seu amigo inconsciente durante
dois longos dias. Preocupado com Bruenor e curioso com o maravilhoso martelo de
guerra, o drow permaneceu a uma distância respeitosa da forja secreta.
Finalmente, enquanto a manhã surgia no terceiro dia, Bruenor se mexeu e se
espreguiçou. Drizzt afastou-se em silêncio, percorrendo o caminho que ele sabia
que o anão tomaria. Encontrando uma clareira apropriada, montou apressadamente
um pequeno acampamento.
A luz do sol chegou a Bruenor como apenas um borrão no início, e levou vários
minutos para que se reorientasse ao ambiente. Então sua visão que retornava se
concentrou na brilhante glória do martelo de guerra.
Olhou ao redor, procurando por sinais da poeira caída. Ele não encontrou nenhum e
sua expectativa aumentou. Ele estava tremendo mais uma vez quando levantou a
arma magnífica, virando-a nas mãos, sentindo o equilíbrio perfeito e a força
incrível. O fôlego de Bruenor sumiu ao ver os símbolos dos três deuses no mitral,
com o pó de diamante magicamente fundido em suas linhas profundas. Em transe
pela aparente perfeição de seu trabalho, Bruenor entendeu o vazio de que seu pai
havia falado. Ele sabia que nunca iria reproduzir tal nível em seu ofício, e se
perguntou se, sabendo disso, seria capaz de levantar seu martelo novamente.
Tentando analisar suas emoções confusas, o anão colocou o martelo e o cinzel de
prata de volta em seu cofre dourado e recolocou o pergaminho em seu tubo, embora
estivesse em branco e ele soubesse que as runas mágicas nunca mais reapareceriam.
Bruenor então percebeu que não comia há vários dias e que sua força não havia se
recuperado totalmente do dreno da magia. Coletou tudo que podia carregar, içou o
imenso martelo de guerra por cima do ombro e caminhou em direção à sua casa.
O doce aroma de carne assada o saudou quando chegou ao acampamento de Drizzt
Do’Urden.
— Então você está de volta de suas viagens — disse cumprimentando seu amigo.
Drizzt prendeu os olhos nos do anão, não querendo revelar sua curiosidade
esmagadora pelo martelo de guerra.
— A seu pedido, bom anão — disse ele, curvando-se baixo. — Você mandou gente
o bastante me procurar para saber que eu voltaria.
Bruenor admitiu o argumento, embora no presente ele só oferecesse um distraído
“Eu precisava de você”, como explicação. Uma necessidade mais urgente se
apoderou dele ao ver a carne assada.
Drizzt sorriu, compreensivo. Ele já havia comido, apanhara e cozinhara este coelho
especialmente para Bruenor.
— Junta-se a mim? — perguntou ele.
Antes mesmo de terminar a oferta, Bruenor estava ansiosamente procurando o
coelho. Ele parou de repente, porém, e olhou desconfiado para o drow.
— Há quanto tempo você está aqui? — o anão perguntou, nervoso.
— Acabei de chegar esta manhã — mentiu Drizzt, respeitando a privacidade da
cerimônia especial do anão. Bruenor sorriu com a resposta e atacou o coelho
enquanto Drizzt colocava outro no espeto.
O drow esperou até que Bruenor estivesse absorto em sua refeição, então
rapidamente pegou o martelo de guerra. Quando Bruenor pôde reagir, Drizzt já
havia levantado a arma.
— Grande demais para um anão — observou Drizzt casualmente. — E muito
pesado para os meus braços esguios. — Olhou para Bruenor, que estava com os
braços cruzados e o pé batendo impaciente. — Quem, então?
— Você tem talento para colocar seu nariz onde não é chamado, elfo — o anão
respondeu rispidamente.
Drizzt riu em resposta.
— O garoto, Wulfgar? — perguntou, fingindo descrença. Sabia muito bem que o
anão nutria fortes sentimentos pelo jovem bárbaro, embora também percebesse que
Bruenor jamais o admitiria abertamente. — Uma boa arma para dar a um bárbaro.
Você mesmo a fez?
Apesar de sua reprimenda, Drizzt estava mesmo impressionado com a obra de
Bruenor. Embora o martelo fosse pesado demais para ele empunhar, podia sentir
claramente seu incrível equilíbrio.
— Só um martelo velho, só isso — resmungou Bruenor. — O garoto perdeu seu
tacape; eu não poderia soltá-lo nesse lugar selvagem sem uma arma!
— E o nome dele?
— Presa de Égide — Bruenor respondeu sem pensar, o nome fluindo dele antes
mesmo que tivesse tempo para refletir. Ele não se lembrava do incidente, mas o
anão determinara o nome da arma quando a encantara como parte das intenções
mágicas da cerimônia.
— Compreendo — disse Drizzt, devolvendo o martelo a Bruenor. — Um martelo
velho, mas bom o suficiente para o garoto. Mitral, adamantita e diamante
simplesmente terão que servir.
— Ah, cale a boca — retrucou Bruenor, com o rosto vermelho de vergonha. Drizzt
se curvou em um pedido desculpas.
— Por que você pediu a minha presença, meu amigo? — o drow perguntou,
mudando de assunto.
Bruenor limpou a garganta.
— O garoto — ele resmungou baixinho. Drizzt viu o desconfortável nó na garganta
de Bruenor e enterrou sua próxima provocação antes que ele falasse.
— Ele estará livre antes do inverno — continuou Bruenor — e não está treinado
apropriadamente. É mais forte que qualquer homem que eu já vi e se move com a
graça de um cervo em fuga, mas é verde nos caminhos da batalha.
— Você quer que eu o treine? — Drizzt perguntou incrédulo.
— Bom, eu não posso! — Bruenor rebateu de repente. — Ele tem mais de dois
metros de altura e não daria certo com os cortes baixos de um anão!
O drow olhou curioso para o seu companheiro frustrado. Como todos que estavam
perto de Bruenor, ele sabia que havia um vínculo entre o anão e o jovem bárbaro,
mas não havia percebido o quão profundo era.
— Eu não o mantive sob meus cuidados por cinco anos apenas para deixá-lo ser
abatido por um iéti fedorento! — Bruenor deixou escapar, impaciente com a
hesitação do drow e nervoso por seu amigo ter adivinhado mais do que deveria. —
Você vai fazer isso?
Drizzt sorriu de novo, mas desta vez não havia provocação. Lembrou-se de sua
própria batalha contra iétis da tundra quase cinco anos antes. Bruenor salvara sua
vida e não tinha sido a primeira e nem seria a última vez em que ele deveria ao
anão.
— Os deuses sabem que eu te devo mais que isso, meu amigo. Claro que vou
treiná-lo.
Bruenor grunhiu e agarrou o próximo pedaço de coelho.
O som das batidas de Wulfgar ecoou pelos corredores dos anões. Irritado com as
revelações que fora forçado a ver na conversa com Cattibrie, ele retornou ao seu
trabalho com fervor.
— Pare de martelar, garoto — veio uma voz rouca atrás dele. Wulfgar se virou. Ele
estava tão absorto em seu trabalho que não ouvira Bruenor entrar. Um sorriso
involuntário de alívio se alargou em seu rosto. Mas pegou a demonstração de
fraqueza rapidamente e repintou uma máscara severa.
Bruenor considerou a grande altura e circunferência do jovem bárbaro e o começo
desgrenhado de uma barba loura na pele dourada de seu rosto.
— Eu não posso mais chamar você de garoto — o anão admitiu.
— Você tem o direito de me chamar como quiser — retrucou Wulfgar. — Sou seu
escravo.
— Você tem um espírito selvagem como a tundra — disse Bruenor, sorrindo. —
Você nunca foi, nem jamais será, um escravo de qualquer anão ou homem!
Wulfgar foi pego de surpresa pelo elogio não característico do anão. Ele tentou
responder, mas não encontrou palavras.
— Nunca vi você como um escravo, garoto — continuou Bruenor. — Você me
serviu para pagar pelos crimes de seu povo, e eu lhe ensinei muito em troca. Agora,
largue seu martelo.
Ele parou por um momento para considerar a bela obra de Wulfgar.
— Você é um bom ferreiro, com uma boa impressão da pedra, mas não pertence à
caverna de um anão. É hora de sentir o sol em seu rosto novamente.
— Liberdade? — sussurrou Wulfgar.
— Tire a ideia da cabeça! — rebateu Bruenor. Ele apontou um dedo curto para o
bárbaro e rosnou ameaçadoramente. — Você é meu até os últimos dias do outono,
não se esqueça disso!
Wulfgar teve que morder o lábio para conter uma risada. Como sempre, a
combinação desajeitada de compaixão e raiva do anão o confundia e o
desequilibrava. Já não era mais um choque, porém. Quatro anos ao lado de Bruenor
ensinaram-no a esperar, e desconsiderar, as repentinas explosões de grosseria.
— Termine o que quer que você tenha vindo fazer aqui — instruiu Bruenor. — Vou
levá-lo para conhecer seu professor amanhã de manhã, e por sua promessa, você vai
prestar atenção a ele como prestaria em mim!
Wulfgar fez uma careta ao pensar em servir a outro, mas aceitou sua servidão sob
Bruenor incondicionalmente por um período de cinco anos e um dia, e não se
desonraria ao voltar atrás em seu juramento. Acenou com a cabeça.
— Não vou mais te ver muito — continuou Bruenor —, então quero seu juramento
agora de que nunca mais erguerá uma arma contra o povo das Dez-Burgos.
Wulfgar se colocou com firmeza.
— Isso você pode não ter — respondeu corajosamente. — Quando eu tiver
cumprido os termos que você colocou para mim, sairei daqui como um homem de
livre vontade!
— Justo — admitiu Bruenor, com o orgulho teimoso de Wulfgar na verdade
aumentando o respeito do anão por ele. Parou por um momento para olhar o jovem
guerreiro orgulhoso e se viu satisfeito por sua própria parte no crescimento de
Wulfgar.
— Você quebrou aquele bastão fedorento na minha cabeça — Bruenor começou
timidamente. Ele limpou a garganta. Essa parte final deixou o severo anão
desconfortável. Não tinha certeza de como poderia passar por isso sem parecer
sentimental e tolo. — O inverno cairá rapidamente sobre você depois que seu
serviço terminar. Não posso mandá-lo para a natureza sem uma arma — ele voltou
para o corredor rapidamente e pegou o martelo de guerra.
— Presa de Égide — disse rispidamente enquanto o jogava para Wulfgar. — Não
colocarei vínculos em sua vontade, mas terei seu juramento, por minha própria boa
consciência, de que nunca erguerá esta arma contra o povo de Dez-Burgos!
Assim que suas mãos se fecharam ao redor do cabo de adamantita, Wulfgar sentiu o
valor do martelo de guerra mágico. As runas preenchidas por diamante pegaram o
brilho da forja e enviaram uma miríade de reflexos dançando pela sala. Os bárbaros
da tribo de Wulfgar sempre se orgulharam das belas armas que mantinham,
medindo o valor de um homem pela qualidade de sua lança ou espada, mas Wulfgar
nunca tinha visto nada que se comparasse com o requintado detalhe e a pura força
de Presa de Égide. Equilibrou-se tão bem em suas enormes mãos e sua altura e peso
se ajustaram tão perfeitamente que ele sentiu como se tivesse nascido para
empunhar tal arma. Disse a si mesmo que oraria por muitas noites aos deuses do
destino por entregar este prêmio a ele. Certamente mereciam seu agradecimento.
Assim como Bruenor.
— Você tem a minha palavra — gaguejou Wulfgar, tão dominado pelo magnífico
presente que mal conseguia falar. Ele se firmou para poder dizer mais, mas, quando
conseguiu tirar o olhar do magnífico martelo, Bruenor se fora.
O anão percorreu os longos corredores em direção aos seus aposentos particulares,
xingando sua fraqueza e esperando que nenhum de seus parentes viesse em sua
direção. Com um olhar cauteloso ao redor, limpou a umidade de seus olhos
cinzentos.
CAPÍTULO 13
Embora andasse entre gigantes e trolls, a estatura do orgulhoso rei bárbaro não
diminuiu. Ele caminhou desafiadoramente pela porta de ferro da torre negra e
empurrou os miseráveis guardas trolls com um rosnado ameaçador. Ele odiava esse
lugar de feitiçaria e decidira ignorar o chamado quando a torre singular apareceu no
horizonte como um dedo gelado subindo do solo plano. No entanto, no final, ele
não pôde resistir à convocação do mestre de Cryshal-Tirith.
Heafstaag odiava o mago. Por todas as medidas de sua tribo, Akar Kessell era fraco,
usando truques e conjurações demoníacas para fazer o trabalho do músculo. E
Heafstaag o odiava ainda mais porque não podia refutar o poder que o mago
comandava.
O rei bárbaro jogou de lado os fios de contas pendentes que separavam o auditório
particular de Akar Kessell no segundo andar da torre. O feiticeiro reclinava-se numa
enorme almofada de cetim no meio da sala, com as unhas compridas e pintadas
batendo impacientemente no chão. Várias meninas escravas nuas, com as mentes
dobradas e quebradas sob o domínio do fragmento, esperavam por cada capricho do
portador do fragmento.
Irritava a Heafstaag ver mulheres escravizadas por um arremedo de homem tão
insignificante e miserável. Ele considerou, e não pela primeira vez, uma investida
repentina, enterrando seu grande machado no fundo do crânio do mago. Mas a sala
estava repleta de telas e pilares estrategicamente localizados, e o bárbaro sabia,
mesmo se recusando a acreditar que a vontade do mago poderia apagar sua raiva,
que o demônio de estimação de Kessell não estaria longe de seu mestre.
— Que bom que você pôde se juntar a mim, nobre Heafstaag — disse Kessell de
uma maneira calma e desarmada. Errtu e Crenshinibon estavam por perto. Ele
sentia-se bastante seguro, mesmo na presença do robusto rei bárbaro. Ele acariciou
uma das escravas distraidamente, mostrando seu domínio absoluto. — Você deveria
ter vindo mais cedo. Muitas das minhas forças já estão reunidas; o primeiro grupo
de batedores já partiu.
Ele se inclinou na direção do bárbaro para enfatizar seu ponto.
— Se eu não puder encontrar espaço para o seu povo em meus planos — ele disse
com uma risadinha malvada —, então não terei necessidade alguma de vocês.
Heafstaag não recuou nem mudou em nada sua expressão.
— Venha agora, poderoso rei — o mago cantarolou — sente-se e compartilhe das
riquezas de minha mesa.
Heafstaag agarrou-se ao orgulho e permaneceu imóvel.
— Muito bem — rebateu Kessell. Ele cerrou o punho e pronunciou uma palavra de
comando. — A quem você deve sua fidelidade? — ele exigiu saber.
O corpo de Heafstaag ficou rígido.
— A Akar Kessell! — ele respondeu, para sua própria repulsa.
— E me diga de novo quem é que comanda as tribos da tundra.
— Elas me seguem — respondeu Heafstaag — e eu sigo Akar Kessell. Akar
Kessell comanda as tribos da tundra!
O mago soltou o punho e o rei bárbaro caiu para trás.
— Não fico feliz em fazer isso com você — disse Kessell, esfregando uma rebarba
em uma de suas unhas pintadas. — Não me faça fazer isso de novo.— ele puxou
um pergaminho de trás do travesseiro de cetim e jogou-o no chão. — Sente-se
diante de mim — instruiu Heafstaag. Fale de novo sobre sua derrota.
Heafstaag assumiu o seu lugar no chão em frente ao seu mestre e desenrolou o
pergaminho.
Era um mapa de Dez-Burgos.
CAPÍTULO 14
Olhos Lavanda
Pela primeira vez em quase cinco anos, Wulfgar olhou além das fronteiras das Dez-
Burgos para o trecho aberto do Vale do Vento Gélido que se estendia à sua frente.
Ele e o drow passaram o resto do primeiro dia juntos caminhando pelo vale e em
torno das esporas orientais do Sepulcro de Kelvin. Ali, logo acima da base do lado
norte da montanha, ficava a caverna rasa onde Drizzt morava.
Escassamente mobiliada com algumas peles e algumas panelas, a caverna não tinha
nenhum luxo, mas servia bem ao despretensioso drow ranger, permitindo-lhe a
privacidade e isolamento que preferia às provocações e ameaças dos humanos. Para
Wulfgar, cujo povo raramente ficava em qualquer lugar por mais de uma única
noite, a própria caverna parecia um luxo.
Quando o crepúsculo começou a se instalar sobre a tundra, Drizzt, nas sombras
confortáveis da caverna, despertou de seu curto cochilo. Wulfgar ficou satisfeito
pelo drow ter confiado nele o suficiente para dormir facilmente, tão vulnerável, em
seu primeiro dia juntos. Isso, junto com a surra que Drizzt lhe dera antes, levaram
Wulfgar a questionar sua indignação inicial ao ver um elfo negro.
— Começamos nossas sessões esta noite, então? — Drizzt perguntou.
— Você é o mestre — disse Wulfgar, amargo. — Eu sou apenas o escravo!
— Não mais um escravo do que eu — respondeu Drizzt. Wulfgar se virou para ele
com curiosidade.
— Ambos devemos ao anão — explicou Drizzt. — Devo minha vida a ele muitas
vezes e, portanto, concordei em ensinar-lhe minha habilidade em batalha. Você
segue um juramento que fez a ele em troca de sua vida. Assim, você é obrigado a
aprender o que tenho para ensinar. Eu não sou o mestre de ninguém, tampouco
desejaria ser.
Wulfgar tornou a ollhar para a tundra. Ele ainda não confiava totalmente em Drizzt,
embora não conseguisse descobrir que segundas intenções o drow poderia ter ao
manter a fachada amigável.
— Pagamos nossas dívidas com Bruenor juntos — disse Drizzt. Ele sentiu empatia
com as emoções que Wulfgar experimentava ao olhar pela planície de sua terra
natal pela primeira vez em anos. — Aproveite esta noite, bárbaro. Ande como
quiser e lembre-se novamente da sensação do vento em seu rosto. Vamos começar
ao anoitecer de amanhã.
Ele foi embora para dar a Wulfgar a privacidade que desejava.
Wulfgar não podia negar que apreciava o respeito que o drow lhe mostrara.
Durante o dia, Drizzt descansava nas sombras frescas da caverna enquanto Wulfgar
se acostumava à nova área e caçava para o jantar.
À noite, eles lutavam.
Drizzt pressionava o jovem bárbaro sem descanso, dando-lhe um tapa com a lateral
da lâmina da cimitarra toda vez que abria uma brecha em suas defesas. As trocas
muitas vezes escalavam perigosamente, pois Wulfgar era um guerreiro orgulhoso e
ficava enfurecido e frustrado com a superioridade do drow. Isso só colocava o
bárbaro em desvantagem, pois, em sua raiva, toda a aparência disciplinada sumia.
Drizzt foi rápido em apontar isso com uma série de tapas e torções que deixaram
Wulfgar esparramado no chão.
Para seu crédito, entretanto, Drizzt nunca insultou o bárbaro ou tentou humilhá-lo.
O drow seguia sua tarefa metodicamente, entendendo que a primeira coisa a se
fazer era aguçar os reflexos do bárbaro e ensinar-lhe alguma preocupação pela
defesa.
Drizzt ficou mesmo impressionado com a habilidade crua de Wulfgar. O incrível
potencial do jovem guerreiro o surpreendeu. A princípio, temia que o obstinado
orgulho e a amargura de Wulfgar o tornassem impossível de se treinar, mas o
bárbaro enfrentara o desafio. Reconhecendo os benefícios que poderia obter de
alguém tão hábil com as armas quanto Drizzt, Wulfgar ouvia com atenção. Seu
orgulho, em vez de limitá-lo a acreditar que já era um guerreiro poderoso e não
precisava de mais instrução, o empurrou para agarrar todas as vantagens que
pudesse encontrar para ajudá-lo a alcançar seus objetivos ambiciosos. No final da
primeira semana, quando conseguiu controlar seu temperamento volátil, ele já se
desviava de muitos dos ataques astutos de Drizzt.
Drizzt disse pouco durante a primeira semana, embora ocasionalmente
cumprimentasse o bárbaro por um bom bloqueio ou contra-ataque, e no geral, sobre
a melhora que Wulfgar estava mostrando em tão pouco tempo. Wulfgar se viu
esperando ansioso pelas observações do drow sempre que executava uma manobra
especialmente difícil, e temendo a inevitável bofetada sempre que ele se deixava
vulnerável.
O respeito do jovem bárbaro por Drizzt continuou a crescer. Alguma coisa sobre o
drow, vivendo sem reclamar em solidão estoica, tocou o senso de honra de Wulfgar.
Ainda não sabia por que Drizzt escolhera tal existência, mas tinha certeza do que já
vira do drow que tinha algo a ver com princípios.
No meio da segunda semana, Wulfgar tinha controle total de Presa de Égide,
torcendo a empunhadura e a cabeça habilmente para bloquear as duas cimitarras
que zumbiam e respondendo com seus próprios ataques medidos com cautela.
Drizzt podia ver a mudança sutil ocorrendo quando o bárbaro parou de reagir de
pronto aos cortes e estocadas habilidosos das cimitarras e passou a reconhecer suas
próprias áreas vulneráveis e a antecipar o próximo ataque.
Quando se convenceu de que as defesas de Wulfgar estavam suficientemente
fortalecidas, Drizzt começou as lições de ataque. O drow sabia que seu estilo de
ataque não seria o mais eficaz para Wulfgar. O bárbaro poderia usar sua força
inigualável com mais eficiência do que fintas e reviravoltas enganadoras. O povo de
Wulfgar era naturalmente agressivo, e o ataque era mais fácil para eles do que o
bloqueio. O poderoso bárbaro poderia derrubar um gigante com um único golpe
bem colocado.
Tudo o que ele ainda precisava aprender era paciência.
No início de uma noite escura e sem lua, enquanto se preparava para a aula da noite,
Wulfgar notou o clarão de uma fogueira na planície. Ele assistiu, hipnotizado,
quando várias outras surgiram de repente, imaginando se poderia ser as fogueiras de
sua própria tribo.
Drizzt aproximou-se silenciosamente, sem ser notado pelo bárbaro absorto. Os
olhos élficos do drow notaram os movimentos do acampamento distante muito
antes que a luz do fogo se tornasse forte o suficiente para Wulfgar ver.
— Seu povo sobreviveu — disse ele para confortar o jovem.
Wulfgar se assustou com a aparição repentina de seu professor.
— Você sabe deles? — ele perguntou.
Drizzt foi para o seu lado e ficou olhando a tundra.
— Suas perdas foram grandes na Batalha de Bryn Shander — disse. — E o inverno
que se seguiu foi muito difícil para as muitas mulheres e crianças que não tinham
homens para caçar por elas. Eles fugiram para o oeste para encontrar as renas,
unindo-se a outras tribos para se fortalecer. Os povos ainda se apegam aos nomes
das tribos originais, mas na verdade só restam duas: a Tribo do Alce e a Tribo do
Urso.
— Você era da Tribo do Alce, acredito — continuou Drizzt, recebendo um aceno de
Wulfgar. — Seu povo fez bem. Eles dominam a planície agora, e embora mais anos
tenham que passar antes que o povo da tundra recupere a força que possuía antes da
batalha, os guerreiros mais jovens já estão chegando à idade adulta.
Alívio inundou Wulfgar. Ele temia que a Batalha de Bryn Shander tivesse dizimado
seu povo a um ponto do qual eles nunca poderiam se recuperar. A tundra era duas
vezes mais rígida no inverno gelado, e Wulfgar frequentemente considerava a
possibilidade de que a súbita perda de tantos guerreiros – algumas das tribos haviam
perdido todos os seus homens – condenasse o povo restante a uma morte lenta.
— Você sabe muito sobre o meu povo — comentou Wulfgar.
— Passei muitos dias observando-os — explicou Drizzt, sabendo que linha de
pensamento o bárbaro estava traçando — aprendendo seus métodos e truques para
prosperar em uma terra tão hostil.
Wulfgar riu baixinho e sacudiu a cabeça, ainda mais impressionado com a sincera
reverência que o drow demonstrava sempre que falava dos nativos do Vale do Vento
Gélido. Conhecia o drow há menos de duas semanas, mas já entendia bem o caráter
de Drizzt Do’Urden para saber que sua próxima observação sobre o drow era fiel.
— Eu aposto que você até derrubou veados silenciosamente na escuridão, para ser
encontrado na luz da manhã por pessoas famintas demais para questionar sua boa
sorte.
Drizzt não respondeu nem mudou sua expressão, mas Wulfgar confiava em seu
palpite.
— Você sabe sobre Heafstaag? — o bárbaro perguntou depois de alguns momentos
de silêncio. — Ele era o rei da minha tribo, um homem de muitas cicatrizes e
grande renome.
Drizzt se lembrava bem do bárbaro caolho. A mera menção de seu nome enviou
uma dor surda ao ombro do drow, onde havia sido ferido pelo pesado machado do
enorme homem.
— Ele vive — Drizzt respondeu, de certa forma escondendo seu desprezo. —
Heafstaag fala por todo o norte agora. Ninguém de sangue real resta para opor-se a
ele em combate ou falar contra ele para mantê-lo sob controle.
— Ele é um rei poderoso — disse Wulfgar, indiferente ao veneno na voz do drow.
— Ele é um lutador selvagem — corrigiu Drizzt. Seus olhos lavanda perfuraram
Wulfgar, pegando o bárbaro completamente de surpresa com o súbito lampejo de
raiva. Wulfgar viu o caráter incrível naquelas poças violetas, uma força interior
dentro do drow cuja qualidade pura faria o mais nobre dos reis invejoso.
— Você se transformou em um homem à sombra de um anão de caráter irrefutável
— repreendeu Drizzt. — Você não ganhou nada com a experiência?
Wulfgar ficou perplexo e não conseguiu encontrar palavras para responder.
Drizzt decidiu que chegara a hora de desnudar os princípios do bárbaro e julgar a
sabedoria e o valor de ensinar o jovem.
— Um rei é um homem forte de caráter e convicção, que lidera pelo exemplo e
realmente se importa com o sofrimento de seu povo — ele lecionou. — Não um
bruto que governa só por ser o mais forte. Achei que você teria aprendido a
entender a diferença.
Drizzt notou o embaraço no rosto de Wulfgar e soube que os anos nas cavernas dos
anões abalaram as convicções em que o bárbaro crescera. Esperava que a crença de
Bruenor na consciência e princípios de Wulfgar fosse verdadeira, pois ele também,
como Bruenor anos antes, passara a reconhecer como o jovem inteligente era
promissor e descobriu que se importava com o futuro de Wulfgar. Ele se virou de
repente e partiu, deixando o bárbaro para encontrar as respostas para suas próprias
perguntas.
— A aula? — Wulfgar chamou-o, ainda confuso e surpreso.
— Você teve sua aula desta noite — respondeu Drizzt, sem se virar ou diminuir a
velocidade. — Talvez tenha sido a lição mais importante que ensinarei.
O drow desapareceu na escuridão da noite, embora a imagem distinta dos olhos
lavanda permanecesse impressa nos pensamentos de Wulfgar.
O bárbaro voltou-se novamente para a fogueira distante.
E refletiu.
CAPÍTULO 15
Do outro lado da montanha, Drizzt Do’Urden abriu os olhos de seu sono diurno.
Emergindo da caverna para a crescente penumbra, encontrou Wulfgar no lugar
habitual, meditativo sobre uma pedra alta, olhando para a planície.
— Você anseia por sua casa? — o drow perguntou retoricamente.
Wulfgar deu de ombros e respondeu, distraído:
— Talvez.
O bárbaro havia começado se perguntar coisas perturbadoras a respeito de seu povo
e seu modo de vida desde que aprendera a respeitar Drizzt. O drow era um enigma
para ele, uma combinação confusa de brilhantismo de luta e controle absoluto.
Drizzt parecia capaz de pesar todos os movimentos que já fizera nas escalas da alta
aventura e da moral indiscutível.
Wulfgar dirigiu um olhar interrogativo ao drow.
— Por que você está aqui? — perguntou de repente.
Agora era Drizzt quem olhava pensativo para o campo aberto diante deles. As
primeiras estrelas da noite apareceram, seus reflexos brilhando distintamente nas
profundezas escuras dos olhos do elfo. Mas Drizzt não as estava vendo; sua mente
vendo imagens antigas das cidades sem luz do drow em seus imensos complexos de
cavernas abaixo do solo.
— Eu me lembro — Drizzt recordou vividamente, pois memórias terríveis são
muitas vezes vívidas — da primeira vez que vi esse mundo da superfície. Eu era um
elfo muito mais jovem então, membro de um grande grupo de ataque. Saímos de
uma caverna secreta e descemos sobre uma pequena aldeia élfica — O drow se
encolheu com as imagens que voltaram a brilhar em sua mente. — Meus
companheiros massacraram todos os membros do clã dos elfos da floresta. Cada
mulher. Cada criança.
Wulfgar ouviu com crescente horror. O ataque que Drizzt estava descrevendo
poderia muito bem ter sido um perpetrado pela feroz Tribo do Alce.
— Meu povo mata — Drizzt continuou, sombrio. — Eles matam sem piedade. —
Travou seu olhar em Wulfgar para se certificar de que o bárbaro o ouvia bem. —
Eles matam sem paixão.
Ele parou por um momento para deixar o bárbaro absorver todo o peso de suas
palavras. A descrição simples, mas definitiva, dos assassinos frios confundira
Wulfgar. Ele havia sido educado e nutrido entre guerreiros apaixonados,
combatentes cujo propósito na vida era a busca da glória da batalha, lutando em
louvor a Tempus. O jovem bárbaro simplesmente não conseguia entender essa
crueldade sem emoção. Uma diferença sutil, porém, Wulfgar teve que admitir.
Drow ou bárbaro, os resultados dos ataques foram praticamente os mesmos.
— A deusa demoníaca que eles servem não deixa espaço para as outras raças —
explicou Drizzt. — Principalmente as outras raças de elfos.
— Mas você nunca chegará a ser aceito neste mundo — disse Wulfgar. — Você
sabe que os humanos sempre vão evitar você.
Drizzt assentiu.
— A maioria — ele concordou. — Tenho poucos que posso chamar de amigos,
ainda assim estou contente. Veja, bárbaro, tenho meu próprio respeito, sem culpa,
sem vergonha. — Ele se levantou de seu agachamento e começou a andar na
escuridão. — Venha — instruiu. — Vamos lutar bem esta noite, pois estou satisfeito
com a melhoria de suas habilidades e essa parte de suas lições se aproxima do fim.
Wulfgar ficou um momento a mais em contemplação. O drow vivia uma existência
rústica e materialmente vazia, mas era mais rico do que qualquer homem que
Wulfgar já conhecera. Drizzt tinha se agarrado aos seus princípios contra
circunstâncias esmagadoras, deixando o mundo familiar de seu próprio povo por
escolha própria para permanecer em um mundo onde nunca seria aceito ou
apreciado.
Ele olhou para o elfo que partia, agora uma mera sombra na escuridão.
— Talvez não sejamos tão diferentes — murmurou baixinho.
Covas Rasas
Mais tarde, uma pergunta foi feita por Drizzt enquanto ele e Wulfgar, descansando
sobre um joelho, consideravam os resultados de sua obra.
— O martelo? — ele perguntou.
Wulfgar olhou para Presa de Égide e deu de ombros.
— Eu não sei — respondeu honestamente. — Ele retornou à minha mão por sua
própria magia!
Drizzt sorriu para si mesmo. Ele sabia. Que maravilhosa a criação de Bruenor,
pensou. E quão profundamente o anão deve se importar com o garoto ter lhe dado
tal presente!
— Vinte verbeegs chegando — gemeu Wulfgar.
— E outros vinte já estão aqui — acrescentou Drizzt. — Vá imediatamente até
Bruenor — instruiu. — Esses três acabaram de chegar do covil; não vou ter muita
dificuldade em rastrear os passos deles e descobrir onde estão os outros!
Wulfgar acenou com a cabeça, embora olhasse preocupado para Drizzt. O arder
estranho que ele vira nos olhos do drow antes de atacar os verbeegs o deixara
inquieto. Ele não tinha certeza do quão ousado o elfo negro poderia ser.
— O que você pretende fazer quando encontrar o covil?
Drizzt não disse nada, mas sorriu ironicamente, aumentando a apreensão do
bárbaro. Finalmente, aliviou as preocupações do amigo.
— Encontre-me de volta neste ponto de manhã. Garanto que não vou começar a
diversão sem você!
— Devo voltar antes da primeira luz do amanhecer — respondeu Wulfgar, sombrio.
Ele girou e desapareceu na escuridão, avançando o mais rápido que pôde sob a luz
das estrelas.
Drizzt também se afastou, traçando o rastro dos três gigantes para o oeste através da
face do Sepulcro de Kelvin. Depois de um tempo, ouviu as vozes barítonas de
gigantes, e logo depois viu as portas de madeira construídas às pressas que
marcavam seu covil, astuciosamente escondidas atrás de um arbusto a meio
caminho de um contraforte rochoso.
Drizzt esperou pacientemente e logo viu uma segunda patrulha de três gigantes
emergir do covil. E mais tarde, quando eles retornaram, um terceiro grupo saiu. O
drow estava tentando descobrir se houve algum alarme devido à ausência da
primeira patrulha. Mas os verbeegs quase sempre eram indisciplinados e nada
confiáveis, e Drizzt se sentiu seguro com os pequenos trechos de conversa que
ouvira dizer que os gigantes supunham que seus companheiros desaparecidos
tinham se perdido ou simplesmente desertado. Quando o drow se afastou algumas
horas depois para definir seus próximos planos, estava confiante de que ainda tinha
o elemento surpresa.
Wulfgar correu a noite toda. Entregou sua mensagem a Bruenor e voltou para o
norte sem esperar que o clã fosse despertado. Seus grandes passos o levaram para a
rocha plana mais de uma hora antes da primeira luz, antes mesmo de Drizzt voltar
do covil. Ele voltou para trás do desfiladeiro para esperar, sua preocupação com o
drow crescendo a cada segundo que passava.
Finalmente, incapaz de aguentar o suspense por mais tempo, procurou a trilha dos
verbeegs e começou a segui-la em direção ao covil, determinado a descobrir o que
estava acontecendo. Não tinha andado seis metros quando uma mão o segurou na
parte de trás da cabeça. Reflexivamente, girou para encontrar seu atacante, mas seu
espanto se transformou em alegria quando viu Drizzt parado diante dele.
Drizzt havia retornado à rocha pouco depois de Wulfgar, mas ficara escondido,
observando o bárbaro para ver se o jovem guerreiro impulsivo confiaria em seu
pacto ou decidiria resolver o problema com as próprias mãos.
— Nunca duvide de um encontro marcado até que sua hora passe — o drow
repreendeu severamente, mesmo tocado pela preocupação do bárbaro por seu bem-
estar.
Qualquer resposta que pudesse ter vindo de Wulfgar foi interrompida, pois de
repente os dois companheiros ouviram um grito áspero de uma voz familiar.
— Traga-me um maldito gigante para matar! — Bruenor gritou da pedra plana perto
do riacho por detrás deles. Anões enfurecidos podiam viajar a uma velocidade
incrível. Em menos de uma hora, o clã de Bruenor se reunira e começou a perseguir
o bárbaro, quase acompanhando seu ritmo frenético.
— Olá — Drizzt chamou enquanto ia se juntar ao anão. Ele encontrou Bruenor
olhando para os três verbeegs mortos com satisfação sombria. Cinquenta anões com
elmos de ferro e prontos para a batalha, mais da metade do clã, estavam em volta do
líder.
— Elfo — Bruenor cumprimentou com sua consideração habitual. — Um covil, é?
Drizzt assentiu:
— A um quilômetro e meio a oeste, mas essa não é a sua maior preocupação. Os
gigantes não irão a lugar algum, mas estão esperando companhia ainda hoje.
— O garoto me disse — respondeu Bruenor. — Vinte deles de reforços! —
Balançou o machado casualmente. — De alguma forma, sinto que não vão
conseguir chegar ao covil! Alguma ideia de onde estão vindo?
— Norte e leste são os únicos caminhos — raciocinou Drizzt. — Em algum lugar
abaixo do Passo do Vento Gélido, ao norte de Lac Dinneshere. Seu povo vai
cumprimentá-los, então?
— É claro — respondeu Bruenor. — Eles vão passar por Queda do Vale com
certeza! — Um brilho cintilou nos olhos dele. — O que pretende fazer? — ele
perguntou a Drizzt. — E quanto ao garoto?
— O garoto fica comigo — insistiu Drizzt. — Ele precisa descansar. Vamos vigiar o
covil.
O brilho ansioso no olho de Drizzt deu a Bruenor a impressão de que o drow tinha
mais em mente do que assistir.
— Elfo doido — disse em voz baixa. — Provavelmente vai atacar todos sozinho!
— Olhou em volta, curioso, para os gigantes mortos. — E ganhar! — Bruenor
estudou os dois aventureiros, tentando combinar suas armas com os tipos de feridas
no verbeeg.
— O garoto derrubou dois — respondeu Drizzt à pergunta não formulada do anão.
Uma sugestão de um raro sorriso apareceu no rosto de Bruenor.
— Dois para um seu, né? Você está escorregando, elfo.
— Bobagem — retrucou Drizzt. — Eu reconheci que ele precisava da prática!
Bruenor sacudiu a cabeça, surpreso com a extensão do orgulho que sentia em
relação a Wulfgar, embora, é claro, não estivesse disposto a dizer ao garoto para que
isso subisse à cabeça dele.
— Você está escorregando! — falou de novo enquanto assumia mais uma vez sua
posição à frente do clã. Os anões cantaram um canto rítmico, uma velha melodia
que antigamente ecoava nos corredores prateados de sua pátria perdida.
Bruenor olhou de volta para seus dois amigos aventureiros e se perguntou
honestamente o que restaria do covil dos gigantes quando ele e seus companheiros
anões voltassem.
CAPÍTULO 17
Vingança
A patrulha de gigantes viajou para o sul por um breve momento, com Drizzt e
Wulfgar secretamente atrás deles. Os verbeegs não encontraram nenhum rastro
imediato dos gigantes desaparecidos e temiam que estivessem chegando muito
perto das minas dos anões, então voltaram rapidamente para o nordeste, na direção
geral da rocha onde a luta ocorrera.
— Devemos ir na direção deles em breve — disse Drizzt ao companheiro. —
Vamos nos aproximar de nossa presa.
Wulfgar assentiu. Pouco tempo depois, eles se aproximaram de uma área quebrada
de pedras irregulares, onde o caminho estreito se contorcia e virava de repente. O
chão estava ligeiramente inclinado para cima e os companheiros reconheciam que o
caminho que percorriam se deslocava até a borda de um pequeno abismo. A luz do
dia tinha desbotado o suficiente para fornecer alguma cobertura. Drizzt e Wulfgar
trocaram olhares cúmplices; chegara a hora da ação.
Drizzt, de longe o mais experiente em batalhas dos dois, rapidamente discerniu o
modo de ataque que oferecia a melhor chance de sucesso. Fez um gesto silencioso
para Wulfgar fazer uma pausa.
— Temos que atacar e nos afastar — ele sussurrou —, e depois atacar novamente.
— Não é uma tarefa fácil contra um inimigo cauteloso — disse Wulfgar.
— Eu tenho algo que pode nos ajudar. — O drow tirou a mochila das costas, sacou
a pequena estatueta e chamou sua sombra. Quando o felino maravilhoso apareceu
abruptamente, o bárbaro ofegou em horror e saltou para longe.
— Que demônio você conjurou? — ele gritou tão alto quanto ousou, fazendo os nós
dos dedos embranquecerem com a pressão de seu aperto em Presa de Égide.
— Guenhwyvar não é um demônio — assegurou Drizzt a seu companheiro. — Ela
é uma amiga e uma valiosa aliada. — A gata rosnou, como se entendesse, e Wulfgar
deu mais um passo para longe dela.
— Não é um animal natural — retrucou o bárbaro. — Eu não vou lutar ao lado de
um demônio conjurado com feitiçaria!
Os bárbaros do Vale do Vento Gélido não temiam nenhum homem nem fera, mas as
artes negras eram absolutamente estranhas para eles, e sua ignorância os deixava
vulneráveis.
— Se os verbeegs souberem a verdade sobre a patrulha desaparecida, Bruenor e os
seus estarão em perigo — disse Drizzt, sombrio. — A gata nos ajudará a parar este
grupo. Você permitirá que seus medos impeçam o resgate dos anões?
Wulfgar se endireitou e recuperou de sua compostura. O jogo de Drizzt com seu
orgulho e a ameaça muito real aos anões o estavam pressionando a deixar
temporariamente de lado sua repulsa pelas artes negras.
— Mande a fera embora, não precisamos de ajuda.
— Com a gata, com certeza pegaremos a todos. Não vou arriscar a vida do anão por
causa do seu desconforto — Drizzt sabia que levaria muitas horas para Wulfgar
aceitar Guenhwyvar como aliada, se é que isso aconteceria, mas, por enquanto, tudo
o que ele precisava era da cooperação dele no ataque.
Os gigantes estavam marchando a horas. Drizzt assistiu pacientemente enquanto sua
formação começava a se soltar, com um ou dois dos monstros ficando para trás dos
outros. As coisas estavam se encaixando bem como o drow esperava.
O caminho dava uma última volta entre duas pedras gigantescas, depois se alargava
consideravelmente e se inclinava de forma mais íngreme até a extensão final da
borda do abismo. Ali virava bruscamente e continuava ao longo da borda, uma
sólida parede de pedra de um lado e uma queda rochosa do outro. Drizzt fez sinal
para que Wulfgar ficasse pronto, depois mandou a grande gata entrar em ação.
O grupo de guerra, um bando de verbeegs com três ogros e uma dúzia de orcs ao
lado deles, movia-se a um passo fácil, alcançando Queda do Vale bem depois que a
noite caiu. Havia mais monstros do que os anões originalmente esperavam, mas eles
não estavam muito preocupados com os orcs e sabiam como lidar com os ogros. Os
gigantes eram a chave para esta batalha.
A longa espera não fez nada para temperar os nervos expostos dos anões. Ninguém
do clã havia dormido em quase um dia, e permaneciam tensos e ansiosos para
vingar seus parentes.
O primeiro dos verbeegs pisou no campo inclinado sem incidentes, mas quando o
último dos invasores atingiu os limites da zona de emboscada, os anões do Salão de
Mitral atacaram. O grupo de Bruenor investiu primeiro, saltando de seus buracos,
muitas vezes ao lado de um gigante ou orc e atacando o alvo mais próximo. Eles
miraram seus golpes para aleijar, usando o princípio básico da filosofia de luta
contra gigantes dos anões: a ponta afiada de um machado corta o tendão e os
músculos na parte de trás de um joelho, a cabeça chata de um martelo esmaga a
rótula na frente.
Bruenor derrubou um gigante com um balanço, depois se virou para fugir, mas se
viu de frente para a espada pronta de um orc. Não tendo tempo para trocar golpes,
Bruenor jogou a arma para o ar, gritando:
— Pensa rápido!
Os olhos do orc seguiram estupidamente o voo de distração do machado. Bruenor
atacou batendo a testa protegida com capacete no queixo da criatura, pegou o
machado quando caiu e saiu correndo pela noite, parando apenas por um segundo
para chutar o orc ao passar.
Os monstros foram pegos de surpresa, e muitos deles já estavam gritando no chão.
Então vieram as balistas. Virotes do tamanho de uma lança explodiram nas filas da
frente, derrubando gigantes para o lado e um no outro. Os besteiros saltaram de seu
esconderijo e lançaram uma barragem mortal, depois soltaram suas bestas e
investiram encosta abaixo. O grupo de Bruenor, agora lutando na formação em V,
correu de volta para a briga.
Os monstros nunca tiveram a chance de se reagrupar, e quando conseguiram
levantar suas armas em resposta, suas fileiras haviam sido dizimadas.
A Batalha de Queda do Vale acabou em três minutos.
Nenhum anão estava sequer gravemente ferido, e, dos invasores, apenas o orc que
Bruenor havia derrubado permanecia vivo.
Casa de Carranca
◆
Carranca enviou seu último soldado pela porta lateral secreta com uma mensagem
para Akar Kessell. O gigante imenso caíra em desgraça e sabia que o mago não
aceitaria prontamente a perda de tantas tropas valiosas. A única chance de Carranca
era cuidar dos dois guerreiros intrusos e esperar que suas cabeças apaziguassem seu
chefe impiedoso. O gigante pressionou o ouvido na porta e esperou que suas
vítimas entrassem na sala adjacente.
Wulfgar e Drizzt passaram pela segunda porta e chegaram a uma sala luxuosa, o
chão adornado com peles felpudas e travesseiros grandes e fofos. Duas outras portas
saíam da sala. Uma estava ligeiramente aberta, um corredor escurecido além, e a
outra estava fechada.
De repente, Wulfgar parou Drizzt com a mão estendida e fez sinal para que o drow
ficasse quieto. A qualidade intangível de um verdadeiro guerreiro, o sexto sentido
que lhe permitia sentir o perigo invisível, entrou em ação. Lentamente, o bárbaro
virou-se para a porta fechada e levantou Presa de Égide acima de sua cabeça. Ele
parou por um momento e inclinou a cabeça, esforçando-se para ouvir um som que
confirmasse suas suspeitas. Nenhum veio, mas Wulfgar confiava em seus instintos.
Ele rugiu para Tempus e lançou o martelo. Ele partiu a porta com um estalo
trovejante e derrubou as tábuas – e Carranca – no chão.
Drizzt notou o balanço da porta secreta aberta do outro lado da sala, além do chefe
gigante, e percebeu que o último dos gigantes deveria ter escapado. Rapidamente, o
drow pôs Guenhwyvar em movimento. A pantera também entendeu, pois correu
para longe, passando pela forma contorcida de Carranca com um grande salto, e
saiu da caverna para perseguir o verbeeg que escapava.
O sangue escorria pela lateral da cabeça do grande gigante, mas o osso grosso de
seu crânio havia repelido o martelo. Drizzt e Wulfgar olharam incrédulos quando o
imenso gigante de gelo sacudiu as papadas e se levantou para encontrá-los.
— Ele não pode fazer isso — reclamou Wulfgar.
— Este gigante é um teimoso — Drizzt deu de ombros.
O bárbaro esperou que Presa de Égide retornasse ao seu alcance, depois foi com o
drow encarar Carranca.
O gigante ficou na porta para impedir que qualquer um de seus inimigos o
flanqueasse enquanto Wulfgar e Drizzt se aproximavam confiantes. Os três
trocaram olhares ameaçadores e alguns ataques fáceis enquanto sentiam o estilo um
do outro.
— Você deve ser Carranca — Drizzt disse, curvando-se.
— Sou eu — proclamou o gigante. — Carranca! O último inimigo que seus olhos
verão!
— Tão confiante quanto teimoso — comentou Wulfgar.
— Humaninho — replicou o gigante — eu esmaguei uns cem do seu povo fracote!
— Mais um motivo para matarmos você — declarou Drizzt com calma.
Com velocidade e ferocidade repentinas que surpreenderam seus dois oponentes,
Carranca fez uma ampla varredura com seu enorme machado. Wulfgar recuou de
seu alcance mortal e Drizzt conseguiu se abaixar sob o golpe, mas o drow
estremeceu ao ver a lâmina do machado arrancando um pedaço de tamanho
considerável da parede de pedra.
Wulfgar pulou de volta para o monstro enquanto o machado passava por ele,
batendo no peito largo de Carranca com Presa de Égide. O gigante se encolheu, mas
levou o golpe.
— Tem que bater forte, fracote! — ele berrou enquanto lançava um poderoso golpe
vindo de trás com a parte chata do machado.
Novamente, Drizzt escorregou abaixo do golpe. Wulfgar, no entanto, cansado da
batalha como estava, não se moveu rápido o suficiente para sair do alcance. O
bárbaro conseguiu colocar Presa de Égide à frente dele, mas a força da arma pesada
de Carranca o esmagou contra a parede. Ele desabou no chão.
Drizzt sabia que estavam em apuros. Seu braço esquerdo permanecia inútil, seus
reflexos estavam diminuindo pela exaustão, e esse gigante era simplesmente
poderoso demais para conseguir bloquear seus golpes. Conseguiu fazer uma
estocada curta com sua cimitarra enquanto o gigante se recuperava para sua
próxima investida, e então correu em direção ao corredor principal.
— Corra, seu cão covarde! — rugiu o gigante. — Vou atrás e vou pegar você! —
Carranca correu atrás de Drizzt, farejando a matança.
O drow embainhou sua cimitarra quando chegou à passagem principal e procurou
um local para emboscar o monstro. Nada apareceu, então foi a meio caminho da
saída e esperou.
— Onde pode se esconder? — Carranca provocou quando seu enorme volume
entrou no corredor. Em prontidão nas sombras, o drow jogou suas duas facas.
Ambos acertaram o alvo, mas Carranca mal desacelerou.
Drizzt saiu da caverna. Ele sabia que, se Carranca não o seguisse, teria que voltar;
não podia deixar Wulfgar ali para morrer. Os primeiros raios da aurora encontravam
o caminho para a montanha e Drizzt temia que a luz crescente estragasse qualquer
chance de emboscada. Subindo uma das pequenas árvores que escondiam a saída,
puxou sua adaga.
Carranca correu para a luz do sol e olhou em volta, buscando sinais do drow em
fuga.
— Você está perto, cão miserável! Não tem pronde correr!
De repente, Drizzt estava em cima do monstro, arranhando seu rosto e pescoço
numa barragem de facadas e cortes. O gigante uivou de raiva e empurrou o corpo
volumoso para trás violentamente, enviando Drizzt, que não conseguiu se segurar
firme com o braço enfraquecido, voando de volta para dentro do túnel. O drow caiu
pesadamente sobre seu ombro machucado e quase desmaiou de agonia. Ele se
debateu e contorceu por um momento, tentando se levantar, mas esbarrou em uma
bota pesada. Ele sabia que Carranca não poderia ter chegado a ele tão rapidamente.
Virou-se lentamente de costas, imaginando de onde esse novo gigante tinha vindo.
Mas a visão do drow mudou drasticamente ao ver Wulfgar por cima dele, com Presa
de Égide firme em sua mão e um olhar soturno estampado em seu rosto. Wulfgar
não tirou os olhos do gigante enquanto este entrava no túnel.
— Ele é meu — disse o bárbaro sério.
Carranca estava mesmo hediondo. O lado de sua cabeça, onde o martelo o havia
golpeado, estava coberto de sangue escuro e seco, enquanto no outro, e em vários
pontos em seu rosto e pescoço, corria intensamente o sangue de novos ferimentos.
As duas facas que Drizzt jogara ainda estavam grudadas no peito do gigante como
medalhas mórbidas de honra.
— Você pode aguentar de novo? — Wulfgar desafiou quando enviou Presa de
Égide em um segundo voo na direção do gigante.
Em resposta, Carranca, desafiador, estufou o peito para bloquear o golpe.
— Aguento o que você tiver pra dar! — gabou-se.
Presa de Égide acertou e Carranca deu um passo para trás. O martelo tinha
quebrado uma costela ou duas, mas o gigante podia lidar com isso.
Mais mortal, porém, e sem que Carranca soubesse, Presa de Égide levara uma das
facas do Drizzt a encostar em seu coração.
— Posso correr agora — sussurrou Drizzt para Wulfgar quando viu o gigante
avançando de novo.
— Eu fico — o bárbaro insistiu sem o menor tremor de medo em sua voz.
Drizzt puxou a cimitarra.
— Bem falado, bravo amigo. Tombemos esta fera imunda, há comida para ser
comida!
— Vai ver que é fácil falar, não fazer! — retrucou Carranca. Ele sentiu um súbito
ardor no peito, mas apenas resmungou de dor. — Senti seus melhores golpes e
ainda avanço! Vocês não podem ganhar!
Tanto Drizzt quanto Wulfgar temiam que houvesse mais verdade nas bravatas do
gigante do que qualquer um deles admitiria. Eles estavam em suas últimas forças,
feridos e sem fôlego, mas determinados a permanecer e terminar a tarefa.
Porém, a total confiança do gigante, à medida que se aproximava, era mais do que
um pouco desconcertante.
Carranca percebeu que algo estava terrivelmente errado quando chegou a poucos
passos dos dois companheiros. Wulfgar e Drizzt também viram que o passo do
gigante de repente diminuía.
O gigante olhou para eles com indignação, como se tivesse sido enganado.
— Cães! — ofegou, com uma gota de sangue saindo de sua boca. — Que truque...
Carranca caiu morto sem outra palavra.
Notícias Sombrias
◆
Quando Drizzt retornou pelo covil, encontrou Wulfgar sentado com Guenhwyvar na
passagem principal, a poucos metros das portas da frente fechadas e gradeadas. O
bárbaro acariciava os ombros e pescoço musculosos da gata.
— Vejo que Guenhwyvar ganhou sua amizade — Drizzt disse ao se aproximar.
Wulfgar sorriu.
— Uma boa aliada — disse, dando ao animal uma sacudida brincalhona. — E uma
verdadeira guerreira! — Ele começou a se levantar, mas foi jogado violentamente
de volta ao chão.
Um tremor sacudiu o covil quando um tiro de balista bateu nas pesadas portas,
estilhaçando a barra de madeira e explodindo-as. Uma das portas quebrou-se ao
meio e a dobradiça superior da outra se partiu, deixando a porta pendurada
desajeitadamente pela dobradiça inferior torcida.
Drizzt sacou a cimitarra e ficou, protetor, na frente de Wulfgar enquanto o bárbaro
tentava recuperar o equilíbrio.
Abruptamente, um guerreiro barbudo saltou para a porta, com seu escudo circular
portando o estandarte de uma caneca de cerveja espumante pendurado em um braço
e um machado de batalha entalhado e ensanguentado posicionado no outro.
— Saiam para brincar, gigantes! — gritou Bruenor, batendo o escudo no machado,
como se o seu clã já não tivesse feito barulho suficiente para despertar o covil todo!
— Fique em paz, anão selvagem — riu Drizzt. — Os verbeegs estão todos mortos.
Bruenor avistou seus amigos e desceu para o túnel, logo seguido pelo resto do clã
barulhento.
— Todos mortos! — o anão gritou. — Droga, elfo, eu sabia que você ficaria com
toda a diversão!
— E quanto aos reforços? — Wulfgar perguntou.
Bruenor riu maliciosamente.
— Tenha fé, garoto. Eles estão jogados no mesmo buraco, embora o sepultamento
seja bom demais para eles, te digo! Apenas um vivo, um orc miserável que respirará
apenas enquanto mantiver aquela língua fedorenta solta!
Depois do episódio com o espelho, Drizzt estava mais do que um pouco interessado
em falar com o orc.
— Você já o interrogou? — ele perguntou a Bruenor.
— Ah, ele está mudo por enquanto — respondeu o anão. — Mas eu tenho algumas
coisas que podem fazê-lo falar!
Drizzt era mais esperto. Orcs não eram criaturas leais, mas sob o encantamento de
um mago, técnicas de tortura não costumavam ser muito boas. Eles precisavam de
algo para neutralizar a magia, e Drizzt tinha uma ideia do que poderia funcionar.
— Vá até Regis — ele instruiu Bruenor. — O halfling pode fazer o orc nos dizer
tudo o que queremos saber.
— Torturar seria mais divertido — lamentou Bruenor, mas também entendia a
sabedoria da sugestão do drow. Ele estava mais que um pouco curioso, além de
preocupado, com tantos gigantes trabalhando juntos. E agora com orcs ao lado
deles...
Drizzt e Wulfgar estavam sentados no canto mais distante da pequena câmara, tão
longe de Bruenor e dos outros dois anões quanto conseguiam. Uma das tropas de
Bruenor retornara de Bosque Solitário com Regis naquela mesma noite e, embora
estivessem exaustos de marchar e lutar, estavam ansiosos demais com a informação
para dormir. Regis e o orc cativo foram para a sala adjacente para uma conversa
particular assim que o halfling colocou o prisioneiro sob seu controle com o
pingente de rubi.
Bruenor se ocupou preparando uma nova receita – ensopado de cérebro de gigante –
fervendo os ingredientes miseráveis e malcheirosos em um crânio oco de verbeeg.
— Usem suas cabeças! — ele argumentara em resposta às expressões de horror e
nojo de Drizzt e Wulfgar. — Um ganso de curral tem um sabor melhor do que um
selvagem porque ele não usa seus músculos. O mesmo deve valer para o cérebro de
um gigante!
Drizzt e Wulfgar não viam assim. Eles não queriam deixar a área e perder qualquer
coisa que Regis pudesse ter a dizer, então se amontoaram no canto mais distante da
sala, mantendo uma conversa particular.
Bruenor se esforçou para ouvi-los, pois estavam falando de algo no qual ele tinha
mais do que um interesse passageiro.
— Metade para o último na cozinha — insistiu Wulfgar — e metade para a gata.
— E você só recebe metade pelo que está no buraco — retrucou Drizzt.
— Concordo — disse Wulfgar. — E nós dividimos o do corredor e Carranca?
Drizzt assentiu.
— Então, com todas as mortes compartilhadas somadas, são dez e meio para mim e
dez e meio para você.
— E quatro para a gata — acrescentou Wulfgar.
— Quatro para a gata — Drizzt ecoou. — Boa luta, amigo. Você se saiu bem até
agora, mas tenho a sensação de que temos muito mais combates diante de nós, e
minha maior experiência vai vencer no final!
— Você está ficando velho, bom elfo — brincou Wulfgar, recostando-se contra a
parede, a brancura de um sorriso confiante aparecendo em sua barba loura.
— Veremos. Veremos.
Bruenor também estava sorrindo, tanto pela competição bem-humorada entre seus
amigos quanto por seu orgulho contínuo pelo jovem bárbaro. Wulfgar estava indo
bem, acompanhando um veterano habilidoso como Drizzt Do’Urden.
Regis emergiu do quarto e a mortalha cinzenta em seu rosto normalmente jovial
matou a atmosfera leve.
— Temos problemas — disse o halfling de forma soturna.
— Onde está o orc? — Bruenor exigiu saber enquanto tirava o machado do cinto,
entendendo mal o que o halfling queria dizer.
— Ali. Ele está bem — respondeu Regis. O orc ficara feliz em contar para seu novo
amigo tudo sobre os planos de Akar Kessell de invadir Dez--Burgos e o tamanho
das forças que se reuniam. Regis tremia visivelmente ao contar a seus amigos a
notícia.
— Todas as tribos de orcs e goblins e clãs de verbeegs desta região da Espinha do
Mundo estão se unindo sob o controle de um mago chamado Akar Kessell — o
halfling começou a dizer. Drizzt e Wulfgar se entreolharam, reconhecendo o nome
de Kessell. O bárbaro pensara que Akar Kessell era um enorme gigante de gelo
quando o verbeeg falara dele, mas Drizzt suspeitava de algo diferente,
especialmente depois do incidente no espelho.
— Eles planejam atacar Dez-Burgos — Regis continuou. — E até mesmo os
bárbaros, liderados por algum líder poderoso e caolho, juntaram-se a suas fileiras!
O rosto de Wulfgar ficou vermelho de raiva e vergonha. Seu povo lutando ao lado
de orcs! Ele conhecia o líder ao qual Regis se referia, pois Wulfgar era da Tribo do
Alce e até mesmo ostentara o estandarte da tribo como arauto de Heafstaag. Drizzt
também se lembrou dolorosamente do rei caolho. Ele colocou uma mão
reconfortante no ombro de Wulfgar.
— Vão para Bryn Shander — disse o drow a Bruenor e Regis. — As pessoas devem
se preparar!
Regis se encolheu. Se a estimativa do orc sobre o exército que se reunia estivesse
correta, toda a Dez-Burgos unida não suportaria o ataque. O halfling baixou a
cabeça e murmurou silenciosamente, sem querer alarmar seus amigos mais do que
era necessário:
— Temos que ir embora!
Um Escravo de Ninguém
— SEM DISCUTIR — rosnou Bruenor, embora nenhum dos quatro amigos ao seu
lado nas encostas rochosas da subida tivesse intenção de falar contra a decisão. Em
sua tola mesquinhez, a maioria dos porta-vozes havia condenado suas comunidades
à destruição quase certa e Drizzt, Wulfgar, Cattibrie e Regis não esperavam que os
anões se unissem a uma causa tão irremediável.
— Quando você vai bloquear as minas? — perguntou Drizzt. O drow ainda não
havia decidido se ele se juntaria aos anões na prisão autoimposta de suas cavernas,
mas planejara agir como batedor de Bryn Shander pelo menos até o exército de
Akar Kessell vir para a região.
— Os preparativos começarão esta noite — disse Bruenor. — Mas quando que tudo
estiver no lugar, não vamos ter pressa. Vamos deixar os orcs fedorentos mirarem nas
nossas gargantas antes de derrubarmos os túneis e pegá-los na queda. Você vai ficar
conosco?
Drizzt deu de ombros. Embora ainda fosse evitado pela maioria das pessoas de Dez-
Burgos, o drow sentia um forte senso de lealdade e não sabia se conseguiria dar as
costas ao seu lar escolhido, mesmo em circunstâncias suicidas. E Drizzt tinha pouca
vontade de retornar ao submundo sem luz, mesmo nas cavernas hospitaleiras da
cidade dos anões.
— E qual é a sua decisão? — Bruenor perguntou a Regis.
O halfling também estava dividido entre seus instintos de sobrevivência e sua
lealdade a Dez-Burgos. Com a ajuda do rubi, vivera bem nos últimos anos em Maer
Dualdon. Mas agora sua cobertura havia sido arrancada. Depois dos rumores saídos
do conselho, todos em Bryn Shander sussurravam sobre a influência mágica do
halfling. Não demoraria muito para que todas as comunidades soubessem das
acusações de Kemp e o evitassem, ou até mesmo o acusassem abertamente. De
qualquer maneira, Regis sabia que seus dias de vida fácil em Bosque Solitário
estavam chegando ao fim.
— Obrigado pelo convite — disse a Bruenor. — Eu vou entrar antes que Kessell
chegue.
— Bom — respondeu o anão. — Você vai ter um quarto perto do quarto do garoto,
pra nenhum dos anões ter que ouvir sua barriga roncar! — ele deu a Drizzt uma
piscadela bem humorada.
— Não — disse Wulfgar. Bruenor olhou para ele com curiosidade, entendendo mal
as intenções do bárbaro e se perguntando por que ele se opunha a ter Regis ao seu
lado.
— Cuidado, garoto — brincou o anão. — Se você acha que deve ficar ao lado da
garota, vai ter que pensar em desviar a cabeça do meu machado!
Cattibrie riu baixinho, envergonhada, mas verdadeiramente tocada.
— Suas minas não são lugar para mim — disse Wulfgar de repente. — Minha vida
está na planície.
— Você esquece que sua vida é minha! — rebateu Bruenor. Na verdade, seus gritos
eram mais fruto do pavio curto de um pai do que da indignação de um mestre.
Wulfgar levantou-se diante do anão, orgulhoso e severo. Drizzt entendeu e ficou
satisfeito. Agora Bruenor também fazia ideia do que o bárbaro estava dizendo e,
embora odiasse pensar em separação, sentia mais orgulho do garoto naquele
momento do que nunca.
— Meu tempo de servidão não terminou — começou Wulfgar — no entanto, já
paguei minha dívida a você, meu amigo, e ao seu povo muitas vezes. Eu sou
Wulfgar! — proclamou orgulhosamente, com sua mandíbula firme e seus músculos
tensos. — Não mais um garoto, mas um homem! Um homem livre!
Bruenor sentiu os olhos ficando úmidos. Pela primeira vez, não fez nada para
esconder. Ele parou diante do imenso bárbaro e retribuiu o olhar inflexível de
Wulfgar com um olhar de sincera admiração.
— Você é — Bruenor observou. — Então eu poderia perguntar se, por sua escolha,
você ficaria e lutaria ao meu lado?
Wulfgar balançou a cabeça.
— Minha dívida com você foi paga, de verdade. E para sempre eu vou te chamar de
amigo. Um amigo querido. Mas tenho outra dívida ainda a pagar. — Olhou para o
Sepulcro de Kelvin e além. As inúmeras estrelas brilhavam claramente sobre a
tundra, fazendo a planície aberta parecer ainda mais vasta e vazia. — Lá fora, em
outro mundo!
Cattibrie suspirou e se mexeu, desconfortável. Só ela entendia completamente o
quadro vago que Wulfgar estava pintando. E não estava satisfeita com a escolha
dele.
Bruenor assentiu, respeitando a decisão do bárbaro.
— Vá, então e viva bem — disse ele, esforçando-se para manter sua voz embargada
firme enquanto ia na direção da trilha rochosa. Ele parou por um último momento e
olhou para o bárbaro jovem e alto. — Você é um homem, não há quem discuta isso
— disse por cima do ombro. — Mas nunca se esqueça de que você sempre será meu
garoto!
— Não irei — sussurrou Wulfgar suavemente enquanto Bruenor desaparecia no
túnel. Ele sentiu a mão de Drizzt em seu ombro.
— Quando você sai? — perguntou o drow.
— Hoje à noite — respondeu Wulfgar. — Estes dias sombrios não são divertidos.
— E para onde você vai? — perguntou Cattibrie, já sabendo da verdade, e também
da vaga resposta que Wulfgar daria.
O bárbaro voltou o olhar enevoado para a planície.
— Para casa.
Ele começou a descer a trilha, com Regis o seguindo. Mas Cattibrie esperou atrás e
fez sinal para Drizzt fazer o mesmo.
— Diga adeus a Wulfgar esta noite — disse ela ao drow. — Eu não acredito que ele
vá retornar.
— Lar é um lugar que ele deve escolher — respondeu Drizzt, supondo que as
notícias sobre Heafstaag se juntando a Kessell tivessem algo a ver com a decisão de
Wulfgar. Ele observou o bárbaro que partia com respeito. — Ele tem alguns
assuntos pessoais para tratar.
— Mais do que você sabe — disse Cattibrie. Drizzt olhou para ela com curiosidade.
— Wulfgar tem uma aventura em mente — explicou. Não pretendia quebrar a
confiança de Wulfgar, mas imaginou que Drizzt Do’Urden, acima de qualquer outra
pessoa, poderia encontrar uma maneira de ajudar.— Uma que acredito ter sido
colocada diante dele antes que estivesse pronto.
— Assuntos da tribo são problema dele — disse Drizzt, adivinhando o que a garota
estava sugerindo. — Os bárbaros têm seus próprios caminhos e não aceitam
estrangeiros.
— Das tribos, eu concordo — disse Cattibrie. — No entanto, o caminho de
Wulfgar, a menos que eu esteja enganada, não leva diretamente para casa. Ele tem
outra coisa diante dele, uma aventura que muitas vezes ele deu a entender, mas
nunca explicou completamente. Só sei que envolve um grande perigo e uma
promessa que mesmo ele teme estar acima de sua capacidade de cumprir sozinho.
Drizzt olhou para a planície estrelada e considerou as palavras da garota. Ele sabia
que Cattibrie era perspicaz e observadora além do que se podia esperar de sua
idade. Não duvidou dos palpites dela.
As estrelas brilhavam acima da noite fria, a cúpula celestial engolfando a borda
plana do horizonte. Um horizonte ainda não marcado pelo fogo de um exército que
avançava, observou Drizzt.
Talvez tivesse tempo.
Embora a proclamação de Cassius tenha atingido até a mais remota das cidades em
dois dias, poucos grupos de refugiados desciam as estradas para Bryn Shander.
Cassius já esperava por isso, ou nunca teria feito a ousada oferta de abrigar todos os
que viriam.
Bryn Shander era uma cidade de tamanho razoável, e sua população atual não era
tão grande quanto fora. Havia muitos prédios vazios dentro das muralhas e uma
seção inteira da cidade, reservada para as caravanas de comerciantes, estava
desocupada no momento. No entanto, se metade das pessoas das outras nove
comunidades buscasse refúgio, Cassius teria dificuldades em honrar sua promessa.
O porta-voz não estava preocupado. O povo de Dez-Burgos era um povo
endurecido e vivia sob a ameaça da invasão de goblins todos os dias. Cassius sabia
que seria necessário mais do que um aviso abstrato para fazê-los sair de seus lares.
E com a lealdade entre as cidades em um ponto tão baixo, poucos líderes das
cidades fariam alguma coisa para convencer seu povo a fugir.
No fim das contas, Glensather e Agorwal foram os únicos porta-vozes a chegar aos
portões de Bryn Shander. Quase todo Refúgio Leste estava atrás do líder, mas
Agorwal tinha menos da metade do povo de Termalaine atrás dele. Os rumores da
arrogante cidade de Targos, quase tão bem defendida quanto Bryn Shander,
deixaram claro que nenhum de seus habitantes partiria. Muitos dos pescadores de
Termalaine, temendo a vantagem econômica que os Targos obteriam sobre eles,
recusaram-se a desistir do mês mais lucrativo da temporada de pesca.
Esse também foi o caso de Caer-Konig e Caer-Dineval. Nenhum dos inimigos
declarados ousou dar qualquer vantagem ao outro, e nem uma única pessoa de
ambas as cidades fugiu para Bryn Shander. Para essas comunidades em conflito, os
orcs eram apenas uma ameaça distante, a ser enfrentada se algum dia se
concretizasse, mas a luta com seus vizinhos imediatos era brutalmente real e
evidente em suas rotinas diárias.
A oeste, a cidade de Bremen permaneceu ferozmente independente das outras
comunidades, vendo a oferta de Cassius como uma tentativa fraca de Bryn Shander
de reafirmar sua posição de liderança. Bom Prado e Toca de Dougan, ao sul, não
tinham intenção de se esconder na cidade murada ou de enviar tropas para ajudar no
combate. Essas duas cidades em Águas Rubras, o menor dos lagos e o mais pobre
em termos de trutas cabeça-dura, não podiam se dar ao luxo de passar qualquer
tempo longe dos barcos. Haviam atendido ao apelo à unidade cinco anos antes, sob
a ameaça de uma invasão bárbara, e, embora tivessem sofrido as piores perdas,
foram os que menos ganharam. Vários grupos chegaram de Bosque Solitário, mas
muitas pessoas da cidade mais ao norte preferiram ficar fora do caminho. O herói
deles havia perdido prestígio, e até Muldoon agora via o halfling sob uma luz
diferente e via o aviso de invasão como um mal-entendido ou talvez até uma farsa
calculada.
O bem maior da região caíra diante dos ganhos pessoais menores de um orgulho
teimoso, com a maioria das pessoas das Dez-Burgos confundindo unidade com
dependência.
Regis retornou a Bryn Shander para fazer alguns arranjos pessoais na manhã
seguinte à partida de Wulfgar. Ele tinha um amigo vindo de Bosque Solitário com
seus valiosos pertences, então permaneceu na cidade, observando consternado os
dias passarem sem nenhum preparo real sendo feito para enfrentar o exército
vindouro. Mesmo depois do conselho, o halfling tinha alguma esperança de que o
povo percebesse a destruição iminente e se unisse, mas agora acreditava que a
decisão dos anões de abandonar Dez-Burgos e se trancar em suas minas era a única
opção que tinham se quisessem sobreviver.
Regis culpou-se parcialmente pela tragédia que se aproximava, convencido de que
havia se descuidado. Quando ele e Drizzt planejaram usar situações políticas e o
poder do rubi para forçar as cidades a se unirem contra os bárbaros, passaram
muitas horas prevendo as respostas iniciais dos porta-vozes e avaliando o valor da
aliança de cada cidade. Dessa vez, porém, Regis havia depositado mais fé no povo
de Dez-Burgos e na pedra, imaginando que poderia simplesmente empregar seu
poder para influenciar qualquer um dos poucos que duvidassem da gravidade da
situação.
No entanto, Regis não pôde sustentar sua própria culpa ao ouvir as respostas
arrogantes e desconfiadas que vieram das cidades. Por que deveria ter que induzir
as pessoas a se defenderem? Se eles eram estúpidos o suficiente para deixar seu
próprio orgulho provocar sua destruição, então que responsabilidade, ou mesmo que
direito, ele tinha de resgatá-los?
— Você tem o que merece! — disse o halfling em voz alta, sorrindo apesar de tudo
quando percebeu que estava começando a soar tão cínico quanto Bruenor.
Mas a insensibilidade era sua única proteção contra uma situação em que estava tão
impotente. Ele esperava que seu amigo de Bosque Solitário chegasse em breve.
Seu santuário estava debaixo da terra.
ELE CORREU SOB O SOL BRILHANTE DO DIA, correu sob as estrelas pálidas
da noite, sempre com o vento leste no rosto. Suas pernas compridas e passos longos
o carregavam incansavelmente, um mero grão em movimento na planície vazia. Por
dias, Wulfgar forçou ao máximo os limites de sua resistência, caçando e comendo
enquanto corria, parando apenas quando a exaustão o derrubava.
Muito ao sul dele, saindo da Espinha do Mundo como uma nuvem tóxica de
vapores malcheirosos, vieram as forças de goblins e gigantes de Akar Kessell. Com
mentes dobradas pela força de vontade do Fragmento de Cristal, queriam apenas
matar, apenas destruir. Apenas agradar Akar Kessell.
A três dias do vale dos anões, o bárbaro se deparou com as trilhas desordenadas de
muitos guerreiros, todas levando a um destino comum. Ele ficou feliz por poder
encontrar seu povo com tanta facilidade, mas a presença de tantas trilhas dizia que
as tribos estavam se reunindo, fato que apenas enfatizava a urgência de sua missão.
Impulsionado pela necessidade, avançou.
Não era o cansaço, mas a solidão que era o maior inimigo de Wulfgar.
Ele lutou muito para manter seus pensamentos no passado durante longas horas,
recordando seu juramento ao pai morto e contemplando as possibilidades de suas
vitórias. Evitou qualquer pensamento sobre seu caminho atual, entendendo que o
puro desespero de seu plano acabaria com sua determinação.
No entanto, essa era sua única chance. Ele não era de sangue nobre e não tinha
Direitos de Desafio contra Heafstaag. Mesmo que derrotasse o rei escolhido,
ninguém de seu povo o reconheceria como líder. A única maneira de alguém como
ele legitimar uma reivindicação ao reinado tribal era através de um ato de
proporções heroicas.
Ele seguiu em direção ao mesmo objetivo que havia atraído muitos possíveis reis
antes dele para suas mortes. E, nas sombras atrás dele, navegando com a graciosa
facilidade que marcava sua raça, vinha Drizzt Do’Urden.
Sempre para o leste, em direção à Geleira Reghed e um lugar chamado Degelo
Eterno.
Em direção ao covil de Ingeloakastimizilian, o dragão branco que os bárbaros
simplesmente chamavam de “Morde Gélida”.
Parte 3
Cryshal Tirith
A Tumba de Gelo
◆
Wulfgar derrubou um cervo com um golpe de Presa de Égide e carregou o animal
pelos últimos quilômetros até Degelo Eterno. Já havia estado naquele lugar duas
vezes, mas quando chegou lá, sua estranha beleza roubou seu fôlego como sempre.
O ar acima da piscina estava coberto de vapor, e pedaços de gelo flutuavam pelas
águas enevoadas como navios fantasmas sinuosos. Os enormes pedregulhos que
cercavam a área eram especialmente coloridos, com tons variados de vermelho e
laranja, e estavam encapsulados em uma fina camada de gelo que pegava o fogo do
sol e refletia rajadas brilhantes de cores berrantes em contraste surpreendente com o
cinza morto da geleira enevoada. Era um lugar silencioso, protegido do choro
enlutado do vento por paredes de gelo e rocha, livre de qualquer distração.
Depois que seu pai foi morto, Wulfgar jurara, em homenagem a ele, fazer essa
jornada e realizar o sonho de seu pai. Agora ele se aproximava da piscina com
reverência e, embora outros assuntos o pressionassem, parou para refletir.
Guerreiros de todas as tribos da tundra haviam chegado a Degelo Eterno com as
mesmas esperanças. Ninguém nunca havia retornado.
O jovem bárbaro resolveu mudar isso. Firmou sua mandíbula orgulhosa e começou
a retirar o couro do cervo. A primeira barreira que teria que superar era a própria
piscina de água quente. Sob sua superfície, as águas eram enganosamente quentes e
confortáveis, mas quem emergisse da piscina para o ar seria congelado até a morte
em questão de minutos.
Wulfgar arrancou o couro do animal e começou a raspar a camada subjacente de
gordura. Ele a derreteu em uma pequena fogueira até atingir a consistência da tinta
espessa, depois a espalhou sobre cada centímetro do corpo. Respirando fundo para
se firmar e focar seus pensamentos na tarefa em mãos, ele pegou Presa de Égide e
entrou em Degelo Eterno.
Sob o véu mortal da névoa, as águas pareciam serenas, mas assim que se afastou
das margens, Wulfgar pôde sentir as fortes e agitadas correntes da água quente.
Usando uma saliência de pedra como guia, se aproximou do centro exato da piscina.
Uma vez lá, respirou fundo uma última vez. Confiante nas instruções de seu pai,
soltou-se nas correntes e deixou-se afundar na água. Desceu por um momento, e de
repente foi arrastado pelo fluxo principal em direção ao extremo norte da piscina.
Mesmo sob a névoa, a água estava nublada, forçando Wulfgar a confiar cegamente
que se soltaria da água antes que seu fôlego acabasse.
Ele estava a poucos metros da parede de gelo na beira da piscina antes que pudesse
ver o perigo. Ele se preparou para a colisão, mas a corrente de repente girou,
enviando-o mais fundo. A escuridão ficou total quando entrou em uma abertura
oculta sob o gelo, larga o suficiente apenas para ele passar, embora o fluxo
incessante do córrego não lhe desse opção.
Seus pulmões gritavam por ar. Ele mordeu o lábio para impedir que sua boca se
abrisse e lhe roubasse as últimas porções de precioso oxigênio.
Ele então entrou em um túnel mais amplo, onde a água escorria e caía abaixo do
nível de sua cabeça. Ele arfou, ávido por ar, mas ainda deslizava impotente na água
corrente.
Um perigo havia passado.
A corrente girou e revirava, e o rugido de uma cachoeira soou claramente à frente.
Wulfgar tentou reduzir a velocidade, mas não conseguiu encontrar um apoio para as
mãos ou para o corpo, pois o chão e as paredes eram de gelo alisado ao longo de
séculos de corrente. O bárbaro sacudiu loucamente, com Presa de Égide voando de
suas mãos enquanto tentava afundá-lo no gelo sólido sem conseguir. Ele entrou em
uma caverna larga e profunda e viu a queda diante dele.
Alguns metros além da crista da queda, havia vários pingentes de gelo enormes que
se estendiam do teto abobadado abaixo da linha de visão de Wulfgar. Ele viu sua
única chance. Quando se aproximou da borda da queda, saltou, envolvendo os
braços em torno de um dos pingentes de gelo. Escorregou logo, uma vez que o
pingente se afunilava, mas viu que se alargava novamente ao se aproximar do chão,
como se um segundo pingente tivesse crescido do chão para encontrá-lo.
Seguro por um momento, olhou pela caverna estranha, admirado. A cachoeira
capturou sua imaginação. Vapor subia do abismo, adicionando um sabor surrealista
ao espetáculo. O riacho transbordava sobre a queda, a maior parte continuando em
um pequeno desfiladeiro, apenas uma rachadura no chão a dez metros abaixo na
base da queda. As gotículas que se afastavam do desfiladeiro, no entanto, se
solidificavam quando se separavam do fluxo principal do córrego e ricocheteavam
em todas as direções ao atingir o chão de gelo da caverna. Ainda não
completamente endurecidos, os pedaços de gelo grudavam rapidamente onde
aterrissavam, e por toda a base da cachoeira havia pilhas estranhamente esculpidas
de gelo quebrado.
Presa de Égide voou sobre a queda, passando facilmente pelo pequeno abismo para
esmagar uma dessas esculturas, espalhando fragmentos de gelo. Embora seus
braços estivessem entorpecidos após escorregar no pingente, Wulfgar correu para o
martelo, que já congelava rapidamente onde havia aterrissado, e o soltou das garras
do gelo.
Sob o chão vítreo onde o martelo rachara as camadas superiores, o bárbaro notou
uma sombra escura. Ele a examinou mais de perto, depois se afastou da visão
cinzenta. Perfeitamente preservado, um de seus antecessores aparentemente havia
percorrido a longa queda, morrendo no gelo profundo onde pousara. Quantos
outros, pensou Wulfgar, haviam encontrado o mesmo destino?
Ele não teve tempo para contemplar mais. Uma de suas outras preocupações havia
sido dissipada, pois grande parte do teto da caverna ficava a apenas poucos metros
abaixo da superfície iluminada pelo dia e o sol encontrou seu caminho através das
partes que eram puramente gelo. Até o menor brilho que vinha do teto era refletido
mil vezes nos pisos e paredes que lembravam vidro, e toda a caverna parecia
explodir em rajadas de luz cintilantes.
Wulfgar sentia muito frio, mas a gordura derretida o protegera o suficiente. Ele
sobreviveria aos primeiros perigos da aventura.
Mas o espectro do dragão pairava em algum lugar à frente.
Vários túneis sinuosos saíam da câmara principal, esculpidos pelo córrego em dias
há muito passados, quando suas águas corriam mais forte. Porém, apenas um deles
era grande o suficiente para um dragão. Wulfgar pensou em procurar pelos outros
antes, para ver se poderia encontrar um caminho menos óbvio para o covil. Mas o
brilho e as distorções da luz e os incontáveis pingentes de gelo pendurados no teto
como os dentes de um predador o atordoavam, e ele sabia que se se perdesse ou
desperdiçasse muito tempo, a noite chegaria, roubando a luz e diminuindo a
temperatura abaixo até mesmo de sua considerável tolerância.
Então, ele bateu com Presa de Égide no chão para limpar qualquer gelo restante
ainda agarrado e começou a seguir adiante pelo túnel que acreditava que o levaria
ao covil de Ingeloakastimizilian.
Wulfgar deixou de lado a urgência de sua missão para fazer uma pausa e refletir
sobre suas emoções quando viu pela primeira vez o grande acampamento das tribos
reunidas. Cinco anos antes, orgulhosamente carregando o estandarte da Tribo do
Alce, o jovem Wulfgar marchara para uma reunião semelhante, cantando a Canção
de Tempus e compartilhando o hidromel forte com homens que lutariam, e
possivelmente morreriam, ao seu lado. Ele via a batalha de maneira diferente na
época, como um teste glorioso de um guerreiro.
— Selvageria inocente — ele murmurou, ouvindo a contradição das palavras ao
recordar sua ignorância naqueles dias há tanto tempo. Mas suas percepções
sofreram uma mudança considerável. Bruenor e Drizzt, tornando-se seus amigos e
ensinando-lhe os meandros de seu mundo, haviam humanizado as pessoas que ele
considerava anteriormente apenas como inimigos, forçando-o a enfrentar as
consequências brutais de suas ações.
A bile amarga brotou na garganta de Wulfgar com o pensamento das tribos
lançando outro ataque contra Dez-Burgos. Ainda mais repulsivo era seu povo
orgulhoso marchando para a guerra ao lado de goblins e gigantes.
Ao se aproximar do perímetro, viu que não havia Hengorot, nenhum Salão do
Hidromel cerimonial em todo o acampamento. Uma série de pequenas tendas, cada
uma com os respectivos estandartes dos reis tribais, marcava o centro da
assembleia, cercado pelas fogueiras abertas de soldados comuns. Ao revisar os
estandartes, Wulfgar pôde ver que quase todas as tribos estavam presentes, mas sua
força combinada era pouco mais da metade do tamanho da assembleia de cinco
anos atrás. As observações de Drizzt de que os bárbaros ainda não haviam se
recuperado do massacre nas encostas de Bryn Shander soaram dolorosamente
verdadeiras.
Dois guardas saíram para encontrar Wulfgar. Ele não fez nenhuma tentativa de
esconder sua abordagem, colocou Presa de Égide a seus pés e levantou as mãos para
mostrar que suas intenções eram honradas.
— Quem é você que vem sem acompanhante e sem convite ao conselho de
Heafstaag? — perguntou um dos guardas. Ele avaliou o estranho, impressionado
com a força óbvia de Wulfgar e pela arma poderosa que estava a seus pés. —
Certamente você não é um mendigo, nobre guerreiro, e ainda assim é desconhecido
para nós.
— Sou conhecido por você, Revjak, filho de Jorn, o Vermelho — respondeu
Wulfgar, reconhecendo o homem como um membro da tribo. Sou Wulfgar, filho de
Beornegar, guerreiro da Tribo do Alce. Fui perdido por vocês cinco anos atrás,
quando marchamos contra Dez-Burgos – explicou ele, escolhendo cuidadosamente
suas palavras para evitar o assunto de sua derrota. Os bárbaros não falavam de
lembranças tão desagradáveis.
Revjak estudou o jovem de perto. Ele era amigo de Beornegar e lembrava-se do
garoto, Wulfgar. Ele contou os anos, comparando a idade do garoto quando o viu
pela última vez com a idade aparente desse jovem. Logo ficou satisfeito ao
constatar que as semelhanças eram mais que coincidentes.
— Bem-vindo ao lar, jovem guerreiro! — disse calorosamente. — Você se saiu
bem!
— Foi mesmo — respondeu Wulfgar. — Vi coisas grandes e maravilhosas e aprendi
muitas coisas sábias. Muitas são as histórias que irei contar, mas, na verdade, não
tenho tempo para conversar ociosamente. Eu vim ver Heafstaag.
Revjak assentiu e começou a guiar Wulfgar pelas fileiras de fogueiras.
— Heafstaag ficará feliz com o seu retorno.
Baixo demais para ser ouvido, Wulfgar respondeu:
— Não tão feliz.
O suor frio no rosto de Heafstaag revelou sua tensão enquanto ele limpava as
últimas rebarbas da cabeça de seu enorme machado.
— A Ruína do Dragão! — bufou sem convicção ao seu porta-estandarte, que
acabara de entrar na tenda. — Mais provável que tenha tropeçado em um verme
adormecido!
— Perdão, rei poderoso — disse o jovem. — Revjak me enviou para lhe dizer que o
momento marcado está chegando.
— Bom! — zombou Heafstaag, passando o polegar pela borda brilhante do
machado. — Ensinarei o filho de Beornegar a respeitar seu rei!
Os guerreiros da Tribo do Alce formaram um círculo ao redor dos combatentes.
Embora este fosse um evento particular para o povo de Heafstaag, as outras tribos
assistiam com interesse a uma distância respeitável. O vencedor não teria
autoridade formal sobre eles, mas seria o rei da tribo mais poderosa e dominante da
tundra.
Revjak entrou no círculo e ficou entre os dois oponentes.
— Eu proclamo Heafstaag! — ele gritou. — Rei da Tribo do Alce! — continuou a
ler a longa lista de atos heroicos do rei caolho.
A confiança de Heafstaag pareceu retornar durante a recitação, embora ele estivesse
confuso e zangado por Revjak ter escolhido proclamá-lo primeiro. Colocou as mãos
nos quadris largos e olhou em volta ameaçadoramente para os espectadores mais
próximos, sorrindo ao se afastarem dele, um por um. Fez o mesmo com seu
oponente, mas novamente suas táticas de ameaça não conseguiram intimidar
Wulfgar.
— E proclamo Wulfgar — continuou Revjak — filho de Beornegar e desafiador do
trono da Tribo do Alce! — A recitação da lista de Wulfgar levou muito menos
tempo do que a de Heafstaag, é claro. Mas a ação final que Revjak proclamou
trouxe um certo grau de paridade aos dois.
— A Ruína do Dragão! — gritou Revjak, e a multidão, respeitosamente silenciosa
até esse ponto, passou a contar com entusiasmo os numerosos rumores que haviam
começado sobre a vitória de Wulfgar sobre Morte Gélida.
Revjak olhou para os dois combatentes e saiu do círculo.
O momento de honra havia chegado para eles.
Eles andavam pelo círculo de batalha, observando cautelosamente e medindo um ao
outro por indícios de fraqueza. Wulfgar notou a impaciência no rosto de Heafstaag,
uma falha comum entre os guerreiros bárbaros. Ele seria do mesmo jeito, não fosse
pelas lições francas de Drizzt Do’Urden. Mil tapas humilhantes das cimitarras dos
drow haviam ensinado a Wulfgar que o primeiro golpe não era tão importante
quanto o último.
Finalmente, Heafstaag bufou e, com um rugido, avançou. Wulfgar também rosnou
alto, movendo-se como se fosse encarar o ataque de frente. Mas então se desviou no
último momento e Heafstaag, puxado pelo impulso de sua arma pesada, passou aos
tropeços por seu inimigo e foi direto na primeira fila de espectadores.
O rei de um olho só se recuperou rápido e recuou, duplamente enfurecido, ou pelo
menos Wulfgar acreditava. Heafstaag fora rei por muitos anos e lutara em inúmeras
batalhas. Se nunca tivesse aprendido a ajustar sua técnica de luta, teria sido morto
há muito tempo. Ele foi até Wulfgar novamente, parecendo mais fora de controle do
que da primeira vez. Mas quando Wulfgar saiu do caminho, encontrou o grande
machado de Heafstaag esperando por ele. O rei de um olho só, antecipando a
esquiva, balançou a arma para o lado, fazendo um corte no braço de Wulfgar do
ombro ao cotovelo.
Wulfgar reagiu rapidamente, empurrando Presa de Égide defensivamente para
impedir qualquer ataque subsequente. Ele tinha pouco peso por detrás do balanço,
mas sua mira era boa e o poderoso martelo fez Heafstaag dar um passo atrás.
Wulfgar levou um momento para examinar o sangue em seu braço.
Ele poderia continuar a luta.
— Você bloqueia bem — Heafstaag rosnou quando se afastou a poucos passos de
seu desafiante. — Você teria servido bem ao nosso povo nas fileiras. É uma pena ter
que te matar!
Mais uma vez o machado entrou em ação, lançando golpe após golpe em um ataque
furioso com o objetivo de terminar a luta rapidamente.
Mas, comparado às lâminas sibilantes de Drizzt Do’Urden, o machado de Heafstaag
parecia mover-se lentamente. Wulfgar não teve problemas em desviar os ataques,
mesmo contra-atacando de vez em quando com um soco medido que batia no peito
largo de Heafstaag.
Sangue de frustração e cansaço avermelhou o rosto do rei caolho.
— Um oponente cansado geralmente se move com toda a sua força de uma vez —
Drizzt havia explicado a Wulfgar durante as semanas de treinamento. — Mas
raramente se move na direção aparente, em que ele pensa que você pensa que está
se movendo.
Wulfgar observou atentamente a finta esperada.
Resignado por não conseguir romper as defesas hábeis de seu inimigo mais jovem e
mais rápido, o rei suado ergueu o grande machado por cima da cabeça e avançou,
gritando loucamente para enfatizar o ataque.
Mas os reflexos de Wulfgar foram aperfeiçoados até o seu melhor ponto de combate
e a ênfase exagerada que Heafstaag colocou no ataque disse-lhe que esperasse uma
mudança de direção. Ele levantou Presa de Égide como se quisesse bloquear o
golpe fingido, mas inverteu sua pegada enquanto o machado caía do ombro de
Heafstaag e vinha enganosamente baixo em um golpe lateral.
Confiando plenamente em sua arma anã, Wulfgar moveu o pé da frente para trás,
virando-se para encontrar a lâmina que se aproximava com uma posição igualmente
angulada de Presa de Égide.
As cabeças das duas armas se chocaram com força incrível. O machado de
Heafstaag quebrou em suas mãos, e as violentas vibrações o derrubaram.
Presa de Égide estava ileso. Wulfgar poderia facilmente ter se aproximado e
finalizado Heafstaag com um único golpe.
Revjak apertou o punho em antecipação à vitória iminente de Wulfgar.
— Nunca confunda honra com estupidez! — Drizzt havia repreendido Wulfgar após
sua perigosa inação com o dragão. Mas Wulfgar queria mais desta batalha do que
simplesmente ganhar a liderança de sua tribo; queria deixar uma impressão
duradoura em todas as testemunhas. Ele jogou Presa de Égide no chão e se
aproximou de Heafstaag em termos justos.
O rei bárbaro não questionou sua boa sorte. Ele saltou para Wulfgar, apertando os
braços ao redor do homem mais jovem, na tentativa de levá-lo de costas ao chão.
Wulfgar se inclinou para frente para enfrentar o ataque, plantando as pernas
poderosas com firmeza e parou o homem mais pesado.
Eles lutaram violentamente, trocando golpes pesados antes de conseguir se prender
um ao outro perto o suficiente para tornar os socos ineficazes. Os olhos de ambos os
combatentes estavam roxos e inchados, hematomas e cortes brotavam no rosto e no
peito.
Heafstaag estava mais cansado, porém, com seu peito largo arfando a cada
respiração difícil. Ele passou os braços em volta da cintura de Wulfgar e tentou
novamente lançar seu oponente implacável ao chão.
Os longos dedos de Wulfgar se prenderam aos lados da cabeça de Heafstaag. Os nós
dos dedos do jovem embranqueceram, os músculos enormes em seus braços e
ombros se contraíram. Ele começou a apertar.
Heafstaag soube que estava com problemas, pois o aperto de Wulfgar era mais
poderoso que o de um urso branco. O rei se debateu, com seus punhos enormes
batendo nas costelas do bárbaro mais jovem, esperando quebrar a concentração
mortal de Wulfgar.
Dessa vez, uma das lições de Bruenor o estimulou:
— Pense na doninha, garoto, aceite os golpes menores, mas nunca, nunca deixe que
escapem depois de agarrar! — Os músculos do pescoço e dos ombros estavam
inchados quando ele levou o rei caolho a ficar de joelhos.
Horrorizado com o poder do aperto, Heafstaag puxou os antebraços duros do
jovem, tentando em vão aliviar a pressão crescente.
Wulfgar percebeu que estava prestes a matar alguém de sua tribo.
— Renda-se! — ele gritou para Heafstaag, procurando uma alternativa mais
aceitável.
O rei orgulhoso respondeu com um soco final.
Wulfgar voltou os olhos para o céu.
— Eu não sou como ele! — gritou impotente, justificando-se a quem quisesse ouvir.
Mas havia apenas um caminho para ele.
Os enormes ombros do jovem bárbaro se avermelharam quando o sangue bombeou
através deles. Ele viu o terror nos olhos de Heafstaag transcender para
incompreensão. Ele ouviu um estalo de osso, sentiu o crânio esmagar sob suas
poderosas mãos.
Revjak deveria ter entrado no círculo e anunciado o novo rei da Tribo do Alce.
Mas, como as outras testemunhas ao seu redor, ficou parado, de pé, sem piscar, com
sua boca aberta.
Ajudado pelas rajadas de vento frio nas costas, Drizzt acelerou pelos últimos
quilômetros até Dez-Burgos. Na mesma noite em que se separou de Wulfgar, a
ponta coberta de neve do Sepulcro de Kelvin apareceu. A visão de sua casa levou o
drow adiante ainda mais rápido, mas uma sugestão persistente no limite de seus
sentidos lhe dizia que algo estava fora do normal. Um olho humano nunca poderia
ter percebido, mas a visão noturna aguçada do drow finalmente o esclareceu, um
crescente pilar de escuridão apagando as estrelas mais baixas do horizonte ao sul da
montanha. E uma segunda coluna menor, ao sul da primeira.
Drizzt parou subitamente. Ele apertou os olhos para ter certeza de seu palpite. Então
começou a andar de novo, lentamente, precisando de tempo para encontrar um
caminho alternativo que poderia seguir.
Caer-Konig e Caer-Dineval estavam queimando.
Capítulo 23
Sitiados
As frotas de Maer Dualdon e Águas Rubras haviam retornado aos seus portos assim
que perceberam o que estava acontecendo. Encontraram suas famílias seguras no
momento, exceto pelos pescadores de Termalaine que navegaram para uma cidade
deserta. Tudo o que os homens de Termalaine tinham quando relutantemente
voltaram para o lago era a esperança de que seus parentes tivessem chegado a Bryn
Shander ou algum outro santuário, pois viram o flanco norte do exército de Kessell
atravessando o campo em direção à sua cidade condenada
Targos, a segunda cidade mais forte e a única além de Bryn Shander com alguma
esperança de se manter por algum tempo contra o vasto exército, convidou os
navios de Termalaine a aportarem em suas docas. E os homens de Termalaine, que
em breve estariam entre os sem-teto, aceitaram a hospitalidade de seus amargos
inimigos ao sul. Suas disputas com o povo de Kemp pareciam mesquinhas com o
peso do desastre que havia acontecido nas cidades.
Cryshal-Tirith
Em Maer Dualdon, Kemp reprimiu sua raiva enquanto observava sua cidade cair
em chamas. Rostos enegrecidos de fuligem olhavam para as ruínas em chamas com
descrença horrorizada, gritando e chorando por seus amigos e parentes perdidos.
Mas, como Cassius, Kemp converteu seu desespero em raiva construtiva. Assim
que soube da força de goblins que partia para Bremen, despachou seu navio mais
rápido para avisar às pessoas daquela cidade distante e informá-los dos
acontecimentos do outro lado do lago. Então enviou um segundo navio em direção
a Bosque Solitário para pedir comida e curativos, e talvez um convite para atracar.
Apesar de suas diferenças óbvias, os porta-vozes de Dez-Burgos eram parecidos de
muitas formas. Como Agorwal, que ficara feliz em sacrificar tudo para o bem do
povo, e Jensin Brent, que se recusava a ceder ao desespero, Kemp de Targos
começou a reunir seu povo para um ataque de retaliação. Ele ainda não sabia como
iria realizar tal feito, mas sabia que não tinha tido sua última palavra na guerra do
mago.
E, posicionado na muralha de Bryn Shander, Cassius também sabia.
Capítulo 25
Errtu
Do outro lado do vale, na torre mágica, Errtu estava agachado em um canto sombrio
do harém de Kessell, mantendo sua guarda sempre vigilante sobre o mago maligno
que brincava com as garotas já sem mente. Um fogo ardente de ódio ardeu nos
olhos de Errtu enquanto olhava para o tolo Kessell. O mago quase arruinara tudo
com sua demonstração de poder naquela tarde e sua recusa em derrubar as torres
vazias atrás dele, drenando ainda mais a força de Crenshinibon.
Errtu ficou terrivelmente satisfeito quando Kessell voltou a Cryshal-Tirith e
confirmou, através do uso dos espelhos, que as outras duas torres haviam se
despedaçado. Errtu alertara Kessell contra erguer uma terceira torre, mas o mago,
de ego frágil, se tornava mais teimoso a cada dia de campanha, vendo os conselhos
do demônio, ou mesmo de Crenshinibon, como uma manobra para minar seu
controle absoluto.
Logo, Errtu foi bastante receptivo, até aliviado, ao ouvir o chamado de Drizzt
flutuando pelo vale. A princípio, negou a possibilidade de tal convocação, mas as
inflexões de seu nome verdadeiro sendo pronunciadas em voz alta provocaram
arrepios involuntários ao longo da espinha do demônio. Mais intrigado do que
irritado com a impertinência de um mortal que ousasse pronunciar seu nome, Errtu
se afastou do mago distraído e foi para fora de Cryshal-Tirith.
O chamado veio novamente, cortando através da harmoniosa da canção
interminável do vento como uma onda quebrando em um lago calmo.
Errtu abriu suas grandes asas e voou para o norte sobre a planície, acelerando em
direção ao invocador. Goblins aterrorizados fugiram da escuridão da sombra
passageira do demônio, pois mesmo no brilho fraco de uma lua fina, a criatura do
Abismo deixava um rastro escuro que fazia a noite parecer brilhante em
comparação.
Drizzt respirou fundo. Ele sentiu a aproximação infalível do demônio enquanto se
afastava do Caminho de Bremen e varria as encostas mais baixas do Sepulcro de
Kelvin. Guenhwyvar levantou a cabeça das patas e rosnou, também sentindo a
aproximação do monstro maligno. A gata se abaixou para o fundo da borda
profunda e ficou parada e imóvel, esperando o comando de seu mestre, confiante de
que suas habilidades aumentadas de furtividade poderiam protegê-lo mesmo contra
os sentidos altamente desenvolvidos de um demônio.
As asas de couro de Errtu dobraram-se firmemente quando pousaram na borda. Ele
imediatamente identificou a localização exata do invocador e, embora tivesse que
dobrar seus ombros largos para passar pela estreita entrada, passou direto, com a
intenção de apaziguar sua curiosidade e depois matar o tolo blasfemo que ousava
dizer seu nome em voz alta.
Drizzt lutou para manter seu controle quando o enorme demônio entrou, seu volume
preenchendo a pequena área além de seu pequeno santuário, bloqueando a luz das
estrelas diante dele. Não havia como voltar atrás de seu curso perigoso. Ele não
tinha para onde correr.
O demônio parou de repente, espantado. Fazia séculos desde que Errtu tinha olhado
para um drow, e certamente nunca esperava encontrar um na superfície, nas terras
congeladas do norte mais distante.
De alguma forma, Drizzt encontrou sua voz.
— Saudações, mestre do caos — disse calmamente, curvando-se. — Sou Drizzt
Do’Urden, da casa de Daermon N’a’shezbaernon, nona família do trono de
Menzoberranzan. Bem-vindo ao meu humilde acampamento.
— Você está muito longe de casa, drow — disse o demônio com suspeita óbvia.
— Assim como você, grande demônio do Abismo — Drizzt respondeu friamente.
— E atraído para este canto alto do mundo por razões semelhantes, a menos que
meu palpite esteja errado.
— Eu sei por que estou aqui — respondeu Errtu. — Os negócios dos drow já estão
além do que eu entenda ou me importe.
Drizzt acariciou seu queixo esbelto e riu com confiança fingida. Seu estômago
parecia amarrado e sentiu o começo de um suor frio chegando. Riu de novo e lutou
contra o medo. Se o demônio sentisse sua inquietação, sua credibilidade seria
grandemente diminuída.
— Ah, mas desta vez, pela primeira vez em muitos anos, parece que as estradas de
nossos negócios se cruzaram, poderoso fornecedor da destruição. Meu povo tem
curiosidade, talvez até um interesse pessoal, no mago que você aparentemente
serve!
Errtu ergueu os ombros, com os primeiros tremores de uma chama perigosa
evidente em seus olhos vermelhos.
— Serve? — ecoou incrédulo, o tom uniforme de sua voz tremendo, como se
estivesse à beira de uma raiva incontrolável.
Drizzt foi rápido em qualificar sua observação.
— Por todas as aparências, guardião de intenções caóticas, o mago detém algum
poder sobre você. Certamente você trabalha ao lado de Akar Kessell!
— Não sirvo a humano nenhum! — Errtu rugiu, sacudindo o alicerce da caverna
com uma batida enfática de seu pé.
Drizzt se perguntou se a luta que não esperava vencer estava prestes a começar. Ele
pensou em chamar Guenhwyvar para que pudessem pelo menos acertar os
primeiros golpes.
Mas o demônio de repente se acalmou. Convencido de que havia adivinhado a
razão da presença inesperada dos drow, Errtu olhou com atenção para Drizzt.
— Servir o mago? — riu. — Akar Kessell é insignificante mesmo pelos baixos
padrões humanos! Mas você sabe disso, drow, e não ouse negar. Você está aqui,
como eu estou aqui, por Crenshinibon, e que se dane Kessel!
O olhar confuso no rosto de Drizzt era genuíno o suficiente para deixar Errtu
desequilibrado. O demônio ainda acreditava que tinha adivinhado corretamente,
mas não conseguia entender por que o drow não entendia o nome.
— Crenshinibon — explicou, varrendo a mão com garras para o sul. — Um bastião
antigo de poder indizível.
— A torre? — Drizzt perguntou.
A incerteza de Errtu borbulhou na forma de fúria explosiva.
— Não banque o ignorante comigo! — o demônio gritou. — Os senhores drow
conhecem bem o poder do artefato de Akar Kessell, caso contrário não teriam
aparecido à superfície para procurá-lo!
— Muito bem, você sabe a verdade — admitiu Drizzt. — No entanto, eu tinha que
ter certeza de que a torre na planície era realmente o artefato antigo que eu procuro.
Meus mestres mostram pouca piedade para espiões descuidados. — Errtu sorriu
maliciosamente ao se lembrar das câmaras de tortura profanas de Menzoberranzan.
Aqueles anos que passara entre os elfos negros foram mesmo agradáveis!
Drizzt rapidamente levou a conversa em uma direção que poderia revelar algumas
fraquezas de Kessell ou de sua torre:
— Uma coisa me deixou desconcertado, espectro impressionante do mal
desenfreado — começou, tomando o cuidado de continuar sua série de elogios sem
duplicação. — Com que direito esse mago possui Crenshinibon?
— Nenhum — disse Errtu. — Mago. Hah! Medido pelo seu próprio povo, ele é
apenas um aprendiz. Sua língua se contrai inquieta quando ele pronuncia até o mais
simples dos feitiços. Mas o destino costuma jogar esses jogos. E mais por diversão,
digo eu! Deixe Akar Kessell ter seu breve momento de triunfo. Os humanos não
vivem por muito tempo!
Drizzt sabia que estava indo por uma linha perigosa de perguntas, mas aceitava o
risco. Mesmo com um demônio maior parado a apenas três metros de distância,
Drizzt imaginou que suas chances de sobrevivência naquele momento eram
melhores do que as de seus amigos em Bryn Shander.
— Ainda assim, meus mestres estão preocupados que a torre possa ser prejudicada
na próxima batalha com os humanos — ele blefou.
Errtu levou outro momento para considerar Drizzt. A aparição dos elfos negros
complicava o plano simples do demônio de herdar Crenshinibon de Kessell. Se os
poderosos senhores drows da imensa cidade de Menzoberranzan realmente tinham
planos para a relíquia, o demônio sabia que eles a teriam. Certamente Kessell,
mesmo com o poder do fragmento por trás dele, não poderia resistir a eles. A mera
presença desse drow mudou as percepções do demônio sobre sua relação com
Crenshinibon. Como Errtu desejou que pudesse simplesmente devorar Kessell e
fugir com a relíquia antes que os elfos negros estivessem envolvidos demais!
No entanto, Errtu nunca considerou os drow como inimigos e o demônio passara a
desprezar o mago trapalhão. Talvez uma aliança com os elfos negros pudesse ser
benéfica para ambos os lados.
— Diga-me, campeão inigualável das trevas — Drizzt pressionou, — Crenshinibon
está em perigo?
— Ah! — bufou Errtu. — Até a torre, que é meramente um reflexo de
Crenshinibon, é impermeável. Ela absorve todos os ataques direcionados contra
suas paredes espelhadas e os reflete de volta à sua fonte! Apenas o cristal pulsante
da força, o próprio coração de Cryshal-Tirith, é vulnerável, e ele está escondido em
segurança.
— Dentro?
— É claro.
— Mas se alguém entrasse na torre — Drizzt argumentou — quão bem protegido
estaria o coração?
— Uma tarefa impossível — respondeu o demônio. — A menos que os pescadores
simples de Dez-Burgos tenham algum espírito a seu serviço. Ou talvez um sumo
sacerdote, ou um arquimago para tecer feitiços de revelação. Certamente seus
mestres sabem que a porta de Cryshal-Tirith é invisível e indetectável para
quaisquer seres inerentes ao plano atual sobre o qual a torre repousa. Nenhuma
criatura deste mundo material, incluindo sua raça, poderia entrar!
— Mas... — Drizzt pressionou ansiosamente.
Errtu o interrompeu:
— Mesmo se alguém tropeçasse na estrutura — ele rosnou, impaciente com o fluxo
implacável de suposições impossíveis — teria que passar por mim. E o limite do
poder de Kessell dentro da torre é considerável, pois o mago se tornou uma
extensão do próprio Crenshinibon, uma fonte viva da força insondável do
Fragmento de Cristal! O coração está além do ponto focal da interação de Kessell
com a torre e na ponta...
O demônio parou, subitamente desconfiado da linha de perguntas de Drizzt. Se os
senhores drow sabiam muito bem sobre Crenshinibon, por que não estavam mais
conscientes de seus pontos fortes e fracos?
Errtu entendeu seu erro então. Ele examinou Drizzt mais uma vez, mas com um
foco diferente. Quando encontrou o drow pela primeira vez, atordoado pela mera
presença de um elfo negro nessa região, procurara por enganação nos atributos
físicos do próprio Drizzt para determinar se seus traços de drow eram uma ilusão,
uma alteração de forma inteligente, porém simples, um truque ao alcance de um
mago menor.
Quando Errtu estava convencido de que um verdadeiro drow e nenhuma ilusão
estavam diante dele, havia aceitado a credibilidade da história de Drizzt como
consistente com as características dos elfos negros.
Agora, porém, o demônio vasculhou as pistas periféricas além da pele negra de
Drizzt, observando os itens que ele carregava e a área que havia apostado para a
reunião deles. Nada que Drizzt tivesse sobre sua pessoa, nem mesmo as armas
embainhadas em seus quadris, emanavam as distintas propriedades mágicas do
subterrâneo. Talvez os mestres drow tivessem equipado seus espiões de maneira
mais apropriada para o mundo da superfície, Errtu raciocinou. Pelo que aprendeu
dos elfos negros durante seus muitos anos de serviço em Menzoberranzan, a
presença desse drow certamente não era ultrajante.
Mas criaturas do caos sobreviviam por não confiar.
Errtu continuou sua busca por uma pista da autenticidade de Drizzt. O único item
que o demônio viu que refletia sobre a herança de Drizzt era uma fina corrente de
prata pendurada em seu pescoço esbelto, uma joia comum entre os elfos das trevas
por segurar uma pequena bolsa de riqueza. Concentrando-se nisso, Errtu descobriu
uma segunda corrente, mais fina que a primeira, entrelaçando-se e saindo da outra.
O demônio seguiu o vinco quase imperceptível no gibão de Drizzt, criado pela
longa corrente.
Incomum, observou, e possivelmente revelador. Errtu apontou para a corrente,
pronunciou uma palavra de comando e levantou o dedo estendido no ar.
Drizzt ficou tenso quando sentiu o emblema deslizar por baixo do gibão de couro.
Passou pela abertura do pescoço e caiu na extensão da corrente, pendendo
abertamente no peito.
O sorriso maligno de Errtu se alargou junto com seus olhos apertados.
— Escolha incomum para um drow — sibilou sarcasticamente. — Eu esperava o
símbolo de Lolth, a rainha demoníaca do seu povo. Ela não ficaria satisfeita! — Do
nada, um chicote de várias pontas apareceu em uma das mãos do demônio e uma
lâmina irregular e cruelmente recortada na outra.
A princípio, a mente de Drizzt girou por centenas de probabilidades, explorando as
mentiras mais viáveis que poderia contar para tirá-lo daquela situação. Mas
balançou a cabeça resoluto e afastou as mentiras. Não desonraria sua divindade.
No final da corrente de prata pendia um presente de Regis, uma escultura que o
halfling havia feito do osso de uma das poucas cabeça-duras que ele já havia
capturado. Drizzt ficou profundamente emocionado quando Regis o apresentou a
ele, e o considerava o melhor trabalho do halfling. Girava na longa corrente, com
notas e sombras suaves, dando a profundidade de uma verdadeira obra de arte.
Era uma cabeça branca de unicórnio, o símbolo da deusa Mielikki.
— Quem é você, drow? — Errtu exigiu saber. O demônio já havia decidido que
teria que matar Drizzt, mas ficou intrigado com uma reunião tão incomum. Um elfo
negro que seguia a Dama da Floresta? E morador de superfície também! Errtu
conhecera muitos drow ao longo dos séculos, mas nunca ouvira falar de algum que
abandonara os caminhos perversos dos drow. Assassinos de coração frio, um e
todos, que haviam ensinado até o grande demônio do caos um truque ou dois a
respeito de métodos de tortura excruciante.
— Eu sou Drizzt Do’Urden, isso é verdade — Drizzt respondeu uniformemente. —
Aquele que abandonou a Casa de Daermon N’a’shezbaernon. — Todo o medo fugiu
de Drizzt quando ele aceitou além de qualquer esperança que teria que lutar contra
o demônio. Agora assumia a prontidão calma de um lutador experiente, preparado
para aproveitar qualquer vantagem que pudesse surgir em seu caminho. — Um
ranger servindo humildemente a Gwaeron Windstrom, herói da deusa Mielikki. —
Ele se curvou de acordo com uma introdução adequada.
Ao se endireitar, sacou as cimitarras.
— Preciso derrotá-lo, cicatriz da vileza — declarou — e enviá-lo de volta às nuvens
rodopiantes do abismo sem fundo. Não há lugar no mundo iluminado pelo sol para
alguém do seu tipo!
— Você está confuso, elfo — disse o demônio. — Perdeu o caminho de sua
herança e agora ousa presumir que pode me derrotar! — Chamas surgiram da pedra
ao redor de Errtu. — Eu teria matado você com um golpe limpo, por respeito a seus
parentes. Mas seu orgulho me incomoda. Vou ensiná-lo a desejar a morte! Venha,
sinta a dor do meu fogo!
Drizzt já estava quase derrotado pelo calor do fogo demoníaco de Errtu e o brilho
das chamas ardia em seus olhos sensíveis, de modo que a maior parte do demônio
parecia apenas o borrão embotado de uma sombra. Ele viu a escuridão se estender à
direita do demônio e sabia que Errtu havia erguido sua terrível espada. Preparou-se
para se defender, mas de repente o demônio se inclinou para o lado e rugiu de
surpresa e indignação.
Guenhwyvar havia se agarrado firmemente ao braço erguido.
O enorme demônio segurou a pantera à distância de um braço, tentando prender a
gata entre o antebraço e a parede de pedra para manter as garras e os dentes longe
de uma área vital. Guenhwyvar roía e mordia o braço enorme, rasgando carne e
músculo de demônio.
Errtu afastou o ataque cruel e decidiu lidar com a gata mais tarde. A principal
preocupação do demônio continuava sendo o drow, pois respeitava o poder
potencial de qualquer um dos elfos negros. Errtu tinha visto muitos inimigos caírem
sob um dos inúmeros truques deles.
O chicote de várias pontas atacou as pernas de Drizzt, rápido demais para o drow,
ainda cambaleando pela explosão repentina de brilho das chamas, aparar o golpe ou
desviar. Errtu puxou o cabo enquanto as tiras se enroscavam nas pernas e tornozelos
esguios, a grande força do demônio fazendo Drizzr cair de costas.
Drizzt sentiu a dor ardente por todas as suas pernas e ouviu a onda de ar sair de seus
pulmões quando tombou na pedra dura. Ele sabia que devia reagir sem demora, mas
o brilho do fogo e o ataque repentino de Errtu o deixaram desorientado. O drow se
sentiu sendo arrastado ao longo da pedra, sentiu a intensidade do calor aumentando.
Ele conseguiu levantar a cabeça bem a tempo de ver seus pés emaranhados entrando
no fogo demoníaco.
— E assim eu morro — afirmou categoricamente.
Mas suas pernas não queimaram.
Babando de antecipação para ouvir os gritos agonizantes de sua vítima indefesa,
Errtu deu um puxão mais forte no chicote e puxou Drizzt completamente para as
chamas. Embora estivesse totalmente imolado, o drow mal se sentiu aquecido pelo
fogo.
E com um último assobio de protesto, as chamas quentes desapareceram.
Nenhum dos oponentes entendeu o que havia acontecido, ambos assumindo que o
outro tinha sido o responsável.
Errtu atacou rapidamente novamente. Colocando um pé pesado sobre o peito de
Drizzt, começou a esmagá-lo contra a pedra. O drow atacou em desespero com uma
arma, mas não teve efeito no monstro do outro mundo.
Drizzt balançou a outra cimitarra, a lâmina que havia retirado do tesouro do dragão.
Sibilando como água no fogo, a cimitarra entrou na articulação do joelho de Errtu.
O punho da arma esquentou quando a lâmina rasgou a carne do demônio, quase
queimando a mão de Drizzt. Depois, ficou gelada, como se mergulhasse a força de
vida quente de Errtu com uma força fria própria. Drizzt entendeu então o que havia
extinguido o fogo.
O demônio ficou boquiaberto, horrorizado, depois gritou de agonia. Nunca sentira
tanta dor! Ele saltou para trás e lançou-se loucamente, tentando escapar da terrível
mordida da arma, arrastando Drizzt, que não conseguia se soltar. Guenhwyvar foi
jogada na violência da raiva do demônio, voando do braço do monstro para bater
fortemente em uma parede.
Drizzt olhou para a ferida incrédulo quando o demônio se afastou. Vapor
derramava-se do buraco no joelho de Errtu; e as bordas do corte foram congeladas!
Mas Drizzt também havia sido enfraquecido pelo ataque. Em sua luta com o
poderoso demônio, a cimitarra utilizou a força vital de seu portador, puxando Drizzt
para a batalha com o monstro de fogo. O drow sentia-se como se não tivesse forças
para levantar. Mas se viu pulando para frente, com a lâmina totalmente estendida
diante dele, como se puxada pela fome da cimitarra.
A entrada do cubículo era estreita demais. Errtu não podia se esquivar nem saltar.
A cimitarra encontrou a barriga do demônio.
A explosão quando a lâmina tocou o núcleo da força vital de Errtu drenou a força
de Drizzt, lançando-o para trás. Ele bateu contra a parede de pedra e desabou, mas
conseguiu manter-se alerta o suficiente para testemunhar a luta titânica que ainda
continuava .
Errtu desceu para a borda. O demônio estava cambaleando agora, tentando abrir as
asas. Mas elas caíram fracas. A cimitarra brilhava branca com poder enquanto
continuava seu ataque. O demônio não suportava agarrá-la e libertar-se, embora a
lâmina cravada, com sua magia sufocando o fogo que fora forjada para destruir,
certamente estivesse vencendo o conflito.
Errtu sabia que tinha sido descuidado, confiante demais em sua capacidade de
destruir qualquer mortal em combate único. O demônio não havia considerado a
possibilidade de uma lâmina tão perversa; nunca tinha ouvido falar de uma arma
que causasse tanta dor.
O vapor jorrou das entranhas expostas de Errtu e envolveu os combatentes.
— E então você me baniu, drow traiçoeiro! — ele cuspiu.
Atordoado, Drizzt observou com espanto o brilho branco intensificar-se e a sombra
negra diminuir.
— Cem anos, drow! — Errtu uivou. — Não é muito tempo para gente como você
ou eu! — o vapor engrossou quando a sombra pareceu derreter.
— Um século, Drizzt Do’Urden! — veio o grito enfraquecido de Errtu de algum
lugar distante. — Olhe por cima do ombro, então. Errtu não estará muito atrás!
O vapor flutuou no ar e desapareceu.
O último som que Drizzt ouviu foi o estrondo da cimitarra de metal caindo na borda
da pedra.
Capítulo 26
Direitos de Vitória
O Relógio da Desgraça
A reunião que Cassius havia rotulado de conselho era realmente mais um fórum
onde o porta-voz de Bryn Shander poderia revelar suas primeiras estratégias de
retaliação. No entanto, nenhum dos líderes reunidos, nem Glensather, o único outro
porta-voz presente, protestou. Cassius havia estudado todos os aspectos do exército
de goblinoides entrincheirados e do mago com atenção meticulosa aos detalhes. O
porta-voz fez um esboço de toda a força, detalhando as rivalidades mais
potencialmente explosivas entre as fileiras de goblins e de orcs e suas melhores
estimativas sobre o tempo que levaria para o combate interno enfraquecer
suficientemente o exército.
Todos os presentes concordaram, no entanto, que a pedra angular que mantinha o
cerco unido era Cryshal-Tirith. O poder impressionante da estrutura cristalina
colocaria até os orcs mais agitados em obediência inquestionável. No entanto, os
limites desse poder, como Cassius via, eram a verdadeira questão.
— Por que Kessell foi tão insistente em uma rendição imediata? — o porta-voz
argumentou. — Ele poderia nos deixar sob o estresse de um cerco por alguns dias
para amenizar nossa resistência!
Os outros concordaram com a lógica da linha de pensamento de Cassius, mas não
tinham respostas para ele.
— Talvez Kessell não domine com tanta intensidade sua força quanto acreditamos
— propôs o próprio Cassius. — Será que o mago teme que seu exército se
desintegre ao seu redor se ficar parado por algum tempo?
— Talvez — respondeu Glensather de Refúgio Leste. — Ou talvez Akar Kessell
simplesmente perceba a força de sua vantagem e saiba que não temos escolha a não
ser nos render. Talvez você esteja confundindo confiança com preocupação?
Cassius parou por um momento para refletir sobre a pergunta.
— Um argumento bem válido — disse, por fim. — Mas imaterial para nossos
planos. — Glensather e vários outros olharam curiosamente para o porta-voz.
— Devemos supor que seja o último — explicou Cassius. — Se o mago estiver
realmente no controle absoluto do exército reunido, qualquer coisa que possamos
tentar será inútil em qualquer caso. Portanto, devemos agir com base no pressuposto
de que a impaciência de Kessell revela uma preocupação bem fundamentada.
— Não acho o mago um estrategista excepcional. Ele embarcou em um caminho de
destruição que supôs que nos levaria à submissão, mas que, na realidade, fortaleceu
a determinação de muitos de nosso povo a lutar até o fim. As rivalidades de longa
data entre várias cidades, o amargor que o sábio líder de uma força invasora
certamente teria transformado em uma excelente vantagem, foram consertadas pela
flagrante falta de consideração de Kessel pela sutileza e suas demonstrações de
brutalidade ultrajante.
Cassius sabia pelos olhares atentos que estava recebendo que estava ganhando
apoio de todos os cantos. Estava tentando fazer duas coisas nesta reunião:
convencer os outros a concordar com a aposta que estava prestes a revelar, além de
elevar a perspectiva deles e devolver-lhes um pouco de esperança.
— Nosso pessoal está lá fora — disse, varrendo o braço em um amplo arco. — Em
Maer Dualdon e Lac Dinneshere, as frotas se reuniram, aguardando algum sinal de
Bryn Shander de que as apoiaríamos. As pessoas de Bom Prado e Toca de Dougan
fazem o mesmo no lago sul, totalmente armadas e sabendo muito bem que nesta
luta não resta nada para os sobreviventes se não formos vitoriosos! — Ele se
inclinou sobre a mesa, alternadamente capturando e mantendo o olhar de cada
homem sentado diante dele e concluiu sombriamente — Nem lares. Nem esperança
para nossas esposas. Nem esperança para nossos filhos. Nenhum lugar para correr.
Cassius continuou a reunir os outros ao seu redor e logo foi apoiado por Glensather,
que adivinhou o objetivo do porta-voz de aumentar o moral e reconhecia o valor
disso. Cassius procurou o momento mais oportuno. Quando a maioria dos líderes
reunidos substituiu suas carrancas de desespero pela determinada careta de
sobrevivência, ele apresentou seu plano ousado.
— Kessell exigiu um emissário — disse —, então devemos entregar um.
— Você ou eu pareceríamos a escolha mais óbvia — Glensather interveio. — Qual
deve ser?
Um sorriso irônico se espalhou pelo rosto de Cassius.
— Nenhum — ele respondeu. — Um de nós seria a escolha óbvia se
pretendêssemos atender às demandas de Kessell. Mas nós temos uma outra opção.
— ele voltou o olhar para Regis. O halfling se contorceu desconfortável, meio
adivinhando o que o porta-voz tinha em mente. — Há um entre nós que alcançou
uma reputação quase lendária por suas consideráveis habilidades de convencimento.
Talvez seu apelo carismático ganhe um tempo valioso em nossas relações com o
mago.
Regis sentiu-se mal. Ele sempre se perguntava quando o pingente de rubi iria
colocá-lo em problemas grandes demais para que conseguisse sair.
Várias outras pessoas olhavam para Regis agora, aparentemente intrigadas com o
potencial da sugestão de Cassius. As histórias do encanto e da capacidade de
persuasão do halfling, e a acusação que Kemp havia feito no conselho algumas
semanas antes haviam sido contadas e recontadas mil vezes em todas as cidades,
cada contador de histórias tipicamente aprimorando e exagerando os contos para
aumentar sua própria importância. Embora Regis não estivesse feliz por perder o
poder de seu segredo – as pessoas raramente o olhavam nos olhos agora –, ele
chegara a desfrutar de um certo grau de fama. Não tinha considerado os possíveis
efeitos colaterais negativos de ter tantas pessoas o admirando.
— Que o halfling, ex-porta-voz de Bosque Solitário, nos represente na corte de
Akar Kessell — declarou Cassius com a aprovação quase unânime da assembleia.
— Talvez nosso pequeno amigo consiga convencer o mago do erro de seus maus
caminhos!
— Você está errado — reclamou Regis. — São apenas rumores...
— Humildade — interrompeu Cassius — é uma característica excelente, bom
halfling. E todos reunidos aqui apreciam a sinceridade de suas dúvidas de si mesmo
e mais ainda sua disposição de colocar seus talentos contra Kessell diante dessas
dúvidas!
Regis fechou os olhos e não respondeu, sabendo que a moção certamente passaria,
quer ele aprovasse ou não.
Ela passou, sem um único voto dissidente. As pessoas encurraladas estavam
bastante dispostas a agarrar qualquer lasca de esperança que encontrassem.
Cassius agiu rapidamente para encerrar o conselho, pois acreditava que todos os
outros assuntos – problemas de superlotação e alimentação – eram de pouca
importância num momento como este. Se Regis falhasse, todos os outros
inconvenientes se tornariam irrelevantes.
Regis permaneceu calado. Havia apenas participado do conselho para apoiar seus
amigos porta-vozes. Quando se sentou à mesa, não tinha sequer a intenção de
participar das discussões, muito menos de se tornar o ponto focal do plano de
defesa.
E assim a reunião foi encerrada. Cassius e Glensather trocaram piscadelas
reconhecedoras de sucesso, pois todos saíram da sala se sentindo um pouco mais
otimistas.
Cassius segurou Regis quando ele se levantou para sair com os outros. O porta-voz
de Bryn Shander fechou a porta atrás do último deles, desejando uma conversa
particular com o personagem principal dos primeiros estágios de seu plano.
— Você poderia ter falado comigo sobre tudo isso primeiro! — Regis resmungou
nas costas do porta-voz assim que a porta foi fechada. — Seria justo que eu tivesse
a oportunidade de tomar uma decisão sobre este assunto!
Cassius tinha um rosto sombrio quando se virou para encarar o halfling.
— Que escolha qualquer um de nós tem? — perguntou. — Pelo menos assim,
demos a todos alguma esperança.
— Você me superestima — protestou Regis.
— Talvez você se subestime — disse Cassius. Embora o halfling tenha percebido
que Cassius não se afastaria do plano que havia posto em ação, a confiança do
porta-voz transmitiu a Regis um espírito altruísta que era reconfortante.
— Vamos rezar, pelo nosso bem, que esta seja a verdade — continuou Cassius, indo
para o seu lugar na mesa. — Mas realmente acredito que seja o caso. Eu tenho fé
em você, mesmo que você não tenha. Lembro-me bem do que você fez com o
porta-voz Kemp no conselho, cinco anos atrás, apesar de ter sido necessária sua
própria declaração de que ele havia sido enganado para me fazer perceber a
verdade. Um trabalho magistral de persuasão, Regis de Bosque Solitário, e mais
ainda porque manteve seu segredo por tanto tempo!
Regis corou e aceitou o argumento.
— E se você pode lidar com o teimoso Kemp de Targos, você deve achar Akar
Kessell uma presa fácil!
— Eu concordo com suas percepções de Kessell como algo menos que um homem
de força interior — disse Regis —, mas os magos têm uma maneira de descobrir
truques de magia. E você esquece o demônio. Eu nem tentaria enganar alguém
desse tipo!
— Vamos torcer para que você não precise lidar com aquele lá — Cassius
concordou com um visível estremecimento. — No entanto, sinto que você deve ir à
torre e tentar dissuadir o mago. Se, de alguma maneira, não pudermos deter o
exército reunido até que seu próprio tumulto interno se torne nosso aliado,
certamente estamos condenados. Acredite em mim, como seu amigo, que não
pediria que enfrentasse tal perigo se visse qualquer outro caminho possível. — Um
olhar doloroso de empatia desamparada claramente se manifestou através da
fachada anterior do porta-voz, que provocava otimismo. Sua preocupação tocou
Regis, assim como um homem faminto clamando por comida.
Mesmo sem seus sentimentos pelo porta-voz excessivamente pressionado, Regis foi
forçado a admitir a lógica do plano e a ausência de outros caminhos. Kessell não
lhes deu muito tempo para se reagruparem após o ataque inicial. Na destruição de
Targos, o mago demonstrou sua capacidade de destruir Bryn Shander da mesma
forma, e o halfling tinha poucas dúvidas de que Kessell cumpriria sua ameaça vil.
Então Regis passou a aceitar seu papel como sua única opção. O halfling não era
facilmente estimulado a agir, mas quando se decidia a fazer algo, geralmente
tentava fazê-lo corretamente.
— Antes de tudo — ele começou —, devo lhe dizer, na mais estrita confiança, que
realmente tenho ajuda mágica.
Um vislumbre de esperança voltou aos olhos de Cassius. Ele se inclinou para a
frente, ansioso para ouvir mais, mas Regis o acalmou com a palma da mão
estendida.
— Você deve entender, no entanto — explicou o halfling — que eu, ao contrário do
que afirmam alguns contos, não tenho o poder de perverter o que está no coração de
uma pessoa. Não conseguiria convencer Kessell a abandonar seu caminho maligno,
assim como não poderia convencer o porta-voz Kemp a fazer as pazes com
Termalaine.
Ele se levantou da cadeira almofadada e andou em volta da mesa, com as mãos
cruzadas atrás das costas. Cassius o observava com antecipação incerta, incapaz de
descobrir exatamente aonde ele queria chegar com sua admissão, e depois com sua
ressalva, de poder.
— Às vezes, porém, tenho uma maneira de fazer alguém ver o ambiente a partir de
uma perspectiva diferente — admitiu Regis. — Como o incidente a que você se
referiu, quando convenci Kemp de que iniciar um determinado curso de ação
preferível realmente o ajudaria a alcançar suas próprias aspirações.
Então me diga novamente, Cassius, tudo o que você aprendeu sobre o mago e seu
exército. Vamos ver se podemos descobrir uma maneira de fazer Kessell duvidar
das mesmas coisas em que ele confiou!
A eloquência do halfling surpreendeu o porta-voz. Ainda que não tenha olhado
Regis nos olhos, podia ver a promessa da verdade nas histórias que sempre
presumira serem exageradas.
— Sabemos pelo porta-notícias que Kemp assumiu o comando das forças
remanescentes das quatro cidades em Maer Dualdon — explicou Cassius. — Da
mesma forma, Jensin Brent e Schermont estão posicionados em Lac Dinneshere e,
combinados com as frotas de Águas Rubras, devem ser uma força poderosa de fato!
Kemp já prometeu vingança, e duvido que algum dos outros refugiados tenha
pensamentos de rendição ou fuga.
— Para onde eles poderiam ir? — murmurou Regis. Ele olhou tristemente para
Cassius, que não tinha palavras de conforto. Cassius havia demonstrado confiança e
esperança para os outros membros do conselho e para as pessoas da cidade, mas não
podia olhar para Regis agora e fazer promessas vazias.
Glensather repentinamente entrou na sala.
— O mago está de volta ao campo! — gritou. — Ele exigiu nosso emissário e as
luzes da torre voltaram!
Os três saíram correndo do prédio, Cassius reiterando o máximo de informações
pertinentes que podia.
Regis o silenciou.
— Estou preparado — ele assegurou a Cassius. — Eu não sei se esse seu esquema
ultrajante tem alguma chance de funcionar, mas você tem o meu voto de que vou
trabalhar muito para enganá-lo.
Eles estavam no portão.
— Tem que funcionar — disse Cassius, batendo no ombro de Regis. — Não temos
outra esperança. — Ele começou a se virar para ir embora, mas Regis tinha uma
pergunta final para a qual precisava de uma resposta.
— E se eu descobrir que Kessell está além do meu poder? —perguntou
sombriamente. — O que devo fazer se o plano falhar?
Cassius olhou em volta para os milhares de mulheres e crianças amontoadas contra
o vento frio nos terrenos comuns da cidade.
— Se falhar — ele começou devagar —, se Kessell não puder ser dissuadido de
usar o poder da torre contra Bryn Shander — fez uma pausa novamente, apenas
para adiar a necessidade de ouvir a si mesmo pronunciar as palavras — você então
está sob minhas ordens pessoais para render a cidade.
Cassius se virou e foi em direção aos parapeitos para testemunhar o confronto
crítico. Regis não hesitou mais, pois sabia que qualquer pausa nesse momento
assustador provavelmente o faria mudar de ideia e correr para encontrar um
esconderijo em algum buraco escuro da cidade. Antes mesmo de ter a chance de
reconsiderar, atravessou o portão e marchou corajosamente colina abaixo em
direção ao espectro de Akar Kessell.
Kessell apareceu novamente entre dois espelhos carregados por trolls, de pé com os
braços cruzados e um pé batendo impaciente. A carranca maligna em seu rosto deu
a Regis a nítida impressão de que o mago, em um acesso de raiva incontrolável, o
mataria antes mesmo de chegar ao pé da colina. No entanto, o halfling tinha que
manter os olhos focados em Kessell para continuar sua abordagem. Os trolls
malditos o enojavam e o repugnavam além de qualquer coisa que já havia
encontrado, e precisou de toda a sua força de vontade para passar perto deles.
Mesmo do portão, podia sentir o fedor do cheiro podre deles.
Mas de alguma maneira chegou aos espelhos e ficou de frente para o mago maligno.
Kessell estudou o emissário por um bom tempo. Certamente não esperava que um
halfling representasse a cidade e se perguntou por que Cassius não tinha ido
pessoalmente a uma reunião tão importante.
— Você vem à minha frente como representante oficial de Bryn Shander e todos os
que agora residem dentro de seus muros?
Regis assentiu.
— Sou Regis de Bosque Solitário — respondeu —, um amigo de Cassius e ex-
membro do Conselho dos Dez. Fui designado para falar pelas pessoas da cidade.
Os olhos de Kessell se estreitaram em antecipação à sua vitória.
— E você carrega a mensagem de rendição incondicional?
Regis moveu-se inquieto, se mexendo de propósito para que o pendente de rubi
começasse a se mover em seu peito.
— Desejo uma reunião privativa contigo, poderoso mago, para que possamos
discutir os termos do acordo.
Os olhos de Kessell se arregalaram. Ele olhou para Cassius na muralha.
— Eu disse incondicional! — ele gritou. Atrás dele, as luzes de Cryshal-Tirith
começaram a girar e crescer. — Agora você deve testemunhar a loucura de sua
insolência!
— Espere! — rogou Regis, pulando para recuperar a atenção do mago. — Há
algumas coisas que você deve estar ciente antes que tudo esteja decidido!
Kessell prestou pouca atenção às divagações do halfling, mas o pingente de rubi
chamou sua atenção de repente. Mesmo através da proteção oferecida pela distância
entre seu corpo físico e a janela de sua projeção de imagem, ele achou a pedra
fascinante.
Regis não pôde resistir à vontade de sorrir, embora apenas levemente, quando
percebeu que os olhos do mago não piscavam mais.
— Tenho algumas informações que tenho certeza de que você considerará valiosas
— disse o halfling em voz baixa.
Kessell sinalizou para ele continuar.
— Não aqui — Regis sussurrou. — Existem ouvidos curiosos demais. Nem todos
os goblins reunidos ficariam satisfeitos em ouvir o que tenho a dizer!
Kessell considerou as palavras do halfling por um momento. Ele se sentiu
curiosamente subjugado por algum motivo que ainda não conseguia entender.
— Muito bem, halfling — concordou. — Eu ouvirei suas palavras.
Com um clarão e uma nuvem de fumaça, o mago se foi.
Regis olhou por cima do ombro para as pessoas na parede e assentiu.
Sob comando telepático de dentro da torre, os trolls deslocaram os espelhos para
captar o reflexo de Regis. Um segundo lampejo e nuvem de fumaça e Regis,
também, se foi.
Na muralha, Cassius devolveu o aceno do halfling, embora Regis já tivesse
desaparecido. O porta-voz respirou um pouco melhor, confortado pelo último olhar
que Regis lhe lançara e pelo fato de o sol estar se pondo e Bryn Shander ainda estar
de pé. Se seu palpite, com base nos momentos das ações do mago, estava correto,
Cryshal-Tirith extraía a maior parte de sua energia da luz do sol.
Parecia que seu plano havia comprado pelo menos mais uma noite.
◆
Mesmo através dos olhos turvos, Drizzt reconheceu a forma escura que pairava
sobre ele. O drow havia batido a cabeça quando fora jogado para longe do punho da
cimitarra e Guenhwyvar, sua fiel companheira, manteve vigília silenciosa durante as
longas horas em que o drow permaneceu inconsciente, mesmo que a gata também
tivesse sido ferida durante a briga com Errtu.
Drizzt rolou para sentar e tentou se reorientar ao redor. A princípio, pensou que
chegara o amanhecer, mas depois percebeu que a fraca luz do sol vinha do oeste.
Esteve desmaiado pela maior parte do dia, drenado completamente, pois a cimitarra
consumira sua energia vital em sua batalha com o demônio.
Guenhwyvar parecia ainda mais abatida. O ombro da gata pendia flácido da colisão
com a parede de pedra, e Errtu havia feito um corte profundo em uma de suas patas
dianteiras.
Mais do que ferimentos, porém, a fadiga estava desgastando a fera mágica. Ela
ultrapassara os limites normais de sua visita ao Plano Material por muitas horas. O
cordão entre seu plano de origem e o do drow só era mantido intacto pela energia
mágica da gata, e cada minuto que passava neste mundo diminuía um pouco sua
força.
Drizzt acariciou o pescoço musculoso com ternura. Entendeu o sacrifício que
Guenhwyvar fizera por ele e desejou poder atender às necessidades da gata e enviá-
la de volta ao seu próprio mundo.
Mas não podia. Se ela retornasse ao seu próprio plano, levaria horas para recuperar
a força necessária para restabelecer um vínculo com este mundo. E ele precisava da
gata agora.
— Um pouco mais — ele implorou. O animal fiel se deitou ao lado dele, sem
qualquer sinal de protesto. Drizzt olhou para ela com pena e acariciou seu pescoço
mais uma vez. Como desejava libertar a gata de seu serviço! Mas não podia.
Pelo que Errtu havia lhe dito, a porta de Cryshal-Tirith era invisível apenas para os
seres do Plano Material.
Drizzt precisava dos olhos da gata.
Capítulo 28
Nas águas de Maer Dualdon, mais tarde naquela noite, a frota reunida das quatro
cidades observou com desconfiança um segundo grupo de monstros sair da força
principal e seguir em direção a Bremen.
— Curioso — comentou Kemp para Muldoon de Bosque Solitário e o porta-voz da
cidade queimada de Bremen, que estavam no convés do navio principal de Targos
ao lado dele. Toda a população de Bremen estava no lago. Certamente o primeiro
grupo de orcs, depois dos primeiros disparos de flechas, não encontrou mais
resistência na cidade. E Bryn Shander permanecia intacta. Por que, então, o mago
estava estendendo ainda mais sua linha de poder?
— Akar Kessell me confunde — disse Muldoon. — Ou o gênio dele está
simplesmente além de mim ou ele realmente comete erros táticos flagrantes!
— Assuma a segunda possibilidade — instruiu Kemp, esperançoso —, pois
qualquer coisa que possamos tentar será em vão se a primeira for a verdade!
Eles continuaram reposicionando seus guerreiros para um ataque oportuno, levando
seus filhos e mulheres nos barcos restantes para os ancoradouros ainda não atacados
de Bosque Solitário, semelhantes às estratégias das forças de refugiados nos outros
dois lagos.
No muro de Bryn Shander, Cassius e Glensather observavam a divisão das forças de
Kessell com um entendimento mais profundo.
— Feito com maestria, halfling — Cassius sussurrou no vento da noite.
Sorrindo, Glensather colocou a mão firmemente no ombro de seu colega porta-voz.
— Vou informar nossos comandantes de campo — disse. — Se chegar a hora de
atacar, estaremos prontos!
Cassius apertou a mão de Glensather e assentiu em aprovação. Enquanto o porta-
voz de Refúgio Leste se afastava, Cassius se inclinou sobre a cumeeira da muralha,
olhando com determinação as paredes agora escuras de Cryshal-Tirith. Entre dentes
cerrados, ele declarou abertamente:
— A hora vai chegar!
◆
Uma sensação estranha, um zumbido vibrante, tomou conta de Drizzt quando ele
passou pela entrada de Cryshal-Tirith, como se tivesse entrado nas entranhas de
uma entidade viva. Ele continuou, no entanto, pelo corredor escuro que levava ao
primeiro andar da torre, maravilhado com o estranho material cristalino que
constituía as paredes e o piso da estrutura.
Ele estava em um salão quadrado, a câmara inferior da estrutura de quatro andares.
Este era o salão onde Kessell costumava se reunir com seus generais de campo, o
principal salão de audiência do mago para todos, exceto seus comandantes de alto
escalão.
Drizzt espiou as formas escuras na sala e as sombras mais profundas que elas
criavam. Embora não visse nenhum movimento, sentiu que não estava sozinho. Ele
sabia que Guenhwyvar tinha os mesmos sentimentos desagradáveis, pois o pelo da
nuca negra estava arrepiado e a gata soltava um rosnado baixo.
Kessell considerava essa sala uma zona de amortecimento entre ele e a multidão do
mundo exterior. Era a única câmara na torre que ele raramente visitava. Este era o
lugar onde Akar Kessell abrigava seus trolls.
Capítulo 29
Outras Opções
◆
Um braço cortado de carne podre se espalhou pelo chão, mais uma vítima das
cimitarras sibilantes de Drizzt Do’Urden.
Mas os trolls destemidos se amontoavam. Normalmente, Drizzt saberia da presença
deles assim que entrasse na câmara quadrada. Seu fedor terrível dificultava a
ocultação. Esses, no entanto, não estavam na câmara quando o drow entrara.
Quando Drizzt foi mais fundo na sala, ele disparou um alarme mágico que banhou a
área em luz mágica e deu a deixa para os guardas. Eles entraram pelos espelhos
mágicos que Kessell havia plantado como postos de vigilância por toda a sala.
Drizzt já havia derrubado um dos animais miseráveis, mas agora ele estava mais
preocupado em correr do que em lutar. Cinco outros substituíram o primeiro, mais
do que o suficiente para derrubar qualquer guerreiro. Drizzt balançou a cabeça em
descrença quando o corpo do troll que ele decapitou subitamente subiu novamente e
começou a debater-se às cegas.
E então, uma mão com garras agarrou seu tornozelo. Ele sabia sem olhar que era o
membro que acabara de cortar.
Horrorizado, ele chutou o braço grotesco para longe e se virou, correndo para a
escada em espiral que ia até o segundo andar da torre, na parte de trás da câmara. A
seu comando anterior, Guenhwyvar já havia subido mancando fracamente as
escadas e agora esperava na plataforma no topo.
Drizzt ouviu os passos arrastados de seus perseguidores doentios e o arranhar das
unhas imundas da mão decepada, que também estava em perseguição. O drow subiu
a escada sem olhar para trás, esperando que sua velocidade e agilidade lhe dessem
vantagem o suficiente para encontrar uma maneira de escapar.
Pois não havia porta na plataforma.
O patamar no topo da escada era retangular e tinha cerca de três metros de largura
em seu comprimento mais largo. Dois lados estavam abertos para a sala, um
terceiro atingia a borda da escada e o quarto era um espelho plano, com o
comprimento exato da plataforma e preso entre ela e o teto da câmara. Drizzt
esperava que fosse capaz de entender as nuances dessa porta incomum, se era isso o
que realmente era o espelho, quando a examinou a partir da plataforma.
Não seria assim tão fácil.
Embora o espelho estivesse tomado pelo reflexo de uma tapeçaria ornamentada
pendurada na parede da câmara em frente a ele, sua superfície parecia perfeitamente
lisa e intacta sem quaisquer rachaduras ou puxadores que pudessem indicar uma
abertura oculta. Drizzt embainhou suas armas e passou as mãos pela superfície para
ver se havia uma maçaneta escondida de seus olhos aguçados, mas o deslizamento
uniforme do vidro apenas confirmou sua observação.
Os trolls estavam na escadaria.
Drizzt tentou abrir caminho através do vidro, falando todas as palavras de comando
de abertura que já havia aprendido, procurando um portal extradimensional
semelhante ao que mantinha os hediondos guardas de Kessell. A parede
permaneceu uma barreira tangível.
O troll da frente chegou ao meio do caminho nas escadas.
— Deve haver uma pista em algum lugar! — o drow reclamou. — Magos adoram
um desafio, e não há nada de divertido nisso!
A única resposta possível estava nos intrincados desenhos e imagens da tapeçaria.
Drizzt olhou para ela, tentando examinar as milhares de imagens entrelaçadas em
busca de alguma dica especial que lhe mostrasse o caminho para a segurança.
O fedor fluiu até ele. Ele podia ouvir o babar dos monstros sempre famintos.
Mas teve que controlar sua repulsa e se concentrar nas inúmeras imagens.
Uma coisa na tapeçaria chamou sua atenção: as linhas de um poema que passavam
por todas as outras imagens ao longo da borda superior. Em contraste com as cores
opacas do restante da obra de arte antiga, as letras desenhadas do poema continham
o brilho contrastante de uma adição mais recente. Algo que Kessell havia
acrescentado?
Venha se quiser
Para a orgia interior,
Mas primeiro a tranca deve encontrar!
Visto sem ser visto,
Sido sem ter sido
E uma maçaneta que a carne não pode pegar.
Uma linha em particular se destacou na mente do drow. Ele ouvira a frase “sido sem
ter sido” em sua infância em Menzoberranzan. Ela se referia a Urgutha Forka, um
demônio cruel que devastara o planeta com uma praga particularmente virulenta nos
tempos antigos, quando os ancestrais de Drizzt ainda caminhavam na superfície. Os
elfos da superfície sempre negaram a existência de Urgutha Forka, culpando os
drow pela praga, mas os elfos negros sabiam da verdade. Algo em sua composição
física os mantinha imunes ao demônio, e depois que perceberam o quão mortal era
para seus inimigos, trabalharam para satisfazer as suspeitas dos outros elfos,
recrutando Urgutha como aliado.
Assim, a referência “sido sem ter sido” era uma linha pejorativa em um conto drow
mais longo, uma piada secreta sobre seus odiados primos que haviam perdido
milhares dos seus para uma criatura que eles negavam que existisse.
O enigma teria sido impossível para alguém que desconhecesse a história de
Urgutha Forka. O drow havia encontrado uma vantagem valiosa. Ele examinou o
reflexo da tapeçaria em busca de alguma imagem que tivesse uma conexão com o
demônio. E o encontrou na extremidade do espelho, na altura da cintura: um retrato
do própria Urgutha, revelado em todo o seu horrível esplendor. O demônio estava
representado quebrando o crânio de um elfo com um bastão negro, seu símbolo.
Drizzt já tinha visto o mesmo retrato antes. Nada parecia deslocado ou sugeria algo
incomum.
Os trolls haviam dobrado a esquina final de sua subida. Drizzt estava quase sem
tempo.
Ele se virou e procurou na fonte da imagem por alguma discrepância. Então, algo o
atingiu imediatamente. Na tapeçaria original, Urgutha batia no elfo com o punho;
não havia bastão!
— Visto sem ser visto.
Drizzt girou de volta no espelho, agarrando a arma ilusória do demônio. Mas tudo o
que sentiu foi o vidro liso. Ele quase gritou de frustração.
Sua experiência lhe ensinou disciplina e rapidamente recuperou a compostura.
Afastou a mão do espelho, tentando posicionar seu próprio reflexo na mesma
profundidade em que julgava estar o bastão. Ele lentamente fechou os dedos,
observando a imagem de sua mão se fechar ao redor do bastão com a empolgação
do sucesso esperado.
Ele mexeu a mão levemente.
Uma rachadura fina apareceu no espelho.
O troll principal chegou ao topo da escada, mas Drizzt e Guenhwyvar não estavam
mais ali.
O drow deslizou a estranha porta de volta à sua posição fechada, recostou-se e
suspirou de alívio. Uma escada mal iluminada se erguia diante dele, terminando em
uma plataforma que dava para o segundo andar da torre. Nenhuma porta bloqueava
o caminho, apenas fios de contas, cintilando em laranja à luz da tocha da sala
adiante. Drizzt ouviu risadinhas.
Silenciosamente, ele e a gata subiram as escadas e espiaram por cima da borda do
patamar. Eles haviam chegado ao harém de Kessell.
Estava suavemente iluminado com tochas brilhando sob cortinas. A maior parte do
chão estava coberta de travesseiros estofados, e seções da sala eram cortinadas. As
garotas do harém, os brinquedos irracionais de Kessell, sentavam-se em círculo no
centro do chão, rindo com o entusiasmo desinibido de crianças brincando. Drizzt
duvidava que o perceberiam, mas mesmo que notassem, não estava muito
preocupado. Entendeu imediatamente que essas criaturas lamentáveis e quebradas
eram incapazes de iniciar qualquer ação contra ele.
No entanto, ficou alerta, principalmente em relação às alcovas acortinadas. Ele
duvidava que Kessell tivesse colocado guardas ali, certamente nenhum tão
imprevisivelmente cruel quanto trolls, mas não podia se dar ao luxo de cometer
erros.
Com Guenhwyvar ao seu lado, deslizou de sombra em sombra, e quando os dois
companheiros subiram as escadas e estavam no patamar diante da porta do terceiro
andar, Drizzt estava mais relaxado.
Mas então o zumbido que Drizzt ouvira quando entrou na torre retornou. Ganhou
força enquanto continuava, como se seu canto viesse das vibrações das próprias
paredes da torre. Drizzt procurou ao redor por uma possível fonte.
Sininhos pendurados no teto da sala começaram a tilintar assustadoramente.
Os fogos das tochas nas paredes dançavam.
Então Drizzt entendeu.
A estrutura estava despertando com uma vida própria. O campo lá fora permaneceu
sob a sombra da noite, mas os primeiros dedos do amanhecer iluminaram o alto
pináculo da torre.
De repente, a porta se abriu no terceiro andar, a sala do trono de Kessell.
— Muito bem! — exclamou o mago. Ele estava de pé além do trono de cristal do
outro lado da sala, segurando uma vela apagada e de frente para a porta aberta.
Regis estava obedientemente ao seu lado, ostentando uma expressão vazia no rosto.
— Por favor, entre — disse Kessell com falsa cortesia. — Não tema pelos meus
trolls que você machucou, eles certamente se curarão! — Jogou a cabeça para trás e
riu.
Drizzt se sentiu um tolo; e pensar que toda sua cautela e furtividade não serviram a
um propósito melhor do que divertir o mago! Descansou as mãos nos punhos das
cimitarras embainhadas e passou pela porta.
Guenhwyvar permaneceu agachada nas sombras da escada, em parte porque o mago
não disse nada para indicar que sabia da gata, e em parte porque a gata enfraquecida
não queria gastar sua energia ao andar.
Drizzt parou diante do trono e curvou-se. A visão de Regis ao lado do mago o
perturbou mais do que um pouco, mas conseguiu esconder que reconhecia o
halfling. Da mesma forma, Regis não demonstrou familiaridade quando viu o drow
pela primeira vez, embora Drizzt não tivesse certeza se isso era um esforço
consciente ou se o halfling estava sob a influência de algum tipo de encantamento.
— Saudações, Akar Kessell — Drizzt gaguejou no sotaque quebrado dos habitantes
do submundo, como se a língua comum da superfície fosse estranha para ele. Ele
imaginou que poderia muito bem tentar usar as mesmas táticas que havia usado
contra o demônio. — Fui enviado por meu povo de boa fé para conversar com você
sobre questões relacionadas aos nossos interesses comuns.
Kessell riu alto.
— É mesmo? — Um sorriso largo se espalhou por seu rosto, substituído
abruptamente por uma carranca. Os olhos dele se estreitaram, maldosos. — Eu
conheço você, elfo negro. Qualquer um que já morou em Dez-Burgos ouviu o nome
de Drizzt Do’Urden em história ou em tom de brincadeira! Portanto, mantenha suas
mentiras não ditas!
— Peço seu perdão, poderoso mago — Drizzt disse calmamente, mudando de
tática. — De muitas maneiras, ao que parece, você é mais sábio que seu demônio.
O olhar seguro de si desapareceu do rosto de Kessell. Ele se perguntava o que
impedira Errtu de responder às suas convocações. Olhou para o drow com mais
respeito. Será que esse guerreiro solitário havia matado um demônio maior?
— Permita-me começar de novo — disse Drizzt. — Saudações, Akar Kessell. —
ele fez uma reverência. — Eu sou Drizzt Do’Urden, ranger de Gwaeron Windstrom,
guardião do Vale do Vento Gélido. Eu vim para matá-lo.
As cimitarras saltaram de suas bainhas.
Mas Kessell também se mexeu. A vela que ele segurava subitamente voltou à vida.
Sua chama fora capturada no labirinto de prismas e espelhos que enchiam toda a
câmara, focada e afiada em cada ponto refletido. Instantaneamente, com a
iluminação da vela, três feixes de luz concentrados envolveram o drow em uma
prisão triangular. Nenhum dos feixes o tocou, mas o drow sentiu o poder deles e não
ousou cruzar seu caminho.
Drizzt ouviu a torre zumbindo enquanto a luz do dia se filtrava por seu
comprimento. A sala iluminou-se consideravelmente quando vários painéis de
parede que pareciam espelhos à luz das tochas mostraram-se janelas.
— Você acreditava que poderia entrar aqui e simplesmente se desfazer de mim? —
Kessell perguntou incrédulo. — Eu sou Akar Kessell, seu tolo! O Tirano de Vale do
Vento Gélido! Eu comando o maior exército que já marchou nas estepes congeladas
desta terra abandonada!
— Eis o meu exército! — Ele acenou com a mão e um dos espelhos de visão
ganhou vida, revelando parte do vasto acampamento que cercava a torre, completo
com os gritos do campo ao despertar.
Então, um grito de morte soou de algum lugar nas encostas invisíveis do campo.
Instintivamente, o drow e o mago ouviram o clamor distante e ouviram o retinir
contínuo da batalha. Drizzt olhou curiosamente para Kessell, se perguntando se o
mago sabia o que estava acontecendo na seção norte de seu acampamento.
Kessell respondeu à pergunta não dita do drow com um aceno de mão. A imagem
no espelho ficou nublada por uma névoa interna por um momento, depois mudou
para o outro lado do campo. Os gritos e barulhos da batalha soavam alto das
profundezas do instrumento de visão. Então, quando a névoa se dissipou, a imagem
dos homens do clã de Bruenor, lutando de costas um para o outro no meio de um
mar de goblins, ficou clara. O campo ao redor dos anões estava cheio de cadáveres
de goblins e ogros.
— Você vê como é tolice se opor a mim? — gritou Kessell.
— Para mim, parece que os anões se saíram bem.
— Bobagem! — gritou Kessell. Ele acenou com a mão novamente, e a névoa
voltou ao espelho. Abruptamente, a Canção de Tempus ressoou de suas
profundezas. Drizzt se inclinou para frente e se esforçou para vislumbrar uma
imagem através do véu, ansioso para ver o líder da música.
— Enquanto os anões estúpidos matam alguns dos meus combatentes menores,
mais guerreiros se aglomeram para se juntar às fileiras do meu exército! A desgraça
está sobre todos vocês, Drizzt Do’Urden! Akar Kessell chegou!
A névoa se dissipou.
Com mil guerreiros fervorosos atrás dele, Wulfgar se aproximou dos monstros, que
de nada suspeitavam. Os goblins e orcs que estavam mais próximos dos bárbaros
atacantes, mantendo fé inflexível nas palavras de seu mestre, aplaudiram a vinda de
seus aliados prometidos.
Então eles morreram.
A horda bárbara atravessou suas fileiras, cantando e matando com abandono
selvagem. Mesmo com o barulho das armas, o som dos anões se unindo à Canção
de Tempus podia ser ouvido.
De olhos arregalados, mandíbula aberta, tremendo de raiva, Kessell afastou a
imagem chocante e voltou-se para Drizzt.
— Não importa! — ele disse, lutando para manter seu tom firme. — Vou lidar com
eles sem piedade! E então Bryn Shander cairá em chamas!
— Mas primeiro você, drow traidor — o mago sibilou. — Assassino dos seus, quais
deuses sobraram para você orar? — Ele soprou a vela, fazendo sua chama dançar de
lado.
O ângulo de reflexão mudou e um dos feixes encostou em Drizzt, abrindo um
buraco através do punho de sua velha cimitarra e depois foi mais fundo, cortando a
pele negra de sua mão. Drizzt fez uma careta de agonia e agarrou seu ferimento
quando a cimitarra caiu no chão e o raio voltou ao seu caminho original.
— Você vê como é fácil? — provocou Kessell. — Sua mente fraca não pode
começar a imaginar o poder de Crenshinibon! Sinta-se abençoado por permitir que
você sinta uma amostra desse poder antes de morrer!
Drizzt manteve sua mandíbula firme, e não havia sinal de súplica em seus olhos
enquanto ele encarava o mago. Há muito tempo havia abraçado a possibilidade da
morte como um risco aceitável de seu ofício e estava determinado a morrer com
dignidade.
Kessell tentou fazê-lo suar. O mago balançou a vela mortal provocativamente,
fazendo os raios se moverem de um lado para o outro. Quando ele finalmente
percebeu que não ouviria nenhum gemido ou pedido do orgulhoso ranger, Kessell
se cansou do jogo.
— Adeus, seu tolo — ele rosnou e franziu os lábios para soprar a chama.
Regis apagou a vela.
Tudo pareceu parar por vários segundos. O mago olhou para o halfling, que
acreditava ser seu escravo, com espanto horrorizado. Regis apenas deu de ombros,
como se estivesse tão surpreso com seu ato incomumente corajoso quanto Kessell.
Confiando no instinto, o mago jogou a placa de prata que segurava a vela através do
vidro do espelho e correu gritando em direção ao canto de trás da sala para uma
pequena escada escondida nas sombras. Drizzt tinha acabado de dar seus primeiros
passos quando o fogo dentro do espelho rugiu. Quatro olhos vermelhos malignos
olhavam para fora, chamando a atenção do drow, e dois cães infernais saltaram
através do vidro quebrado.
Guenhwyvar interceptou um, saltando além de seu mestre e colidindo de cabeça no
cão demoníaco. As duas feras voltaram para a parte traseira da sala, um borrão
preto e vermelho-amarelado de presas e garras, derrubando Regis de lado.
O segundo cão soltou seu sopro de fogo em Drizzt, mas novamente, como com o
demônio, o fogo não incomodou o drow. Então foi a sua vez de atacar. A cimitarra
pirofóbica retiniu em êxtase, cortando a fera ao meio quando Drizzt a derrubou.
Espantado com o poder da lâmina, mas não tendo tempo nem de encarar sua vítima
mutilada, Drizzt retomou sua perseguição.
Ele chegou ao pé da escada. Lá em cima, através do alçapão aberto até o andar mais
alto da torre, vinha o piscar rítmico de uma luz pulsante. Drizzt sentiu a intensidade
das vibrações aumentando a cada pulso. O coração de Cryshal-Tirith estava batendo
mais forte com o sol nascente. Drizzt entendia o perigo que estava enfrentando, mas
não tinha tempo de parar e refletir sobre as probabilidades.
Estava mais uma vez encarando Kessell, desta vez na menor sala da estrutura. Entre
eles, pairando assustadoramente no ar, estava o pedaço pulsante de cristal – o
coração de Cryshal-Tirith. Ele tinha quatro lados e era afilado como um pingente de
gelo. Drizzt a reconheceu como uma réplica em miniatura da torre em que se
encontrava, embora mal tivesse uns trinta centímetros de comprimento.
Uma imagem exata de Crenshinibon.
Uma parede de luz emanava dele, cortando a câmara ao meio, com o drow de um
lado e o mago do outro. Drizzt sabia pela risada do mago que era uma barreira tão
tangível quanto uma de pedra. Ao contrário da desorganizada sala de vigia abaixo,
apenas um espelho, parecendo mais uma janela na parede da torre, adornava a sala,
logo ao lado do mago.
— Ataque o coração, drow — Kessell riu. — Tolo! O coração de Cryshal-Tirith é
mais poderoso do que qualquer arma do mundo! Nada do que você pudesse fazer,
mágico ou não, poderia colocar o menor arranhão em sua superfície pura! Ataque-o;
que sua tola impertinência seja revelada!
Drizzt tinha outros planos, porém. Ele era flexível e astuto o suficiente para
perceber que alguns inimigos não podiam ser derrotados apenas com força. Sempre
havia outras opções.
Ele embainhou sua arma restante, a cimitarra mágica, e começou a desatar a corda
que prendia o saco ao cinto. Kessell olhou com curiosidade, perturbado pela calma
do drow, mesmo quando sua morte parecia inevitável.
— O que você está fazendo? — o mago exigiu saber.
Drizzt não respondeu. Suas ações foram metódicas e inabaláveis.
Ele afrouxou o cordão do saco e o abriu.
— Eu perguntei o que você está fazendo! — Kessell fez uma careta quando Drizzt
começou a caminhar em direção ao coração. De repente, a réplica parecia
vulnerável para o mago. Ele teve a sensação desconfortável de que talvez esse elfo
negro fosse mais perigoso do que havia imaginado.
Crenshinibon também sentiu. O Fragmento de Cristal telepaticamente instruiu
Kessell a liberar um raio mortal e acabar com o drow.
Mas Kessell estava com medo.
Drizzt se aproximou do cristal. Tentou colocar a mão sobre ele, mas a parede de luz
o repelia. Ele assentiu, esperando por isso, e puxou a abertura do saco o mais largo
possível. Sua concentração estava apenas na própria torre; nunca olhou para o mago
ou reconheceu seu esbravejar.
Ele esvaziou o saco de farinha sobre a pedra.
A torre parecia gemer em protesto e escureceu.
A parede de luz que separava o drow do mago desapareceu.
Mas Drizzt continuava concentrado na torre. Ele sabia que a camada de farinha
sufocante só poderia bloquear as radiações poderosas da pedra por um curto período
de tempo.
Tempo suficiente, porém, para ele deslizar a bolsa agora vazia sobre ela e puxar o
cordão com força. Kessell choramingou e avançou, mas parou diante da cimitarra
sacada.
— Não! — o mago gritou em protesto impotente. — Você percebe as consequências
do que fez? — Como se respondesse, a torre tremeu. O tremor se acalmou
rapidamente, mas tanto o drow quanto o mago sentiram o perigo que se
aproximava. Em algum lugar nas entranhas de Cryshal-Tirith, a ruína já havia
começado.
— Eu entendo perfeitamente — respondeu Drizzt. — Eu te derrotei, Akar Kessell.
Seu breve reinado como autoproclamado governante de Dez-Burgos acabou.
— Você se matou, drow! — Kessell retrucou quando Cryshal-Tirith estremeceu de
novo, desta vez ainda mais violentamente. — Você não pode esperar escapar antes
que a torre desmorone sobre você!
O tremor veio de novo. E de novo.
Drizzt deu de ombros, despreocupado.
— Assim seja — disse ele. — Meu objetivo será cumprido, pois você também
perecerá.
Uma gargalhada súbita e louca explodiu dos lábios do mago. Ele se afastou de
Drizzt e mergulhou no espelho embutido na parede da torre. Em vez de bater no
vidro e cair no campo abaixo, como Drizzt esperava, Kessell deslizou para dentro
do espelho e se foi.
A torre tremeu novamente, e desta vez o tremor não cedeu. Drizzt correu para o
alçapão, mas mal conseguia se manter de pé. Rachaduras apareceram ao longo das
paredes.
— Regis! — ele gritou, mas não houve resposta. Parte da parede na sala abaixo já
havia desabado, Drizzt podia ver os escombros na base da escada. Rezando para
que seu amigo já tivesse escapado, tomou o único caminho que lhe restava.
Mergulhou pelo espelho mágico atrás de Kessell.
Capítulo 30
Os soldados de Bryn Shander e Refúgio Leste, lutando lado a lado com Cassius e
Glensather à frente, avançaram colina abaixo e se dirigiram com força para as
confusas fileiras de goblins. Os dois porta-vozes tinham um objetivo particular em
mente: queriam atravessar as fileiras de monstros e se unir às tropas de Bruenor.
Alguns momentos antes, na muralha, haviam visto os bárbaros tentando a mesma
estratégia e imaginaram que, se todos os três exércitos pudessem se reunir e
flanqueá-los, suas poucas chances aumentariam muito.
Os goblins cederam ao ataque. Em seu absoluto desânimo e surpresa com a virada
repentina dos acontecimentos, os monstros não conseguiram organizar qualquer
arremedo de linha defensiva.
Quando as quatro frotas de Maer Dualdon desembarcaram ao norte das ruínas de
Targos, encontraram a mesma resistência desorganizada e desorientada. Kemp e os
outros líderes imaginaram que poderiam facilmente se estabelecer na terra, mas sua
principal preocupação era que as grandes forças de goblins que ocupavam
Termalaine fossem atrás deles caso se afastassem da praia e removessem sua única
rota de fuga.
Eles não precisavam se preocupar, no entanto. Nos primeiros estágios da batalha, os
goblins em Termalaine haviam realmente corrido com toda a intenção de apoiar seu
mago. Mas então Cryshal-Tirith desabara. Os goblins já estavam céticos, depois de
ouvirem rumores durante toda a noite de que Kessell havia despachado uma grande
força para acabar com os Orcs da Língua Cortada na cidade conquistada de
Bremen. E quando viram a torre, o auge da força de Kessell, desabar em ruínas, eles
reconsideraram suas alternativas, avaliando as consequências das escolhas diante
deles. Fugiram para o norte, para a segurança da planície aberta.
◆
A neve soprada pelo vento foi somada ao véu pesado no topo da montanha. Drizzt
manteve os olhos baixos, mas mal conseguia ver seus próprios pés enquanto
colocava um na frente do outro. Ele ainda segurava a cimitarra mágica, que brilhava
com uma luz pálida, como se aprovasse as temperaturas geladas.
O corpo entorpecido do drow implorava para que começasse a descer a montanha, e
ainda assim ele estava indo mais ao longo da face alta, para um dos picos
adjacentes. O vento carregava um som perturbador em seus ouvidos – a gargalhada
de uma risada insana.
Ele viu a forma turva do mago, debruçada sobre o precipício do sul, tentando
vislumbrar o que estava acontecendo no campo de batalha abaixo.
— Kessell! — gritou Drizzt. Ele viu a forma se mexer abruptamente e sabia que o
mago o ouvira, mesmo através do uivo do vento. — Em nome do povo de Dez-
Burgos, exijo que você se renda a mim! Agora, antes que esse sopro implacável do
inverno nos congele onde estamos!
Kessell sorriu desdenhoso.
— Você ainda não entende o que enfrenta, entende? — ele perguntou surpreso. —
Você realmente acredita que venceu esta batalha?
— Como as pessoas abaixo estão se saindo, ainda não sei — respondeu Drizzt. —
Mas você está derrotado! Sua torre está destruída, Kessell, e sem ela você é apenas
um charlatão! — Ele continuou avançando enquanto falavam e agora estava a
poucos metros do mago, embora seu oponente ainda fosse um mero borrão preto em
um campo cinza.
— Deseja saber como eles estão se saindo, drow? — perguntou Kessell. — Então
olhe! Testemunhe a queda de Dez-Burgos! Ele enfiou a mão por baixo da capa e
puxou um objeto brilhante – um fragmento de cristal. As nuvens pareciam recuar
ante a visão dele. O vento parou no amplo raio de sua influência. Drizzt podia ver
seu poder incrível. O drow sentiu o sangue retornar às mãos entorpecidas à luz do
cristal. Então o véu cinza foi queimado e o céu diante deles ficou claro.
— A torre foi destruída? — zombou Kessell. — Você quebrou apenas uma das
inúmeras imagens de Crenshinibon! Um saco de farinha? Derrotar a relíquia mais
poderosa do mundo? Olhe para os homens tolos que ousam se opor a mim!
O campo de batalha estava espalhado diante do drow. Ele podia ver as velas brancas
e cheias de vento dos barcos de Caer-Dineval e Caer-Konig enquanto se
aproximavam das margens ocidentais de Lac Dinneshere.
No sul, as frotas de Bom Prado e Toca de Dougan já haviam aportado. Os
marinheiros não encontraram resistência inicial e, mesmo agora, estavam se
preparando para um ataque em terra. Os goblins e orcs que formaram a metade sul
do anel de Kessell não testemunharam a queda de Cryshal-Tirith. Embora sentissem
a perda de poder e orientação, tantos deles permaneceram onde estavam ou
abandonaram seus companheiros e fugiram quantos correram ao redor da colina de
Bryn Shander para participar da batalha.
As tropas de Kemp também estavam em terra, saindo cuidadosamente das praias,
com um olhar cauteloso para o norte. Esse grupo havia desembarcado na
concentração mais espessa das forças de Kessell, mas também na área que estava
sob a sombra da torre, onde a queda de Cryshal-Tirith fora mais desanimadora. Os
pescadores encontraram mais goblins interessados em fugir do que com a intenção
de lutar.
No centro do campo, onde a luta mais pesada estava ocorrendo, os homens de Dez-
Burgos e seus aliados também pareciam estar se saindo bem. Os bárbaros haviam
quase se juntado aos anões. Estimulados pelo poder do martelo de Wulfgar e pela
coragem incomparável de Bruenor, as duas forças estavam destruindo tudo o que
havia entre elas. E logo se tornariam ainda mais formidáveis, pois Cassius e
Glensather estavam por perto e avançavam em ritmo constante.
— Pelo que meus olhos me dizem, seu exército não está se saindo muito bem —
Drizzt replicou. — Os homens “tolos” de Dez-Burgos ainda não foram derrotados!
Kessell levantou o Fragmento de Cristal bem acima dele, sua luz queimando em um
nível ainda maior de poder. No campo de batalha, mesmo a grande distância, os
combatentes entendiam ao mesmo tempo o ressurgimento da presença poderosa que
haviam conhecido como Cryshal-Tirith. Humanos, anões e goblins, mesmo aqueles
travados em combate mortal, pararam por um segundo para olhar o farol na
montanha. Os monstros, sentindo o retorno de seu deus, aplaudiram loucamente e
abandonaram sua postura até então defensiva. Encorajados pelo glorioso
reaparecimento de Kessell, eles renovaram o ataque com fúria selvagem.
— Você vê como minha mera presença os incita! — Kessell se gabou com orgulho.
Mas Drizzt não estava prestando atenção no mago ou na batalha abaixo. Ele agora
estava de pé sobre poças de água, da neve que derretera sob o calor da relíquia
brilhante. Ele estava atento a um barulho que seus ouvidos aguçados haviam
captado em meio ao barulho da luta distante. Um estrondo de protesto dos picos
congelados do Sepulcro de Kelvin.
— Eis a glória de Akar Kessell! — o mago gritou, sua voz aumentada para
proporções ensurdecedoras pelo poder da relíquia que possuía. — Quão fácil será
para mim destruir os barcos no lago abaixo!
Drizzt percebeu que Kessell, em seu desprezo arrogante pelos perigos que o
cercavam, estava cometendo um erro óbvio. Tudo o que ele tinha que fazer era
atrasar o mago em qualquer ação decisiva nos próximos momentos.
Reflexivamente, ele pegou a adaga na parte de trás do cinto e a atirou em Kessell,
embora soubesse que Kessell estava envolvido em alguma simbiose pervertida com
Crenshinibon e que a pequena arma não tinha chance de atingir seu alvo. O drow
esperava distrair e enfurecer o mago para desviar sua fúria do campo de batalha.
A adaga acelerou no ar. Drizzt virou-se e correu.
Um feixe fino disparou de Crenshinibon e derreteu a arma antes de encontrar seu
alvo, mas Kessell ficou indignado.
— Você deveria se curvar diante de mim! — gritou para Drizzt. — Cão blasfemo,
você ganhou a distinção de ser minha primeira vítima do dia! — Ele afastou o
fragmento da borda para apontá-lo para o drow em fuga. Mas quando girou,
afundou, subitamente até os joelhos na neve derretida.
Então também ouviu os rugidos furiosos da montanha.
Drizzt se soltou da esfera de influência da relíquia e, sem hesitar para olhar para
trás, correu, aumentando o máximo possível a distância entre ele e a face sul do
Sepulcro de Kelvin.
Imerso até o peito agora, Kessell lutava para se livrar da neve derretida. Ele invocou
o poder de Crenshinibon novamente, mas sua concentração vacilou sob o intenso
estresse da destruição iminente.
Akar Kessell sentiu-se fraco novamente pela primeira vez em anos. Não era o tirano
do Vale do Vento Gélido, mas o aprendiz desajeitado que matara seu professor.
Como se o Fragmento de Cristal o tivesse rejeitado.
Todo o lado da calota de neve da montanha caiu. O estrondo sacudiu a terra por
muitos quilômetros ao redor. Homens e orcs, goblins e até ogros, foram jogados ao
chão.
Kessell apertou o fragmento mais para perto quando começou a cair. Mas
Crenshinibon queimou suas mãos, afastando-o. Kessell falhara vezes demais. A
relíquia não o aceitaria mais como portador.
Kessell gritou quando sentiu o fragmento deslizando por entre seus dedos. Seu
grito, no entanto, foi abafado pelo trovão da avalanche. A fria escuridão da neve se
fechou ao seu redor, caindo, tombando com ele na descida. Kessell acreditava
desesperadamente que, se ainda mantivesse o Fragmento de Cristal, poderia
sobreviver até a isso. Um pequeno conforto o atingiu quando ele se instalou em um
pico mais baixo do Sepulcro de Kelvin.
E metade do pico da montanha caiu em cima dele.
O exército de monstros viu seu deus cair novamente. O fio que incitara seu impulso
rapidamente começou a se desfazer. Mas no tempo em que Kessell reapareceu,
alguma coordenação havia ocorrido. Dois gigantes do gelo, os únicos verdadeiros
gigantes restantes em todo o exército do mago, assumiram o comando. Eles
chamaram a guarda de elite de ogros para o lado deles e depois pediram que as
tribos orcs e goblins se reunissem ao seu redor e seguissem sua liderança.
Ainda assim, o desinteresse do exército era óbvio. As rivalidades tribais que haviam
sido enterradas sob o domínio de punhos de ferro de Akar Kessell ressurgiram na
forma de flagrante desconfiança. Apenas o medo de seus inimigos os mantinha
lutando, e apenas o medo dos gigantes os mantinha alinhados ao lado das outras
tribos.
— É bom vê-lo, Bruenor! — Wulfgar gritou, esmagando outra cabeça de goblin,
quando a horda bárbara finalmente chegou aos anões.
— Te digo o mesmo, garoto! — o anão respondeu, enterrando o machado no peito
de seu oponente. — Demorou muito para você voltar! Achei que teria que matar sua
parte da escória também!
A atenção de Wulfgar estava em outro lugar, porém. Ele descobrira os dois gigantes
que comandavam a força.
— Gigantes de gelo — disse a Bruenor, direcionando o olhar do anão para o anel de
ogros. — Eles são tudo o que mantém as tribos unidas!
— Mais diversão! — Bruenor riu. — Vá na frente!
E assim, com seus principais assistentes e Bruenor ao seu lado, o jovem rei
começou a abrir caminho pelas fileiras de goblins.
Os ogros se aglomeraram na frente de seus novos comandantes para bloquear o
caminho dos bárbaros.
A essa altura, Wulfgar já estava perto o suficiente.
Presa de Égide assobiou além das fileiras dos ogros e pegou um dos gigantes na
cabeça, largando-o sem vida no chão. O outro, incrédulo por um humano ter sido
capaz de dar um golpe tão mortal contra um de seu tipo a uma distância tão grande,
hesitou por apenas um breve momento antes de fugir da batalha.
Destemidos, os ogros cruéis atacaram o grupo de Wulfgar, empurrando-os para trás.
Mas Wulfgar estava satisfeito e, de bom grado, cedeu espaço, ansioso para se juntar
à maior parte do exército humano e anão.
Bruenor não estava tão disposto, porém. Esse era o tipo de luta caótica que ele mais
gostava. Desapareceu sob as longas pernas da linha principal de ogros e passou,
invisível no pó e na confusão, entre suas fileiras.
Pelo canto do olho, Wulfgar viu a estranha partida do anão.
— Aonde você vai? — gritou atrás dele, mas Bruenor, sedento pela batalha, não
podia ouvir o chamado e não teria prestado atenção.
Wulfgar não conseguia ver a corrida do anão selvagem, mas podia se aproximar da
posição de Bruenor, ou pelo menos onde o anão acabara de estar, já que ogro após
ogro se dobrava em agonia surpresa, segurando um joelho, um tendão ou uma
virilha.
Acima de toda a comoção, aqueles orcs e goblins que não estavam envolvidos em
combate direto mantinham um olhar atento ao Sepulcro de Kelvin, aguardando o
segundo ressurgimento.
Mas agora, nas colinas mais baixas da montanha, havia apenas neve.
A batalha durou pelo resto da manhã, tanto homens quanto monstros levantando
espadas e lanças que pareciam ter dobrado seu peso. No entanto, a exaustão,
embora retardasse seus reflexos, não fez nada para amenizar a raiva que ardia no
sangue de todo combatente.
As linhas de batalha tornaram-se indistinguíveis à medida que a luta prosseguia,
com as tropas ficando irremediavelmente separadas de seus comandantes. Em
muitos lugares, goblins e orcs lutavam entre si, incapazes, mesmo com um inimigo
comum tão prontamente disponível, de sublimar seu ódio de longa data pelas tribos
rivais. Uma espessa nuvem de poeira envolvia as mais pesadas concentrações da
luta; o clamor vertiginoso de aço contra aço, espadas batendo contra escudos e os
crescentes gritos de morte, agonia e vitória degeneraram o choque estruturado em
uma briga generalizada.
A única exceção era o grupo de anões experientes em batalha. Suas fileiras não
vacilaram nem se desintegraram, apesar de Bruenor ainda não ter retornado após
sua estranha saída.
Os anões forneceram uma plataforma sólida para os bárbaros atacarem e para
Wulfgar e seu pequeno grupo marcarem seu retorno. O jovem rei estava de volta
entre as fileiras de seus homens, justamente quando Cassius e sua força se uniram.
O porta-voz e Wulfgar trocaram olhares atentos, nenhum deles certo de em que pé
um estava com o outro. Ambos eram sábios o suficiente para confiar plenamente
em sua aliança no presente, porém. Ambos entendiam que inimigos inteligentes
deixavam de lado suas diferenças diante de um inimigo maior.
Apoiar um ao outro seria a única vantagem que os aliados recém unidos
desfrutariam. Juntos, superavam em número e podiam derrotar qualquer tribo de
orcs ou goblins. E, uma vez que as tribos dos goblins não funcionariam em
uníssono, cada grupo não possuía suporte em seus flancos. Wulfgar e Cassius,
seguindo e apoiando os movimentos um do outro, enviavam guerreiros para impedir
grupos de perímetro, enquanto a força principal do exército combinado explodia em
uma tribo de cada vez.
Embora suas tropas estivessem derrubando dez goblins para cada homem que
perdiam, Cassius estava genuinamente preocupado. Milhares de monstros sequer
haviam entrado em contato com os humanos ou erguido uma arma ainda, e seus
homens estavam quase caindo de fadiga. Ele tinha que levá-los de volta à cidade.
Ele deixou os anões liderarem o caminho.
Wulfgar, também apreensivo com a capacidade de seus guerreiros em manter o
ritmo e sabendo que não havia outra rota de fuga, instruiu seus homens a seguir
Cassius e os anões. Era uma aposta, pois o bárbaro não sabia se o povo de Bryn
Shander deixaria seus guerreiros entrar na cidade.
A força de Kemp havia feito progressos iniciais impressionantes em suas investidas
nas encostas da cidade principal, mas, ao se aproximarem de seu objetivo, eles se
depararam com concentrações mais pesadas e mais desesperadas de humanóides. A
apenas cem metros da colina, estavam atolados e lutando por todos os lados.
Os exércitos que vinham do leste haviam se saído melhor. A corrida deles pela
Estrada Leste encontrou pouca resistência e foram os primeiros a alcançar a colina.
Eles navegaram loucamente pelos lagos, correram e lutaram por toda a planície,
mas Jensin Brent, o único porta-voz sobrevivente dos quatro originais, pois
Schermont e os dois das cidades do sul haviam caído na Estrada Leste, não os
deixou descansar. Ele ouvia a batalha acalorada e sabia que os bravos homens nos
campos do norte, enfrentando a massa do exército de Kessell, precisavam de
qualquer apoio que pudessem obter.
No entanto, quando o porta-voz conduziu suas tropas pela curva final até o portão
norte da cidade, eles pararam e olharam para o espetáculo da batalha mais brutal
que já haviam visto ou ouvido falar em histórias exageradas. Combatentes lutavam
sobre os corpos mutilados dos caídos e guerreiros que de alguma forma perderam
suas armas mordiam e arranhavam seus oponentes.
Brent supôs imediatamente que Cassius e sua grande força seriam capazes de voltar
à cidade por conta própria. Os exércitos de Maer Dualdon, no entanto, estavam em
uma situação difícil.
— Para o oeste! — gritou para seus homens enquanto avançava em direção à força
aprisionada. Uma nova onda de adrenalina enviou o exército cansado em fuga para
o resgate de seus camaradas. Sob ordens de Brent, desceram das encostas em uma
longa fila lado a lado, mas quando chegaram ao campo de batalha, apenas o grupo
do meio continuou avançando. Os grupos no final da formação desmoronaram para
o meio, e toda a força logo formou uma cunha, sua ponta quebrando todo o caminho
através dos monstros para alcançar os exércitos em apuros de Kemp.
Os homens de Kemp aceitaram o apoio e a força unida logo conseguiu recuar para a
face norte da colina. Os últimos retardatários chegaram ao mesmo tempo que o
exército de Cassius, os bárbaros de Wulfgar, e os anões se libertaram das fileiras
mais próximas de goblins e escalaram o terreno aberto da colina. Agora, com os
humanos e os anões unidos, os goblins se moviam timidamente. Suas perdas
haviam sido surpreendentes. Nenhum gigante ou ogro permanecia e várias tribos
inteiras de goblins e orcs jaziam mortas. Cryshal-Tirith era uma pilha de entulho
enegrecido e Akar Kessell estava enterrado em uma cova congelada.
Os homens na colina de Bryn Shander estavam feridos e vacilantes de exaustão,
mas a expressão sombria de suas faces dizia aos monstros restantes
inequivocamente que lutariam até o último suspiro. Eles haviam voltado para o
canto final, não haveria mais retirada.
Dúvidas surgiram na mente de todos os goblins e orcs que restavam para continuar
a guerra. Embora seus números ainda fossem provavelmente suficientes para
completar a tarefa, muitos outros ainda cairiam antes que os homens ferozes de
Dez-Burgos e seus aliados mortais fossem derrotados. Mesmo assim, qual das tribos
sobreviventes reivindicaria a vitória? Sem a orientação do mago, os sobreviventes
da batalha certamente teriam dificuldade em dividir os despojos de maneira justa
sem mais brigas.
A Batalha de Vale do Vento Gélido não seguira o curso que Akar Kessell havia
prometido.Os exércitos que vinham do leste haviam se saído melhor. A corrida
deles pela Estrada Leste encontrou pouca resistência e foram os primeiros a
alcançar a colina. Navegaram loucamente pelos lagos, correram e lutaram por toda
a planície, mas Jensin Brent, o único porta-voz sobrevivente dos quatro originais,
pois Schermont e os dois das cidades do sul haviam caído na Estrada Leste, não os
deixou descansar. Ele ouvia a batalha acalorada e sabia que os bravos homens nos
campos do norte, enfrentando a massa do exército de Kessell, precisavam de apoio.
No entanto, quando o porta-voz conduziu suas tropas pela curva final até o portão
norte da cidade, eles pararam e olharam para o espetáculo mais brutal que já haviam
visto ou ouvido falar. Combatentes lutavam sobre os corpos mutilados dos caídos.
Aqueles que haviam perdido suas armas mordiam e arranhavam seus oponentes.
Brent supôs imediatamente que Cassius e sua grande força seriam capazes de voltar
à cidade por conta própria. Os exércitos de Maer Dualdon, no entanto, estavam em
uma situação difícil.
— Para o oeste! — gritou para seus homens enquanto avançava em direção à força
aprisionada. Uma nova onda de adrenalina enviou o exército cansado em fuga para
o resgate de seus camaradas. Sob ordens de Brent, desceram das encostas em uma
longa fila lado a lado, mas quando chegaram ao campo de batalha, apenas o grupo
do meio continuou avançando. Os grupos no final da formação desmoronaram para
o meio, e toda a força logo formou uma cunha, sua ponta quebrando todo o caminho
através dos monstros para alcançar os exércitos em apuros de Kemp.
Os homens de Kemp aceitaram ansiosamente o apoio e a força unida logo
conseguiu recuar para a face norte da colina. Os últimos retardatários chegaram ao
mesmo tempo que o exército de Cassius, os bárbaros de Wulfgar, e os anões se
libertaram das fileiras mais próximas de goblins e escalaram o terreno aberto da
colina. Agora, com os humanos e os anões unidos como uma força, os goblins se
moviam timidamente. Suas perdas haviam sido surpreendentes. Nenhum gigante ou
ogro permanecia, e várias tribos inteiras de goblins e orcs jaziam mortas. Cryshal-
Tirith era uma pilha de entulho enegrecido e Akar Kessell estava enterrado em uma
cova congelada.
Os homens na colina de Bryn Shander estavam feridos e vacilantes de exaustão,
mas a expressão sombria de suas faces dizia aos monstros restantes
inequivocamente que lutariam até o último suspiro. Eles haviam voltado para o
canto final, não haveria mais retirada.
Dúvidas surgiram na mente de todos os goblins e orcs que restavam para continuar
a guerra. Embora seus números ainda fossem provavelmente suficientes para
completar a tarefa, muitos outros ainda cairiam antes que os homens ferozes de
Dez-Burgos e seus aliados mortais fossem derrotados. Mesmo assim, qual das tribos
sobreviventes reivindicaria a vitória? Sem a orientação do mago, os sobreviventes
da batalha certamente teriam dificuldade em dividir os despojos de maneira justa
sem mais brigas.
A Batalha de Vale do Vento Gélido não seguira o curso que Akar Kessell havia
prometido.
Capítulo 31
Vitória?
Drizzt desceu com a onda branca de neve caindo ao lado da montanha. Ele tropeçou
impotente, tentando se preparar sempre que via se sobressair a ponta de uma pedra
em seu caminho. Ao se aproximar da base da calota de neve, foi jogado para longe
do escorregador e enviado saltitando pelas rochas e pedregulhos cinzentos, como se
os orgulhosos e inconquistáveis picos da montanha o tivessem cuspido como um
penetra.
Sua agilidade – e uma forte dose de pura sorte – o salvaram. Quando finalmente
conseguiu parar seu impulso e encontrar um apoio, descobriu que seus numerosos
ferimentos eram superficiais, um arranhão no joelho, um nariz ensanguentado e um
pulso torcido sendo os piores deles. Em retrospecto, Drizzt teve que considerar a
pequena avalanche uma bênção, pois descera rapidamente a montanha e sequer
tinha certeza se poderia ter escapado do destino gelado de Kessell sem ela.
A batalha no sul havia recomeçado a essa altura. Ouvindo os sons dos combates,
Drizzt observou curioso milhares de goblins passarem do outro lado do vale dos
anões, subindo o Passo do Vento Gélido na primeira etapa de sua longa jornada para
casa. O drow não podia ter certeza do que estava acontecendo, embora estivesse
familiarizado com a reputação covarde dos goblins.
Ele não pensou muito nisso, porém, pois a batalha não era mais sua preocupação
principal. Sua visão seguiu um caminho direto até o monte de pedra preta quebrada
que fora Cryshal-Tirith. Ele terminou sua descida do Sepulcro de Kelvin e desceu o
Caminho de Bremen em direção aos escombros.
Ele tinha que descobrir se Regis ou Guenhwyvar haviam escapado.
Vitória.
Parecia um pequeno conforto para Cassius, Kemp e Jensin Brent, enquanto olhavam
ao redor para a carnificina no campo marcado. Eles foram os únicos três porta-
vozes que sobreviveram à luta; sete outros haviam caído.
— Nós vencemos — declarou Cassius de forma sombria. Ele assistiu, impotente, à
medida que mais soldados caíam mortos, homens que sofreram ferimentos mortais
mais cedo na batalha, mas se recusaram a cair e morrer até que ela houvesse
acabado. Mais da metade de todos os homens de Dez-Burgos estavam mortos e
muitos mais morreriam depois, porque quase metade dos que ainda estavam vivos
haviam sido gravemente feridos. Quatro cidades foram queimadas por completo e
outra saqueada e destruída pela ocupação dos goblins.
Eles pagaram um preço terrível por sua vitória.
Os bárbaros também foram dizimados. A maioria jovens e inexperientes, lutaram
com a tenacidade de seu povo e morreram aceitando seu destino como um final
glorioso para a história de suas vidas.
Somente os anões, disciplinados por muitas batalhas, tinham passado relativamente
incólumes. Vários foram mortos, outros feridos, mas a maioria estava mais do que
pronta para retomar à luta se pudessem encontrar mais goblins para golpear! Seu
único grande lamento, no entanto, era o desaparecimento de Bruenor.
— Vão para o seu povo — disse Cassius a seus colegas porta-vozes. — E voltem
hoje à noite para um conselho. Kemp falará por todo o povo das quatro cidades de
Maer Dualdon, Jensin Brent pelo povo dos outros lagos.
— Temos muito a decidir e pouco tempo para isso — disse Jensin Brent. — O
inverno está se aproximando rapidamente.
— Vamos sobreviver! — Kemp declarou com seu ar de desafio característico. Mas
então percebeu os olhares soturnos que seus colegas lhe lançavam e cedeu um
pouco ao realismo deles. — Mas será uma luta amarga.
— Assim será para o meu povo — disse outra voz. Os três porta-vozes se viraram
para ver o gigante Wulfgar saindo da cena surrealista e empoeirada de carnificina.
O bárbaro estava coberto de terra e salpicado com o sangue de seus inimigos, mas
parecia em cada parte o nobre rei que era. — Peço um convite ao seu conselho,
Cassius. Há muito que nosso povo pode oferecer um ao outro neste momento
difícil.
Kemp rosnou:
— Se precisarmos de animais de carga, compraremos bois.
Cassius lançou um olhar perigoso a Kemp e dirigiu-se ao seu aliado inesperado.
— Você pode se juntar ao conselho, Wulfgar, filho de Beornegar. Por sua ajuda
neste dia, meu povo deve muito ao seu. Mais uma vez pergunto: por que você veio?
Pela segunda vez naquele dia, Wulfgar ignorou os insultos de Kemp.
— Para pagar uma dívida — respondeu a Cassius. — E talvez para melhorar a vida
de nossos povos.
— Matando goblins? — Jensin Brent perguntou, suspeitando que o bárbaro tinha
mais em mente.
— Um começo — respondeu Wulfgar. — Ainda há muito mais que podemos
realizar. Meu povo conhece a tundra melhor até mesmo do que os iétis. Entendemos
seus caminhos e sabemos como sobreviver. Seu povo se beneficiaria com a nossa
amizade, especialmente nos tempos difíceis que estão à sua frente.
— Hah! — Kemp bufou, mas Cassius o silenciou. O porta-voz de Bryn Shander
estava intrigado com as possibilidades.
— E o que seu povo ganharia com essa união?
— Uma conexão — respondeu Wulfgar. — Um elo para um mundo de luxos que
nunca conhecemos. As tribos têm nas mãos o tesouro de um dragão, mas ouro e
joias não fornecem calor em uma noite de inverno, nem comida quando a caça é
escassa. Seu povo tem muito a reconstruir. Meu povo tem a riqueza para ajudar
nessa tarefa. Em troca, Dez-Burgos levará a meu povo a uma vida melhor!
Cassius e Jensin Brent assentiram com aprovação enquanto Wulfgar traçava seu
plano.
— Finalmente, e talvez o mais importante — concluiu o bárbaro — é o fato de que
precisamos um do outro, pelo menos por enquanto. Ambos os nossos povos foram
enfraquecidos e estão vulneráveis aos perigos desta terra. Juntos, nossa força
restante nos ajudaria a atravessar o inverno.
— Você me intriga e me surpreende — disse Cassius. — Participe do conselho,
portanto, com minhas boas-vindas pessoais, e ponhamos em movimento um plano
que beneficiará todos os que sobreviveram à luta contra Akar Kessell!
Quando Cassius se virou, Wulfgar pegou a camisa de Kemp com uma de suas mãos
enormes e levantou com facilidade o porta-voz de Targos. Kemp deu um tapa no
antebraço musculoso, mas percebeu que não tinha chance de quebrar o aperto de
ferro do bárbaro.
Wulfgar olhou para ele perigosamente.
— Por enquanto — disse ele — sou responsável por todo o meu povo. Por isso,
desconsiderei seus insultos. Mas quando chegar o dia em que eu não for mais rei,
você faria bem em não cruzar mais o meu caminho! — com um movimento do
pulso, jogou o porta-voz no chão.
Kemp, intimidado demais no momento para ficar furioso ou envergonhado, ficou
sentado onde caiu e não respondeu. Cassius e Brent se cutucaram e compartilharam
uma risada baixa.
Isso durou apenas até que eles viram a garota se aproximando, com o braço em uma
tipoia sangrenta e o rosto e o cabelo arruivado coberto de camadas de poeira.
Wulfgar também a viu, e a visão de suas feridas causou mais dor do que as suas
poderiam.
— Cattibrie! — ele gritou, correndo para ela, que o acalmou com a palma da mão
estendida.
— Não estou gravemente ferida — assegurou estoicamente a Wulfgar, embora fosse
óbvio para o bárbaro que ela havia se ferido muito. — Embora não ouse pensar no
que teria acontecido comigo se Bruenor não houvesse chegado!
— Você viu Bruenor?
— Nos túneis — explicou Cattibrie. — Alguns orcs conseguiram entrar... talvez eu
devesse ter desmoronado o túnel. No entanto, não havia muitos, e eu pude ouvir que
os anões estavam indo bem no campo acima.
— Bruenor desceu, mas havia mais orcs atrás dele. Uma viga de apoio desabou;
acho que Bruenor a cortou, e havia muita poeira e confusão.
— E Bruenor? — Wulfgar perguntou ansiosamente.
Cattibrie olhou para trás, para o outro lado do campo.
— Lá fora. Ele perguntou por você.
Drizzt e Bruenor haviam passado o inverno se preparando para sua busca pelo Salão
de Mitral. O drow pretendia honrar sua palavra, embora tivesse sido enganado,
porque a vida não havia mudado muito para ele após a batalha. Embora houvesse
sido o verdadeiro herói da batalha, ainda era mal e mal tolerado entre o povo de
Dez-Burgos. E os bárbaros, além de Wulfgar e Revjak, o evitavam abertamente,
resmungando orações para seus deuses sempre que inadvertidamente cruzavam seu
caminho.
Mas o drow aceitou as esquivas com seu estoicismo característico.
— Os rumores na cidade dizem que você deu sua voz no conselho a Revjak —
disse Cattibrie a Wulfgar em uma de suas visitas a Bryn Shander.
Wulfgar assentiu.
— Ele é mais velho e mais sábio em muitos aspectos. — Cattibrie lançou Wulfgar
sob o desconfortável escrutínio de seus olhos escuros. Ela sabia que havia outras
razões para Wulfgar deixar o cargo de rei.
— Você quer ir com eles — afirmou sem rodeios.
— Devo isso ao drow — foi a única explicação de Wulfgar quando se virou, sem
querer discutir com a garota.
— Mais uma vez, você evita a pergunta — Cattibrie riu. — Você não vai para pagar
uma dívida! Você vai porque escolhe a estrada!
— O que você poderia saber sobre a estrada? — Wulfgar rosnou, tocado pela
observação dolorosamente precisa da garota. — O que você poderia saber sobre
aventura?
Os olhos de Cattibrie brilharam de forma desarmante.
— Eu sei — ela declarou categoricamente. — Todo dia em todo lugar é uma
aventura. Isso você ainda não aprendeu. E assim, você persegue as estradas
distantes, esperando satisfazer a fome por empolgação que queima em sua alma.
Então vá, Wulfgar de Vale do Vento Gélido. Siga a trilha do seu coração e seja feliz!
Talvez quando voltar, entenderá a emoção de estar vivo. — Ela o beijou na
bochecha e saltitou até a porta.
Wulfgar a chamou, agradavelmente surpreendido por seu beijo.
— Talvez então nossas discussões sejam mais agradáveis!
— Mas não tão interessantes — foi sua resposta de despedida.