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Aulas II e III: A sociologia de Ferdinand Tönnies (1855-1936):

as formas de vontade e de relacionamento social; o sentido e o


significado da comunidade; o sentido e o significado da sociedade,
o desenvolvimento e a questão social.
I – A era moderna: o novo; o conflito e a luta, o medo e a
necessidade dos vínculos sociais, a importância da ordem social, a 2
vontade e o intelecto, a revolução no pensamento e as revoluções
burguesas.
II – A comunidade e a sociedade. 4
III – Sobre o sentido da tipologia e a análise sociológica
comparativa de Ferdinand Tönnies das formas sociais de vontade, 9
valores e intelecto.
IV – A compreensão sociológica dos vínculos e relações sociais que
mantém unido as formas de sociabilidade humana. 17
V – Reflexões de F. Tönnies em Comunidade e Sociedade. 22
VI – A questão social. 25
VII – Marco Tarchi, Forma comunitária no Terceiro Milênio. 29

Leonardo da Vinci, L'uomo vitruviano (1490)

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Rembrandt van Rijn, “Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp” (1632).

I – A era moderna: o novo; o medo, a necessidade dos vínculos e da


ordem social; a vontade e o intelecto, a revolução no pensamento, as
revoluções burguesas.

1) O novo: a necessidade do pensamento compreender o que é.

“O movimento é a causa de toda vida.”


“Com o tempo, tudo vai se modificando.
“Todo o nosso conhecimento nasce dos sentidos.”
“Existindo as causas, a natureza produz o efeito do modo mais rápido
possível.”
Leonardo da Vinci, Pensamentos.

“Hegel insiste particularmente sobre o fato de que seu único


“pressuposto” é a “necessidade da filosofia” que surge “quando a
potência da unificação desaparece da vida dos homens e as oposições
perderam a sua relação viva, a sua ação recíproca e mantém a
independência” (Hegel, Primeiros escritos críticos). A tarefa da filosofia é
portanto aquela de corroer e dissolver a rigidez na qual a reflexão foi
fixada e o intelecto sufocou a vida, para integrá-la em uma totalidade
racional.”
Valerio Verra, Introdução a Hegel.

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2) O conflito e a luta, o medo e a necessidade dos vínculos sociais,
a importância da ordem social.

“Por meio das cidades dispersas espalhava-se um rumor, que o último


dia de nossos povos estava chegando com uma frota, e com tanto medo
minha mãe dava à luz naquele tempo, que ela concebeu gêmeos: eu e o
Medo.”
Thomas Hobbes, Vita Carmine Expressa.

“A existência contínua do medo e o contínuo perigo da morte violenta


tornam a vida do homem solitária, pobre, odiosa, brutal e breve”.

“O interesse e o medo são os princípios da sociedade.”

Thomas Hobbes, Leviatã.

3) A vontade e o intelecto.

“A vontade e o intelecto são uma só e mesma coisa.”


Baruch Spinoza, Ética.

4) A revolução no pensamento e as revoluções burguesas.

“Ousemos tudo ver e tudo ouvir, para julgar corretamente as coisas.”


“Que a Europa saiba que já não quereis um desafortunado nem um
opressor em território francês; que este exemplo frutifique sobre a terra;
que nela propague o amor das virtudes e a felicidade. A felicidade é uma
ideia nova na Europa!”
Louis Antoine L. de Saint-Just, Discursos
e relatórios (03/03/1794).

“Iluminismo é a saída do homem de sua menoridade da qual ele próprio


é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio
culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si
mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer
uso de teu próprio entendimento, tal é a palavra de ordem do
iluminismo.”
Immanuel Kant, Respondendo à pergunta:
o que o Iluminismo?

“O homem é vontade; e somente é livre desde que queira o que a sua


vontade é. No princípio da vontade livre está a essência de que a
vontade seja livre (...) O espírito já não sente temor perante está
exterioridade, nem duvida da possibilidade de poder reconciliar-se com
ela; reconhece que a natureza, o mundo, tem também em si uma razão
(...) Despertou, portanto, um interesse universal para estudar e
conhecer o mundo presente. O universal na natureza são as espécies,

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os gêneros, a força, a gravidade, reduzidas as suas manifestações, etc.
A experiência se converteu na ciência do mundo, pois, por um lado, a
experiência é a percepção, mas é também a descoberta da lei, do
interior, da força, na medida em que reduz toda existência ao simples.”

“Com isto o espírito alcançou a fase na qual o homem encontra o


verdadeiro conteúdo em si mesmo. É o período que se há designado
com o nome de Iluminismo. O princípio do Iluminismo é a soberania da
razão, a exclusão de toda autoridade.”

“A revolução francesa tem no pensamento seu começo e origem. O


pensamento, que considera como supremo as determinações universais
e encontra que o existe está em contradição com elas, levantou-se
contra o estado existente. A determinação suprema que o pensamento
pode encontrar é a da liberdade da vontade (...) O pensamento
compreendeu, portanto, que não há nada mais elevado que isto.”

“O novo espírito tornou-se ativo. A opressão impulsionou ao exame da


realidade. Observou-se que as somas extraídas pelo suor do povo não
eram empregadas para o bem do Estado, senão que eram desperdiçadas
de modo mais insensato. O sistema todo do Estado apareceu como uma
injustiça (...) Mas o pensamento, o conceito do direito, impôs-se de uma
só vez, e o velho tablado da injustiça não pode oferecer resistência. No
pensamento do direito foi erigido uma constituição, e sobre esta base
houve de tudo ser fundado. Desde que o sol está no firmamento e os
planetas giram ao seu redor, não se havia visto que o homem se
apoiasse sobre sua cabeça, isto é, sobre o pensamento e edificasse a
realidade conforme ao pensamento. Anaxágoras havia dito que o logos
rege o mundo; agora, pela primeira vez o homem conseguiu reconhecer
que o pensamento deve reger a realidade espiritual. Todos os seres
pensantes celebraram esta época. Uma emoção sublime reinava naquele
tempo.”
Georg W. Fr. Hegel, Lições sobre a filosofia
da história universal.

II – A comunidade e a sociedade.

1) A comunidade.

“Bendito o homem que confia no Senhor e o Senhor é a sua fé. Ele é


como a árvore plantada à beira da água, que estende as suas raízes em
direção ao rio. Não teme quando vem o calor, e suas folhas permanecem
verdes; no ano da sequidão não se entristece, nem para de dar fruto.”
Jeremias, Bíblia, 17:7-8.

“A alma se situa dentro do mundo como qualquer outro elemento desta


harmonia; a fronteira que lhe dá seus contornos não se distingue
essencialmente do contorno mesmo das coisas; ela traça linhas nítidas

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e claras, mas separadas por um modo relativo, de acordo com um
sistema homogêneo e equilibrado. Pois o homem não é um ponto
solitário, portador único da substancialidade, em meio de entidades
reflexivas. Suas relações com as demais figurações e as estruturas que
daí resultam são, por assim dizer, substância como ele próprio, ou mais
verdadeiramente plenas de substância, porque mais universais, “mais
filosóficas”, mais próximas e mais familiares à pátria arquetípica: o
amor, a família, a cidade.”
Georg Lukács, A teoria do romance.

“Embora estejamos em pó convertidos, em ti, Senhor, fiamos nossa


esperança, que tornaremos a viver vestidos, com a carne e a pele que
nos cobria.”
Miguel de Unamuno, Um cemitério em
Castilha.

“Eu sou vosso Senhor e meu Senhor é o Czar. O Czar tem o direito de
me dar ordens e devo obedecer-lhe, mas não de dá-las a vós. Em minha
propriedade, sou eu o Czar, sou vosso deus na terra, e terei que ser
responsável por vós perante Deus no Céu... Primeiramente, um cavalo
deve ser escovado dez vezes com a almofada de ferro, e somente então
podeis limpá-lo com a escova macia. Terei que escovar-vos com
violência, e quem sabe se chegarei jamais à escova macia. Deus limpa o
ar com trovões e relâmpagos, e, em minha aldeia, eu limparei com
trovões e fogo, sempre que assim julgue necessário.”
De um proprietário russo a seus servos.
Apud Hobsbawm, A era das revoluções.

2) A negação da ideia de cosmos e a revolução copernicana.

“A dissolução do cosmos significa a destruição de uma ideia: do mundo


de estrutura finita, hierarquicamente ordenado, mundo
qualitativamente diferenciado desde o ponto de vista ontológico; esta
ideia foi substituída pelo mundo aberto, indefinido e, inclusive, infinito,
que as mesmas leis do universo unificam e governam; um mundo no
qual todas as coisas pertencem o mesmo nível do ser, ao contrário da
concepção tradicional que distinguia e opunha os dois mundos, o do
Céu e o da Terra.”

“Penso que dissolução do cosmos, repito, foi a revolução mais profunda


realizada ou sofrida pelo espírito humano desde a invenção do kosmos
pelos gregos. É uma revolução tão profunda, de consequências tão
distantes, que, durante séculos, os homens – com raras exceções como
Pascal – não compreenderam o seu alcance e sentido; ainda hoje é
frequentemente subestimada e mal compreendida.”
Alexander Koyré, Estudos da história do
pensamento científico.

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“A palavra “Ocidente” oculta um singular destino. Indica a terra do
ocaso, da terra do crepúsculo. Mas em que sentido a nossa civilização é
uma chama destinada a extinguir-se, como o sol que se põe no início da
noite? Em que sentido e porquê o nosso é um mundo senil, envelhecido,
exausto? Perante à angústia da dor e do terrível nascer e morrer das
coisas, o Ocidente inventou múltiplos remédios. Primeiramente, a fé em
um Deus eterno, que sustenta o mundo e recompensa o sofrimento. E,
posteriormente, um aparato científico, que usa para vantagem própria a
transformação das coisas através da manipulação. Fé e ciência são os
dois territórios nos quais o Ocidente desenvolveu a sua força.
Atualmente, pedimos à ciência e à técnica o que outrora se pedia a um
deus: saúde, força, felicidade, salvação. A técnica é o último deus, o
último demiurgo, a última tentativa de dominar o mundo e domesticar o
horror da morte. A história do Ocidente é a história que repete um
idêntico e antigo gesto, a vontade ou a loucura com a qual Adão desejou
ser igual a Deus.”
Valerio Verra, O ocidente está em declínio?

3) A sociedade.

“Mortos estão todos os deuses. Agora queremos que o super-homem


viva!”
Friedrich Nietzsche, Assim falou
Zarathustra.

(A ciência) “Prolongou a vida, mitigou a dor, extinguiu a fertilidade do


solo, deu novas possibilidades ao navegador, forneceu novas armas ao
guerreiro, atravessou grandes rios e estuários com pontes que foram
desconhecidas para nossos pais (...) iluminou a noite com o esplendor
do dia, ampliou o alcance da visão humana, multiplicou o poder dos
músculos humanos, acelerou o movimento, reduziu à distâncias,
facilitou as comunicações, a condução dos negócios e as expedições
comerciais, permitiu ao homem descer as profundezas do mar, a subir
para o ar, para penetrar com segurança nos recantos nocivos da terra,
para percorrer a terra em carros que se movem sem cavalos, a
atravessar o oceano em navios que funcionam 10 nós por hora contra o
vento. Estes são apenas uma parte dos seus frutos, e de sus primeiros
frutos, pois é uma filosofia que nunca repousa, que nunca se detém,
que nunca está perfeita. A sua lei é o progresso.”
Thomas Babington Macaulay, Essay on
Bacon (1837).

“Se Deus existe, então tudo existe segundo a sua vontade, e fora da
vontade dele nada posso. Se Deus não existe, então toda a vontade é
minha e sou obrigado a proclamar o livre arbítrio.”
Fidor Dostoievski, Os demônios.

“O círculo metafísico em que vivem metafisicamente os gregos é menor


que o nosso; é por isso que nunca saberíamos encontrar o nosso lugar;

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ou melhor, este círculo no qual a completude constitui a essência
transcendental de suas vidas, rompeu-se para nós; dentro de um
mundo fechado, não podemos respirar. Descobrimos que o espírito é
criador; e é por isso que, para nós, os arquétipos perderam
definitivamente as suas evidências objetivas, e nosso pensamento segue
doravante o caminho infinito da aproximação jamais inteiramente
concluída. Descobrimos a criação das formas e, desde então, o último
acabamento sempre falta para aquilo que abandonam as nossas mãos
cansadas e sem ânimo. Descobrimos em nós a única substância
verdadeira e, desde então, tivemos que admitir que entre o saber e o
fazer, a alma e as estruturas, o eu e o mundo, crescem intransponíveis
abismos e que além destes abismos, toda substancialidade flutua
dentro da dispersão da reflexividade. Por consequência, a nossa
essência tornou-se para nós um postulado e entre nós mesmos se abiu
um abismo mais profundo e ameaçador. Nosso mundo se tornou
imensamente grande e, em cada um dos seus recantos, mais rico em
dons e em perigos que aquele dos gregos; mas foi esta mesma riqueza
que fez desaparecer o sentido positivo sobre o qual repousava a vida: a
totalidade.”
Georg Lukács, A teoria do romance.

“Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou


ameaçador, à medida que crescíamos: "Ele é muito jovem, em breve
poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se
exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada
aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em
provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias;
muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira,
contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra
ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser
contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que
possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem
é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer,
lidar com a juventude invocando sua experiência?”
Walter Benjamin, Experiência e pobreza.

“A Gesellschaft (Sociedade) adquire importância tipológica quando a


consideramos como um tipo especial de relação humana, caracterizada
por um alto grau de individualismo, impessoalidade, contratualismo,
procedente da volição ou do puro interesse, ao invés dos complexos
estados afetivos, hábitos e tradições subjacentes na Gemeinschaft
(Comunidade). Tönnies nos diz que a sociedade europeia evoluiu desde
as uniões de Gemeinschaft para associações de Gemeinschaft, e
posteriormente para associações de Gesellschaft e, finalmente, a uniões
de Gesellschaft (...) As primeiras três fases do desenvolvimento refletem
uma individualidade crescente das relações humanas, onde
predominam cada vez mais a impessoalidade, a concorrência e o
egoísmo.”

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“A Gesellschaft, em suas duas formas, associação e união, reflete
reciprocamente a modernização da sociedade europeia: sempre é
importante ter em mente que a Gesellschaft designa o processo tanto
como a substância. Para Tönnies, ela sintetiza a história da Europa
moderna. Na Gesellschaft pura, simbolizada segundo ele pela empresa
econômica moderna e a trama de relações legais e morais na qual se
desenvolve, a associação não segue o modelo do parentesco, nem da
amizade (...) A essência a Gesellschaft é a racionalidade e o cálculo.”
Robert Nisbet, A formação do pensamento
sociológico.

4) A economia de mercado e a metrópole.

“O Sr. Benthan fabrica utensílios de madeira em um torno por diversão,


e fantasia que pode transformar os homens da mesma maneira. Mas
não tem grandes dotes para a poesia, e mal sabe extrair a moral de uma
obra de Shakespeare. Sua casa é aquecida e iluminada a vapor. Ele é
um destes que preferem as coisas artificiais em detrimento das
naturais, e pensa que a mente humana é onipotente. Ele sente grande
desprezo pelas possibilidades da vida ao ar livre, pelos verdes campos e
pelas árvores, e sempre reduz tudo aos termos da Utilidade.”
William Hazlitt, O espírito do século
(1825).

“O jovem anda depressa e sozinho através da multidão que se dilui nas


ruas noturnas; tem os pés cansados de horas a andar; os olhos
sedentos da curva quente dos rostos, do pestanejar de uma resposta, do
pôr de uma cabeça, do erguer de um ombro, do modo como as mãos
soltam e agarram; formiga-lhe o sangue de anseios; o espírito é uma
colméia de esperanças que zumbem e picam; dói nos músculos a fome
pelo saber das profissões, pelo trabalhar do cantoneiro com a pá e a
picareta, pela destreza do pescador com o anzol quando puxa na
amurada a rede escorregadia ao balanço da traineira, pelo rolar do
braço do operário quando suspende da ponte o rebite incandescente,
pela mão lenta e experiente do maquinista na válvula de pressão, pelo
uso que faz o camponês de todo o corpo quando, gritando aos muares,
saca a charrua do rego. O jovem anda sozinho à procura através da
multidão com os olhos sedentos, sedentos ouvidos prontos para
escutar, sozinho, sem ninguém. As ruas estão vazias. As pessoas
comprimiram-se no metro, enfiaram-se em eléctricos e autocarros;
correram em estações para apanhar comboios suburbanos; sumiram-se
gota a gota em quartos e andares alugados, subiram de elevador a
prédios de apartamentos.
O jovem anda sozinho, depressa mas não o bastante, longe mas não o
bastante (perdem-se os rostos de vista, dispersam-se as conversas em
esfarrapados resíduos, esvai-se nos becos o eco dos passos); tem de
apanhar o último metro, o eléctrico, o autocarro, galgar a prancha de
embarque de todos os barcos, dar o nome em todos os hotéis, trabalhar
nas cidades, responder aos anúncios, aprender os ofícios, aceitar os

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empregos, viver em todas as casas de hóspedes, dormir em todas as
camas. Uma cama não basta, um emprego não basta, uma vida não
basta. À noite, com a cabeça num remoinho de anseios, anda sozinho
sem ninguém. Sem emprego, sem mulher, sem casa, sem cidade.
John Dos Passos, Paralelo 42.

III – Sobre o sentido da tipologia e a análise sociológica comparativa de


Ferdinand Tönnies das formas sociais de vontade, dos valores e do
intelecto.
No Diccionario de Filosofía de José Ferrater Mora, lemos que na
palavra tipologia significa etimologicamente: “tipo, typus, que em
grego, significa golpe, e que todo golpe deixa em algo uma marca, uma
impressão, um selo, uma figura. Rudolf Eucken indica que os termos
tipo e típico procedem da medicina, no qual o médico Coelius (século II
dc) referindo-se a uma febre intermitente designou-a como um tipo de
enfermidade. Logo, no grego e no latim, tipo significa um sinal
proveniente de uma ação, ser, fenômeno, dotado de energia, força. As
ciências naturais usam a palavra tipo para dotar de sentido os
elementos e os fenômenos existentes na realidade física. O pensamento
tipológico observa atentamente as manifestações das coisas e dos seres
através das noções de classe, modelo e essência, para descrever,
classificar e explicar as variedades existentes de coisas e seres na
natureza”.

A palavra tipo também fui usada para designar um modelo que


permite dotar de sentido um determinado número de seres humanos
que se reconhecem como pertencentes ao mesmo grupo: nos
agrupamentos sociais (na família, na reunião das famílias no clã, na
tribo, na casta, na comunidade, na classe social, na sociedade) há um
determinado tipo de manifestação da vontade, que une e enlaça os
membros nas relações sociais fundamentais e necessária para
produção e reprodução da vida material, e do intelecto, os valores
culturais que dotam de sentido emocional e passional, lógico e racional
toda forma de vida social.

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Para Ferdinand Tönnies, em cada tipo de formação social há uma
específica combinação de vontade, valores e intelecto. A análise
sociológica comparativa dos tipos de vontade e intelecto (valores)
presentes nas formações social da comunidade e da sociedade visa
estabelecer a particularidade, a essencialidade de cada forma de
vida social:

1) O significado e o sentido da vontade humana, da faculdade do


querer e das deliberações (as necessidades, os motivos, as finalidades,
as expectativas, os interesses; as decisões e as formas de execução; as
consequências) realizada pelos seres humanos nas formas de vida
coletiva. Expressa a capacidade humana em observar e querer,
escolher e realizar um determinado comportamento adequado para
realização de uma necessidade, finalidade. A vontade é uma força
vital, o fundamento da ação humana na natureza que gerou a
existência da cultura.

2) o que há de singularidade, especificidade, em cada um dos tipos e


formas de vida social: qual é a origem histórica, qual é o sentido e o
significado subjetivo e objetivo das vontades e do intelecto (dos valores)
existentes nas formas de vida, quais são as formas de condicionamento
social, correspondem à necessidade do sociólogo em determinar,
ordenar, classificar e nomear as diferentes formas de vontade e tipos de
formação social.

3) qual é a correspondência lógica, a causalidade histórica e


sociológica, entre as respectivas formas e os conteúdos, as aparências e
as essências de vontade e intelecto, presentes em cada um dos tipos
de formação social.

4) a dotação científica do sentido e significado da vontade e do


intelecto (dos valores) nas diversas formas de vida social: as
identidades (familiares, da casta ou de grupo e classe), as formas de
união e de associação, a ordem social e o senso da história, os conflitos,

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as tensões e as contradições sociais, o modo do ser humano se
relacionar com o mundo.

Ferdinand Tönnies em Comunidade e Sociedade (1887) buscou


construir 1) uma análise tipológica e comparativa das formas de união e
de associação existentes no curso do processo civilizatório e 2) um
diagnóstico sociológico da modernidade e da sociedade capitalista:
analisar cientificamente dinâmicas e processos sociais ambivalentes que
geraram a sociedade nacional e industrial (a posse privada e o contrato,
a divisão do trabalho e as classes sociais, o processo produtivo e o
poder, a atomização social e o individualismo, a riqueza e a pobreza, o
nacionalismo, a nacionalização das massas, a comunidade nacional). As
tipologias criadas por Tönnies servem para expor e explicar as grandes
transformações sociais na era moderna, na modernidade e na
sociedade capitalista na economia, na política e na cultura. A sociologia
comparativa de Tönnies desejou observar “os movimentos, ao mesmo
tempo, com um microscópio e um telescópio”, logo, importava
compreender as causas dos movimentos que ocorriam na era
moderna, na modernidade e na sociedade capitalista do século XIX.

Comunidade e sociedade são conceitos sociológicos puros (não


são encontrados como tal na realidade empírica e são construções
necessárias do pensamento que tornam possível refletir e denominar um
determinado ser, objeto, problema em sua particularidade,
essencialidade) que caracterizam específicos tipos de formas de vida e
existência em determinadas épocas históricas. Para Tönnies, todas as
formas de vida e formações sociais “são artefatos da substância
psíquica” (Thomas Hobbes: vida e pensamento, 1896), que o ser humano
é capaz de criar na relação complexa entre a natureza externa e a sua
natureza interna (pulsões, paixões, necessidades, vontades e intelecto) e
realidade social. A “substância psíquica” é uma potência que possibilita
ao ser humano tornar-se artífice (homo faber), agir intencionalmente na
criação das formas e dos conteúdos das diversas relações sociais:

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1) o agir prazeroso e afetivo: a primeira forma de vontade humana que
deriva da “vontade orgânica”, de origem biológica, na qual a “vontade
vegetativa” e “animal” (pulsões, instintos, que se manifestam mediante
excitações recebidas) do corpo humano visa sobreviver e reproduzir,
mas também, obter prazer. No agir prazeroso e afetivo, a “vontade
orgânica” e “vontade vegetativa” foram ampliadas pelas experiências e
pelas memórias, trágicas e afetivas, formando uma “vontade mental”: a
linguagem e a comunicação que geram a base de existência do ser
humano e da família.

2) o agir tradicional: a forma da vontade humana baseada na “vontade


orgânica” existente no grupo primário família: 1) o homem e a mulher,
2) a mãe e os filhos, 2) o pai e filhos, 3) os irmãos e a irmãs. A reunião
das famílias forma o clã, a tribo e a comunidade, gerando formas de
ação tradicional nas comunidades de “sangue”, de “lugar” (solo) e de
“espírito” (a amizade e a concórdia, a confiança e a pertença, as emoções
e as tradições comuns, a fé compartilhada, a obediência e devoção aos
mais sábios, velhos, corajosos) nas quais se desenvolve a potência da
“vontade substancial” (essencial, Wesenwille).

3) o agir racional e político: a forma da vontade humana determinada do


pensamento, da reflexão do indivíduo e de um determinado ser social
(associação, grupo e classe social). O indivíduo usa o intelecto para
calcular, mensurar e prever como poderá obter o que necessita ou deseja
ser, ter, possuir na sociedade. Na “vontade refletida” (arbitrária,
livremente escolhida, Kürwille) o indivíduo e o grupo social avaliam o
que há na realidade (as coisas e os seres, as formas de ser e pensar, os
valores e as ideias, as normas e as leis) segundo os seus valores e
ideias, necessidades e desejos. O indivíduo e o grupo social antes de
agir devem calcular, utilizar uma racionalidade instrumental que visa
adequar os meios e os fins, ponderar os custos e os benefícios, para
obter o bem-estar e a felicidade pessoal e particular.

Para Ferdinand Tönnies, o ser humano é dotado de “substância


psíquica”, que possibilita o agir que cria sempre novas formas e tipos de

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vida, de identidade, de relacionamento, de ordenação social,
manifestando, assim, a vontade e o interesse em obter, conquistar,
possuir aquilo que não há na natureza, que não é ofertado
imediatamente, mas que deve ser gerado pelo próprio ser humano: a
cultura e a formação social. Nas formações sociais antigas reinou a
força da “vontade substancial” (essencial, Wesenwille) da religião que, no
curso da era moderna, da modernidade e dos processos de
modernização econômicos e políticos, foi superada pela força da ciência e
da técnica, da economia de mercado e da política. Na era moderna, na
modernidade e nos processos de modernização a força do Ocidente se
manifesta na potência da política, da economia que utilizam as
descobertas, inovações e criações da ciência e da técnica para realizar
necessidades e interesses dos grupos e das classes sociais.
Para Tönnies, a “substância psíquica”, a vontade humana, pode
ser manifestada em diversa formas físicas e psíquicas que, por sua vez,
originam a vida social e as relações que determinam as identidades e
os valores, as hierarquias e as posições, as tarefas e funções contidas
nas ordenações existentes na totalidade social: a vida social é o
produto de um ser dotado de energia física e psíquica. A sociologia
busca compreender, interpretar e explicar o senso e o significado da vida
associativa: as formas do agir social, as formas de relação social, as
formas de convivência e união social, as dinâmicas e os processos
sociais, em outras palavras, as criações humanas provenientes do corpo
e da mente, da vontade e do intelecto.

As manifestações existentes na cultura, que transcendem


portanto os limites das condições naturais da vida do animal humano,
são objetos de estudo sociológico: as palavras e as ideias, os valores (as
formas de avaliação emotiva e cognitiva da realidade física e social), os
princípios morais e éticos, as normas e as leis, as organizações e as
instituições sociais. Interessa ao sociológico alemão compreender o
senso e o significado das formas de vida e dos vínculos sociais. A
convivência humana, que transcende os limites dos instintos e das
pulsões naturais, é produto de uma “segunda natureza”, isto é, de uma

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vontade de união, de viver junto (com+viver), mediante determinadas
ações e relações desejadas e reconhecidas na economia, na política e na
moral (ética). Em toda forma de vida social há elementos voluntários (a
manifestação da vontade) e normativos (os limites do agir social, dos
direitos e deveres, das obrigações e das proibições). Para Ferdinand
Tönnies, a comunidade e a sociedade são duas formas de vida social:

1) Comunidade: representa o início da existência do ser humano, a


primeira forma da vida social, que se manifestou através da família,
dos clãs, das castas na qual vigorava o senso metafísico e
transcendental da vida baseado na religião, que dá forma e conteúdo
aos costumes cristalizados na tradição, transmitidos de geração à
geração. Toda comunidade está baseada em uma unicidade de valor,
a potência da força vital da vontade de confiar, estar junto de, ser parte,
pertencer, ter a mesma fé que estabelece o senso comum das ações
particulares e coletivas, nas quais cada parte é presente e acrescida na
ligação com todas as outras partes e o com o todo (a ordem social na
terra e cosmos celestial). A comunidade determina o senso comum da
vida: o parentesco, a vizinhança, a amizade; o consenso e a lealdade;
reverência e submissão; obrigação e o dever; relações que ordenam e
legitimam todos os vínculos orgânicos de união, hierarquia de mando e
obediência entre os seus membros.

2) Sociedade: representa a época histórica do indivíduo e da pessoa,


do sujeito e do cidadão, dos grupos sociais secundários, das classes
sociais, na qual o senso de vida é determinado pelas particulares
experiências econômicas, políticas e culturais que geram os
valores e as ideologias das classes sociais. A secularização, a
racionalização, as revoluções burguesas do século XVIII, a economia de
mercado e a sociedade civil, a fábrica e o Estado-nação produzem um
novo senso de vida e de existência: mundano e político, racional e
instrumental que potencializa os movimentos e as modificações, as
transformações e as revoluções baseadas na força do intelecto, do

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pensamento abstrato e lógico, da razão. A sociedade industrial cria a
grande cidade (metrópole), o senso da vida ordenado pela racionalização
do processo produtivo efetuado pela economia-política (posse privada,
contrato) e pelas forças sociais contidas nas associações e nas classes
sociais, na fábrica e no Estado), da opinião pública e das ideologias, da
mecanização, da “vontade refletida” (arbitrária, livremente escolhida,
Kürwille) do indivíduo e dos grupos e classes sociais.

Características fundamentais das formações sociais.

Comunidade Sociedade
Natural, antiga, compacta e Artificial, recente, dispersa e
orgânica: o “lugar natural” que de mecânica: a liberdade e a
cada membro ocupa na família, autonomia do indivíduo na cidade
no clã, no burgo. moderna, na sociedade civil e no
Estado-nação.

Tempo natural e religioso: sazonal, Tempo mecânico e convencional:


místico, sobrenatural, divino e econômico e político; a
demoníaco. racionalização do mundo efetuada
pela ciência e pela técnica.

Espaço rural, da família, da casa: Espaço do mercado e da política: o


o comportamento tecido através comportamento abstrato, racional
das experiências comuns na dos indivíduos nas relações
família e na reunião das famílias sociais; a troca como a relação
em um mesmo solo, que geraram social que é determinada pelo
simpatia mútua e contrato; o movimento e
interdependência, consenso e modificação das emoções e dos
concórdia, costume e hábito. A interesses dos indivíduos
força do passado na determinação atomizados no mercado e na
do presente e do futuro. sociedade civil; o desacordo e a
discórdia; as lutas sociais e
políticas.

Estrutura social da comunidade: Estrutura social da sociedade: a


parte de uma totalidade totalidade dinâmica centrada na
metafísica, afetiva e emocional, economia de mercado e na posse
orgânica e religiosa, que envolve privada; indivíduos, grupos e
família, solo, sangue, emoções e classes sociais; organizações e
tradições em um único senso de instituições na sociedade civil;
vida. Estado-nação.

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Deveres, obrigações de cada um Liberdade e autonomia do eu:
na totalidade fechada, igualdade jurídica, direitos civis e
hierárquica, estática. políticos.

O peso do status e da tradição O peso do contrato e das vontades


nas relações sociais. subjetivas nas relações sociais.

Vontade substancial (essencial, Vontade refletida (arbitrária,


Wesenwille): A centralidade da livremente escolhida, Kürwille):
religião: o senso comum dos a relatividade dos juízos e dos
costumes, da moralidade, dos valores; a subjetividade da moral
símbolos; o senso de vida e da política; o senso da vida
transcendental. particular e político.

Comunidade Sociedade
Valor unitário, comum, recíproco: a Valores diversos, diferentes: o
religião, arte e a tradição unem e conflito permanente entre os
enlaçam todos os membros no valores e interesses das
senso comum da vida. identidades particulares e dos
grupos sociais.

Sendo de vida tradicional e Senso de vida intelectual, político e


transcendental. A concórdia mundano: a existência atomística
sentimental, emotiva, afetiva: a do indivíduo e da pessoa no
crença na tradição e nos mercado e na sociedade civil. A
costumes do passado. discórdia e o conflito entre os
valores, as ideias e os ideais dos
grupos secundários, associações,
classes, sindicatos, partidos.

Totalidade orgânica: a Totalidade dinâmica: o agir social


continuação e transmissão do voltado para o progresso: o
senso da vida comum da vida sentido do agir social é
oriundo do passado, que ilumina desvinculado do passado, voltado
e determina idêntico senso do agir para plena realização no curso do
no presente e no futuro. presente e no futuro.

Vínculos enraizados no solo e na O desenraizamento e a


tradição: o valor do solo, do atomização social: o agir social do
sangue, da família, da amizade, indivíduo e dos grupos sociais
das emoções comuns e das projetado no presente para a
certezas metafísicas. realização dos interesses
particulares.
Senso de vida tradicional: ações Senso de vida intelectual: a
afetivas e sentimentais comuns; a atitude egoísta, o amor-próprio, o
amizade e a fidelidade, a interesse particular; o surgimento

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reverência e a lealdade, o respeito do indivíduo; a legitimação da
e a devoção, as hierarquias ambição pessoal e do senso de
rígidas. vida materialista e aquisitivo.

Na formação social da comunidade, a vontade está contida nos


limites do pensamento religioso e tradicional, de modo que, a unidade
entre as partes e o senso do agir social são orgânicos, coletivos,
naturais: o senso da vontade comum é “essencial”, “substancial”,
envolve e articula a relação social e a racionalidade existentes no valor
unitário da consciência moral (religiosa, tradicional), nas emoções e nos
afetos, no companheirismo e na lealdade, na confiança e no dever, no
senso de pertencimento ao solo e ao povo.

O advento histórico da sociedade produz uma radical


transformação na vontade e no pensamento (intelecto): o pensamento,
os valores, a ideia, a ideologia estão contidos na vontade do indivíduo,
do grupo e da classe social, da nação. Na sociedade, o intelecto é a força
na qual a vontade se manifesta em ações e associações, organizações e
instituições: a vontade do indivíduo é subjetiva (reflexiva, arbitrária) e
tem como objetivo a realização de um fim desejado (uma necessidade,
um interesse particular). O indivíduo, bem como os grupos e as classes
sociais, usam o pensamento para calcular, refletir, escolher qual meio é
o mais rápido, eficaz e eficiente para realizar os interesses particulares e
necessidades lógicas.

IV – A compreensão sociológica dos vínculos e relações sociais que


mantém unido as formas de sociabilidade humana.

Tönnies buscou em Comunidade e Sociedade compreender e


interpretar os laços que mantém a união e a continuidade de toda
formação social humana. Seu interesse era construir conceitos para
dotar de sentido e significado os diferentes tipos de formação social e,
sobretudo, as singulares formas de predisposição psicológica (vontade e
intelecto) nas ações e relações realizadas por seus membros. A análise

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da singularidade de cada formação é construída mediante a busca de
sua especificidade voluntarista e da comparação entre as formações
sociais. Sua intenção era demonstrar o sentido das mudanças
valorativas e associativas ocorridas na era moderna e na modernidade
pelas revoluções econômicas e políticas burguesas:

Comunidade Sociedade
Rural, subsistência e Urbana, mercado: a posse
Economia de posse guerreira e privada e a liberdade
feudal da terra: as individual; a divisão social do
relações de obrigação e trabalho entre as classes
dever entre a mulher e sociais; a compra e a venda
o homem, os mais de mercadorias; o dinheiro e
jovens e os mais o capital.
velhos, os membros da
comunidade e o
homem santo, os
soldados e o líder.

Política Comunal e corporativa; Individualista e racional; o


o direito natural e direito racional e positivo; as
comunitário forjado lutas sociais e políticas pela
pela tradição, pelos conquista da hegemonia.
costumes, e
rotinizados nos
hábitos.
Ética Teológica. Racional e política.
Organização Status, costume. O Contrato. O direito racional e
social direito é baseado no positivo baseado na posse
costume e na tradição: privada, nas relações de
direito troca no mercado, no
consuetudinário. comércio.
Valores e Sacro, tradição, Racionais e políticos,
ideias costume. particulares e privados.

A comunidade e a sociedade apresentam as seguintes


características fundamentais:

Comunidade

É a formação social na qual a “vontade substancial” (essencial)


representa a unidade da vida e do pensamento e é basicamente
emocional. Expressa os sentimentos primordiais de identificação com os

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demais: a lealdade, o afeto, as emoções comuns contidas na tradição.
Tönnies descreve e interpreta os seguintes tipos de comunidade:

1) familiar: a relação orgânica, natural, recíproca entre a) o homem e a


mulher (a força de eros, do instinto sexual), b) a mãe e as filhas e os
filhos (a força das afetos, das recordações recíprocas, da gratidão), c) o
pai e os filhos e d) os irmãos e as irmãs (a força do sentimento de
fraternidade, do parentesco, da memória, da recordação das
experiências comuns do passado). Na família, as relações recíprocas
formam vínculos emotivos e afetivos que geram formas de “convivência
doméstica próxima, durável e fechada”: os hábitos de trabalho, o
reconhecimento da autoridade, a reverência, a dignidade da “idade”, da
“força”, da “sabedoria”, do “espírito”.

2) sangue, lugar e espírito: a força da família (e das famílias reunidas


no clã, na tribo, nas castas) e da economia da casa em criar as relações
íntimas e espirituais duráveis entre os membros da família e das
gerações. A reunião das famílias que forma espaço da vila, do burgo,
desenvolve as relações recíprocas e os fortes vínculos de “parentesco,
vizinhança e amizade” presentes nas tarefas diárias e no destino da
comunidade:

a) dividir o trabalho: cooperar no cultivo da terra, na


domesticação dos animais, no trabalho necessário para a
satisfação das necessidades materiais.

b) ordenar e administrar o espaço comum.

c) crescer numericamente.

d) vencer os adversários e inimigos: a proteção mútua, a


solidariedade, o senso de pertencimento.

e) criar e cuidar do espaço sacro: lugar das oferendas e orações


para obter à graça, à proteção e os favores dos deuses.

f) cultivar o sentimento comum de ânimo e de subjetividade


(modo particular de sentir e estar no mundo).

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g) rotinizar o senso da identidade coletiva e da vontade geral.

Os valores da comunidade:

1) os complexos estados emotivos e afetivos presentes nos costumes,


nos hábitos e nas tradições forjadas no espaço da casa: a “força vital da
casa” não está contida apenas na proteção do corpo perante ameaças
físicas, mas na origem espiritual da vida: a explicação metafísica da
origem e do fim, do nascer e do crescer, das experiências e recordações,
dos ensinamentos espirituais, dos vínculos e ligações duráveis.

2) o valor do solo e do sangue: a importância fundamental do espaço


local nos quais a vida social foi e é desenvolvida entre as gerações (a
convenção, a associação, a cooperação, a correspondência, a
reciprocidade, a compreensão).

3) a “unicidade de valor”: a força das certezas metafísicas (religiosas,


tradicionais); o senso compartilhado de comportamento e orientação; a
concórdia; os profundos vínculos de pertencimento, de confiança e
dedicação recíprocos; o reconhecimento comum do bem e do mal, do
amigo e do inimigo, do fiel e do infiel.

4) a hierarquia de mando fundada na sabedoria, na idade e na força: a


centralidade das figuras do homem santo, do pai e avô, do líder militar
(os representantes do divino na terra). A forma de dominação
tradicional e carismática baseada no costume e na crença. O dever da
obediência inquestionável das figuras subalternas: a mulher, a criança,
o escravo, o plebeu e o servo.

Sociedade

É a formação que envolve a “vontade refletida” (arbitrária,


livremente escolhida, Kürwille). A “vontade refletida” (arbitrária,
livremente escolhida) é própria da ação social que se desenvolve na
“separação dos meios e dos fins” e se refere ao pensamento humano
mais racional e independente da emoção. A sociedade é a formação

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social na qual os indivíduos não compartilham a mesma unicidade
valorativa que existia na comunidade: os indivíduos vivenciam relações
sociais de oposição e competição, bem como, a atomização social e a
igualação jurídica e política. Ocupam-se em maximizar as suas
vontades, procurando seus próprios interesses privados mesmo quando
trabalham em prol da coletividade ou do bem comum. No espaço de
ação mais significativo dessa formação social, o mercado, cada
indivíduo é um ser particular e anônimo, submetido às leis e regras da
economia de troca de mercadorias e do direito abstrato-racional. É
através do contrato que tecem seus acordos e esperam alcançar seus
desejos e interesses particulares. O contrato é a forma de
comportamento e relacionamento mais significativa da sociedade e é o
resultado da existência de “vontades individuais que são divergentes e
que se conectam através do sistema jurídico e político.

Os valores da sociedade:

1) a posse privada: deve ser compreendida como o fato jurídico e


político fundamental da sociedade, a forma de relação social (a troca de
mercadorias, a alienação dos bens, a compra e a venda), o princípio de
organização da vida material (econômica e política) e imaterial
(valorativo e cultural: a honra, a glória, o poder são determinados pela
quantidade, grandeza de valores materiais como a propriedade, a renda,
os recursos).

2) a autonomia do eu: a emancipação, a liberdade privada, o direito civil


e político.

3) o alto grau de individualismo, egoísmo.

4) o contrato: o caráter convencional (regras e acordos entre partes) e


contratual (jurídico, legal) de toda relação.

5) a impessoalidade.

6) o interesse particular e privado: a forma de vida baseada no eu


(indivíduo, pessoa, sujeito) e no senso de vida material e econômico.

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7) a maximização do eu nas mais diversas esferas sociais.

V – Reflexões de F. Tönnies em Comunidade e Sociedade.

1) “Relações entre as vontades humanas: comunidade e sociedade na


linguagem”.
“As vontades humanas se encontram em relações múltiplas, e cada
uma dessas relações constitui uma ação recíproca que, enquanto
realizada ou dada de uma parte, é suportada ou recebida de outra.
Essas ações se apresentam de tal maneira que tendem à conservação
ou à destruição da outra vontade ou do outro ser – são afirmativas ou
negativas. A presente teoria da assumirá, como objetos de sua
pesquisa, exclusivamente as relações reciprocamente afirmativas. Cada
uma dessas relações representa uma unidade na pluralidade ou uma
pluralidade na unidade. Compõem-se de incentivos, benefícios,
prestações que se transmite de uma parte para outra, e que são
consideradas como expressões da vontade e das suas forças. O grupo
formado por essa ação relação positiva, concebido como ser ou objeto
que age de uma maneira homogênea no interior ou no exterior, pode ser
chamado de associação. A relação em si e, portanto, a associação,
podem ser compreendidos ou como vida real e orgânica – e esta é a
essência da comunidade – ou como formação ideal ou mecânica – e esta
é o conceito de sociedade.
O emprego das palavras demonstrará claramente que elas têm uma
base no uso análogo da língua alemã. Contudo, até o presente, a
terminologia científica as utiliza indiferentemente e confunde-as
arbitrariamente. Não será por isso inútil algumas observações para
demonstrar que se trata de uma antítese. Toda convivência
confidencial, íntima, exclusiva é compreendida como a vida em
comunidade (assim pensamos). A sociedade, ao contrário, é o público, é
o mundo. Em comunidade, o homem se encontra com os seus desde o
nascimento, unido a eles no bem como no mal. Entra-se, na sociedade
como em terra estrangeira.”
“A comunidade é antiga, enquanto a sociedade é nova, como coisa e
como nome.”
“(...) a comunidade é a convivência durável e genuína, a sociedade é
somente uma convivência passageira e aparente. É, portanto, coerente
que a comunidade deva ser compreendida como um organismo vivo, e
a sociedade, ao contrário, como uma agregado mecânico e artificial.”

2) “As formas da vontade humana”.

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“O conceito de vontade humana, cuja determinação correta é essencial
ao inteiro conteúdo da presente reflexão, deve ser entendida em um
sentido duplo. Porque toda ação espiritual é definida como humana
mediante à representação do pensamento, deve-se distinguir a vontade
enquanto nela é contida o pensamento, e o pensamento enquanto nele é
contida a vontade. Uma e outra representam um todo coerente, no qual
encontra a sua unidade a multiplicidade dos sentimentos, instintos,
desejos: mas esta unidade deve ser entendida no primeiro conceito
como real ou natural, e no segundo conceito como ideal ou artificial. A
vontade do homem será dita no primeiro significado vontade substancial
(essencial), no segundo “vontade refletida” (arbitrária, livremente
escolhida, Kürwille).”
Vontade substancial (essencial)
“A vontade substancial (essencial) é o equivalente psicológico do corpo
humano, isto é, o princípio da unidade da vida, enquanto concebida sob
aquela forma da realidade na qual pertence o próprio pensamento.”
“A vontade substancial (essencial) é fundada no passado e deve ser
explicada com base nele, como o futuro que dele é derivado.”
“A vontade substancial (essencial) é imanente ao movimento. Para
compreender corretamente o seu conceito é preciso prescindir de toda
existência independentemente dos objetos externos, e entender a sua
percepção ou experiência somente na sua realidade subjetiva. Aqui há
uma realidade psíquica e uma causalidade psíquica, isto é, somente
uma coexistência e sucessão de sentimentos de existência, instinto e
atividade que podem ser concebidos no seu fundamento, na sua
totalidade e nas suas conexões, como resultados da originária
disposição embrionária deste ser individual.”

Vontade refletida” (arbitrária, livremente escolhida, Kürwille)


“A vontade refletida (arbitrária, livremente escolhida) é uma formação do
próprio pensamento, a qual possui uma verdadeira e própria realidade
somente em relação ao seu autor – o sujeito do pensamento, mesmo
que se ela possa ser conhecida e reconhecida por outros.
“A vontade refletida (arbitrária, livremente escolhida) pode ser
compreendida somente com base no futuro, ao qual está referida.”
“As formas complexas da vontade refletida (arbitrária, livremente
escolhida) – que contém em si os elementos da vontade substância
(essencial) – devem ser de compreendidas como sistemas de
pensamentos, e precisamente de intenções, de fins e meios que todo
homem porta na sua cabeça como aparato para compreender e
enfrentar a realidade.”

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3) “Resultados e perspectivas”.
“É agora clara a antítese entre um ordenamento da convivência que,
enquanto fundado sobre o consenso da vontade, repousa
essencialmente sobre a concórdia e é desenvolvido e dignificado pelo
costume e pela religião, e um ordenamento de convivência que,
enquanto fundado sobre a vontade refletida (arbitrária, livremente
escolhida) consensual e reunida, é regida pela convenção, derivando a
sua garantia da legislação política e a sua explicação e legitimação ideal
e consciente da opinião pública. Uma antítese ulterior é aquela entre as
duas formas de direito. A primeira forma é constituída por um direito
positivo comum e vinculante, como sistema de normas coercitivas em
referência às relações recíprocas entre as vontades, o qual, estando
radicado na vida familiar e atingindo o seu conteúdo mais significativo
dos fatos na posse fundiária, tem as próprias formas determinadas
essencialmente pelo costume. Este recebe a sua consagração e a sua
transfiguração da religião, quando a religião, como vontade divina, e
assim como vontade de homens sábios e dominantes que interpretam a
vontade divina, não ousa e não ensina a modificar e corrigir tais formas.
A segunda forma representa um direito positivo análogo, o qual destina-
se a manter distintas as vontades subjetivas (reflexivas) através de
todas as suas conexões e enredos, e tem os próprios pressupostos
naturais no ordenamento convencional do comércio e do toda troca
afim: esse torna-se válido e regularmente eficaz somente em virtude da
vontade refletida (arbitrária, livremente escolhida) soberana e da
potência do Estado.”
“Mas em determinadas condições – e em várias relações que são aqui
merecedoras de ser reveladas – o homem aparece em atividade e em
relações sociais como um indivíduo livre, e deve ser concebido como
pessoa. A substância do espírito comum é assim debilitada, e a ligação
que o une com os outros é atenuada até o ponto de ser insignificante.
De tal gênero é efetivamente, diferentemente de todo vínculos familiar e
corporativo, a relação entre não-consociados, onde não reina nenhuma
compreensão comum, e onde nenhum costume, nenhuma fé intervém
para ligar e pacificar. Aqui está em vigor o estado de guerra e de
ilimitada liberdade para todos de aniquilarem-se reciprocamente, de
apoderarem-se do arbítrio, de saquearem-se e subjugarem-se, ou – uma
vez que isso seja reconhecido como uma vantagem maior – de
estabelecerem contratos e associações.”
“As formas exteriores da convivência, aquelas que são criadas pela
vontade substancial (essencial), são a casa, a vila e a cidade. Estas são
os tipos constantes da mesma vida real e histórica em geral (...) A
cidade os perde quase completamente somente quando se desenvolve
na grande cidade: as singulares pessoas ou famílias estão uma perante
a outra, e o lugar que elas têm em comum é acidental e eletivo.”

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“Todavia, na grande cidade, e portanto na situação social em geral,
somente os estratos superiores, os ricos, os cultos são verdadeiramente
ativos e vitais: eles fornecem a medida pela qual os estratos inferiores
devem se conformar com a vontade seja de substituí-los, seja de
tornarem-se semelhantes a eles, para assim adquirirem uma potência
social. Tanto naqueles quanto nestas massas, a grande cidade – e
também a “nação” e o “mundo” – é constituída por pessoas livres, as
quais entram continuamente em contato entre elas no comércio,
trocando e colaborando entre si, sem que entre eles surja uma
comunidade e uma vontade comunitária a não ser esporadicamente ou
como resíduo de condições precedentes que estão ainda na sua base.
Este complexo de relações, de contratos e de relações contratuais
externas serve somente para encobrir estados de hostilidades e de
interesses competitivos internos e, em primeiro lugar, a antítese já
mencionada entre os ricos, isto é, a classe que detém o poder, e os
pobres, a classe que serve.”
“A grande cidade é a forma de convivência típica da sociedade em geral.
Ela é essencialmente uma cidade comercial e, enquanto o comércio
domina nela o trabalho produtivo, uma cidade industrial. A sua riqueza
é a riqueza do capital, o qual é dinheiro que se multiplica com o seu
uso, sob a forma de capital comercial, usuário ou industrial, e é o meio
para apropriação dos produtos do trabalho ou para exploração da força
do trabalho. Ela é a cidade da ciência e da cultura, que sempre
acompanham os caminhos do comércio e da indústria.”

VI – A questão social.

Nas diversas obras sociológicas de Ferdinand Tönnies a questão


social ocupa um lugar central:

“Entendemos por “questão social” o conjunto de problemas que


derivam da cooperação e convivência de classes e estamentos
sociais distintos, que formam uma mesma sociedade, mas estão
separados por hábitos de vida e por sua ideologia e visão de
mundo. Em nossos dias, a questão social com sua pavorosa
importância, ocupa a atenção de todo intelectual.”

Ferdinand Tönnies, O desenvolvimento da


questão social (1907).

O conflito, que está presente no corpo e na mente, na vontade e


no intelecto do ser humano, adquire diversas formas no curso do
processo civilizatório. Na vida social, o conflito está presente na
economia, na política e na vida espiritual, seja nas formação sociais
antigas, seja na comunidade e na sociedade. Contudo, é na sociedade

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industrial e nacional, na sociedade capitalista, que o conflito adquire
um elevado nível de existência, oriunda da economia de mercado, da
posse privada, da competição, das classes sociais, da industrialização,
da urbanização e da dissolução das certezas tradicionais, da atomização
social. Vejamos algumas reflexões de Tönnies acerca da dimensão do
conflito na sociedade industrial e nacional contidas no livro O
desenvolvimento da questão social:

“A evolução da fábrica condiciona a evolução de toda questão


social.”
“A contradição e o conflito entre o capital e o trabalho, isto é,
entre os ingressos que são interesses ou benefícios, de uma parte,
e os que são salários de outra, constitui o conteúdo da questão
social no sentido moderno da palavra.”
“Os produtos da fábrica são para os artesões uma concorrência
crescente: ramos inteiros do artesanato desaparecem nos
embates, com o qual se convertem um em representação do
trabalho e outro em representação do capital”.
“Aqui há outras tantas questões sociais parciais que formam
parte da questão social. O novo Estado de tendências centralistas
favorece as fábricas e as manufaturas porque proporcionam
dinheiro ao país e aumentam a população.”
“Por fim, em nossos dias, reiteradas pesquisas expõem aos olhos
assombrados do grande público os horrores do trabalho
domiciliar, a subalimentação, os péssimos alojamentos, a
exploração das crianças e das mulheres, etc. Para aqueles não
versados na matéria foi revelado, como um mundo novo, a
existência de um inferno sobre a Terra.”
“(...) a máquina que o operário não pode adquirir é convertida na
arma mais poderosa da classe inimiga, a dos operários (...) A
história industrial dos tempos novos – desde 1500 até o presente
– gira ao redor da máquina: é uma luta contra as máquinas, a
luta entre o ofício, o artesanato e o negócio e a produção
industrial capitalista.”
“O homem novo, o burguês, formava assim um homem típico: sua
liberdade e igualdade com a velha aristocracia – que estava
morrendo – eram afirmadas progressivamente. Uma revolução
espiritual proporciona ao Estado e a sociedade um conteúdo de
consciência novo e, com ele, um poder social suficiente para
dirigir a sociedade e o Estado, prescindindo da consciência
religiosa e de sua expressão pseudocientífica: a consciência
teológica.

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“(...) a nova época que se inicia (...) a evolução da questão social,
cuja força motora é precisamente a contradição e a luta de classes
da nova sociedade, do Estado e da consciência coletiva. Pela
natureza das coisas, a classe subalterna, na qual domina como
maior consciência o proletariado industrial – sobretudo nos
grandes centros urbanos – constitui a classe que expõe o
problema, tem a consciência do seu sofrimento e luta
apaixonadamente para melhorar sua existência.”

As questões sociais existentes na modernidade e na sociedade


capitalista (sociedade industrial e nacional):

1) A potência da posse privada, do dinheiro e do capital:

a) a conquista da burguesia industrial da hegemonia econômica,


política e espiritual.

b) o princípio fundamental da posse privada: é um fato jurídico e


político, determina a troca de mercadorias (compra e venda) como
a relação social, organiza a vida material (as relações socais) e
imaterial (os valores, as ideias, as emoções e os sentimentos, as
paixões e a subjetividade).

c) a proletarização do artesanato e do grêmio, do comércio e das


profissões.

d) a exploração da força de trabalho na fábrica: o trabalho como


uma mercadoria, as péssimas condições de trabalho, o reduzido
valor do trabalho, a semelhança entre as hierarquias de poder do
capitalista sobre o trabalhador e do general e o soldado: o poder
total do capitalista.

e) o poder do dinheiro e do capital em monetizar as coisas e os


seres, as ações e relações sociais, em destruir e construir,
construir e destruir para obter sempre novos ganhos e acumula
capital e recursos e produzir novas oportunidades de produção de
valor.

f) a vida desprovida de valores comuns e de senso espiritual


(ético, político e econômico) elevado:

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- a desqualificação dos espaços, dos seres, dos valores, das
organizações e instituições sociais comuns.

- a inexistência da solidariedade e do reconhecimento


recíproco.

- a desorientação social.

- a atomização social.

- a massificação.

g) o egoísmo, o individualismo e a impessoalidade.

h) as desigualdades de renda, recursos e oportunidades.

i) as diversas injustiças sociais na divisão social da renda, dos


recursos, das oportunidades.

2) As lutas de classes e as contradições da sociedade capitalista


industrial.

a) a grande riqueza produzida, apropriada e expropriada pela


burguesia industrial, e a pobreza da classe trabalhadora.

b) a construção do conceito de ser humano como pessoa e


cidadão (ser de direitos, ser livre da dominação de outrem) no
plano jurídico e político e sua inexistência efetiva na sociedade
civil: a negação da efetiva pessoalidade no trabalhador
assalariado e transformação do trabalho na personificação da
função econômica e política força de trabalho.

c) as lutas sociais pelos direitos dos trabalhadores, melhora das


condições de trabalho, moradia, alimentação.

d) as lutas políticas pela conquista da hegemonia e do poder de


determinação do senso da ordem social e da história.

3) O trabalho comandado e a potência do capital.

a) A exploração e subordinação do trabalho assalariado.

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b) A alienação e a reificação.

c) A civilização do dinheiro: a produção de mercadorias e a


valorização do valor.

d) A era da máquina: a virtuosidade da máquina e a


desvalorização do trabalho manual.

e) O acúmulo de angústias, incertezas, inseguranças nas classes


sociais subalternas.

4) A cidade moderna.

a) a riqueza obtida pela produção, distribuição, troca e consumo


de mercadorias.

b) a centralidade da fábrica e do comércio na nova urbanização.

c) as péssimas condições de vida dos trabalhadores.

d) a figura do andarilho, do pobre, do mendigo.

e) a fome e a miséria.

5) O Estado-nação.

a) a “nacionalização das massas”.

b) a inclinação do Estado à favor do dinheiro e do capital.

c) o fortalecimento dos aparelhos do Estado.

d) o imperialismo.

VIII – Marco Tarchi, Forma comunitária no terceiro milênio

Tradução para fim acadêmico de passagens da Palestra de Marco Tarchi


no Meeting internazionale dei comunicatori pubblici “Public Camp”, 03
de Dezembro de 2010 na Fiera del Levante di Bari.

A comunidade é uma espécie de fênix que nasce e desaparece em


nosso horizonte, bem como, é avaliada como sendo morta, inexistente,

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como sendo uma espécie de experiência de vida organizada existente no
passado. Contudo, em outros momentos, o termo ressurge para
descrever tanto a realidade existente, quanto aquela que poderá existir
no futuro. É um termo polissêmico, que contém uma multiplicidade de
significados e, por isso, de tempos em tempos, é descartado ou posto
em ação.

O primeiro problema que se põe aqui é como tratar o problema da


forma comunitária no terceiro milênio e qual é o significado que damos a
está palavra. Penso que há duas possibilidades de utilizá-la atualmente,
que podem ser usadas em realidades distintas:

1) uma leitura negativa da comunidade: realizada quando se contrapõe


com a ideia de sociedade. Comunidade e sociedade são palavras que
definem dois modelos de relações interpessoais, tendencialmente
alternativas, entre as quais corre um série de antagonismos, no qual
todos os choques abertos, dinâmicos, que deixam espaços para a
criatividade, inventividade, ao diálogo com o outro seria próprio ao
modelo societário de relações, enquanto que, tudo aquilo que é fechado,
interior, ligado somente a tradição, ao habitual, a repetição de formas
de comportamento deveria ser compreendido como comunidade.

Uma série de reflexões sobretudo sociológicas se referem o tipo de


relações que forma criadas ao longo dos séculos existentes na
comunidade da fé, de pequenos contextos, o que hoje chamaremos
efetivamente de micro-comunidade ou localismo.

Tönnies individuou na comunidade uma forma de relação porta-a-porta,


de vizinhança, familiar, como o ponto cardeal de um sistema muito
maior que possibilitava o reconhecimento pleno de um nós coletivo,
manifestado no pequeno centro, nos quarteirões, na cidade, etc.
Contudo, a construção social do nós era realizada através de uma
relação de distinção, de fechamento, de hostilidade no confronto com o
outro que não estava situado dentro desta relação comunitária.

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Este elemento negativo podemos encontrar com muito vigor
quando se critica muito fortemente aquela forma de organização da
moderna sociedade denominada multiétnica e multiculturalista. São
diversos aqueles que criticam o multiculturalismo dizendo que ele não
funciona porque cria guetos comunitários, uma expressão
frequentemente utilizada atualmente. É claro que quando se fala de
gueto comunitário, a expressão comunidade é usada em sentido
negativo, porque é uma forma de fechamento no qual um grupo
manifesta o desejo de se separar de um contexto espacial e cultural
habitado por um outro grupo: é um termo usado para identificar a
postura do imigrante que prefere se isolar do que participar da
sociedade de acolhimento, impedindo a relação com o outro e a efetiva
integração.

2) uma leitura positiva do termo comunidade pode ser encontrada na


expressão comunidade virtual: a criação das redes sociais possibilitou
uma série de realidades entre elas distintas, mas interconectadas, nas
quais se recria relações sociais fortes e espontâneas que nascem de
baixo, desvinculadas de relações estabelecidas pelo alto, tradicionais,
mais ou menos autoritárias. Para alguns, as redes sociais expressam a
nova forma de relações sociais que serão desenvolvidas no próximo
futuro.

Atualmente, observamos uma proliferação extraordinária,


qualitativa e quantitativa, deste lugar de encontro, que não possui em
termos de velocidade e difusão do fenômeno nenhum precedente
histórico. Logo, assistimos a uma passagem de época de um
instrumento qualitativo e quantitativo de informação e relação: da
televisão à rede social. Se é verdade que a rede social possibilita uma
forma de conexão imediata, potencialmente expansível para todo o
universo social, reconduz esta grande esfera de difusão para entidades
particulares, intersubjetivamente limitadas em si, que não favorece
necessariamente a uma forma de abertura indiscriminada ao outro e,

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portanto, ao chamado outrora grande espaço de liberdade e democracia
glorificado por alguns intelectuais.

Se olharmos atentamente, e se quisermos nos confrontar


objetivamente com este fenômeno das comunidades virtuais e desta
forma de relação intersubjetivo, podemos dizer que espaços que tendem
a construir limites fortemente autorreferenciais. Em muitos blogs,
especialmente os políticos, podemos observar um espaço de
reconhecimento de afinidades recíprocas existentes entre um nós
alargado e, em diversos casos, um espaço de relações antagônicas com
outras coletividades.

Nos blogs essencialmente políticos, podemos observar uma


tendência fortíssima de fechamento nos confrontos com o externo, isto
é, o elemento de reconhecimento recíproco e o reforço da identidade
coletiva não é acompanhada pela disposição ao diálogo com outros
sujeitos igualmente comunitários, que existem no mesmo espaço
virtual. Os blogs políticos são utilizados como um instrumento
fortemente capaz de potencializar a identidade coletiva que, contudo, é
manifestada através de antigas categorias políticas de confronto e de
conflito amigo e inimigo.

A rede social possibilita uma forma de relação comunitária de tipo


novo, quando a intercomunicação quando os grupos que se reconhecem
em identidade muito estreita e particular, mas pode ser também uma
espécie de espaço que estabelece a formação de limites que isolam os
grupos do contato com os outros.

Esta construção alternativa de relação social torna


particularmente difícil a existência da amizade, que tende a ser
liquificada, conforme a ideia do sociólogo Zygmunt Bauman, a
liquefação de alguns conceitos que representam a relação sentimental,
afetiva, psicológica entre os vários sujeitos. No momento em que o
conceito de amizade dentro da rede social se torna fortemente móvel,
vinculada a uma consciência virtual na maioria dos casos, nos

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encontramos perante alguma coisa essencialmente nova, diversa
daquela corrente quente de sentimentos que, segundo Tönnies, era a
base da comunidade de pertença, de vizinhança. Atualmente, o virtual
aproxima de modo diverso, mas deixa complemente distante por outros
modos, de modo que o teu amigo que se representa a ti através de
frases, imagens e de vídeos, não se manifesta concretamente. O
problema é ainda maior se recordamos que a rede social possibilita que
a representação de si seja fictícia ou muito diversa do que se é.

Uma experiência difusa que se pode constar é a mudança de


comportamento formal entre os docentes e dos dissentes, que há
elementos positivos e negativos, bem como, a desinibição, pois a
virtualidade não comportando a relação física, quase carnal de co-
presença em uma determinada cena social, tende a romper com
algumas barreiras de formalidade e hábitos.

Atualmente, a comunidade como grupo social tem uma relação


muito intensa em seu interior, mas possui também fortes elementos de
distinção e antagonismo verso o externo, o que torna sempre difícil e
árdua a ação política de dirigi-lo, governá-lo. Na comunidade virtual
podemos observar dois problemas sociais fundamentais:

1) O tribalismo: representa uma comunidade definida pela mesma


origem natural, naturalística, que comporta o conceito de próprio
em constante contraposição com o outro. Pensemos a complexa e
difícil reorganização da identidade nacional no contexto da
globalização.

2) O nomadismo: a comunidade atual é nômade. Contudo, o


conceito de comunidade antigo eram sedentárias e se incarna
politicamente na ideia de polis, da importância do demos, que
antes de ser povo significa o lugar no qual se consiste, existe,
aquilo que se define como povo. Portanto, na comunidade antiga
há um elemento fundamental de territorialidade.

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No terceiro milênio, o espaço virtual ilimitado da tecnologia
informática é um labirinto no qual se movimentam os grupos
comunitários de caráter nômade, que são caracterizados por seu senso
de pertença: o próprio sujeito no âmbito da rede pode definir-se como
membro de um grupo que possui uma identidade religiosa, futebolista,
política, etc. Contudo, a possibilidade objetiva de ser membro de
qualquer grupo sempre possui a mesma lógica de particularidade
identitária e da distinção do outro.

Na atualidade, penso que o conceito de comunidade possui um


futuro assegurado, um futuro no terceiro milênio:

1) Se a comunidade tem uma ampla possibilidade de existência na


era da virtualidade, há um outro fator de igual importância: a
comunidade é proliferada paradoxalmente na era em que se
celebra, ao nível planetário, o culto da individualismo muito forte
(este alter-ego absoluto com relação ao sentimento de
comunidade): na era em que o sedentarismo, a territorialização
das populações e dos indivíduos é cada vez mais limitada
quantitativamente, sempre mais precária o trabalho profissional,
o que gera para muitos sujeitos a necessidade de deslocamento;

2) A era dos fluxos potencializa o desejo de comunidade por três


motivos:

- os fluxos informativos não podem ser detido, de modo que, a


comunicação em tempo real e instantânea, gera o fim dos limites.

- os fluxos econômicos e financeiros impõe um novo modo de


pensar as trocas econômicas.

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- os fluxos de pessoas: a questão imigratória que em poucas
décadas passou de centenas, para centenas de milhares e, nos
últimos anos para milhões e, potencialmente, para dezenas de
milhões se o ritmo for mantido.

Vivemos, portanto, em um mundo caleidoscópico, um mundo em


forma de mosaico, especialmente nos países avançados
economicamente, que atraem pessoas que desejam encontrar novas
formas e possibilidades de vida. Este dado da realidade, sem entrar em
valores positivos ou negativos, aumenta o pluralismo, a complexidade
do tecido social coletivo, sempre mais composta por elementos distintos.

A questão de assegurar uma ordenada convivência entre os


considerados autóctones e aquele que provém do externo passa
necessariamente pela adoção de modelos organizativos monocultural ou
multicultural. A organização monocultural, que não se usa devido ao
peso que a palavra carrega socialmente, afirma que a ordem social deve
operar a redução do múltiplo ao uno: integrando, assimilando das
diversas subjetividades que ingressaram em um diverso território,
dentro de um certo Estado, de um modo tal que se cancela
progressivamente o estigma da origem cultural, fazendo ingressar em
um circuito de expansão quase viral do modo de vida e de pensar
majoritariamente existente nos códigos da sociedade. Mas qual são
estes códigos? São oriundos do modelo ocidental, que se manifestam
como universais: indivíduo, democracia representativa, livre mercado,
fim da história. O problema fundamental foi e é o desejo de construção
de uma democracia planetária modelada in primis pelos EUA.

Se negamos a ideia de multiculturalidade, afirmada como


inaceitável, ingovernável e falida, o caminho elegido é a radicalização
das culturas de origem, daqueles que abandonam o território da
nascença com a intenção de se inserirem nos países de chegada. A
resposta dada a estas manifestações seguem o curso da prepotência

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ocidental que afirma a sua superioridade perante as outras formas de
cultura.

Voltando ao problema da comunidade, assistimos ao problema da


afirmação política que diz que o mundo é caleidoscópico, do ponto de
vista da cor da pele, do lugar de proveniência e de alguns valores
culturais no âmbito da individualidade, mas é monocultural no quadro
de referência da vida organizada e em muitos aspetos dos modelos de
comportamento individual.

A alternativa para todas estas questões da sociedade


multicultural e multiétnica, que são o nosso futuro sem nenhuma
dúvida, é a recuperação da ideia de comunidade, embora, não sabemos
qual será a forma de comunidade hegemônica no futuro.

https://www.youtube.com/watch?v=H--lMmgRUyQ&t=372s

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