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Volume 9 | Número 2 | 2 0 2 3 | ISSN: 2448-0819


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T h a ís d e A ra ú jo d a C o s t a (UERD)
R o g é r io M o d e s t o (UESC)
□ o s é E d ic a r lo s d e A q u in o (UFT)

INSTRUMENTOS LINGUÍSTICOS
Universidade Federal do Tocantins - UFT
Câmpus de Porto Nacional
Programa de Pós-Graduação em Letras
Mestrado em Letras

Revista Porto das Letras

Instrumentos Linguísticos

Organização:
Thaís de Araujo da Costa (UERJ)
Rogério Modesto (UESC)
José Edicarlos de Aquino (UFT)

Volume 9, Número 2, 2023


ISSN: 2448-0819

Revista Porto das Letras, Vol. 9, N° 2. 2023


Instrumentos Linguísticos
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EXPEDIENTE

Reitor
Prof. Dr. Luis Eduardo Bovolato

Vice-Reitora
Prof. Dr. Marcelo Leineker Costa

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação


Prof. Dr. Raphael Sanzio Pimenta

Diretor do Câmpus de Porto Nacional


Prof. Dra. Etiene Fabbrin Pires

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras - PPG-Letras


Prof. Dr. Carlos Roberto Ludwig

Revista Porto das Letras


Jardim dos Ipês, Rua 03, Q. 17, s/n°
Setor Aeroporto
CEP: 77.500-000
Porto Nacional - TO
Telefone: (63) 3363-9466
Site: http://revista.uft.edu.br/index.php/portodasletras/index

Editoração
Carlos Roberto Ludwig

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Porto das Letras, v. 9, n. 2, 2022, Porto Nacional - TO


Universidade Federal do Tocantins, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2015-

Trimestral.
Modo de Acesso: http://revista.uft.edu.br/index.php/portodasletras/index
Editoração: Carlos Roberto Ludwig
Organização: Thaís de Araujo da Costa, Rogério Modesto e José Edicarlos de
Aquino
ISSN: 2448-0819

1. Instrumentos Linguísticos. 2. Gramatização 3. História das Ideias


Linguísticas. 4. Título.
1. Universidade Federal do Tocantins. Programa de Pós-Graduação em Letras

CDU: 801 (05)

Todos os artigos publicados na Revista Porto das Letras são de inteira responsabilidade dos
autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal à Revista, à UFT ou ao PPG-Letras.

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Revista Porto das Letras

Equipe Editorial

Editores-Chefe
Carlos Roberto Ludwig, UFT
Thiago Barbosa Soares, UFT

Conselho Editorial
Adolfo José de Souza Frota, UEG
Andrea Ferrás Wolwacz, FAPA
Andrea Martins Lameirão Mateus, UFNT
Adriana Carvalho Capuchinho, UFT
Adriane Veras, Univ. Est. do Vale do Acaraú
Alexandre Melo de Sousa, UFAC
Ângela Francine Fuza, UFT
Carine Haupt, UFT
Carlos Roberto Ludwig, UFT
Carlos Piovezani, UFSCar
Carmen Maria Faggion, UCS
Cesar Alessandro Sagrillo Figueiredo, UFNT
Cielo Griselda Festino, Unifesp/UNIP
Daniel Marra da Silva, IFTO
Dalve Oliveira Batista-Santos, UFT
Divanize Carbonieri, UFMT
Edilene Ribeiro Batista, UFC
Enilda Almeida Bueno, UFG
Flávia Andrea Rodrigues Benfatti, UFMT
Fulvio Torres Flores, Univasf
Guilherme Fromm, UFU
Greize Alves da Silva, UFT
Gustavo Cohen Vargas, UFRR
Ilza Galvão Cutrim, UFMA

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Janaína de Azevedo Baladão e Aguiar, PUC-RS


José Edicarlos de Aquino, UFT
Karylleila Santos Andrade, UFT
Kathrin Holzermayr Lerrer Rosenfiled, UFRGS
Kyldes Batista Vicente, Unitins
Luana Alves Luterman, UEG
Luzmara Curcino, UFSCar
Maged Talaat Mohamed Ahmed El Gebaly, Universidade de Aswan, Egito
Maria Carmen de Frias e Gouveia, Faculdade de Letras de Coimbra, Portugal
Maria Perla Araújo Morais, UFT
Mariângela Alonso, USP
Marília Fátima Oliveira, UFT
Marildo José Nercolini, UFF
Marluza da Rosa, UFSM
Mônica da Silva Cruz, UFMA
Neila Nunes de Sousa, UFT
Olívia Aparecida Silva, UFT
Paulo Osório, Universidade da Beira Interior, Portugal
Raquel Salek Fiad, Unicamp
Rejane de Souza Ferreira, UFT
Renilson José Menegassi, UEM
Rosalia Angelita Neumann Garcia, UFRGS
Sandra Sirangelo Maggio, UFRGS
Sandro Luis Silva, Unifesp
Sonia Torres, UFF
Thiago Barbosa Soares, UFT

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Pareceristas ad hoc:
Adielson Ramos de Cristo (UFRB)
Cláudia Pfeiffer (Unicamp)
Fabiana Santos (UERJ/IF)
Fernanda D'Olivo (Cap, UERJ)
Flávio Benayon (UFMT)
Gabriel Leopoldino dos Santos (IFSP)
Iuri Pavan (UFF)
José Edicarlos de Aquino (UFT)
José Horta Nunes (UNICAMP)
Joyce Colaça (UFS)
Laís Medeiros (Unicamp)
Mariza Vieira (LABEURB/UNICAMP)
Michel de Faria (Unicamp)
Milena Saldanha (UFF)
Milene Leite (Cap, UERJ)
Mirielly Ferraça (UFPR)
Naaman Mendes (Unicamp)
Phelippe Marcel (UERJ)
Rick Afonso-Rocha (UESC)
Rogério Modesto (UESC)
Ronaldo Freitas (UFF)
Tháis de Araujo da Costa (UERJ)
Viviane Soares (ESJV Fiocruz)

Revisão
José Edicarlos de Aquino (UFT)
Rogério Modesto (UESC)
Thaís de Araujo da Costa (UERJ)
Carlos Roberto Ludwig, UFT

Editoração
Carlos Roberto Ludwig, UFT

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Ciência e tecnologia são quase exclusivamente associadas às áreas da


computação, engenharia, medicina e físico-química. Contudo, há séculos, e antes
daquelas, as ciências da linguagem têm desenvolvido ferramentas tecnológicas,
raramente percebidas enquanto tais, mas, em todo caso, fundamentais para a forma como
nos organizamos como sociedade e produzimos conhecimento científico. São elas, por
exemplo, a escrita, a gramática, o dicionário, o glossário, a enciclopédia, o livro didático,
o atlas linguístico e, mais recentemente, os programas de processamento de voz e de
textos, entre muitos outros. É pelo viés da História das Ideias Linguísticas (HIL) que tais
ferramentas são consideradas instrumentos tecnológicos, ou mais precisamente,
instrumentos linguísticos.
O conceito de instrumento linguístico tem sido (re)trabalhado por diversos
pesquisadores da HIL desde que foi inicialmente mobilizado por Sylvain Auroux (1992,
p. 69), com o sentido de um artefato que “prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo
de regras e de formas que não figuram junto na competência de um mesmo locutor” . Um
instrumento linguístico é, assim, definido como objeto discursivo (COLLINOT,
MAZIÈRE, 1997), objeto histórico (ORLANDI, 2001), objeto técnico-cultural e sócio-
histórico (COLOMBAT, FOURNIER, PUECH, 2010), objeto cultural e técnico-histórico
(MEDEIROS, ESTEVES, 2020), objeto gendrado (ZOPPI FONTANA, 2017) e objeto
racializado (MODESTO, 2022). Ele é pensado ainda, no espaço-tempo brasileiro, em
relação à partição da língua, indicando não o que se colocaria como da ordem do nacional,
mas do local, do regional (MEDEIROS, PETRI, 2013).
O princípio básico é de que os instrumentos linguísticos apresentam uma
dimensão técnica (não são feitos de qualquer maneira) e uma dimensão político-histórica
(não são feitos sem razão e de forma neutra) (AQUINO, 2020). Além disso, inspirando-
se em Auroux, novas categorias vêm sendo propostas para alargar a compreensão de
instrumentos linguísticos. Fala-se, assim, de instrumentos de jurisdição da língua

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(ORLANDI, 2001), instrumentos glotopolíticos (ARNOUX, 2008), meta-instrumentos


linguísticos (GUIMARÃES, 2014), instrumentos linguísticos de metassaberes
(ESTEVES, 2014), des-instrumentos linguísticos (FERREIRA, 2020) e instrumentos
linguístico-jurídicos (GONÇALVES, ZOPPI FONTANA, 2021).
Longe de apenas descrever ou representar a atividade linguística dos falantes, os
instrumentos linguísticos são fábricas de línguas (AUROUX, 1998; AUROUX,
MAZIÈRE, 2006), empregados geralmente como tecnologias de gerenciamento do
espaço urbano (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2011). Dessa forma, eles atuam na construção
do efeito imaginário da unidade linguística (PFEIFFER, 2007) e, finalmente, na evidência
da ideia de que os seres humanos falam - esta(s) ou aquela(s) língua(s). Nenhum sujeito
escapa, portanto, à introdução dessas tecnologias em um dado espaço. Para dizer de forma
simples, as ferramentas tecnológicas da linguagem não apenas recortam e hierarquizam
falares, determinando o que é ou não a língua, mas também ordenam e classificam os
falantes.
O escopo deste número especial da revista Porto das Letras é o mapeamento e a
análise dos mais diversos instrumentos linguísticos. O intento, alcançado, foi o de reunir
textos que discutissem a produção e o emprego dos instrumentos linguísticos nas mais
diferentes áreas e atividades sociais, abordando seus aspectos técnicos, teóricos, políticos
e ideológicos e suas implicações para os sujeitos, as línguas e o conhecimento linguístico.
Os 21 textos que constituem este dossiê estão dispostos da seguinte forma:
primeiramente, encontram-se os artigos que analisam um tipo específico de instrumento
linguístico; em seguida, aqueles que fazem análises diversas em instrumentos linguísticos
no Brasil e no mundo, nessa ordem, tomando ainda para organização entre eles o critério
cronológico dos textos analisados. Por fim, encontram-se duas traduções, a de um artigo
e a de um capítulo de livro originalmente publicados em francês e que são de inegável
relevância para a discussão que se pretende com este número engendrar, além de uma
resenha da tradução da biografia de Ferdinand de Saussure escrita por John Joseph.
Passamos a seguir a apresentá-los individualmente.
Alejandro Díaz Villalba analisa, no artigo Listas y tablas como herramientas
lingüísticas: los participios dobles en las gramáticas espanolas (1743-1854), o
tratamento dos chamados particípios duplos em gramáticas espanholas dos séculos XVIII
e XIX para tomar as listas e tabelas como ferramentas linguísticas. Fazendo um breve
apanhado da história desses artefatos, o autor enumera as propriedades que caracterizam

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as listas e tabelas como instrumentos linguísticos, responsáveis, nessa qualidade, segundo


se argumenta, por ampliar o conhecimento dos falantes. O autor também pontua
diferenças entre listas e tabelas quanto às complexidade de informação que elas podem
estruturar, mostrando as vantagens dessas ferramentas para o reconhecimento e
formalização de formas linguísticas distintas e a maneira como elas impulsionam e
assentam uma questão como uma problemática a ser enfrentada pelos gramáticos.
Daniela Lauria e Andrés Buisán trazem uma análise do manual de estilo da
agência oficial de notícias do governo da Argentina no início da década de 1980, na
passagem da ditadura para o regime democrático. Assim, no texto De la Guerra de
Malvinas al final de la dictadura. Una lectura glotopolíticadel manual de estilo de la
agencia oficial de noticias Télam (Argentina, 1983), a partir de uma leitura dita
“glotopolítica” da história dos manuais de estilo da imprensa em espanhol, Lauria e
Buisán mostram como esses instrumentos servem à regulação linguística e discursiva e
também à circulação de ideologias, não sendo, portanto, jamais alheios às condições
sócio-históricas em que são produzidos. É dessa forma que se argumenta como, dentro
de uma política de línguas nacionalista e hispanista durante a última ditadura argentina,
o manual governamental de redação de notícias trabalha uma identificação tradicional
entre língua, nação e Estado, tendo sido empregado na Argentina ao lado de outras ações
institucionais de censura e repressão do governo militar e exaltação triunfalista da guerra
das Malvinas.
Wanderson Chaves de Queiroz e José Edicarlos de Aquino analisam os glossários
produzidos pelas forças de segurança no Brasil e mostram como essas ferramentas gozam
de valor jurídico por serem empregadas na investigação e produção de provas contra
organizações criminosas. No artigo Glossários das forças de segurança no Brasil: os
instrumentos linguísticos na relação com o direito e o Estado, os autores apontam as
polícias, Ministério Público, advogados e juízes como os sujeitos envolvidos na produção
e emprego dos glossários das forças de segurança, notando que os jovens negros e pobres,
o comércio e consumo de drogas e o porte de armas são as pessoas, ações e objetos que
esses instrumentos definem como do universo da criminalidade, deixando de fora
atividades como crimes de corrupção ou do colarinho branco. Numa reflexão sobre o
trabalho da interpretação e a construção histórica dos sentidos, bem como da relação entre
língua e direito, argumentam ainda que os instrumentos linguísticos não são artefatos
objetivos nem neutros, mas guardam relação com o direito e os aparelhos ideológicos do

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Estado, estando sua utilização, portanto, à serviço dos controles que o aparelho jurídico-
policial do Estado brasileiro desenvolveu ao longo de sua história.
Em Dicionários filosóficos e glossários em filosofia: artefatos culturais
filosóficos e instrumentos de saturação da referência, Gleiton Matheus Bonfante investe
no cruzamento entre Filosofia e História das Ideias Linguísticas, defendendo um
entrelaçamento entre os instrumentos e saberes linguísticos e a prática de filosofar e
colocando em relação de analogia e concorrência os conceitos de instrumento linguístico,
artefatos culturais filosóficos e de instrumentos de saturação de referência. O
conhecimento metalinguístico e conceitual é o ponto de costura apontado entre os
dicionários e glossários filosóficos e os instrumentos linguísticos como gramáticas e
dicionários. Já a marcação da diferença diria respeito fundamentalmente à saturação da
referência, uma função estabilizadora do sentido presente principalmente nos artefatos
filosóficos. As (des)semelhanças levantadas nas formas analisadas de instrumentação
linguística tocam em questões como a relação dos instrumentos linguísticos com a
(in)completude da língua e a materialidade linguística e discursiva, a idealização de um
leitor e a incidência sobre a (não) neutralidade e universalidade dos conceitos e sentidos.
No artigo Caminhar entre listas: bibliotecas como espaços de instrumentação
linguística, Phellipe Marcel da Silva Esteves e Gustavo José Pinheiro, ancorados na
Análise de Discurso Materialista, na sua relação com a História das Ideias Linguísticas,
refletem sobre as bibliotecas não apenas como instituições, mas como espaços em que
potencialmente se dá instrumentação linguística. Nessa visada, propondo a construção
colaborativa do que formulam como História Discursiva do Livro, aproximam-nas de
artefatos linguísticos, tais como gramáticas, dicionários, livros didáticos de língua(s), a
fim de contribuir para uma reflexão mais ampla a respeito das formas de materialização
de instrumentos linguísticos, considerando-os na relação que estabelecem com a divisão
do espaço institucional e com o próprio corpo.
Gabriel Leopoldino dos Santos e David Guadalupe Toledo Sarracino tomam a
gestão escolar como um “instrumento de políticas de línguas”, com efeitos sobre o modo
como as línguas e seus falantes são significados na escola, essa concebida, na perspectiva
da Semântica do Acontecimento, como um “espaço de enunciação” . No texto A gestão
escolar como um instrumento de política de línguas, a partir da análise das práticas
político-linguísticas observadas no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de São Paulo (IFSP), os autores avaliam que os atos administrativo-normativos da gestão

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escolar organizam a forma como cada língua funcionará em seu espaço de enunciação,
exercendo poder no jogo de forças entre línguas e falantes no espaço da escola, colocando,
por exemplo, no caso analisado, o inglês em lugar de primazia com relação às demais
línguas e dando menos valor aos falantes de espanhol e da língua brasileira de sinais e
mesmo de português. É por organizar, dividir, distribuir, redistribuir e determinar
politicamente as línguas que a gestão escolar é compreendida como um instrumento de
política de línguas, sempre indissociável do funcionamento do Estado.
Filiadas à Análise de Discurso materialista e à História das Ideias Linguísticas,
Jael Sanera Sigales Gonçalves, Vitória Eugênia Oliveira Pereira e Monica Graciela Zoppi
Fontana assinam o texto Instrumento jurídico-linguístico: direito, universidade e
nacionalidade na produção de saberes sobre a língua. Nele, as autoras analisam o
funcionamento discursivo de dois documentos que compõem um arquivo jurídico voltado
à investigação de políticas linguísticas, a saber: o Termo de Referência que vincula a
Cátedra Sérgio Vieira de Mello às Instituições de Educação Superior a ela relacionadas e
o Projeto de Lei N° 489/2019. Assim, o texto debruça-se sobre um outro tipo de
instrumento linguístico que regula a língua não pela prescrição gramatical ou
dicionarística, mas pela prescrição jurídica. As análises relacionam de modo contundente
direito, língua, sujeito e Estado no modo de produção capitalista e, a partir delas, se chega
à formulação do conceito de instrumento linguístico-jurídico através do qual as autoras
analisam os processos de subjetivação que tocam as línguas e a divisão desigual das
línguas nos espaços de enunciação que se dão pelo atravessamento entre Estado e Direito.
Marcus Menezes assina o texto Saberes metalinguísticos em uma cartilha de
pedagogização antirracista. O instrumento linguístico em foco é uma cartilha temática,
entendida pelo autor como um instrumento regulatório da vida em sociedade, tal como
sua sustentação na Análise de Discurso materialista e na História das Ideias Linguísticas
permite afirmar. A análise mostra que a produção da cartilha em foco não se ampara em
saberes técnicos externos, permanecendo ausente, então, a discussão linguística
especializada em torno das expressões e formulações que são apontadas como racistas na
cartilha. Assim, Menezes defende que a língua funciona como um objeto do debate racial
em que o que sobressai é a discussão em torno da racialidade desacompanhada da
produção intelectual e científica da linguística. Finaliza o autor mostrando que, apesar da
ausência de um saber linguístico especializado, as cartilhas do tipo analisado parecem

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ditar formas de usos linguísticos, especialmente no que concerne ao debate racial, o que
mostra a força desse instrumento para o sujeito do conhecimento e para a vida social.
Em Um instrumento linguístico eventual: a "dicionarização antirracista de
Instagram”, à luz da Análise de Discurso Materialista, Matheus Oliveira Souza toma
como objeto de análise discursos racializados sobre a língua, em circulação no Instagram,
notadamente em perfis que, como afirma, simulam o funcionamento de instrumentos
linguísticos, como dicionários e cartilhas, dizendo combater termos e expressões que, de
acordo com certa interpretação linguística vinculada à militância negra, teriam se
constituído historicamente a partir de uma formação discursiva colonialista/racista. Em
sua análise, observa uma regularidade em tais perfis que, como assevera, denunciam
palavras e expressões consideradas racistas e prescrevem outras opções com sentidos
similares, produzindo, assim, uma abordagem normativa. Paralelamente, Souza tece
ainda uma reflexão a respeito do modo como tais perfis simulam a função de instrumentos
linguísticos tradicionais, propondo a noção de instrumento linguístico eventual.
Em Criação do CODIC - Corpus Oral de Divulgação Científica: considerações
linguísticas e metodológicas, Jackson Wilke da Cruz Souza, numa reflexão sobre
divulgação científica e linguística de corpus, analisa o Corpus Oral de Divulgação
Científica (CODiC), composto pelas respostas de professores, técnicos e alunos da
Universidade Federal de Alfenas às perguntas enviadas pela comunidade numa rádio
local, qualificando-o como um instrumento linguístico que possibilita a popularização de
conceitos e metodologias científicas. O autor descreve as possibilidades que esse
instrumento permite para a observação do modo como os especialistas acadêmicos
desenvolvem atividades comunicativas de acessibilidade do conhecimento científico para
o grande público, chamando também atenção para as questões histórico-ideológicas que
fomentam esse tipo de artefato na sociedade atual, como o combate à desinformação, às
notícias falsas e aos pensamentos anti e pseudocientíficos.
Juciele Pereira Dias analisa os dizeres sobre educação elementar publicados no
jornal Correio Braziliense no início do século XIX para compreender a maneira como os
“instrumentos linguístico-midiáticos” definem e põem em circulação o ensino da leitura
e da escrita e também a identificação “das gentes do Brasil”, conforme expressão do
próprio periódico. Em Ensino da leitura e da escrita de/em classes do periódico Correio
Braziliense: gestos de análise discursiva, a autora, no entremeio da Análise de Discurso,
História das Ideias Linguísticas e História da Educação, mostra as formas que a divisão

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social da leitura, do trabalho e da denominação “brasileiro” vão tomando no momento de


fundação de uma nação brasileira independente de Portugal, interrogando a formação e a
denominação da língua nacional, bem como a segmentação e classificação dos falantes.
Conforme analisado, enquanto um instrumento linguístico-midiático, a publicação
jornalística divulga não apenas um método de leitura e escrita, no caso analisado o do
inglês Joseph Lancaster, mas também condutas de comportamento, promovendo a
disciplina e a obediência social, sobretudo da classe trabalhadora.
Emanuela Rodrigues de Oliveira e Herbertt Neves, em O estudo do léxico na
Grammatica Expositiva, de Eduardo Carlos Pereira, propõem uma reflexão sobre a
descrição dos estudos lexicais referentes ao som, à formação, ao sentido e à organização
das palavras na Grammatica expositiva: curso superior (1907), de Eduardo Carlos
Pereira. Com esse propósito, mobilizando pressupostos da Historiografia linguística e da
História das Ideias Linguísticas, bem como dos estudos do léxico, discutem os impactos
que a atmosfera intelectual da época teve na descrição do conhecimento lexical, buscando
expor como tais fenômenos foram descritos. A análise lhes possibilita concluir que,
inserida na gramatização brasileira da língua portuguesa, a gramática de Pereira reproduz
o padrão da gramática advinda do século XIX, sem maiores inovações para o momento
de sua primeira edição, a despeito de ter sido muito utilizada em colégios à época e de
ser, em seu entender, muito conhecida até os dias atuais.
Na produção de Thaís de Araújo da Costa, Bruna Alves Goulart e Giulia
Nascimento Mello, somos brindados por uma discussão que focaliza o conceito de
instrumentos linguísticos a partir da especificidade brasileira dos processos de
gramatização. No texto que tem como título Instrumentação linguística no espaço-tempo
brasileiro: o nacional e o regional a partir de Said Ali e Nascentes, as três autoras tomam
como recorte analítico a discussão do nacional, em duas obras gramaticais de Manuel
Said Ali, e do regional, em uma obra de Antenor Nascentes. A análise nos leva a um
importante debate em torno da relação entre as ideias de unidade e de diversidade que se
fazem presentes desde os primeiros gestos coloniais da gramatização brasileira.
Dener Gabriel Ferrari, em José Julio Cleto da Silva e a gíria cabocla do sul do
Paraná na história das ideias linguísticas do Brasil, propõe-se a realizar um gesto inicial
de análise do vocabulário Gíria cabocla do sul do Paraná , o qual fora produzido no início
do século XX por José Júlio Cleto da Silva. Lançando-se a refletir, a partir da perspectiva
discursiva da História das Ideias Linguísticas, sobre a instrumentação linguística em sua

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dimensão regional, o autor reconstrói as condições de produção em que se inscreve o


instrumento eleito como objeto e tece algumas considerações analíticas acerca do seu
título, do prefácio e de alguns verbetes dele recortados. A partir disso, demonstra como
em tal instrumento as divisões entre espaços, línguas e sujeitos se fazem significar e como
se dá o estabelecimento de uma relação sinonímica entre a chamada gíria cabocla e a
língua nacional.
O artigo Corpos e sentidos em disputa: os verbetes “mulher” e “homem” no
Diccionario de la Lengua Espanola, de autoria de Joyce Palha Colaça e Maria Caroline
dos Santos Fonseca, toma como objeto, para o empreendimento de sua reflexão, o
instrumento linguístico dicionário. Seis diferentes edições do Dicionário de Língua
Espanhola , editado pela Real Academia Espanhola, constituem o corpus de análise
através do qual Colaça e Fonseca analisam manutenções e deslocamentos na memória
discursiva materializada no dicionário espanhol e que disponibiliza os dizeres para
mulher e homem na história. O texto é sustentado pela relação teórica entre a Análise de
Discurso materialista e a História das Ideias Linguísticas. Com o resultado da análise,
Colaça e Fonseca mostram a forma pela qual o dicionário passa a ser um lugar para o
registro e perpetuação de sentidos que ligam a mulher à privacidade do labor doméstico
e o homem à visibilidade do espaço público.
Cássio Daniel Siqueira e Ana Lívia Agostinho escrevem em coautoria o texto A
Gramatica Annobonesa, de Natálio Barrena: uma gramática missionária de uma língua
crioula . Está em foco no texto, conforme defendem o autor e a autora, uma gramática
marcada pela tradição gramatical missionária que se constitui pela transposição do
protótipo gramatical renascentista. A gramática em questão toma como língua foco o fa
d’Ambô, uma língua crioula falada em Ano Bom, ilha da Guiné Equatorial. A análise de
Siqueira e Agostinho se concentra em dois gestos: a caracterização das peculiaridades do
instrumento linguístico em questão e a compreensão do modo pelo qual o gramático
Natálio Barrena implicita sua compreensão de língua na descrição que faz do fa d’Ambô.
Em A colocação pronominal em locuções verbais: entre a norma predicada e a
praticada, Ana Teixeira e Marcelo Alessandro Limeira dos Anjos fazem trabalhar em sua
escrita uma relação interessante entre a História das Ideias Linguísticas e a
Sociolinguística Variacionista. No texto, Teixeira e Anjos realizam um batimento que
permite a análise e a comparação da prescrição gramatical acerca da colocação
pronominal em locuções verbais com a prática desse fenômeno linguístico na escrita de

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textos cultos dos primeiros quinze anos do século XXI. As gramáticas analisadas datam
do século XX e percorrem um curso temporal de pelo menos sessenta anos. Os textos da
prática escrita compõem um arquivo múltiplo constituído de diferentes formas materiais:
textos jurídicos, religiosos, jornalísticos, literários entre outros. O resultado da reflexão
dos autores mostra de modo contundente o papel dos instrumentos linguísticos na
manutenção de uma realidade linguística que se desencontra da fluidez da língua.
No artigo Norma padrão e norma dita culta: confusão sistêmica entre instrumento
linguístico e amostra de variação, Fernanda de Oliveira Cerqueira problematiza, a partir
de um tripé teórico que entremeia o caráter indisciplinar da Linguística Aplicada, a
Sociolinguística e a História das Ideias Linguísticas, a aproximação dos conceitos de
norma padrão e de “norma estabelecida como culta” . Defende a autora que o conceito de
norma padrão, por regular a gramática normativo-prescritiva, funciona como instrumento
linguístico que não se pode confundir com os usos linguísticos recorrentes de sujeitos
socialmente considerados cultos, usos esses reconhecidos como a “norma culta” . Na
conclusão de seu texto, Cerqueira aponta que a confusão entre os conceitos produz efeitos
sobre as práticas sociais de uso da língua e a própria relação da língua com o poder social.
Destacamos a sensível dedicatória que a autora faz a sua professora que a introduziu na
temática do texto, a professora Viviane Gomes de Deus Deiró, que materializa a potência
da trajetória e do encontro de duas mulheres negras no campo da linguagem.
O exemplo nas gramáticas jesuíticas de guarani, de Carolina Rodriguez-Alcalá,
é uma tradução de “L'exemple dans les grammaires jésuitiques du guarani”, artigo
publicado em 2007 no número 166 da revista Langages, organizada por Jean-Marie
Fournier. Nele, a autora descreve o funcionamento dos exemplos nas primeiras
gramáticas de guarani, escritas por missionários jesuítas nos séculos XVII e XVIII com
vistas a atender interesses coloniais espanhóis na então região do Paraguai. A partir disso,
tece uma importante reflexão sobre o funcionamento do exemplário em instrumentos
linguísticos, demonstrando como a finalidade e as condições iniciais desse trabalho de
gramatização determinaram a constituição do corpus de exemplos, no que diz respeito ao
estatuto dos mesmos e aos critérios de validação, bem como à sua relação com a
oralidade.
Instrumentos linguísticos e língua nacional: um acontecimento no Brasil do
século XIX, de Eduardo Guimarães, é uma tradução de “Instruments linguistiques et
langue nationale: un événement au Brésil au XIXe siècle”, o qual fora publicado

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originalmente em francês no livro Penser l ’histoire des savoirs linguistiques: hommage


à Sylvain Auroux , de organização de Sylvie Archaimbault, Jean-Marie Fournier e Valérie
Raby (ENS Éditions, 2014). Nele, considerando o novo Programa de Português para os
Exames Preparatórios no Brasil, estabelecido em 1887 por Fausto Barreto no Colégio
Pedro II, como um acontecimento decisivo no processo brasileiro de gramatização, o
autor reflete acerca da sua relação com a questão da Língua Nacional e Oficial de um
Estado-Nação. Além disso, buscando compreender em que medida tal acontecimento ou
aquilo que ele estabelece pode ser concebido como um instrumento linguístico,
argumenta que, embora seja um instrumento gramatical, o Programa não é um
instrumento da ordem da normatização da língua, mas da normatização do que se deve
ensinar sobre a língua e como, o que o leva a designá-lo como um meta-instrumento
linguístico.
Por último, o leitor encontrará neste número uma resenha de Bruno Turra de
Saussure, a biografia do linguista Ferdinand de Saussure escrita por John Joseph e
publicada inicialmente em 2012, pela Oxford University Press. A obra, traduzida para o
francês por Nathalie Vincent-Arnaud e publicada pela Lamber-Lucas em 2022, tem cerca
de 800 páginas e ganhará uma tradução em português brasileiro, de autoria do próprio
Bruno Turra, prevista para ser publicada pela Editora da Unicamp em 2024. Na resenha,
Turra insere essa biografia de Saussure num possível novo movimento de (re)leitura do
saussurianismo no Brasil, movimento este no qual, como pontua, “a paternidade do
estruturalismo que lhe foi atribuída passa a ser relativizada e suas obras passam a ser lidas
não mais do ponto de vista das ‘dicotomias estanques’, da ‘exclusão do sujeito e da fala'”
(TURRA, neste número).
Convictos do impacto que todos esses trabalhos, pela excelência que apresentam,
alcançarão, desejamos a todos uma boa leitura!

Thaís de Araujo da Costa (UERJ)


Rogério Modesto (UESC)
José Edicarlos de Aquino (UFT)

Revista Porto das Letras, Vol. 9, N° 2. 2023


Instrumentos Linguísticos
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LISTAS Y TABLAS COMO HERRAMIENTAS LINGÜÍSTICAS:


LOS PARTICIPIOS DOBLES EN LAS GRAMÁTICAS ESPANOLAS
(1743-1854)

LISTS AND TABLES AS LINGUISTIC TOOLS: DOUBLE PARTICIPLES IN


SPANISH GRAMMARS (1743-1854)

Alejandro Díaz Villalba1


Université Sorbonne Nouvelle, Université Paris Cité, CNRS
Laboratoire d’Histoire des théories linguistiques, F-75013 Paris, France

Resumen: El estudio analiza el recurso a las tablas, y en menor medida a las listas, para el
tratamiento de los participios dobles en una serie textual representativa de gramáticas de espanol
en algo más de un siglo (MARTÍNEZ GÓMEZ GAYOSO, 1743 - RAE, 1854). Listas y tablas
son aprehendidas desde la perspectiva de la historia de las ideas lingüísticas como herramientas
lingüísticas que extienden el conocimiento del hablante. Estas permiten organizar, formalizar,
manipular y aprender datos lingüísticos. El estudio se divide en dos partes principales. En la
primera parte se presenta la gramatización de los participios irregulares, y más particularmente la
cuestión de los participios dobles, uno regular y otro irregular, de algunos verbos. Se muestra allí
el papel que desempenan las tablas en el tratamiento de este fenómeno lingüístico y su dimensión
histórica, en la medida en que el modelo de las gramáticas de la Real Academia Espanola influye
en la gramaticografía espanola. En la segunda parte, se analizan las características de listas y
tablas, el funcionamiento en la serie textual seleccionada y la manera en que moldean el modo de
concebir el fenómeno estudiado.
Palabras clave: participio; gramática espanola; lista; tabla; herramienta lingüística.

Resumo: O estudo analisa o uso de tabelas e, em menor medida, de listas, para o tratamento dos
participios duplos numa série textual representativa das gramáticas espanholas ao longo de mais
de um século (MARTÍNEZ GÓMEZ GAYOSO, 1743 - RAE, 1854). As listas e tabelas são
apreendidas na perspetiva da história das ideias linguísticas como instrumentos linguísticos que
ampliam o conhecimento do falante. Permitem organizar, formalizar, manipular e aprender dados
linguísticos. O estudo divide-se em duas partes principais. A primeira parte apresenta a
gramatização dos participios irregulares e, mais particularmente, a questão dos participios duplos,
um regular e outro irregular, de alguns verbos. Mostra-se o papel desempenhado pelas tabelas no
tratamento deste fenómeno linguístico e a sua dimensão histórica, na medida em que o modelo
das gramáticas da Real Academia Espanola influencia a gramaticografia espanhola. Na segunda
parte, analisam-se as características das listas e das tabelas, o seu funcionamento nas séries
textuais seleccionadas e a forma como configuram o modo de conceber o fenómeno estudado.
Palavras-chave: particípio; gramática espanhola; lista; tabela; ferramenta linguística.

Abstract: This paper examines the use of tables, and to a lesser extent lists, for the treatment of
double participles in a representative textual series of Spanish grammars over more than a century
(MARTÍNEZ GÓMEZ GAYOSO, 1743 - RAE 1854). Lists and tables are regarded from the
perspective of the history of linguistic ideas as linguistic tools that extend the speaker's

1 D octor en C ien cias d el L enguaje por la U n iversité Sorbonne N o u v e lle y doctor en L engu a E span ola por
la U niversidad de Salam anca. M aitre de con féren ces en la U n iversité Sorbonne N o u v elle. Email:
alejandro.d iazvillalba@ sorbon ne-nou velle.fr.

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knowledge. They allow organizing, formalizing, manipulating, and leaming linguistic data. The
study is divided into two main parts. The first part presents the grammatization of irregular
participles, and more particularly the question of double participles, one regular and the other
irregular, of some verbs. It shows the role played by the tables in the treatment of this linguistic
phenomenon and its historical dimension, insofar as the grammars of the Real Academia Espanola
create a model that influences Spanish grammar. In the second part, the characteristics of lists and
tables, their functioning in the selected textual series and the way they shape the way of
conceiving the studied phenomenon are analyzed.
Keywords: participle; Spanish grammar; list; table; linguistic tool.

Submetido em 07 de agosto de 2023.

Aprovado em 19 de setembro de 2023.

Consideraciones iniciales
Desde los orígenes de la historia del saber metalingüístico, la lista es una práctica
científica que se entrelaza con otros objetos en la genealogia del estudio de la lengua
(GOODY, 1977; AUROUX, 2012, p. 6): las listas enciclopédicas son los testimonios
escritos más antiguos de manejo del lenguaje. Solo más tarde aparecen entre los
babilonios y los egipcios los paradigmas como complemento a las listas; en un principio,
comentarios de estas (AUROUX et al., 2004, p. 67). A su vez, los paradigmas conducen,
por la necesidad de reglas explicativas, al desarrollo de gramáticas. En época más
reciente, las listas produjeron también diccionarios monolingües, dando lugar a una doble
posibilidad de tratar el léxico.
El presente estudio se sitúa en el campo historiográfico y epistemológico de
análisis de textos gramaticales y atiende especialmente a la elaboración del objeto
llamado gramática. Esto quiere decir que el foco se pone en la materialidad del
dispositivo. Hoy parece imprescindible interesarse por diversos aspectos de la dimensión
material para obtener un conocimiento cabal de la construcción del saber acerca de las
lenguas y el lenguaje. En las gramáticas se pueden encontrar diferentes entidades que
contribuyen a armar el andamiaje teórico y descriptivo. Pertenecen a este ámbito las tablas
y las listas, pero no son estas las únicas piezas que interesan al historiador. También
desempenan un papel crucial en el discurso gramatical los ejemplos y las reglas, que
Fournier y Raby (2008, p. 959) denominan “formes du discours grammairien”2. En la
misma línea, Auroux (2012, p. 31-32) propone una definición empírica de la gramática a
partir de sus elementos constitutivos: conceptos, reglas y ejemplos. Cabe destacar que la

2 Traducción: “Form as d el discurso gram atical” .

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lista de ej emplos es mencionada por este autor como un elemento típico de la presentación
de conceptos (cf. CHEVILLARD et al., 2007; ESCUDERO PANIAGUA, 2023).
Así pues, la lista es considerada en los trabajos históricos como un instrumento
complementado de otros dispositivos. Además del eje conceptual mencionado, se ha
senalado en las gramáticas una conexión entre la lista y el estudio del léxico
(DELESALLE y MAZIÈRE, 2002; DELESALLE, 2006), lo cual apunta a una
complementariedad -se podría anadir, sin duda, porosidad- entre gramática y
diccionarios (AUROUX y MAZIÈRE, 2002).
Ahora bien, cabe preguntarse cuál es el estatus de la lista y de la tabla en las
gramáticas, su función y su tipologia. Si bien en la historia remota del manejo del lenguaje
la lista fue un instrumento lingüístico per se, el objeto que nos interesa aqui es la lista
integrada en la gramática, así como la tabla, i.e. la asociación de listas, tal como la definiré
más abajo. Con seguridad, podemos concebir los libros de gramática como artefactos
discursivos compositivos o aglomerados de estrategias. Entonces, ^la lista es un mero
componente de un engranaje complejo? Para Delesalle y Mazière “ [d]ans les grammaires,
la liste est donc une technique incontournable de recensement et d’élaboration”3
(DELESALLE y MAZIÈRE, 2002, p. 86). Pero unas líneas más abajo, concluyen que “la
liste témoigne de Pimpossibilité d’un traitement empirique total. C’est un des outils d’une
technique métalangagière à visée globalisante, tenue en échec par l’impureté constitutive
de son objet”4 (ibid.). Objeto imprescindible y complementado del discurso gramatical,
la lista se presenta como una técnica al servicio de la explicación gramatical. El enfoque
de estas autoras debe entenderse dentro del estudio de las gramáticas francesas del siglo
XVII, donde se instala una oposición entre reglas y listas en el tratamiento de la
morfología, a la par que se oponen, a nivel general, los tratamientos de la unidad léxica
en gramáticas y diccionarios. En esta óptica, la lista aparece seguidamente de una regla,
para ejemplificarla o para acoger lo que no tiene cabida en ella. Obviamente, la diversidad
del objeto lista no puede reducirse a dicho empleo5. La construcción de una clasificación
de listas -basada sobre un corpus- excede el propósito del presente estudio, pero una
tipología mínima debería incluir al menos la subdivisión lista cerrada / lista abierta, con

3 Traducción: “ [ ...] en las gram áticas la lista es en ton ces una técn ica im prescindible de inventario y de
elaboración” .
4 Traducción: “ [ ...] la lista pon e de m anifiesto la im posibilid ad de u n tratamiento em pírico total. E s u n una
de las herram ientas de una técn ica m etalin güística co n in tencion es globalizadoras, desbaratadas por la
im pureza constitutiva de su ob jeto” .
5 D elesa lle y M azière (2 0 0 2 , p. 80, 86) se proponen extraer de sus textos algu n os tip os de utilización .

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los problemas de delimitación que esta plantea, como se pone de manifiesto en algunos
textos analizados aquí.
La interrelación entre regla y lista o tabla es un punto esencial, pues no sería
pertinente, a nuestro parecer, disociar la naturaleza de la lista sin examinar con qué otra
técnica gramatical se combina (clasificación, regla, excepción, ejemplificación, entre
otros objetos discursivos) y el dispositivo explicativo general que permite crear para tratar
un punto de gramática. Si por herramienta lingüística se entiende un objeto que refleja
conocimientos metalingüísticos (a la manera de la gramática, el diccionario, manuales de
sinónimos, etc.) y que permite la comprensión, el control y el aprendizaje de dichos
conocimientos, la lista y la tabla satisfacen por sí solas esta definición. Como
herramientas lingüísticas integradas en una armazón técnica de alto nivel como es la
gramática, la indagación no puede obviar la cuestión de su posible autonomía dentro de
esa construcción. ^Pueden desgajarse del dispositivo y funcionar como instrumentos
independientes? Quien haya pasado por la escolarización tiene ya la respuesta: con toda
probabilidad, en sus anos de infancia hubo de memorizar verbos irregulares ingleses o la
serie de las preposiciones (simples) del espanol.
Desde el punto de vista metodológico, las listas, así como las tablas y los
paradigmas morfológicos constituyen elementos constructivos intrínsecos del género
discursivo gramática y deberían, por tanto, recibir un tratamiento cuidado en los estudios
historiográficos. La historia de las gramáticas se ha esmerado en trazar líneas de
continuidad o de ruptura a partir de objetos como definiciones, reglas, ejemplos, y
mediante paralelismos textuales y teóricos. La lista, en tanto material básico de
elaboración del discurso gramatical, es un elemento idóneo, si no indispensable, para
describir el devenir del tratamiento de una cuestión gramatical y para establecer líneas de
influencia a partir de la (re)utilización de inventarios (MARTIN GALLEGO, 2023). Sin
duda, la creación y la remodelación (anadidos, sustracción, reestructuración) de estos
objetos gráficos, pero también de tablas y paradigmas, es una de las tareas del gramático;
en algunos casos incluso, el tratamiento de una categoría consiste principalmente en la
gestión de la lista. A título de ejemplo, en las clasificaciones de conjunciones subyace un
elemento estable en la tradición hispánica: la reproducción de listas de subclases (art. cit.,
p. 258). Este hecho empírico convierte a las listas también en candidatas ideales para
establecer influencias directas sobre la base del empleo efectivo de material gramatical,
más allá de los nombres reclamados por los propios autores de gramáticas.

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1. Corpus, metodologia, conceptos, objetivos


“Mas todo esto se conocerá con la práctica, y auxilio del Maestro, mas bien que
con una lista de cada clase: pues ordinariamente listas de esta naturaleza ni se estudian,
ni se leen.” (MATA ARAUJO, 1805, p. 55, n. 1). Con estos términos completa un
gramático la sección sobre el participio en que senala la existencia, entre otros aspectos,
de participios irregulares (en adelante PI) y participios dobles (PD). Expresada en una
nota a pie de página, tal actitud puede sorprender, pues los PI y los PD son a menudo
objeto de enumeraciones, incluso de tablas, en las gramáticas de espanol de la época. En
todo caso, la lectura de esta nota nos invita a plantearnos el papel desempenado por esas
herramientas que completan el discurso gramatical.
El objeto de análisis de este estudio son las secciones de la gramática en que se
trata la cuestión de los dobles participios en espanol para desentranar las características
de las listas y las tablas, así como su funcionamiento en las gramáticas. El tratamiento se
estudia en un corpus de gramáticas de espanol para un público que lo tiene como primera
lengua o con una competencia similar, lo cual excluye gramáticas concebidas
expresamente para alóglotas.
La gramatización de los dobles participios se produce de manera consistente a
partir del siglo XVIII, por lo que el corpus considerado arranca con el primer texto que
cumple con el criterio senalado (gramática para nativos) y recorre poco más de una
centuria de gramaticografía del espanol con 34 obras:

Tabla 1. Corpus*.
fecha autor fecha autor fecha autor

1743 Martínez Gómez 1796 Ballot 1832 Lacueva


1769 San Pedro 1797 Rubel y Vidal 1835 Hermosilla
1770 Puig 17982 González de Valdés 1838 Reyes
1771 RAE 17992 Munoz Álvarez 1839 Martínez de Noboa
1772 RAE 1805 Mata Araujo 18412 Martínez López
1781 RAE 1818 Calleja 1846 Amézaga
1787 Castillo 1818 Cortés y Aguado 1847 Bello
1790 Delgado 18262 Pelegrín 1849 Avendano
1791 González de Valdés 1828 Saqueniza 1854 Fernández Monje
1791 Balbuena 1829 Alemany 1854 RAE
ca 1795 Jovellanos 1830 Salvá
1796 RAE 1831 Munoz
*El número en exponente indica el ordinal de la edición cuando no es la primera, excepto para RAE.

Me referiré a las obras mencionando solo el primer apellido de los autores salvo

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en caso de homonimia. Se han recogido todas las ediciones de la Gramática de la lengua


castellana de la RAE del siglo XVIII (RAE, 1771, 1772, 1781, 1796) reconocidas por la
historiografia hispánica (GARRIDO VÍLCHEZ, 2008, 2011), así como la quinta de la
serie académica (RAE, 1854), que cierra cronológicamente nuestro corpus. Esta obra
supone un cambio sustancial en la lista que la corporación venía proponiendo. Asimismo,
la serie textual comporta textos de diversa índole: por un lado, gramáticas de orientación
escolar, con el propósito de examinar la recepción y la adaptación de la obra académica
en estas herramientas; por otro lado, gramáticas que se declaran como filosóficas o
inspiradas de principios generales. Por ejemplo, así lo expresan en sus títulos las
gramáticas de Pelegrín (1826) Lacueva (1832), Hermosilla (1835), Reyes (1838) y
Martínez de Noboa (1839).
Los textos del corpus fueron publicados en Espana, salvo el de Reyes (1838) y el
de Bello (1847), editados en La Habana y en Santiago de Chile respectivamente.
Consideraré las obras del corpus como una serie textual, presentada aquí por orden
cronológico, en la que todos los eslabones de la cadena tienen igual importancia en lo que
respecta a su consideración como herramientas lingüísticas aptas para el manejo del
objeto delimitado, los dobletes participiales, independientemente del alcance teórico de
cada obra. Sin embargo, los destinatarios y las metas de ellas varían y esto es susceptible
de incidir en el modo de presentar los contenidos, esto es, de elaborar la herramienta.
Se pueden distinguir dos objetivos en el presente estudio. Por un lado, se busca
colocar un jalón para avanzar en la investigación sobre la historia de la gramatización de
los PD en la tradición hispánica. Existe una primera contribución a este campo (DÍAZ
VILLALBA, 2019) para una época anterior a la considerada aquí. No se presenta entonces
un análisis pormenorizado de todos los aspectos de la cuestión, la aproximación es parcial,
aunque se mencionan elementos relevantes para un tratamiento completo futuro.
Por otro lado, el objetivo epistemológico de este trabajo es reflexionar sobre el
funcionamiento y las características de los objetos lista y tabla de las gramáticas con
fundamento historiográfico, esto es, sobre la base de un corpus de estudio. Con este fin,
se comenzará por desgranar los datos factuales (sección 2) para avanzar hacia una
generalización que nos permita aprehender mejor sus características (sección 3).
Con el propósito de nombrar sin equívocos los objetos a los que me referiré,
propongo distinguir de manera liminar tres conceptos, sobre los que profundizaré en la
última parte del estudio:

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a) La enumeración es una serie de elementos presentados en la linealidad del


discurso, ya se trate de inventarios de formas, de material ilustrativo
(ejemplos), u otro objeto que se pretenda mostrar. Esta disposición textual
carece de autonomía tipográfica: no hay apenas separación visual entre el
metadiscurso y el conjunto de piezas presentadas.
b) La lista es la expresión de elementos en una sucesión, pero, a diferencia de la
enumeración, sus miembros están dispuestos verticalmente en una columna en
la que cada uno de ellos es separado del anterior mediante un cambio de línea.
Las piezas singulares pueden ir precedidas de un número, un guion, un punto
grueso u otro carácter demarcador, pero este uso no se atestigua en el corpus
estudiado: los gramáticos suelen delimitar los ítems con separadores finales
(coma, punto y coma, punto).
c) La tabla es la disposición de elementos en dos o más líneas y dos o más
columnas que se cruzan, de tal manera que la lectura de los datos pueda seguir
alternativa y complementariamente un orden vertical u horizontal. Desde el
punto de vista visual pero también cognitivo, representa el modo más
complejo de los tres expuestos.
Las tablas son el objeto principal del presente estudio, pues su uso prevalece en
el estudio de los PD, pero me interesaré igualmente por las enumeraciones y listas como
etapas preparatorias en la recopilación de material para la construcción de la tabla.

2. Listas y tablas para describir los participios dobles


2.1. Primeras apariciones de los participios dobles en las gramáticas
El tratamiento de los PI forma parte de la tradición hispánica desde sus inicios. Ya
Nebrija (1980, p. 259 [1492, f. 66vo]) los recoge, concretamente en las últimas líneas de
su gramática. Los tratados gramaticales proponen la exposición de estos, sea como
enumeraciones, sea en listas; sea por orden alfabético, sea agrupados por tipos de
conjugación. Es remarcable que el tratamiento de la irregularidad goza de cierta
estabilidad en la tradición de descripción del espanol, incluso con una continuidad visible
en las unidades registradas, en parte gracias a la recuperación constante, en gramáticas
para alóglotas, de la enumeración que establece César Oudin (1697, f. 100ro).
En cambio, la gramatización de los dobletes formales para el participio, uno
regular y otro irregular, aparece de manera incipiente en el siglo XVII: la primera

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ocurrencia que hemos podido constatar procede del foco inglés: “Despierto awaked, from
despertar to awake, whic hath also despertado, regular” (SANFORD, 1611, p. 42). La
cuestión de las parejas formales de participios se caracteriza por un tratamiento
discontinuo y una disparidad de los ítems gramatizados en la tradición preacadémica
(DÍAZ VILLALBA, 2019). Sin embargo, ambas temáticas, i.e. irregularidad y formas
dobles, están estrechamente conectadas. Concretamente, hay que senalar la importancia
de la elección del lugar de la obra donde se aborda la cuestión de la irregularidad: o bien
se consagra una sección específica al tratamiento de los PI, o bien se opta por un
tratamiento diseminado en las irregularidades de cada verbo o cada conjugación. La
primera opción es determinante, pues hace poner el foco en el participio y favorece la
aparición de cuestiones ligadas a la irregularidad como esta de las formas dobles (ibid.).
En cuanto a la posible diferencia entre los elementos de cada par, Correas ([1627]
1984, p. 184) se refiere al empleo en los tiempos compuestos de desdezido, soltado,
dixerido, rronpido, confundido, despertado6. Más cercano en el tiempo, Torre y Ocón
(1728, p. 276) explicita claramente la distinción categorial, oponiendo formas regulares
para conjugar al verbo frente a formas irregulares que funcionan como adjetivos.

2.2. De Martínez Gómez Gayoso (1743) a RAE (1771)


En este periodo no se producen cambios relevantes en el tratamiento formal de los
participios, esto es, no aparecen listas o tablas de PD. Sí hay en cambio una distinción
relativa al empleo de las formas regulares frente a las irregulares en RAE (1771, p. 174).
Se puede distinguir dos grupos, según que la morfología irregular se trate en el
capítulo del verbo o en la sección específica sobre el participio. Al primer grupo se puede
adscribir Martínez Gómez Gayoso, pues no aborda los PI en el capítulo del participio
(MARTÍNEZ GÓMEZ GAYOSO, 1743, p. 200-203), sino que esta información aparece
en el inventario de verbos irregulares (p. 191-197). Solo he detectado en su gramática el
par prendido/preso (p. 194)67. Una dispersión de los datos parecida afecta a la gramática
de Benito de San Pedro (1769), quien registra los pares muerto/matado (p. 38),
preso/prendido (p. 50) y quisto/querido (ibid.), con una observación sobre la distinción
semántica para el primero.

6 E n Correas ([1 6 2 5 ] 1954, p. 31 9 ) m en cion a cin co, pues falta dixerido.


7 A nade uno m ás e n 1769 (M A R T ÍN E Z G Ó M EZ G A Y O S O , 1769, p. 220): suelto / soltado

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En el segundo grupo, Salvador Puig (1770) prefiere enumerar por orden alfabético
todos los PI y los infinitivos correspondientes (“De Abrir, Abierto ”, p. 128), e incluye en
la serie los dobletes preso/prendido, resuelto/resolvido, suelto/soltado (ibid.), sin precisar
diferencias de uso entre ellos. También presenta RAE (1771, p. 173-174) los PI por orden
alfabético (29 ítems) y adopta además la forma de la lista, i.e. una columna, aunque agrupa
los prefijados de la misma raíz en una única línea (p. ejemplo, “hecho, contrahecho,
deshecho &c.” (p. 174). La lista viene completada por una observación:

Entre e llo s hay algu nos que p iden la term inacion regular quando se u san co n e l verbo
auxiliar, y así se dice: has confundido los papeles: han despertado del sueno: se han
hartado de fruta: he incluido tus cartas; pero quando se u san c o n otros verbos, p iden
com unm ente esto s participios la term inacion irregular, y así se d ice: m e v e o confuso:
estoy despierto, harto, haito: v a la carta inclusa. (R A E 1771, p. 174)

El pasaje merece dos observaciones. En primer lugar, el texto acadêmico no


menciona los PR correspondientes a los PI, como tampoco proporciona los infinitivos que
permitirían la formación regular para esos verbos. Esta laguna será subsanada en la
siguiente edición (RAE, 1772), como se verá más abajo. En segundo lugar, es resenable
la complementariedad entre lista y discurso metalingüístico, en el sentido de que este
último sirve de comentario a aquella. Sin embargo, el alcance de la observación no es
delimitado sólidamente: no es posible hablar de un funcionamiento general, pues afecta
solo a un subconjunto de formas (“Entre ellos hay algunos”). También en este aspecto
habrá una evolución en la segunda edición, que evita la vaguedad de la formulación.

2.3. La gramática de RAE (1772)


En la segunda edición de la gramática acadêmica (RAE, 1772, p. 177-182) el
tratamiento de la irregularidad de los participios es novedosa. Esta obra contiene dos
tablas diferenciadas para cubrir el estudio de la morfología: una para los PI y otra para
los dobletes. La tabla de PI (p. 177-179) presenta en cada línea una forma participial
seguida de su infinitivo. A modo ilustrativo, véase la parte superior de la tabla:

P a r t ic ip io s d e l o s v e r b o s .
ab ierto....................... abrir. (R A E , 1772, p. 177)

Se alcanza un total de 41 PI, lo cual representa el registro más nutrido hasta la


época. Se trata de un conjunto de participios que no tienen equivalente regular: “Los

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participios referidos nunca tienen terminacion regular” (RAE, 1772, p. 179). Esta
afirmación parece tener un carácter restrictivo al delimitar las únicas formas posibles. De
hecho, algunas de las “inexistentes” ya habían sido recogidas en obras anteriores como
PD 8, otras serán gramatizadas más tarde 9 .
Por otro lado, la tabla de los PD está organizada en tres columnas (ver Anexo I).
Se muestra a continuación la primera de las 35 líneas:

Verbos que tienen P ARTICIPIOS.


dos participios. i-------------- *------------ 1
regulares. irregulares.
ahitar ahitado ahito.
(R A E , 1772, p. 180)

Tanto en el caso de los PI como de los PD, es plausible concebir que la disposición
en tabla procede de la articulación de varias listas. Concretamente, el origen parece estar
en la lista de PI, a la que se yuxtaponen una lista (infinitivos) o dos listas más (infinitivos
y PR). El resultado es una organización en forma de matriz constituida por dos entradas.
A título de ejemplo, para los PD es posible recorrer la información en dos direcciones: la
lectura vertical da acceso a las formas de una misma categoría (infinitivo, PR, PI), las
líneas horizontales ordenan formas de la misma base verbal según dichas categorias, es
decir permiten aprender o verificar las formas participiales a partir del conocimiento
del infinitivo.
El texto de RAE no describe la formación de los PI, como tampoco la tabla
introduce una clasificación de estos. Sin embargo, podemos establecer dos tipos
morfológicos. Por un lado, se incluyen numerosas formas cultas, que en latín eran
participios, tales como compulso, concluso, confuso, etc. Por otro lado, ciertas formas
podrían proceder de un participio también en latín, pero han sufrido evoluciones fonéticas
en el camino al romance (ahito, bendito, despierto, fijo, etc.). La relación etimológica de
estos últimos PI con los infinitivos correspondientes no es homogénea, pues en algunos
casos, es el infinitivo el que se ha formado a partir de un participio existente (por ejemplo,
ahitar, despertar, fja r, juntar).

8 L os regulares correspondientes so n contradecido (E N C A R N A C IÓ N , 1624, p. 111), descubrido


(C O R R E A S [1625] 1954, p. 3 19), resolvido (Ibid.; PU IG , 1770, p. 128).
9 E stos regulares so n absolvido, cubrido, disolvido, envuelto, preveido, revolvido, “i sus sem ejantes
envolver, d evolver, & c.” (N O B O A , 1839, p. 158).

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La tabla de los PD es un mero inventario de formas, es decir, el dispositivo solo


da acceso a correspondencias morfológicas y categoriales. Sin embargo, en estas
conexiones subyace una oposición funcional, que no puede registrar por sí sola la tabla.
Parece entonces inevitable recurrir a un desarrollo textual. Se pone de manifiesto aquí la
complementariedad entre regla y tabla a la que aludíamos en la introducción. En el caso
que nos ocupa, el comportamiento de las formas se explicita de manera discursiva bajo la
forma de una regla de alcance bastante general (ver Anexo I), como atesta la indicación
perentoria “se usan siempre” (p. 181): los PR sirven para formar tiempos compuestos
mientras que los PI se emplean “comunmente como adjetivos verbales” (Ibid.). Se
consigna una excepción a la regla, a saber: las formas de preso, prescripto, provisto, roto,
las cuales siendo PI pueden utilizarse también en los tiempos compuestos.
Cabe destacar que el texto no ofrece denominación para lo que he categorizado
como tabla, pero sí da orientaciones sobre su lectura pues se refiere a la “ segunda” y la
“tercera columna” (p. 221), dando en cierta medida instrucciones en la manera de utilizar
la herramienta.
El dispositivo de conjunto para el tratamiento de la morfología irregular se puede
esquematizar como sigue:

Tabla 2. Tratamiento de los participios irregulares y dobles en RAE (1772).


Participios irregulares Participios d obles
• T abla I (41 líneas) • Tabla II (35 líneas)
• R eg la de em p leo I • R eg la de em p leo II
o E x c ep ció n a la regla II

La estructuración del tratamiento se sustenta en un juego de oposiciones. Por un


lado, las formas que aparecen en la tabla I no pueden figurar en la tabla II y viceversa.
Por otro lado, la regla I no se entiende sin la regla II. La regla I supone una innovación
en la medida en que ningún gramático antes se había visto en la necesidad de precisar el
empleo de los PI si no era en contraposición con los PR, es decir, el contenido de la
regla II.
La tercera edición (RAE, 1781, p. 177-182) presenta el mismo texto que la
segunda edición ya descrita. En cambio, en la cuarta edición (RAE, 1796, p. 219-222),
hay una variación en el tratamiento. La tabla de PI se reduce a 12 líneas, y la gramática
senala que los compuestos de estos verbos los forman también PI. Dicho de otro modo,

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se opera una reducción de la tabla I y la supresión de la regla I. En cambio, el tratamiento


de los PD es sustancialmente el mismo, salvando mínimas modificaciones de redacción,
al de las ediciones segunda y tercera: tabla II más la regla II y la excepción a esta. Sí es
novedad relevante para la doctrina el que se afirma (RAE, 1796, p. 221) que los PI de la
tabla funcionan como adjetivos verbales “y absolutos” 10.
Llamaremos al tratamiento de los PD de estas primeras ediciones el modelo
académico, que por la autoridad y prestigio de la corporación tienen una influencia
rastreable en la serie textual analizada en el presente trabajo.

2.4. Los participios dobles en las gramáticas después de RAE (1772)


Tras los jalones que marca la serie académica iniciada por RAE (1772), hay
diversidad de tratamiento de los PD en las gramáticas. Se puede establecer tres grupos.
Grupo 1. Gramáticas que no incluyen la cuestión de los PD. En este conjunto se
encuentran obras que se dejan calificar de didácticas o escolares (CASTILLO, 1787;
DELGADO, 1790; GONZÁLEZ, 1791; BALBUENA, 1791; RUBEL ,1797; CORTÉS,
1818; AMEZAGA, 1846). Formularemos la hipótesis de que el tema es demasiado
especializado para tales gramáticas. Asimismo, pertenecen al grupo dos obras que se
inscriben, por su título, en el paradigma de la gramática general (LACUEVA, 1832;
HERMOSILLA, 1835), y que quizás por ello no desciendan a cuestiones tan particulares
de la morfología espanola.
Grupo 2. Gramáticas que tratan la cuestión de los PD pero no recurren a tablas
como soporte de presentación: González (17982, p. 52-54), Mata (1805, p. 55), Saqueniza
(1828, p. 62, 66), Alemany (1829, p. 69), Munoz Capilla (1831, p. 156) Reyes (1838,
p. 227).
En el grupo 2 el inventario de PD es reducido, y suele aparecer como enumeración.
En el caso de González, la información está dispersa, pues los PD se describen en cada
una de las tres conjugaciones verbales, sin tratamiento unitario. Un hecho curioso es que
Alemany propone solo cuatro pares de PD, los mismos que RAE (1772) presenta como
excepción a la regla de distribución de los PD. La nómina de PD más reducida es la de
Munoz Capilla, que solo recoge el binomio omiso / omitido y además remite al uso
normativo para conocer todo lo demás tocante a este asunto:

10 D eb e entenderse absoluto e n el sentido de u n adjetivo sin com p lem en to, e s d ecir que no rige a otro
elem ento. E sto lo d iferencia de lo s verdaderos participios que p o see n e l régim en d el verbo.

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M u ch os verb os tien en d os participios, uno regular y otro irregular e l regular se


construye co n el auxiliar haber, e l irregular co n el sustantivo ser: he om itido: soy
om iso: sobre lo cual d eb es consultar e l u so de lo s que hablan bien; y cuando éste sea
d udoso acudirás á lo s b u en os autores. (M U N O Z C A PIL L A , 1831, p. 156)

Como se puede observar, este gramático propone también la regla II de


distribución de PD. Esta aparece además en Saqueniza aplicada solo a dos pares de PD.
Por su parte, González da indicaciones en algunos pasajes sobre los PI que se usan con
verbos auxiliares o con los verbos ser o estar específicamente, sin que se pueda hablar de
regla general. No obstante, la regla aparece formulada en Reyes, quien habla del empleo
como absolutos de los PI, a lo que se aludía en RAE (1796).
En cuanto a la excepción a la regla, ya queda expresado más arriba como
Saqueniza (1828, p. 66) recoge los 4 pares de PD, indicando el doble uso de todos los
ítems, aunque no se presente como excepción a la regla de distribución, pues esta no se
describe en la misma página (p. 62). Por su parte, Reyes no lo aborda como excepción
absoluta con una lista precisa de PD a los que esta afecta, sino que pone en tela de juicio
la regla de manera general: “bien que en este punto no se puede establecer regla fija é
invariable, y asi es mas comun decir: he roto la carta y han preso á un hombre, que la he
rompido ó le han prendido ” (REYES, 1838, p. 227).
En resumen, en el grupo 2 los autores no proporcionan un inventario completo de
PD, pero dan cabida a la problemática en sus gramáticas, si bien lo hacen marginalmente.
Algunos dejan constancia de la regla de distribución, aunque sin la misma firmeza con
que se manifestó en las gramáticas acadêmicas.
Grupo 3. Gramáticas que presentan tablas de PD. Este tratamiento es el más
común, con 12 obras: Jovellanos (1858[ca 1795], p. 111), Munoz Álvarez (1793, p. 127­
129), Ballot (17962, p. 105-106), Calleja (1818, p. 65-66), Pelegrín (1826, p. 99-101),
Salvá (1830, p. 97, 164), Noboa (1839, p. 158-159), Martínez López (18412, p. 33-34),
Bello (1847, p. 141-142), Avendano (1849, p. 75-76), Fernández (1854, p. 155-156) y
RAE (1854, p. 105-106).
En este grupo es frecuente la presencia de la regla II y de la excepción a la regla
II. Específicamente, la regla II de distribución de los PD está presente en 9 de los 12
autores analizados (ausente en Noboa, Martínez López y Avendano), pero no es idéntica

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en el detalle11. Los autores que expresan la regla II indican también la excepción (salvo
Bello), de los 4 ítems que proporciona RAE (1772), con escasas variaciones1112.

2.5. L a evolución de la tabla de participios dobles de RAE (1772) a RAE (1854)


Dentro del corpus de estudio se puede delimitar una serie textual más restringida
(15 textos) que ofrece al lector tablas de PD, a saber: las gramáticas académicas a partir
de RAE (1772) y los autores del denominado grupo 3 en la sección precedente. Se
presenta a continuación el número de líneas de cada tabla por autores:

Tabla 3. Número de pares de participios dobles en las tablas.

Fernández Monje
Martínez López
N

§>
Jovellanos

Avendano
Pelegrín
Calleja

Noboa
Ballot

Salvá

Bello
RAE

RAE

RAE

RAE
autores N
O

I
ca 1795

00

1847
1772

1796

1796

1826

1830

1839

1849

1854

1854
1793
1781

1841
fecha 00

número
35 35 34 35 27 35 35 34 135 16 5 5 35 35 62
de líneas

Las líneas contienen, como ya se ha indicado más arriba, tres tipos de elementos:
infinitivos, PI y PR. Resulta evidente que la tabla de RAE (1772) -que puede se puede
consultar en el Anexo I - constituye el modelo para 8 gramáticas posteriores. En otros 4
autores el número de líneas se reduce con respecto al modelo académico de manera más
sustancial, mientras que en 2 textos se produce un aumento considerable. Pasemos revista
a esta diversidad de opciones.

11 Tres autores, Jovellan os, C alleja y Fernández, in dican que se u tilizan lo s P R co n haber o para lo s tiem pos
com puestos, m ientras que lo s PI fu n cion an com o adjetivos. M u n oz Á lvarez op one el u so c o n haber y las
“dem ás oca sio n e s” . P elegrín presenta esta dicotom ía: por un lado, P R co n haber; por otro lado, PI com o
adjetivos y junto a lo s verb os ser, estar, tener. Salvá contrapone em p leo c o n haber y em p leo co m o absoluto
y co n lo s verb os ser, quedar, estar. R A E (1 8 5 4 ) con serva la d istin ció n que y a v im o s aparecer e n R A E
(1 7 9 6 ) entre com b in a ció n co n haber y em p leo co m o adjetivo o em p leo absoluto d el participio. Por últim o,
en B e llo se puede leer una regla form ulada de m anera laxa: “ Cuando hai d os form as para lo s participios, la
una regular i la otra anóm ala, p ued en no em plearse indistintam ente” (B E L L O , 1847, p. 141) y ofrece el
ejem plo de freído / frito (co n haber o ser se p ued en usar indistintam ente, co n lo s otros verb os se prefiere
el PI). S in em bargo, este autor no lo propone com o regla absoluta y opta por dar cuenta d el u so concreto de
cada uno de lo s 5 pares de P D que registra en su lista. E sta propuesta se halla, p o r su orien tación y por la
m anera de presentar la cu estión , m uy lejos de la sistem atización que se ob serva en la tradición acadêm ica.
12 P elegrín anade el PI ingerto, m ientras S alvá aum enta co n otros 4 PI lo s resenados por la RAE: frito,
impreso, inscrito y proscrito.

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2.5.1. Influencia del modelo de RAE (1772)


La segunda edición de la gramática de RAE (1772) se convierte en un patrón que
se retoma en RAE (1781, 1796), Munoz Álvarez, Calleja, Avendano, Fernández Monje.
Es casi idéntico en Jovellanos, quien retira el PD suelto / soltado, y en Pelegrín, que no
recoge ahíto / ahitado.

2.5.2. Recortes en el modelo de RAE (1772)


Cuatro autores entran en este grupo: Ballot, Noboa, Martínez López y Bello.
Ballot presenta la tabla de los PD como una clase susceptible de ser completada,
pues la última línea se cierra con un “&c.” que lleva a considerarlo como una lista abierta.
Ocurre igualmente esto con su tabla de PI, en la que apostilla: “ Se esceptúan algunos, que
por lo mismo se llaman irregulares, por ejemplo [...]” (BALLOT, 1796, p. 103).
Por su parte, Noboa alude de manera explícita a la no exhaustividad de la tabla,
mencionando en la última línea “i algun otro mas” (NOBOA, 1839, p. 158). La reducción
del número de PD a 16 pares se hace de manera consciente, criticando el autor además la
extensión de esta categoría:

N o hai m as participios d uplicados que estos, porque otros m uchos que su elen ponerse
por tales, co m o electo, convicto, despierto, & c., se d eb en mirar com o m eros adjetivos.
C on clu irem os advirtiendo que e n caso de duda de si u n verbo es regular ó irregular,
por hallarse usado de lo s d os m od os i no estar decidido cual se ha de seguir, nosotros
preferirem os siem pre el m odo regular, tanto para el verbo co m o para todas las e sp e cie s
de palabras. (N O B O A , 1839, p. 1 5 8 -1 5 9 )

Se puede constatar que la limitación del número de líneas con respecto a autores
que siguen el modelo acadêmico se explica por dos razones: a) por no considerarse como
participios las formas que solo tienen un empleo adjetival; b) por la preferencia por no
conservar más que los PI en caso de duda ante el uso del PI o del PR. En cuanto al descarte
de formas puramente adjetivales, el autor no indica en el pasaje en quê criterio basa la
distinción. La gramática de Bello va en la misma dirección que Noboa, pero ilustra la
diferencia entre adjetivos y participios:

S on rigorosam ente ad jetivos abstracto, acepto, confuso, enjuto, expreso, expulso, i


otros m uchos, que parecen tener afinidad co n lo s participios, pero que no lo son: no
puede decirse, por ejem p lo, que ''el G obierno ha exp u lso a lo s estranjeros
sosp echosos," ni qe "unas co sa s fueron con fusas co n otras," ni que "un p ueblo fué

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con verso a la fe cristiana," o que "los m ision eros le habian converso," sino expelido ,
confundidas, convertido. L o que no quita que lo s p oetas por una esp e cie de arcaism o
o latinism o u sen a v e c e s co m o participios a expreso, opreso, excluso, i otros. (BEL LO ,
1847, p. 142)

Se desprende de esta explicación que la base de la distinción categorial sería la


virtud que tienen los participios de conjugarse con un verbo auxiliar (haber, ser) en activa
o en pasiva.
Tampoco Martínez López se propone dar un repertorio exhaustivo de los ítems de
las categorías en cuestión (proporciona solo 5 líneas, los participios que comienzan por
a, b y c ). Más bien parece opinar que su estudio pertenece al campo del léxico y no de la
gramática: “Y mas de otros ciento y sesenta que puede ver el discípulo en el Diccionario
de la lengua” (MARTÍNEZ LÓPEZ, 18412, p. 34).

2.5.3. A um ento dei modelo respecto a RAE (1772)


Dos obras amplían considerablemente la tabla canónica de 35 líneas: Salvá y
RAE (1854). Salvá nos ofrece la tabla más completa del corpus llegando a las 135 líneas.
No sabemos si este registro es extensible, ya que solo se anuncia: “Y no son dichos verbos
los únicos que están dotados de dos participios de pretérito, sinó (sic) todos los de la lista
que va á continuación” (SALVÁ, 1830, p. 96). Ha de recordarse a este respecto que Salvá
hace una distinción entre PR y PI: estos últimos son adjetivos, mientras que aquellos
pueden regir una preposición y formar tiempos compuestos (p. 164-165). El gramático es
consciente de la sintaxis estrictamente adjetiva de muchas piezas de PI y de que muchos
entran por vía culta en la lengua: “el irregular, que tambien se denomina contracto, no
suele ser sinó (sic) el pretérito regular que los mismos verbos tienen en la lengua latina,
de la cual los hemos adoptado” (SALVÁ, 1830, p. 164).
La gramática de la RAE en su quinta edición también se decanta por la ampliación
de los PD, con una tabla que contiene 62 líneas. Elige por tanto la misma opción que
Salvá: integrar adjetivos en la lista. Se trata de la posición que ya adoptara la RAE en la
edición de 1772, pero ahora la solución es maximalista, mientras que la regla y la
excepción conexas se mantienen:

E stos participios irregulares se u san solam ente co m o adjetivos verbales, y algunos


co m o ab solutos, y nunca se em plean, com o lo s regulares, para form ar lo s tiem pos
com p u estos por m ed io d el auxiliar haber. E xcep tú an se lo s cuatro siguientes: frito,
preso, provisto, roto, [ ...] (R A E, 1854, p. 1 0 6 -107)

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Así pues, debe subrayarse la gran estabilidad de la regla de distribución.


En conclusión, no hay consenso en el número de PD que deben componer una
tabla. Así vemos que el diferente funcionamiento de las formas participiales de las
columnas de PI y de PR puede ser un argumento para acortar o alargar el repertorio de
PD: a) la tabla puede restringirse a escasos ítems, si se excluyen los PI que solo muestran
un comportamiento de adjetivo, sin otros empleos como la formación de los tiempos
compuestos o la posibilidad de un régimen preposicional; b) la tabla puede aumentar si
se incluyen esas mismas formas de PI, considerados como participios.
En resumen, puede considerarse que hay un modelo que impera, la tabla que
propone RAE desde 1772 hasta su modificación en 1854, pero se detectan propuestas que
no reproducen el modelo (la amplitud es de 5 a 135 ítems), y que estos alejamientos
responden principalmente al hecho de que el gramático considere oportuno o no el incluir
en una lista de participios formas que son por su funcionamiento, meros adjetivos sin
valor verbal.

3. De la enum eración a la tabla pasando p o r la lista: la form alización de los datos


Las tablas se utilizan en la tradición hispánica para recoger los datos sobre los PD,
concretamente para relacionar las formas participiales con un verbo (en su forma
lematizada, es decir, el infinitivo) y los participios entre ellos, además de cumplir la
función de registrar qué dobles formas existen. Sin embargo, estas tablas son el resultado
de la gramatización de los participios irregulares en la tradición hispánica, que comienza
antes (DÍAZ VILLALBA, 2019), y para la que se pueden observar otros dispositivos
textuales, a saber: la enumeración y la lista. Así pues, en la serie textual se constata el
empleo efectivo de tres mecanismos en el estudio de la morfología del participio:

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Figura 1. Tipos de enumeraciones, listas y tablas para la morfología irregular del participio

(E) Enum eraciones:

1. PI, PI, PI, PI, etc.


2. in finitivo, PI; in finitivo, PI; in finitivo, PI; etc.
3. in finitivo, PI, PR; in finitivo, PI, PR; in fin itivo, PI, PR;

(L) Listas: (C ) Tablas:

• PI 1) de PI 2) de PD
• PI
in finitivo PI in finitivo PI PR
• PI
• PI in finitivo PI in finitivo PI PR
• PI PI PI PR
in finitivo in finitivo

Cabe destacar que el tratamiento de los PI puede entrar en cualquiera de los tres
moldes, mientras que los participios dobles se incorporan raramente en las enumeraciones
y reciben frecuentemente una formalización en una estructura tabular.

3.1. L a enum eración: el m aterial p a ra la lista de participios


La enumeración es una técnica de clasificación que dispone en una misma serie
elementos que tienen algo en común. La forma textual más antigua para integrar en el
discurso metalingüístico varias formas participiales es mostrarlas de manera sucesiva.
Esta modalidad existe desde Nebrija (1492), quien presenta los PI así:

Pero p o c o s verb os echan el participio d el tiem po passado t e l nom bre participial


infinito en otra manera, co m o de poner, puesto ; de hazer, hecho ; de dezir, dicho; de
morir, muerto ; de veer, visto, aunque su com p uesto proveer no h izo provisto, sino
proveído; de escrivir, escripto. (N ebrija 1 9 8 0 [1 4 9 2 ], p. 2 59)

Esta enumeración (tipo E.2 de la Figura 1) corresponde a pares de elementos


ligados por una preposición que informa de la relación entre ambos (de + infinitivo,
participio), aunque este formato no es el único, pues existe, en la tradición, la posibilidad
de suministrar exclusivamente los PI: [...] faut excepter muerto, hecho, dicho, puesto,
escritto [sic], buelto, confuso, abierto, uisto, et tous leurs composez. (CHARPENTIER,
1596, f. 89r). Esta opción (tipo E.1) es poco frecuente en la tradición, sin duda por ser
menos eficiente cuando se desconocen los verbos a los que pertenecen los PI. La
modalidad E.2 vehicula más de un tipo de información -dos valores por segmento, pero

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podrían ser tres, etc.- lo que hace prefigurar la necesidad de un formato tabular, más
adaptado para este cometido.
Asimismo, la enumeración es susceptible de dar cabida a PD:

Participios de Preterito Irregulares.


D e Abrir, Abierto; de Absorber, Absorto ; [ ...] de Prender, Prendido, ò Preso ; de
Resolver, Resolvido, ò Resuelto ; de Romper, Roto ; de Soltar, Soltado, ò Suelto ; de
Ver, Visto. (PU IG , 1770, p. 128)

Otros hay que tien en una term inación regular, y otra irregular, tales son: prendido ó
preso , de prender; proscribido ó proscrito , de proscribir; proveido ó provisto , de
proveer; rompido ó roto, de romper, & c. (A L E M A N Y , 1829, p. 69)

En el primer texto los PD están integrados en la enumeración de PI (combinación


de E.2 y E.3); en el segundo la enumeración consta exclusivamente de PD (tipo E.3).
Estas opciones están escasamente representadas, a diferencia de la pura enumeración E.2.
Dos características singulares de las enumeraciones son:
a) Linealidad del dispositivo. Las piezas se presentan concatenadas, aun cuando
subyazca una lógica binaria o de múltiples valores (tipo E.2, véase la citación de Nebrija).
Se puede recurrir a la puntuación para estructurar los datos (comas, punto y coma, dos
puntos, cursiva frente a redonda, etc.)
b) Integración en el discurso. No hay separación visual entre el metadiscurso y el
material lingüístico o los datos que se manipulan, a excepción de la tipografia (por
ejemplo, puede venir precedida por dos puntos). De manera general, las enumeraciones
poseen una identidad gráfica poco pronunciada. Sin embargo, ofrecen la ventaja del
ahorro de espacio en la composición de la página, un elemento importante en la
organización del libro de gramática.

3.2. L a form alización como lista y transición hacia la tabla


Encontramos también en las gramáticas listas para representar los PI. La lista se
caracteriza por la disposición de la serie de elementos en una columna de manera que se
garantice la autonomía de cada uno de ellos en una línea. En principio, el paso de la
enumeración a la lista puede ser muy sencillo y responde a una elección de representación
de materiales similares.
En la serie textual analizada, encontramos una sola lista (RAE, 1771, p. 175-174),
que contiene PI colocados por orden alfabético. ^Cómo explicar esta cuasiausencia? Los

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autores consideran importante suministrar otro valor relevante, el infinitivo del verbo
correspondiente, convirtiendo la lista en tabla, como lo ilustra este pasaje:

Se esceptúan algu nos, que por lo m ism o se llam an irregulares, por ejem plo:

De A brir... abierto. D e I m p r im ir . impreso.


De A b s o lv e r . absuelto. D e M o r ir . muerto.
De C ubrir... cubierto. De P on er. puesto.
De D e c ir . dicho. D e R e so lv e r . resuelto.
De E scrib ir... escrito. De V e r . visto.
De H a cer... hecho. D e V o lv e r . vuelto.
& c.
y sus com p uestos. (B A L L O T , 1796, p. 103)

Este ejemplo muestra claramente la proximidad de concepción entre la lista de PI


y la tabla, en la medida que esta última procede de la yuxtaposición de dos listas, donde
una de ellas -la de infinitivos- es elaborada siguiendo el mismo orden que la de PI y con
una función auxiliar, puesto que el foco de estudio es la serie de PI. Así pues, las “listas”
se transforman en columnas: de+infinitivo en la columna izquierda, una forma de PI en
la derecha. Se trata por tanto de una estructura tabular mínima, donde es posible consultar
los ítems siguiendo dos coordenadas: lectura vertical (recorriendo sea los infinitivos sea
los PI) o lectura horizontal (un infinitivo y el PI asociado). Por la misma razón, tampoco
es posible encontrar listas de PD: hay siempre al menos dos formas por línea, o sea dos
valores horizontales. La información que proporciona la tabla de Ballot citada puede
aparecer en otras gramáticas dispuesta en enumeraciones (el tipo E.2), solo que en estas
últimas hay un único sentido de lectura.

3.3. L a form alización como tabla


Como se puede observar en la figura 1, la tabla es una herramienta que sirve para
estructurar dos tipos de datos en nuestra serie textual. Por un lado, la tabla sirve para
reflejar los datos de la tríada compuesta por infinitivo/PR/PI, del que los autores hacen
un uso frecuente (véase 2.5). Por otro lado, también pertenecen a esta categoria las “listas
dobles” que relacionan un infinitivo y un PI, disposición que aparece en 13 gramáticas13.
Las capacidades del soporte escrito se ponen de manifiesto de manera espectacular
con el formato tabular. La tabla se apoya, como también la lista, en la utilización de la

13 H ay tablas de PI en las sigu ientes obras: R A E (1 7 7 2 , p. 1 7 7 -1 7 9 ), R A E (1 7 8 1 , p. 1 7 6 -1 7 9 ), R A E (1 796,


(p. 2 19), B a llo t (1 7 9 6 , p. 103), M u n oz Á lvarez (1 7 9 9 , p. 1 2 6 -1 2 7 ), C alleja (1 8 1 8 , p. 6 5), Saqueniza (1 818,

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Instrumentos Linguísticos
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bidimensionalidad de la escritura, de la disposición de los datos en un espacio plano, para


alcanzar lo que Auroux et al. (2004, p. 62) califican de “nouvelles performances
cognitives” 14. En efecto, la tabla consiste en la creación de una matriz resultante del cruce
de listas verticales y horizontales. Este tipo de representación se aleja enteramente del
discurso para tratar las entidades lingüísticas como elementos interrelacionados por
determinadas variables.
En concreto, la tabla de PD es el resultado de una formalización que sirve para la
organización del material acumulado por la gramatización de un fenómeno: los PI que se
relacionan con sus infinitivos y posteriormente el descubrimiento de la existencia de PR
para los mismos verbos. En el estudio de los participios, este material de base se plasmó
en un primer lugar en enumeraciones, y en menor medida en forma de lista (véase más
arriba). Estructurándolos como tablas, los gramáticos permiten un acceso más fácil a los
datos y la lectura deja de ser lineal para adquirir dos direcciones (entradas vertical y
horizontal). La elaboración de las tablas de PD parece más compleja que la de PI pues
aquella es solo posible una vez que se ha identificado la existencia de dobles participios
-solo unos pocos al principio- en el uso y se busca entonces documentar exhaustivamente
y sistematizar el fenómeno. Así, por ejemplo, en RAE (1771, p. 174) la serie es todavía
corta: confundido / confuso, despertado / despierto y hartado / harto o haito (sic). Solo
en la edición siguiente, RAE optará por una representación de tipo tabular (ver anexo I).

3.3. C aracterización de dos herram ientas lingüísticas: listas y tablas


Las siguientes características atanen principalmente a la lista y la tabla. También
las enumeraciones pueden presentarlas, aunque de manera menos marcada.
1) Naturaleza gráfica y dimensión espacial. Las listas y las tablas son objetos
gráficos. Según Goody (1977, p. 77-111), a pesar de ser una de las formas características
de los primeros documentos escritos producidos por la humanidad, la lista, en cuanto
artefacto escrito, supone un modo de tratar la información de manera completamente
diferente que el discurso oral. Esto se manifiesta claramente en su disposición espacial
(p. 81), pues se puede leer en varias direcciones (de arriba abajo y viceversa, o
lateralmente en otros sistemas de escritura) y tiene límites definidos con un comienzo y

p. 66), Salvá (1 8 3 0 , p. 9 6), N o b o a (1 8 3 9 , p. 158), M artínez L ó p ez (1 8 4 1 , p. 4 7 ), B e llo (1 8 4 7 , p. 140),


A vendano (1 8 4 9 , p. 75), R A E (1 8 5 4 , p. 105).
14 Traducción: “n u evos rendim ientos co g n itiv o s” .

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un final. En el caso de las tablas de PD, es frecuente presentarlas en páginas distintas a


las partes discursivas.
2) Organización. La sucesión de elementos está regida por un principio
organizativo, que es además uno de los objetivos perseguidos. El orden puede ser
reajustado o completado (numeración, creación de listas dentro de las listas, etc.). En el
tratamiento de los PI y PD mediante enumeraciones, dominan el orden alfabético y la
agrupación por conjugaciones. En las tablas de PD, solo la inicial alfabética cuenta.
3) Pueden ser inventarios cerrados o abiertos. En el caso de los PI y de los PD esta
característica -n o siempre fácil de establecer- depende de la elección del gramático.
Chevillard et al. (2007, p. 19-20) distinguen en su clasificación de los ejemplos de
gramática, la representación en extensión -las listas15 cerradas se incluyen aquí- o en
comprehensión, donde el ejemplo permite generar otros de la misma clase, como en las
listas abiertas. Como ya hemos visto más arriba, la presencia de la abreviatura “etc.” o
alguna mención expresa en el metadiscurso permite orientar la interpretación del usuario
de la gramática. La lista puede crear la imagen de un inventario cerrado cuando no se
especifica nada, pues pone de manifiesto gráficamente la extensión y los límites de la
categoría. Por otra parte, el metadiscurso gramatical traduce a menudo la fragilidad del
inventario cerrado, en la medida que el gramático puede afirmar la existencia de otros
ítems no mencionados (véase más arriba). En el caso de los PI, un escollo importante para
establecer la extensión de la clase radica en la presencia de verbos compuestos, que
aparecen a veces dentro del inventario, pero también se alude a ellos al final, como en las
textos citados de Charpentier (1596, f. 89r) y de Ballot (1796, p. 103). Se trata de un
problema generalizado incluso cuando no se utilizan listas o tablas16.
4) Sirven para la gestión de los datos. Crear categorías y afectar elementos a esa
categoría es parte constitutiva de la actividad científica. Esta característica es fundamental
para la consideración como herramienta lingüística. La manipulación de la lista se concibe
con varios objetivos: memorizar ítems, controlar el volumen de datos, comprobar la
exactitud de una categorización, organizar conocimientos, etc.
5) No especialización de la herramienta. Afecta principalmente a la lista, que
puede servir -entre otros usos- para ilustrar una clase (lista de ejemplos) o para clasificar

15 L os autores llam an listas lo que y o ca lifico de enum eración en este artículo.


16 A causa de lo s verb os com p u estos, la dificultad de recuento de PI tam bién se produce cuando la
m orfología d el participio se describe de m anera dispersa en capítulos sobre lo s verb os irregulares.

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en grupos. Si bien es cierto que enumeraciones, listas y tablas de PI y PD pueden ser


presentadas discursivamente por los gramáticos como la ejemplificación de una clase, ya
se ha podido constatar (punto 3) la dificultad para distinguir grupos cerrados o abiertos.
6) Descontextualización. La noción proviene de Goody (1977, p. 78) -e n inglés
decontextualisation-. Los ítems de una lista son elementos que se encuentran fuera de su
uso normal en el discurso. Obviamente, las listas y las tablas pueden estar enmarcadas
por un discurso que hace referencia a ellas. Sin embargo, no se debe confundir el concepto
de descontextualización con el hecho metalingüístico de poder manipular segmentos
lingüísticos en mención (carácter reflexivo del lenguaje). Goody (1977, p. 77) pone el
foco en la idea de que los ítems, fuera del discurso, adquieren un alto grado de abstracción,
en la medida en que un ítem puede formar parte de una lista en su calidad de miembro de
una categoría. Asimismo, los límites impuestos por la lista -tienen un principio y un final
claros- otorgan mayor visibilidad y abstracción a las categorias en general, así como a
sus miembros (p. 81), pues estos no solo se ven desgajados del discurso, sino que también
hay una separación entre ellos, siendo el espacio -podríam os anadir- la representación
semiótica de esta. Sin duda, la separabilidad de listas y tablas nos interesa en grado sumo
porque es lo que permite su objetivación y su autonomización como herramientas: una
vez extraídas, son aptas para funcionar como objetos con identidad propia.
7) Acumulatividad. La transmisión y acreción de conocimientos es una de las
características resenables del saber gramatical, tanto es así que su identificación sirve de
criterio para definir una tradición descriptiva. Ciertamente los gramáticos se apoyan en
inventarios anteriores para poder elaborar los suyos. En el caso del tratamiento del
participio, se observa una relativa estabilidad del corpus de PI desde los inicios de la
tradición, sobre todo a partir de finales del siglo XVI (DÍAZ VILLALBA, 2019), con una
acumulatividad de carácter moderado. Como se dice más arriba, la lista puede dar la
impresión de reflejar un inventario cerrado, cuando no viene rematada por la mención
etcétera. Como consecuencia, el dispositivo invita a completar el corpus de formas
heredado con otras nuevas no registradas aún, en una búsqueda de la exhaustividad.
8) Reducción (afecta a la tabla). Una de las consecuencias de la formalización es
la tendencia al reduccionismo, una suerte de simplicidadgráfica de la que habla Goody
(1977, p. 67, 70), en el sentido de que la tabla constrine nuestra comprensión de la realidad
a relaciones sencillas. Este autor es muy crítico con las consecuencias de hacer entrar en
un solo esquema formal (la matriz) los datos, pues tal proceso produce un orden

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superficial y simplificaciones de estos. En lo que respecta a los PD, es importante apuntar


que las posibles relaciones entre las distintas formas (los ítems o participios) quedan
resumidas, por la colocación de dos listas una junto a otra, a una oposición binaria o
ternaria: un PI se corresponde a un PR y eventualmente a un infinitivo. Se puede
considerar que hay una nivelación o estereotipación de las asociaciones entre las formas
forzada por la elección de un criterio morfológico único. Para entender este punto, debe
tenerse en cuenta que la colocación de un ítem en la tabla confiere a este un valor
predeterminado, en la medida en que la posición de una unidad define los valores de dicha
unidad y sus relaciones con las demás unidades. Como consecuencia, los elementos se
ven insertos en un mecanismo de interrelaciones impuestas, consecuencia de lo que
Goody (1977, p. 68) llama “pensamiento asociativo” . Para el cuadro de PD, las dos
coordenadas permiten dos operaciones: 1) asignar una categoría a cada ítem; 2) relacionar
morfológicamente las distintas formas de un verbo. En el corpus de estudio, estas
relaciones se distribuyen en el espacio según el siguiente patrón:

Figura 2. Valores asociativos en las tablas de dobles participios.

es un in finitivo es un PR e s un PI
1 1 1
forma de infinitivo ^ de ^ forma de PR ^ de ^ forma de PR
í í í
com o com o com o
1 1 1
forma de infinitivo ^ de ^ forma de PR ^ de ^ forma de PR

Las consecuencias de la reducción a la que asistimos en las tablas de PD se


manifiestan al menos en tres ámbitos: la simplificación de la descripción morfológica, la
unificación de la regla de empleo, la incidencia sobre la representación del fenómeno.
En primer lugar, la tabla únicamente permite un tratamiento somero de las
cuestiones morfológicas, pues apenas dos tipos de información son identificadas según
los ejes vertical y horizontal (ver figura 2). Sin embargo, esta herramienta no agota en
absoluto los problemas morfológicos; antes bien, los escamotea o los relega al discurso
gramatical. A modo de ejemplo y sin pretender la exhaustividad, los PI del anexo I no
parecen tener el mismo origen: algunos son cultismos o antiguos participios de uso
adjetival en la lengua moderna (convicto frente a convencido), otros son participios
truncos formados a partir de una base verbal con sufijo cero, o bien adj etivos que sirvieron
de base para la formación del verbo (marchito frente a marchitado); se da incluso el caso

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de adjetivos de raíz diferente a la del verbo pero que se relacionan por proximidad
semântica (enjuto frente a enjugado).
En segundo lugar, el paralelismo entre las dos listas induce a buscar una pauta de
uso. La tabla no nos informa en absoluto sobre el funcionamiento de las formas en la
lengua. Este desempeno corresponde al discurso metalingüístico, bajo la forma de la regla
de empleo II (véase tabla 2). No obstante, cabe preguntarse si esta regla casa bien con
todos los usos observables. La misma RAE enuncia desde el inicio la excepción a la regla
II para cuatro parejas de PD. Por otra parte, solo se dan ejemplos de unos pocos participios
(ver por ejemplo el anexo I). Algunos autores critican la existencia misma de ciertos PD.
Por último, habría que tener en cuenta el impacto de la actividad gramatizadora
sobre la representación del fenómeno. La elaboración y la persistencia de tablas en un
periodo relativamente dilatado dan una consistencia material a la cuestión y confieren una
imagen espacial característica que reproduce un juego de oposiciones y relaciones
estables. Por consiguiente, estas son susceptibles de ser descritas con pautas generales.
La imagen que se crea del fenómeno es importante debido a su eventual influencia
sobre los usos de la lengua. Si tomamos en serio la potencialidad de la tabla como
herramienta para manejar la lengua, también debemos hacernos cargo de las
repercusiones de su utilización en la conciencia y la conducta lingüística del hablante. De
manera general, las gramáticas en cuanto fâbricas de la lengua común (AUROUX y
MAZIÈRE, 2006), son susceptibles de introducir cambios en el ecosistema de esta última.
Sin duda, un examen atento de la relación entre gramatización de los PD y funcionamiento
de la lengua debería estudiar conjuntamente todo el dispositivo: tablas más reglas y
excepciones, ademâs de herramientas como los diccionarios. El aspecto que merece la
pena resaltar es que una herramienta lingüística funciona también como agente regulador,
en la medida en que la codificación llevada a cabo por la gramática influye y dirige
- ^hasta qué punto? ^en qué registros? - la actividad de los hablantes.

C onsideraciones finales
La cuestión de los participios dobles emerge como una continuación de la
descripción de los participios irregulares en la tradición hispânica, para cuyo tratamiento
ya se utilizaban las enumeraciones y en menor medida las tablas. Si bien el estudio de los
participios dobles puede aparecer en la tradición de manera discursiva (sin técnicas

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específicas), es la formalización mediante tablas lo que identifica la problemática como


un aspecto a tratar por los gramáticos.
En el tramo cronológico estudiado abundan las tablas. A partir del último tercio
del siglo XVIII, la propuesta de las primeras gramáticas acadêmicas desempena una
función crucial en el desarrollo del tratamiento tabular de la cuestión, pues crean un
modelo que siguen de cerca numerosos gramáticos decimonónicos. Así pues, se trata de
un fenómeno histórico que se explica fácilmente por el prestigio y la difusión de la
gramática de la RAE. Sin duda, en la elección de esta herramienta intervienen tambiên
otros factores. En efecto, el recurso a la tabla permite a un tiempo recoger las formas de
participios dobles y formalizar las relaciones entre las distintas formas registradas. Si bien
se trata de una herramienta cómoda y de alto rendimiento para abordar el fenómeno, la
elección de la tabla inclina la labor gramatizadora hacia el repertorio de formas, en
detrimento de otras cuestiones de morfología o de sintaxis.
El estudio desentrana una serie de características de las listas y de las tablas sobre
la base de una reflexión alrededor del material estudiado. Cabe destacar el hecho de que
estas dos herramientas comparten propiedades, pero la tabla se diferencia por la
complejidad de la información que permite estructurar, puesto que refleja datos
relacionales ausentes en las listas.

Referencias

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Instrumentos Linguísticos
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Anexo 1. Los dobles participios en RAE (1772)


(Extracto de la Parte I, capítulo VII. Del Participio de la Gramática de la lengua castellana, compuesta
por la Real Academia Espanola (1 7 7 2 ). L as cifras entre corchetes [ ] senalan in icio de página.)

H ay algunos verb os que tien en d os participios p a siv o s, el uno regular, y el otro irregular, y so n lo s
siguientes.
[180]
Verbos que tienen P a r t ic ip io s .
_________ i________
dos participios. i \
regulares. irregulares.
ahitar ahitado ahito.
b en decir bendecido bendito.
com p eler compelido com pulso.
con cluir concluido con cluso.
confundir. confundido con fuso.
con ven cer convencido con victo.
convertir convertido converso.
despertar despertado despierto.
eleg ir elegido electo.
enxugar enxugado enxuto.
exclu ir excluido exclu so.
exp eler expelido exp u lso.
expresar expresado expreso.
extinguir extinguido extinto.
fixar fixado fixo.
hartar hartado harto.
incluir incluido incluso.
incurrir incurrido incurso.
insertar insertado inserto.
invertir invertido inverso.
inxerir inxerido inxerto.
juntar juntado junto.
m aldecir maldecido m aldito.
[181]
m anifestar manifestado m anifiesto.
marchitar marchitado marchito.
om itir omitido om iso.
oprim ir oprimido opreso.
p erfeccionar perfeccionado perfecto.
prender prendido preso.
prescribir prescribido prescripto.
proveer proveido provisto.
recluir recluido recluso.
rom per rompido roto.
soltar soltado suelto.
suprimir suprimido supreso.

L os participios p a siv o s regulares de la segunda colum na se u san siem pre co n el verbo auxiliar haber para
form ar lo s tiem p os com p uestos, y así se d ice, has confundido lo s p ap eles : han despertado d el sueno : se
han hartado de fruta : he incluido las cartas. L o s irregulares de la tercera colum na se u san com unm ente
com o adjetivos verbales, y no p u ed en form ar tiem p os com p u estos co n e l verbo auxiliar, á e x c ep cio n de los
quatro siguientes: preso, prescripto, provisto, roto, pues [182] igualm en te se puede decir:

ha prendido ha preso.
ha prescribido ha presripto.
ha proveido ha provisto.
ha rompido ha roto.

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Instrumentos Linguísticos
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Y aun es de m as u so roto que rom pido. Inxerto, opreso, y supreso su elen tam bien usarse c o n el verbo
auxiliar.

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Instrumentos Linguísticos
50

De la G u e rra de M alvinas al final de la dictadura. U na lectura glotopolíticadel


m anual de estilo de la agencia oficial de noticias Télam (A rgentina, 1983)

From M alvinas W a r to the end of the dictatorship. A glottopolitical reading of the


style guide of the official news agency Télam (A rgentina, 1983)

Daniela Lauria
Universidad de Buenos Aires, UBA, Argentina

Andrés Buisán
Instituto de Lingüística, FFyL, UBA, Argentina

Resumen: El 24 de marzo de 1976 se produjo en la Argentina el último golpe de estado cívico-


militar. La Junta Militar que tomó el gobierno instauró el terrorismo de Estado a través de
prácticas de tortura, desaparición de personas, represión, y censura. El proceso autodenominado
de “Reorganización Nacional” comenzó a ser cuestionado a los pocos anos tanto por las
denuncias de los exiliados ante organismos internacionales como por algunos pocos medios
gráficos locales y del extranjero. En 1982 el gobierno dictatorial impulsó la Guerra de Malvinas,
con la que obtuvo, al principio y mientras transcurrió, un gran consenso social. Durante la
contienda, presionado por el gobierno de facto, el periodismo dio una versión triunfalista que
favoreció el apoyo de la sociedad. Esta interpretación se disolvió una vez terminado el conflicto,
cuando salieron a la luz los verdaderos y lamentables resultados. La consecuencia de este
desengano fue, por un lado, la falta de credibilidad en el periodismo; y por otro, la aceleración
del final del “proceso” militar y el advenimiento de la apertura democrática. En ese contexto,
dos meses antes de que se celebraran las elecciones presidenciales, en agosto de 1983, la
agencia de noticias oficial Télam publicó el Manual de normas elementales de estilo aplicables
a la redacción periodística de la Agencia Télam. A partir del marco histórico esbozado,
analizamos, desde la glotopolítica, las ideologias lingüísticas que circulan en dicho manual de
estilo con el fin de identificar la posición de la agencia en ese complejo escenario.
Palabras clave: Lengua espanola, regulación lingüística y discursiva, Argentina, instrumentos
lingüísticos, práctica periodística

Abstract: On March 24, 1976, the last civil-military coup d'état took place in Argentina. The
military junta that took over the government established State terrorism through torture,
disappearance of people, repression and censorship. The self-styled process of "National
Reorganization" began to be questioned a few years later, both by the denunciations of exiles to
international organizations and by a few local and foreign print media. In 1982, the dictatorial
government promoted the Malvinas War, with which it obtained, at the beginning and during
the war, a great social consensus. During the war, pressured by the de facto government, the
journalism gave a triumphalist version that favored the support of society. This interpretation
dissolved once the conflict was over, when the true and regrettable results came to light. The
consequence of this disillusionment was, on the one hand, the lack of credibility in journalism;
and on the other, the acceleration of the end of the military "process" and the advent of the
democratic opening. In this context, two months before the presidential elections were held, in
August 1983, the official news agency Télam published the Manual de normas elementales de
estilo aplicables a la redacción periodística de la Agencia Télam. Based on the historical

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framework outlined above, we analyze, from the perspective of glotopolitics, the linguistic
ideologies circulating in that style manual in order to identify the agency's position in that
complex scenario.
Key-Words: Spanish language, linguistic and discourse regulation, Argentine, linguistic
instruments, journalistic practice

Subm etido em 25 de maio de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introducción: el gobierno de facto (1976-1983) y la situación de la prensa en el


período final de la dictadura
El 24 de marzo de 1976 se produjo en la Argentina el último golpe de estado
cívico-militar. La Junta Militar que tomó por la fuerza y la violencia el gobierno
instauró el terrorismo de Estado a través de la violación sistemática de los derechos
humanos, las proscripciones políticas y sindicales, las prácticas de tortura, la
desaparición de personas, los exilios forzados, la censura política, cultural y
periodística1, la intervención de la educación pública, entre otras medidas coercitivas y
represivas12.
En América Latina, la Doctrina de Seguridad Nacional modificó la función de
las Fuerzas Armadas (en adelante, FF.AA.): dejaron de privilegiar la defensa de las
fronteras y la soberanía territorial, para centrar su misión conforme el escenario mundial
de posguerra conocido como la Guerra Fría. De acuerdo con sus lineamientos, las
fronteras serían ideológicas, por lo que el enemigo pasó a estar dentro del territorio y se
lo caracterizó a partir de sus ideas relacionadas con el comunismo y con la alteración
del orden “patriótico y cristiano” . En este sentido, las FF.AA. asumieron el papel de
veladores del orden occidental. En la Argentina, la Doctrina se estableció en el poder a
partir del gobierno de facto de Juan Carlos Onganía en 1966. Anzorena (1998) sostiene
que los planes de las FF.AA. fueron diferentes a los propósitos militares de los golpes
de estados anteriores. Si antes se pensaron como interregnos provisorios hasta
“restablecer el orden”, a partir de entonces, con la “Revolución Argentina” de 1966, se
buscó “efectuar grandes y profundos cambios en la estructura económica, social y
política argentina” (1998, p. 13). La adopción de la Doctrina de Seguridad Nacional

1 V. V arela (2 005).
2 V . sobre este tem a B etten d orff y C hiavarino (2 0 2 1 ) y V itale (2 0 2 2 ).

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implicaba que una persona con pensamiento progresista, de defensa de legítimos


derechos o un militante popular podría ser considerado sospechoso, peligroso para el
orden social o directamente un infiltrado marxista. De allí que se produjera la
intervención de instituciones públicas, la persecución a ciudadanos y la represión del
régimen a las luchas sociales, como lo muestran los episodios conocidos como “La
noche de los bastones largos”, sucedida a un mes de la asunción de Onganía, que
expresó la resistencia universitaria a la intervención del régimen; y el levantamiento
popular denominado el “Cordobazo” en 1969, que fue duramente reprimido.
La aplicación de esta doctrina continuó y se profundizó durante el proceso
autodenominado de “Reorganización Nacional”, ya que la persecución, represión,
desaparición y tortura de todo aquel que la dictadura consideraba peligroso para el
orden público fue parte de un plan sistemático. En ese contexto, el cine y los medios de
comunicación, tanto la radio como la televisión3 y la prensa gráfica jugaron un rol
central en la legitimación u ocultamiento de esas acciones. De acuerdo con Varela
(2005), durante las dos semanas posteriores al golpe militar del 24 de marzo de 1976,
los responsables de publicaciones escritas debieron acercar su material a una oficina
ubicada en la Casa de Gobierno para que el personal de inteligencia autorizara su
publicación. En este marco, el Comunicado N° 19 de la Junta Militar establecía:

Se com u n ica a la p o b la ció n que la Junta de C om andantes G enerales ha resuelto que


sea reprim ido co n la pena de reclu sión por tiem po indeterm inado el que por
cualquier m ed io difundiere, divulgare o propagare com u n icad os o im ágen es
p roven ientes o atribuidas a aso cia cio n es ilícitas o a personas o a grupos
notoriam ente d ed icad os a actividades su bversivas o de terrorism o. Será reprimido
c o n reclu sión de hasta 10 anos el que por cualquier m ed io difundiere, divulgare o
propagare n oticias, com u nicados o im ágen es co n el propósito de perturbar,
perjudicar o desprestigiar la actividad de las fuerzas armadas, de seguridad o
p o lic ia le s.

Además, la autora agrega:

C on una fórm ula provocadora se den om in ó S ervicio Gratuito de Lectura P revia a la


o ficin a de censura que fun cionaba en la Casa R osada. Por otro lado, d esde la
Secretaría de Prensa y D ifu sió n se hizo llegar a lo s d istintos m ed io s lo s d ieciséis
prin cípios y p rocedim ientos, entre lo s que se destacaba la o b lig a ció n de “inducir a la
restitución de lo s valores fundam entales que h acen a la integridad de la sociedad,
co m o , por ejem p lo: orden, laboriosidad, jerarquía, responsabilidad, idoneidad,
honestidad, dentro d el con texto de la m oral cristiana (2 0 0 5 , p . 2 ).

3 V arela (2 0 0 5 ) sostiene que la censura se ap licó de m anera diferente en distintos m ed ios. E n el caso de la
televisión , las diversas fuerzas se distribuyeron lo s can ales y crearon la figura d el “asesor literario” , que
controlaba lo s gu iones. E n cine y radio la censura fue m ás directa.

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El punto doce de los dieciséis principios consideraba el aspecto lingüístico:


“Propender al uso correcto del idioma nacional” . Estos principios fueron publicados
únicamente por la revista Cuestionario, poniendo, de este modo, en evidencia la censura
(ULANOVSKY, 1997).
Por otra parte, medios de mayor circulación, como La Nación, Clarín y La
Razón, avalaron desde un comienzo el golpe de Estado. Estos tres periódicos, por
ejemplo, se beneficiaron por la dictadura militar a partir de enero de 1977 porque
comenzaron a tener participación accionaria en la empresa Papel Prensa S.A., la única
productora de papel del país. Según Molinaro (2013, p. 74), esto “permitiría
posteriormente consolidar a Clarín como una de las principales empresas periodísticas
del mercado” . Para el autor, Clarín tuvo una posición crítica respecto de la política
neoliberal debido al vínculo del medio con el desarrollismo, a la vez que apoyó la
represión ilegal. Por otra parte, la editorial Atlântida4 por entonces empezó a publicar el
semanario político Somos. Según Ulanovsky (1997, p. 256), “su primera tapa marcaría
su clara adhesión a la política del ‘Proceso’: una fotografia del ministro de Economía
Martínez de Hoz con la leyenda ‘El dueno de la esperanza’” .
Sin embargo, el gobierno de facto comenzó a ser cuestionado a los pocos anos,
tanto por las denuncias de los exiliados ante diversos organismos internacionales, como
por algunos pocos medios gráficos locales5 e, incluso, por algunos del extranjero, sobre
todo a partir de la realización del Mundial de Fútbol en 1978. El día que se iniciaba el
campeonato, el 1° de junio de 1978, las Madres y las Abuelas de Plaza de Mayo fueron
entrevistadas por el periodista holandés Jan Van der Putten, del canal VARA de la TV
de su país. En esa ocasión, las familiares denunciaron la desaparición de personas, así
como los robos realizados durante los allanamientos y los secuestros militares. La
entrevista filmada salió a los pocos días en la televisión holandesa y tuvo gran
repercusión mundial, tanto que se fraguó una carta supuestamente escrita por el capitán

4 E sta editorial tam bién ju g ó un papel central en la v ersió n triunfalista de la Guerra de M alvinas
im pulsada por e l Estado M ayor. Cabe recordar el trucaje de fotografías realizado por la revista Gente y la
actualidad, de la m ism a em presa. E s recordada su tapa d el 2 7 de m ayo de 1982 en la que aparece una
fotografía que sim ulaba el hundim iento de u n buque y que estaba acom panada por el título “ jS egu im os
ganando!”.
5 E l diario La Opinión tuvo una postura crítica que derivó en su clausura. A dem ás, su director, el
periodista Jacobo Tim erm an, fue secuestrado y estuvo d etenido clandestinam ente entre 1976 y 1980. Otro
caso representativo de esta situ ación fu e el e x ilio forzado que d ebió em prender R obert C ox, director del
periódico Buenos Aires Herald.

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de la selección holandesa (RuudKrol) dirigida a su hija, explicando lo que


verdaderamente pasaba en la Argentina. Esa carta fue publicada por el semanario
deportivo E l gráfico. Para entonces, Madres de Plaza de Mayo ya había publicado en
octubre de 1977 en el diario La Prensa la primera solicitada pidiendo información sobre
las personas desaparecidas (“No pedimos más que la verdad”), firmada por 237
familiares. Y en septiembre de 1979 se produjo la visita de la Comisión Interamericana
de Derechos Humanos. De esta manera, la dictadura fue perdiendo el consenso inicial.
Además de por las denuncias de violaciones sistemáticas de los derechos humanos, la
dictadura se vio afectada por una crisis y recesión económica grave que llevó a que el
30 de marzo de 1982 se realizase una gran movilización popular (la mayor durante la
dictadura) a Plaza de Mayo liderada por la Confederación General del Trabajo (CGT)
bajo la consigna “Pan, paz y trabajo” . La manifestación fue duramente reprimida y dejó
como saldo detenidos y heridos6.
En ese contexto de denuncias de derechos humanos, y crisis económica y
política del régimen dictatorial, el gobierno decidió ocupar las Islas Malvinas el 2 de
abril de 1982. Según Molinaro (2013, p. 61), “fue la última oportunidad de lo militares
para recuperar el consenso perdido apelando al nacionalismo de la sociedad” .
Durante la Guerra de Malvinas, presionado por el gobierno de facto, la mayor
parte del periodismo reprodujo una versión triunfalista, anclada en el nacionalismo, que
favoreció el apoyo de la sociedad. Escudero Chauvel (1996, p. 63) sugiere la hipótesis
del “síndrome de permeabilidad de la información” (complementado al “síndrome de
malvinización de la información”), según el cual la casi totalidad de la información de
los principales periódicos nacionales (especialmente Clarín y La Nación) y de los
semanarios se encontraba en relación directa con la situación, por lo que el lector
quedaba “prácticamente ‘prisionero’ del discurso de guerra” . En la medida en que el
conflicto bélico se agravó hacia fines de abril, el Estado Mayor dispuso el control de la
información por “razones de seguridad nacional” mediante un decreto, cuyo artículo 1
establece:

A rtículo 1. Todas las in form acion es y las n oticias proven ientes d el exterior,
cualquiera sea su origen, u tilizadas por lo s m ed ios, y toda in form ación difundida por
lo s m ed ios orales, escritos o tele v isiv o s, relacionadas de algú n m odo a las

6 L as protestas no sólo ocurrieron en B u en o s A ires. H ubo tam b ién marchas y reclam os en Rosario,
N euquén, M ar d el Plata y M endoza. E n esta últim a ciudad, hubo u n muerto com o co n secu en cia de los
enfrentam ientos.

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op eracion es m ilitares y a la seguridad nacional, están sujetas al control d el estado


M ayor (Citado en E S C U D E R O C H A U V E L , 1996, p. 106).

En este sentido, Ulanovsky (1997, p. 297) destaca que en las conferencias de


prensa se sugerían lemas como “No tenemos bajas”, “Esta es la guerra de todos” o
“Estamos ganando” . Según el autor, esta “línea se mantuvo incluso después de la
derrota, cuando los medios evitaron a costa de varios eufemismos el uso del término
‘rendición’: ‘cese el fuego’, ‘firma de un acta para retirar las tropas’, etc.” . La
interpretación triunfalista y la derrota matizada se disolvieron abruptamente una vez
terminada la guerra, cuando salieron a la luz los verdaderos y lamentables resultados de
la contienda. Por un lado, el desengano produjo como resultado una gran pérdida de
credibilidad en el periodismo. Por otro lado, y, en términos más amplios, se aceleró el
fin del gobierno militar, lo que provocó el advenimiento de la apertura democrática.
En ese marco, dos meses antes de que se celebraran las elecciones democráticas,
en agosto de 1983, la agencia de noticias Télam publicó el Manual de normas
elementales de estilo aplicables a la redacción periodística de la Agencia Télam. Como
veremos, este material se halla en línea con la promulgación de la Ley 22924 de
Pacificación Nacional, conocida como “Ley de Autoamnistía”, que pretendia justificar
el accionar del gobierno militar con el objetivo de quitarse responsabilidad en su plan
represivo sistemático.

2) M arco institucional: la agencia de noticias oficial Télam


La agencia informativa Télam (acrónimo de Telenoticiosa Americana), órgano
de difusión de noticias oficial del Estado argentino, se creó el 14 de abril de 1945. Fue
una iniciativa del entonces Vicepresidente y Secretario de Trabajo y Previsión de la
Nación, Juan Domingo Perón, durante el gobierno de facto de Edelmiro Farrell (1944­
1946). Se constituyó como una companía de carácter mixto puesto que sus capitales
eran tanto estatales como privados. Formalmente, sus actividades comenzaron en
octubre de ese mismo ano. Tres anos después, en 1948, ya contaba con una cobertura de
alcance nacional gracias a los cables que se enviaban por telégrafo y por teléfono. Los
periodistas y trabajadores de Télam Bargach y Suárez (2019, p. 48) apuntan en la
historia que escribieron sobre el organismo que la decisión política de crear la agencia
se vinculó con la idea de que se proveyeran noticias a los medios argentinos producidas
“con ojos nacionales” . De acuerdo con la opinión de dichos autores, una de las acciones

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del primer peronismo (1946-1952) en el ámbito periodístico fue confrontar el poder de


los propietarios de los grandes medios de comunicación. Para ello, se apeló a diversas
estrategias como, por ejemplo, la compra o la expropiación de varias empresas, y la
imposición de cuotas para la importación de papel.
Sabanés (2014), un investigador que se dedicó también a estudiar el derrotero de
la institución, plantea, por su parte, que la fundación de la agencia, ocurrida unos pocos
meses antes de terminada la Segunda Guerra Mundial y frente al panorama de lo que
luego se conocería como la Guerra Fría, se debió fundamentalmente a quebrar el
monopolio informativo que ejercían entonces en la Argentina y en toda América Latina
dos agencias de noticias de origen estadounidense como eran Associated Press (AP),
fundada en 1846, y United Press International (UPI), creada en 1907.
A lo largo de su vida activa, Télam acompanó los vaivenes políticos nacionales
como así también los cambios que se produjeron en las políticas de comunicación e
información que se desarrollaron a nivel mundial, como consecuencia de la división del
mundo en los dos grandes bloques de influencia geopolítica: Estados Unidos y la Unión
de Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). En lo que respecta estrictamente a la
política nacional, Bargach y Suárez senalan:

T élam ( .. .) exp resó una línea de continuidad c o n relativa estabilidad, claro que
atravesada por las fer o ce s ten sion es editoriales que sig n ificó co n v iv ir entre
dictaduras, guerras y dem ocracias de cuno conservador y popular, e n form a
alternada. Su rol tradicional de a gen cia para diarios y radios, im aginado en lo s '40,
se expandió tam bién a un servicio publicitario e n lo s 6 0 y se d iversificó c o n lo s
serv icio s m ultiplataform a pasados lo s 2 0 0 0 . C on las ventajas y dificu ltades que
con stituye depender e n buena m edida d el im pu lso estatal, T élam tam bién
experim entó la transform ación de ser u n m ed io m ayorista e n u n universo c o n p o co s
actores a las dem andas periodísticas renovadas que irrumpieron c o n la cultura digital
(2 0 1 9 , p. 59).

Muestras de algunas de esas vicisitudes de alcance nacional son los diversos


traspasos del mundo estatal al privado y viceversa tanto como los vaciamientos, cierres
y reaperturas o reactivaciones que sufrió. La agencia nacida, como ya dijimos, unos
meses antes del ascenso de Perón a la presidencia (en junio de 1946), fue cerrada
durante la Revolución Libertadora (1955), pasada a manos privadas durante el gobierno
desarrollista de Arturo Frondizi (1958-1962), clausurada durante el gobierno de facto de
José María Guido (1962-1963), reabierta durante la gestión democrática de Arturo
Umberto Illia (1963-1966) y reestatizada en 1968 durante la dictadura de Juan Carlos

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Onganía (1966-1970). En 1973 mientras transcurría el tercer mandato presidencial de


Perón (1973-1975), se estableció que la difusión de información sobre la Argentina
generada en el país solo podía ser distribuida en el mercado local por empresas
nacionales. Durante gran parte de esta etapa, sobre todo a lo largo de las décadas del
sesenta y del setenta, Télam tuvo el monopolio de la pauta publicitaria oficial.
Hasta aquí mencionamos algunos hitos de la historia de la agencia de noticias.
Sin embargo, el foco central de este artículo reside en la actividad de Télam en la última
dictadura cívico-militar. A lo largo de ese período, se impuso, como ya senalamos en el
apartado anterior, un férreo control a la prensa (que, por supuesto, incluyó la restricción
de la libertad de expresión a través de la implementación de la censura previa). En esas
circunstancias, Télam devino un organismo que operó como una pieza clave del aparato
estatal montado al servicio de la regulación y de la vigilancia informativa7. En
particular, nos concentramos en un determinado acontecimiento histórico, a todas luces
absurdo al igual que previsiblemente trágico desde nuestro punto de vista, como fue la
Guerra de Malvinas, también llamado Conflicto del Atlântico Sur (2 de abril de 1982-14
de junio de 1982), en la cual la Junta Militar en un último intento por aferrarse al poder,
decidió recuperar las islas Malvinas, Georgias y Sándwich del Sur, ubicadas en el
Atlântico Sur, y disputar con Inglaterra (que ocupó, con un gesto de su política de
expansión imperialista, los territorios en 1833) su soberanía. En ese momento, la
agencia estatal de noticias Télam, junto con el canal de televisión abierta Argentina
Televisora Color (ATC) y Radio Nacional, fue una de las voceras oficiales de la
contienda.
El director-interventor de Télam era el Coronel Rafael Benjamín del Piano que
había sido designado al frente de la institución por el entonces Presidente de facto
General Jorge Rafael Videla en 1978 y que dejaría su cargo recién en diciembre de
1983, una vez que el político radical Raúl Ricardo Alfonsín se hiciera cargo del Poder
Ejecutivo al ganar las elecciones presidenciales de octubre de ese ano.
Solamente dos periodistas de Télam, Diego Pérez Andrade y Carlos García
Melod, junto con tres fotógrafos, Eduardo Navone, Eduardo Farré y Román von
Ekstein, fueron los únicos autorizados a cubrir el conflicto desde el lugar de los hechos
como corresponsales. En términos generales, las fuentes que proveían información
desde las islas eran escasas y estaban rigurosamente controladas por el poder militar. Lo

7 Durante la dictadura, se quem ó parte d el archivo periodístico y fotográfico de la institución.

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poco que se publicaba en la prensa gráfica o lo también poco que se transmitia por
televisión o por radio a través de los medios públicos debia pasar indefectiblemente por
el filtro de las FF.AA.
Durante gran parte de la guerra, enterarse de lo que realmente estaba ocurriendo
resultaba muy dificil dado que la información era encubierta, falseada y tergiversada.
Sobre este punto, Bargach y Suárez afirman: “Télam participó de la comunicación
oficial militar sin expresar matiz alguno. Y fue un eslabón importante en la campana de
distorsión de la información durante la guerra de Malvinas” (2019, p. 211).
Concretamente, la agencia oficial no podia dar a conocer los resultados negativos de los
combates ni mucho menos difundir la existencia de bajas del lado argentino8. Sin
embargo, unas lineas más adelante, explican que, si bien en la redacción central todos
los datos y detalles que se proporcionaban eran cuidadosamente supervisados, los
periodistas que alli trabajaban sabian con precisión cuál era la situación en las islas
porque recibian los cables de las agencias internacionales (2019, p. 212)9.
En los últimos cuarenta anos, Télam continuó funcionando ininterrumpidamente,
aunque con varias idas y vueltas por motivos politicos y económicos. En la actualidad,
la agencia de noticias oficial es una sociedad del Estado, dependiente de la Secretaria de
Medios, tiene 28 oficinas de corresponsalia distribuidas en todo el territorio nacional;
provee información a más de 2500 abonados, entre los que se incluyen medios de
prensa tanto nacionales como internacionales; y renueva la actualidad de las noticias en
tiempo real a través de su portal digital www.telam.com.ar, que cuenta con una versión
en portugués.

3) A puntes sobre los m anuales de estilo p a ra la prensa gráfica en espanol. Los


instrum entos lingüísticos como actos glotopolíticos
En el Primer Congreso Internacional de la Lengua Espanola “La lengua y los
medios de comunicación”, realizado en la ciudad mexicana de Zacatecas en 1997,
Alberto Gómez Font, en representación del Departamento de Espanol Urgente de la

8 E l 8 de septiem bre de 2 0 2 2 se estrenó el docu m ental “L o s m ed ios de la guerra” coproducido por T élam
y R adio y T e le v isió n A rgentina (R T A ) que aborda la participación que tuvieron lo s m ed ios n acion ales y
extranjeros e n e l escenario b élico.
9 E n su investigación , Escudero C hauvel (1 9 9 6 ) sostien e que Clarín y La Nación no u tilizaron a T élam
com o fuente de inform ación durante el con flicto, sino que recurrieron a agen cias de noticias extranjeras.

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Agencia de noticias EFE101, y el escritor y periodista del grupo Prisa (propietario, entre
otros medios, del diario espanol E l País) Álex Grijelmo presentaron un esbozo del
“Proyecto Zacatecas”, que consistia en la realización de un manual de estilo común para
todo el mundo hispanohablante11 que buscara unificar la variación (sobre todo, aunque
no sólo, en el nivel léxico) que circulaba por los medios masivos de comunicación a
ambas orillas del Océano Atlântico. En esa presentación, Gómez Font mencionó una
larga lista de manuales y guías de todo el continente americano, en la que figuraban
algunos textos argentinos publicados en esos anos, como, por ejemplo, el del diario
Clarín (1997)12, pero también se refirió a unos “Apuntes” de la Agencia informativa
Télam sin fecha, que muy posiblemente se trate del texto que analizaremos unas líneas
mâs abajo.
Esa presentación se hallaba en fina sintonia con la preocupación de la Real
Academia Espanola (en adelante, RAE) y del por entonces recientemente creado
Instituto Cervantes (1991) en torno a hacer frente y, de algún modo, controlar la
diversidad lingüística. Esta idea se concretaría, como sabemos, a comienzos del siglo
XXI con la presentación y puesta en ejecución de un nueva política lingüística
denominada panhispánica13 que vino de la mano de una renovación de los instrumentos
lingüísticos canónicos de la lengua espanola (gramática, diccionario y ortografía14) y
que, luego, se extendió a la regulación discursiva con, por ejemplo, la publicación de El
libro de estilo de la lengua espanola, según la norma panhispánica (2018), que se
ocupa, ademâs de cuestiones lingüísticas (gramaticales, léxicas y ortográficas) de
aspectos vinculados con cómo leer, como escribir, cómo hablar) en los medios escritos,
orales, audiovisuales y digitales. La iniciativa mâs reciente de la política panhispánica
es el Proyecto Lengua Espanola e Inteligencia Artificial (LEIA) que tiene como foco
velar por el buen uso de la lengua espanola en las máquinas y aprovechar la inteligencia

10 L a A g en cia E FE e s la prim era a gen cia de n oticias internacional en espanol. Fue fundada en 1939,
cuando el franquism o ascien de al p oder co m o co n secu en cia de su victoria en la Guerra C iv il Espanola. Su
sede está ubicada en Madrid.
11 E l nom bre o ficia l de la in iciativa era “P royecto de U n ific a ció n G rafem ática de la Prensa en L engua
E spanola” .
12 Se trata d el Manual de estilo. B u en o s Aires: C larín-A guilar, 1997.
13 E l docum ento program ático d el nuevo plan de a cc ió n lin gü ística llevad o adelante por la red de
academ ias de la len gu a espan ola se presen tó en e l m arco d el III C ongreso Internacional de la L engu a
E spanola e n R osario, A rgentina en 2 0 0 4 . V. Lauria (2019).
14A lgu n os de lo s n u evos instrum entos lin g ü ístico s so n e l Diccionario panhispánico de dudas (2 0 0 5 ), la
Nueva gramática de la lengua espanola (2 0 0 9 ), la Ortografia de la lengua espanola (2 0 1 0 ) y el
Diccionario de la lengua espanola (2 3 a ed ición , 2 0 1 4 ). M uchas de estas obras tien en v ersio n es escolares
y básicas. M ás in form ación en h ttp s://w w w .rae.es/obras-academ icas.

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artificial para crear herramientas que fomenten el uso correcto del espanol en los seres
humanos15.
Volviendo al “Proyecto Zacatecas”, lo que mostraba la lista resenada por Gómez
Font era la gran proliferación de guías de estilo que circulaban por entonces, cuya
emergencia se podría situar hacia comienzos o mediados de los ochenta cuando se
reeditaron, por ejemplo, las versiones del Manual de estilo del periódico E l País de
Espana y se extiende la distribución del Manual del espanol urgente de la Agencia
EFE16. Estos manuales, según senala el mismo autor en un artículo actualizado (2019),
tuvieron amplio alcance en el mundo hispânico y sirvieron como modelo para la
mayoría de las pautas producidas por distintos medios de comunicación espanoles e
hispanoamericanos a partir de ese momento.
Esta propagación de materiales tuvo como consecuencia, siguiendo la
argumentación de Gómez Font (2019), la necesidad de plantear un proyecto común que
“limitara” la multiplicidad de instructivos y patrones estilísticos para la prensa en
espanol con la finalidad de homogeneizar la redacción de noticias (fundamentalmente
en lo que tiene que ver con ciertas voces como son los topónimos, los etnónimos, los
gentilicios y, muy especialmente, los extranjerismos (y sus opciones de realización
como son los préstamos crudos o adaptados y los calcos)) en los servicios informativos
de todo el mundo hispanohablante. El “Proyecto Zacatecas” se puso en marcha en 1997,
gracias al apoyo del Instituto Cervantes y fue interrumpido, unos anos después, desde la
RAE cuando se publicó, juntamente con la Asociación de Academias de la Lengua
Espanola (ASALE) y con el asesoramiento de Grijelmo y Gómez Font, el Diccionario
panhispánico de dudas (2005) puesto que un grupo numeroso de periódicos tanto de
Espana como de América ratificaron su adhesión a las normas y reglas allí consignadas.
Unos anos antes, en 1997, los dos diarios de mayor tirada de la Argentina,
Clarín y La Nación, habían publicado sus propios manuales de estilo17. Sobre la

15M ás in form ación en h ttps://w w w .rae.es/leia-len gu a-esp an ola-e-in teligen cia-artificial.


16S egún m en cion a G óm ez F on t (2 0 1 9 ), las prim eras ed icio n es internas d el m anual de estilo de la A g en cia
EFE son de 1 975/76, mientras que e n 1978 se p ub lica la “prim era ed ició n o ficia l” escrita por Fernando
Lázaro Carreter. L o s dos pioneros, que lo s otros m ed ios copiaban, fueron: el Libro de Estilo de El País,
de 1977 y e l Manual de Espanol Urgente de la A g en cia EFE, de 1980. L a prim era ed ició n d el libro de
estilo del diario ABC es de 1993 y se trata de una cop ia de lo s anteriores. E n 1985 se produjo una ed ició n
(la cuarta) d el m anual de la a gen cia de noticias para distribuir e n librerías y es p o sib le que h aya llegad o a
H ispanoam érica tam bién. L as ed icio n es anteriores eran exclu sivam en te de u so interno. E l m anual tien e en
la actualidad d iecin u ev e ed icio n es a cuestas, la últim a publicada en el ano 2015.
17 E l del diario L a N a ció n se titula: Manual de Estilo y Ética periodística. B u en o s Aires: L a N a ció n -
E spasa, 1997.

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aparición de estos libros en el mercado, Arnoux, Blanco y Di Stefano (1999) sostienen


que la circulación pública de dichos textos obedeció principalmente a una operación
ideológica de esos medios para construir una representación de sí mismos como
responsables del cuidado de la lengua y, en consecuencia, para autolegitimarse como
autoridad idiomática.
Por otra parte, Nigro y Grillo (1998), además de analizar los manuales de Clarín
y La Nación, examinan también el del diario Perfiln , publicado en 1998. En términos
generales, las autoras reflexionan sobre la noción de estilo con la que se opera en esos
textos y en otros publicados en inglés y francés. A propósito, afirman:

L o s libros de estilo v ig e n tes nacieron en las grandes agen cias internacionales de


in form ación (A P, U PI, A F P, R E U T E R ). Sirvieron de in spiración para lo s p eriódicos
y para lo s m ed ios audiovisuales. L as grandes agen cias con stitu yen e l p eriodism o
b ásico, en e l que prim a e l interés de la n oticia unido a la u rgencia en la transm isión,
la con cisión , la claridad y la exactitud. E stos m anuales tien en co m o objetivo
principal la u n ifica ció n d el lenguaje; sirven para la correcta co d ific a ció n de la
in form ación y para su exacta transm isión (1 9 9 8 , p. 2).

Asimismo, desde su mirada, los manuales de estilo tienen su origen en la


redacción de las agencias de noticias. Además de caracterizar las partes o secciones que
componen los textos, más o menos similares en todos los casos considerados desde el
punto de vista del género discursivo adoptado y del contenido consignado tanto en la
macroestructura como en la microestructura, y marcar alguna que otra diferencia menor,
concluyen que “es importante que el periodismo argentino haya asumido una actitud de
cuidado del idioma” (1998, p. 8). Cabe senalar que las autoras resenadas leen los
manuales atendiendo principalmente a la dimensión normativa que estos portan, sin
poner, en absoluto, en cuestión (de dónde provienen, de qué fuentes) esas normas,
reglas o prescripciones, o sin siquiera realizar un estudio crítico ideológico, es decir, a
qué intereses representan las opciones lingüísticas y discursivas que en ellos se
consignan como las legítimas1819.
En el nuevo siglo, con el incremento de los portales de noticias en Internet,
comenzaron a circular manuales de estilo para las versiones online de los periódicos, lo

18 Se trata d el m anual denom inado Perfil: Cómo leer el diario. B u en o s Aires: Editorial P erfil, 1998.
19 L a “crítica” que realizan las autoras, por ejem p lo, al libro de estilo de Clarín p on e el fo c o e n las
contradiccion es entre la norm a enunciada y la escritura asum ida en el propio texto que, a v ec es, no se
corresponde: e s decir, el m anual no cum ple las pautas que en él se proponen. Otro ejem plo es la
reprobación en el caso de Perfil a aceptar e l u so de ciertos extranjerism os y préstam os (sobre todo del
in glés) en la m edida en que ex iste n eq u ivalentes en esp an ol (baby sitter-ninera).

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que dio lugar a un nuevo objeto de estudio. Por ejemplo, Arnoux (2015) examina una
serie de manuales de estilo para versiones on line de ciertos medios de comunicación.
Específicamente, indaga en ellos las indicaciones lingüísticas y discursivas que se
proporcionan y las representaciones del lector que se configuran a partir de las
ideologías lingüísticas que sostienen. La autora afirma que las normas tienden a
simplificar la redacción ya que exigen brevedad, claridad y literalidad. Estas
recomendaciones se basan en una concepción homogênea y neutral del espanol llamado
“internacional”, que se articula con la representación de un lector global que se resiste al
empleo de las marcas locales (2015, p. 142). A su vez, se detiene en las normas de
netiqueta que buscan regular, a travês de los usos lingüísticos, la vida social.
Por otra parte, Nogueira (2016) explora el manual Escribir en internet de la
Fundéu20. La autora explora las tensiones que se producen entre la apelación a fuentes
normativas tradicionales (como las que provienen de los instrumentos lingüísticos de las
academias de la lengua) y la necesidad de adaptarse a las nuevas circunstancias, o sea,
al dispositivo digital. En esta dirección, sostiene que la regla de estilo insoslayable es la
de la brevedad y que, a pesar de las recomendaciones de la Fundéu a la RAE en función
de las nuevas exigencias y demandas, esta última institución idiomática continúa
dictando la norma legítima, que la autora caracteriza como “global” (2016, p. 280).
Estas desavenencias entre normas rígidas, puristas y casticistas, y la adaptación a las
nuevas plataformas digitales se producen en una coyuntura en la que los medios han
consolidado su versión on line, la cual les ha permitido proyectarse globalmente.
Desde la perspectiva glotopolítica que estudia las intervenciones en el espacio
público del lenguaje asociándolas con posiciones sociales y espacios institucionales e
indagando en los modos en que aquellas, sostenidas por ideologías lingüísticas,
participan en la instauración, reproducción, transformación o subversión de entidades
políticas, relaciones sociales y estructuras de poder tanto en el ámbito local o nacional
como regional o planetario, Arnoux (2016) retoma y amplía el concepto de instrumento

20 Fundéu es e l acrónim o de la F undación d el E spanol U rgente, que e s u n organism o creado en 2 0 0 5 en


M adrid a partir d el D epartam ento d el E spanol U rgente de la A g en cia de noticias EFE. H asta el ano 20 2 0 ,
el B an co B ilb ao V izc a y a A rgentaria (B B V A ) fu e su principal patrocinador. E n la actualidad, la fu n dación
llev a el nom bre de FundéuR A E , y a que se unificaron am bas in stitu ciones. E n todo m om ento, su objetivo
central, segú n se declara en su página w eb , e s velar por el b u en u so d el id iom a esp an ol en lo s m ed ios de
com unicación, en esp ecia l en lo s inform ativos. V . al respecto, Lara (2 0 1 5 ), L agares (2 0 1 8 ), R izzo (2 0 2 2 )
y Fanjul (2 0 2 2 ). L a página w eb e s h ttp s://w w w .fu n d eu .es/.

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linguístico acunado por Sylvain Auroux21 en el marco de la Historia de las ideas


lingüísticas. En efecto, para la investigadora argentina, el alcance de dicha categoria se
extiende a aquellos textos que, además de ostentar un saber metalingüístico (como las
gramáticas y los diccionarios monolingües), poseen una función reguladora en tanto
describen y prescriben las prácticas estableciendo las formas correctas y sancionando
las que no lo son. Pueden ser, por consiguiente, tanto de naturaleza especulativa
(teórica) como práctica. En este último caso, se refiere a aquellos cuya meta es adquirir
un dominio (la capacidad del hablante a adecuar sus palabras a un objetivo dado),
conocimiento sobre distintos tipos de lenguas (maternas, segundas o extranjeras) o la
escritura (la capacidad de leer y escribir). De ahí entonces que la autora incluya en dicha
categoría glosarios, silabarios, diccionarios bilingües y plurilingües, diccionarios de
sinónimos y antónimos, ejercicios de traducción, ortografías, retóricas, artes de escribir,
artes de hablar, compendios de correspondencia, guías de estilo, así como también
ensayos, notas y artículos normativos que aparecen en periódicos y revistas, antologías
literarias, textos y programas escolares. Hoy en día, la noción de instrumento lingüístico
también incorpora una serie de dispositivos tecnológicos (fundamentalmente digitales) y
mecanismos variados que, además de regular las prácticas lingüísticas, procuran
disciplinar y controlar la discursividad. Mencionamos, entre ellos, los simplificadores
de las prácticas escritas, orales y multimodales; los atenuadores de los rasgos
discriminatorios en el lenguaje, y los guionadores, facilitadores, orientadores,
correctores, anticipadores y traductores de la interacción comunicativa (ARNOUX y
LAURIA, 2023).
Inscriptos en este enfoque de indagación crítica, explorar instrumentos
lingüísticos es para nosotros concebirlos como actos o gestos glotopolíticos. Esto
significa que constituyen herramientas que son siempre el resultado de una elaboración

21Para A uroux (1 9 9 2 ), lo s pilares d el saber m etalin güístico son la gram ática y el d iccionario m onolingü e,
tecn ologías am bas que dan cuenta d el proceso de gramatización, e s decir, d ela rev o lu ció n tecn o -
lingü ística que con d uce a describir e instrumentar una lengua. A propósito, el autor senala: “L a gram ática
no es una sim ple d escrip ción d el lenguaje natural, e s preciso con cebirla tam bién com o u n instrumento
linguístico: d el m ism o m odo que un m artillo p rolonga e l g esto de la m ano, transform ándolo, una
gram ática p rolonga e l habla natural y da acceso a u n cuerpo de reglas y de form as que no figuran jun tos
en la com p eten cia de u n m ism o locutor. E sto es in cluso m ás verdadero acerca de lo s diccionarios:
cualquiera que sea m i com p eten cia lingü ística, no d om ino ciertam ente la gran cantidad de palabras que
figuran en lo s grandes diccion arios m on olin gü es que serán p roducidos a partir d el fin al d el R enacim iento
(...). E sto sig n ifica que la aparición de lo s instrum entos lin g ü ístico s no deja intactas las prácticas
lingü ísticas hum anas” (1992: 70. L a traducción e s nuestra). L o s trabajos de la in vestigadora brasilena Eni
Orlandi y de su equipo de la U n iversidad E stadual de Cam pinas (U N IC A M P ) tam bién han reflexionad o
m ucho sobre lo s instrum entos lin g ü ístico s enm arcados en p ro ceso s de gram atización de lenguas
im puestas por la co lon ización . V ., entre otros libros, Orlandi (2001).

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situada socio-históricamente y que, por lo tanto, son funcionales a (y representativos de)


determinados intereses de quienes (agentes individuales o colectivos e instituciones) los
confeccionan. En la medida en que, además, los interpretamos como afectados y que, a
la vez, afectan determinados requerimientos que provienen de las condiciones
económicas, sociales, políticas, educativas, culturales, demográficas, tecnológicas, su
análisis permite reconocer su incidencia en la construcción de subjetividades,
identidades colectivas, modelos de ciudadanía, relaciones sociales y entidades políticas
necesarias para cada instancia histórica. Es decir, establecer su sentido histórico y su
función social en cada coyuntura (DEL VALLE, LAURIA, ORONO Y ROJAS, 2021; y
LAURIA, 2022).
En suma, los manuales de estilo son actos glotopolíticos y, por ello, no son, en
absoluto, ajenos a las condiciones sociohistóricas en las cuales son producidos. Por esa
misma razón, están atravesados por las relaciones de poder y las políticas del lenguaje
que tienen lugar al momento de su elaboración y publicación. A esto último, nos
referiremos en el próximo apartado.

4) Las políticas del lenguaje d u ra n te la últim a d ictad u ra cívico-m ilitar


Al momento, no encontramos en la bibliografia acadêmica un abordaje
sistemático o integral de las políticas lingüísticas que se implementaron durante la
última dictadura cívico militar. En este sentido, mencionamos trabajos que se han
ocupado de algún aspecto vinculado con la lengua (sobre todo, legislación lingüística)
durante ese período, así como documentos del gobierno de facto.
En la publicación Voces y ecos. Una antologia de los debates sobre la lengua
nacional (Argentina, 1900-2000), editada por Glozman y Lauria (2012), las autoras
sostienen respecto de una serie de notas publicadas en la revista cultural Pájaro de
fuego que se producía desde la clandestinidad en 1978 que

abordan la cu estió n de la lengu a co m o parte de la con figu ración de u n im aginario de


argentinidad, que puede enm arcarse e n lo s lin eam ientos p olítico-cu lturales o ficia les
de la últim a dictadura. E n relación co n esto, la d en om in ación de ‘id iom a de lo s
argentin os’ y a no parece asociada a p o sicio n e s independentistas o em ancipatorias22,
sino que contribuye a reforzar una m irada tradicionalista y esen cialista de la cultura
nacion al (2 0 1 2 , p. 128).

22 L as autoras se refieren al sentido que portaba ese sintagm a para cierto sector de la intelectualidad a
fin es del sig lo X IX y hasta entrado lo s anos v ein te d el sig lo X X .

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Esta mirada sobre el idioma nacional, además de estar sostenida por el aparato
de censura de la dictadura, se plasmó, por ejemplo, en el decreto reglamentario de la
Ley 22285 de Radiodifusión de 1980 que, en lo que concierne al uso del idioma,
establece:

A R T IC U L O 15. — L as em isio n es de rad iod ifusión se difundirán e n id iom a


castellano. L as que se difundan en otras lengu as deberán ser traducidas sim ultánea o
con secu tivam ente co n ex c ep ció n de las sigu ientes expresiones;
a) L as letras de las co m p o sicio n e s m usicales;
b ) L o s program as d estinados a la en senan za de lengu as extranjeras;
c) L o s program as de R ad iod ifu sión A rgentina al E xterior (RA E);
d) L o s program as de colectiv id a d es extranjeras y aq uellos en lo s que se u sen lenguas
ab orígenes, p revia autorización d el C om ité F ederal de R adiodifusión.
L as p elícu las o series habladas en lengu as extranjeras que se difundan por televisión ,
serán dobladas al castellan o, preferentem ente por p rofesion ales argentinos.

Y en cuanto al interés público y a los fines, declara:

A R T IC U L O 4° — L o s serv icio s de rad iod ifusión se declaran de interés público.

A R T IC U L O 5° — L o s servicios de radiodifusión deb en propender al


enriquecim iento cultural y a la e lev a c ió n m oral de la p ob lación , segú n lo ex ig e el
con ten ido form ativo e inform ativo que se asign a a sus em isio n es, destinadas a
exaltar la dignidad de la persona hum ana, e l fortalecim iento d el respeto por las
in stitu ciones y las le y e s de la R ep úb lica y el afianzam iento de lo s valores inherentes
a la integridad de la fam ilia, la preservación de la tradición histórica d el país y los
p receptos de la m oral cristiana. L as em isio n es de so la z o esparcim iento recreativo no
d eb en com prom eter, ni en su form a ni en su fon d o, la efe ctiv a v ig e n c ia de lo s fin es
enunciados. E l contenido de las em isio n e s de radiodifusión dentro d el sentido ético
y de la con form ación cív ica c o n que se d ifunden lo s m ensajes, deb e evitar todo
cuanto degrade la co n d ició n hum ana, afecte la solidaridad social, m en oscab e los
sentim ien tos de argentinidad y patriotism o y resienta el valor estético. L os
licen ciatarios deberán ajustar su actu ación a u n C ódigo de Ética, que instrumentará
la autoridad de a p licación de conform idad co n las d isp o sicio n es de la presente L e y .

Al ano siguiente se sancionará el Decreto Nacional 286/81 que es un texto anexo


reglamentario de la Ley 22285 de Radiodifusión. En los primeros artículos de esta
norma se establecen las siguientes medidas, tanto sobre la forma como sobre el
contenido en los que se debían proporcionar las noticias, cada vez más estrictas e
inflexibles y en donde se acentúa la ideología nacionalista:

Art. 1: L as em isio n e s de radiodifusión deberán ajustarse a las sigu ien tes norm as: a)
D ar a lo s program as y a lo s m en sajes sentido de interés general; b ) R espetar lo s
sím b olos, lo s próceres y las in stitu ciones n acion ales o extranjeras, las personas, los
h ech o s y las ideas que sean objeto de com entario o de crítica; c) D estacar lo s lazos
de la unidad fam iliar y la trascendencia de ella co m o célu la b á sica de la sociedad
cristiana; d) U tilizar e l id iom a castellan o respetando sus ordenam ientos sem ántico y
gramatical;

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Art. 2: E n particular, la transm isión de inform acion es, n oticias, com entários y notas
periodísticas se ajustará a las sigu ien tes normas: a) L as in form acion es deberán
brindarse co n anuncio de sus fu entes de origen; b ) Preferentem ente se difundirán las
de carácter nacion al y local; lu eg o las extranjeras; c) su con ten ido, form a y
oportunidad no deberán causar p ánico esp ecialm en te las correspondientes al ám bito
p o licia l, a estados de em ergencia o a desastres producidos por accid en tes, even tos
naturales o circunstancias de orden b élica que com petan a la D efen sa C ivil; d) El
tratamiento in form ativo o periodístico de tem as relacionad os c o n v ic io s o co n
p erversiones de la conducta hum ana, será efectuado co n toda m esura y brindará
elem en to s aleccionad ores o de p revención; e) L a inform ación sobre actos
su b versivos deberá ser em itid a e n cuanto a im agen , relato, interpretación o
referencia, afirm ando el carácter d elictiv o de lo s h ech o s a efe cto s de negar la a cció n
o propósito de lo s d elincuentes.

La cláusula d) del artículo 1 referida a la utilización del idioma y a su


ordenamientose venía haciendo evidente desde un ano atrás, por ejemplo, con la
prohibición en 1980 por medio del decreto N° 2038 de los doce tomos de la
Enciclopédia Salvai Diccionario, publicada en 1978 en Barcelona. Chiavarino (2017)
examina esta medida jurídica y llega a la conclusión de que su prohibición se debe al
carácter pedagógico que asumía la obra y al supuesto “léxico marxista” que contenía:

E n efecto , la representación sobre e l lenguaje presente en la norm a censoria parte


de d os supuestos: e n prim er lugar, encontram os una co n cep ció n de tipo purista y
esen cialista, que n iega la diversidad d el universo lin gü ístico y so cia l en fu n ción
de u n lé x ic o cu y o s sig n ifica d o s leg ítim o s, aq u ellos “p ropios de la lengua” , se
m uestran estab les y ordenados. Por otra parte, ob servam os la presen cia de una
perspectiva que com prende la len gu a en térm inos de una batalla id eo ló g ica , en
tanto aq u ellos sig n ifica d o s ajenos a esa len gu a o ficia l so n co n ceb id o s com o
p elig ro so s para la cultura, la d em ocracia y la paz social propias d el “ ser
nacion al” am enazado, que es n ecesario proteger y preservar. Se trata de una
id eo lo g ia lin gü ística que supone la id en tifica ció n tradicional entre nación, lengua
y Estado y que parte d el id eo lo g em a que sustentó la p o lítica represiva durante el
período, seg ú n e l cual esa identidad se encontraba am enazada por u n en em igo
interno que representaba intereses extranjeros y ajenos a la nación, en un
enfrentam iento que e x ig ía una estricta v ig ila n c ia en todos lo s frentes y
particularm ente en lo s p ed a g ó g ico s y culturales (A ndrés A v ella n ed a (1 9 8 6 )23
citado en C hiavarino s/p).

Por otro lado, Zaccari (2010) examina la Ley 21795 del ano 1978, que establece
que para que un extranjero se nacionalice, debe residir dos anos en el país y debe
acreditar “saber leer, escribir y expresarse en forma inteligible en el idioma nacional”
(2010, p. 375). De esta manera, la lengua se presenta como uno de los atributos
esenciales de lo nacional. Al respecto, la autora asevera:

23 Se trata d el libro A vellaneda, A. Censura, autoritarismo y cultura. Argentina 1960-1983. B u en os


Aires: C EA L, 1986.

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L a sangre, entonces, p uede perm itir la ad q u isición autom ática de la nacionalidad,


pero siem pre y cuando se habite e l territorio d el otro sosten iend o una práctica de
d efen sa de lo nacional. Por ello , quienes no han m ostrado esta conducta, deberán dar
cuenta de que el ám bito extranjero no lo s ha convertido e n otro extrano a la nación,
y esto podrá realizarse por m ed io de dos prácticas: la perm anencia en el territorio
nacion al y e l u so oral y escrito d el idioma nacional (2 0 1 0 , p. 378).

La autora también anuda la cuestión del conocimiento de la lengua con la


conducta ética y moral. Sobre este punto en particular, manifiesta:

A partir de la con stru cción de lo s sím b o lo s de la nacionalidad ( ‘len g u a ’, ‘sím b olos


de la patria’, ‘lealtad a la ca u sa ’), lo s gobernantes se aseguraban la regulación de las
prácticas de lo s sujetos (m anejar e l id iom a nacion al de m anera oral y escrita, tener
buena conducta, tener m ed ios h onestos de vid a) y la elim in a ció n por m ed io del
castigo (pérdida o ca n cela ció n de la nacionalidad o ciudadanía) al d isidente, al
‘extranjero’ de la causa (2 0 1 0 , p. 378).

En definitiva, una vez que el ciudadano lograba la nacionalidad, debía realizar


un juramento de lealtad a la república frente a un funcionario. Esto tendía a asegurar el
control e infundir miedo.
Por otra parte, López García (2015), quien analiza la política lingüística de la
dictadura cívico-militar en relación con los materiales educativos, afirma que hubo una
ideologia nacionalista que “ancló en el hispanismo, el catolicismo”, cuyas marcas de lo
nacional estaban vinculadas con el léxico rural, del folclore y de las costumbres (2015,
p. 89). Específicamente, sobre el contexto que rodeó a la Guerra de Malvinas, la autora
sostiene:

H acia fin e s de la dictadura, en e l con texto de la guerra de M alvin as, se b uscó


ejercitar a través de p olíticas sobre el lenguaje las estrategias sim b ólicas de
o p o sició n ante Inglaterra. E l im pacto se sintió en las fuertes d isp o sicio n es que
ob ligab an e l doblaje al espanol, y e n la p roh ibición de lengu as extranjeras en
carteles de la v ía púb lica y de letras e n in g lés de can ciones en radio y televisión .
Para ello , se reflota e l M anual de Instrucciones de R ad iod ifu sión de 1946 (2 0 1 5 , p.
9 0).

A partir de las acciones normativas mencionadas, podemos afirmar que la


política del lenguaje del período se caracteriza por el predominio de una ideología
nacionalista e hispanista, consecuente esta última con los planteos lingüístico-
ideológicos de la RAE, expresados en sus instrumentos lingüísticos. Este apego tajante
a las normas puristas y casticistas se exacerba en el marco de la Guerra de Malvinas con
la proscripción de cartelería en la vía pública en lenguas extranjeras, por un lado, y con

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la imposición de no poder pasar canciones en idioma inglés en la radio ni en la


televisión, por otro.

5) El m anual de estilo de la agencia de noticias Télam


Como ya mencionamos, un ano después de la previsible y dramática derrota en
Malvinas, y dos meses antes de que se celebraran las elecciones presidenciales
democráticas, en agosto de 1983, la agencia de noticias argentina dio a conocer su
primer libro de estilo: el Manual de normas elementales de estilo aplicables a la
redacción periodística de la Agencia Télam (en adelante, Manual). En este apartado
analizamos las ideologías lingüísticas 24 que circulan en dicho instrumento lingüístico
tanto en determinados fragmentos que tematizan explícitamente cuestiones lingüísticas
y de registro como en otros pasajes que abordan aspectos relacionados con la práctica y
la ética periodísticas. Nuestro objetivo es realizar una lectura, un gesto interpretativo de
la posición glotopolítica de la agencia en ese complejo escenario político pos-Malvinas,
en el que el control estatal de las prácticas informativas había asumido, como
detallamos antes, un carácter estricto, definido por una estrategia fuertemente represiva.
Ese control de la prensa que obligó a los medios estatales a publicar una versión
triunfalista de la guerra se hizo evidente una vez terminado el conflicto bélico. Esto
derivó en una drástica pérdida de confianza y de credibilidad de la sociedad sobre los
medios, así como desencadenó el predecible ya en ese momento fin de la dictadura.

Descripción de la macroestructura y la microestructura


El Manual publicado en agosto de 1983 fue compilado y redactado en la
Secretaría de redacción de la propia institución. Según se declara, toma como fuentes de
autoridad los manuales de otras agencias de noticias como son los casos de las
estadounidenses AP y UPI, y de ANSA, la agencia italiana fundada en 1945. En ese
momento, Télam era una sociedad anónima por lo que se senala que si bien se “(...) le

24 E s abundante la b ib liografia sobre id eo lo g ía s lingü ísticas puesto que proviene de distintas disciplinas
de la lingü ística, segú n se resena e n Lauria (2 0 2 0 ). R esp ecto d el an álisis crítico de las id eo lo g ía s
lingü ísticas en la prensa, V . el libro co lectiv o com pilado por M arim ón L lorca y Santamaría P érez (2 0 1 9 )
así com o lo s artículos p u b licados en la revista cien tífica Circula
(https://circula.recherche.usherbrooke.ca/index-esp/) . L a prensa es, jun to co n la escu ela y e l propio
dom inio de la lin gü ística (el saber “experto”), uno de lo s m ed ios p rivilegiad os de irrupción, propagación
y d iscu sión de representaciones e id eo lo g ía s sobre el lenguaje y las len gu as debido a su am plia llegad a y a
la in fluencia que ejerce sobre la socied ad a la que se dirige. L a prensa e n tanto canal de transm isión
instaura, co m o se sabe, uno de lo s esp a cio s centrales de con stitu ción de la esfera p ú b lica donde se genera,
justam ente, la o p in ió n com ún, la m anera de pensar y de v er la realidad com partida por las m ayorías.

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permite tratar los distintos temas, sean nacionales o internacionales, con la más absoluta
libertad, aunque sí, con prudência” (p. 7), es necesario e imprescindible que “tenga un
estilo propio y homogêneo, estableciendo ciertos parâmetros a los cuales habrá que
ajustarse para instalarse en el orden nacional e internacional con un estilo periodístico
definido” (p. 5).
El instrumento objeto de estudio está dividido en dos grandes partes: la primera,
destinada a aspectos textuales de la elaboración del género discursivo noticia, así como
a cuestiones generales vinculadas con la labor periodística, con foco en su dimensión
ética, tiene seis secciones: 1) Introducción, 2) Las actividades de una agencia noticiosa
(donde se explica la dinámica operativa: existencia de corresponsalías y tipos de piezas
informativas (flashes, primicias, despachos) con las que se trabaja); 3) La información
(donde se explica que la transmisión debe ser instantánea, precisa, objetiva (se debe
responder a las cinco preguntas centrales qué, quién, cuándo, cómo y dónde y tambiên
por qué o para qué), exacta (no se debe usar el condicional, se deben identificar las
fuentes y si se trata de un rumor, explicitarlo) y exhaustiva (no se deben dejar lagunas ni
vacíos de sentido); 4) El manejo de la noticia (se explica, a partir de modelos y
antimodelos, la progresión de la información mediante lo que se conoce como estructura
de pirámide invertida: copete fuerte, breve y conciso, y desarrollo desplegado); 5)
Extensión (se explica la cantidad máxima de palabras que deben tener las distintas
piezas de información con el fin de racionalizar la trasmisión por teletipo: los flashes no
debían tener más de cinco palabras; el boletín no más de 50; la crónica no más de 300;
la nota no más de 500 y la información urgente no más de 30 palabras); 6 ) Carillas (se
establecen las pautas de espacio máximo por página). La segunda parte, centrada en
cuestiones ortográficas, gramaticales y léxicas, está conformada por cinco apartados: 7)
Algunos aspectos gramaticales (la sección más extensa de todo el texto); 8 ) Normas
para noticias de policía; 9) Normas para noticias de deportes; 10) Etimologia de
palabras vinculadas al periodismo; y 11) Correspondencia entre los grados militares y
los de las fuerzas de seguridad.

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Análisis
P rim er eje: regulación de la conducta y la ética periodísticas

Respecto de este tema, el Manual es contundente en cómo tiene que actuar la


prensa en el afán de querer recuperar la credibilidad periodística duramente afectada
después del episodio Malvinas. Desde la “Introducción” se deja claro su objetivo de
operar sobre este terreno para revertir la situación de desconfianza que había tenido el
accionar de los medios, especialmente de los públicos. En ese sentido, se afirma que su
finalidad es “(...) lograr uniformidad en el modo de redactar las noticias por parte de
todos los periodistas que integran la redacción de la Agencia, evitando la anarquia que
se produce ante las distintas posibilidades que se presentan para escribir una misma
información” (p. 5). De allí que se caracterice al Manual, usando una metáfora policial
o militar, como una “norma de procedimiento” (p. 5) para evitar justamente la anarquia,
el caos. No obstante, unas líneas más adelante se matiza tal categorización al senalar
que las normas no son rígidas, intransigentes, sino que son una suerte de “guía” (p. 6 ),
de “orientación general” (p. 6 ) ya que no se pretende coartar la libertad de los
redactores, encasillando sus textos con reglas fijas: “(...) estas normas no evitan tener
que pensar y saber discernir sobre la valoración de cada noticia” (p. 5).
En lo que concierne a la ética periodística en concreto, el Manual asegura que,
para lograr que la opinión pública brinde a Télam un alto grado de confiabilidad y para
que se pueda consolidar la credibilidad informativa, se deben aplicar unos “principios
morales” (p. 8 ), cuyo impacto se vea expresado en dos frentes íntimamente
relacionados: por una parte, la tarea “(...) debe hacerse en forma realista, objetiva,
precisa, rápida y fundamentalmente veraz” (p. 8 ) y, por la otra, se debe tener lealtad con
el lector, ser positivos y no negativos, escribir como se habla (volveremos sobre este
punto en el próximo apartado), ser imparcial, proteger el interés público y respetar la
libertad de prensa aunque -se aclara- que esto no significa, de ninguna manera, publicar
lo impropio, lo malévolo o lo ilegal.
Las acciones, entonces, que se proponen en el Manual, son:
• Afianzar la imagen interna y externa del país, en todas sus manifestaciones.
• Contribuir a la toma de una conciencia patria, al estímulo del sentimiento de
orgullo nacional, a la cohesión, a la preservación de los valores morales basados

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en el respeto a la dignidad humana, al alejamiento de la juventud de la


infiltración de ideologias disolventes.
• Consolidar una imagen realista y positiva de la Argentina.

Para alcanzar tales objetivos, se debe tener en cuenta, además, una serie de
obligaciones como son la obtención de la noticia por medios honorables, es decir, sin la
apelación a ninguna clase de subterfugios; guardar secreto de las confidencias que se
obtengan; no comprometerse con regalos ni favores ni recibir dádivas; no violar la
propiedad privada de las personas involucradas; identificar a quienes figuren en las
noticias; respetar la dignidad del tema y limitar el componente sensacionalista.

Segundo eje: la regulación lingüística y discursiva


En esta dimensión, se siguen básicamente los lineamientos normativos
promovidos por la RAE, en particular en su diccionario (en adelante, DRAE). Otras
fuentes de consulta, según se indica, son el diccionario de dudas idiomáticas del
lingüista y lexicógrafo espanol (y miembro de la Academia espanola) Manuel Seco 25 y
el libro E l espanol de la Argentina de Berta Elena Vidal de Battini publicado por
primera vez en la década del cincuenta por el Consejo Nacional de Educación y
destinado a maestros de escuela primaria de todo el pais, por lo que tiene un riguroso
componente prescriptivo (llegando a veces incluso a la proscripción) sobre los usos
lingüisticos considerados incorrectos que deben ser desaprobados, entre ellos, vale
aclarar el uso del voseo tanto pronominal como verbal.
Con el propósito explícito de buscar en la redacción de las noticias un “estilo
simple, llano y correcto del idioma castellano”, se acentúa fuertemente la dimensión
prescriptiva, aun cuando en el apartado anterior habiamos citado que se recomendaba
“escribir como se habla” . Las pautas que se exponen son las siguientes:

1) En el nivel léxico, se instituye que se deben evitar:


• Extranjerismos (principalmente anglicismos) como por ejemplo “balF, “cross”,
“fie ld ’ para el ámbito deportivo.

25 Se trata d el Diccionario de dudas y dificultades de la lengua espanola, cu ya prim era ed ic ió n e s de


1961.

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• Neologismos, que no figuran en el DRAE, como por ejemplo “patear ”,


“ triangular” para el ámbito deportivo.
• Barbarismos como por ejemplo “reciérí’ y “ latente”, cuyos usos argentinos no
se corresponden con lo consignado en la obra académica.

También se fija el uso de ciertos gentilicios (israelí/israelita; indio/hindu) y la


precisión de significado, sobre todo en el caso de los verbos (se declara que se deben
emplear verbos de acción o de movimiento en lugar de estáticos como, por ejemplo,
aumentar vs. ser ; y delimitar el alcance distintivo de sentido entre oír/ escuchar y
penetrar/ entrar/ ingresar).

2) En el nivel morfosintáctico, se adopta un formato de cuadro de doble entrada al


estilo del conocido Appendix Probi latino: “No escribir” / “Debe redactarse así”
o, como alternativa, “Usos correctos” / “usos incorrectos” . Los fenómenos que
se listan son:
• Dequeísmo.
• Gerundio.
• Oraciones impersonales con el verbo “haber” .
• Preposiciones (“reunión a realizar”).
• Pronombres posesivos (“delante mío”) y relativos (cuyo, quien).3

3) En el nivel ortográfico, los fenómenos regulados son:


• Siglas y abreviaturas.
• Toponimia.
• Escritura de números.
• Apellidos precedidos por partículas.
• Títulos honoríficos y nobiliarios: “Los nombres de las personas deben
ser mencionados de la manera más completa, con las funciones o títulos
que posean. Ejemplos: El comandante en jefe de la Armada, almirante
Rubén Franco...” . Pero se aclara que para funcionarios civiles se deben
eliminar voces como “doctor” o “senor” .
• Uso de mayúsculas y minúsculas.
• Signos de puntuación (uso de la coma y de los paréntesis).

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T ercer eje: m em oria y efecto de evidencia en los ejemplos de uso


Al analizar los ejemplos de la Gramática de la lengua castellana destinada al
uso de los americanos de Andrés Bello publicada en 1847, Arnoux (2008, p. 296)
sostiene que estos no solo cumplen la función de ilustrar la regla gramatical, sino que
también buscan ser ejemplares en el “campo social”, ya que constituyen “reglas y
modelos de conducta moral, cívica o religiosa” . Y, más adelante, anade que las frases
elegidas, que pueden ser refranes, sentencias, máximas o enunciados patrióticos,
“conforman un entramado cuyo recorte, textura y condensación en torno a ciertos ejes
temáticos remiten a la ideología de una clase en un momento histórico” (2008, p. 296).
A continuación, analizamos en el Manual algunos de los ejemplos que acompanan las
reglas enunciadas, cuyo sentido convoca connotaciones ideológicas de una “memoria
militar”, esto es, ciertos elementos de la Doctrina de Seguridad Nacional y medidas
políticas y econômicas ejecutadas por el gobierno militar. Las cuatro categorias que
delimitamos son:

A) A utoridades y cargos institucionales, sin especificar que son “de facto” y


otorgándole un efecto de legitimidad:
• “Teniente General Leopoldo Fortunato Galtieri, ex Presidente de la N ación...”

(p. 17).
• “El presidente Viola d e c l a r ó .” (p. 18).
• “El Teniente General Videla es el primer Presidente latinoamericano que visita
China” (p. 36).
• “El presidente de la Nación, general de división Reynaldo B ig n o n e .” (p. 56).

B) A ctualización de la m em oria de la D octrina de Seguridad Nacional,


específicamente del enemigo interno:
• “No pasarán (los terroristas), pues nuestra decisión es muy f i r m e . ”, dijo el
capitán (p. 59).
• “Los enemigos del orden, agregó el orador, se estrellarán contra la voluntad del
pueblo” (p. 61).

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C) M edidas políticas positivas anunciadas p or la J u n ta M ilitar:


• “Viviendas para 5.000 familias serán levantas en los próximos 5 anos por el
Ministério de Acción Social” (p. 24).
• “Medio millón de trabajadores desfilaron ante la casa de Gobierno para expresar
su adhesión al Presidente de la República” (p. 24).
• “Buenos Aires, 11 de jun 82 (TÉLAM).- El papa Juan Pablo II arribó al
aeropuerto internacional de Ezeiza a las 11.59 y besó el suelo argentino al pie de
la escalerilla del avión que lo transportó desde Roma” .

D) M edidas econômicas positivas anunciadas p or la Ju n ta M ilitar:


• “Al iniciarse la conferencia de prensa, el Ministro de Agricultura y Ganadería
agradeció la presencia de los periodistas y posteriormente brindó un informe
sobre su reciente gira por Europa. Al respecto dijo que había logrado importantes
convenios comerciales con Francia y Espana” (p. 29).
• “Buenos Aires, 12 de abril de 1983 (TÉLAM). La Argentina logrará en 1983 una
cosecha récord de cereales estimada en 45 millones de toneladas, lo que la
proyectará al tercer lugar entre las naciones exportadoras de productos agrarios y
le brindará un ingreso de, por lo menos, 2300 millones de dólares” (p. 29).
• “El Presidente Jorge Rafael Videla inició hoy su viaje a China, destinado a
estrechar las relaciones con ese país y a firmar convenios comerciales bilaterales”

(p. 36).

Discusiôn y consideraciones finales


El interrogante que cierra este trabajo es ^cómo se vinculan las ideologias
lingüísticas con las ideologias políticas del período histórico estudiado? Esta pregunta
se puede reformular también en clave glotopolítica inquiriendo cuál es el sentido
histórico y la función social del Manual de estilo de la agencia de noticias oficial Télam
después de la derrota en la Guerra de Malvinas y unos pocos meses antes de las
elecciones democráticas de 1983. Tres son las ideas que queremos subrayar.
En primer lugar, en lo que respecta a la regulación lingüística y discursiva
observamos una continuidad con las políticas lingüísticas nacionalistas (sustentadas en
el purismo y en el casticismo hispânicos) que se implementaron durante la dictadura, y

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que se exacerbaron durante el conflicto bélico. Estas intervenciones se asientan en la


identificación tradicional entre lengua, nación y Estado.
En segundo lugar, y ya teniendo en cuenta la coyuntura de posguerra, es decir,
en un contexto de pérdida de credibilidad de la prensa y de inminente caída de la
dictadura, se procuró revertir tanto la representación negativa de los medios gráficos
como del accionar del gobierno de facto. De hecho, en septiembre de 1983, unas pocas
semanas después de la publicación del Manual analizado, se promulgó la Ley 22924 de
Pacificación Nacional, conocida como “Ley de Autoamnistía”, que es una suerte de
búsqueda de “lavada de cara del accionar militar”, y que tiene su correlato, como
mostramos, en el análisis de los ejemplos de uso.
Finalmente, las intervenciones sobre el espacio público del lenguaje están
asociadas a posiciones políticas y sociales específicas. En el caso particular que
estudiamos, se anuda con el accionar tanto retrospectivo como prospectivo del régimen
militar, es decir, había una preocupación en torno a qué iba a suceder con quienes
habían participado y habían tenido poder de decisión y de ejecución en él.
Afortunadamente, en 1985 se realizó el Juicio a las Juntas, un proceso judicial histórico
e inédito en América Latina, en el que se condenó a los principales integrantes de las
juntas militares.

Fuente p rim aria


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G LO SSÁ RIOS DAS FO RÇAS DE SEGURANÇA NO BRASIL: OS


IN STRUM EN TO S LIN G U ÍSTIC O S NA R ELAÇÃ O C O M O D IR E IT O E O
ESTADO

GLO SSA IRES DES FO R C ES DE SÉCU RITÉ AU BRÉSIL : LES OU TILS


LIN G U ISTIQ U ES EN R EL A T IO N AVEC LE D R O IT ET L'É T A T

Wanderson Chaves de Queiroz 1


Polícia Civil do Tocantins

José Edicarlos de Aquino 12


Universidade Federal do Tocantins (UFT)

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar glossários produzidos pelas forças de
segurança no Brasil, mostrando que eles selecionam e definem palavras e expressões como
próprias de organizações criminosas, gozando de valor jurídico na medida em que são utilizados
como ferramentas de investigação e de produção de provas pelas polícias, Ministério Público,
advogados e juízes. Assim, num primeiro momento, detalhamos a produção e o emprego dos
glossários das forças de segurança, apontando os sujeitos envolvidos. Em seguida, demonstramos
que esses instrumentos giram em torno dos mesmos campos semânticos, com a definição dos
vocábulos significando as mesmas pessoas, ações e objetos como fora da lei, geralmente os jovens
pobres, o comércio e consumo de drogas e o porte de armas de fogo. Por fim, logo depois de
discutir a questão do sentido e da relação entre língua e direito, argumentamos que é preciso
recusar qualquer objetividade ou neutralidade na fabricação e aplicação dos instrumentos
linguísticos, pois, atravessando o debate linguístico, há a atuação de sujeitos afetados pela história
e pela ideologia, no nosso caso, os agentes de segurança que constroem o artefato em prol do
aparelho repressivo do Estado.
Palavras-chave: Glossários; Instrumentos Linguísticos; Forças de Segurança; Direito; Estado.

Résumé : Cet article vise à analyser les glossaires produits par les forces de sécurité au Brésil,
montrant qu'ils sélectionnent et définissent des mots et des expressions comme typiques des
organisations criminelles, jouissant d'une valeur juridique dans la mesure oú ils sont utilisés
comme outils d'enquête et de production de preuves par la police, les procureurs, les avocats et
les juges. Ainsi, dans un premier temps, nous détaillons la production et l'utilisation des glossaires
par et pour les forces de sécurité. Ensuite, nous démontrons que ces outils tournent autour des
mêmes champs sémantiques, avec la définition des mots signifiant les mêmes personnes, actions
et objets en tant que hors-la-loi, généralement les jeunes pauvres, le commerce et la
consommation de drogue et le port d'armes à feu. Enfin, après avoir évoqué la question du sens
et du rapport entre langue et droit, nous soutenons qu'il faut refuser toute objectivité ou neutralité

1 M estre em lin gu ística (PPG Letras/U FT). C orregedor-geral da Segurança P úb lica do Tocantins. E-m ail:
w and erson .q u eiroz@ gm ail.com .
2 M estre e doutor em lin gu ística (IE L /U N IC A M P , S O R B O N N E N O U V E L L E - P A R IS 3). P rofessor no
curso de Letras e no Program a de Pós-G raduação em Letras da U niversidad e Federal do Tocantins (UFT ).
Em ail: ed icarlos_aqu ino@ yah oo.com .br.

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dans la fabrication et l'application des outils linguistiques, car, traversant le débat linguistique, il
y a l'action d’acteurs touchés par Fhistoire et l'idéologie, dans notre cas, les agents de sécurité qui
construisent l'artefact en faveur de l'appareil répressif de l'État.
Mots-clés : Glossaires ; Outils linguistiques ; Forces de sécurité ; Droit ; État.

Subm etido em 04 de julho de 2023.


A provado em 08 de agosto de 2023.

Introdução
Os glossários têm figurado entre os componentes da atividade investigativa das
forças de segurança. Como instrumentos linguísticos produzidos por agentes públicos
para atender o trabalho das polícias e do poder judiciário, sua produção e emprego
colocam questões sobre o direito e o funcionamento do Estado. Como ferramentas de
investigação, eles instruem enquetes policiais que visam a busca pela “verdade dos fatos” .
Eles contribuem, portanto, para a principal peça de consolidação de provas e/ou indícios
de um crime, o Inquérito Policial, normatizado através do Código de Processo Penal.
Dessa forma, a criação de glossários pelas forças de segurança coloca os agentes frente a
dilemas linguísticos e jurídicos, na medida em que a definição dos significados registrada
nos verbetes converte o artefato em documento capaz de influenciar no direito à liberdade.
Para o funcionamento do sistema de Justiça criminal, no qual atuam polícias,
Ministério Público, advogados e juízes, são importantes os conceitos de crime, de prova
e de verdade. O Código Penal vigente não apresenta um conceito legal de crime, deixando
sua definição para os juristas, de forma que, entre os doutrinadores, a posição mais aceita
concebe o crime como fato típico (descrito em lei), antijurídico (conduta não socialmente
aceita) e culpável (característica psicológica de conhecimento ou possibilidade de
conhecimento de que a conduta é ilegal ou socialmente inaceitável) (MIRABETE, 2003).
Já a compreensão do que se entende por verdade tem estreita relação com o
conceito de prova em um processo ou procedimento de investigação. A prova é o
instrumento que o juiz utiliza para ter convicção da ocorrência ou não de um fato alegado
em um processo (GRINOVER, 2001). Ela é “a existência da verdade”, “os meios pelos
quais se procura estabelecê-la”, “os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio
juiz, visando estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos” (TOURINHO
FILHO, 2003, p. 215). O Código de Processo Penal apresenta uma série de normas a
respeito da produção de provas, considerando suas várias modalidades, a exemplo das

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perícias em geral, interrogatórios, depoimentos, busca e apreensão, etc. No entanto, esse


rol não é taxativo, abrindo uma zona de possibilidades na qual entram os glossários.
Nos processos no Brasil, existe ainda a distinção entre dois tipos de verdade: a
verdade formal, como norteadora dos processos cíveis, e a verdade real, que direciona o
processo penal (MANSOLDO, 2010). É nesse último que são empregados os glossários.
Como a busca da verdade real, objeto de intensas disputas no universo jurídico (ROSA,
2018; ACHUTTI E RODRIGUES, 2005), se concentra em direitos indisponíveis,
essenciais para sociedade, coloca-se como necessidade o profundo cuidado na verificação
dos eventos imputados como criminosos. Daí a preocupação de alguns em afirmar que a
verdade “será sempre incompleta, necessariamente contingente e dependente de
referências” (ÁVILA, 2013, p. 01).
Não são poucas, portanto, as armadilhas do emprego de glossários como
ferramentas para investigações criminais. Para jogar luz sobre a questão, realizamos aqui
a análise de glossários concebidos pelas forças de segurança no Brasil, mostrando
inicialmente como eles são produzidos e empregados pelos diferentes sujeitos envolvidos
no aparelho jurídico-policial do Estado. Na sequência, analisamos a seleção e definição
dos verbetes dos glossários da Secretaria de Estado de Administração Prisional do
Governo do Estado de Minas Gerais, do Sistema Penitenciário do Estado do Mato Grosso
do Sul e do Ministério Público do Ceará, de forma a compreender quais pessoas, ações e
objetos essas ferramentas significam como criminosos. Por fim, para demonstrar que os
instrumentos linguísticos não são artefatos objetivos nem neutros, refletimos sobre sua
relação com o direito e os aparelhos ideológicos do Estado, o que nos leva a ponderar que
os sentidos da língua e o trabalho da interpretação são historicamente construídos,
portanto políticos e, dessa forma, abertos a toda sorte de equívocos.1

1. A Produção e o em prego dos glossários das forças de segurança


Os glossários empregados pelas forças de segurança geralmente aparecem
associados a documentos conhecidos como Relatório Policial de Investigação,
confeccionados em especial por agentes e escrivães da Polícia Civil, peritos criminais e
delegados de polícia, esses últimos os responsáveis por conduzir as investigações
criminais, apurar as circunstâncias indicativas de materialidade e autoria da infração penal
e fazer, quando necessário, a comunicação com o Ministério Público e o Poder Judiciário.
É, portanto, pelas mãos de todos os representantes do aparelho jurídico-policial do Estado
que os glossários podem ser produzidos e empregados, funcionando, assim, não apenas

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Instrumentos Linguísticos
83

como instrumentos de consulta, mas como técnica de investigação na produção de prova


de valor jurídico.
Além de parte de um documento de valor probatório dentro de um procedimento
de investigação, os glossários podem ser eles eles mesmos um documentário probatório,
utilizados para demonstrar a existência de atividades e organizações criminosas a partir
da seleção e definição de determinadas palavras ou expressões recortadas da comunicação
de determinados falantes, isto é, os supostos criminosos. É por essa razão que o léxico
desses glossários gira em torno dos cargos, funções e divisões de tarefas de um grupo
criminoso e também da caracterização das próprias atividades criminosas, buscando
flagrar, em geral, o tráfico de drogas, o uso de armas e a prática de roubos e homicídios,
o já que demonstra qual o crime visado.
Um dos caminhos da produção de glossários das forças de segurança é a
interceptação e transcrição de áudios de conversas telefônicas, como no exemplo abaixo
(Figura 1), no qual o investigador traz uma explicação sobre o conteúdo do diálogo
degravado e apresenta, sob forma de comentário, entre parênteses, o sentido da palavra
“bang” : “ (...) relata ter passado o dia todo no mato em um conjunto com os ‘irmãos de
facção’, inclusive com o Geral do Estado Masculino com o intuito de ver um ‘bang’
(termo utilizado para quando vão matar alguém) de um simpatizante da facção rival CV” .

Figura 1. Extrato de relatório de investigação policial

F onte: P rocesso 0 0 2 4 2 3 5 -0 4 .2 0 1 9 .8 2 7 .2 7 2 9 3, even to 22, arquivo: R EL M IS S Ã O PO LIC2, p. 16

3
A lgu m as das p eças apresentadas aqui se encontram em sig ilo de ju stiça e sua utilização para esta p esq uisa
fo i autorizada através de d ecisão ju d icial. E m todo caso, o s n om es d os in vestigad os foram suprim idos para
preservação de sua im agem . M a n tev e-se sem pre a redação original.

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Instrumentos Linguísticos
84

Um outro caminho da produção de glossários policiais consiste na interceptação


e análise de mensagens escritas trocadas entre os supostos criminosos via SMS,
WhatsApp, e-mails, bilhetes e cartas.
Na Figura 2, o policial analisa o conteúdo de uma mensagem de WhatsApp e
destaca e define, também sob a forma de comentário ou glosa, entre vírgulas, o sentido
da palavra “cebola” : “Baby foi recrutada por Elson Ostentação, a quem chama de
padrinho, e fico responsável pela ‘cebola’, uma espécie de caixa que tem por finalidade
custear despesas logísticas da facção” .
Na Figura 3, o investigador analisa o conteúdo de uma carta e esclarece, mais uma
vez sob a forma de comentário ou glosa, entre vírgulas, o sentido da expressão “Geral do
Estado do PCC” : “A Geral do Estado do PCC, cúpula do comando da facção do Estado
do Tocantins, é composto por três integrantes, que agem em consonância, no intuito de
estabelecer a comunicação e o monitoramento das ações perpetradas pela Facção” .

Figura 2. Extrato de relatório policial de investigação


Baby e o p e r t i l b a s t a n t e e x p lo r a d o p e lo PCC: Jovem de c l a s s e m ed ia, acim a de q u a lq u e r s u s p e i t a .
A c o o p ta ç ã o de p e s s o a s com o p e r f i l d e Baby s e dã como e s t r a t é g i a de d i s s im u l a r a t i v i d a d e s
c r im in o s a s como o t r a n s p o r t e e d i s t r i b u i ç ã o de d ro g a s .

Baby f o i r e c r u t a d a p o r E lso n O s te n ta ç ã o , a quem chama d e p a d r in h o , e f i c o u re s p o n s á v e l p e la


" c e b o la " , uma e s p é c i e d e c a i x a que tem p o r f i n a l i d a d e c u s t e a r d e s p e s a s l o g i s t i c a s d a f a c ç ã o . 0
d i n h e i r o é le v a n ta d o com m e n s a lid a d e s p a g a s p e l o s membros da fa c ç ã o .

No p r i n t a b a ix o , r e t i r a d o do c e l u l a r d e E ls o n O s te n ta ç ã o , Baby d i z que g o s to u d e acom panhar a


c e b o la e s e c o lo c a a d is p o s iç ã o d a o rg a n iz a ç ã o c r im in o s a p a r a q u a lq u e r a t i v i d a d e . E ssa c o n v e rs a
d e m o n s tra a r e c o r r ê n c i a de s u a p a r t i c i p a ç ã o n a a t i v i d a d e c r i m i n o s a da fa c ç ã o :

Baby d iz: *vou aonde me jogarem"

Em uma t r a n s a ç ã o de t r a n s p o r t e e d i s t r i b u i ç ã o de e n t o r p e c e n t e s , P a p a lé g u a s ( t r a f i c a n t e do PCC)
c o n firm a que arrum ou o c a r r o e n c a r re g a d o de t r a n s p o r t a r a d ro g a que d i s t r i b u i r á o BOB
( d i s t r i b u i ç ã o de p o rç õ e s d e e n to r p e c e n t e s f e i t a s a o s f a c c io n a d o s p a r a que obtenham r e c u r s o s

F on te: P rocesso n° 0 0 1 0 3 3 1 -4 8 .2 0 1 8 .8 .2 7 .2 7 2 9 , evento 02, arquivo: R EL M IS S A O PO L IC 4, p. 157

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Figura 3. Extrato de relatório de investigação policial

C t í á s t r s do « i i i . - u r : : - ãprõõãdldõ cca K iaen C a z tr .t* ;A :

A C«it2 4o Catado 4o KC i e t p t l i 4o w a n d o 4o fo c ç lo no lit « 4 o 4o Tocaatina* * c o a ç o iu por


tr* a in to g ran to a* qj o «a eonaonlacia* no i n tu i to da o atab o lo co r a c o au aieaçlo o o
a ^ n ito ra a o r.to i i » t ; : « i p orpotradaa pola FaceAo.
faz a poeto a n tro aa oneetacfi-oa do Cc*ando Hacionai o oa íac c ic ea d c a do Catado*
a c o a i Vila* aup«rv;aionar.do oa p io g r u u a do c « p ta ;io do rocuxaoa. Acoapanha oa
a eo n to ciao n to a ro lo v a a to a d a n tro daa cadoiaa do (a ta d a do Tocaatina* quo podoa a fo ra r a f acçAo
o au p o rv ia ic e a a diatrU m içA o do or.torpocor.to. O utra f s a ç io o x o rc iia pci C Z I ^ 3 * a
a u p o n riaio doa cad aatro a ro aliza d o a no Ej^ado o ropaaao d oataa i n f o n u ; í o a p â r a c u p u l a

F on te: P rocesso n° 0 0 1 0 3 3 1 -4 8 .2 0 1 8 .8 .2 7 .2 7 2 9 , evento 02, arquivo: R EL M IS S A O PO L IC 4, p. 15

Ressoando sua origem na Idade Média, com as glosas saindo das margens dos
textos para ocupar produções independentes das obras originais, os glossários das forças
de segurança também vão sendo compostos a partir do trabalho, frequentemente coletivo,
e às vezes não assinado, de inserção e reunião de glosas e comentários nos relatórios de
investigação (QUEIROZ, AQUINO, 2022).
Uma vez produzido, são vários os sujeitos que podem manusear um glossário
dentro de um procedimento de investigação: os próprios policiais, os membros do
Ministério Público, as autoridades judiciárias em diferentes graus de jurisdição, a defesa
dos investigados, os indiciados e os réus. Como a interpretação é sempre um gesto, cada
um deles poderá manipular a ferramenta de uma determinada maneira, de forma a chegar
a conclusões diferentes.
No exemplo da Figura 4, o delegado de polícia mobiliza o glossário através de um
relatório de investigação policial para definir as palavras “quadrada” e “caroços” como,
respectivamente, “pistola” e “munições”, identificando, assim, a posse de apetrechos
ilegais. No alto do documento, o delegado comenta o conteúdo da conversa que vem

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transcrita logo abaixo e a definição de “pistola” aparece entre parentes: “Durante a


conversa, Vila orienta GO e PT sobre vários assuntos, procurar novos membros para
batismos, andar armado, mas evitar exposições. Vila afirma que irá providenciará um
revólver e uma pistola (quadrada)” . A definição de “munições” aparece como uma
inserção, também entre parênteses, no próprio diálogo degravado: “DEU CERTO DE IR
LÁ NÃO PEGAR OS CAROÇOS (MUNIÇÕES) LÁ NÃO?”

Figura 4. Extrato de relatório de investigação policial

r t t k u n v n d o e s t a d o d o r o r a v t iv s
D U iG A U A I %Pf U A II/A D A VA M P M S li O A N A U A T IT O t
Q letetonaparauber M o»tubcrdnado» haeam u peOocatjoparapegaratnunçAet que
at» aOquera para o grupo Ourarao a ootMtu. Vila onenca GO a PT H trt ránoa astutos
procurar novos mambro» para babamos and» armado ma» ev<ar a g a ljio Via afrma qua r»
ptomdaooara un rauChar a uma patota iquaoadal Via im a u qua at mjnçcm (I auto
•aparadas ió pracaam a buact-laa

iDDrrxricADOU DATA HORÁRIO MIDI*/ALVO


'2314 *3 1 8 :5 0 :1 1

D ------------------------ • « L _ _ 1------------------

o £ nôs GO, w N H m jirt. FHfTt i r f T ç o Ai

l í n i u d i v t l ) • • • n í q u c l i h o rã a linhA IA
caiu m u p a d rin h o , d t s l i g o u o t t l A f o n t do
Q
CnttndAu p o r r a , ccoo A q-« t a po r ã i ?
T* auava nau p a d r in h o , taiao a l na l u t a a l
a
DEU CERTO DE IR LA nAo PEGAR OS CAROÇOS
(MUNIÇÕES) LA MÃO'1
a
Dau c a c to DO PT IR LA BUSCAR OS CAROÇOS
5□= S i l v t m ü p a d r in h o , # t u o PT ha v o s »
£ nôs PT.
F s lê « in h á v l d â , o t r a n s p o r t a a q u i q u t t u
t l s b â t ^ u i d i s p o n i v t l a q u i, o u s t t s ? TA
O liQ ê d o , o t s á n o i IA, tA 1iç a d o , d l s s t q u t
n u s h o 't r.Ao dá va * t i t o p r á d á i t s s t r o l é
r,á City IA nAo, tA I tq â d o v t í n ?
P ic o u C á b rtr o axr.o.

F on te: p rocesso n° 0 0 1 0 3 3 1 -4 8 .2 0 1 8 .8 .2 7 .2 7 2 9 , evento n° 0 3 , arquivo: R EL F IN A L IPL1

O Ministério Público também pode se valer do glossário na medida em que essa


tecnologia o auxilia a identificar indícios de crime em uma mensagem ou conversa
interceptada e reportada pela polícia. Na Figura 5, na peça produzida pelo Ministério
Público para demonstrar ao juiz a vinculação de um determinado sujeito a uma
organização criminosa e, assim, iniciar o processo criminal, o promotor traz do glossário

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produzido por inquérito policial a definição da expressão “Geral dos Estados”, que é
associado ao nome de um dos investigados em mensagens de WhatsApp: “Também
chamada de TORRES. É um conselho formado por 5 (cinco) pessoas, sendo 1 (uma) delas
superior as outras 4 (quatro). Estas pessoas exercem posições de liderança entre os
membros da facção e estabelecem contatos com as demais ‘GERAIS’ existentes em
outros presídios e na rua (...).”

Figura 5. Extrato de denúncia oferecida pelo Ministério Público

M IN IS T É R IO PU BLIC O
ESTADO DO TOCANTINS

PROCURADORIA GERAL DE JUSTIÇA


MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO TOCANTINS
GRUPO DE ATUAÇÃO ESPECIAL DE COMBATE AO CRIME ORGANIZAOO

prevenção e combate ao tráfico de drogas (DENARC). chegou-se à formação


estrutural hierarquizada e divisão das atribuições entre os denunciados

integrantes da organização criminosa instalada no estado do Tocantins/TO, a

partir das cidades de Palm as/TO, Gurupi/TO, Paraíso/TO e A raguaína/TO, com

o principal propósito de efetuar o armazenamento e distribuição de drogas, com


vinculo associativo estável e permanente entre os seus integrantes.

Os denunciados Milionário, {
v. 357, e ' "w . "Vila", compõem o

chamado “Geral do Estado",figurando como lideres da organização criminosa


do C P P no Estado do T o c a n W ^ ^

F o n te: p rocesso 0 0 1 5 2 5 4 -2 0 .2 0 1 8 .8 2 7 .2 7 2 9 , o evento 01, arquivo D E N Ú N C IA 1, p. 14

Tendo como função legal conduzir o processo criminal e aplicar a lei, o


magistrado pode se valer de glossários inseridos no conjunto probatório para sustentar a
convicção de que um fato criminoso ocorreu, que o réu é o responsável por sua prática e
também para determinar todas as circunstâncias que podem agravar ou beneficiar na
imposição da pena.

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No extrato abaixo (Figura 6 ), retirado de uma decisão judicial, o juiz reproduz as


palavras e expressões elencadas pelo Ministério Público para definir os diferentes cargos
dentro da facção, guiando-se por elas para decidir que os investigados exerciam
atividades criminosas: Geral do Estado do Tocantins, Geral da Rua, Salveira,
Cadastradeira, Para-Raio em âmbito nacional, Livro Branco em âmbito nacional, Ex-
Salveira do Estado.

Figura 6. Extrato de decisão judicial

A representação refere-se ao registro de portaria N* 537/019 com fito de


instaurar inquérito policiai para apurar o crime de Organização
Criminosa, praticado por integrantes femeunas da facção,
autodenominada 'Pnmeiro Comando da Capital*

No decorrer das investigações constatou-se que. conforme a Autoridade


Pofaaal. há condutas cnmmosas praticadas por grupo especifico de
mulheres que atuam junto â Organização Cnminosa 'Pnmeiro comando
d a C a p t a ^ _ Meras peta pessoa = J

O segundo relatório de mvesbgações juntado aos autos, relata diálogos


que corroboram com indícios já constatos pela Autoridade Pobaal.
inclusive há transcnçáo de todo procedimento de inctusáo de uma nova
integrante na Organização Cnmnosa Não menos mportante. foi
interceptado conversa entre duas interlocutoras arquitetando a instalação
de um ponto de venda de drogas
Também sáo demonstrados pelo relatório os participantes da conferência
que realizou o ingresso de " ■
as devidas funções dos integrantes

F o n te: evento n° 2 7 , d os autos do p rocesso 0 0 2 4 2 3 5 -0 4 .2 0 1 9 .8 .2 7 .2 7 2 9 , arquivo: D EC 1

A defesa do réu é finalmente um outro sujeito a se beneficiar dos glossários em


material de investigação policial, inclusive para questionar elementos apresentados como
provas da autoria de um crime.
No extrato abaixo (Figura 7), ao apresentar defesa prévia de um acusado, a
defensora pública se debruça sobre o sentido da palavra “JET”, que, segundo o inquérito,
designaria uma função na organização criminosa: “Além desta função, denominada
‘JET’, XXXX supostamente desempenhava também o tráfico de drogas mediante ordens
passadas à denunciada XXXX” .

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Instrumentos Linguísticos
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Figura 7. Extrato de peça judicial de defesa prévia

Segundo restou apurado, após intcrccptaçõcs telefônicas autorizadas judicialmcntc


c operacionalizadas pela Delegacia Especializada na prevenção c combate ao tráfico de drogas
(DENARC), se lena chegado à fonnaçáo estrutural hicrarqui/ada c divisão das atribuições entre
os denunciados integrantes da organização criminosa instalada no estado do TocantinsTO, a partir
das cidades dc PalmavTO. Gunipi/TO. ParaisoTO c Araguaina TO. com o principal propósito de
efetuar o armazenamento c distribuição dc drogas, com vinculo associativo estável c permanente
entre os seus integrantes.
Nessa sonda, dc acordo com o Ministério Público, cabcria ao denunciado 1 ^ ^ ^
. vulgo “Cabeção”, exercer a fiscalização dos demais integrantes da facçáo que
cumprem pena no mesmo estabelecimento prisional cm que sc encontrava, ou seja. na unidade
prisional dc Colinas-TO. velando pelo cumprimento dos deveres c exigindo disciplina.
Suas informações seriam deliberadas cm conferências firmadas via aplicativo
celular por superiores ( a jf).

Av FiUddfa. n. 2855. Jantai AmciK*. AnguaiiiaTO. CFP 77813-120. Telefone |6J) 3411*7400

F o n te: evento n° 137, do p rocesso n° 0 0 1 5 2 5 4 -2 0 .2 0 1 8 .8 .2 7 .2 7 2 9 , no arquivo D E F E S A P 1, P. 02

2. Os glossários das forças de segurança no Brasil: criminosos e crimes visados


Visando sempre os mesmos sujeitos, quais sejam, jovens, pobres e pretos, os
glossários das forças de segurança repetem muitos verbetes e giram em torno dos
mesmos campos semânticos. Para demonstrar isso, como procedimento de análise,
vamos recortar um pequeno conjunto de palavras a partir dos campos semânticos que
esses glossários circunscrevem, indicando justamente a que sujeitos, ações e objetos os
termos fazem referência, chamando a atenção para a forma como a definição do verbete
é formulada.
O primeiro instrumento analisado é o “Glossário de palavras e expressões
utilizadas pelo Primeiro Comando da Capital”, produzido pela Secretaria de Estado de
Administração Prisional do Governo do Estado de Minas Gerais. Organizado em ordem
alfabética, ele conta com 143 (cento e quarenta e três) entradas, indicando o que
importaria saber sobre as funções burocráticas na organização da facção, os objetos e
ações do crime, além de formas apontadas como gírias ou códigos específicos dos
grupos criminosos. A leitura do documento evidencia que as formas linguísticas visadas
são aquelas associadas aos criminosos pobres, envolvidos com organizações criminosas
e que teriam cometido delitos como o tráfico de drogas e o porte de armas, além de
crimes contra o patrimônio e a vida.

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Instrumentos Linguísticos
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Figuras 8 e 9. Capa e Página do Glossário do PCC Secretaria de Administração Prisional MG

PA LA VR A S E EXPRESSÕES

GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAIS


U T IL IZ A D A S PELA O R G A N IZ A Ç Ã O
SECRETARIA DE ESTADO DE ADMINISTRAÇÃO PRISIONAL
ASSESSORIA DE NEORMAÇÃO E INTEUGéNCIA C R IM IN O S A

A
GLOSSÁRI O >- • APOIO DAS CASAS OU APOIO EXTER! IO n s p c n s M cm fornecer suporte a nem bccc da OfiCRIM
que estão nas ruas ou enclausurados.

DE P A L A V R A S E E X P R E S S Õ E S
■ • APOIO DO RESUMO função dentro do ORCJUM que opina na: deasoe: de ineeresee da faoçao
U T I L I Z A D A S PELO
inchando assuncos ausentes a *pum:6es cacimbes" de seus membros, iko é, ratifica as deosbes de instâncias

PRIMEIRO C O M A N D O DA C A P I T A L m ie m .

.• ATO DE ESPERTEZA ato de indivíduo que usa àt cai & ou abusa da tcofianca depositada. Zc pastee
cocn a rodagem, coneudo, a diferença C que o are-jd-tade confia e anua rendo lesado. Punição: exdusac sem
retorno. cobrança a ser analisada. Discriminado em Cerriüu át COndura?

• . ATO DE TAIARJCO: aro de indivíduo que tenta in d id r eeatalmence mulher de ouso e aao t
cccrrtponcidc uso de elogios, gestos e tenrasva de concatos aao apropriados. Ver Carrüta dr Condução.

■ • , ATO DE MALA? IDRISMO: ato de indivíduo que usa de pretsao patologia oa força f la a para subtrair
algo de terceiros, bem como agredí Los. Punível com eaduaão e cobrança a ser rewlie-v*» pela Svtronic.
Discri minado em Gcraifc dr C ontçO s.

• --ALTO: gíria utdisada para identificar indivíduo çue esta aob fcctt e fieito de eneoepeceate. Tulano esta

ASILADO: peoaoa que está desesperada para usar algum entorpecente.

n
_
AVIAO indivíduo que fas a intermediação da tom pa e veada do entorpecente, levaado ao usuário

F o n te: D o c. de in teligência. A utoria por m atrícula 1 1 7 4 5 6 2 -7 , 2 0 1 9

Cerca de metade das palavras e expressões inseridas no glossário procura definir


as funções e divisões burocráticas na organização: Apoio das casas ou Apoio Externo;
Apoio do Resumo; Avião; Caixa de Comando ou Caixa da Família; Chefia-Geral ou
Cidade Proibida; Companheiros; Cunhada; Condutor; Comandeiros; Disciplinar;
Disciplina da Regional; Disciplina do Pé Quebrado; Departamentos; Esporte; Final; Final
do Sudeste; Final do Estado MG; Final dos 100%, Final da Feminina; Fora do Ar; Geral
do Estado; Geral do Sistema; Geral da Financeira (Setor Financeiro); Geral do Progresso;
Geral da FM; Geral 100% ou Pureza; Geral da Cebola; Geral da RF; Geral dos Caixas;
Geral do Esporte; Geral da Feminina; Geral dos Cadastros; Geral dos Gravatas; Geral do
Paiol; Geral da Capital da Rua; Geral da Rua; Geral dos Salveiros; Geral do Progresso
dos Cinco Estados; Geral do Pen Drive; Geral das Trancas; Geral do Progresso Externo;
Geral das Comarcas; Geral das Colônias; Geral do Interior; Geral do Prédio; Geral do
Posto Cultural; Geral dos Estados e Países; Guarda-Roupa; Guarda-Roupa da Restrita;
Irmão; Jet; Livro Branco; Livro Negro; Livro do Prazo; Padrinhos; Pendrive; Progresso;
Planilheiro do Progresso; Quadro Disciplinar; Quadro; Resumo; Representantes de Lojas;

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Instrumentos Linguísticos
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Reponsa; Regional 34; Restrita; Sintonia Final Geral; Sintonia dos Cigarros; Sintonia do
Trabalho; Salveiro; Setor do Embrulho; Vapor/Vaporzinho.
A tentativa de esgotar o vocabulário do universo dos criminosos pode ser notada
no emprego de elementos gramaticais e sinais de pontuação como conectivos, barras e
parênteses, para mostrar a variação de alguns verbetes, como “Apoio das casas ou Apoio
Externo”, “vapor/vaporzinho” e “Geral da Financeira (Geral Financeiro)”, bem como na
declinação de muitas palavras, para dar conta de descrever toda estrutura da organização
criminosa, como “Apoio”, “Disciplina”, “Final”; “Geral” ; “Guarda-Roupa”; “Livro” e
“ Sintonia” . Para o termo “Geral do”, por exemplo, são apresentadas nada menos que 30
derivações, cada uma descrevendo lideranças e responsabilidades específicas na dinâmica
das atividades criminosas.
Vejamos alguns exemplos da forma como as palavras e expressões que se referem
à estrutura hierárquica das organizações criminosas são definidas no glossário:

D IS C IP L IN A D A R E G IO N A L : co leg ia d o resp onsável por m anter a ordem em


determ inada região geográfica, m ensuradas através do có d ig o telefô n ico . Ex.:
“R E G IO N A L 3 4 ” .
G E R A L D O E S T A D O 4: (sig la do Estado ao qual pertence o quadro de fun ção) da
“E X T E R N A ” : subd ivisão da fun ção “ S IN T O N IA G ERA L D O S E S T A D O S E
P A ÍS E S ” . M em bros, integrantes da O RCRIM , resp onsáveis p ela articulação e gestão,
vislum brando a execu çã o das atividades externas ao cárcere por orientação da
O R C R IM em âm bito Estadual, co m o a m anutenção dos asp ectos d isciplinares dos
m em bros nas ruas; a participação n os cadastros dos integrantes em liberdade, egressos
ou não; n os “ju lg a m en to s” , tam bém cham ados de “tribunal do crim e”, analisando
p o ssív e is faltas contem pladas p elo Estatuto e Código Disciplinar, co m eventual poder
de v o to para a p en a denom inada “d ecreto” (ex ecu çã o ) nas ruas, seja de integrantes,
companheiros ou in divídu os que tenham ferido prin cípios pactuados p ela ORCRIM ;
p oder de v o to nas autorizações para a prática de quaisquer atos ilícito s nas ruas; a
nom eação de m em bros para exercerem fu n çõ e s táticas e operacionais, o u vid os os
m em bros do co n selh o que com p õe o quadro; além das p o siçõ e s c/o u su gestões sobre
o s rum os da O R C RIM no Estado. C om o intuito de expandir a franquia da OR C RIM
para todo território nacional, no form ato branding, ob serva-se a não n ecessid ad e do
m em bro d este quadro pertencer ao ente federado, tam pouco estar cum prindo
reprim enda no Estado on de tem essa função. A liás, p o d e -se verificar que o integrante
co m fu n çõ e s de “ G E R A L D O E S T A D O ” , estab elecid o em solo m ineiro, tem
adm inistrado as q u estões inerentes ao seu quadro no D istrito Federal ou Piauí, por
exem p lo. E is um a tendência. V erifica -se que cada quadro de função é liderado por um
integrante cham ado “P O N T E IR A D O Q U A D R O ” ou sim p lesm en te “P O N T E IR A ”,
cujo representante é u m m em bro ativo na O RCRIM , geralm ente, de m aior in fluência
ou antiguidade com provada, inserido no co leg ia d o da função corresponde (exem plo:
“P O N T E IR A D O G E R A L D O E S T A D O ”, “P O N T E IR A D O P R O G R E S SO ”, etc.).
O quadro “G E R A L D O E S T A D O ” tam bém é cham ado de “TO R R E ” . G eralm ente,
trata-se de u m con selh o form ado por 05 (cin co ) p esso a s, sendo um a d elas superior às
dem ais. H istoricam ente, preteritam ente a nom enclatura de “TO R R E”, n esse sentido,
fo i u tilizada quando do surgim ento da O R C RIM no in ício d os anos de 1990. Tais
m em bros exercem p o siçã o de liderança entre o s dem ais da fa cçã o e estab elecem
contatos co m as dem ais “ G E R A IS” existentes em outros en tes d os E stad os da
Federação.
G E R A L D O S G R A V A T A S : Sintonia resp onsável p elo relacionam ento e
interm ediação entre o s integrantes e o s ad vogados con stituíd os para a d efesa - em

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ju ízo; interm edia o contato entre integrantes da facção crim inosa (“irm ãos”), b em
co m o de sim patizantes (“com panheiros”) co m ad vogados contratados p elo grupo
crim inoso. O trabalho d essa frente, em síntese, é arregimentar assistên cia jurídica. O
indivíduo con h ecid o co m o “G R A V A T A ” p rom ove atividades cotidianas, co m o a
participação em “con ferên cias telem áticas” , entre outros. P erceb e-se que se subdivide
em d ois grupos: aqueles que são efetivam ente v in cu la d o s tão som ente ao P C C e;
aq ueles que exercem atividades terceirizadas em ocorrências pontuais.
G E R A L D O P A IO L : setor resp onsável em arrecadar d oações, no intuito de
fortalecer a estrutura b élica do “ C om ando”, b em com o subsidiar o s integrantes que
não p ossu em recursos. A s d o a çõ es são diversas, dentre elas: celulares, m ed icações,
substâncias entorpecentes, a lém de material bélico (“ferram enta” , “brinquedo” ,
“b ang”) e seu s insum os, co m o apresentado. A inda, v er ific a -se que tal arrecadação se
fa z por interm édio do com ércio de drogas, para fin s de aquisição, salvaguarda,
com ercialização e/o u em préstim o de armas, m u n ições e e x p lo siv o s aos m em bros, para
a prática de crim es diversos.
G U A R D A -R O U P A : cod in om e usado para se referir a p esso a resp onsável e /o u local
destinado ao acon d icionam ento de drogas em grande quantidade.
L IV R O B R A N C O : resp onsável p elo registro e salvaguarda de in form ações
referentes a “b atism os”, ou seja, a inclusão de n o v o s m em bros na ORCRIM .
P o ssiv elm en te, é localizad a hierarquicam ente na estrutura do PCC, abaixo da
“GERAL D O S C A D A ST R O S” .
Q U A D R O D I S C IP L IN A R 14: resp on sável por m anter a ordem de acordo co m o
Estatuto e Código de D iscip lin a da ORCIM . A tua dentro das U nidad es Prisionais
(“D IS C IP L IN A D O SIST E M A ) e nas ruas (“D IS C IP L IN A D A R U A ). C uriosam ente,
dentro das U n id ad es P en ais, o s integrantes lig a d o s à “D ISC IP L IN A ” seriam
auxiliares do “JET” no P avilh ão/A la/R aio.
R E S T R IT A : F accion ad os que, por exem p lo, não falam co m qualquer outro m em bro,
e sim c o m setores esp e cífic o s. E m 2 0 1 7 fo i identificada co m o u m a célu la de
in teligên cia do crim e resp onsável por m issõ e s crim inosas esp ecíficas. V er
“ G U A R D A R O U P A D A R E S T R IT A ” .
S A L V E IR O : incu m b id os da d ivu lgação e propagação d os “ S A L V E S ” exarados p ela
“ S IN T O N IA F IN A L ” . A lém d isso, são corresp onsáveis em m anter o planilhamento
d os contatos d os integrantes da ORCRIM . O indivídu o co m status de “ SA L V E IR O ” ,
e que esteja preso, é responsável p elas relações públicas intra cárcere. P ossivelm en te,
é considerada hierarquicam ente na estrutura do PC C co m o sendo um a p o siçã o de
staff.

De forma sistemática, o verbete, grafado inteiramente em letras maiúsculas e em


negrito, é separado da sua definição pelo sinal de dois pontos. Em alguns casos, faz-se
uso de abreviaturas, notadamente da palavra ORCRIM, abreviação de Organização
Criminosa. As definições por vezes são acompanhadas de exemplos, como no verbete
“Disciplina Regional” e “Geral do Estado” . É frequente a remissão entre verbetes, como
na palavra “Restrita”, na qual se recomenda ver “Guarda Roupa da Restrita” . Muitas
vezes, também numa operação de remissão, um verbete é definido por outro. Assim,
“Geral do Estado” é definido por “ Sintonia Geral dos Estados e Países” e “Ponteira do
Quadrado”; “Geral das Gravatas”, por “ Sintonia”; “Geral do Paiol”, por “Comando”; e
“Livro Branco”, por “Batismos” . Nesse casos, na definição, os verbetes aparecem em
itálico ou entre aspas e mesmo entre parênteses, de forma a pontuar que devem ser
tomados segundo os significados estabelecidos pelo próprio glossário, portanto, como
expressões típicas do crime. Em algumas ocasiões, marcas tipográficas como o itálico

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estão presentes para indicar fatos como a origem estrangeira de uma palavra, como staff
na definição de “ Salveiro” e branding na de “Geral do Estado” . As definições também
focalizam duplos sentidos, sinônimos e mesmo a datação dos termos, como se pode ver
nos verbetes “Geral do Estado”, “Guarda-Roupa” e “Restrita” . Além disso, a nota de
rodapé aparece como um recurso para abarcar toda a significação possível das formas
linguísticas. A definição do verbete “Geral do Estado” é completada pela seguinte nota
de rodapé:

Inicialm ente, era cham ada de “T O R R E S” . É u m con selh o, sendo 1 (um a) d elas
superior. E stas p esso a s ex ercem p o siçã o de liderança entre o s m em bros da facção e
esta b elecem contacto co m as dem ais “ G E R A IS” ex isten tes em outros presídios e na
rua. D entre suas fu n çõ e s está a transm issão de inform ação e criação de norm ativas e
diretrizes de p roced im en tos, b em co m o o controle e a d iscip lin a d os m em bros que se
encontram p resos e o s que se encontram em liberdade.

Também são incluídas marcas metalinguísticas ou, para ser mais preciso, rubricas
nas definições dos verbetes, como na palavra “Guarda-Roupa”, caracterizada como um
“codinome” . Podemos encontrar uma outra ilustração de classificação das formas
linguísticas no glossário da Secretaria de Administração Prisional de Minas Gerais na
definição do verbete “Alto” : “gíria utilizada para identificar indivíduo que está sob forte
efeito de entorpecente. ‘Fulano está alto’” . Esse é um dos vários registros de palavras do
cotidiano tomadas equivocadamente como expressões codificadas da fala de criminosos,
algumas com sentidos semelhantes aos encontrados nos dicionários e outras
simplesmente mais comuns entre jovens das periferias. Vejamos alguns outros:

C A R A -C R A C H Á : trata se de id entificação de integração de in divídu os na O R C RIM


por m eio do alcance de alguns itens, com o: núm ero de matricula, data de “b atism o” ,
referências, “quebradas” de atuação pretérita e atual, se p o ssu i dívid as no crim e, entre
outros.
D E P A R T A M E N T O S : segm en tos, c o m fu n çõ es b em definidas e interligadas.
IN A D IM P L Ê N C IA : frente ao Código de Disciplina, geralm ente ocorre quando
integrantes contraem dividas, com um ente, p elo tráfico e/o u con su m o de drogas.
C ontudo, as inadim plências tam bém p od em ocorrer em d esfa v o r de indivíduos
com uns.
M A T R ÍC U L A : é o núm ero p elo qual o integrante da facção crim in osa é identificado
dentro d ela - É um a esp é cie de R egistro de identidade do Crime. H á relatos de que no
Estado de São P aulo, tal num eração eq u ivale à m atrícula recebida do sistem a
Prisional, o que verifica-se N Ã O ser um a regra.
P U N IÇ Ã O : a organização crim in osa p o ssu i m étodo próprio de correção disciplinar
e senso de justiça, realizando seu s próprios ju lgam en tos em “tribunais do crim e” , em
conform idade co m o exp resso no Regimento Disciplinar.
Q U E B R A D A : nom enclatura u tilizada para se referir a um determ inado lo c a l físic o ,
podend o ser u m a cidade, u m bairro ou determ inada região. D ep en dend o do con texto
da conversa, a palavra expressa sign ificad o de localidade. G eralm ente, d iv id e-se em
“Q U E B R A D A D E O R IG E M ” e “Q U E B R A D A A T U A L ” (localidad e atual, on de está
alocado c resp on sável por atividades da OR C R IM ), in form ações im p rescin d íveis para

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a co n secu ção do procedim ento de integração (“B A T IS M O ” e


“ C A D A S T R A M E N T O ” , dependendo do caso) na O rganização crim inosa.
V U L G O : apelido ou alcunha, com um .

A classificação dessas palavras como “gírias”, “nomenclatura”, “conceitos e


terminologias utilizadas por indivíduos vinculados à organização criminosa”, conforme
objeto exposto na apresentação do glossário, “externa um julgamento pessoal do
lexicógrafo [no nosso caso, o agente de segurança pública], não raro motivado por
estereótipos que associam a gíria à irreverência dos jovens ou à marginalidade” (cf.
PETRI, 2000, p. 64).
Algumas palavras e expressões inseridas no glossário da Secretaria de
Administração Prisional de Minas Gerais procuram identificar os objetos do crime,
flagrando aquilo que seria ilícito portar ou comercializar. Como vemos abaixo, na maioria
das vezes, as definições dos verbetes tacham como mercadorias de contravenção as armas
e, sobretudo, as drogas, quase sempre a maconha e o crack:

B A G A N A : resto de cigarro de m aconha co m alto ín dice de TH C -


T etrahidrocanabinol.
B A L A : peq uena porção de m aconha.
B E R R O : arma de fo g o , v e r tam bém “ferram enta” .
C A B E L O D E P U N K : m aconha de b aixa qualidade.
F E R R A M E N T A : arma de fogo.
F O L H A O U F O L H IN H A : qualidade design ada ao crack m ais forte, de m aior poder
de entorpecim ento.
M O T O R Z IN H O : v eícu lo .
M E S C L A D O : m istura de m aconha co m pasta de cocaína.
2 8 00: maconha.
77: qualidade de crack m ais fraco.

Um outro conjunto de palavras ou expressões busca definir os rituais e atividades


das organizações criminosas: Ato de Esperteza; Ato de Talarico; Ato de Malandrismo;
Batismo; Batismo de Fortalecimento; Bronca; Cebola/Caixinha ou Envelope; Cartilha de
Condução; Caminhada; Condução, Conduzido ao Prazo; Em Sintonia; Fechamento;
Geral da Rifa e do Jogo do Bicho; Jogo; Mentira; Remanejamento; Retiradas; Salves;
Tabuleiro; e Tirar a Camisa ou Rasgar a Peito. Como podemos ver pelos verbetes abaixo,
o registro desse vocabulário apanha ações relacionadas ao ingresso, desempenho,
avaliação, promoção, punição, saída e expulsão dos membros das facções:

B A T IS M O : in gresso na O RCRIM . V ia de regra, contem pla: lo ca l de b atism o, data,


“padrinhos”, “quebrada de origem e atual”, últim as fu n çõ es na O R C RIM , se p ossu i
d ívidas ou pendências, etc. O candidato N Ã O se tornará m em bro caso haja algum a
p en d ên cia reprovável p elo grupo, cabendo a tal resolve-la.
C O N D U Ç Ã O : p rotocolo disciplinar da O R C RIM , a fim de verificar o s reais m o tiv o s
e fatos de determ inado ato sabido ou externado. Trata-se de u m a esp é cie de

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ju lgam en to de determ inada situação ou con flito entre o s integrantes do grupo ou até
m esm o de “com p anheiros” . P rocedim ento inerente ao setor disciplinar, on de serão
ex p o sto s o s m otivos, aleg a çõ es e d efesa da p esso a inquirida. E m term os gerais,
tam bém é a form a adotada para lidar co m situ ações esp ecífica s e rotineiras no
universo da ORCRIM .
E X C L U S Ã O D A O R C R IM : v ia de regra, con tem pla o s in divídu os que serão
ex p u lso s da organização crim inosa p or descum prim ento de regras e norm as previstas
em Estatuto próprio. Tam bém , poderá ocorrer por op ção/m an ifestação/in iciativa do
próprio integrante, por m o tiv o s pré-determ inados. N o caso de o in divídu o “entregar a
peita” , isto é, pedir a sua exclu são da O RCRIM , o indivíduo N Ã O poderá em hipótese
algum a d edicar-se a prática de atividade crim inosa extra.
R E M A N E JA M E N T O : m udança de responsabilidade/setor con form e co n v en iên cia ou
n ecessid ad e da O RCRIM . P erceb e-se que alguns in divídu os se sob ressaem m elh or
nas tarefas quando rem anejados.
R E T IR A D A S : o s entorpecentes que estão arm azenados no “G U A R D A -R O U P A ”
são retirados do lo c a l para com p or o estoq ue das “L O JA S D A F M ” - varejo. N outro
prism a, p od er-se-á tratar-se de saques bancários.
T A B U L E IR O : reunião de m em bros-líderes co m responsabilidades. Esta, pode ser
v ia con ferên cia telefô n ica ou p essoalm ente. T odo con flito, sejam eles de dívid as de
drogas, p essoais, d enúncia de m em bros para autoridades, fica r em débito co m o
recolhim ento da “C E B O L A ” ou débito da “R F” , dentre outras transgressões, é
oportunidade de se m ontar o dito “T A B U L E IR O ”, sendo que o aval para a eventual
punição será deliberado p ela “ S IN T O N IA F IN A L ” , personificado através da figura
do “ G E R A L D O E S T A D O ” de cada Estado da Federação. Outra d efinição para
“T A B U L E IR O ”, com u m ente u tilizada nas relações entre faccion ad os, é o ato de
rem anejar in divídu os para quadros estratégicos da O RCRIM , o s quais estejam
d eficitários, co m o p or exem p lo, no caso de um integrante ser preso ou falecer.
T I R A R A C A M IS A O U R A S G A R A P E IT A : pedir para ser d esligado da O R C RIM
(é p o ssív e l, entretanto, d eve ter um a ju stificativa p lau sível e se com prom eter a não
prejudicar o grupo).

O glossário da Secretaria de Administração Prisional de Minas Gerais traz ainda


um pequeno número de vocábulos indicando locais: Faculdade (“estabelecimentos
Prisionais pelos quais o integrante passou”); Geral da ML (“relacionada às ‘LOJAS DA
FM ’ que possuem a venda somente de cocaína ou ‘raio’ (batizada ou misturada)”), Geral
do BOB (“local de comércio de maconha, também conhecida como ‘massa’, ‘thousen’,
‘diamba’, ‘beise’, ‘beata’, ‘brau’, ‘pacal’, ‘chuin’, ‘verde’, ‘perna de grilo’, ‘biricutico’,
‘ret’, ‘marafa’, ‘majinba’, ‘baga’, ‘aliamba’, ‘cigarro do capeta’, dentre outras
denominações”); Geral do PT (“local de comércio de crack, também conhecido como
‘óleo’”); Lojas da FM (“locais destinados ao controle, armazenamento e vendagem de
drogas pertencentes à ORCRIM, conhecidas como ‘biqueiras’ ou ‘bocas de fumo’ -
oriundo de ‘LOJAS DA FAMÍLIA’”); Locais de Batismo (“diz respeito ao local onde o
indivíduo foi integrado à ORCRIM, seja nas ruas, em condição de liberdade ou em
Unidades Prisionais”); Moco (“falso esconderijo, buraco”); Quebrada (“local de atuação
ou moradia do criminoso. Subdivide-se em: ‘ORIGEM’ e ‘ATUAL’”); e Regional (“área
de responsabilidade - dívida conforme os códigos da área telefônica (ex.: em Minas
Gerais: 31; 32; 33; 34; 35; 37; 38)”).

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Um último campo semântico reconhecido no glossário e tratado na nossa análise


são as formas de se referir aos agentes e às forças de segurança, assinaladas por um
diminuto número de vocábulos: Bota (“agente penitenciário”), Faculdade
(“estabelecimentos Prisionais pelos quais o integrante passou”); Sistema (“é como é
chamado o Sistema Prisional (ex.: ‘SISTEMA M G ’)”); e Verme (“policiais em geral”).
Ainda que tragam palavras diferentes, os diferentes glossários das forças de
segurança parecem girar em torno dos mesmos campos semânticos, o que não constitui
exatamente uma surpresa, já que o objetivo do emprego de tais instrumentos é o de
identificar os participantes e comprovar as práticas criminosas de um grupo, quase sempre
o PCC (Primeiro Comando da Capital). Assim, os dois glossários do Sistema
Penitenciário do Estado do Mato Grosso do Sul (com 108 e 795 verbetes
respectivamente), por exemplo, também vão trazer uma série de palavras e expressões
para definir as funções, divisões, os rituais e atividades das organizações criminosas, para
identificar os objetos do crime, para indicar locais e para fazer referência aos agentes e às
forças de segurança.

Figuras 10 e 11. Glossários do Sistema Penitenciário do Estado do Mato Grosso do Sul

g l o s s Ar io - geral
GLOSSÁRIO - ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
15.3.3: Estes números significam "PCC". Para cakaiar os números, basta somá-los.
0 número 15, é a 151 letra òc Alfabeto brasileiro, o "P". 0 numero 3 è a 3a letra òo
AÇÚCAR: Cocaína.
Alfabeto brasileiro, o "c", então 15.3,3 decodificando. Os números significam "PCC".
ADIANTO: Fuga ou plano de fuga. Ex.: Vai ter um kadianto* hoje; Melhorar algo ou
alguma coisa (alcançar benefício). Bl/JK

APLICAR MULTA: extorquir dinheiro.


AREIA: Atrapalhar algo ou alguém Ex.: Tá jogando *areia' na minha comería
irmão?. Este código foi feito para tpe os presos (xtòessern mancar e receber carias
crrnhosas sem que fosse delatado o seu conteúdo.
ARENA: Local da batalha, do duelo.
220VOLTS: Espancar outrem.
ARRASTAR: Prejudicar ou levar à morte. A CADEIA VIROU,'QUEBROU: Guando o presido ou algum raio esta rebelado.
Geralmente eles c^iebram une fazem retens, para tentarem consentir alguma
BAGULHO: Termo utilizado para Droga, ou ainda pode ser entendido, em
situação dentro do sistema: reivindicações. fugas, etc
determinado contexto como "a srtuaçôo ou um focal que, esta ficando fora do ABACATARÉ: Caipiráo. Bobo.
ABELHE1RO: Ónbus lotado.
c o n t r o le Ex.: mE ai. irmãos? Seguinte, o bagulho do loco aqui..."
ABONADO: Cheio de dinheiro.
BARRACO: Cela, confusão ABONAR: Corromper, dar dinheiro.
ABRIR: Ccnftssáo na manhã, sem vtdlncta.
BATE BOLA: Atentado a vida de Policiais Militares, Policiais Civis, Agentes
ABRIR NO PÉ: Fugir ccrrendo.
Penitenciários, etc.. ACABOU A GASOLINA DO CARRO: Termo usado para dizer que acabou a batería
do celular, (carro = celular) - (gasoina = batería).
BATIZAR: Entrar para o PCC pela indicação de um integrante, jurando fidelidade ao ACERTO: Cemposição entre bandido e outros, pooe ser propina paga para policias
partido. ACHARCAR: Extorsão, pegar dinheiro, fazer acerto.
AÇO: arma tranca ou reucher. pistola.
BERRO: Arma ou revólver. AÇOUGUE: ProstbUo.
BIN LADEN: São pessoas que têm dividas com o PCC e são obrigadas a pagar com ADÊVO: Advogado.
AERONAVE/ NAVE: VeiaJo (caro) ou oeMar.
favores, ou simplesmente designação de uma alcunha. Também é conhecida como
AFANADOR: Ladrão.
Droga (cocaína): termo usado quando a cocaína é de ótima qualidade. AFANO DE ROOADORA Ftoubo de Moto.
AFILHADOS: BaCzados no PCC pelos padrinhos.
BLINDADA: Marmitex do almoço ou janta. AGADANHAR: Furtai.
BIRICO: Telefone Celular. AGADANHAR FURTAR
AGENTE PENITENCIÁRIO: Pd ida, coisa, guarda, lagartixa, coisa, verme, calça

F o n te: Sistem a P enitenciário do Estado do M ato G rosso do Sul

Vamos concentrar nossas análises no glossário menor, intitulado simplesmente


“GLOSSÁRIO - ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL” . Organizado em ordem

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alfabética, ele trabalha a sinonímia, a polissemia e a origem das palavras na definição dos
verbetes, fazendo uso de exemplos:

A D IA N T O : F uga ou plano de fuga. Ex.: V a i ter u m “ adianto ” hoje; M elhorar algo


ou algum a co isa (alcançar b en efício ).
B IN L A D E N : São p esso a s que têm d ívidas co m o PC C e são obrigadas a pagar co m
fa v o res, ou sim p lesm en te d esign ação de um a alcunha. T am b ém é con h ecida com o
D ro g a (cocaína): term o u sado quando a cocaín a é de ótim a qualidade.
B O N D E : V eíc u lo de transferência de p resos entre penitenciarias e fóruns. O u ainda
apenas sin ônim o de transferência.
C O R R Ó : V e m da expressão “ Cela Correcional ’: A C ela C orrecional é usada com o
triagem nas unidades p en ais, ali é feito u m levantam ento d os antecedentes do interno
para então em segu id a m andá-lo para o s p avilh ões. O s internos tam bém usam estes
term os “ Corró” para cham ar o s internos n o v o s nas U nidad es Penais. Ex.: E ste ladrão
da ce la 0 4 é Corro (novo).
P A R T ID O : S inôn im o de PC C ou qualquer outra facção crim inosa

“Termo” e “sinônimo” e “nomenclatura” são marcas metalinguísticas que


aparecem repetidamente nas definições do glossário do Sistema Penitenciário do Estado
do Mato Grosso do Sul:

IN T E R N O : Term o u sado p elo s agen tes p enitenciários para cham ar o s detentos.


IR M Ã O : S inônim o de interno, term o usado p elo s internos entre eles. Integrante do
PCC.
P IL O T O : N om enclatura antiga de C hefe; abaixo das “torres” : São o s resp onsáveis
por coordenar e levar ordens aos ‘so ld a d o s’.

Pelas definições de “Interno” e “Irmão” acima, vemos que há pelo menos duas
vozes escutadas na construção da significação das palavras e expressões selecionadas
pelo glossário do Sistema Penitenciário do Mato Grosso do Sul, a dos agentes
penitenciários e a dos internos do sistema prisional, o que reforça a compreensão de que
os glossários podem ser constituídos através de posições discursivas diferentes, cada uma
assumindo um “lugar de língua” (cf. MEDEIROS, 2016). De qualquer modo, mais uma
vez, muitas palavras do cotidiano e/ou empregadas por jovens (pobres) são tomadas
equivocadamente como expressões linguísticas típicas de criminosos:

B A R R A C O : Cela, confusão.
B A G U L H O : Term o u tilizado para D roga, ou ainda pode ser entendido, em
determ inado con texto co m o “a situação ou um local que, esta ficando fora do
controle” . Ex.: “E aí, irmãos? Seguinte, o bagulho da loco aqui... ”
F E C H A C O M N Ó IS : Fazer u m pacto entre am bas as partes.
L A R A N J A S : preso que assu m e algo que não praticou. Testa-de-Ferro.
M O C Ó : E sconderijo (buraco) feito p elo s internos para escon d er m aterial licito.
P A S S A R U M P A N O : D e ix a pra lá, esquecer, perdoar.
Q U E N T IN H A : M arm itex do alm oço ou janta.
S A N G U E B O M -G E N T E : B o a pessoa.

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T A L A R IC O : Preso que canta (se insinua) a m ulher dos outros.


X 9 : D edo-duro.

Equívoco que se repete em muitos dos 237 verbetes do Glossário de “Termos e


Gírias Utilizadas por Detentos” do Ministério Público do Ceará. Fiquemos apenas com
os vocábulos de A a C:

a lca g ü e ta r : Dedurar, passar inform ação ou acusar alguém .


a lc a g ü e te : A qu ele que alcagüeta, delata.
A rr e g a ç a r : o m esm o que “botar pra quebrar”, espancar, se dar bem . Ex. : v a m o s
arregaçar a fita; v a m o s arregaçar o Giba.
B o io la : H om o ssex u a l
B r in c a d em a is: exp ressão exageradam ente em pregada e que sig n ifica facilitar m uito,
dar m uita bobeira, dar m uita trela.
ca b u lo so : incerto, arriscado, p erigoso, am eaçador. E x .: fita é cabulosa; D im é u m cara
C abuloso; etc.
co r u ja r : observar.

Figura 12. Glossário na página virtual do Ministério Público do Ceará

A banar sinais criadas pelas presas para se comunicar com os detentos da penitenciária masculina
A ju d a/in h a
alcagüetar Dedurar. passar informação ou acusar alguém
alcagüete Aquele que alcagüeta delata
At ã Simular, dar cobertura
A rreg açar o mesmo que "botar pra quebrar", espancar, se dar bem Ex vamos arregaçar a fita.
vamos arregaçar o Cilha
Avifto indivíduo que repassa drogas, pratica a venda de drogas, ou apenas transporta para
alguém Ex fazer um avião, aviàozinho. etc (Ver também mula)
Bagulho Maconha, também sâo assim chamadas as m ercadorias resultantes de furtos c roubos
B alançar a cadeia Revolta gritaria
Balinha Porçào destinada a fazer c igano de maconha
Barca viatura policial que realiza escoltas, significa apenas as viaturas maiores, tipo Blascr ou
F-1000, evcntualmcntc rcfcrc-sc a ROTAM
B arulho ou fazer um barulho, rcvclar-se. promover gritarias
B erro revólver
Bicuda Estoque faca
Boi Buraco dentro do coletivo, destinado á satisfação das necessidades fisiológicas
Boiar ser preso, transitar, nào ficar escondido. "Dar trela"
Boiola Homossexual
Bomba aparelho celular habilitado c utilizado pelos presos no interior de presídios ou
estabelecimentos penais diversos, como cadeias públicas, colônias penais, etc
Bonde transferência de uma cadeia (ou presidio| para outro: também utilizado como evasáo
fuga (fazer um bonde) O bs em minas o termo nâo tem a mesma significação que no Rio
de Janeiro, onde é empregado como grupo armado que participa de várias operações,
mormente contra a policia
B otar ferro p ra o mesmo que passar o cano
d entro
Bota - fora advogado
botinha C igano com filtro
B raço (ou shock) Pessoa de confiança, pode ser homem, mulher ou criança
B ranco (a | cocaína
B rinca dem ais expressão exageradamente empregada c que significa facilitar muito, dar muita bobeira.
dar muita trela
B rinquedo arma ou armas em geral
Brizola Cocaína
Bronca assalto
C abrito veiculo adulterado, rouhado ou furtado: detento homossexual ou que é obrigado a ter
relações sexuais com outros presos
( abuloso incerto, am scado. pengoso. ameaçador Ex fita é cabulosa: Dim é um cara Cabuloso

F o n te: http://tm p.m pce.m p.br/orgaos/C A O C R IM /legislacao/grup ogestord eu nidad es/girias_detentos.pd f

Da mesma forma que o glossário da Administração Prisional de Minas Gerais, o


do Sistema Penitenciário do Mato Grosso do Sul, quando se detém sobre a identificação
dos materiais e mercadorias dos criminosos, faz menção a armas e drogas, com novo
destaque para a maconha e o crack, mas também para a cocaína:

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A Ç Ú C A R : Cocaína.
B E R R O : A rm a ou revólver.
B O B E S P O N J A : M aconha.
C H U T E IR A S : A rm as de fo g o (revólver ou pistola).
G A IT O R A D E : B eb id a preparada para matar o indivíduo, p orém tem o ob jetivo de
sim ular su icídio ou dar fa lsa im pressão de o v er dose. Tal b eb id a é u m preparado, onde
seu s ingredientes são basicam en te água e cocaína. Inicialm en te era preparado co m
água, cocaín a e viagra.
G O L IA S : E sp écie de fa ca feita a partir de ferros arrancados das grades.
P E Ç A : Arma
P E D R A : Crack ou cam a. O u ainda situação que, o preso não tem nada (pertences).
Q U A D R A D A : P istola.
Q U ÍM IC A : pasta b ase de cocaína.
R E L Ó G IO : Fuzil.
V A S S O U R A : Fuzil.

Se voltamos ao glossário do Ceará, são os mesmos objetos que são mirados nas
definições dos verbetes, com várias palavras e expressão para indicar arma de fogo
(“Brinquedo”, “Cano”, “Draga”, “Dragão”, “Ferro”, “G ou G 3”, “Macaca (ou
macaquinha)”, “Máquina”, “Metranca”, “Oitão”, “Quarenta”, “Três oitão”), maconha
(“bagulho”, “coisa”, “Dar um tapa na cara”, “Fino”, “Preto”, “Tijolo”) e cocaína
(“Branco(a))”, “Brizola”, “cimento”, “Corneta”, “Farinha”, “Narizinho”, “Papel”,
“Poeira”, “Talquinho”).
A recorrência dos mesmos elementos nos diversos glossários das forças de
segurança nos permite entrever certas ausências: drogas mais caras que a maconha e o
crack, jóias e artigos de luxo e tantos outros produtos reservados a pessoas de grande
poder aquisitivo e, não raro, político. Essas ausências deixam sem nomeação e definição
crimes como corrupção, sonegação de impostos, tráfico de influência, fraude processual,
entre muitos outros delitos cometidos por gente que mora bem longe da periferia e que
torce o nariz para a forma como falam aqueles que foram jogados para fora do centro.
Eis, portanto, a definição de crime que se encontra na prática lexicográfica dos glossários
das forças de segurança: crime é o ato cometido por pobres e pretos4!

3. Sentido e interpretação: direcionam entos do Estado e do Direito


Os glossários produzidos pelas forças de segurança são construídos a partir da
observação de conversas e mensagens com conteúdos supostamente criminosos. Há,
nesse trabalho, a interpretação de que certas palavras ou expressões podem estar
codificadas, de forma a prejudicar as investigações policiais, isto é, os criminosos

4 D ev e m o s a form ulação a P hellipe M arcel da S ilv a E stev es, a q u em registram os n o sso agradecim ento.

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Instrumentos Linguísticos
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estariam empregando outros sentidos que não aqueles do senso comum para algumas
formas linguísticas. O entendimento de que certas palavras colocarão dificuldade de
compreensão pelos agentes da lei revela a questão da alteridade e da tradução: a língua
atribuída ao criminoso precisaria ser traduzida. Ignora-se, no entanto, a possibilidade de
que as palavras assinaladas não correspondam necessariamente a uma forma codificada
de uma linguagem do crime, mas, sim, que sejam de utilização costumeira no espaço
geográfico e social do falante investigado, embora desconhecida no universo linguístico
do investigador.
Os equívocos de interpretação dos sentidos das formas linguísticas ditas de
criminosos não se explicam pela ausência de critérios técnicos normativos ou legais para
a produção de glossários pelas forças de segurança, pois não há técnica capaz de resolver
o problema da significação, isto porque o equívoco é “constitutivo da relação do sujeito
com simbólico, qual seja, sua relação com a ideologia e com o inconsciente”
(ORLANDI, 2020a, p.150). A questão do sentido ou da significação é o encontro do
sistema linguístico com fatores históricos, sociais e ideológicos (HAROCHE, 1992).
Num movimento que não ocorre de forma consciente, quando se põe a construir um
glossário com palavras e expressões próprias de criminosos, o investigador é afetado
pela história e pelos processos políticos que lhe pesam, pois, “para significar, insistimos,
a língua se inscreve na história” (ORLANDI, 2012, p. 27). No entanto, há modos de
interpretar, havendo limites para a interpretação, além de intérpretes autorizados
(ORLANDI, 2020a). Para alguns, por exemplo, a existência de critérios normativos e
uma formação em Letras e Linguística (Forense) seria garantia da validade de uma
ferramenta como um glossário de termos do crime.
A identificação, seleção e definição de palavras para compor um glossário é um
processo complexo, pois a interpretação lida com variáveis como a incompletude da
linguagem, a possibilidade de equívoco, a historicidade, a politicidade, a relação entre
pensamento/linguagem/mundo, a memória, a classe social, a ideologia, a heterogeneidade
do que é dito/escrito, etc. (ORLANDI, 2020b). Seria fácil dizer o que uma palavra
significa se o sentido fosse natural, mas, em resumo, esse último se define histórica e
politicamente, estando, portanto, sempre em disputa: “os sentidos não se fecham, não são
evidentes, embora pareçam ser” (ORLANDI, 2020b, p. 09). É dessa forma que a
interpretação de sentidos é uma atividade subjetiva, de modo que a análise de uma
palavra, frase, expressão, ainda que sobre um mesmo objeto, possibilita várias
interpretações.

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Como a interpretação é fundada em relações sociais e mesmo jurídicas e como os


sentidos são históricos e políticos, cabe questionar a validade dos glossários como provas
em investigações policiais. Qualquer objetividade cai por terra quando se considera não
apenas a forma como o agente de segurança concebe/compreende o mundo, mas também
quando vemos os diversos gestos de interpretação na produção de glossários de palavras
ou expressões do crime, pois, além daqueles produzidos por profissionais que atuam em
investigações ou com inteligência policial, por exemplo a administração de penitenciárias
ou Ministério Público, existem também aqueles preparados pelos próprios bandidos e por
acadêmicos interessados no fenômeno da criminalidade. As escolhas lexicais e as
definições de sentido nem sempre coincidem (QUEIROZ, 2022).
É preciso enxergar a produção de glossários para além de qualquer objetividade
ou neutralidade. Assim, atravessando o debate linguístico, há a atuação do agente de
polícia que constrói o artefato em prol do aparelho repressivo do Estado, direcionando os
sentidos do que se define como fora da lei.
O Estado se sustenta a partir de relações de poder, tendo como principal meta o
controle do tempo e a disciplina dos corpos, com a defesa dos interesses e propriedades
de uma classe e a garantia do sistema capitalista, sendo a família, o exército, a oficina, a
escola e o judiciário instituições co-responsáveis pela dominação social (FOUCAULT,
2019, 2014). Caminhando passo a passo com o desenvolvimento dos meios de produção
no sistema capitalista, o direito cumpre a função de garantir a propriedade e os acordos
entre os indivíduos e de punir os que não respeitam essa reestruturação, toda ela firmada
na lei. É dessa forma que o “poder de castigar” é distribuído nos aparelhos que são a
polícia, o judiciário e a penitenciária, que agem como uma rede intermediária dos
detentores do poder (FOUCAULT, 2014, p. 207-208).
O Estado pode ainda ser visto como um aparelho constituído por duas forças, a
jurídica (as leis) e a política, ambas favorecendo a dominação de uma classe (dominante)
sobre outra (proletária), seja através do emprego da violência, no domínio público, nas
atividades da justiça e da polícia, seja através da ideologia, no domínio privado, na
atuação, por exemplo, de igrejas e partidos políticos (ALTHUSSER, 1980). Nessa
perspectiva, que toma o Estado como assentado em uma base material expressa num
sistema econômico que o fundamenta, o sustenta e que guia os indivíduos através da
ideologia, o exército e a polícia aparecem como aparelhos de controle social da classe
detentora dos poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário).

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Considerando a relação estreita entre o desenvolvimento do capitalismo e do


Direito, é preciso insistir que esse último não tem por escopo assegurar a existência de
um “sujeito de Direito” livre para dispor de sua força de trabalho, mas garantir a
manutenção do poder nas mãos de uma classe privilegiada que determina as regras de
como a sociedade deve se comportar e a forma, inclusive, de como interpretar o Direito,
de modo que, através da lei, da polícia, dos tribunais e de uma série de outros aparelhos,
“a relação jurídica é diretamente gerada pelas relações materiais de produção existente
entre os homens” (PACHUKANIS, 1988, p. 57). Daí talvez não seja surpresa alguma o
fato de os glossários policiais serem voltados à investigação de crimes envolvendo a
massa preta e pobre da população, sem exemplares conhecidos, por exemplo, de
glossários de palavras de crimes de corrupção ou de colarinho branco.
A utilização de glossários em investigações policiais tem íntima relação com os
objetivos de controle que a polícia desenvolveu durante sua história. Se na Primeira
República e no varguismo a polícia tinha por objetivo a manutenção da ordem social, em
risco com o êxodo rural em expansão, inclusive com a criação de crimes que visavam o
combate à vadiagem, à prostituição e à embriaguês, atualmente a lei continua visando o
controle, mas agora das facções que colocam em risco a estabilidade do Estado.

P a ra finalizar: Instrum entos linguísticos de vigiar e p u n ir


Historicamente, o processo massivo de instrumentação linguística, a chamada
gramatização das línguas (AUROUX, 1992), foi ferramenta essencial para a criação dos
Estados nacionais. Os instrumentos linguísticos possibilitam a criação e promoção de
uma unidade linguística, que, por sua vez, garante a imposição dos institutos jurídicos,
econômicos e sociais impostos pela organização territorial e política que é o Estado
nacional. Assim, “a imagem de unidade linguística criada pelos instrumentos
linguísticos produzidos pela gramatização é justamente a imagem da unidade linguística
promovida pelo Estado nacional” (AQUINO, 2016, p. 43). Além disso, a
instrumentação linguística, “mais do que um processo de construção de um saber sobre
a língua nacional, tem como conseqüência algo mais substancial e definidor: a
constituição de um sujeito nacional, um cidadão brasileiro com sua língua própria”
(ORLANDI, 1997, p. 01). Isso posto, a criação de glossários pelas forças de segurança
é uma questão de Estado, componente de uma política de segurança pública e dos rituais
do sistema judiciário, organizados sob a letra da lei, com todas as suas contradições.

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Se é possível apontar a existência de uma conexão entre língua, direito e sujeito,


num sistema organizado para garantir trocas, contratos, acúmulo de capital e propriedade
- “O problema da língua, dos arranjos entre signos, entendidos no sentido de contratos
ou missivas, é manifestamente indissociável do Direito e da questão do sujeito”
(HAROCHE,1992, p. 70) - , é preciso considerar então uma interseção entre os
instrumentos linguísticos, que fabricam as línguas (AUROUX, MAZIÈRE, 2006), e os
aparelhos ideológicos do Estado, que dividem e hierarquizam os sujeitos. E não se pode
esquecer que já é um dos efeitos incontornáveis das tecnologias da linguagem a divisão
e hierarquização dos falantes. Com vistas à manutenção da própria máquina estatal para
o controle social, os glossários das forças de segurança atuam para vigiar e punir 5,
determinando, pela forma de falar, quem será identificado pelo poder judiciário como
criminoso. Não se trata mais simplesmente de apontar, como fazem gramáticas,
dicionários e tantos outros instrumentos linguísticos, inclusive glossários de outros
domínios, quem teria uma fala certa ou errada, bonita ou feia, contemporânea ou antiga,
urbana ou rural, mas de julgar quem é bandido ou gente de bem, quem é meliante ou
doutor.
É porque os instrumentos linguísticos mesclam identidade linguística, identidade
nacional e identidade do cidadão em uma sociedade (ORLANDI, 1997) que os glossários
das forças de segurança podem delinear e definir determinadas marcas linguísticas como
códigos da bandidagem, por serem expressas por pessoas vistas como bandidas pelos
aparelhos repressores do Estado. Assim, como provavelmente acontece com qualquer
tipo de técnica, as ferramentas linguísticas não se desconectam das relações sociais que
as engendram.
Na tentativa de alcançar e fixar os sentidos da língua, os glossários colocam vários
significados para uma palavra, detalham o uso e a origem de um vocábulo, usam
marcações como negrito, itálico e aspas para destacar aspectos específicos dos termos,
fazem comentários metalinguísticos e remissões, trazem exemplos, entre outros recursos
que buscam assegurar aquilo que jamais poderão garantir, a transparência e estabilidade
das formas da língua. Porque não podem escapar aos equívocos do trabalho da
interpretação, já que os sentidos são histórica e politicamente construídos, portanto em
constante disputa, é que os glossários das forças de segurança selecionam e criminalizam
palavras e expressões de uso comum, de certas regiões ou faixas etárias, ou mesmo itens

5 Jogam os, evidentem en te, co m o célebre enunciado de M ich el F oucault (2 014).

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lexicais com as mesmas definições que constam nos dicionários, mas, em todos os casos,
sem qualquer relação direta com atividades criminosas. No entanto, como as balas
perdidas, os equívocos nas definições dos glossários das forças de segurança no Brasil
atingem sempre os mesmos corpos, aqueles dos jovens, pobres e pretos, cujas falas são
interpretadas, com o amparo de instrumentos linguísticos, ferramentas sempre
imperfeitas, como signos de adesão à criminalidade.

Referências

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no século XXI: o delírio da busca da verdade real no processo penal. Revista
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1980.

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AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização . Campinas: UNICAMP,


1992.

AUROUX, Sylvain.; MAZIÈRE, Francine (ed.), Hyperlangues et fabriques de


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MANSOLDO, Mary. Verdade real versus verdade formal. Site: Conteúdo Jurídico.
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MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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ORLANDI, Eni P. Interpretação : autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5. ed.


São Paulo: Pontes, 2020a.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 13. ed. Campinas:


Pontes, 2020b.

ORLANDI, Eni P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 4. ed.


Campinas: Pontes, 2012.

ORLANDI, Eni P. O Estado, a gramática, a autoria. Relatos, Campinas, no. 4, p. 19-34,


1997.

PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica,


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QUEIROZ, Wanderson C. Glossários do Crime. Dissertação (mestrado em Letras) -


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QUEIROZ, Wanderson C.; AQUINO, José Edicarlos de. Aprisionando sentidos: a


produção de glossários pela polícia civil do estado do Tocantins. Revista Eletrônica
Interfaces. Vol. 13, n. 3, 2022, p. 1-20.

ROSA, Alexandre Morais. Para você que acredita em verdade real, um abraço. Site
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acredita-verdade-real-abraco. Acesso em 03 jul. 2023.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 5. ed. São Paulo:
Atlas, 2003.

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D IC IO N Á RIO S FIL O SÓ FIC O S E G LO SSÁ RIOS E M FILO SO FIA :


A RTEFA TO S CULTURAIS FIL O SÓ FIC O S E IN STRUM EN TO S DE
SATURAÇÃO DA R EFE R ÊN C IA

PH IL O SO PH IC A L D IC TIO N A R IES AND G LO SSA RIES IN PH ILO SO PH Y :


PH IL O SO PH IC A L CU LTU RA L A R TIFA C TS AND IN STRUM EN TS OF
R EFE R EN C E SATURATION

Gleiton Matheus Bonfante 1


Universidade Federal Fluminense/ FAPERJ

Resumo: Este artigo celebra as ideias de Sylvain Auroux estressando seu viés filosófico. O texto
aproxima, por diferentes vias, a Filosofia da Linguagem da História das Ideias Linguísticas
(também HIL), perturbando suas margens tranquilas e borrando seus limites assinaláveis. Como
questão central, o texto discute dois possíveis interesses de investigação para a HIL, apreendidos
pelo seu caráter de instrumento linguístico e de artefato cultural filosófico. Os objetos de reflexão
propostos são os dicionários filosóficos e os glossários integrantes de obras filosóficas. Ao engajá-
los, a tessitura descreve dois deslocamentos: um conceitual e um epistêmico. Em relação ao
campo dos conceitos, se propõe pensar a produtividade do termo artefatos culturais filosóficos,
como análogo e concorrente do termo instrumentos linguísticos. Referente ao conhecimento
epistêmico, a proposta é ressaltar na HIL sua proximidade com a filosofia. Entre as conclusões,
pode-se ressaltar a caracterização dos dicionários filosóficos e os glossários que compõem textos
filosóficos como instrumentos de saturação referencial e de estabilização conceitual.
Palavras-chave: Dicionários filosóficos; Glossários em filosofia; Artefatos culturais filosóficos;
História das Ideias Linguísticas; Filosofia da Linguagem

Abstract: This paper celebrates Auroux's ideas by stressing their philosophical facet. The text
brings the Philosophy of Language and the History of Linguistic Ideas (also HIL) closer by
different ways, disturbing their quiet margins and blurring their unmistakable limits. As a central
question, the text discusses two possible research interests for HIL, apprehended by their
characterization as linguistic instrument and as philosophical cultural artifacts. The proposed
objects of reflection are philosophical dictionaries and glossaries that are part of philosophical
works. By engaging them, the paper describes two displacements: a conceptual and an epistemic
one. Regarding the field of concepts, it is proposed to think about the productivity of the term
philosophical cultural artifacts, as an analog and competitor of the term linguistic instrument.
Regarding epistemic knowledge, the proposal is to stress HIL as a philosophical enterprise.
Among the conclusions, one can highlight the characterization of philosophical dictionaries and
the glossaries that compose philosophical texts as instruments of referential saturation and
conceptual stabilization.
Keywords: Philosophical dictionaries; Glossaries in philosophy; Cultural-philosophical artifacts;
History of Linguistic Ideas; Philosophy of Language

1 D outor em Interdisciplinar L ingu ística A p licad a p ela UFRJ; P esquisador visitan te na U niversidade
Federal F lu m inense (U F F ) c o m financiam ento FA PE R J/ Program a P ós-doutorado nota 10, P rocesso SEI-
2 6 0 0 0 3 /0 1 9 7 0 5 /2 0 2 2 , a quem m anifesto m eu s agradecim entos por p ossib ilitar a escrita d esse artigo. Em ail:
supergleiton @ gm ail.com .

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Subm etido em 31 de maio de 2023.


A provado em 08 de agosto de 2023.

Introdução
Embora a filosofia seja uma das mais antigas formas de reflexão linguística e
metalinguística, ela não é considerada uma ciência linguística, uma prática que sustenta
nos ombros o peso do positivismo. De fato, seria difícil convencer de que a
indomabilidade do pensamento filosófico pudesse docilmente se constranger a uma
circunscrição nos limites disciplinares de uma ciência. E a razão para tal argumento é o
paradoxo entre se disciplinar e se lançar sem limites às querelas do pensamento. Como
assertivamente explica Foucault: “no interior de seus limites, cada disciplina reconhece
proposições verdadeiras e falsas, mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma
teratologia do saber” (FOUCAULT, 2014[1970], p. 31). É justamente dessa teratologia
do saber que a filosofia não pode abdicar, resistindo, portanto, à disciplinarização do
pensamento sobre a língua. Explicado de outra forma, uma “ciência organiza sua
autonomia em troca de um certo número de ignorâncias e recalques.” (GADET;
PÊCHEUX, 2004, p. 20). E com a linguística não foi diferente: a hoje multifacetada
ciência linguística se fundou necessariamente a partir do recalque filosófico, e é
considerada positivamente por muitos, a pioneira entre as ciências humanas a se recalcar,
a endurecer, a se formalizar, sendo fetichizada como a “vedete das ciências humanas”
(ORLANDI, 1986). Assim também acontece com o saber linguístico sobre a língua, ou o
saber metalinguístico, alicerce para constituição de uma ciência. Nas palavras de Auroux:
“O saber linguístico abstrato - aquele que se reflete sobre si mesmo como o que
chamamos uma ciência - vai ter de se definir em uma relação de delimitação / oposição
em relação à lógica e à filosofia” (AUROUX, 1992, p. 30). Curiosamente, a constituição
de um saber metalinguístico contido por barreiras disciplinares parece ser justamente um
ponto de encontro entre filosofia e linguística. Não se pode negar que haja algo em
comum entre uma disciplina e a escrita filosófica: ambas requerem uma metalinguagem;
exercem um processo de seleção conceitual e precisam construir textos complexos
saturados referencialmente. Toda malha metalinguística contextualizada pode ser
organizada sob a forma tecnológica dos glossários como modo de aprimorar o
conhecimento e promover o saber linguístico e conceitual. E este é o cruzamento mais

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evidente em Auroux (1992) entre a filosofia e a história das ideias linguísticas,


cruzamento em que invisto neste artigo.
Em ressonância com essa discussão, compartilho aqui notas preliminares das
reflexões sobre glossários filosóficos e a mediação do conhecimento. Essas notas se
referem a um projeto de pesquisa em andamento intitulado Glosando Spinoza: os
glossários na Ética espinosana, trabalho fortemente inspirado pelas reflexões de Auroux
e seus leitores brasileiros sobre a história dos saberes linguísticos. Para o historiador da
epistemologia linguística, o objeto da HIL são saberes sobre a língua (AUROUX, 1992,
p. 13). Na versão francesa da obra, ele explica que ideias são saberes2. O próprio filósofo
da linguagem expande o sentido de saberes propondo que eles são conceitos,
procedimentos, técnicas (AUROUX, 1992, p. 11). Na obra A revolução tecnológica da
gramatização (1992), é proposta a observação da linguagem e sua história epistêmica a
partir de uma perspectiva que privilegia a filosofia e a historiografia da ciência. A
historiografia da linguagem tem sido pulsante no Brasil e tem fornecido trabalhos
brilhantes que circulam por vários eixos, como da produção de enciclopédias (ESTEVES,
2023), da língua nacional (ORLANDI, 2001) da institucionalização da língua (ZOPPI-
FONTANA; DINIZ, 2018), dos instrumentos linguísticos (AQUINO, 2020; MODESTO,
2022), da ética (ORLANDI, 2002) só pra citar alguns. As questões da HIL que
privilegiam a filosofia, no entanto, permanecem um campo pouco investigado no Brasil
e minha hipótese explicativa para tal é o desejo de emancipação política e linguística de
Portugal que fez urgente pensar o Português como língua nacional cultural e histórica e,
assim, pensar nossa própria identidade linguística e seu processo de formação a partir de
instrumentos linguísticos, tomados por Auroux como objetos técnicos basais na
ampliação das possibilidades linguísticas. Apesar da concepção claramente instrumental
de Auroux sob instrumentos linguísticos, eles “intervêm na relação entre a língua, o
sujeito e o Estado” (SILVA SOBRINHO, 2011, p. 96), sendo “parte da relação com a
sociedade e com a história” (ORLANDI, 2001, p. 8). Portanto, além de seu aspecto
instrumental, os instrumentos linguísticos são re-articulados na Análise do Discurso
materialista como objetos simbólicos, históricos e ideológicos.
É no sentido de privilegiar a filosofia como objeto da HIL e como inspiração
teórica que proponho pensar sua peculiar produção dicionarística como objetos legítimos

2 A gradeço a V an ise M edeiros por essa inform ação sobre as diferenças entre a ed ição brasileira,
consultada para e sse texto e a versão original.

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da HIL. No entanto, uma dúvida permanece: ao nos interessar por este tipo de artefatos,
estaremos fazendo filosofia ou história das ideias linguísticas? Essa é uma das questões
que esse artigo se propõe a responder, enquanto estende ao leitor o convite de Auroux
para pensar a história das ideias linguísticas considerando seus aspectos histórico,
epistêmico e, principalmente filosófico. A partir de Auroux é possível elencar uma
motivação conceitual relevante para esse trabalho: afastarmo-nos de um ideal científico,
aproximando nossos inquéritos da filosofia. Ora, não foi essa a motivação de Auroux em
substituir “teorias3” por “ideias” na constituição do campo de saber, celebrado nessa
coletânea?
Assim, ao propor pensar glossários filosóficos como formas de saber lexical e
inversamente pensar os saberes glossários como forma de filosofar, esse artigo sugere
como contribuição dois movimentos: um conceitual e um epistêmico. No campo dos
conceitos, proponho pensar a produtividade do termos artefatos culturais filosóficos, e
instrumentos de saturação de referência como análogos e concorrentes do termo
instrumentos linguísticos. No que se refere ao conhecimento epistêmico, a proposta é
realçar na HIL seu parentesco com a filosofia, sua afeição pelo filosofar. Esses
movimentos serão promovidos através do seguinte percurso: no âmbito da empreitada
conceitual, serão ressaltadas dos glossários filosóficos sua função instrumental na
saturação da referência (seção 3) e seu papel de artefato cultural (seção 4). Quanto ao
movimento epistêmico proposto, que dramatiza o laço da HIL com a filosofia, ele se
coloca mais evidentemente nas seções 1 e 2. N a primeira seção, proponho uma
aproximação teórica entre filosofia (da/na linguagem) e história das ideias linguísticas,
que continua na segunda seção através de uma apresentação das peculiaridades dos
dicionários filosóficos e de um mapeamento muito preliminar do campo.

1. A filosofia e a história das ideias linguísticas


“A reflexão sobre a linguagem não tem, evidentemente, começo assinalável.”
(GADET; PÊCHEUX, 2004, p. 29), o que implica a impossibilidade de se sugerir um
ponto evidente de origem. Ademais, há de se reconhecer que uma origem frequentemente

3 D e acordo co m as ex p lica çõ es de C olom bat, Fournier e P u ech (2 0 1 7 [2 0 1 0 ]), id eias seriam


con ceito m ais adequado do que teoria. Enquanto id eia se m ostra u m co n ceito livre de a sso cia çõ es
norm ativas co m u m tipo de produção de con h ecim ento localizad o h istoricam ente, teoria parece celebrar
certo entendim ento de ciên cia d esen v o lv id a no ocidente a partir do sécu lo X V III, desconsiderando a diversa
configuração que o s p rocedim entos do saber p od em assum ir historicam ente.

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não seja um ponto temporal definido, mas uma marcha histórica: por “origem, não se trata
evidentemente de um acontecimento, mas de um processo que podemos delimitar num
intervalo temporal aberto, às vezes consideravelmente longo.” (AUROUX, 1992, p. 21).
Em paralelismo inesperado com o parágrafo anterior, Althusser leva a reflexão filosófica
na mesma direção: “não há um começo obrigatório para a filosofia” (ALTHUSSER,
2005[1982], p. 25). No texto supracitado, a nota XXXVII do tradutor da versão italiana,
Vittorio Morfino, explica que a imagem do pensador que entra no vagão em movimento
é central para a filosofia de Althusser, sendo documentada em, pelo menos, dois
momentos: no breve texto Portrait do filósofo materialista (ALTHUSSER, 1994) e na
sua biografia, onde se lê: “O materialista, ao contrário, é um homem que pega o trem
andando, sem saber de onde ele vem nem para onde ele vai” (ALTHUSSER, 2005[1982],

p. 46).
Além de não ter um começo assinalável, a produção de saberes sobre a linguagem,
ou a filosofia da linguagem também não tem uma definição pacífica. Embora seja muito
frequentemente sinonimizada com filosofia analítica da linguagem, elejo aqui uma
perspectiva pluralista (MARTINS, 1999; CABRERA, 2009[2003]; AUROUX, 2009)
sobre a filosofia da linguagem, considerando que ela não se restringe à filosofia analítica,
mas que “diferentes opções teóricas, metodologias de acesso e sensibilidades perante o
mundo darão origem a muitas e variadas filosofias da linguagem.” (CABRERA,
2009[2003], p. 16). Vejamos como Auroux, em consonância, define filosofia da
linguagem logo no primeiro parágrafo de seu livro Filosofia da Linguagem:

A filo so fia da lin g u a g em não corresponde n em a u m con ceito, n em a u m cam po


d isciplinar b em constituído. E n ten d e-se por filo so fia da lin gu agem u m conjunto de
reflex õ es de origen s distintas, o b servações d os filó so fo s a respeito da linguagem ,
análises técnicas construídas a partir d os form alism os ló g ico s, av a lia çõ es do papel da
lin g u a g em com um , representações construídas a partir d os saberes p o sitiv o s que
tom am a lin gu agem co m o objeto (“filo so fia da lin gu agem ”). A pesar de sua
heterogen eid ade e, reconheçam os, de um a evid en te falta de co n sistên cia teórica do
conjunto, trata-se provavelm ente do m ais im portante e m ais d ifícil cam po da filo so fia .
(A U R O U X , 2 0 0 9 , p. 7)

A explicação de Auroux aproxima a produção de saber linguístico e


metalinguístico da filosofia da linguagem por duas vias argumentativas. Em primeiro
lugar, faz a filosofia da linguagem se dissolver na sua própria definição de ciência (os
saberes linguísticos), enquanto expande o sentido de ciências da linguagem, distribuindo
a práxis científica por toda a produção de saberes sobre este objeto - a língua. Em seguida,

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ele distingue a filosofia da linguagem de outras formas de filosofar, caracterizando-a


como heterogênea e teoricamente inconsistentemente, porém robusta. Considerando a
enunciada parecença entre as ciências linguísticas e a filosofia da linguagem nos cabe
perguntar se seriam a mesma coisa. De acordo com Russell, “A única diferença entre
ciência e filosofia é que a ciência é aquilo que mais ou menos sabemos, enquanto a
filosofia é aquilo que a gente não sabe.” (RUSSELL, 1971, p. 281). Em outras palavras,
enquanto a ciência provenha às questões que levanta respostas que acredita serem
satisfatórias, a filosofia se sente confortável no terreno da dúvida, abraçando o “caráter
não demonstrativo do discurso filosófico.” (PORCHAT PEREIRA, 1994, p. 30).
Para continuar nosso exercício contrastivo, podemos nos remeter a Auroux
(1992), para quem o papel da filosofia na transformação dos saberes linguísticos em
ciência foi um papel negativo. Milner (2012) e Gadet e Pêcheux (2004) concordam: a
filosofia teve que ser negada pela linguística como demanda de inscrição disciplinar em
limites científicos. Com Auroux, a palavra:

(...) quando a e x ig ên cia de um a autonom ia do saber lin gu ístico apareceu4 - por razões
tanto institucionais quanto teóricas - , o s linguistas inventaram o pecad o do lo g icism o ,
falta que co n siste em im portar da ló g ic a para a lin gu ística. (...) Para a filo so fia - da
qual a ló g ic a fa z parte - o p rocesso é m ais co m p lica d o . S e a lin g u a g em é m atéria de
filo so fa r (cf. H acking, 1975), é por razões de essên cia. A filo so fia ocu p a o terreno das
esp ecu la çõ es m íticas: porque ex iste lin gu agem ao in v és do nada (M ilner, 1978:36)?
O dom ín io tradicional da filo so fia é o das relações da lin gu agem c o m o pensam ento,
co m o verdadeiro e co m o real (...). A separação em relação à filo so fia não tem outro
recurso senão a n egação da filo so fia , a recusa das q u estões de essên cia, de origem e
de universalidade. E la se realiza por ex c lu sõ e s na n ã o -ciên cia e no fantástico (...).
(A U R O U X , 1992, p. 31)

Contudo, não seria equivocado sugerir que a filosofia permaneceu na ciência da


linguagem por, pelo menos, dois motivos: primeiramente pela impossibilidade da
produção de saberes linguísticos fora dos moldes de reflexão inaugurados pelo helenismo,
se acreditarmos com Heidegger que “a ciência nunca existiria se a filosofia não a tivesse
precedido e antecipado” (HEIDEGGER, 2021[1956], p. 12). Sugerindo que o papel da

4 O d esejo por autonom ia é u m a das causas diversas que exercem pressão na form a com o saberes se
d esen volvem , no entanto, “as causas que a g em sobre o d esen v o lv im en to d os saberes lin gu ísticos são
extrem am ente co m p lex a s” (A U R O U X , 1992, p. 28). A lé m do desejo d isciplinar p ela autonom ia, p o d em o s
elencar a “adm inistração d os grandes E stados, a literarização d os idiom as e sua relação co m a identidade
nacional, a expansão colon ial, o p roselitism o relig io so , as v ia g e n s, o com ércio, o s contatos entre línguas,
ou o d esen volvim en to d os co n h ecim en tos co n e x o s com o a m edicina, a anatom ia ou a p sico lo g ia ”
(A U R O U X , 1992, p. 28).

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filosofia na forma de pensar ocidental tenha sido mais que propositiva: quase
determinística, ele defende que “a palavra philosophia está, de certa maneira, na certidão
de nascimento de nossa própria história (...)” (HEIDEGGER, 2021[1956], p. 13), como
ocidentais. O segundo argumento se refere filosoficamente à insistência persistente das
exclusões de se fazerem presentes na linguagem. A presença viva na linguagem de tudo
aquilo de que o linguista teima em abdicar é ironizada pelo autor duplo: “Entre o amor
pela língua materna e o desejo da língua ideal, a linguística científica revela estranhos
parentescos com aquilo que ela vive de excluir.” (GADET PÊCHEUX, 2004, p. 48).
Último ponto que desejo ressaltar pela proximidade da HIL com a filosofia remete
ao século XX, quando se operou na filosofia uma virada linguística: a partir de uma
renovação do interesse epistêmico filosófico. Passa-se, neste momento, a aceitar que os
problemas filosóficos, éticos e estéticos são questões linguísticas. Além disso, a partir do
século XX, a maioria dos filósofos não interessados especificamente em linguagem - e
talvez sobretudo eles, já que os contemporâneos focados em linguagem apresentavam
uma atitude mentalista-realista - passam a considerar a linguagem como preocupação
filosófica legítima (CABRERA, 2009[2003]): “É um fato evidente que uma grande
atenção para com a linguagem é atualmente característica de todas as correntes principais
da filosofia ocidental” (HACKING, 1999, p. 19, apud CABRERA, 2009[2003], p. 16). A
partir dessa argumentação pelo imbricamento de saberes da HIL e saberes filosóficos,
proponho um entrelaçamento também entre os instrumentos linguísticos e a prática de
filosofar. Assim, penso as primeiras produções dicionarísticas e gramáticas e as primeiras
reflexões filosóficas sobre linguagem como co-originárias. Uma origem comum - não
pontual, mas processual - não é apenas uma forma de negar atribuir anterioridade a uma
das duas, mas de embaraçar suas histórias e embaralhar seus começos e limites. O ponto
de costura entre a produção de instrumentos linguísticos e o filosofar sobre linguagem é,
em minha perspectiva, o conhecimento metalinguístico e conceitual, pois dicionários e
gramáticas são uma forma muito primordial de saber filosófico. Assim, invisto na
circularidade de dois elementos: por um lado, a filosofia como a gramática do
pensamento ocidental e, por outro, a gramática como um dos primeiros tipos de filosofia.
A segunda parte da expressão 5 circular que proponho pode ser exemplificada pela forma

5 Q uestões filo só fic a s que g o sto de m e colo ca r são: a escrita teria perm itido a gram ática ou a filo so fia
p ossib ilitou a gram ática e a escrita? Seria p o ssív e l gram atizar a lin gu agem falada? Seria o filo so fa r

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como gramáticas e estudos de retórica são considerados por Helena Martins: “estudos de
teor mais empírico e propedêutico, os quais ocupam sem dúvida um lugar relevante e
fundador na história das teorias linguísticas” (1996, p. 449). Em contrapartida, a filosofia,
se mostra como fenômeno basal para a produção e desenvolvimento de saberes
metalinguísticos, e dos próprios instrumentos linguísticos, pois é “a especulação sobre as
relações do logos no Ser (filosofia)” (AUROUX, 1992, p. 27) que se conjuga à retórica,
poética, lógica e pragmática para produzir uma “teoria das partes do discurso”
(AUROUX, 1992, p. 27).
Notem que essa aproximação epistêmica já foi aludida por outros autores como
Martins (1999) e Auroux (1992) acima. Dicionários de filosofia surgem historicamente
depois dos dicionários bilíngues e dos monolíngues, no entanto listas de palavras e
glossários em textos de filosofia remontam às primeiras manifestações filosóficas. Nesse
texto proponho tratar como objeto de estudo da HIL dicionários de filosofia e glossários
dentro de obras filosóficas, artefatos que considero semelhantes porém diferentes e que
serão tratados como artefatos filosóficos culturais. Embora, o leitor seja mantido em
suspense até a seção 4 para a discussão em pormenores da razão para tal substituição, já
se pode ter uma ideia da sugestão de veicular os textos produzidos em contexto filosófico
com artefatos culturalmente localizados de saberes metalinguísticos e antropológicos.
O que permite aproximar HIL e filosofia, como já mencionado, seria a
preocupação conceitual, que interessa não apenas ao discurso dicionarístico, mas as
questões de significação postas pela filosofia. Assim explica Cabrera tal relação:
“Conceitos e significação vão juntos. Essa significatividade será entendida de maneiras
muito diversas pelas diferentes filosofias da linguagem e, consequentemente, a
constituição dos conceitos também será diversamente entendida.” (CABRERA,
2009[2003], p. 17). Defendo que grande parte do que é a filosofia seja sua
metalinguagem, as palavras específicas que designam os conceitos e que apresentam com
fina distinção semântica a menor minúcia significativa. O conjunto de relações
significantes fixadas para específico contexto, frequentemente expressas em glossários
são o primeiro passo da reflexão filosófica. Antes de qualquer conhecimento sobre a
coisa, supõe-se conhecer a essência da coisa, no sentido de poder denominá-la a partir de

m etalinguístico o esto p im da gram atização? C om o seria um a gram ática fora d os m old es helenistas de
conhecim ento m etalinguístico?

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perguntas. A filosofia dramatiza a polissemia e desestabiliza a fetichizada conexão entre


significado e significante - Ou seria essa a poesia? O funcionamento filosófico da
linguagem depende da estabilização momentânea dos conceitos em jogo (possivelmente
da ciência e da teoria também, no entanto, a ciência dogmática como ela é, abdica da
efemeridade significativa para se deitar em homonímia esplêndida). A filosofia não se
permite esse sossego e vagueia conceitualmente pela incerteza de sua significação, daí a
importância que adquire um dicionário ou glossário em seu amparo: glossários e
dicionários de língua são “um dos lugares que sustentam as evidências dos sentidos
funcionando como um instrumento de estabilização do discurso” (NUNES, 2006, p. 11).

2. Os dicionários e a filosofia
A escrita desse artigo foi motivada pela dificuldade em encontrar pesquisas que
tenham se interessado por saberes linguísticos e metalinguísticos em sua interface com a
produção dicionarística em filosofia. Pensei, portanto, em seguir esse caminho-motivação
de escrita sobre o saber conceitual no campo da filosofia, refletindo sobre os
funcionamentos dos dicionários filosóficos e dos glossários em obras filosóficas. Receio,
no entanto, que por falta de literatura de apoio, esse texto só poderia ter um caráter
tentativo: tateia, procura entender, procura sentir como esse campo pode se abrir a novas
e velhas questões.
Dicionários e glossários são objetos políticos (ORLANDI, 2002), instrumentos
linguísticos (AUROUX, 1992), artefatos (FERREIRA, 2020) tradicionalmente
conceitualizados na HIL do Brasil por suas relações com a sociedade, com a história e
com a descolonização do conhecimento linguístico. Ver Nunes (2008) e Costa (2019)
para uma discussão sobre o panorama da HIL no Brasil. As discussões empreendidas acá
do Atlântico, expandem e complexificam a proposta de Auroux (1992) de pensar os
instrumentos linguísticos como tecnologias de língua e como formas de intervenções
políticas. Aquino (2020), por exemplo, ao situar “gramática” historicamente ressalta seu
papel determinante na produção de saber metalinguístico. Ele problematiza a concepção
dos instrumentos linguísticos como sendo a própria língua e sua implicação em uma
unidade nacional e linguística. Ele postula os instrumentos linguísticos como políticos,
técnicos, históricos, e responsáveis por espelhar nos falantes uma imagem de unidade
linguístico-identitária “promovida pelo Estado nacional” (AQUINO, 2020, p. 122), o que,
por sua vez, estabelece hierarquias entre tipos de falantes. Modesto (2022), por outro lado,

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se propõe a pensar relações étnico-raciais pela perspectiva do dicionário, sugerindo que


“também os instrumentos linguísticos foram palco para esse espetáculo da mestiçagem”
(2022, p. 3). Modesto toma os instrumentos linguísticos como objeto material de análise
e de crítica antirracista. Seguindo Nunes (2010), ele propõe tratar os dicionários como
discursos sobre a língua, em que se encerra uma forma privilegiada de saber histórico e
político. Ainda nessa esteira de pensar os instrumentos linguísticos no nosso contexto
colonial, podemos ressaltar os trabalhos de Zoppi-Fontana e Diniz que, ao propor os
instrumentos linguísticos como pilares de nosso saber metalinguístico (ZOPPI-
FONTANA; DINIZ, 2008, p. 94), também propõem entender “instrumentos linguísticos
enquanto objetos/lugares simbólicos” (ZOPPI-FONTANA; DINIZ, 2008, p. 91), além de
outros trabalhos relevantes que expandem a aplicação do conceito de instrumentos
linguísticos mas, que aqui, comparecem como gestos de esquecimento.
A partir da interlocução com a literatura sobre instrumentos linguísticos e,
principalmente, dicionários, por uma perspectiva filosófica, as questões que pululam são
várias: qual é o papel linguístico e sociopolítico do dicionário e glossários em filosofia?
Seriam as potencialidades e funcionalidades metalinguísticas do saber glossárico em
filosofia, distintas das atribuídas aos glossários produzidos em outros contextos e com
outras finalidades políticas? Quais seriam as peculiaridades do glossário para a filosofia?
Tentarei fornecer direcionamentos - não respostas definitivas - para essas inquisições
através da discussão que segue.
Os dicionários monolíngues gozam de um “efeito de completude da
representação” linguística (ORLANDI, 2002, p.103), não apenas sendo imaginados como
unidade representacional da língua mas como repositório que contém todas as palavras
da língua. Essa pode ser levantada como uma primeira distinção entre dicionários
monolíngues e dicionários em filosofia, já que os últimos são assumidamente
incompletos, não direcionam o leitor a um circuito fechado que se encerra em si mesmo,
mas os lança para fora do dicionário convidando sempre à observação dos vocábulos em
seu emprego local e contextual dentro de específico gesto filosófico. Os dicionários e
glossários filosóficos remetem explicitamente ao uso, à não-neutralidade e não
universalidade dos conceitos e sentidos. Com razão, axioma para o Wittgenstein
(2022[1953]) das Investigaçõesfilosóficas é que o significado de uma palavra no discurso
filosófico é condicionado por fatores contextuais:

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E videntem en te, o que n os con fun de é a uniform idade de sua aparência quando
as palavras nos são faladas ou n os aparecem na form a escrita ou im pressa. P o is
seu em prego não se p õ e tão claram ente diante de nós. Principalm ente quando
filo so fa m o s! (W IT T G E N ST E IN , 2 0 2 2 [1 9 5 3 ], aforism o 11).

No aforismo acima, podemos sugerir que Wittgenstein tem clareza da opacidade


das palavras, principalmente na ocasião da filosofia, o que pode nos levar a defender a
produção de saber metalinguístico na filosofia como uma forma de cristalizar saberes
conceituais, estabilizando-os para a prática filosófica. No aforismo citado há uma clara
preocupação com o uso, além de um claro distanciamento entre o Tractatus seu primeiro
livro, localizado numa tradição de filosofia analítica da linguagem. Wittgenstein alude à
instabilidade da relação entre referente e significado, especialmente na prática da
filosofia. Realço essa questão por sugerir a necessidade de glossários - mesmo que
mentais - que ajudem a saturar e estabilizar o sentido na construção de uma narrativa
filosófica. A instabilidade da relação entre referente e sentido o leva a questionar a
eficiência semântica da nomeação definitiva, da atribuição de sentido universal. Vejamos
como Wittgenstein arremata o aforismo 15, em relação à classificação do mundo:

Frequentem ente se mostrará inútil, se ao filosofar, disserm os: N om ear algo é


sem elhante a colar, sobre um a coisa, um a etiqueta co m seu nom e.
(W IT T G E N ST E IN , 2 0 2 2 [1 9 5 3 ], aforism o 15)

As etiquetas não são aderentes, pois os sentidos filosóficos não se subscrevem ao


signo de forma estável. A etiquetagem pode inclusive se mostrar inútil nas trincheiras
filosóficas. Neste sentido, os aforismos de Wittgenstein reforçam meu argumento de que
existe uma importante diferença - ou talvez não - entre dicionários monolíngues e
dicionários de filosofia: a função estabilizadora do sentido6, ou em outras palavras a
saturação da referência, sem a qual, uma narrativa filosófica pode se mostrar
impenetrável. Distintamente, os dicionários monolíngues não parecem ser objetos
culturais dos quais a saturação referencial dependa. Ao contrário, eles almejam a
organização do saber metalinguístico como uma forma de controle sobre a língua e seus
falantes, através de diretrizes do sentido. O dicionário é “organizado ideologicamente de
determinada maneira” (ORLANDI, 2002, p. 107) para fazer parte de nossa relação -
normativa ou não - com a língua.

6 Certam ente, o s d icionários tam bém estabilizam , m as co m in teresse de controlar politicam en te a


sem ântica.

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Nesse fluxo, outra distinção entre dicionários de língua e dicionários filosóficos


que me parece pertinente se dá sobre como eles incidem na materialidade linguística e
discursiva. Os dicionários operam com a língua do comum, do cotidiano, a linguagem
banal que nos guia, por vezes, de forma automática pela vida discursiva e seus jogos de
linguagem (WITTGENSTEIN, 2022[1953]. O dicionário de conceitos filosóficos, não.
Eles nos guiam por uma língua extraordinária altamente contextual, que subentende uma
deformação de si necessária ao filosofar. Penso que nos glossários em textos filosóficos
e dicionários de filosofia se trata de saberes conceituais e não linguísticos, que incidem
sobre a própria filosofia como exercício de pensamento e discurso e na história do
pensamento filosófico. O dicionário filosófico não incide sobre a língua, mas sobre a
teoria e a filosofia7. Em decorrência do exposto, esboço uma distinção quanto a suas
possibilidades performativas: enquanto o dicionário monolíngue produz língua, o
glossário filosófico produz o próprio pensamento filosófico, ou seja, é uma forma prática
de filosofar e de produzir reflexão metalinguística. Seus produtos pragmáticos são
diversos.
A relação entre dicionários e a produção de saber é transversalizada pela
historicidade. “ Sem memória e sem projeto, simplesmente não há saber.” (AUROUX,
1992, p.12) sobretudo filosófico-metalinguístico. A filosofia invoca de certa forma uma
memória do pensamento, como um artefato que nos permite acessar diferentes narrativas
e resguardar a razão. A filosofia dentro da HIL também exacerba os punhos 8 políticos dos
projetos de conhecimento metalinguístico, de modo que vejo nessa interlocução
possibilidade de rica reflexão filosófica-lexicográfica-discursiva. Das próximas linhas ao
fim dessa seção, apresento um levantamento de alguns dicionários filosóficos, que
poderiam ser objeto de interesse de historiadores das ideias linguísticas como
possibilidade de reflexão política e filosófica sobre língua e sociedade. Vou discorrer a
seguir brevemente sobre o Liber Glossarum, o dicionário de Voltaire e o dicionário de
Bayle, três expoentes do saber dicionarísticos investidos de interesse pela filosofia, para
esboçar um mapeamento muito preliminar de campo. Que meu silêncio constrangedor
sobre a filosofia brasileira não cegue o leitor para a pluralidade de obras glossário-
filosóficas nacionais como o Dicionário de Paulo Freire (STRECK, REDIN, ZITKOSKI;

7 A gradeço a V an ise M edeiros, por essa id eia da incidência: enquanto o d icionário in cide sobre a língua, o
dicionário filo só fic o in cid e sobre a filo so fia ou teoria, são o discurso teórico e filo só fic o que ele toca.
8 Trata-se de u m lapso. A o contrário do pretendido cunho, produzi punho e abracei a m etáfora do encontro
entre m eu s d edos, as teclas e o que eu não sei.

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2010) e o Dicionário básico de Filosofia (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990). O estudo


dessas obras pode se revelar um compromisso inadiável com a educação, com a política
e com a ética.

2.1. Liber Glossarum


O Liber glossarum, também desginado como Glossário de Ansileubo se refere a
um grande compêndio de conhecimento geral e fontes de referências compilado segundo
Goetz (1893) durante os VII e VIII. O Liber glossarum surtiu grande interesse para
compiladores posteriores durante toda a Idade Média e para estudiosos contemporâneos
de filosofia, historiografia linguística e HIL, sobretudo na Itália, pois é a primera
enciclopédia latina que emprega entradas ordenadas alfabeticamente, uma organização
de língua que passou a se denominar glossário ou dicionário (Ver Barbero, 2016). O
estudo do Liber Glossarum tem imensa importância tanto para filósofos quanto para
linguistas. Suas glosas oferecem uma janela para o cenário filosófico e linguístico do
período medieval, permitindo que os estudiosos explorem a evolução das ideias, a
recepção de textos filosóficos e o desenvolvimento da linguagem e dos próprios
dicionários. O Liber Glossarum, com aproximadamente 30 mil entradas, é um valioso
testemunho das buscas intelectuais de nossos antepassados, promovendo uma
compreensão mais profunda de nossa herança filosófica e linguística, a partir de
instrumentos linguísticos interessados nos contornos filosóficos de seu funcionamento.

2.2 Dictionnaire historique et critique


Em seguida, apresento brevemente o Dictionnaire historique et critique (1695) de
Pierre Bayle (1647-1706), um dicionário que possui configuração especial: “Bayle
praticou uma forma narrativa aberta, construída como diálogo do autor com seus
personagens, e marcada pela recusa de um espírito geométrico” (LESSA, 2009, p. 461).
Bayle discute os trabalhos filosóficos estabelecendo críticas dialéticas poderosas e, por
isso, tem sido estudado pela filosofia (Ver LESSA, 2009; OLIVEIRA, 2019; SMITH,
2019). Ele é conhecido como um filósofo cético que defendeu com seus escritos a
tolerância religiosa e se opôs fortemente às “pretensões da razão em assuntos teológicos
e metafísicos.” (OLIVEIRA, 2019, p. 150). O filósofo se posiciona em terreno de
desconfiança no que tange à verdade, esse desejo filosófico e científico, propondo que
“ideias claras e distintas não são um critério de verdade.” (SMITH, 2019, p. 382) ou ainda

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que “as ideias claras não somente não são o único critério de verdade, mas talvez sequer
sejam o critério mais importante” (SMITH, 2019, p. 382). Gosto de pensar que Bayle
escancara o fato de que “a produção de um saber metalinguístico está materialmente
ligada à produção de efeitos imaginários” (ZOPPI-FONTANA; DINIZ, 2008, p.91), a
verdade entre eles. Ao desconfiar da verdade como produto filosófico, Bayle prescreve
nenhuma verdade à filosofia.

2.3 As cartas de Voltaire


Finalmente, também acredito ser o Dicionário de Voltaire (2018) um valioso
instrumento de estudo para a HIL, além de “uma arma pela educação” (DE SANTANA,
2022). Publicado em 1764, o dicionário filosófico de Voltaire, o posiciona de forma única
no centro de um projeto iluminista pelo conhecimento e pela emancipação humana. Ele
convidava, por vezes de forma insistente, à reflexão, em um momento histórico em que
se pensar fora dos enquadres da igreja e do Estado era proibido. Uma breve análise da
macroestrutura do livro mostra que os domínios mais sobressalentes são justamente
aqueles da religião, da democracia e política, implicando num interesse confesso pela
emancipação humanista. Ademais, Voltaire apresenta uma atitude muito natural frente à
homossexualidade masculina, designando-a como “amor socrático” (2018, p. 67). O
dicionário de Voltaire, originalmente publicado como cartas à sociedade francesa do séc.
XVIII, é evidência empírica de que todo saber histórico e político “resulta a cada instante
de uma interação entre as tradições e o contexto” (AUROUX, 1992, p. 14). Ele também
permite marcar no curso da história o surgimento de um “desejo de saber tudo”
(ESTEVES, 2023) ou um desejo de aproximar o conhecimento do povo do qual as
enciclopédias e dicionários são materializações políticas.

3. G lossários e dicionários de filosofia como instrum ento de saturação de


referência e estabilização conceituai
“Para a história das representações linguísticas, o limiar da escrita é fundamental.”
(AUROUX, 1992, p. 18). Poderíamos dizer o mesmo sobre a história da filosofia? Qual
relevância a escrita teve para esse saber? Seria o advento da escrita uma forma de
filosofia? Ou seria a escrita a solução para uma questão filosófica? Ou só uma das
condições materiais para que essas questões se desenrolassem discursivamente? Este tipo
de questões nos coloca simultaneamente no campo da filosofia e da história das ideias

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linguísticas. Elas articulam um mundo de questionamentos que se abrem em mais


perguntas e em conhecimento histórico e filosófico sobre língua. Ademais, este tipo de
questão tenho pensado na tentativa de tomar os dicionários e glossários filosóficos como
instrumentos linguísticos - ou, como proponho artefatos culturais filosóficos. No entanto,
penso que artefatos não bastam como explicação pois os glossários filosóficos têm uma
dimensão de fato instrumental. Então, como que tipo de instrumentos poderiam ser
pensados os glossários filosóficos? Nessa seção, pretendo convencer quem me lê de que
tratamos de instrumentos de estabilização conceituai e instrumentos de saturação
referencial.
Em obras filosóficas - e mesmo as teóricas - que apresentam um glossário, eles
são apresentados como um compêndio. Hora mantido intocado, hora considerado parte
integrante da experiência de filosofar. Frequentemente, além de um artefato cultural-
filosófico, os glossários são instrumentos educacionais. Com razão, essa parece ser sua
dimensão mais evidente: ajudam a explicar, esclarecer, evidenciar, apontar, tornar clara
uma referência abstrata. Contudo, a hipótese em que me empenho nesse texto sugere que
dentro da escrita filosófica, os glossários podem funcionar como instrumento de
saturação da referência intradiscursiva. A saturação referencial depende obviamente do
processo de significação (filosofês) ou da produção de sentido (termo preferido pela HIL),
empreendida no discurso pelos processos catafóricos e anafóricos de referenciação.
Assim, os sentidos possíveis que espreitam o texto dependem, em parte, da forma como
as referências são construídas textualmente. Glossários que acompanham obras
filosóficas parecem transcender a estabilização momentânea da relação entre significado
e significante para operar também como um instrumento responsável pela construção da
referenciação na narrativa filosófica, permitindo que a dança entre conceitos e sentido
seja costurada de forma mais ou menos estável.
Em decorrência do exposto, penso glossário como tecnologia de estabilização
conceitual para a produção discursiva de saturação referencial durante narrativas
complexas (como no caso da filosofia ou de investidas teóricas). Isso significa que
dicionários e glossários ajudam a saturar a referência da malha anafórica-catafórica
construída no texto, inaugurando novos sentidos e estabilizando possibilidades de
significação, não apenas compondo “um arquivo de língua” (MEDEIROS, 2020, p. 112),
mas esboçando um gesto filosófico em si mesmo. Se considerarmos que “o que aparece
em primeiro lugar são listas de palavras.” (AUROUX, 1992, p. 22) ou seja, nos registros

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mais primórdios do conhecimento filosófico e metalinguístico jazem os proto-glossários,


podemos considerar que a filosofia também se faz na saturação referencial. Assim, listas
de palavras são instrumentos pragmaticamente e contextualmente imbricadas em práticas
de conhecer e referir. A filosofia ontológica começa com listas de palavras para responder
questões como: (o que é isto?) (O que é o ente?) (HEIDEGGER, 2018[1956]). Vejam
como essas são questões acerca da saturação referencial!
Um glossário filosófico específico com que gostaria de esboçar uma ilustração
para o argumento de que dicionários e glossários dentro de obras filosóficas são
instrumento de saturação de referência e estabilização conceitual, é o conjunto de
definições conceituais, proposições, axiomas e redescrições textuais empregados por
Espinosa na Ética (2009 [1677]). O método euclidiano da escrita da Ética de Espinosa
prevê que cada capítulo seja iniciado por uma lista de axiomas e por uma lista de
definições. Nas palavras de Althusser “a estratégia filosófica de Espinosa é radical e de
uma extrema complexidade.”, especialmente se considerarmos “a massa de conceitos que
são trabalhados na Ética” (2005 [1982], p. 16). Além de uma malha conceitual específica,
a Ética de Spinoza também se dedica a descrição glossárica dos sentimentos - ou afetos
como sugere o autor - para fomentar um projeto de libertação humana das paixões.
Embora eu deseje descrever os glossários espinosanos em outra ocasião mais
detidamente, sua configuração aponta para a necessidade de estabilizar o sentido para
uma pesquisa filosófica, para o qual estes glossários trabalham. Essa obra também
permite perceber como conhecer as definições é indispensável para a construção das
referências e para o funcionamento da “progressão referencial” dentro do texto. Vale
notar que as definições sugeridas no início do capítulo raramente são absolutas. Ao
contrário, são retomadas, retrabalhadas e possuem seu sentido expandido ou limitado ao
longo da narrativa filosófica, permitindo um movimento constante de estabilização e
desestabilização típicas do gesto de leitura. A saturação referencial é essencial para que
um texto surta efeitos, e a glossarização é essencial para a saturação, pois “como a língua
está sempre aberta a pontos de deriva, nenhuma metalinguagem conseguirá descrever, de
uma vez por todas, o que é a língua.” (FERREIRA, 2020, p. 95).

4. Instrum entos linguísticos, objetos linguísticos e artefatos culturais filosóficos


Sylvain Auroux (1992) define a gramatização como o processo de
instrumentalização da língua por meio de duas tecnologias, a gramática e o dicionário,

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ressaltando a relevância cultural, política e filosófica (sim, a gramática é fruto de um gesto


filosófico) de tais tecnologias e seu entelhamento com a sociedade. Tal entelhamento
social sugere que instrumentos técnicos, linguísticos ou não, são políticos: são artefatos
simbólicos vivos constituídos pela história e dela constitutivos: não são neutros, mas
ideológicos e possuem agendas políticas e econômicas, muitas vezes ocultas ou não
tangenciáveis.
Nesse primeiro parágrafo, quem me lê é levado a considerar a relação sinonímia
entre instrumentos e artefatos. Com razão, Ferreira (2020) explica que no campo da HIL
sinonimizar artefato com instrumentos linguísticos tem sido estratégia teórica corrente, já
que o próprio Auroux (1992) emprega essa sinonímia. Embora instrumentos, ferramentas
e artefatos sejam empregados como sinônimos, seu funcionamento social, discursivo e
epistêmico é diferente. E assinalar essa diferença se torna gesto essencial para justificar a
sugestão da substituição de instrumentos linguísticos por artefatos culturais filosóficos,
no que diz respeito ao olhar que lanço a dicionários filosóficos e glossários em filosofias.
Do objeto para o instrumento há um giro conceitual: o primeiro se refere a algo que nos
circunda e que é de natureza diferente da nossa. Não é estranho ou surpreendente, mas se
diferencia de nós. O segundo se refere a uma tecnologia, uma ferramenta funcional,
caracterizado pela “sua utilidade imediata ou segundo a sua durabilidade ou persistência”
(LEMOS, 1987, p. 12). Do instrumento para o artefato há mais uma mudança conceitual
que parece envolver uma qualidade histórica e transcultural, já que o artefato tem valor
antropológico técnico e estético, pois além de uma funcionalidade, ele também possui
alguma função apreciativa na história e memória social.
Artefatos culturais filosóficos (como dicionários de filosofia) em sinonímia com
instrumentos linguísticos (gramáticas e dicionários) são tomados como tecnologias de
produção de conhecimento. Com razão, a proposta de que o artefato incide na práxis
científica (ORLANDI, 2003) foi o mote e motivação para a organização do livro Artefatos
de leitura (DIAS; COSTA; BARBAI, 2020), o qual celebra o pressuposto de que os
artefatos são partes essenciais do processo de produção de ciência. Com razão, artefatos
são importantes objetos na mediação de transmissão de conhecimento (SOUSA, 2009).
Para Orlandi (2020), o sentido da mediação na construção de um acontecimento científico
é o que define um artefato. Ao pensar a construção de artefatos que produzimos em nossos
projetos de pesquisa, Orlandi define, na nota 7, o que entende por artefato: “objeto de
conhecimento fabricado teoricamente, produto de um processo de pesquisa de natureza

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variada, que faz parte de uma reflexão” (2020, p.22). No mesmo volume, Nunes (2020)
foca nos artefatos de análise, diferenciando nossos instrumentos teórico-analíticos de
artefatos artísticos e culturais propriamente ditos. O gesto de Nunes é relevante para
denotar outros sentidos de artefato que são feitos ausência quando o tomamos como
sinônimos de tecnologia e quando o tomamos como instrumentos de produção científica.
Miller (2012) também se interessa em discutir a diferença entre tecnologia e
artefato, mas por uma perspectiva antropológica: “Nas atividades dos nossos “atores”
humanos no seu palco, visando a um fim, o artefato é um mediador na relação entre o
homem (ou homens) em ação e o objeto ou fenômeno tratado, podendo ser este a natureza
ou mesmo outro ser humano.” (MILLER, 2012, p. 93). Ou até a língua, detalhe que escapa
a alguns antropólogos. Ele também sugere que há artefatos reconhecidos
transculturalmente (martelo, faca) enquanto outros não são (distintivo policial ou um
mouse de computador). Embora questões linguísticas possam se fazer ausência para
pesquisas que pensam artefatos antropológicos, estas são relevantes para tocar uma aura
mágica e mística que os artefatos podem sustentar culturalmente, e, assim, extrapolar sua
funcionalidade técnica para se inflar de significado social, histórico e conativo, que os
fazem ocupar espaço especial nos lugares da memória. Afinal de contas, eles compõem
um patrimônio cultural e afetivo. Assim, os artefatos rompem a efemeridade do tempo e
tornam-se representações de algo que está ausente como uma cultura, um afeto, uma
prática social, uma lembrança. Ao se abrigar no próprio tempo, eles consistem em um
testemunho material de uma determinada sociedade ao retratar modos de vida e revelar
múltiplas expressões culturais (VELTHEM, 1998). Assim penso os dicionários de
filosofia. Para Ferreira, todo artefato é lido culturalmente, portanto, “qualquer 9 construção
humana é passível de se tornar objeto de estudo enquanto um artefato” (FERREIRA,
2020, p. 85).
Tendo em vista a discussão proposta, entendo os dicionários filosóficos e
glossários em filosofia como artefatos culturais filosóficos, tomados simultaneamente
como instrumentos linguísticos e de produção de saber e que possuem para determinada
cultura valor técnico, simbólico e mítico. Um artefato possui laços afetivos e de memória

9 Para Ferreira a “p ágina em branco é n o sso artefato fundador” (2 0 2 0 , p. 100) num m ovim ento sim b ólico
que produz artefatos ao infinito. E m seu gesto de dramatizar o artefato co m o m anifestação sim b ólica, o
artefato se dilui em seu texto. A o ser considerado toda tec n o lo g ia que produz efe ito s sim b ólicos, ela
em preende u m m ovim ento filo só fic o que rem ete à É tica de S p in o za na indiferenciação da substância.

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e - independentemente de como lido - fornece uma narrativa cultural e histórica, na qual


eles intervêm, não como um instrumento linguístico que ao pretender descrever a língua
a altera, mas como uma “forma de vida” (WITTGENSTEIN, 2020[1953]) que na língua
se inscreve.

Considerações Finais
O interesse conceitual é a encruzilhada onde filosofia da linguagem e história das
ideias linguísticas podem se cruzar. Essa intersecção foi explorada aqui para sugerir mais
um caminho de produzir conhecimento em HIL ou apenas de se manter filosoficamente
confortável com o ato de questionar, mesmo que ele não vislumbre uma verdade. Uma
das questões que me propus a responder é se ao nos interessar por este tipo de artefatos -
os dicionários de filosofia e os glossários em obras filosóficas - estaríamos fazendo
filosofia ou história das ideias linguísticas? Penso que os dois! Estaríamos, ademais,
aceitando o convite de Auroux de pensar a história das ideias linguísticas sobretudo por
seus aspectos filosóficos.
Como sugerido aqui, dicionários de filosofia e glossários filosóficos são artefatos
culturais, que, apesar da mais aparente função explicativa como compêndio da filosofia,
são eles mesmos a filosofia a ser feita em forma de artefatos glossáricos. Também foram
sugeridos alguns pontos de contraste entre os dicionários de língua e dicionários
filosóficos, como a pretendida completude da língua vs a incompletude típica do sentido
filosófico e como a incidência performativa dos dicionários: os de língua produzem
linguagem, os filosóficos produzem filosofia. Ademais, dicionários de filosofia e
glossários filosóficos também possuem uma função de saturação referencial de textos
complexos e atuam como estabilizadores conceituais durante a prática de filosofar. Aos
dicionários de filosofia e glossários em textos filosóficos falta uma comunicação com a
dimensão gramática da língua, nomeadamente uma microestrutura; neles, as entradas são
normalmente substantivos e sem informação gramatical alguma. Isso pode indicar que a
filosofia assume que seu leitor possua algum - com algum, quero dizer elevado -
conhecimento metalinguístico, ou ainda que o ensino da língua não é seu objetivo como
artefato cultural filosófico. Pois a filosofia pressupõe a linguagem. Porque então, não
pressupor à linguagem algum “philein tó sóphon” (HEIDEGGER, 2018[1956], p. 22),
uma aspiração pelo sóphon, um desejo de conhecer, alguma filosofia própria?

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C am in h ar entre listas: bibliotecas como espaços de instrum entação linguística 1


W alking through lists: libraries as linguistic instrum entation spaces

Phellipe Marcel da Silva Esteves


Universidade Federal Fluminense

Gustavo José Pinheiro


Universidade Federal Fluminense

Resumo: Neste artigo, atravessados pela Análise do Discurso materialista e pela História das
Ideias Linguísticas - com o propósito da construção colaborativa do projeto de pesquisa que
temos chamado de História Discursiva dos Livros -, pretendemos refletir sobre as bibliotecas não
apenas como instituições, mas como espaços em que potencialmente se dá instrumentação
linguística, aproximando-as a artefatos como gramáticas, dicionários, livros didáticos de
língua(s). Para isso, recorremos a análises (a) do discurso enciclopédico sobre a categorização do
conhecimento humano; (b) da Classificação Decimal de Dewey (CDD) como um dos principais
métodos (obrigatórios, em certos casos) para a catalogação de livros, levando a uma codificação
numérica na ficha catalográfica das publicações e a uma organização específica no espaço das
bibliotecas; (c) do lugar físico e concreto de bibliotecas variadas, com registro fotográfico mas
também da memória. Com isso, o estudo em tela se coloca como uma tentativa de contribuir para
se pensar de modo mais amplo em formas de materialização de instrumentos linguísticos, na
relação que estabelecem com a divisão do espaço institucional (urbano?) e, por que não, com o
próprio corpo.
Palavras-chave: bibliotecas; instrumentos linguísticos; instituições; discurso

Abstract: In this article, crossed by materialistic Discourse Analysis and by History of Linguistic
Ideias - intending to collaboratively build a research project known as Discursive History of
Books -, we intend to reflect upon libraries not only as institutions but as spaces of potential
linguistic instrumentation, bringing them closer to artefacts such as grammar books, dictionaries,
language(s) textbooks. To do so, we analyse (a) the encyclopedic discourse over human
knowledge categorization; (b) Dewey Decimal Classification as one of the main (sometimes
mandatory) methods of book cataloguing, which leads to a numeric codification at the
catalographic card of publishing objects and to a specific organization of libraries; (c) the concrete
physical place of a variety of libraries, with photo registers and also remarks of memory. Thus,
this investigation organizes itself as an attempt to contribute to think beyond the types of
materializing linguistic instruments, in the relation stablished with the division of institutional
(urban?) space and, why not, with body itself.
Keywords: libraries; linguistic instruments; institutions; discourse

Subm etido em 28 de julho de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

1 A gradecem os ao am igo José E dicarlos de A quino p ela leitura generosa, apaixonada, ácida e enriquecedora
deste artigo. S em o d iá lo g o que nutrim os ao lo n g o d os anos, este texto não existiria.

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O esp aço é a m atéria trabalhada por excelên cia . N en h u m dos ob jetos so cia is tem um a
tam anha im p osição sobre o h om em , nenhum está tão presente no cotidiano dos
indivíduos. A casa, o lugar de trabalho, o s p ontos de encontro, o s cam in hos que u nem
e sse s p ontos são igualm ente elem en to s p a ssiv o s que con d icion am a atividade dos
h om ens e com andam a prática social. A práxis, ingrediente fundam ental da
transform ação da natureza hum ana, é um dado so c io ec o n ô m ic o , m as é tam bém
tributária d os im perativos espaciais. (S A N T O S , 2 0 1 4 [1977], p. 34)
O erro de catalogação se traduzia, de fato, num a arrumação errônea do rolo num a
estante on de não tinha seu lugar. (JA C O B , 2 0 0 9 [2000], p. 59)

Introdução
Trafegando de um lugar a outro, os sujeitos se dividem, se reproduzem, se
transformam no espaço. Sendo as línguas as bases materiais dos processos discursivos,
elas também se desenrolam no espaço: de modo especializado, recortado, repleto de
injunções e determinantes. Embora não seja uma constante em Análise do Discurso e em
História das Ideias Linguísticas - a não ser numa leitura por vezes fenomenológica das
condições sócio-históricas de produção - , reconhecemos neste artigo a necessidade de
discutir as bibliotecas como componente do espaço urbano, uma vez que, segundo Santos
(2 0 1 4 ), esses lugares são partícipes da divisão de trabalho - nacional e internacional. Mais
do que parte do espaço urbano, as pensamos propriamente como um dos espaços da
cidade, na forma de uma instituição que, em sua prática discursiva, contribui para a
divisão, sobretudo internacional, do trabalho. Como os exemplos citados pelo eminente
geógrafo - casa e local de trabalho - , as bibliotecas também cumprem e operam uma
função na formação social capitalista e no asseguramento de seu modo de produção.
Nosso ponto de discordância do autor é quando ele qualifica tais “pontos” como
“elementos passivos” das atividades do homem. Ora, se, em suas palavras, eles
“comandam a prática social”, nada têm de passivos: são materialidades que, como outras,
registram em seus cantos, suas bordas, suas retas, suas curvas, seus buracos, suas
elevações - em tudo que compõe forma-substância de tais “pontos” - modos de fazer,
formas de ser, ordens, instruções e pedidos2. Se há, e há, atos de fala do ponto de vista
pragmático e sociointeracional (BRONCKART, 2008) - em diversas perspectivas que

2 Sobre essa questão, p roblem atizam os essa id eia de “p assivid ad e”, a qual n egam os, e p en sam os se tratar
m ais de sutileza, de funcion am en to velad o. N o s aproxim am os de Orlandi (2 0 0 2 , p. 95) ao d efender que há
“p rocessos institu cionais m en os ev id en tes” ao tratar de p o lítica linguística. C om isso , n os aproxim am os do
entendim ento de u m a prática, seja ela lin gu ística ou não, que existe, m as é m en os evid en te, e que nada tem
de passiva. C om o d efen d em os, se com an dam a prática social, então é atividade.

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consideram os gestos linguageiros desde substitutos dos atos não linguísticos até aquelas
que fundem as práticas - , não deixa de haver também atos nos objetos, pontos e lugares
e espaços, uma vez que neles se inscrevem discursos que se efetivam dos e nos sujeitos.
E é justamente a partir da característica das bibliotecas enquanto instituições plenas de
discurso que prosseguimos, sem necessidade de dar respostas, mas formulando caminhos
para pensá-las como espaços de instrumentação linguística.

Saberes nas instituições


Já faz 33 anos, Sylvain Auroux nos deixou questões que, embora contemporâneas,
já carecem de necessidade de alguma atualização:

A verdadeira questão - h oje - não se resum e à op o siçã o abstrata entre literatura e


ciên cia, m as a algo com o: “de que m odo as in stitu ições estéticas se constituíram para
que p u d essem cum prir fu n çõ es d iferentes das que ocupam as in stitu ições
cien tíficas?”, o u ainda “c o m o a a tiv id a d e in te le c tu a l d os h o m e n s p ô d e se d iv id ir
e n tr e a b ib lio te c a do le tr a d o e o la b o r a tó r io do c ie n tista /sá b io ? ” . (A U R O U X ,
1990, p. 110; tradução e negrito n o sso s)3

Da perspectiva de que falamos, do projeto História Discursiva dos Livros - que


trabalha no encontro da Análise do Discurso materialista, da História das Ideias
Linguísticas e da História do Livro, entre outras áreas afins, como, no caso deste trabalho,
a Biblioteconomia - , nessas duas questões, que implicam uma separação na produção de
conhecimento no que diz respeito às instituições em que as posições-sujeito intelectuais
(a saber: cientistas x letrados/literários/literatos) atuam, há algo mais do que tão somente
o institucional, embora o institucional também importe, uma vez que

A firm ar que as in stitu ições fu n cion am co m o o s fio s de u m a m arionete ou o esqu eleto


de u m corpo - suas tramas dão sustentação à v id a - interessa-nos esp ecialm en te por
contestar um a ló g ica de eq u ivalên cias entre instituição/exterior-subjetividade/interior.
(D E U S D A R Á & R O C H A , 2 0 2 1 , p. 178)

Ou seja, a conceituação de instituição como algo assemelhado - e integrado - ao


corpo (humano) evita que a interpretemos como da ordem do tão somente exterior. As
instituições, de língua, atuam... também na língua.

3 N o original: L a vraie q u estion - aujourd’hui - ce n ’est pas l ’op p osition abstraite entre littérature et scien ce,
m ais quelque ch o se com m e : « com m en t les institutions esthétiques so n t-elles ain si con stitu ées q u ’elles
p uissen t accom plir d es fo n ctio n s différen tes de c e lle s que rem plisssen t le s institutions scien tifiq u es ? », ou
encore « com m en t l ’activité in tellectu elle des h om m es a -t-elle pu se répartir entre la biblioth èq ue du lettré
et le laboratoire du savant ? ». (A U R O U X , 1990, p. 110)

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Todo o processo de constituição de conhecimento das duas posições acima


(cientistas x letrados) passaria, portanto, por uma preocupação provinda da memória
discursiva :4 satisfazer às categorias, ao maquinário, às práticas, às contradições, às
reproduções-transformações, à boca-pequena e à boca-grande que caracterizam
historicamente, por um lado, o laboratório do cientista (das ditas ciências naturais e da
vida) e, por outro, a biblioteca do letrado (das ciências e disciplinas que trabalham com
arquivos, com leituras autorais etc.). Diferentes lugares de práticas de trabalho de
produção de conhecimento. Trata-se de uma divisão que, para Auroux, encena um
diferente jogo de funções entre as “instituições estéticas” e as “instituições científicas” .
Tais questões colocadas pelo filósofo da linguagem fazem ressoar, quase de imediato, o
texto “Ler o arquivo hoje”, de Michel Pêcheux. Destacamos a seguinte passagem, em que
o analista do discurso deixa também outras questões ácidas às já referidas posições-
sujeito:

(...) aos “literatos” : v o c ê s acreditam p oder ficar a ssim à distância da adversidade que
am eaça historicam ente a m em ória e o pensam ento? (...) aos “cien tistas” : v o c ê s, a
quem cham am de fabricantes-utilizadores de instrum entos, v o c ê s acreditam poder
ainda por m uito tem po escapar à questão de saber para que v o c ê s servem e quem os
utiliza? (PÊ C H E U X , 1994 [1 982], p. 56)

Trata-se não apenas de uma questão de militância - fazer intervir o ideológico no


científico e na produção de conhecimento de modo geral - , mas propriamente de fazer
epistemologia sem abrir mão do político (e) das línguas - justamente porque o ideológico
já intervém no, e diríamos que sobrevém ao, político. Para ajudarmos a responder a essas
questões, propomo-nos a tratar de um dos polos da divisão: os literatos/letrados. E, nesse
polo, a ancoragem institucional de que fala Auroux: as bibliotecas. E, nas bibliotecas,
uma possível constituição material sua enquanto instrumento linguístico ou espaço de
instrumentação linguística. Trata-se de uma proposta exploratória: a de pensar uma
instituição como instrument(açã)o.
Deixemo-nos iluminar, antes de qualquer coisa, pela distinção que os autores a
seguir fazem entre o uso da mão como instrumento, o uso de um instrumento feito pela
mão e as consequências de tal mediação:

U tilizar sua m ão co m o u m instrumento não é a m esm a co isa que m anipular um


instrum ento fabricado p ela mão: u m instrum ento “p rolonga a m ão”, m as em outro
registro que não esse (não um registro b io fisio ló g ic o , m as tecnocultural e só c io -

4 E sse co m p lex o de ancoragem pretérita e p otencialidade futura do d izer cien tífico e letrado.

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histórico). § O instrum ento está “à d isp o siçã o ” do corpo: ele não é o corpo, ele não é,
sobretudo, o meu corpo. (...) ele é u m a mediação à d isp osição de todo corpo
estruturado com o o m eu, entre o m undo “tal com o ele é” e o corpo “qualquer” . (...)
elas não d eixam de ser as próteses da expertise hum ana que transformam esta últim a
ao menos enquanto elas a refletem .” (C O L O M B A T , F O U R N IE R , P U E C H , 2 0 1 7
[2 010], p. 5 8-59; 6 0 -6 1 )

Não é possível tratarmos, então, de outro modo. É necessário abordar como nossos
corpos se relacionam com os instrumentos, uma vez que, como propõem os autores, uma
coisa é se valer do próprio corpo como instrumento, outra coisa é manipular um
instrumento que está disponível ao corpo. Por isso, no título deste artigo, recorremos ao
verbo “caminhar”, refletindo sobre como um espaço onde se pisa pode entrar em relação
com os corpos de forma a instrumentar um saber linguístico. Enquanto guiamos nossos
passos por portas, estantes, prateleiras, etiquetas e fichas com palavras que peneiram e
afunilam nossa busca por conhecimento, esses significantes que se presentificam
prolongam nossos saberes sobre a língua? Para a discussão aqui ensejada, iniciaremos
nossas análises com o gesto de entrada numa biblioteca: um objeto apreensível pelo corpo
e/ou um espaço preenchido pelo corpo?

Bibliotecas
Gostaríamos de propor inicialmente uma reflexão sobre as categorias de objeto
(técnico), instituição, espaço, aparelho (ideológico) e instrumento, sempre tendo em vista
a metáfora da máquina. Se as instituições representam, no sentido althusseriano, os
aparelhos ideológicos de Estado em nível empírico, podemos pensar que cabe a elas
mobilizar as ideias práticas e as práticas de ideias. Assim, elas não se distanciam muito
do que consideramos ser um instrumento no sentido de que elas prolongam a inteligência
e as ideias, de modo a se retroalimentarem das demais práticas: uma instituição produz
sentidos sobre as práticas humanas prescindindo da presença dos corpos humanos em
interação, e as práticas humanas alteram as instituições com a presença de seus corpos.
O que distancia, então, uma instituição de um instrumento? Parece-nos que a
resposta não pode ser outra que não a própria relação com o corpo humano. À medida
que um instrumento se põe objeto acessível aos sentidos e às pseudopercepções - algo
como um martelo, uma furadeira, um dicionário, uma gramática, um automóvel, uma
cadeira de rodas, um carrinho de bebê -; uma instituição se apresenta como um espaço
que não se move ante a manipulação de um órgão do corpo ou do esforço sinergético,

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embora permita o acesso de corpos. Mesmo assim, as instituições guardam efeitos de


instrumentação e de trabalho tecnológico, o que pretendemos mostrar neste artigo.
Como nosso panorama se inclina sobre a instrumentação linguística
contemporânea, estamos propondo que bibliotecas se inscrevem nesse modelo de
instituições que alargam a inteligência produzindo, com a própria língua (materializada
em portas, estantes, prateleiras, etiquetas e fichas), efeitos nas evidências sobre as línguas
e suas práticas. Tomemos uma evidência: que em determinados espaços é necessário
silenciar. Um deles é a biblioteca, porque parece - apenas parece - óbvio que a leitura
individual deva ser silenciosa. Entretanto, essa evidência muito contemporânea, e que é
extensão da inteligência, culmina apenas com a universalização da alfabetização, uma vez
que “A exigência de silêncio nas bibliotecas teria sido impossível e até inimaginável”
(BURKE, 2003 [2000], p. 56) na Idade Moderna, auge da multiplicação dessas
instituições. Assim, são diversas as formas pelas quais as bibliotecas ,5 hoje, produzem
essa evidência sobre a língua, que se torna uma prática linguística. Vejamos:

F ig u r a 1 : S D 1 - P la c a e m b ib lio t e c a m u n ic ip a l d a c id a d e d o R io d e J a n e ir o . F o n te : a u t o r ia p r ó p r ia .

Na Figura 1, nossa sequência discursiva 1, vemos uma placa de porta que ressoa
discursivamente o tipo de placa utilizado em portas de hotel, que materializa os mesmos

5 V ale apontarm os que essa ev id ên cia do silên cio não aparecerá de m odo u niversal em b ib liotecas (assim
com o em esco la s e hospitais), m as é universalizada: é sentido dom inante, im aginário construído sobre o
esp aço. Q uando lidam os co m b ib liotecas m en ores, co m o m unicipais ou de bairros, o silên cio n em sem pre
será m antido, ou seja, são outros sentidos em circulação sobre e nas b ib liotecas, co m o (n)as salas infantis
e salas de leitura de escolas. A in d a assim , há u m “m odo de fazer” em circulação n esses espaços: cab e aos
sujeitos profission ais de b ib liotecas solicitar o silên cio ou autorizar a fala.

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significantes no imperativo: “Não perturbe” . Entretanto, no caso dessa placa, a


perturbação não é do tipo que poderia interromper o sono, o descanso, uma refeição, uma
relação sexual..., mas uma que interrompe a leitura. A placa, distribuída por uma editora
(Valentina) a diversas bibliotecas públicas, adiciona ao imperativo uma oração em
primeira pessoa: “Estou lendo” . Tal acréscimo torna as duas orações coordenadas e
produz uma correlação causal: “Não perturbe porque estou lendo”. A placa, pendurada
nas portas de salas de leitura, produz o efeito de simular a voz do leitor. Ele não fala: fala-
se por ele. E a leitura passa a ser compreendida como a única atividade a ser realizada em
bibliotecas. Essa prática “boba” da plaquinha só faz reproduzir um certo imaginário sobre
a biblioteca: além de ser vista como espaço de (guardar) livro, também fica como espaço
(só) de leitura. Um espaço que produz evidências sobre o uso linguístico dos corpos.
Perguntamo-nos, sob o risco de não podermos responder: que modalidade de censura
(ORLANDI, 2007 [1992]) vemos aqui? Mesmo sem elementos para elaborar uma
resposta, jaz como primeira variável neste trabalho uma evidência linguística nesses
espaços em que o corpo do sujeito consulente entra: não se pode falar. Deve-se sentar ou
caminhar em silêncio, obedecendo a uma ordem de leitura própria. Há, nesse espaço da
biblioteca, portanto, um modo de circular que determina a produção de sentidos nele.
Ao sujeito consulente cabe, em certos casos, solicitar ajuda ao sujeito profissional
de biblioteca - e aqui escolhemos dar visibilidade à escassez de bibliotecários nas
pequenas bibliotecas brasileiras - , em busca de “títulos”, “autores” ou “assuntos” . Esses
são os três índices que se imprimem por todo lugar nas mais diversas bibliotecas: dos
arquivos com fichas de busca aos acervos digitalizados às bocas dos sujeitos profissionais
de biblioteca. Em outros casos, o sujeito consulente tem autonomia para andar pelos
corredores, deparando-se com estantes eventualmente com adesivos colados, indicando
temáticas gerais, e quase sempre com lombadas de livros dotadas de códigos de
localização. Não raro, há uma espécie de mapa ou legenda nas estantes, indicando que os
códigos tais levam às temáticas quais. Observem-se como exemplos as Figuras 2 e 3:

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F ig u r a 2 : S D 2 -E s ta n te d e b ib lio t e c a m u n ic ip a l c o m a d e s iv o te m á tic o : “ R E F E R E N C IA IN F A N T IL ".

F o n te : a u t o r ia p r ó p r ia .

F ig u r a 3 : S D 3 -L o m b a d a s d e liv r o s e m b ib lio t e c a m u n ic ip a l. F o n t e : a u t o r ia p r ó p r ia .

De imediato, superficialmente, podemos notar nas lombadas desses livros da SD3


uma falta de transparência, uma ilegibilidade para o sujeito consulente - para não
iniciados e até mesmo para muitos iniciados. Há um efeito de perder-se no mar de letras
e algarismos, de combinação aparentemente aleatória de elementos de escrita, que não
constituem exatamente uma escrita em língua alguma. Por outro lado, na SD2, com o
auxílio dos adesivos, já é possível traçar um mapa de caminhada. É nesse sentido que os
significantes presentes nos elementos espaciais das bibliotecas (portas, estantes,
prateleiras, etiquetas e fichas) vão prolongando o saber. Ao se enveredar por uma
prateleira X, entra-se num campo semântico de X. Ainda que “Referência” signifique
diferentemente nas mais diversas formações discursivas, sem muito apelo ao senso
comum, é um significante recorrente em bibliotecas, englobando manuais, guias de
viagem, dicionários, enciclopédias, obras cartográficas, gramáticas etc. Quando se lê
“Referência infantil” na prateleira e se olha para os títulos acima e abaixo dela - com
títulos como Minhas primeiras descobertas e Grande enciclopédia, entre outros -,

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produzem-se dois efeitos discursivos que contrariam os manuais de semântica: ( 1) os


saberes em enciclopédias e em livros de primeiras descobertas são ideias específicas
dentro do conjunto geral de ideias de referência (portanto, Referência infantil seria um
hiperônimo desses saberes) e/ou (2 ) os livros do tipo enciclopédia e primeiras descobertas
fariam parte do grande livro, ou mesmo da biblioteca, de Referência infantil (portanto,
Referência infantil seria um holônimo dos demais livros ).6 Mais um elemento linguístico
das bibliotecas, e que nos leva ao próximo: a organização dos livros segundo uma ordem.
Vamos às Figuras 4 a 9.

hom em que c a lc u la v a ,

LIP Brasil Cafalogação-na-íonir


Sindicato Nacional dos Editores de L kros. RJ M u

Tahan. Malba. 1895-1974


J B 869.3 TAH B 5.
TI M b O homem que calculava / Malba Tahan - Rio & 1 2 5 .0 0 0 .
53*cd Janeiro 53* ed - Record. 2001

(jlosí.áiiu
Apeodi e
i' iM i.^ u lm

I ficção brasileira, I, Título

CDI) - 869.93
CDU - 869 0:81 >•3

Copynght © 1990 by Rubens Sergi


de F a ria P e reira e Iv a n G il de M elU
1072 Verrtn «Jinu. Hatccl

UM V
D ire ito s c
desla cdicào reservados pcl
OS D B IM P R R N S A S.A
DIS1■RIBUIDORA RECORD DE SKRVK.U-
in a 171 2 0 9 2 1 -í« 0 R io d e ja n c ir o .
R u a AiRCJil

Figuras 6 e 7: SD5 - Ficha catalográfica e etiqueta de localização do livro O Brasil das placas
numa biblioteca municipal da cidade do Rio de Janeiro. Fonte: autoria própria.

6 E m outras teorias lin gu ísticas, p od er-se-ia falar de encapsulam ento sem ântico (LO PE S, 2 0 1 1 ), um a
categoria interessante do ponto de v ista d iscursivo. Entretanto, não estam os buscando um a tip o lo g ia aqui,
m as nos dedicando a mostrar a diversidade de rela çõ es sem ânticas p o ssív e is num a b iblioteca.

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Figuras 4 e 5: SD4 - Ficha catalográfica e etiqueta de localização do livro O homem que


calculava numa biblioteca municipal da cidade do Rio de Janeiro. Fonte: autoria própria.

Hugtisillon/Corbis/ Litmstock

Revisão
Canncn I. S. da Cosia
latir Pessoa

t£ U iO

Intrmacimuis dc í utjloçaçjlo nj Pubhtaçi


nara Ri.mlat.i do Livro, SP, Brasil)

Couto, M u
Cada liomcin 6 uma taça: contos / Mia
Pu i; Companhia das letras, 201^.

tsBN97845-359-2252-1
Cada h mem
Contov moçambicann» (ftitoigu ®1 a raça
litugo culeaiático:
naturamovautUcanacmpó

^ d i i r i t o t ' h . t j e d t ç l o i<-
phlium m.iiwahi ;/ s a
l("" Hu.kJí ,rj l-aului, 702, c, 12
*• 4)02 Ca.. I1•uiiln
Mlii ,.â sp
^ Ic ío u c (II) Y f {)7
' •*x (11)1707 -?5l)l

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Figuras 8 e 9: SD6 - Ficha catalográfica e etiqueta de localização do livro Cada homem é uma
raça numa biblioteca municipal da cidade do Rio de Janeiro. Fonte: autoria própria.

Nas bibliotecas que trabalham com esse tipo de codificação nas etiquetas, há
diversas formas de organização. Em coleções particulares (as “bibliotecas pessoais”),
existem classificações que vão de cor de capa de livro a ano de publicação a editora
publicadora, passando também por prenome, sobrenome e nacionalidade de autor. Na
maioria das bibliotecas públicas mundo afora, essa não é a “ordem” . Se nas estantes e
prateleiras há etiquetas temáticas, que levam a hiperônimos e holônimos, dentro delas há
um vasto território que sujeito profissional de biblioteca ou sujeito consulente precisam
desbravar, e que remonta a métodos de classificação cuja autoria não é - e também é,
paradoxalmente - de quem organiza a biblioteca no dia a dia. Ou seja: os códigos são
preexistentes. Observemos as Figuras 4, 6 e 8 , das SDs 4, 5 e 6 . Nelas, há pelo menos um
código numérico antecedido pela sigla CDD (Figuras 4, 6 e 8 ), mas também pelo CDU
(Figuras 4 e 6 ). Esse código, se bem observado, pode se sobrepor ao da etiqueta do livro.
Nesse sentido, SD4 e SD 6 “respeitam” e “obedecem”, total ou parcialmente, a CDD em
sua localização na biblioteca. A CDD da SD4 é 869.93, e sua etiqueta é J B869.3 TAH H
ex. 3. Obediência parcial. Apenas para tentar tornar essas relações numéricas um pouco
menos opacas, na Classificação Decimal de Dewey (CDD), de que falamos à frente, o
número 869 corresponde a L ite ra tu ra portuguesa. Já B869, a L ite ra tu ra brasileira (ou
seja: de um código numérico, deriva-se um alfanumérico que lhe dá uma especificidade),
e B869.93 significaria R om ance (L iteratu ra b rasileira - Rom ance) / C rônica, conto,
novela, cartas. Por outro lado, 869.3, sem letra que anteceda os números, quer dizer
Rom ance, dentro ainda de L ite ra tu ra portuguesa. Já a CDD da SD 6 é 869.3, e a etiqueta
do livro é M869.3 COU C. Obediência “total”, visto que a sequência numérica se manteve
igual, ainda que na catalogação a biblioteca transforme um código meramente numérico
em um alfanumérico e, com isso, lhe registre a especificidade da nacionalidade
moçambicana (atestada pela letra B). Entretanto, a CDD da SD5 é 398.969 (398 leva a
Folclore / A divinhações / Lendas), e a etiqueta leva a outro lugar (do conhecimento): R
302.230981 CAM B (302 correspondendo a In teração social). Não coincidências há.
Descompasso entre etiqueta e ficha. Um pé numa estante, outro noutra.
CDD, como dissemos, significa Classificação Decimal de Dewey, e CDU é
Classificação Decimal Universal. Trataremos delas nas seções a seguir, mas cabe
informar que, em suas fichas catalográficas (que devem obrigatoriamente ser feitas por

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bibliotecários, embora haja um descompasso entre a legislação e a prática), os livros


precisam ser classificados. Nas bibliotecas também, e se valendo do mesmo tipo de
código. Entretanto, quando o livro chega à instituição, ele precisa ser reacomodado no
sistema de conhecimentos local. Apenas para dar um exemplo: em geral, livros infantis
são classificados, em suas fichas catalográficas, com apenas um código. Em bibliotecas
infantis, em que a maioria dos títulos é justamente desse tipo de livro, como dar
especificidade a uma obra, se todas têm o mesmo código? É por isso que o sujeito
profissional de bibliotecas reclassifica a obra, segundo relatos que recebemos de
bibliotecas variadas. Andar nas bibliotecas, portanto, é um gesto acompanhado de um
trabalho intenso de confecção de uma árvore do conhecimento. É dar passos de uma
palavra a outra, de um substantivo que representa um mundo a adjetivos que transformam
esse mundo, numa pretensão de autoevidência: os códigos numéricos das fichas
catalográficas levam a códigos alfanuméricos nas etiquetas, que levam a palavras...
palavras que contam com o fato de seus sentidos serem autoevidentes. Observemos essa
confecção nas próximas seções.

Das listas de palavras nos papéis às palavras “ soltas” em portas e placas


Pensar as bibliotecas, assim como os arquivos, como discursos não é exatamente
uma novidade. Desde Pêcheux (1994 [1982]) já se pode vislumbrar essa interpretação. E
apenas para dar uma referência mais recente, podemos falar de Costa (2021), para quem,
sendo as bibliotecas instituições de memória,

(...) produzem discu rsos através de procedim entos de controle e delim itação dos
registros. Trata-se dos cham ados “ serviços téc n ic o s” ou “p rocedim entos internos”
q u e, por m eio de su cessivas op erações de cla ssifica çã o , arranjo, descrição,
catalogação, in d exação, distribuição e m uitas outras, selecio n a m o m aterial d igno de
ser guardado. (C O ST A , 2 0 2 1 , p. 190)

Assentimos tais palavras, sobretudo por aceitarmos que é justamente sob a rubrica
de “serviços técnicos” que a naturalização dos sentidos se dá de modo a mais apagar os
processos autorais e ideológicos. Prescindindo então de teorizar nesse direção, tentamos
questionar uma certa evidência de sentido que, ao tratar as bibliotecas como instituições
- e o são, mas tal rótulo homogeneíza seu funcionamento - , apaga-se um possível
funcionamento seu: o de instrumentos linguísticos... e instrumentos linguísticos que vão

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conformando o que são as chamadas “atividades intelectuais letradas”, nas palavras de


Auroux, ou as posições típicas da “cultura literária”, nas palavras de Pêcheux.
Permitamo-nos um breve desvio apenas para situar o lugar do livro na
classificação, avaliação e divulgação geral do conhecimento humano. A publicação por
meio de artigos científicos em periódicos é algo relativamente novo, e contemporâneo,
nessa posição-sujeito letrada, que subsume os discursos produzidos pelas ciências ditas
humanas, sociais, das línguas e literaturas, das artes. Os primeiros periódicos a publicar
ensaios científicos são o francês Journal des Savants e o inglês Philosophical
Transactions, ambos de 1665. Ambos recebem produções das ciências naturais e da vida.
Assim, o objeto livro é que é destinado, embora não exclusivamente, prioritariamente à
posição-sujeito letrada. O objeto de materialização da produção de conhecimento. E
também o objeto em que a pesquisa é feita, numa retroalimentação. Publica-se o livro,
que é catalogado de antemão pela posição-sujeito bibliotecário e, a posteriori, pelas
bibliotecas. Recorre-se ao livro, já catalogado nas bibliotecas, para se fazer a pesquisa.
Nesse circuito, é necessário catalogar para as bibliotecas. Não para o mundo. E
catalogar é inserir num sistema de classificações. Como vimos na seção anterior, nessas
instituições, é importante encontrar itens de identificação de objeto numa lista de nomes.
Sabidamente, os sistemas de classificação utilizados para tal, em todo o mundo, são a
Classificação Decimal Dewey e a Classificação Decimal Universal, decorrente dela.
Listas. E é daí que partimos para dizer que, em bibliotecas, caminhamos por listas de
palavras.
As listas de palavras são dos primeiros instrumentos linguísticos a surgirem no
espaço discursivo das línguas escritas:

A lex ico g ra fia - ela corresponde a u m te x to d isp o sto se g u n d o u m a c e r ta o rd em


d a d a às p a la v r a s - se constituiu inicialm en te segundo o s segu in tes eixos: § a. L ista s
te m á tic a s d e v o c a b u lá r io (que passam de língu a a língua; cf. Sidarus, 1990 sobre
listas e g íp c ia s), que p o d em ser reduzidas a um a p rofissão (m edicin a) ou a u m setor só
da realidade (as plantas, as armas etc .). E sses tipos de listas con stituem sem dúvida os
m ais antigos instrum entos p ed a g ó g ico s da hum anidade. E la s p o d e m e x istir a n te s d a
e s c r ita e , se n ã o têm o r ig in a r ia m e n te u m a v o c a ç ã o lin g u ístic a , a d q u ir e m -n a
fa c ilm e n te . (...) b . E m um a língua dada, listas de palavras antigas e d ifíceis, de
h om ôn im os, de sin ônim os, d icionários de rimas, lé x ic o de u m autor etc. (...) c.
G lossários in dependentes alfabéticos m on o-, b i- ou n- língu es. (A U R O U X , 1992, p.
71; negritos n o sso s)

Quando um texto sugere uma certa ordem dada a palavras de um determinado


campo, ele está não apenas fazendo um ordenamento linguístico, mas um ordenamento
da ordem das coisas e dos conhecimentos. Auroux (2008) mostra também como a adoção

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por ordem alfabética em dicionários e, posteriormente, enciclopédias, é uma tentativa de


arrazoar arbitrariamente essa organização.

R om p en do a ordem unilinear do tratado para estab elecer a ordem m ultidim ensional


do dicionário alfabético, D id erot escap a da tarefa fastid iosa de enumerar, sem
o m issõ e s, o s lugares do saber, e sobretudo do fecham en to ilusório que dá a K ant a
dedução transcendental das categorias. O sistem a de rem issões, em sintonia co m a
h ip ótese de um a continuidade na ordem do saber, assegura que o que a en ciclop éd ia
reúne será ao m esm o tem po su ficien te e não supérfluo. (A U R O U X , 2 0 1 8 [1990], p.
2 0 2 ; tradução n ossa)

Ilusoriamente. Entretanto, listas podem se inscrever em funcionamentos


específicos, que, segundo o modo de produção, a historicidade, não podem adotar a
arbitrariedade. É o caso, contemporaneamente, de uma lista de compras de supermercado.
Mas também de uma lista de itens entregues a uma obra de construção civil e enumerados
pelo apontador. De vacinas entregues pelas Forças Armadas ao Sistema Único de Saúde.
A ordem alfabética não funciona aí. E também parece não funcionar nas bibliotecas, ao
menos não prioritariamente, embora opere em seus correlatos de unicidade e
universalidade do conhecimento, as enciclopédias. Ressaltemos o que D ’Alembert, na
Encyclopédie, chama de vocabulários e glossários:

1°) Vocabulário e glossário quase não se aplicam a não ser aos puros dicionários de
palavras, ao passo que dicionário em geral com preende não som ente o s d icionários
de línguas co m o tam bém o s d icionários históricos, e o s de ciên cia s e artes; 2°) num
vocabulário, as palavras não p od em deixar de ser distribuídas por ordem alfabética, e
p od em m esm o não ser explicadas. Por ex em p lo , se se q u ise sse fa z e r u m a o b r a q u e
c o n tiv e ss e to d o s o s te r m o s d e u m a c iê n c ia ou a r te , r e la c io n a d o s a d ife r e n te s
títu lo s g e r a is, n u m a o rd em d ife r e n te d a a lfa b é tic a , p a r a m o s tr a r so m e n te a
e n u m e r a ç ã o d esse s te r m o s sem e x p lic á -lo s, e la se r ia u m vocabulário. Tam bém
seria u m vocabulário , propriam ente falando, se estiv e sse em ordem alfabética e
trou xesse a exp licação d os term os, d esde que curta, quase sem pre u m a ú nica palavra,
não razoada; 3°) quanto à palavra glossário, não se ap lica senão a dicionários de
palavras p ou co con h ecidas, bárbaras ou ob soletas. ( D ’A L E M B E R T , 2 0 1 5 [1 7 5 4 ], p.
131; negrito n osso)

Negritamos a sequência em que D ’Alembert aborda a hipótese de se querer


produzir todos os termos de uma ciência ou arte. Ora, não é isso que fazem as etiquetas
nas prateleiras das bibliotecas? Não é isso que fazem os códigos, se vertidos para a
Classificação Decimal de Dewey, de que trataremos à frente? E fora de ordem alfabética.
Assim, podemos, num primeiro gesto, enquadrar as bibliotecas enquanto vocabulários,
mas sem definições per se : as definições são os livros, que compõem o exemplário (como
hipônimo ou merônimo) dos termos mais amplos ou genéricos. A cada passo numa
biblioteca, aproxima-se ou afasta-se de um novo termo desse vocabulário sem definições,

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dessa lista de todos os termos do conhecimento. A diferença é que, numa folha de papel,
as palavras são tateadas com os dedos. Numa biblioteca, com os pés. Como temos
defendido, um valor distintivo de um espaço em relação a um objeto ou artefato, se é que
há.
A forma de essa lista se configurar já ganhou diversos contornos ao longo da
história, muitas vezes prefigurando entidades como árvores do conhecimento
taxonômicas. Nas bibliotecas, tem vigorado, desde o final do século XIX, e cada vez mais,
a Classificação Decimal Dewey. Algumas palavras sobre isso. Melvil Dewey foi um
bibliotecário estadunidense que viveu entre meados do século XIX e as primeiras décadas
do século XX. Ele desenvolveu em 1876 um sistema de classificação que hoje é um dos
meios de catalogação de livros, o CDD (Classificação Decimal de Dewey), um código
que é incluído hoje na catalogação de cada livro do mundo: uma forma também de
imperialismo de saber em nome de um efeito técnico, um efeito de praticidade no
encontrar livros numa biblioteca. Esse sistema já foi modificado, revisado e ampliado,
com alterações que remontam até a última década. Entretanto, a base continua a mesma:
uma classificação baseada em dez ordens distintas. Não há arbitrariedade alguma nisso.
O conhecimento precisa caber na palma das duas mãos. É o próprio funcionamento dos
números naturais, do sistema decimal.
Mas tal prática referente à catalogação e à separação do conhecimento não é uma
atividade relativamente recente. É o que nos mostra Christian Jacob ao apontar que tal
prática já acontecia na Antiguidade. Ao tratar da questão quantitativa dos rolos, o autor
nos informa que

O poeta C alím aco, ligado à b ib lio teca sem ser d ela o responsável efetiv o , em preendeu
a tarefa de r e c e n se a r -lh e as riquezas. Suas Tábuas dos autores que se ilustraram em
todos os aspectos da cultura e de seus escritos, em 120 rolos, se prendem a u m duplo
projeto. (JA C O B , 2 0 0 8 [2000], p. 57; itálico do autor).

Ou seja, tal prática já era pensada e atribuída a sujeitos que ainda não eram denominados
bibliotecários, mas por terem experiência com as informações e os materiais da biblioteca,
sabiam minimamente como lidar com elas. Esse dado histórico corrobora nossa
designação de sujeito profissional de biblioteca. Continua o autor:

“E las [as Tábuas] estão evidentem en te em relação c o m as c o le ç õ e s da biblioteca,


m esm o que esta não seja explicitam ente m en cion ada no título. Em bora não se trate,
sem dúvida, de u m catálogo no sentido estrito, essas Tábuas têm u m a função de guia
b ib liográfico apto a orientar p esq uisas d os h ósp ed es do M u seu . S eu objeto é tanto o

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conteúdo quanto a estrutura da biblioteca. C om efeito , essas Tábuas são recortadas


em grandes rubricas - a ep op éia, a retórica, o s filó so fo s, o s historiadores, o s m éd icos,
a p o esia e seus diferentes gên eros etc., que refletem ta lv ez a repartição d os livros em
diferentes armaria, ao lon go do perípatos do M useu. E xistia até m esm o um a seção
para as obras diversas, na qual C alím aco havia particularm ente recensead o quatro
autores de m anuais de confeitaria. N o interior de cada rubrica, o s autores são
enum erados por ordem alfabética, co m algum as in form ações b ib liográficas e a lista
das obras atribuídas. D este m odo, se passaria de um princípio de classificação
topográfica para u m princípio con v en cio n a l de catalogação. (...). P o d e -se supor que
o s rolos da b ib lio teca tinham pequenas etiquetas, com o alguns d os papiros literários
encontrados no E gito, coladas no dorso do rolo e sobressaindo da prateleira para
perm itir a id en tificação do autor (nom e no g en itivo) e do título do livro. (idem , p. 5 7 ­
58; itálicos do autor)

Vale apontar que aqui entra em funcionamento, e Jacob traz em seu texto, a
memória. A escrita como uma ferramenta de eternização do conhecimento, pensemos,
possibilita e possibilitou inúmeras realizações na história da humanidade. Tamanha
importância já encontramos em Auroux (1992) com a defesa da primeira revolução
tecnológica, permitindo o nascimento das ciências da linguagem. Não é possível
desconsiderar/esquecer que há saberes que são transmitidos nas sociedades ágrafas entre
as gerações, mas que circulam diferentemente de como ocorreria com o suporte, a
discursividade própria, da escrita.
A tradição metalinguística de produção de listas temáticas se inscreve num
funcionamento de, “espontaneamente”, fazer paráfrases com ligeiros deslocamentos e de
encontrar, como temos visto, hiperônimos, hipônimos, holônimos e merônimos. É como
funciona a Classificação Decimal de Dewey. Trata-se, entretanto, de representações
espontâneas e não abrangentes. Centradas:

A s representações “espontâneas” resultam de práticas sócio-h istóricas que não são, do


ponto de v ista co g n itiv o , verdadeiram ente esp ecifica d a s (que não perm item uma
prática esp e cífic a de conhecimento das línguas). Argumentar, persuadir, con ven cer,
rezar, exorcizar, contar, dialogar, traduzir... são práticas que acom panham as
representações. E las o s com entam , o s justificam , dão conta em seu s registros de sua
eficácia, m as continuam a aderir a seu s in teresses m ais ou m en os im ediatos.
(C O L O M B A T , FO U R N IE R , P U E C H , p. 7 0 -7 1 )

Vejamos duas versões da CDD, sem atentar às datas, porque não nos importam
neste momento:

000 Generalidades 000 Ciência da computação,


informação e obras gerais

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100 Filosofia 100 Filosofia e psicologia


200 Religião 200 Religião
300 Ciências sociais 300 Ciências sociais
400 Línguas 400 Linguagem e línguas
500 Ciências puras 500 Ciências naturais
600 Ciências aplicadas 600 Tecnologia (ciências
aplicadas)
700 Artes 700 Artes
800 Literatura 800 Literatura e retórica
900 História e geografia 900 Geografia e história

Importa notar, entre uma versão e outra, que há recobrimentos, atualizações,


inversões. Correções numa lista finita, mas de movimento infinito de combinação de
números e também letras, como vimos em nossas análises. Um dínamo da classificação
do saber. É nas bibliotecas que a CDD se atualiza e se realiza, de porta a porta, de estante
a estante, de prateleira a prateleira.
Na página da Wikipédia do verbete Classificação Decimal de Dewey, registram-
se críticas ao CDD:

SD7: A C D D é com um ente u tilizada em b ib liotecas públicas e escolares ao redor do


m undo. O esq u em a con tém fortes d istorções geográficas derivadas de sua origem
no sécu lo X I X : o N orte da Á frica por exem p lo ocu p a de 961 a 965 enquanto o restante
do continente som ente de 9 6 6 a 969. É ainda m ais ten d en cioso a favor
do cristianism o em relação a outras re lig iõ es, co m a prim eira ocupando a faixa 2 2 0 ­
2 8 9 e todas as dem ais fican do apenas co m 2 9 2 a 2 9 9 . V ersõ es recentes perm item que
outra religião seja co lo ca d a na fa ix a 2 2 0 -2 8 9 co m o cristianism o restrito ao 2 9 8 , m as
este sistem a é usado apenas por b ib liotecas operadas por grupos relig io so s não-
cristãos, esp ecialm en te ju d aicos. A C D D tam bém tem sido criticada por seu
tratamento da literatura (8 0 0 ). U m a v e z que a prioridade é dada para o idiom a, as
literaturas nacion ais fica m espalhadas. Por exem p lo, a literatura canadense em in glês
é classificad a sob In glês e In glês A n tigo (8 2 0 ), enquanto a literatura canadense em
francês fic a em Literaturas F rancesas (8 4 0 ). A ú nica ex c eç ã o é a literatura
estadunidense (A m erican literature, 81 0 ), u m reflexo da ten d en ciosid ad e an glo-
am ericana inerente ao sistem a. (W IK IPÉD IA , 2 0 2 2 )

A crítica é pertinentíssima, mas o CDD segue. Em seus furos e falhas, continua


guiando o gesto duplo de classificação dos livros: antes de entrarem nas bibliotecas e
depois de munir seus acervos. Não nos importa muito, neste ponto, que ela seja cortada
diferentemente ou não. Nossa perspectiva é outra, voltando à questão de Pêcheux: “vocês

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acreditam poder ficar assim à distância da adversidade que ameaça historicamente a


memória e o pensamento?” . E encerramos também com Auroux:

(...) o aparecim ento dos instrum entos lin gu ísticos não d eixa intactas as práticas
lin gu ísticas hum anas. C om a gram atização - lo g o a escrita, d ep ois a im prensa - e em
grande parte graças a ela, constituíram -se espaços/tempos de comunicação cujas
d im en sõ es e h om ogen eid ad e são sem m edida com u m co m o que pode existir em um a
socied ad e oral, isto é, num a socied ade sem gram áticas. (A U R O U X , 1992, p. 70)

E numa sociedade sem bibliotecas. Estar em bibliotecas é caminhar em listas


temáticas que organizam o conhecimento letrado na palma da mão e ao alcance dos
passos, mesmo numa instituição monumental. É estar dentro de um instrumento
linguístico em que o sujeito anda em meio a relações semânticas de contiguidade, de
irmanação, de pejoração, de centralidade. Em nome de serviços técnicos e praticidade.
Mas sobretudo de universalidade. As listas que organizam o saber das bibliotecas
atendem a um anseio de divisão internacional à la sistema de pesos e medidas. O
conhecimento precisa ser seccionado de um modo padrão entre os Estados, para que cada
qual (entre nações, sujeitos, instituições) entenda seu lugar, sua função, sua
responsabilidade no sistema-mundo. Essa taxonomia mantém as bibliotecas, mas ficam
as perguntas inevitáveis: a quem serve?; ao que serve?; precisamos mesmo de uma
classificação universal dos livros?

Referências
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A G ESTÃ O ESC O L A R C O M O UM IN STR U M EN TO DE P O L ÍT IC A DE


LÍNGUAS

TH E SCH O O L M AN A G EM EN T AS A LANGUAGE PO L IC Y IN STRUM EN T

Gabriel Leopoldino dos Santos 1


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)

David Guadalupe Toledo Sarracino 12


Universidad Autónoma de Baja California (UABC)

Resumo: Este artigo analisa a gestão escolar como um instrumento de política de línguas. Para
isso, far-se-á, primeiramente, uma discussão de natureza teórica, estabelecendo as condições em
que a gestão de uma escola pode ser concebida enquanto um instrumento de política de línguas,
com efeitos políticos sobre o modo como as línguas em funcionamento em seu espaço são
significadas e significam seus falantes. A escola será concebida como um espaço de enunciação.
Num segundo momento, será feita uma discussão analítica, na qual serão analisados dois textos
que funcionam como documentos de política de línguas no Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
A discussão teórico-analítica será conduzida sob a perspectiva da semântica do acontecimento,
num diálogo profícuo com a análise de discurso de orientação francesa. A partir da discussão
empreendida, observar-se-á que a administração escolar exerce poder no jogo de forças entre as
línguas e seus falantes no espaço da escola, uma vez que, por meio de seus atos administrativo-
normativos, ela organiza o modo como cada língua funcionará em seu espaço de enunciação.
Palavras-chave: gestão escolar; administração escolar; política linguística; instrumento de
política de línguas; espaço de enunciação.

Abstract: This article analyzes school management as an instrument of language policy. To this
end, a discussion of a theoretical nature will first be made, establishing the conditions under which
the management of a school can be conceived as an instrument of language policy, with political
effects on the way in which the languages in operation in its space are signified and signify its
speakers. The school will be conceived as a space of enunciation. In a second moment, an
analytical discussion will be made, in which two texts that function as language policy documents
at the Federal Institute of São Paulo (IFSP) will be analyzed. The theoretical-analytical discussion
will be conducted from the perspective of the semantics of the event, in a fruitful dialog with the
French discourse analysis. From the discussion undertaken, it will be observed that the school
administration exercises power in the interplay of forces between languages and their speakers in
the school space, since, through its administrative-normative acts, it organizes the way each
language will function in its space of enunciation.
Keywords: school management; language policy; language policy instrument; space of
enunciation.

1 D outor em L in gu ística p ela U niversidad e E stadual de C am pinas (U n icam p ), p rofessor da área de Letras
do Instituto F ederal de E ducação, C iên cia e T ecn o lo g ia de São Paulo (IFSP), campus H ortolândia. Em ail:
gabriel.leop old in o@ ifsp .ed u .b r.
2 D outor em L in gu ística p ela U niversidad A utónom a de Querétaro (M éx ico ), p rofessor da F aculdade de
Idiom as da U n iversidad A utónom a de Baja C alifornia (U A B C ). Em ail: d toled o@ u ab c.ed u .m x.

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Resumen: Este artículo analiza la gestión escolar como instrumento de política de lenguas. Para
ello, se llevará a cabo una discusión teórica en la que se establecerán las condiciones en las que
la gestión de una escuela puede concebirse como un instrumento de política de lenguas, con
efectos políticos sobre el modo en que las lenguas que operan en su espacio son significadas y
significan a sus hablantes. La escuela será concebida como un espacio de enunciación. En un
segundo momento, se realizará una discusión analítica, en la que se analizarán dos textos que
funcionan como documentos de política de lenguas en el Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
La discusión teórico-analítica se realizará desde la perspectiva de la semántica del acontecimiento,
en un diálogo fructífero con el análisis del discurso francés. A partir de la discusión emprendida,
se observará que la administración escolar ejerce poder en el juego de fuerzas entre las lenguas y
sus hablantes en el espacio escolar, ya que, a través de sus actos administrativo-normativos,
organiza la forma en que cada lengua funcionará en su espacio de enunciación.
Palabras-clave: gestión escolar; administración escolar; política lingüística; política de lenguas;
instrumento de política de lenguas; espacio de enunciación.

Subm etido em 15 de agosto de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

1. Introdução
Este texto estabelece uma relação entre duas áreas do conhecimento usualmente
pouco explorada em suas literaturas: de um lado, a semântica do acontecimento — com
seu diálogo produtivo e constante com a análise de discurso — ; de outro, a gestão escolar,
com seu diálogo contínuo com outras áreas da pedagogia/formação de professores. Dessa
relação decorre nosso objetivo de compreender em que sentido a gestão escolar pode ser
considerada um instrumento de política de línguas, isto é, um instrumento que afeta as
relações entre línguas num determinado espaço (de enunciação) escolar. Para levar a cabo
tal objetivo, estabeleceremos uma reflexão teórico-analítica a partir de algumas práticas
político-linguísticas 3 que se observam no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo (IFSP).
Antes de adentrarmos nas questões que o presente trabalho propõe-se discutir,
colocaremos em cena alguns aspectos do cenário teórico no qual ele se insere e com o
qual dialoga de alguma maneira. Iniciamos dizendo que há inúmeros trabalhos nas
ciências da linguagem que tiveram por objeto a análise da relação entre linguagem e
política. Localizaremos tais trabalhos no que comumente denomina-se política

3 O adjetivo “p olítica-lin gu ística” que se articula co m “práticas” d ev e ser lido com o um a reescrituração
sin oním ica de “p o lítica de línguas” . C om o se v erá m ais adiante, a d iferença con ceitu al entre política
linguística e política de línguas é im portante para o d isp ositivo teó rico -m eto d o ló g ico que m ob ilizam os
neste trabalho.

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linguística, sem ainda apresentarmos uma diferença conceituai importante que marca a
reflexão analítica que fazemos aqui. No que concerne, então, à literatura produzida na
área de política linguística, inúmeros trabalhos já foram publicados colocando em cena
análises de materiais que circulam nos espaços escolares na condição de materiais
didáticos — como as gramáticas, os dicionários e os livros (didáticos e paradidáticos) —
ou na condição de orientadores da produção e do uso desses materiais didáticos — como
os programas de ensino, os parâmetros e orientações nacionais curriculares (cf. ARNOUX
(2008); NUNES (2006); LAURIA (2022); ORLANDI (2001, 2007, 2009); SANTOS
(2017); DINIZ (2010); STURZA et al. (2023); MAFRA, VENTURA (2023), apenas para
citar alguns).
Relativamente à questão específica da relação entre gestão escolar e política
linguística, ainda para permanecermos no âmbito mais geral dos estudos que relacionam
linguagem e política, poucos trabalhos que explicitam essa articulação foram
desenvolvidos na literatura especializada em políticas linguísticas. Uma autora que
destacamos é Berger (2017, 2021), a qual desenvolve sistematicamente pesquisas em
multilinguismo, gestão e ensino de línguas no Brasil. Apesar da relevância dos trabalhos
dessa autora, nota-se uma escassez de estudos que tomam a gestão escolar, propriamente
dita, como um instrumento de política linguística, ou, como propomos dizer, como um
instrumento de política de línguas.
Na área de pedagogia, e em específico na de gestão escolar, constata-se uma
reflexão lacunar em torno da problemática levantada neste artigo. Uma das razões para
isso pode ser localizada no fato de a linguística e a linguística aplicada apresentarem-se,
com relativa força político-teórico-institucional no Brasil — assim como no contexto
internacional — , como disciplinas especializadas em objetos de estudo bem delimitados
e definidos: a língua ou a linguagem, no caso da linguística, e o ensino de línguas, no caso
da linguística aplicada4. Associado a isso que se acabou de afirmar, outro fator que
poderia explicar essa reflexão lacunar tem que ver com a não formação de professores
“especialistas” nos estudos da linguagem pelos cursos de pedagogia, já que sua proposta5,
como sabemos, é formar professores generalistas para atuarem na educação infantil,

4 R econ h ecem o s que a lin gu ística aplicada p o ssu i outros objetos de estudo que não apenas o en sin o de
línguas. É preciso reconhecer, todavia, que o s estudos con cernentes ao ensino de línguas d om inam a
produção de con h ecim en to na lin g u ística aplicada.
5 R econ h ecem o s, tam bém , que o s cursos de p ed agogia não p o ssu em co m o seu único esco p o a form ação de
professores. A gestão escolar, por ex em p lo, tam bém fa z parte de seu rol form ativo.

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deixando a incumbência de formar professores especialistas em linguagem aos cursos de


letras e linguística.
Tendo em vista a discussão acima, nosso trabalho apresenta contribuições à
grande área de estudos da linguagem que se reconhece por “política linguística”, na
medida em que toma a gestão escolar como um instrumento política de línguas e propõe
desenvolver uma reflexão analítica com base em certas práticas político-linguísticas do
IFSP; apresenta também contribuições à pedagogia/gestão escolar, na medida em que
coloca essa área do conhecimento num debate profícuo com os estudos linguísticos,
principalmente com a semântica do acontecimento, acerca das relações entre línguas e do
espaço escolar como um espaço de enunciação6.
Na próxima seção, apresentaremos os fundamentos teóricos que sustentam o
dispositivo metodológico constituído para empreendermos as análises apresentadas em
seção posterior. A partir dessa discussão, de natureza teórica, será possível conceber como
três ideias — política de línguas, espaço de enunciação e gestão escolar — são
indissociáveis na compreensão da escola como um aparelho de Estado, nos termos dados
por L. Althusser (1996 [1970]).

2. Gestão escolar e política de línguas: a escola como espaço de enunciação


Já na década de 1970, Louis Althusser concebeu a escola como um aparelho
ideológico de Estado, ao lado de outras instituições sociais que também funcionam como
tal (as igrejas, o sistema jurídico, a imprensa, o sistema político, as artes etc.). A partir
desse gesto teórico, a escola passou a ser tomada contraditoriamente, isto é, foi
considerada como um espaço que reproduz a ideologia dominante e que, ao mesmo
tempo, contém as condições para modificá-la. Com isso, o filósofo francês, ao fazer
incidir a ideologia como constitutiva do funcionamento escolar, legou-nos uma
importante reflexão acerca da escola enquanto um espaço não desinteressado
politicamente, uma vez que aí a luta de classes — diríamos, luta de/por sentidos —
também teria lugar.
Do ponto de vista linguístico, a escola constitui-se igualmente num espaço
político. Entre outras questões, podemos afirmar isso fazendo-se observar como, em seu
interior, o multilinguismo real é submetido, normativamente, à administração

6 N a próxim a seção, exp licitarem os m elh or o que é u m espaço de enunciação. Por ora, p od em os
com preender essa id eia com o u m espaço em que as línguas relacionam -se p oliticam en te entre si.

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hegemônica do monolinguismo imaginário. Em outras palavras, assim como qualquer


espaço social, o espaço escolar abriga o funcionamento de múltiplas línguas.
Considerando-se apenas o caso do português, veremos que ele é dividido, desigualmente
distribuído aos falantes. É língua materna da maioria dos estudantes; é língua nacional do
Estado brasileiro; os modos de acesso ao português como língua materna e ao português
como língua nacional são diferentes. Assim, pode-se dizer que ele não é uno, no sentido
de ser homogêneo, mas sim diverso; é praticado diferentemente no todo complexo com
dominante 7 do social no Brasil. Nesse sentido, levando-se em conta o multilinguismo real,
não há um português, e sim muitos “portugueses” — ou seria “brasileiro” (“língua
brasileira ”)? 8 — sendo praticados diariamente na escola.
É preciso observar, no entanto, que há um monolinguismo imaginário que se
impõe frente a esse real multilíngue, que se observa, por exemplo, nos programas de
ensino de língua portuguesa, quando as gramáticas ou os livros didáticos tratam o
multilinguismo (escolar) brasileiro como “variações”, “dialetos” de uma língua
imaginária 9 que é o português nacional. Chegam a afirmar, inclusive, que, entre os
diversos modos de praticar a língua, não há um certo e um errado, que todas as “variações”
devem ser respeitadas, que todas elas têm seu valor cultural, histórico, social. Para nós,
essas afirmações são modos de apagamento do político, que é um funcionamento
simbólico do real constitutivo das línguas que nos é muito caro do ponto de vista da
compreensão que procuramos produzir sobre o funcionamento da(s) língua(s) nos espaços
de enunciação.
Além do batimento entre português (língua nacional) com os “portugueses”
(línguas maternas), colocamos em cena outras línguas que funcionam o espaço de
enunciação escolar, com que o português/os “portugueses” relacionam-se, rendendo-lhe

7 E sta form ulação fa z rem em orar propositalm ente um a outra, aquela da célebre d efin ição, dada por M ich el
P êch eu x (2 0 0 9 [1 9 7 5 ]), para o interdiscurso, que é “o todo co m p lex o co m dom inante das form ações
discursivas” . Para n ós, não há funcion am en to p olítico, e o lin gu ístico aí está com preendido, que não seja
tom ado nessa relação im bricada do “todo co m p lex o c o m dom inante” .
8 E sta é a pergunta que se fa z E ni Orlandi em vários de seu s trabalhos, m as, principalm ente, na obra Língua
brasileira e outras histórias: discurso sobre a língua e ensino no Brasil (O R L A N D I, 2 0 0 9 ). D ada à força
de sua teorização no cam po d os estu dos do discurso, esta pergunta não se c o lo c a co m o um a pergunta
retórica, m as co m o u m a pergunta propositiva, digam os, um a v e z que aponta para d eslocam en tos d iscu rsivos
im portantes. U m d esses d eslocam en tos d iz respeito ao fato de língua brasileira (e não “português
brasileiro”) ser um a form ulação que aponta para um a d escolon ização lingu ística, haja v ista que o p rocesso
de historicização da língu a se dá diferentem ente daquela de Portugal ou de qualquer outro país colonizad o
p elo s portugu eses.
9 Im aginária porque historicam ente “fabricada” para funcionar num sim ulacro de realidade, co m o se essa
língua im aginária correspondesse à realidade lin gu ística real.

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um caráter ainda mais complexo de se estudar. Mencionaremos, entre outras línguas, as


indígenas, o inglês, o espanhol, a língua brasileira de sinais etc.
Diante do exposto, faz-se produtivo o conceito de espaço de enunciação, tal
como proposto pelo linguista brasileiro Eduardo Guimarães. Esse conceito mostra-se
produtivo porque é um dos modos de restituição do político apagado por teorias
sociologistas 10 da linguagem, responsáveis por ideias como as que mostramos nos
parágrafos anteriores. Diremos, neste texto, que o espaço escolar é um espaço de
enunciação, na medida em que, por espaço de enunciação, Guimarães (2018, p. 24)
compreende que:

[...] o esp aço de enunciação é o esp aço de línguas no qual elas fu n cion am na sua
relação co m falantes. A ssim , não há língu as sem outras línguas, e não há línguas sem
falantes e v ic e-v er sa . U m aspecto im portante na configuração do esp aço de
en u nciação é que as língu as do esp aço de en u nciação são distribuídas de m odo
d esigu al, não se é falante das línguas d este espaço da m esm a m aneira. O espaço de
en u nciação é, então, u m espaço p o lítico do funcion am en to das língu as.

Como se observa, o espaço de enunciação é um espaço de funcionamento de


línguas — sempre no plural — que se relacionam entre si desigualm ente, tendo em vista
o modo como o político, enquanto parte de todo e qualquer funcionamento linguístico, as
significa aí. Podemos pensar, assim, que, no espaço de enunciação escolar, a língua
portuguesa imaginária das gramáticas e dos livros didáticos ocupa um lugar de prestígio
e de referência para as línguas maternas faladas pelos estudantes; a língua inglesa é tida,
num processo igualmente imaginário, como a língua da ciência e da tecnologia, impondo-
se sobre outras línguas — às vezes até sobre o português língua nacional — que são
ensinadas — ou que poderiam ser ensinadas — , como o espanhol; a língua brasileira de
sinais, embora amparada pela legislação, não encontra condições de ser falada nem
estudada da forma como o texto da Lei determina, sendo, muitas vezes, completamente
silenciada. Considerando que não há línguas sem falantes, estes são determinados
politicamente pelas línguas que falam, sendo incluídos ou excluídos do espaço de
enunciação .
Sobre o que se disse acima, apesar de enunciar de um lugar teórico diverso do
nosso, Berger (2021, p. 122) contribui para esclarecer os contornos do funcionamento
político de todo espaço de enunciação. Diz a autora:

10 N o sentido dado por Françoise G adet e M ich el P êch eu x (1 9 7 7 ) em Há uma via para a linguística fora
do logicismo e do sociologismo?

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Instrumentos Linguísticos
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Q ue língu as estão p resentes n os currículos escolares? Q uais d elas são usadas com o
línguas de instrução d os con teúdos? O que (e em quais línguas) d izem o s d ocum entos
norteadores acerca das práticas d idático-p ed agógicas e das le is que regulam entam as
línguas a serem u sadas, aprendidas e m antidas p elo s alunos? E ssas questões
circundam o que p od em os cham ar de p olíticas lin g u ístico -ed u ca cio n a is, ou seja, o
conjunto de d ecisõ es sobre quais línguas (e variedades) d ev em estar p resentes nos
currículos e nas práticas p ed agógicas, de que form a e quais “lugares” elas d ev em
ocupar no d om ín io da e sc o la , nas várias fa ses da v id a escolar, ao lo n g o do processo
de escolarização.

Essa citação convoca-nos a tratar daquilo que comumente reconhece-se sob o


nome de “política linguística” . Nossa compreensão dessa expressão está atravessada pelo
domínio da semântica do acontecimento, uma área das ciências da linguagem que, ao
estudar o funcionamento do sentido produzido pelo acontecimento enunciativo, coloca
em cena uma perspectiva materialista de estudo da linguagem, já que o sentido é político,
não é uma virtualidade, não corresponde à intenção do falante, é resultado de condições
de produção específicas. A semântica do acontecimento estabelece, conforme asserido
em outros momentos, um diálogo profícuo com a análise de discurso tal como esta foi
inicialmente formulada por Michel Pêcheux e sua equipe na França e ressignificada por
Eni Orlandi e sua equipe no Brasil.
Graças a esse diálogo, é possível recolocarmos, de um ponto de vista material e
não sociologista, a relação entre linguagem, sociedade e poder. Integra essa recolocação
a diferença conceitual entre política linguística, de um lado, e política de línguas, de
outro. É de Eni Orlandi (2007) essa diferenciação que nos é importante. De acordo com
a pesquisadora:

E m geral, quando se fala em p o lítica lingu ística, já se dão co m o p ressupostas as teorias


e tam bém a ex istên cia da língua co m o tal. E p en sa-se na relação entre elas, as línguas,
e n os sentid os que são p o sto s n essas relações co m o se fo sse m inerentes, próprios à
essên cia das línguas e das teorias. F ica im p lícito que p od em os “m anipular” com o
querem os a p o lítica linguística. Outras v e z e s, fa la -se em p olítica lin gu ística apenas
quando na realidade trata-se do planejam ento lin gu ístico, de organizar-se a relação
entre línguas, em fun ção da escrita, de práticas escolares, do u so em situações
planificadas.
Quando falam os de P olítica L in gu ística enquanto P o lítica de L ínguas, dam os à língua
u m sentido p o lítico n ecessário. O u seja, não há p ossib ilid ad e de se ter língua que não
esteja já afetada desd e sem pre p elo p olítico. U m a língu a é u m corpo sim b ó lico -
p o lítico que fa z parte das relações entre su jeitos na sua v id a so cia l e histórica. A ssim ,
quando p en sam os em p o lítica de língu as já p en sam os de im ediato nas form as sociais
sendo sign ificad as por e para su jeitos h istóricos e sim b ó lico s, em suas form as de
existên cia, no espaço p o lítico de seus sentidos. (O R L A N D I, op. cit., p. 7 -8 )

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Esse excerto mostra-nos, da perspectiva discursiva, que falar em “política


linguística” é diferente conceitualmente de falar em “política de línguas” . Uma das
diferenças reside na compreensão de “língua” que, segundo E. Orlandi, ambos os
conceitos encerram. Para o primeiro, as línguas são tomadas como existindo a
prioristicamente, fora e independentemente de um dispositivo teórico-metodológico
qualquer. Assim, possuiriam uma essência que as caracterizariam enquanto tais. Ao
contrário disso, falar em “política de línguas” envolve pensar que a própria compreensão
sobre o que é uma língua depende de um corpo teórico que explicita seus contornos e seus
modos de abordagem. O que é uma língua depende, em outras palavras, do dispositivo
teórico-metodológico que se adota. Para as teorias materialistas, como a semântica do
acontecimento e a análise de discurso, importa compreender o funcionamento da língua
como materialmente constituído pelo atravessamento do político11. Ademais, é preciso
tomar — ensinam-nos os manuais de análise de discurso — o real da língua, que é a
incompletude, e o real da história, que é a contradição, como parte da compreensão que
se procura produzir sobre o que é uma língua e como ela funciona.
Outra diferença diz respeito à redução da significação da “política linguística”
como sendo apenas o estudo ou a prática do planejamento linguístico, como se esse
planejamento ocorresse fora do social e da história, a despeito dos falantes, como se as
línguas não lhes dissessem respeito. Falar, então, em “política de línguas” envolve, por
um lado, pensar nas intervenções sociais sobre a linguagem (práticas de planejamento
linguístico), como é o caso da publicação da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB),
instituído pela Portaria n° 36, de 28 de janeiro de 1959; da promulgação do Programa
Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), instituído pelo Decreto n° 9.099, de
18 de julho de 2017; do estabelecimento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
homologada pela Portaria n° 1.570, de 21 de dezembro de 2017; da publicação dos
Parâmetros Nacionais Curriculares (PCN), dos acordos ortográficos, como aquele
promulgado pelo Decreto n° 6.583, de 29 de setembro de 2008, dos programas de ensino
das disciplinas de línguas nas escolas e universidades, das gramáticas, dos dicionários,
dos manuais de estilo, etc. Por outro, um estudo de política de línguas toma esses textos

11 O p olítico é o n om e que se dá a um funcionam ento sim b ólico constitutivo da linguagem , o qual d iz


respeito ao fato de que a lin gu agem não se produz independentem ente de co n d içõ es só cio -h istó rico -
enunciativas esp ecífica s. N e sse sentido, o funcion am en to da lin g u a g em é p o lítico porque as suas co n d içõ es
de produção sem pre p od em mudar, podend o, consequ en tem ente, o s sentidos sem pre serem outros (ou
p odem perm anecer o s m esm o s).

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como acontecimentos enunciativos, o que nos leva para análises daquilo está dito nesses
textos, mas também daquilo que não está dito, porém aí significando.
Diante do que expusemos até aqui, podemos afirmar, juntamente com Auroux
(2009), que os textos mencionados acima — entre outros — funcionam, na formação
social brasileira, como instrumentos linguísticos, uma vez que eles não são simplesmente
objetos politicamente desinteressados, que buscam “apenas” descrever, analisar e ensinar
uma ou algumas línguas (em detrimento de outras). São, ao contrário, instrumentos
linguísticos porque afetam tanto o modo como as línguas funcionam ao longo de sua
história quanto a forma como elas significam os (seus) falantes num espaço de enunciação
dado. Muitas vezes, esses instrumentos linguísticos são um suporte material privilegiado
da ideologia do monolinguismo imaginário, produzindo, então, a organização das
relações entre línguas de uma maneira normativa e desigual. A escola, então, sendo um
espaço de enunciação, apresenta-se como um dos lugares privilegiados de circulação
desses instrumentos linguísticos, os quais serão nomeados neste trabalho de instrumentos
de política de línguas, uma vez que eles organizam, dividem, distribuem, redistribuem
politicamente as línguas. Em outras palavras, eles determinam as línguas.
Nosso trabalho coloca em primeiro plano a gestão escolar como um instrumento
de política de línguas. Isso se deve porque ela não administra o espaço da escola de um
modo desinteressado e independente do social, da história e do político. Ao contrário de
ser uma prática desinteressada, constitui-se num conjunto de práticas que levam a cabo
as ideias do Estado — principalmente no caso das escolas públicas, mas não apenas delas
— , ou do Mercado — principalmente no caso das escolas privadas, mas não apenas delas.
Na condição de representante do Estado ou do Mercado, a gestão escolar tem, como uma
de suas incumbências, garantir a colocação em prática da política linguístico-educacional
nacional, o que corresponde, conforme já sabemos, a administrar a relação entre as
línguas (e entre os seus falantes), assim como entre as línguas e os saberes que se
produzem sobre elas. É por meio dessa política que se garante, por exemplo, que as
chamadas “normas urbanas de prestígio” continuem sendo “de prestígio” e que, portanto,
certas práticas linguísticas sejam significadas como “regionalismos”, “dialetos”, sendo,
muitas vezes, “museificadas” . É por meio dessa política, também, que o multilinguismo
real é contido pelo monolinguismo imaginário; que o fracasso escolar das massas no que
concerne à aprendizagem de línguas (tanto da língua nacional quanto das línguas
estrangeiras) é localizado enquanto um fracasso individual do estudante e não como uma

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falha do Estado; que a aprendizagem de línguas é despolitizada a favor de uma educação


linguística utilitarista e mercadológica.
A gestão escolar é um instrumento de política de línguas porque pode possuir
uma política de línguas explícita própria, que condiga com as políticas de línguas do
Estado — que é o já esperado para uma instituição que integra o conjunto dos aparelhos
ideológicos de Estado, nas palavras de L. Althusser — ou que faça frente a elas — como
quando apoia movimentos do tipo “#Fica-Espanhol”, que foi um movimento que se
iniciou em torno do ano de 2017 no Brasil quando, com a reforma do Ensino Médio, o
espanhol deixou de ser componente curricular obrigatório no currículo, estabelecendo o
inglês como a única língua estrangeira moderna a ser ensinada nas escolas. A decisão de
explicitar ou não uma política de línguas própria é sempre, em última instância , da gestão
escolar, já que detém o poder institucional-legal de decidir. Isso se corrobora, inclusive,
quando a administração escolar é entendida “como a utilização racional de recursos para
a realização de determinados fins” (PARO, 1998, p. 243). Racionalidade, recursos e
orientação a um fim são determinações semânticas que sustentam nosso gesto de colocar
a gestão escolar como um instrumento de política de línguas.
Ao lado de toda ação social consciente — “racional”, nos termos de Paro (1998)
— há a dimensão daquilo que não está dito, daquilo que precisa ser dito, daquilo que está
interditado de ser dito. Mesmo que não se diz que não há uma política de línguas explícita
sempre já há uma em funcionamento. Não há espaço de enunciação que não contenha
uma política de línguas em funcionamento. Desse modo, pode-se perceber que operamos
com um deslocamento sobre o que “gestão escolar” significa. Não olharemos para ela da
mesma forma que os estudos inscritos no domínio dos estudos pedagógicos.
Na próxima seção, abordaremos algumas questões de ordem metodológicas,
necessárias para a compreensão das análises feitas de algumas práticas de política de
línguas presentes no espaço de enunciação do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo (IFSP).

3. Construção de um dispositivo metodológico de análise


Na seção anterior, colocamos a gestão escolar como ocupando um lugar central
para a política de línguas (explícita ou não) de uma escola. Isso não quer dizer que
docentes, discentes e comunidade em geral não tenham papel importante no
desenvolvimento e condução de uma política de línguas do espaço de enunciação de uma
unidade escolar. A questão é que a gestão de uma escola detém, como dissemos, o poder

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institucional-legal de decidir, assinar e determinar de fato uma política para as línguas. É


por isso que a gestão de uma escola é também um instrumento de política de línguas, já
que, semelhantemente aos instrumentos linguísticos, como as gramáticas, os dicionários
e os livros didáticos, ela afeta o modo como as línguas se distribuem e significam os
(seus) falantes.
Trataremos aqui de duas ações que integram a política de línguas adotada pelo
IFSP. O IFSP, juntamente com os demais Institutos Federais do Brasil, integra a Rede
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia. Essa rede é composta, então, por instituições
que desenvolvem atividades de ensino — em distintos níveis (ensino médio e ensino
superior) e modalidades (presencial, a distância, educação de jovens e adultos) — , de
pesquisa e de extensão em áreas técnicas e tecnológicas, bem como na de formação de
professores. Cada um dos Institutos Federais possui uma administração central, a reitoria,
e alguns campi, cuja responsabilidade pela direção é dos diretores-gerais e dos diretores-
adjuntos12. Chamaremos de gestão escolar indistintamente tanto o conjunto de práticas e
decisões tomado no âmbito da reitoria quanto no das diretorias-gerais dos campi. Dessa
forma, tendo em vista que os Institutos Federais não são uma escola como o senso comum
conhece (escolas de educação infantil, ensino fundamental ou médio), uma vez que são
escolas politécnicas, estabelecimentos especializados em ciência e tecnologia com cursos
de nível médio e superior, além dos cursos livres, ofertados na modalidade de extensão,
o adjetivo “escolar”, que determina o substantivo “gestão”, será tomado em seu sentido
lato, isto é, enquanto significando um espaço de ensino oficial.
Nas análises que faremos a continuação, mobilizaremos alguns conceitos da
semântica do acontecimento para construirmos nosso dispositivo metodológico de
análise. Para essa semântica, o conceito de acontecimento enunciativo é central. Toda
produção linguística constitui um acontecimento enunciativo, já que o seu presente, para
significar, recorta, inexoravelmente, um passado de enunciações que retornam ao
presente sob a forma de memorável. O acontecimento da enunciação só funciona, isto é,
só produz sentidos graças a esse batimento entre presente — que é o presente da
enunciação, da produção de linguagem — e passado — que é o passado de enunciações
já produzidas alhures, independentemente do acontecimento presente da enunciação. Há,
ainda, o futuro, que na teoria é pensado enquanto latência de futuro ou futuridade. Essa
futuridade é a dimensão do interpretável, ou seja, é a dimensão que direciona os sentidos,

12 O organogram a institucional pode ser variações de acordo co m cada reitoria.

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que faz com que o passado recortado pelo presente da enunciação não seja uma mera
repetição de sentidos.
Outro conceito importante é o de reescrituração, o qual descreve os diversos
mo(vi)mentos de reescrituração da linguagem em um acontecimento enunciativo. Dito
diferentemente, a reescrituração é o processo pelo qual a linguagem se rediz num
determinado acontecimento de enunciação. Trata-se de um fenômeno linguístico
importante de ser observado, pois efeitos semânticos são produzidos nesse gesto de se
redizer o já dito. O linguista brasileiro Eduardo Guimarães (2007) identifica, pelo menos,
seis modos de reescrituração da linguagem num acontecimento: reescrituração por
repetição, por substituição, por elipse, por expansão, por condensação e por definição.
Cada uma desses modos de reescrituração pode produzir efeitos semânticos particulares
em dado acontecimento enunciativo.
Finalmente, uma última consideração antes de passarmos às análises propriamente
ditas diz respeito à questão de que faz parte do estudo das condições de produção dos
sentidos no acontecimento enunciativo as análises da cena enunciativa. Assim, ao lado
daquilo que a temporalidade constituída pelo acontecimento mostra-nos, a cena
enunciativa também é um elemento importante para uma análise em semântica do
acontecimento, uma vez que ela é formada por lugares de enunciação, e esses lugares são
decisivos nos contornos semânticos da designação13 uma palavra ou de uma expressão
linguística. Consoante o que afirma Guimarães (2017, p. 52), “ [o] processo enunciativo
da designação significa, então, na medida em que se dá como um confronto de lugares
enunciativos pela própria temporalidade do acontecimento” . E conclui o autor: “ Se se
mudam os lugares enunciativos em confronto recorta-se um outro memorável, um outro
campo de ‘objetos’ relativos a um dizer.”
Integram uma cena enunciativa os seguintes lugares de enunciação: o Locutor
(com L maiúsculo), que é aquele que o acontecimento enunciativo representa como sendo
o responsável pelo dizer; o alocutor-x, que é o lugar social do dizer; e o enunciador, que
é um lugar de dizer atravessado pelo esquecimento, isto é, por um tipo de esquecimento
que é aquele de que só se enuncia a partir de um lugar social dado. O enunciador é, então,
a configuração de um modo de dizer, que pode ser individual, genérico, coletivo ou

13 Por designação de um a palavra ou de u m a expressão lin gu ística en ten d e-se com o sendo o sentido d essa
palavra ou d essa exp ressão lin gu ística tal co m o produzido em co n d içõ es enunciativas esp ecíficas. D essa
form a, a d esign ação é o sentido produzido no acon tecim ento enunciativo.

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universal, segundo as categorizações estabelecidas até o momento na literatura da


semântica do acontecimento.
A próxima seção deste artigo dará lugar às análises de dois textos que integram a
política de línguas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
Trata-se da Portaria n° 4557, de 11 de dezembro de 2019, e da Resolução n° 61/2017, de
04 de julho de 2017. É importante salientar que nossa proposta analítica não resistirá em
análises exaustivas dos referidos textos, uma vez que procederemos com recortes
enunciativos nos quais aparecem as questões que desejamos pôr em cena.

4. Política de línguas e gestão das línguas no IFSP


A primeira ação de política de línguas do IFSP que analisaremos é a sua política
de internacionalização, materializada pela Portaria n° 4557, de 11 de dezembro de 2019.
Consideraremos que o texto de uma Portaria configura-se também em um instrumento de
política de línguas. Trata-se de um texto que, dada sua natureza legal, constitui um ato
ilocucional que estabelece uma política de línguas institucional. As condições para a
realização de tal ato são estabelecidas logo no início do texto, quando se diz: “o reitor [...]
no uso de suas atribuições legais, conferidas pelo Decreto de 5 de abril de 2017, publicado
no Diário Oficial da União de 6 de abril de 2017 [...]”. Vê-se, então, que o acontecimento
enunciativo apresenta um Locutor como o responsável pelo dizer, e esse Locutor enuncia
enquanto agenciado pelo alocutor-reitor, que é, no organograma institucional, um lugar
de enunciação central para o estabelecimento da política de línguas do IFSP. Assim, o
Locutor, agenciado pelo alocutor-reitor, produz uma enunciação que coloca em cena o
enunciador-individual, isto é, um modo de dizer individual que se sustenta por meio do
aparato legal, o qual se mostra textualmente me “no uso de suas atribuições legais,
conferidas pelo Decreto [...]” .
Antes da apresentação da política de internacionalização a ser adotada, há nove
parágrafos que se iniciam do mesmo modo: por meio de orações subordinadas adverbiais
condicionais reduzidas de gerúndio. Assim, temos:

Recorte 1:
CONSIDERANDO que a internacionalização de conhecimentos está no centro das
intensões das IES atualmente, pois poderá contribuir para um posicionamento estratégico
internacional do país mais perfilado com um cenário global de inovação tecnológica [...];

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CONSIDERNANDO que compreende-se [sic] a internacionalização como um processo


que integra atividades que envolvem as diversas modalidades de mobilidade acadêmica,
pesquisas colaborativas [...];
CONSIDERANDO que o IFSP deve intensificar a troca de conhecimentos internacionais
e promover sua internacionalização a partir da vocação estratégica pela qual foi criado;
CONSIDERANDO que essa vocação poderá ser alavancada, amplamente disseminada e
avaliada por intermédio das pesquisas desenvolvidas por servidores e grupos de pesquisa,
inclusive em associação com a Agência de Inovação e Transferência de Tecnologia [...];
CONSIDERANDO a necessidade do estabelecimento de uma Política de
Internacionalização [...];
CONSIDERANDO que objetivos da internacionalização devem ser usados para definir o
foco e as prioridades das ações e investimentos do IFSP [...];
CONSIDERANDO que Diretrizes são orientações que definem um caminho a seguir [...];
CONSIDERANDO as seis dimensões do índice de internacionalização criado pelo
Conselho Americano de Educação [...];
CONSIDERANDO os diferentes estágios de implantação dos campi do IFSP.

No acontecimento enunciativo do texto, é possível dizer que essas orações


relacionam-se por meio de um processo de reescrituração por repetição — nesse recorte,
uma repetição de ordem sintática — que acaba por produzir um efeito semântico de
condição para o estabelecimento da política de línguas institucional. Essa condição se dá
pelo recorte de um memorável que se apresenta como um passado de enunciações que
sustenta o presente enunciativo do texto da Portaria. Nessa relação de sustentação,
“internacionalização de conhecimentos”, “posicionamento estratégico internacional”,
“troca de conhecimentos internacionais”, “vocação estratégica”, “prioridade das ações e
investimentos”, “diretrizes vistas como orientações a seguir”, “Conselho Americano de
Educação” são expressões que se mostram determinando (condicionando) o tipo de
política de línguas a ser implementada. Dessa forma, é possível estabelecer que sentidos
ligados ao Mercado e à Globalização são as regiões de sentido que dominam o memorável
recortado.
Com base no que se acabou de observar, é possível compreender por que, no Art.
2°, quando do estabelecimento dos quinze objetivos da internacionalização para o IFSP e
para seus campi, o inglês e o português como língua estrangeira são os únicos nomes de
línguas aí mencionados (objetivos 10 e 11). Reconhecemos, no entanto, que outras
línguas, como o espanhol e a língua brasileira de sinais (a Libras), que são línguas
regularmente ensinadas no espaço de enunciação do IFSP, com profissionais docentes de

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carreira, comparecem de um outro jeito no acontecimento enunciativo de que o texto da


Portaria é a materialização, por meio de seu silenciamento.
Vejamos a questão do inglês, primeiramente. A partir da materialidade textual,
vemos os contornos de um sentido dominante que assegura para o inglês o lugar de
prioridade, devendo ser, por isso mesmo, ensinado (objetivo 11 — “proporcionar
formação em língua estrangeira para brasileiros, principalmente em inglês, e em língua
portuguesa para estrangeiros”) e praticado em disciplinas da graduação e pós-graduação
(objetivo 10 — “oferecer disciplinas em inglês na graduação e na pós-graduação”). Se
considerarmos os objetivos que precedem os objetivos 10 e 11 , podemos ainda dizer que
o inglês significaria a “língua da internacionalização” .
Ademais, o objetivo 10, mencionado no parágrafo precedente, aparece
reescriturado no Art. 3°, o qual trata do estabelecimento de diretrizes para a
internacionalização do IFSP e de seus campi, baseadas nas orientações dadas pelo
Conselho Americano de Educação, em pelo menos dois incisos:

Recorte 2:
II. a) oferecer disciplinas em inglês (e em outra língua estrangeira se for o caso) na
graduação e na pós-graduação através das coordenações de cursos para permitir que
alunos estrangeiros não falantes de português estudem no IFSP e, dessa forma, contribuir
para a criação de um ambiente internacional e intercultural nos próprios campi (conhecido
como internacionalização em casa). (inciso II)
IV. b) Oferecer cursos de qualificação para docentes ministrarem disciplinas em inglês.
(inciso IV)

No inciso II, alínea a, o inglês é a língua que “contribui para a criação de um


ambiente internacional e intercultural nos campi”, apesar de isso poder ser feito em outra
língua, “se for o caso” . É notório que o inglês — e não o português — seja a língua que
permita que “alunos estrangeiros não falantes de português estudem no IFSP” . Essa
notoriedade deve-se ao fato de uma instituição federal, parte integrante dos aparelhos
(ideológicos) de Estado, pretira o português (língua nacional) em detrimento do inglês. É
notório também que outras línguas diferentes do inglês apareçam marcadas seja por uma
genericidade (“outra língua estrangeira”) e por uma condição (“se for o caso”).
No inciso IV, também do Art. 3°, alínea b, o oferecimento de disciplinas em inglês
é retomado, sendo o garantidor de “qualificação para docentes ministrarem disciplinas
em inglês” . O inglês ainda aparece no Art. 3°, no inciso I, alínea k, o qual propõe o
desenvolvimento de um sítio eletrônico e de materiais de divulgação em inglês, com a

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ressalva de que isso pode ser feito em outras línguas também (“desenvolver e manter um
sítio eletrônico e material de divulgação em inglês (se possível em outras línguas também)
para auxiliar na atração de parceiros internacionais” . Diante dessas constatações,
podemos dizer que a ideologia da globalização, ou melhor, do capitalismo globalizado
atravessa a materialidade desse acontecimento enunciativo e corrobora a sustentação do
lugar, para o inglês, de língua que deve ser ensinada e aprendida preponderantemente no
espaço de enunciação do IFSP. Apesar das duas ressalvas apontadas, chama-nos a atenção
o silenciamento de outras línguas, cujos nomes não aparecem no texto da Portaria.
Retornando à análise do objetivo 11 presente no Art. 2°, que trata dos quinze
objetivos da internacionalização para o IFSP, o português para estrangeiros também é
mencionado, ao lado do inglês. Com relação à língua portuguesa, precisamos levar em
consideração que a língua que deve ser ensinada aos estrangeiros é a língua nacional,
aquela gramatizada, objeto de ensino nas escolas e em outras instituições brasileiras. É o
português uno, indiviso, “museificado”, distante, muitas vezes, das línguas maternas de
inúmeros falantes, possuidor de “variações”, que é o objeto de ensino regulamentado pela
Portaria em questão. Considerando que o português não é “língua da tecnologia” nem da
“globalização capitalista”, o português deve ser ensinado aos estrangeiros que se
encontram no Brasil porque é, precisamente, a “língua da Nação” . Dessa forma, pode-se
pensar que a ideologia do monolinguismo imaginário é o que faz eco nessa enunciação.
A Resolução n° 61/2017, de 04 de julho de 2017, aprova o regulamento dos
centros de línguas (CeLin) no IFSP. Assina o documento o presidente do Conselho
Superior (Consup) da instituição, que é sempre o reitor (no caso, o reitor em exercício no
ato de assinatura do documento). Temos, aqui, uma cena enunciativa relativamente
semelhante àquela configurada pelo acontecimento enunciativo da Portaria ora
considerada, com um elemento novo, o fato de o alocutor-reitor enunciar também como
alocutor-presidente do Consup. Sendo o Conselho Superior a instância deliberativa
máxima da Instituição, enunciar enquanto alocutor-presidente do Consup produz efeitos
imediatos na política de línguas institucional. Nesse caso em específico, institui o Centro
de Línguas.
Logo no início, em seu artigo 2°, lemos:

Recorte 3:
Art. 2° O Centro de Línguas, vinculado à Assessoria de Relações Internacionais —
ARINTER/Reitoria — , visa a regulamentar e incentivar ações educativas e culturais tais

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Instrumentos Linguísticos
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como a oferta de cursos de línguas e a aplicação de exames de proficiência, integrando,


assim, os esforços para a internacionalização do IFSP.

Trata-se de um texto cujo presente enunciativo é anterior ao presente enunciativo


da Portaria n° 4557/IFSP. Ao fundar um centro de línguas, a enunciação do Locutor
produz um certo rearranjo na forma como as línguas passarão a circular e a se relacionar
entre si no IFSP. Há, então, um impacto nas condições de funcionamento das línguas,
visto que um centro de línguas propicia a criação de um espaço institucional de estudo e
práticas regulares dessas línguas.
Ao longo do texto, nenhum nome de língua é mencionado explicitamente. No
entanto, no art. 4°, que trata dos objetivos do centro de línguas, está dito: “oferecer cursos
de línguas estrangeiras e materna [...] visando à formação de recursos humanos aptos a
integrarem as ações de internacionalização do IFSP” . Produz-se uma divisão entre as
línguas estrangeiras, de um lado, e a língua materna, que é o português, de outro. Não se
explicita que línguas estrangeiras são essas, nem se explicita uma diferença importante
para nós que a do português língua materna e o português língua nacional. Apesar dessa
não explicitação, podemos dizer, relativamente ao português, que essa indistinção
assinalada produz como efeito a consideração de que só existe um português, aquele de
Estado, gramatizado, objeto de ensino das instituições educacionais do país. Isso provoca
uma divisão normativa e desigual dos diversos modos de praticar o português, bem como
provoca uma divisão desigual dos falantes, visto que aqueles que falam um português
distante do que comumente se reconhece como “normas urbanas de prestígio” não
falariam português, ou não saberiam a língua.
Apesar da pouca explicitação de que línguas estrangeiras são essas, se
tomarmos a fundação do CeLin como parte integrante da política de internacionalização
do IFSP, segundo os contornos semânticos que observados mais acima, poderíamos
conceber que as línguas que teriam primazia nos centros de línguas seriam também
aquelas com forte apelo de mercado, como o inglês.

5. Considerações finais
Quando se aborda a gestão escolar na literatura pedagógica, fala-se
predominantemente em teorias da administração. É frequente, assim, tratar de abordagens
prescritivas e normativas — teoria da administração científica, teoria clássica das
organizações, escola de relações humanas etc. — e em abordagens descritivas e

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interpretativas das teorias administrativas — teoria comportamental, teoria da burocracia,


teoria da contingência etc. Tanto uma abordagem quanto a outra são formas, segundo
pensamos, de apagamento do político enquanto constitutivo das relações humanas. Nas
abordagens prescritivas e normativas, o político é apagado pelo tecnicismo característico
das teorias identificadas nessas abordagens; é como se o tecnicismo também não fosse
político. Nas abordagens descritivas e interpretativas, o político é apagado pelo
descritivismo característico das teorias que se inscrevem aí, como se a descrição e a
interpretação de qualquer fato humano não fosse, por si mesmas, políticas.
Este trabalho procurou restituir, então, o político como dimensão constitutiva da
gestão escolar. Ele é incontornável e seu funcionamento sempre envolve uma divisão
normativa e desigual do real (cf. GUIMARÃES, 2018). Isso envolve pensar que, para
além de um voluntarismo individualista movido por sentidos de justiça, ética, igualdade,
democracia, a gestão escolar é política e, portanto, sempre funcionará dividindo
normativa e desigualmente o real da escola. Mostramos que a escola é um aparelho
ideológico de Estado, nos termos althusserianos, e os gestores são sempre sujeitos
constituídos ideologicamente — e, no que concerne às línguas, são atravessados por
ideologias que possuem efeitos materiais sobre o modo como as línguas
circulam/circularão na escola.
Nosso percurso teórico-analítico colocou em cena questões sobre a gestão escolar
pouco exploradas nas literaturas pedagógicas e linguísticas. A relação entre as línguas —
e, consequentemente, entre os falantes — no espaço de enunciação escolar quase não é
objeto de interesse dos estudiosos em gestão da escola, assim como a gestão da escola
quase nunca é tomada como instrumento linguístico pelos estudiosos da linguagem. No
entanto, considerar a gestão escolar como objeto de um estudo de política de línguas
mostrou-se relevante porque as decisões tomadas nesse âmbito do funcionamento
institucional escolar afetam o modo como as línguas circulam nesse espaço de
enunciação. Considerando-se que não há línguas sem falantes, as decisões administrativas
afetam também os falantes, dividindo-os normativamente.
Por meio das análises, mostramos que sempre há sentidos hegemônicos
determinando a tomada (ou não) de decisões com relação às línguas por parte da gestão
de uma unidade escolar. No caso do IFSP, compreendemos que sentidos mercadológicos
e globalizantes colocam o inglês em lugar de primazia com relação às demais línguas,
inclusive com relação ao português, o qual, apesar de mencionado poucas vezes nos textos
analisados, perde forças na luta política com a língua inglesa, que é significada como a

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“língua da internacionalização” . Nesse sentido, ser falante de inglês não tem o mesmo
valor, para utilizarmos uma metáfora mercantil, que as outras línguas, como o português,
ou o espanhol, ou a língua brasileira de sinais.
Deslocando o olhar para outras unidades escolares diferentes do IFSP, é possível
afirmar, igualmente, que a gestão é sempre um instrumento de política de línguas, na
medida em que a opção pela abertura (ou não) de um centro de línguas, a orientação de
adoção de determinados livros didáticos (em detrimento de outros), a compra de certos
livros para a biblioteca (em detrimento de outros), o investimento (ou não) em ações de
escrita e leitura, a inclusão de uma política de línguas explícita em seu projeto político-
pedagógico (PPP), entre outras ações, é sempre dela.

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Instrumentos Linguísticos
168

IN STRUM EN TO L IN G U ÍSTIC O -JU R ÍD IC O : D IR E IT O , UNIVERSIDADE E


NACIONALIDADE NA PRODUÇÃO DE SABERES SOBRE A LÍNGUA

L IN G U ISTIC -JU R ID IC A L IN STRUM EN T: LAW , U N IVERSITY, AND


N A TIO N A LITY IN TH E PR O D U CTIO N O F K N O W LED G E ABOUT
LANGUAGE

Jael Sanera Sigales Gonçalves


Universidade Federal de Pelotas

Vitória Eugênia Oliveira Pereira


Unicamp

Monica Graciela Zoppi Fontana


Unicamp

Resumo: Com filiação à articulação entre a Análise materialista de Discurso e a História das
Ideias Linguísticas no Brasil, neste trabalho, mobilizamos o conceito de instrumento linguístico-
jurídico para analisar o funcionamento de dois documentos que compõem arquivo jurídico
montado em pesquisa ocupada de investigar as ações de políticas linguísticas realizadas pelas
Instituições de Educação Superior conveniadas à Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM): o
Termo de Referência que pauta o vínculo das IES com a CSVM; e o Projeto de Lei n° 489/2019.
Para tanto, retoma-se o modo como o conceito de instrumento linguístico comparece em Sylvain
Auroux (1992) e, então, o modo como o conceito de instrumento linguístico-jurídico foi proposto
a partir do trabalho teórico e analítico da regulação jurídica da língua (Sigales-Gonçalves; Zoppi-
Fontana, 2021). Então, tomando o Termo de Referência entre IES e CSVM e o Projeto de Lei n°
489/2019 como instrumentos linguísticos-jurídicos, a análise permite compreender como os
processos de subjetivação em relação a uma ou várias línguas supõem a divisão desigual das
línguas em espaços de enunciação constituídos na imbricação entre forma política (Estado) e
forma jurídica (direito). O trabalho traz, ainda, elementos para avançar na discussão sobre a
relação indissociável entre direito, língua, sujeito e Estado no modo de produção capitalista e para
o avanço teórico e analítico sobre o conceito de instrumento linguístico-jurídico, principalmente
articulando a compreensão materialista do discurso à compreensão materialista do direito.
Palavras-chave: direitos linguísticos; instrumento linguístico; instrumento linguístico-jurídico;
políticas linguísticas; universidade.

Abstract: With affiliation to the articulation between the Materialist Analysis of Discourse and
the History of Linguistic Ideas in Brazil, this study mobilizes the concept of linguistic-juridical
instrument to analyze the functioning of two documents within a legal archive assembled for
research focused on investigating the language policy actions carried out by Higher Education
Institutions affiliated with the Sérgio Vieira de Mello Chair (CSVM): the Reference Document
that governs the relationship between HEIs and CSVM, and Bill No. 489/2019. To do so, we
revisit how the concept of a linguistic instrument is presented in Sylvain Auroux (1992) and then
how the concept of a linguistic-juridical instrument was proposed based on the theoretical and
analytical work on the legal regulation of language (Sigales-Gonçalves; Zoppi-Fontana, 2021).

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Thus, by considering the Reference Document between HEIs and CSVM and Bill No. 489/2019
as linguistic-juridical instruments, the analysis allows us to comprehend how processes of
subjectivization concerning one or more languages presuppose the unequal division of languages
in spaces of enunciation constituted in the interplay between political form (State) and legal form
(law). The study also provides elements to advance the discussion on the inseparable relationship
between law, language, subject, and the state in the capitalist mode of production and for the
theoretical and analytical development of the concept of a linguistic-juridical instrument,
primarily through the articulation between a materialist understanding of discourse and a
materialist understanding of law.
Keywords: linguistic rights; linguistic instrument; linguistic-juridical instrument; language
policies; university.

Subm etido em 09 de agosto de 2023.


A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introdução
A História das Ideias Linguísticas (HIL) institucionaliza-se no Brasil como um
campo de conhecimento que se propõe, a partir de uma posição epistemológica
materialista, pensar a história da língua e da produção de conhecimentos linguísticos na
relação com a constituição do Estado nacional. A filiação à Análise materialista de
Discurso (AD) é que constitui para a HIL essa tomada de posição face à história das
ciências (ORLANDI, 2001), ao permitir trabalhar a relação indissociável entre língua,
sujeito, Estado e Nação (ORLANDI, 2001, p. 7). Ao fazer variar suas questões a partir
da filiação à AD, a HIL produz demanda por instrumentos científicos que a realizem
enquanto teoria.
O conceito de instrumento linguístico-jurídico (SIGALES-GONÇALVES;
ZOPPI-FONTANA, 2021a) é formulado nesse espaço de jogo aberto pela HIL, como
movimento de ajuste do seu discurso teórico a si mesma (HENRY, 2011). Tendo como
ponto da reflexão os processos de produção de sentido em torno dos direitos linguísticos
e dos deveres linguísticos, estes situados no campo do Direito Linguístico1, o conceito se
apresenta como um dispositivo analítico da relação indissociável entre língua, sujeito,
Estado e Nação a partir da consideração de que o direito atravessa constitutivamente essas
relações, produzindo efeitos materiais sobre os sujeitos e as línguas e na produção de
saberes sobre estas.
Neste artigo, temos o objetivo de apresentar como a mobilização do conceito de
instrumento linguístico-jurídico nos conduz, teórica e analiticamente, à compreensão de
uma relação indissociável entre o direito e a universidade na produção da regulação

1 Cf. A breu (2 0 1 6 , 2 020); S ig a les-G o n ça lv es (2020); S ig a les-G o n ça lv es (2 022).

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jurídica da língua. É com base nesse objetivo que organizamos a exposição do presente
texto. Então, na seção que segue, a seção 2, analisamos dois documentos que passaram a
compor nosso arquivo através do projeto O lugar da extensão universitária na promoção
de direitos linguísticos e políticas linguísticas para migrantes forçados: mapeamento e
reflexões em torno das práticas extensionistas das instituições conveniadas à Cátedra
Sérgio Vieira de Mello (CSVM), doravante PROEC-PEX 2020, desenvolvido por nós no
Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas
(IEL/Unicamp) e contemplado com recursos do 1° Edital ProEC de Financiamento à
Pesquisa sobre Extensão Universitária (ProEC/Unicamp). São eles: o Termo de
Referência da Cátedra e o Projeto de Lei n° 489, de 05 de fevereiro de 2019, que “dispõe
sobre os direitos linguísticos dos brasileiros” . Através do efeito de evidência produzido
pelo funcionamento jurídico das textualidades, esses dois documentos comprometem a
universidade como garantidora da efetivação de direitos linguísticos - de pessoas
migrantes, no Termo, e dos brasileiros, no PL.
A suspensão dessa evidência pelo trabalho analítico nos leva, na seção 3, a
retornar ao conceito de instrumento linguístico como proposto por Sylvain Auroux,
buscando dar consequência teórica à indissociabilidade entre a universidade e o direito,
indiciada pelo trabalho analítico, na relação entre instrumento, língua e saber. A partir de
dessa leitura, propomos compreender o processo de gramatização como um processo de
juridização da língua. N a seção 4, apresentamos, por fim, como esse avanço teórico-
analítico põe novas questões para a continuidade do trabalho de arquivo.
Assim como em Sigales-Gonçalves; Zoppi-Fontana (2021a), a posição
materialista assumida diante do discurso é articulada a uma posição materialista também
diante do direito. Buscamos, com este trabalho, avançar em uma questão fundamental:
como e sob que organização das condições de produção determinadas relações e não
outras - entre as línguas e entre os sujeitos e as línguas - adquirem formajurídica 2? Então,
se entre os estudos discursivos nos filiamos à articulação da Análise materialista de
Discurso à História das Ideias Linguísticas, entre os caminhos da filosofia do direito
contemporânea, nos situamos no que Mascaro (2015) nomeia “filosofias do direito

2 E ssa pergunta é form ulada a partir de Pachukanis, cuja intervenção é, com o se verá na seção 4, d ecisiv a
em n osso trabalho: “ [...] a crítica pachukaniana do direito, ao se fundar no método que M arx d esen v o lv e
em O capital, perm ite superar - no interior do m arxism o - as representações vulgares que apresentam o
direito com o u m ‘instrum ento’ de classe, privilegiand o o conteúdo norm ativo em v e z de atender à ex ig ên cia
m etod ológ ica de M arx e dar conta das razões por que u m a certa relação social adquire, sob determ inadas
con d ições - e não outras -, precisam ente u m a forma jurídica.” (N A V E S , 2 0 0 0 , p. 20).

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críticas”, especificamente no lastro teórico que se produziu a partir do marxismo jurídico


de Pachukanis. Instrumento linguístico-jurídico é, nesse sentido, tomado como conceito
forjado em um trabalho teórico (ALTHUSSER, 1967) sustentado em um sistema
conceitual próprio, do qual também são mobilizados os conceitos de sujeito de direito,
forma jurídica e forma política3.

2. Regulação ju ríd ica da língua


O conceito de instrumento linguístico-jurídico é proposto por Sigales-Gonçalves
e Zoppi-Fontana (2021) em trabalho dedicado a refletir sobre as práticas de regulação
jurídica da língua, que se dão nas diferentes instâncias do aparelho jurídico-
administrativo e, ao disporem sobre direitos linguísticos e sobre deveres linguísticos,
produzem saberes sobre a língua. Sigales-Gonçalves e Zoppi-Fontana (2021) consideram
instrumentos linguísticos-jurídicos dispositivos que produzem conhecimento sobre a
língua — que compõem, portanto, seu processo de gramatização — e que, ao mesmo
tempo, são formulados em práticas do direito, tomado em seu funcionamento como
aparelho repressivo e ideológico (ALTHUSSER, 1999).
O PL n° 489/2019, que dispõe sobre “os direitos linguísticos dos brasileiros”, foi
escolhido como material de exploração teórica: enquanto dispositivo jurídico que busca
implementar uma política linguística, produzindo saberes sobre a língua e ao mesmo
tempo sua regulação, trata-se de um instrumento linguístico-jurídico, em que opera o
direito como instrumento de política linguística (SIGALES-GONÇALVES, ZOPPI-
FONTANA, 2021). Já o Termo de Referência da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, cuja
leitura inicialmente tinha pretensão técnica de cumprimento de burocracias da pesquisa,
passou a compor nosso arquivo quando reconhecemos como regular entre os dois
documentos a produção de um efeito de evidência da universidade como garantidora da
efetivação de direitos linguísticos - dos migrantes e dos brasileiros, respectivamente. A
leitura do Termo como parte de um arquivo jurídico de práticas de regulação da língua
impôs, assim, questões teóricas a esse arquivo: todo instrumento de política linguística é
um instrumento linguístico-jurídico? Qualquer documento regulador da língua colocado
em cena pelo aparelho jurídico configura um instrumento jurídico-linguístico? Qualquer
prática de constituição/formulação/circulação de direitos e deveres linguísticos configura

3 N o sso s agradecim entos às contrib uições do parecer à versão prim eira d este texto, que n os ch am ou a
atenção para a n ecessid ad e de explicitar as referências ao m arxism o ju rídico e a d im ensão con ceitu al das
palavras e ex p ressões d este trabalho enquanto d iscurso teórico.

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um instrumento linguístico-jurídico? Um instrumento linguístico-jurídico seria a


produção de conhecimento jurídico sobre a língua? Que conhecimento seria esse?
Conhecimento metalinguístico?
Nesta seção, apresentamos como a mobilização do conceito de instrumento
linguístico-jurídico move o trabalho de arquivo em um batimento indissociável entre
teoria e análise.

2.1 Term o de R eferência da CSVM e a evidência da universidade com ogarantidora


da efetivação de direitos linguísticos de refugiados
A Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) é um projeto da Agência da ONU para
Refugiados (ACNUR) que ocupa um lugar institucional importante na promoção dos
direitos de migrantes forçados e refugiados no Brasil. Baseia-se na celebração de
convênios com as instituições universitárias, através dos quais tais instituições se
comprometem a promover atividades acadêmicas de educação, pesquisa e extensão sobre,
para e com pessoas refugiadas.
O Termo de Referência é o documento que estabelece os “objetivos,
responsabilidades e critérios de adesão” a esse acordo de cooperação entre as
universidades e a CSVM. O Termo funciona, portanto, como contrato que compromete
as universidades com/em ações específicas. Organizado em tópicos, apresenta seções
expositivas que descrevem a Cátedra e seções que dispõem propriamente os termos do
acordo. Neste ponto, consideramos que “termo de referência” é efetivamente parte de um
contrato legal. Trata-se de um dispositivo obrigatório a todo processo de contratação que
envolve a administração pública, definido por lei (Lei n° 8.666/93). Neste artigo,
trabalhamos especificamente sobre um efeito de evidência do documento que constrói a
universidade como responsável pela efetivação de direitos linguísticos.
Aberto por duas breves seções - Introdução e Objetivos - que descrevem a
Cátedra Sérgio Vieira de Mello e seus compromissos, o documento propõe, em seguida,
um terceiro tópico intitulado “3. Cátedra Sérgio Vieira de Mello no Marco de Proteção a
Pessoas Refugiadas”, corresponde a uma seção de justificativa e é iniciado pelo parágrafo
seguinte: “O A CNU R identifica o papel estratégico de universidades na educação e
em iniciativas a favor de pessoas que precisam de proteção internacional” .
No marco de proteção a pessoas refugiadas, o Termo cita, ainda, a Declaração de
Nova York para Refugiados e Migrantes:

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E m âm bito glob al, a D eclaração de N o v a Y ork para R efu giad os e M igrantes de 2 0 1 6


exp ressou o entendim ento u niversal sobre a im portância da proteção das p esso a s
forçadas a fugir, buscando m ecan ism os para aplicação de responsabilidades
internacionais com partilhadas. E m decorrência d essa D eclaração, cou b e ao A C N U R
a tarefa de d esen v o lv er o M arco Integral de R esp osta aos R efugiados, que daria
su b sídios ao P acto G lobal sobre R efugiados. O M a r c o In te g r a l in c lu i as
u n iv e r sid a d e s c o m o a to r e s e str a té g ic o s n a p r o te ç ã o in te r n a c io n a l às p esso a s
r e fu g ia d a s.

Descreve-se, na sequência, o Pacto Global sobre Refugiados, um plano


operacional assinado por 181 países, em que “são mescladas as respostas humanitárias e
ações de desenvolvimento a fim de fortalecer a resposta como um todo e investe-se na
resiliência de refugiados e de comunidades locais para enfrentar a pobreza e diminuir a
dependência de assistência” . Assim se encerra o tópico 3, convocando “pessoas
resilientes, comunidades resilientes e instituições resilientes” a lidar com os efeitos do
deslocamento forçado.
Interessa-nos, com essa breve descrição, mostrar que a afirmação sobre o papel
estratégico das universidades na questão migratória não é explicada, produzindo uma
evidência: é óbvio que as universidades desempenham um papel estratégico na questão
migratória. Se não é possível, por limitações de espaço, reproduzir todo o documento 4
tomamos o enunciado que contém essa afirmação como fato da língua que trabalha o
funcionamento de evidência: “O ACNUR identifica o papel estratégico de
universidades na educação e em iniciativas a favor de pessoas que precisam de
proteção internacional” . Nesse recorte, [de universidades], como complemento
preposicional de [papel estratégico], tem funcionamento de genitivo subjetivo -
“universidades [atuam, agem] na educação e em iniciativas a favor de pessoas que
precisam de proteção internacional” - , aproximando-se do funcionamento de uma
nominalização na produção de um efeito de pré-construído 5 que atualiza uma evidência
afirmada antes, em outro lugar e independentemente (PÊCHEUX, 2009, p. 156) da
textualização atual. Essa evidência retorna também no efeito de responsabilização da
universidade pela efetivação de direitos linguísticos de pessoas refugiadas no Brasil.
Quando, em um segundo momento, mais uma vez, é afirmado esse papel
estratégico das universidades, é de novo sob um efeito de evidência. Dessa vez, a

4 D isp o n ív e l em: https://w w w .acnu r.org/p ortu gues/catedra-sergio-vieira-d e-m ello/. A c e sso em: 15 jun.
2023.
5 “O ‘pré-constru íd o’ corresponde ao ‘sem p re-já-aí’ da interpelação id eo ló g ica que forn ece-im p õe a
‘realidade’ e seu ‘sen tid o ’ sob a form a da u niversalidade (o ‘m undo das c o isa s’)” (PÊ C H E U X , 2 0 0 9 , p.
164).

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afirmação conclui o parágrafo que apresenta a Declaração de Nova York através da


seguinte sequência de argumentação, paráfrase da última citação ao Termo: a declaração
de Nova York expressa a importância de buscar por mecanismos para a aplicação de
responsabilidades internacionais compartilhadas; nessa partilha de responsabilidades,
coube ao ACNUR elaborar o Marco Integral; o Marco Integral “inclui as universidades
como atores estratégicos na proteção internacional às pessoas refugiados". Nenhum
operador argumentativo é usado para concluir pela inclusão das universidades como
atores estratégicos no Marco Integral, tampouco nenhuma explicação é proposta para
justificar essa inclusão: é óbvia a razão de as universidades serem incluídas como atores
estratégicos na proteção internacional às pessoas refugiadas.
Essa importância da universidade é afirmada em relação à questão migratória de
modo geral. A questão da língua comparece no item 5, “Definição dos papéis e
responsabilidades” . Os compromissos “assumidos” pelas Instituições de Ensino Superior
são divididos nos eixos do ensino, da pesquisa e da extensão. O “idioma” é mencionado
especificamente no item “5.2.3 Ações no âmbito da Extensão Universitária” :

- P rom over u m p rocesso seletiv o diferenciado para refugiados n os cursos oferecid os


p ela instituição, levand o em consideração: con h ecim en tos esp e cífic o s, d ificuldade em
exp ressar-se n o id io m a p o r tu g u ê s e im p ossib ilid ad e de m uitos em apresentar
d ocum entação do p aís de origem ; [...]
- Propiciar o a cesso gratuito dos solicitantes de refúgio e refugiados, m atriculados ou
não, a c u r so s d e id io m a s o ferecid os p ela IES, preferencialm ente o de português para
estrangeiros.

O Termo de Referência da CSVM está funcionando, portanto, como um contrato


que, justificado na evidência da importância da universidade na questão migratória,
compromete-a com a dificuldade de pessoas migrantes em expressar-se no idioma
português e com a oferta de cursos de idiomas, especialmente português para estrangeiros.
Foi esse comprometimento contratual que nos provocou a questionar a evidência: por que
é a Universidade/educação superior e não outros lugares ou instituições que está
comprometida com a oferta de cursos de idiomas para pessoas em condição de refúgio?
Por que não a escola/educação básica, por exemplo? Ou por que não outros espaços fora
do processo de escolarização? O que é a universidade para que a ela seja atribuída essa
“função natural” (evidência) diante da questão da língua e do refúgio?

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2.2 PL n° 489/2019 e a evidência da universidade como responsável pela produção


de conhecim ento sobre a língua e pelos “ direitos linguísticos dos brasileiros”
O Projeto de Lei n° 489/2019 “dispõe sobre os direitos linguísticos dos
brasileiros”; é de autoria do então Deputado Federal Chico D ’Ângelo e ainda está em
tramitação na Câmara dos Deputados no Congresso Nacional brasileiro. Pelo fato de que
“dispõe sobre” os direitos linguísticos, nomeando-os e descrevendo-os em dispositivo
legal, esse Projeto é lugar de exploração teórica e analítica6, além de articular diferentes
regularidades de nosso arquivo jurídico, tal como o Termo de Referência.
O PL é estruturado em 7 artigos e uma Justificação. Apresentaremos recortes do
documento para discutir seu funcionamento como instrumento linguístico-jurídico nesse
gesto de legislar sobre a língua (ZOPPI-FONTANA, 2010). Trazemos inicialmente o
seguinte recorte da Justificação:

Para que a rica diversidade lin gu ística brasileira seja divulgada e protegida,
e s tu d io so s, g e sto r e s do p a tr im ô n io c u ltu r a l e g r u p o s d e fa la n te s d e lín g u a s
m in o r itá r ia s v ê m exigin d o do P o d e r P ú b lic o u m a p o lítica con sistente de
con solid ação d os direitos lin gu ísticos d os brasileiros.

Chamamos a atenção para dois aspectos desse recorte.


Inicialmente, observamos uma distribuição desigual entre aqueles que demandam
e aqueles que são demandados nas relações jurídicas, intermediadas pelo Estado, em
relação às línguas que coabitam o espaço de enunciação brasileiro. O “Poder Público” é
a instância à qual se demanda uma “política consistente” de “consolidação” dos “direitos
linguísticos dos brasileiros”; os demandantes, por sua vez, são “estudiosos, gestores do
patrimônio cultural e grupos de falantes de línguas minoritárias” . Essa distribuição
comparece também na parte normativa do PL:

Art. 3°, § 1° Todas as com u nid ades lin gu ísticas brasileiras são igu ais em direito,
d ev en d o o P o d e r P ú b lic o , em suas m últiplas instâncias, tom ar as m edidas
in d isp en sáveis para que tal igualdade seja efetiva.
[...]
Art. 4° Por solicitação das com unidades falantes de línguas m inoritárias com o língua
materna, fic a o P o d e r P ú b lic o o b r ig a d o a prom over, na form a do regulam ento:
[ .]
Art. 5° C a b e ao P o d e r P ú b lic o inventariar as línguas m inoritárias u tilizadas no B rasil
e zelar por sua d ivulgação e salvaguarda, no âm bito da responsabilidade p ela proteção
e p rom oção do patrim ônio cultural brasileiro.

6 Q u estões in iciais para análise do PL n° 4 8 9 /2 0 1 9 foram apresentadas no trabalho “D ireitos lin gu ísticos
d os brasileiros: u m a análise discu rsiva do PL n° 4 8 9 /2 0 1 9 ” de autoria de S ig a les-G o n ça lv es e Z op pi-
Fontana e apresentado em com u nicação oral no II Encuentro Internacional: d erechos lin g ü ístico s com o
derechos hum anos en L atinoam érica/L a furia de la lengua.

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[...]
Art. 6° É r e sp o n sa b ilid a d e do P o d e r P ú b lic o estim ular as u niversidades a:

Sendo o objeto dessa demanda “uma política ‘consistente’ de ‘consolidação’ ‘dos


direitos linguísticos dos brasileiros’”, há, por efeito de pré-construído, a evidência de que
a existência “dos direitos linguísticos dos brasileiros” precede a ação do Estado, por meio
do direito, através da proposição e aprovação de um Projeto de Lei; esses direitos
linguísticos dos brasileiros não carecem de “criação” ou “outorga”, mas, já existentes,
demandam intervenção do Poder Público para sua “consolidação” . Essa evidência
aparece marcada também na “parte preliminar” do PL, especificamente em sua ementa e
enunciado:

[em enta] D isp õ e sobre o s direitos lin g u ístico s d os brasileiros.


[enunciado] Art. 1° E sta le i tem o intuito de a sse g u r a r o e x e r c íc io dos direitos
lin g u ístico s d os brasileiros, esp ecialm en te das com unidades que u tilizam línguas
m inoritárias co m o língu a materna.

Nesse recorte, assim como no recorte anterior da justificação, opera a evidência


de que há direitos linguísticos dos brasileiros. O PL dispõe - “trata” - sobre esses direitos,
que demandam intervenção legislativa do Estado para “assegurar seu exercício” . “Dos
direitos linguísticos dos brasileiros”, complemento preposicional de “exercício”, irrompe
aí como uma evidência construída. A determinação do complemento, ainda, marca na
língua a pretensão totalizante da proposta legislativa: não é de alguns direitos linguísticos,
mas da totalidade dos direitos, que já existem e sobre os quais só cabe, ao legislador,
reconhecer juridicamente .
No art. 2°7, por meio de enunciados definidores, o PL promove a definição
conceitual dos fatos legislados (ZOPPI-FONTANA, 2005), definindo “línguas
minoritárias”, “língua materna” e “comunidade de acolhimento” . Não há enunciado
definidor de “direitos linguísticos” ou de “direitos linguísticos dos brasileiros”; tampouco
- e isso interessa sobremaneira a esta nossa perspectiva - se define quem são “os
brasileiros” . Os direitos linguísticos aparecem enumerados no art. 3°: “Os direitos
linguísticos dos brasileiros se inserem no âmbito dos direitos culturais fixados pela
Constituição Federal e consistem em: [...]” .

7 “Art. 2° Para fin s do d isposto nesta lei, são: I - línguas minoritárias: as línguas, autóctones e alócton es,
diferentes da lín gu a portuguesa, utilizadas tradicionalm ente em território nacional, co m o lín gu a materna,
por grupos num ericam ente inferiores ao resto da popu lação do País; II - língu a materna: a prim eira língu a
que o indivíduo aprende; III - com unidade de acolhim ento: o conjunto d os falantes da língu a portuguesa,
id iom a o ficia l da R ep ú b lica Federativa do Brasil, co m o língua m aterna” .

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Retomamos, neste ponto, o art. 6 °, que nos permitirá avançar em um aspecto


central da nossa discussão sobre o funcionamento do PL como instrumento linguístico-
jurídico em que se produz conhecimento jurídico sobre a língua:

Art. 6° É r e sp o n sa b ilid a d e do P o d e r P ú b lic o estim ular as u niversidades a:


I - d esen v o lv er p esq u isas no cam po das línguas m inoritárias faladas no Brasil;
II - oferecer o en sin o das línguas m inoritárias faladas no B rasil co m o cursos de
extensão;
III - oferecer cursos regulares de graduação em língu as m inoritárias, c o m ênfase na
habilitação em licenciatura.

Chama a atenção nesse recorte um processo equívoco de


responsabilização/desresponsabilização entre o que o PL nomeia como “Poder Público”
e o que nomeia como “universidades” . Em funcionamento semelhante ao observado no
recorte do Termo de Referência da CSVM apresentado na seção anterior - “papel
estratégico de universidades” - , no art. 6 ° do PL o Poder Público tem a responsabilidade
de “estimular as universidades a” . Interessa-nos, aí, que a sequência dos arts. 4°, 5° e 6 °
reserve à universidade uma obrigação específica que, a partir do texto da lei, promove
uma separação entre o Poder Público e a universidade, como se as ações da universidade
que devem ser “estimuladas” pelo Poder Público fossem distintas de outras ações que o
PL atribui diretamente ao que nomeia como esse “Poder Público”, e distintas do próprio
“Poder Público” . O art. 6 ° é o único que nomeia a instância de efetivação das ações
estabelecidas pelo texto do PL e essa instância é justamente a universidade.
No art. 6 °, diferentemente dos dispositivos anteriores, não é o Poder Público o
promotor dessas ações; a ele cabe estimular a universidade a cumpri-las. A universidade
é colocada, sob a forma de uma evidência nomeada, como responsável por promover
ações concretas voltadas aos direitos linguísticos: “desenvolver pesquisas [...]”, “oferecer
o ensino de línguas [...]”, “oferecer cursos regulares [...]” . O verbo ‘estimular’ sustenta
essa evidência: trata-se de incitar uma função que já está posta e que deve ser cumprida
nos níveis da pesquisa (inciso I), da extensão (inciso II) e do ensino (inciso III). E, apesar
de a Universidade ser a única instância nomeada pelo PL na sua parte normativa, a
justificação da proposta legislativa não apresenta qualquer saber sobre a Universidade.
É diferente do que acontece na relação entre o art. 5° do PL e a mesma justificação.
O art. 5° dispõe que “Cabe ao Poder Público inventariar as línguas minoritárias utilizadas
no Brasil e zelar por sua divulgação e salvaguarda, no âmbito da responsabilidade pela
proteção e promoção do patrimônio cultural brasileiro”, sem nomear, no entanto, o

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Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), que é diretamente convocado


pela justificação do PL:

Para que a rica diversidade lin gu ística brasileira seja divulgada e protegida,
e s tu d io so s, g e sto r e s do p a tr im ô n io c u ltu r a l e g r u p o s d e fa la n te s d e lín g u a s
m in o r itá r ia s v ê m exigin d o do P o d e r P ú b lic o u m a p o lítica con sistente de
con solid ação d os direitos lin gu ísticos d os brasileiros. O prim eiro passo n esse sentido
fo i dado co m a e d iç ã o do D ec re to n° 7 .3 8 7 , d e 9 d e d e z e m b r o d e 2 0 1 0 , que instituiu
o In v e n tá r io N a c io n a l d a D iv e r sid a d e L in g u ístic a (IN D L ) co m o instrumento
o ficia l de identificação, docum entação, recon hecim ento e valorização das línguas
faladas p elo s diferentes grupos form adores da socied ad e brasileira.

Nesse recorte, observamos o deslizamento entre “Poder Público” e “edição do


Decreto n° 7.387, de 9 de dezembro de 2010, que instituiu o Inventário Nacional da
Diversidade Linguística (INDL)” . Assim, de um lado, estão os estudiosos, gestores do
patrimônio cultural e grupos de falantes de línguas minoritárias e, de outro, o Poder
Público e seu poder regulamentar que o coloca em uma posição desigual no processo de
distribuição de direitos de dizer sobre a língua, as línguas, os direitos linguísticos e os
deveres linguísticos. No PL, o INDL, muito embora seja justamente objeto e
consequência da legislação sobre as línguas, não aparece nomeado como instância do
Poder Público8. O nome “Poder Público” aparece aí como metonímia da posição ocupada
pelo Estado, por meio da regulação jurídica, na criação de instrumentos linguísticos-
jurídicos no espaço de enunciação brasileiro.
Retomando esse funcionamento no arquivo, observamos que o §1° do art. 3° indica
que “em suas múltiplas instâncias” o Poder Público deve “tomar as medidas
indispensáveis para que tal igualdade [entre as comunidades linguísticas brasileiras], que
são “iguais em direitos” seja “efetiva” . O art. 4° tampouco especifica qual dessas
“múltiplas instâncias” do Poder Público é responsável por “promover, na forma de
regulamento”, “por solicitação das comunidades falantes de línguas minoritárias como
língua materna".
No art. 4°, chamamos a atenção novamente para a distribuição desigual entre
aqueles que demandam e aqueles que são demandados em torno “dos direitos linguísticos
dos brasileiros” . Reescreve-se a divisão entre quem demanda [as comunidades falantes

8 A té 2 0 1 9 , a redação do D ecreto n° 7 .3 8 7 /2 0 1 0 previa, em seu art. 7°, a instituição, p elo M inistério da


Cultura, de co m issã o técn ica cuja finalidade seria o exam e de propostas de in clusão de línguas no IN D L.
E sse d ispositivo leg a l fo i revogado p elo D ecreto n° 9 .9 3 8 /2 0 1 9 , que justam ente “institui a C om issão
T écn ica do Inventário N acion al da D iversid ad e L ingu ística” . M ais recentem ente, esse últim o docum ento
teve sua redação alterada p elo D ecreto n° 11.1 1 9 /2 0 2 2 .

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de línguas minoritárias como língua materna] e quem é demandado [o Poder Público], e


desta vez o texto da lei estabelece a forma pela qual o Poder Público “fica obrigado a
promover” a sequência de ações enumeradas no texto da lei: “na forma de regulamento” .
Assim como na análise do recorte do art. 5° e da Justificação em que o “Poder
Público” se reconhece como instância que regula juridicamente sobre a língua, “na forma
de regulamento” circunscreve e limita a atuação do “Poder Público” :
regulamentar/regular juridicamente.
Para nós, trata-se de um ponto central que mostra uma diferença entre
reconhecimento jurídico e efetivação de direitos linguísticos. O PL n° 489 se sustenta em
um equívoco que produz um efeito de sinonímia entre regulamentar (“na forma de
regulamento”) e efetivar direitos linguísticos. No art. 1° da proposta legislativa, segundo
o qual “Esta lei tem o intuito de assegurar o exercício dos direitos linguísticos dos
brasileiros, especialmente das comunidades que utilizam línguas minoritárias como
língua materna”, novamente comparece a evidência de que os “direitos linguísticos dos
brasileiros” já existem e basta que seu exercício seja assegurado, garantido, função
pretensamente cumprida pelo PL.
O gesto de não nomear do texto do Projeto de Lei as instâncias que devem efetivar
os direitos linguísticos reconhecidos juridicamente produz efeitos de universalização e
indeterminação nos processos de significação da responsabilidade em torno dos direitos
linguísticos. Por um lado, um processo de universalização em que “Poder Público”
metonimiza suas “múltiplas instâncias” para a execução de ações em torno dos “direitos
linguísticos dos brasileiros”; por outro lado, um processo que particulariza a Universidade
como instância nomeada, com responsabilidades enumeradas9.
Assim, ao passo que o processo de universalização de não nomear permite
considerar a “modalidade de existência virtual/formal dos fatos jurídicos [...] como
dispositivo normatizador/normalizador da ordem do social que sofre a sobredeterminação
do jurídico” (ZOPPI-FONTANA, 2005, p. 15), o processo de particularização, no gesto
de nomear a Universidade e particularizá-la entre as “múltiplas instâncias” possíveis, nos
faz pensar sobre a relação entre o direito e a Universidade - ou, em outras palavras, sobre

9 A lém d isso, cham a a atenção o fato de que, na seq u ên cia ló g ico -fo rm a l da técn ica leg isla tiv a que organiza
a parte norm ativa de um texto legal, tal co m o é u m projeto de lei, m esm o que seu caráter seja ainda
propositivo (R O D R IG U E S, 2 0 12; Z O P P I-F O N T A N A , 2 0 1 0 ), “o s assuntos gerais d ev em v ir antes dos
especiais; o s essen cia is, d os acidentais; o s perm anentes, d os transitórios”, segundo d ocum ento orientador
do Senado Federal (“Técnica Legislativa - Orientação para a Padronização de Trabalhos” , de 2 0 0 2 ). O
art. 6° é o últim o artigo do Projeto de L e i em questão, só anterior ao art. 7°, que d isp õe sobre a vig ên cia .

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como a Universidade aparece como evidência de instância de efetivação de um Projeto


de Lei sobre “os direitos linguísticos dos brasileiros” .
Desde uma posição discursiva, nos perguntamos como e onde se produz esse saber
evidente do que sejam os direitos linguísticos e do papel da Universidade, assim como
nos questionamos sobre a distribuição desigual entre aqueles que demandam e aqueles
que são demandados nas relações jurídicas, intermediadas pelo Estado, em relação às
línguas que coabitam o espaço de enunciação brasileiro. O modo de funcionar do discurso
jurídico, especialmente desse discurso de regulação jurídica da e sobre a língua, toma
como evidentes determinados saberes linguísticos. Há uma imbricação complexa entre
lugares de dizer e saber (sobre a língua, sobre as línguas, sobre os direitos linguísticos)
que somente pode ser compreendida se considerado o lugar determinante que o direito
ocupa nas formações sociais atuais.
Tanto no PL n° 489/2019 como no Termo de Referência da CSVM há saberes
sendo produzidos sobre a língua, especialmente sobre a quem cabe a responsabilidade
pela efetivação dos direitos linguísticos de refugiados (no caso do Termo de Referência)
e sobre a quem cabe a responsabilidade de “pesquisar no campo das línguas minoritárias
faladas no Brasil”, “oferecer o ensino de línguas minoritárias faladas no Brasil como
cursos de extensão”, “oferecer cursos regulares de graduação em línguas minoritárias,
com ênfase na habilitação em licenciatura” . Regularmente, nos dois documentos, é à
Universidade que se atribui essa responsabilização.
A seguir, abordamos justamente essa questão do “saber”/“conhecimento” sobre a
língua, que nos parece fundamental para avançar na compreensão do funcionamento de
instrumentos linguísticos-jurídicos no processo de gramatização brasileira e do lugar do
direito como instrumento de política linguística neste espaço de enunciação.

3. A questão do saber sobre a língua


Quando o Termo de Referência passa a fazer parte de nosso arquivo jurídico é
que, então, impôs-se um questionamento: se a presença, no PL n° 489/2019, da definição
de termos como ‘língua materna’, ‘línguas minoritárias’, ‘língua autóctone e alóctone’,
‘comunidade de acolhimento linguístico’ não põe dúvidas quanto à produção de
conhecimentos sobre a língua, o que dizer do Termo de Referência da CSVM? Trata-se
de um instrumento linguístico-jurídico? Há, no Termo de Referência da Cátedra,
produção de conhecimento metalinguístico? Se o comprometimento da universidade à
oferta de cursos de português para estrangeiro configura um dever linguístico, é possível

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afirmar que isso é um conhecimento sobre a língua?


O trabalho de arquivo conduziu-nos, portanto, à suspensão de uma evidência
teórica: se conhecimento metalinguístico pode ser traduzido como conhecimento sobre a
língua, é possível dizer que, inversamente, todo conhecimento sobre a língua é
conhecimento metalinguístico? Ou seja: saber/conhecimento sobre a língua é o mesmo
que saber metalinguístico? O que é um saber metalinguístico? Há consequências teórico-
analíticas nessa questão?
O Termo de Referência da Cátedra Sérgio Vieira de Mello opera um dever
linguístico que compromete as universidades à oferta de cursos de idiomas para
estrangeiros. Ler esse documento no trabalho de um arquivo jurídico que põe em relação
diferentes práticas de regulação da língua nos coloca duas perguntas: pode-se considerar
o Termo de Referência da CSVM um instrumento linguístico-jurídico? Trata-se de uma
regulação jurídica da língua que põe em prática uma política linguística, mas isso seria o
mesmo que dizer que o documento produz conhecimento metalinguístico? E
conhecimento sobre a língua?
A suspensão dessa evidência nos leva a retornar ao conceito de instrumento
linguístico para entender qual relação que se estabelece entre instrumento, língua e saber.
Retornamos especificamente à Sylvain Auroux, à Revolução Tecnológica da
Gramatização, como obra que apresenta os conceitos de gramatização e de instrumento
linguístico ao campo da HIL no Brasil e que funciona, ao mesmo tempo, como lugar de
filiação e de ruptura.
Os conceitos de gramatização e de instrumento linguístico são apresentados à
História das Ideias Linguísticas no Brasil pelo livro A revolução tecnológica da
gramatização, de autoria de Sylvain Auroux, publicado em 1992, a partir da tradução
organizada por Eni Orlandi. O conceito de gramatização é formulado por Auroux no
último capítulo do livro, “Capítulo III - O conceito de gramatização”, em passagens
amplamente selecionadas para citação nos trabalhos em HIL: “Por gramatização deve-se
entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas
tecnologias, que ainda hoje são a base de nosso saber metalinguístico: a gramática e o
dicionário” (AUROUX, 1992, p. 65, grifos do autor). A definição de ‘gramatização’
conduz ao conceito de instrumento linguístico, apresentada na sequência do Capítulo III:

A gram ática não é u m a sim p les descrição da lin gu agem natural; é preciso co n ceb ê-la
tam bém co m o instrumento linguístico', do m esm o m odo que u m m artelo p rolonga o
g esto da m ão, transform ando-o, um a gram ática p rolonga a fala natural e dá a cesso a

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u m corpo de regras e de form as que não figuram juntas na com p etên cia de um m esm o
locutor. Isso ainda é m ais verdadeiro acerca d os dicionários: qualquer que seja m inha
com p etên cia lingu ística, não d om ino certam ente a grande quantidade de palavras que
figuram n os grandes d icionários m on olín gu es que serão produzidos a partir do
R en ascim ento (o contrário tornaria e sse s d icionários inúteis a qualquer outro fim que
não fo sse a aprendizagem de línguas estrangeiras). Isso sig n ifica que o aparecim ento
d os instrum entos lin gu ísticos não d eix a intactas as práticas lin gu ísticas humanas.
(A U R O U X , 1992, p. 7 0 , grifos do autor).

A relação entre instrumento linguístico e gramatização está estabelecida, portanto,


pela forma como Auroux textualiza o conceito de gramatização - gramatizar é
instrumentar. No entanto, reler esses conceitos buscando compreender a relação entre
instrumento linguístico e saber nos fez reconhecer que há aí outro conceito central a que
nem sempre se dá consequência: o conceito de metalinguagem.
O livro Revolução Tecnológica da Gramatização é organizado para a sustentação
de duas teses. A primeira “concerne ao nascimento das ciências da linguagem”; e a
segunda “concerne ao que chamo de gramatização” (AUROUX, 1992, p. 8 ) enquanto
uma revolução tecnológica.
Com sua primeira tese, Auroux está respondendo ao que ele chama de “mito da
historiografia das ciências” - a ideia de que os estudos da linguagem só teriam adquirido
um estatuto científico no século XIX. Seu problema está colocado, portanto, em relação
à História e a Filosofia das Ciências. É a partir dessa perspectiva - a da História e da
Filosofia das ciências - que ele está pensando a questão “saber linguístico” : “seja a
linguagem humana, tal como ela se realizou na diversidade das línguas; saberes se
constituíram a seu respeito; este é o nosso objeto” (AUROUX, 1992, p. 13).
Contrariando uma posição tradicional da História das Ciências, Auroux defende
que a escrita é um dos fatores necessários ao nascimento das metalinguagens 10
(entendidas como “considerações reflexivas sobre a linguagem”) e não o contrário: sem
escrita não há metalinguagem - a oralidade, no curso de sua linearidade, é incapaz de
oferecer uma visão simultânea e especializada dos fenômenos da língua. Ofertando-se
como uma tecnologia capaz de agrupar e pôr em relação fenômenos dispersos - como
através de tabelas -, a escrita permite o desenvolvimento de um “sistema notacional”, um
“corpo de doutrina” que dá a linguagem meios de intervir, como técnica, sobre si mesma.
É central para sua primeira tese a diferenciação entre conhecimento epilinguístico e
conhecimento metalinguístico:

10 R epara-se, aqui, nas paráfrases entre “n ascim ento das ciên cias da lin gu agem ” (defin ição da tese 1 no
prefácio), “n ascim ento das m etalin guagens” (nom e do C apítulo 1) e “con sid erações reflexivas sobre a
lingu agem hum ana” (exp licação à tese 1 no P refácio). E ssa s paráfrases serão retom adas para d iscussão.

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O saber lin gu ístico é m últiplo e principia naturalm ente na co n sc iên cia do hom em
falante. E le é epilinguístico, não co locad o por si na representação antes de ser
m etalin guístico, isto é, representado, construído e m anipulado enquanto tal co m a
ajuda de u m a m etalin guagem (elem en tos au ton ím icos e n om es para sign os, cf. R ey
D eb o v e, 1978; A uroux, 1919). (A U R O U X , 1992, p. 16, grifos do autor)

Nessa formulação, Auroux abre uma nota de rodapé sobre o termo


‘epilinguístico’, deixando para seção marginal do texto um esclarecimento que julgamos
fundamental à compreensão de suas teses. Em nota, Auroux aponta que tomou o conceito
de “epilinguismo” de Antoine Culioli, assumindo o que o linguista define como “saber
inconsciente que todo locutor tem sobre a língua” como “saber não representado” . Auroux
sustenta, então, que se não sabemos o que sabemos (inconsciência) é porque não
dispomos de um meio de notação (metalinguagem). Ele segue:

A in da que a ex istên cia de elem en tos de representação m etalin güística co lo q u e um


lim ite entre o ep ilin gü ístico e o m etalin güístico, é evidente que é preciso antes
considerar a relação entre o s d o is co m o u m continuum : o prim eiro não pára c o m o
aparecim ento do segundo; este últim o não traz autom aticam ente u m conteúdo n ovo
sem entrar no m etalingüístico; en fim , p od em os constatar a elaboração de
procedim entos co d ifica d o s (jo g o s de lin gu agem etc.) para m anifestar a co n sciên cia
epilingü ística. Contrariam ente ao saber das co isa s naturais, o próprio do saber
lin gü ístico é que é p r e c iso a c e ita r q u e e x iste u m c e rto se n tid o d a p a la v r a sa b e r no
qual é p o ssív e l d izer que u m locutor sabe o que é u m n om e, antes m esm o que exista
palavras para d izê-lo e gram áticos (cf. J. B ou tet et al., "Savoir dire sur la phrase", em:
A rch ives de P sy ch o lo g ie, no 51, 1 9 8 3 :2 0 5 -2 8 ). Isto não im p lica (contrariam ente ao
que parece afirmar E sa Itkonen, 1978) que o saber do gram ático d eva ser a
representação d esse saber in con scien te. E nfim , todo aparecim ento de m etalin guagem
(ex iste em prego quotidiano dela) não d esem b o ca n ecessariam ente sobre o tipo de
saber lin gü ístico que con sid eram os co m o u m sa b e r n o se n tid o p a r tic u la r em q u e
c o n sid e r a m o s n u m a tr a d iç ã o g ra m a tica l. Poderíam os definir aproxim adam ente
e sse se n tid o p e lo s tr ê s c r ité r io s e x te r n o s se g u in te s, se n d o q u e o te r c e ir o in tr o d u z ,
sem d ú v id a , u m a r e striç ã o ex c essiv a : 1. tr a n sm issã o tr a d ic io n a l e sp e c ífic a ; 2.
lig a ç ã o co m as a rtes d a lin g u a g e m ; 3. n o r m a s d e a d e q u a ç ã o d a s a sse r ç õ e s
c o n tr o la d a s p e la s d isc u ssõ e s, e m e sm o p r o to c o lo s e x p líc ito s (c o n sistê n c ia ló g ic a ,
e x e m p lo s c a n ô n ic o s, fa to s). (A U R O U X , 1992, p. 34, grifos n o sso s)

Nessa definição deixada à margem, Auroux nos mostra que está tratando não
apenas de tipos de saber linguístico, mas de tipos de saber metalinguístico. Parece-nos,
dessa forma, que sua tese sobre o nascimento das metalinguagens, à qual se dedica no
Capítulo 1, está tratando particularmente desse saber ao qual ele impõe critérios: ser
transmitido de forma específica, ser ligado às artes da linguagem (Lógica, Gramática e
Retórica), e de alguma forma estabelecer relação com normas e protocolos. A nota é

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Instrumentos Linguísticos
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referida em outra passagem:

M as ainda aí o saber m etalin guístico m ítico não se con ecta à prática e o saber fazer
ep ilin gu ístico não se transform a em um a técn ica verbalizada. Ora, é esta
transform ação que m arca o nascim ento que estam os habituados a considerar com o um
verdadeiro saber (m eta)lin guístico, quando a m etalin guagem tom a a cargo as
m anip ulações efetu á v eis sobre a lin gu agem n ela m esm a (ver nota 4). Tudo parece
mostrar que não ex iste v e r d a d e ir o sa b e r g r a m a tic a l o ra l, sendo que o s fatos
ju stifica m a posteriori a etim o lo g ia da palavra gramática (do grego gramma, letra)
p ela qual o O cidente d esig n o u a parte essen cia l de seu saber lin g u ístico ” (A U R O U X ,
1992, p. 19)

Nessa passagem, Auroux está mobilizando “saber gramatical” como o ponto de


ruptura entre saber epilinguístico e saber metalinguístico. O estabelecimento de critérios
para a equivalência entre “saber linguístico” e “saber gramatical” nos parece fundamental
porque determina os conceitos de gramatização e de instrumento linguístico. Instrumento
linguístico seria, dessa forma, instrumento de produção de um saber específico -
transmitido em tradição específica, ligado às artes da linguagem e produtor de asserções
controladas por normas e protocolos. Gramatização seria, portanto, a disseminação dessa
forma de saber pelo mundo.
Lembremos que essa discussão está sendo feita a partir da História e da Filosofia
da Ciência, campos para os quais o conceito de instrumento é central. O conceito de
instrumento é o que permite a Auroux uma posição diante da história da ciência
linguística e de uma filosofia da linguagem: ele mobiliza o conceito de instrumento para
sustentar que o saber metalinguístico não é a descrição da linguagem natural, mas
resultado da intervenção do homem a partir de uma técnica. Entre o conceito de
gramatização e o de instrumento linguístico, Auroux define o que entende como
gramática: “uma gramática contém (pelo menos): a. uma categorização das unidades; b.
exemplo; c. regras mais ou menos explícitas para construir enunciados (os exemplos
escolhidos podem tomar seu lugar)” (AUROUX, 1992, p. 6 6 ).
Importa notar que Gramática não está sendo definida por seu conteúdo, mas por
sua função de produção de unidade. Assim, quando define gramatização como “processo
que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que
ainda hoje são a base de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário”, nos
parece que a gramatização está para “a base de nosso saber metalinguístico” e não para
os instrumentos linguísticos em si. Gramáticas e dicionários produzem um tipo de saber
específico - o saber metalinguístico (saber transmitido de forma específica, ligado às artes
da linguagem e produtor de asserções controladas por normas e protocolos) - que é um

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saber produtor do efeito de unidade da língua.


A nossa insistência na questão da definição de saber metalinguístico é porque
entendemos que há, aí, uma relação estabelecida, mas não reconhecida por Auroux, entre
conhecimento metalinguístico e direito, como relação fundamental ao processo de
gramatização. Auroux aponta duas causas para esse processo: a alteridade e um a dada
política de língua, articuladas pela contingência histórica do Renascimento europeu -
aparecimento da imprensa, desenvolvimento do capitalismo mercantil, colonização,
grandes navegações, desenvolvimento dos Estado nacionais. Aqui chegamos a um ponto
fundamental de nossa discussão:

A expansão das nações acarreta indiscutivelmente uma situação de luta entre elas, o
que se traduz, ao final, por uma concorrência, reforçada porque institucionalizada,
entre as línguas. A velha correspondência uma língua, uma nação, tomando valor não
mais pelo passado mas pelo futuro, adquire um novo sentido: as nações transformadas,
quando puderam, em Estados, estes vão fazer da aprendizagem do uso de uma língua
oficial u m a o b r ig a ç ã o para os cidadãos (AUROUX, 1992, p. 49, grifos em negritos
nossos).

Essa obrigação dos cidadãos a uma língua oficial pelos Estados não é a realização
espontânea da história, mas realização do direito - especificamente do direito burguês
como Aparelho Repressivo e Ideológico do Estado burguês (ALTHUSSER, 1999), forma
histórica do modo de produção capitalista. O fato de que o Renascimento organize uma
política linguística, configurando uma revolução tecnológica que “transformará para
sempre a ecologia da comunicação humana”, está fundamentalmente relacionado ao
direito.
A falta do sujeito e da luta de classes no corpo teórico mobilizado por Auroux
(BALDINI; RIBEIRO, T; RIBEIRO, K, 2019) não lhe dá instrumentos científicos para
trabalhar aquilo que funda a HIL no Brasil: a relação indissociável entre língua, sujeito,
Estado, Nação. Sem as noções de assujeitamento e ideologia (DINIZ; ZOPPI-
FONTANA, 2008), Auroux toma o desenvolvimento dos estados nacionais como pano
de fundo da história da língua; para a HIL/AD, diferentemente, a língua é o lugar de
constituição da nacionalidade.

Esta cultura corresponde a uma verdadeira p o lític a lin g u ístic a realizada pelo
absolutismo centralizador na França e na Espanha, encontrando dificuldade em
resolver la questione della língua na Itália, evoluindo com as discussões dos
gramáticos alemães sobre a natureza do hoschdeutsch.
Compreende-se mal esta entrada em cena dos vernáculos, se não a colocamos em
perspectiva com três elementos fundamentais: a renovação da gramática latina, a
imprensa e as grandes descobertas. (AUROUX, 1992, p. 50, grifos em negritos

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n o sso s)

Auroux deixa escapar, portanto, outros elementos sem os quais se compreende


mal a entrada em cena da gramatização dos vernáculos europeus: o direito, produção
histórica do Estado burguês; mas também a Universidade, instituição que reorganiza a
produção de saberes, transformando uma divisão social do trabalho de leitura
(PÊCHEUX, 1994). O texto não define ‘política linguística’ e, embora use também a
expressão ‘política de língua’, certamente não o faz no sentido formulado pela HIL/AD.
Se recuperamos a passagem em que define seu objeto - “seja a linguagem humana, tal
como ela se realizou na diversidade das línguas; saberes se constituíram a seu respeito;
este é o nosso objeto” -, entendemos daí que a atividade humana produz saberes sobre a
língua e ao mesmo tempo a administração desses saberes.
Para seguir no percurso de compreensão do lugar do direito no processo de
gramatização brasileira, entendemos é necessário investir também na compreensão das
formas como a questão do saber tem sido trabalhada pela HIL no Brasil: quando a HIL
propõe tomar os instrumentos linguísticos como objetos históricos e discursivos, quais
efeitos isso produz sobre os critérios que definem o que é conhecimento metalinguístico?
Como o deslocamento da HIL reorganiza e define o que é metalinguagem? É possível
dizer que, para HIL, “conhecimento metalinguístico” é o mesmo que “saber sobre a
língua”?
Entendemos, assim, que o conceito de instrumento linguístico-jurídico, formulado
a partir da relação entre a HIL e AD, promove uma demanda pelo investimento em uma
epistemologia de base materialista que nos permita compreender como cada modo de
produção determina a produção e administração desses saberes. Entendemos, também,
que a questão do saber, quando lido a partir do materialismo histórico-dialético, deve
necessariamente conduzir a História das Ideias Linguísticas a pensar o saber em relação
ao trabalho, categoria ontológica do marxismo (MARX, 2013). Saberes não se
constituem, como afirma Auroux, na espontaneidade da atividade humana, mas são
determinados pela reprodução das bases materiais da vida pela atividade do trabalho
enquanto mediação entre o homem e a natureza.
Pensar a questão do saber em relação à categoria trabalho nos faz discutir como o
fato inescapável de que ser sujeito em relação a uma ou várias línguas supõe
necessariamente uma divisão desigual das línguas em um espaço de enunciação, efeito da
história de constituição dos estados nacionais como estados de direito e na forma como,

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no modo de produção capitalista, essa divisão incide fundamentalmente sobre as


diferenças trabalhador/não trabalhador (HERBERT [PÊCHEUX], 2015 [1966]). A partir
de uma leitura materialista da questão do saber é que entendemos poder continuar
investindo na forma como, nessa relação entre saber e trabalho, direito e Universidade se
articulam na produção de desigualdades fundamentais ao modo de produção capitalista.

4. De volta ao conceito de instrum ento linguístico-jurídico


O processo investigativo nos mostrou que a pergunta sobre a natureza/essência de
um instrumento linguístico-jurídico reduz a dicotomias a complexidade dialética
reconhecida por uma abordagem materialista da história da língua; busca esgotar um
trabalho que, na verdade, está por começar: o de entender como o funcionamento daquela
materialidade, produzida em condições de produção específicas, está articulando sob
formas complexas o direito e a língua. Não se trata de perguntar o que é um instrumento
linguístico-jurídico, mas como ele funciona.
A inserção do ‘jurídico’ em ‘instrumento linguístico-jurídico’ não se dá, assim,
como termo descritivo que etiquetaria as caixas do arquivo sinalizando que, ali, há
documentos reduzidos à soma do ‘linguístico’ ao ‘jurídico’. Sua finalidade, no trabalho
teórico-analítico de arquivo realizado a partir da HIL/AD, não é descrever os documentos
desse arquivo, mas construí-lo, através da formulação de instrumentos científicos
(sistema nocional) que permitam alcançar relações que não se dão como dadas. Trata-se,
assim, da proposição de um conceito que permita trabalhar a presença do direito
atravessando, de diferentes formas e em diferentes dimensões, a relação constitutiva entre
língua, sujeito, Estado e Nação. Trata-se, de outra forma, com o hífen que teoricamente
articula ‘linguístico-jurídico’, de sustentar que não há como ignorar ou contornar o direito
nas reflexões sobre os processos de gramatização: a gramática é impossível sem o direito,
e o direito impossível sem a gramática.
O conceito de instrumento linguístico-jurídico marca a juridicidade constitutiva
dos instrumentos linguísticos. Mobilizando o conceito, toma-se o processo de
gramatização como processo de regulação jurídica da língua, e esse jurídico
compreendido em sua instância institucional - emergência dos Estados nacionais no
modo de produção de capitalista e conformação entre forma política e forma jurídica cujo
átomo é o sujeito de direito - e, também, em sua instância constitutiva, como
funcionamento .
A partir de Mascaro (2013), compreendemos que forma política e forma jurídica

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são formas específicas erigidas no processo de reprodução social capitalista; são formas
sociais necessárias à engrenagem do modo de produção. A forma jurídica abstrata tem
como elemento fundamental o sujeito de direito (KASHIURA JR., 2014),
determinantemente vinculado ao processo de troca mercantil: o sujeito de direito é um
“possuidor de mercadorias abstrato e ascendido aos céus” (PACHUKANIS, 2017, p.
158). A forma política de Estado também é uma especificidade do modo de produção
capitalista, que, ao mesmo tempo, se apresenta como aparato social terceiro das relações
econômicas e jurídicas e como garantidor da reprodução dessas relações.
Conforme anunciamos na introdução deste texto, sujeito de direito, forma política
e forma jurídica têm no nosso trabalho teórico-analítico estatuto conceitual sustentado na
articulação entre uma perspectiva materialista do discurso e uma perspectiva materialista
do direito. Tal articulação já é presente nos textos inaugurais da Análise materialista de
Discurso pelo próprio Michel Pêcheux - como em Semântica e Discurso: uma crítica à
afirmação do óbvio (1975/1990) - , em momentos nos quais o filósofo convoca Louis
Althusser e Bernard Edelman sobretudo para o desenvolvimento teórico do conceito de
forma-sujeito do discurso, no qual intervém decisivamente - ainda que de forma menos
explícita do que poderia - a leitura de O direito captado pela fotografia (EDELMAN,
1976)11.
A sequência desse trabalho teórico-analítico aponta, dessa forma, para a
necessidade de investir na relação entre ideologia e assujeitamento como lugar de trabalho
da relação entre língua e direito, especialmente a partir do diálogo entre a Análise
materialista de Discurso e a crítica marxista do direito. Esse investimento segue o
percurso aberto por Claudine Haroche, em Fazer Dizer, Querer Dizer (1992) no trabalho
da relação entre língua, direito, Estado e constituição da subjetividade, relação que, como
vimos, se mostra incontornável em nosso processo de trabalho com o conceito de
instrumento linguístico-jurídico:

C om a con stituição de u m Estado centralizador e o progresso do jurídico, a questão


da am biguidade se d eslo ca e v a i contribuir para d efinir o sujeito de form a b em m ais
com p lexa. A id eo lo g ia jurídica v a i-se insinuar sub-repticiam ente no sujeito para fazer
d ele algu ém intercam biável, “qualquer um ” , fa zen d o -o ou levand o-o a crer, ao m esm o
tem po, que ele é algu ém singular. (H A R O C H E , 1992, p. 59).

Explica Haroche que há “ [...] traço de funcionamentos ideológicos no próprio

11 Cf. S igales-G o n ça lv es (2021).

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interior de mecanismos considerados estritamente lingmsticos”, de modo que a “a


influência do jurídico se adivinha em certos procedimentos discursivos (em particular
determinativos), contribuindo então para o caráter jurídico do sujeito na gramática”
(HAROCHE, 1992, p. 48). Assim, com sustentação em Haroche, podemos avançar em
direção a compreender que os instrumentos linguísticos-jurídicos têm um funcionamento
jurídico que os determina. Assim, aqueles instrumentos linguísticos que não se produzem
necessariamente nas instâncias do aparelho jurídico (não estão em uma lei, em um projeto
de lei, em uma decisão judicial), também neles se podem observar traços da
sobredeterminação pela ideologia jurídica, no funcionam ento jurídico dessas
textualidades, em um certo modo, próprio do direito no modo de produção capitalista, de
produzir unidade e transparência.
Quando fala desse caráter jurídico do sujeito na gramática, Haroche (1992) traz
Bernard Edelman para indicar o fato de o jurista francês ter tratado da emergência e do
funcionamento do sujeito-de-direito na relação com os Estados Nacionais. Para nós, esse
ponto é fundamental para pensar a produção de instrumentos linguísticos-jurídicos como
políticas linguísticas. Edelman (1976), desde uma perspectiva materialista do direito, nos
mostra como a emergência do sujeito de direito no modo de produção capitalista vai sendo
acompanhada com a captação das formas sociais pela forma jurídica, o que nos traz uma
questão fundamental para o avanço do nosso trabalho teórico-analítico: como
compreender, no processo de gramatização, a captação da produção de saber sobre a
língua pela forma jurídica?; como compreender que, tal como nos mostraram os
funcionamentos trabalhados no PL n° 489/2019 e no Termo de Referência da CSVM,
produzir um saber sobre a língua é se inscrever em formas jurídicas de significação da
língua e da relação dos sujeitos com as línguas? Como estão imbricados nos documentos
do arquivo jurídico sobre direitos linguísticos, tal como no PL n° 489/2019,
conhecimentos, saberes, jurisdições e ações na produção de evidências sobre a quem cabe
dizer, a quem cabe reconhecer e a quem cabe efetivar direitos linguísticos? Tomando as
práticas de regulação jurídica da língua, como essa distribuição desigual dos dizeres sobre
a língua, dominados pelo jurídico, nos leva a compreender, discursivamente, os processos
que significam reconhecimento jurídico e efetivação de direitos linguísticos e seus efeitos
materiais na relação entre sujeitos e línguas no espaço de enunciação?
Também a partir de Haroche encontramos espaço para investir na relação entre a
Universidade e o direito conduzida pela análise do PL n°. 489/2019 e do Termo de
Referência da CSVM. Haroche reconhece na Universidade um papel fundamental na

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escalada do jurídico-político sobre o religioso. É a Universidade responsável por


‘desassujeitar’ o sujeito da religião e assujeitá-lo ao Estado na constituição da forma
sujeito de direito: “A universidade, com efeito, se dedica, de certa forma, a 'desassujeitar'
o sujeito da religião, para assujeitá-lo então ao Estado. [...] É a subordinação da
universidade ao Estado que será a garantia da possibilidade de assujeitamento”
(HAROCHE, 1992, p. 216).
Entendemos que a relação entre universidade e assujeitamento se dá, justamente,
na função de controle do saber, deslocada da religião para a ciência. É dessa forma que
se atam pelo discurso, num caminho de pesquisa a ser desenvolvido, direito,
Universidade, língua, saber, ideologia e assujeitamento. Essas perguntas, sobretudo a
partir do diálogo com Haroche (1992) e Edelman (1973), denunciam que, assim como
temos uma posição materialista diante da relação entre língua, sujeito, Estado e nação,
também é materialista nossa posição diante do próprio direito. O conceito de instrumento
linguístico-jurídico, nesse sentido, precisa necessariamente ser pensado a partir da relação
entre a língua, a subjetividade jurídica e a constituição dos Estados nacionais na
conformação, própria do modo de produção, entre a forma política e a forma jurídica.
Esse percurso de investigação segue, agora, a partir da formulação de novas asserções,
que mantêm em movimento o trabalho de arquivo:
(a) Enquanto dispositivo de trabalho do analista, o conceito de instrumento
linguístico-jurídico não pretende dizer da natureza do documento, mas das perguntas que
o analista faz a esse documento.
(b) O conceito de instrumento linguístico-jurídico busca tensionar a presença do
direito na relação indissociável entre língua/sujeito/Estado/Nação, fazendo o analista
compreendê-la como relação entre: línguas e língua nacional/sujeito de direito/Estado de
direito/Nação - em que direito deve ser lido como direito burguês.
(c) Há uma juridicidade constitutiva no processo de gramatização brasileira, o que
faz a questão do direito intervir decisivamente na relação língua/sujeito/Estado/Nação
para tomar o processo de gramatização como um processo de juridicização da língua, em
que é determinante o funcionamento jurídico da produção de saber sobre a língua;
(d) O trabalho da relação entre a língua e o direito deve avançar sobre a relação
entre assujeitamento e Ideologia; não há instrumento sem sujeito, não há sujeito sem
ideologia, não há ideologia sem luta de classes.
(e) Direito e Ciência estão articulados pelo modo de produção capitalista na
produção de uma razão universal que sustenta os sentidos de liberdade e de igualdade

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necessárias à forma sujeito de direito. Nessa relação, a Universidade é a instituição que


dá corpo à ciência. Para a questão da língua, direito e universidade articulam-se na
constituição de um efeito de unidade da língua;
(f) Para pensar o lugar do direito no processo de gramatização, uma epistemologia
de base materialista deve necessariamente conduzir à relação entre saber e trabalho.

Considerações finais

Mobilizando o conceito de instrumento linguístico-jurídico e a partir da análise de


documentos relacionados aos direitos linguísticos no Brasil - Termo de Referência da
Cátedra Sérgio Vieira de Mello e Projeto de Lei n° 489/2019 -, nosso trabalho pretendeu
apresentar questões atuais sobre o processo de intervenção do direito nas línguas,
intervenção esta que produz efeitos materiais na relação entre os sujeitos, as línguas e os
Estados Nacionais. As análises apontaram para a divisão desigual na produção de saberes
sobre a língua, em que o Estado ocupa, pela regulação jurídica (pelo Direito), uma posição
da qual se constroem saberes sobre a língua.
O funcionamento das textualidades flagra uma divisão interna no próprio Estado,
em que a Universidade, por meio da pesquisa, do ensino e da extensão, é a instância
nomeada, particularizada, como responsável por ações voltadas aos direitos linguísticos
tanto dos refugiados, no caso do Termo, como “dos brasileiros”, no caso do PL n°
489/2019. No PL, especificamente, opera uma indeterminação dos sentidos de “direitos
linguísticos” e “dos brasileiros” . Ainda que enunciados definidores sustentem o texto
legislativo para determinar o que seja “línguas minoritárias”, “língua materna” e
“comunidade de acolhimento”, opera uma evidência do que sejam “direitos linguísticos”
e “brasileiros”. Assim como também opera a evidência de que a Universidade é a
instância nomeada para realizar ações de efetivação desses direitos.
O nosso trabalho identificou uma relação indissociável entre o direito e a
universidade na produção da regulação jurídica da língua. Com este trabalho, chamamos
a atenção para uma consequência da inscrição materialista e dialética do conceito de
instrumento linguístico-jurídico: não é questão de determinar a priori se determinado
documento “é ou não é instrumento linguístico-jurídico”, em função do domínio
discursivo (o domínio do jurídico, das instâncias jurídicas, sejam elas judiciais ou
legislativas, por exemplo) ou o gênero discursivo (se decisão judicial, lei ou projeto de
lei, por exemplo); trata-se, sim, de compreender o funcionamento jurídico das

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textualidades, que aí sim as constituem como instrumento linguístico-jurídico nos


diferentes gestos de produzir “inscreve em saberes”/”conhecimentos” sobre a língua.
O conceito de instrumento linguístico-jurídico intervém na relação “língua,
sujeito, Estado e Nação”, assumida na articulação AD/HIL, para tomá-la como relação
entre língua - sujeito de direito - Estado de direito - Nação. A relação entre os conceitos
de ‘instrumento linguístico-jurídico’ e de ‘instrumento linguístico’ não é, portanto, uma
relação de acréscimo, mas de deslocamento, ressignificação, correspondente à mutação
conceitual (HENRY, 1997, p. 16) que funda a História das Ideias Linguísticas no Brasil
como um campo diferente do realizado na França. A presença do jurídico no nome
“instrumento linguístico-jurídico” explicita que a intervenção do direito no processo de
gramatização é decisiva, incontornável, desde que a posição epistemológica assumida
para pensar o político das línguas seja a posição materialista. Tomando a relação entre
língua-sujeito-Estado-Nação, trabalhada na HIL, quando propomos o conceito de
instrumento linguístico-jurídico colocamos a intervir nesse campo de relações o
incontornável do jurídico sustentando a produção de saber sobre a língua no modo de
produção capitalista.

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SABERES M ETA LIN G U ÍSTIC O S E M UMA C A RTILH A DE


PED A G O G IZA Ç Ã O A N TIRRA CISTA

M ETA LIN G U ISTIC K N O W LED G E IN AN A N TI-RA C IST


PE D A G O G IZA TIO N B O O K L ET

Marcus M enezes 1
Universidade Estadual de Santa Cruz

Resumo: Neste texto, a partir da articulação entre a Análise de Discurso (AD) materialista e a
História das Ideias Linguísticas (HIL), objetivo compreender como o saber metalinguístico
funciona na cartilha temática Direitos humanos e o combate ao racismo, da Escola do Legislativo
de Patos de Minas (2021). Entendo a cartilha temática como um instrumento regulatório da vida
em sociedade (SILVA, 2014), que tematiza diversos temas, como saúde, raça e gênero. Além
disso, é um objeto deslocado do espaço escolar a partir da cartilha de alfabetização (SILVA e
PFEIFFER, 2014), esse compreendido como um instrumento linguístico (AUROUX, 2014). Em
nível de descrição, o objeto analisado apresenta diversos saberes metalinguísticos, como sentidos
de raça e cor, mas também apresenta expressões consideradas racistas, como denegrir e inveja
branca. Os gestos analíticos indicam que a mobilização de alguns dos saberes textualizados não
é sustentada por uma fundamentação técnica externa. Nessa discursividade, é possível dizer que
atravessam o objeto analisado discursos de e sobre raça (MODESTO, 2021) que permitem pensar
como a língua é significada. Há um jogo entre língua imaginária e língua fluida (ORLANDI,
2013) em que tais saberes são produzidos ora por um efeito de completude, funcionando como
um dicionário; ora por efeito de incompletude, em que a língua é passível de jogo (PÊCHEUX,
2014a). Por fim, compreendo que, apesar do deslizamento, a cartilha temática, assim como a
cartilha de alfabetização, constitui pelo linguístico os sujeitos como sujeito do conhecimento e
para uma vida social (ORLANDI, 2013).
Palavras-chave: Cartilha; Racismo; Instrumento Linguístico; Análise de Discurso; História das
Ideias Linguísticas.

Abstract: In this text, based on the articulation between materialistic Discourse Analysis (AD)
and the History of Linguistic Ideas (HIL), the objective is to understand how metalinguistic
knowledge works in the thematic booklet Direitos humanos e o combate ao racismo, da Escola
do Legislativo de Patos de Minas (2021). I understand the thematic booklet as a regulatory
instrument of life in society (SILVA, 2014), which addresses various topics, such as health, race
and gender. In addition, it is an object displaced from the school space based on the literacy
booklet (SILVA and PFEIFFER, 2014), understood as a linguistic instrument (AUROUX, 2014).
At the level of description, the analyzed object presents various metalinguistic knowledge, such
as race and color, but also presents expressions considered racist, such as denigration and white
envy. Analytical gestures indicate that the mobilization of some of the textualized knowledge is

1 M estrando p elo Program a de Pós-graduação em Letras: L in gu agen s e R ep resen tações p ela U niversidad e
Estadual de Santa Cruz, graduado em Letras p ela U niversidad e E stadual do Sudoeste da Bahia, m em bro do
Grupo de P esq u isa D iscu rso e T e n sõ es R aciais (U E S C /C N P q ) e b olsista da Fundação de A m paro à P esquisa
do Estado da B ah ia. E-m ail: m arcu svam en ezes@ gm ail.com .

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Instrumentos Linguísticos
196

not supported by an externai technical foundation. In this discursivity, it is possible to say that
discourses o f and about race (MODESTO, 2021) cross the analyzed object that allow us to think
about how language is signified. There is a game between imaginary language and fluid language
(ORLANDI, 2013) in which such knowledge is produced sometimes by an effect of completeness,
functioning as a dictionary; sometimes due to the effect of incompleteness, in which the language
is subject to play (PÊCHEUX, 2014a). Finally, I understand that, despite the slippage, the
thematic booklet, as well as the literacy booklet, constitutes, through linguistics, subjects as
subjects of knowledge and for a social life (ORLANDI, 2013).
Keywords: Booklet; Racism; Linguistic Instrument; Discourse Analysis; History of Linguistic
Ideas.

Subm etido em 17 de julho de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

Considerações iniciais
Em A revolução tecnológica da gramatização, Sylvain Auroux assevera que “o
saber linguístico é múltiplo e principia naturalmente na consciência do homem falante”
(AUROUX, 2014, p. 17). A partir disso, o saber linguístico é apresentado como
epilinguístico antes de ser metalinguístico. Enquanto epilinguístico, tal saber é
inconsciente, não-representado. É o saber que todo locutor sabe, mas não sabe que sabe.
Ao passo que o saber metalinguístico é aquele representado, construído e manipulado a
partir de uma metalinguagem (elementos autonômicos e nomes para os signos). Auroux
(2014) divide o saber metalinguístico em natureza especulativa (a representação abstrata)
e natureza prática, esse dividido em três domínios: 1) o domínio da enunciação: a
capacidade de um sujeito adequar sua fala em vista de uma finalidade; 2 ) o domínio das
línguas: falar e/ou compreender uma língua e 3 ) o domínio da escrita.
Ainda na referida obra, Auroux (2014) conceitua gramatização como processo
que conduz a descrição e a instrumentalização de uma língua a partir da gramática e do
dicionário, duas tecnologias que, conforme o autor, são pilares do nosso saber
metalinguístico. Tais tecnologias são conceituadas como instrumentos linguísticos que
dão acesso a regras e formas que não figuram na competência de um locutor. Apesar de
citar apenas duas tecnologias, o conceito de instrumento linguístico pode ser ampliado
para outros objetos que tratam do linguístico, como os livros didáticos e as cartilhas de
alfabetização, uma vez que essas, assim como a gramática e o dicionário, também
descrevem e instrumentalizam uma língua, constituindo sujeitos em relação a regras que
devem ser seguidas.
No âmbito da Análise de Discurso (AD) materialista e História das Ideias

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Instrumentos Linguísticos
197

Linguísticas (HIL), os instrumentos linguísticos não são compreendidos apenas como


normativos (já que impõem formas de falar e escrever uma língua), mas também como
objetos históricos e discursivos, pois organizam nossa formação social. Eni Orlandi, por
exemplo, cita que pensar a gramática desse modo possibilita “questionar sobre o modo
como ela inscreve o sujeito na vida social, em relações pelas quais ele se identifica com
‘seu’ grupo social, como sujeito de um Estado, de um país, de uma nação” (ORLANDI,
2013, p. 18). Nesse contexto, a autora discute que a escola tem importância pela produção,
a forma e o funcionamento dos instrumentos linguísticos.
É dessa forma que compreendo que o saber metalinguístico é, em geral,
relacionado ao espaço escolar pela circulação de gramáticas, dicionários, livros didáticos,
cartilhas de alfabetização e outros. Neste trabalho, entretanto, à luz da AD e da HIL, busco
compreender como esse saber funciona em um espaço que circula conhecimento fora do
ambiente escolar. Para isso, tomo como objeto de análise uma cartilha temática, intitulada
Direitos humanos e o combate ao racismo (2021), que compõe o arquivo 2 (BARBOSA
FILHO, 2022) de minha pesquisa de mestrado em andamento3. No mestrado, analiso duas
cartilhas de saúde para a população LGBT+ que têm como tema a pandemia de COVID-
19, mas, para compreender a constituição, a formulação e a circulação (ORLANDI, 2022)
das cartilhas temáticas, analiso meu corpus a partir de um arquivo de cartilhas que
tematizam diversos temas, como saúde, gênero, raça e outros, para diferentes leitores.
Nas discussões que tenho empreendido, tenho considerado, a partir de Mariza
Silva (2014), que a circulação de conhecimento fora do espaço escolar ocorre pela perda
de credibilidade do saber escolar e seus instrumentos diante de uma defasagem produzida
pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia, dado que o conhecimento pode ser
acessado a partir de outras formas mais produtivas, como, por exemplo, na Internet.
Entretanto, algumas dessas formas são advindas da escola, como as cartilhas. Isso porque

2 C onform e B arbosa F ilh o (2 0 2 2 ), o arquivo na A n álise de D iscu rso não é entendido por um a p erspectiva
historiográfica co m o apenas um repositório de dados e d ocum entos, p ois, em um a perspectiva discursiva,
“quando tom am os o documento como feixe de um arquivo ou o arquivo como campo de documentos,
consideram os este(s) d ocu m ento(s) com o u m espaço de m últiplas d eterm in ações. O d ocum ento é um
suporte m aterial, ou seja, h istórico, que supõe um a ex istên cia form al. É essa com preensão que fa z d ele m ais
que u m v e íc u lo . N e le fu n cion am form u lações que, irrem ediavelm ente, apontam para outras form u lações
que ele silencia, nega, parodia, parafraseia etc. N e le fun cion am , tam bém , relações de sentido que só p od em
ser descritas quando da consideração da m aterialidade da língu a. É por isso que este documento singular
pode ser considerado u m arquivo: justam ente porque ele não é singular, m as o resultado de p rocessos. E le
tem esse efeito de unidade garantido por um a ex istên cia form al. M as essa ex istên cia form al não é h om ó lo g a
à sua m aterialidade” (B A R B O S A FILH O , 2 0 2 2 , p. 11, grifos do autor).
3 P esq u isa de título p rovisório Ler cartilhas hoje: a pedagogização da saúde de sujeitos LGBT+ em
sociedade, orientada p elo prof. Dr. R ogério M od esto, na U niversidad e E stadual de Santa Cruz, co m
financiam ento da Fundação de A m paro à P esq u isa do Estado da B ah ia.

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Instrumentos Linguísticos
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também considero, conforme Mariza Silva e Cláudia Pfeiffer (2014), que há um


deslizamento das cartilhas de alfabetização para as cartilhas temáticas pela relação entre
língua e conhecimento. Há um sujeito que sabe a língua e o sujeito que sabe sobre a língua
que desliza para um sujeito que não sabe sobre determinado conhecimento e outro que é
capaz de ensiná-lo. Assim, as cartilhas temáticas apresentam informações e instruções,
ou seja, coisas-a-saber4 (PÊCHEUX, 2015a), funcionando como um instrumento
regulatório da vida em sociedade, a partir de uma pedagogização (SILVA, 2014).
Contudo, com a montagem do arquivo da pesquisa, que produz um efeito de
unidade (BARBOSA FILHO, 2022) ao colocar em relação cartilhas que não têm uma
ligação direta entre si, identifico como regularidade a textualização de saberes
metalinguísticos mesmo em cartilhas temáticas. Cito alguns exemplos. Em Saúde LGBT
em tempos de pandemia de COVID-19 (2020), tem um glossário intitulado Ficou com
dúvida em alguma palavra? Veja os significados aqui que aborda palavras do pajubá
utilizadas na cartilha. Um glossário também comparece em Saúde da população LGBT
no contexto da pandemia de COVID-19 (2020), apresentando os conceitos de sexo,
gênero, identidade de gênero, sexualidade e outros. Em uma cartilha para crianças
intitulada Novo Coronavírus - Vamos nos proteger (2 0 2 0 ), a seção Algumas palavras
para você aprender dispõe de formulações como Ministério da Saúde, Epidemia,
Pulmões e outras. Nesse sentido, há um excesso 45 (ERNST-PEREIRA, 2009) de
formulação de glossários em cartilhas de saúde que tematizam a COVID-19.
Os glossários e outros saberes metalinguísticos também são frequentes em
cartilhas que tematizam o racismo. Na Cartilha antirracista (2020), da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, há dois momentos específicos em

O que se pode e se deve comer: uma leitura discursiva sobre sujeito


4 N a tese de doutoram ento intitulada
e alimentação nas enciclopédias brasileiras (1863 1973), P h ellip e M arcel da S ilva E stev es analisa o
discurso sobre co m id a e alim entação em en ciclo p éd ia s brasileiras publicadas no período de 100 anos. E m
relação a coisas-a-saber, o autor discu te isso com o “o s con h ecim en tos que con stituem o sujeito, que o
interpelam , que o in screvem num a dada form ação social e sem o s quais sua ex istên cia pragm ática é
am eaçada” (E S T E V E S , 2 0 1 4 , p. 48). A in da na p esquisa, E stev es reflete que “as en ciclo p éd ia s ocu p am o
lugar de forn ecer o s sentidos para que esse sujeito pragm ático p o ssa satisfazer as n ecessid ad es da vid a
cotidiana, p o ssa saber aquilo que deve saber” (E S T E V E S , 2 0 1 4 , p. 48). É n esse sentido que, assim com o
as en ciclop éd ias, as cartilhas (tanto as de alfabetização quanto as tem áticas) fu n cion am em v ista daquilo
que é projetado co m o necessário de con h ecim en to de determ inado sujeito.
5 A autora A racy Ersnt-Pereira (2 0 0 9 ) propõe o s co n ceito s de falta, excesso e estranhamento co m o form as
de abordar u m objeto d iscu rsivo. A falta é u m a estratégia d iscu rsiva que ocorre por om issão de palavras,
exp ressões e/o u orações; na om issão de elem en to s interdiscursivos esperados. O excesso é aquilo que está
de form a d em asiada no discurso, com o in cisas e reiterações in cessan tes de determ inados saberes
interdiscursivos. O estranhamento é a estratégia discu rsiva em que in cid e a “ordem do excên trico, isto é,
daquilo que se situa fora do que está sendo dito, m as que in cid e na cad eia sign ificante, marcando um a
desordem no en u nciado” (E R SN T -P E R E IR A , 2 0 0 9 , n.p.).

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Instrumentos Linguísticos
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que tais saberes são mobilizados. No primeiro, o texto apresenta o que chama de conceitos
importantes para o aprendizado das relações étnico-raciais, noções como raça, etnia,
gênero, ancestralidade e outras, e, no segundo momento, um glossário com os verbetes
discriminação racial, homofobia, intolerância, racismo etc. Na temática do racismo, o
que é constituído como excesso (ERNST-PEREIRA, 2009) no arquivo são cartilhas que
parecem funcionar como dicionários e glossários, orientando o uso de palavras em
detrimento de outras palavras consideradas racistas. É o caso, por exemplo, de O racismo
sutil por trás das palavras (2 0 2 0 ) e Expressões racistas: como evitá-las (2 0 2 2 ).
No presente trabalho, entretanto, tomo como objeto de análise a cartilha Direitos
humanos e o combate ao racismo (2 0 2 1 ) por, além de tematizar o racismo, abordar, como
apresentarei nos gestos analíticos, saberes metalinguísticos de modo diverso, permitindo
compreender como a língua é significada nessa discursividade. Nesse sentido de
considerar um discurso em relação à língua, levo em conta a noção teórica de Rogério
Modesto (2021) de discursos racializados, esses entendidos como discursos não apenas
temáticos (discursos de e sobre raça), mas também como outros discursos atravessados
pela racialidade, pois, conforme o autor, a racialidade atravessa qualquer produção
discursiva relacionada à formação social brasileira por essa ser constituída pela tensão
racial. Neste texto, estou interessado, então, nos discursos temáticos de e sobre raça em
relação à língua.1

1. A pedagogização an tirracista pelo linguístico


A cartilha Direitos humanos e o combate ao racismo é uma publicação de 2021
da Escola do Legislativo de Patos de Minas em parceria com a Defensoria Pública e o
Centro de Liderança Pública para a celebração do mês da Consciência Negra, mês de
novembro. Segundo o coordenador da Escola do Legislativo, Guilherme Moura Teixeira,
a cartilha, em conjunto com outras atividades, “promove debates e incentiva a
conscientização e a promoção de políticas públicas sobre diferentes temas sociais,
culturais, políticos, entre outros” (CÂMARA MUNICIPAL DE PATOS DE MINAS,
2021, n.p.). A declaração de Moura parece indicar que as políticas públicas são as
condições de produção da cartilha em análise, uma vez que essa é uma das ações para a
promoção de políticas que envolvem questões sociais, como o racismo.
Conforme a Câmara Municipal de Patos de Minas (2021), o objetivo do material
é erradicar quaisquer formas de discriminação e preconceito, fomentando um ambiente
igualitário para todos. Para isso, a cartilha é organizada em subtemas, como: O conceito

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de raça e cor; A origem do racismo ; Expressões populares que refletem o racismo ;


Racismo Institucional e Atitudes para combater o racismo institucional no setor público.
A partir dos temas, e, entendendo, com base em Pêcheux (2015b), que “só é possível dar
visibilidade ao processo discursivo colocando várias sequências em relação”, apresento
Sequências Discursivas (SDs) para gestos de análise com o objetivo de compreender a
mobilização de saberes metalinguísticos na cartilha em questão:

SD 1: O conceito de raça tem sua origem em uma suposta fundamentação


biológica, dentro do paradigma de uma raça inferior e uma raça superior.
Cientificamente, a terminologia é inaplicável à espécie humana. No entanto,
quando nos referimos ao termo, não estamos falando em distinção biológica
mas, sim, em uma construção política e histórica desse conceito (ESCOLA
DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 5).

O recorte acima é da parte do material intitulada Por onde começar a entender o


assunto?, em que são abordados os conceitos de raça e cor. Na SD 1, a origem da noção
de raça é relacionada a uma suposta fundamentação biológica a qual entende que uma
raça é considerada inferior a outra. Em seguida, a cartilha aponta que, cientificamente, o
conceito não é aplicável à espécie humana, mas que, ao usarem, estão utilizando em uma
posição que entende raça a partir de uma construção política e histórica e não biológica .
Do recorte, inicialmente, destaco a palavra suposta e algumas elipses.
Linguisticamente, a formulação suposta é um adjunto adnominal de
fundamentação. Discursivamente, considero aqui que a palavra pode produzir dois efeitos
de sentidos possíveis conforme duas paráfrases: 1) pressuposta fundamentação biológica
e 2) falsa fundamentação biológica . Na primeira, a fundamentação de uma raça inferior
e uma raça superior é significada como uma ideia dada de maneira antecipada, enquanto,
na segunda paráfrase, suposta pode significar que a tal ideia não é verdadeira. Para melhor
compreensão, identifico faltas (ERSNT-PEREIRA, 2009) em dentro do paradigma de
uma raça [ ] inferior e uma raça [ ] superior, que, nesse contexto de humano versus
animal, pode ser preenchido de duas maneiras: 1) dentro do paradigma de uma raça
animal inferior e uma raça animal superior e 2 ) dentro do paradigma de uma raça
humana inferior e uma raça humana superior.
Tensionando as elipses com a ideia apresentada pela SD 1 de que Cientificamente,
a terminologia é inaplicável à espécie humana, o que parece produzir o não-dito de que
Cientificamente, a terminologia é aplicável à espécie animal, compreendo que, nessas
condições de produção, as faltas identificadas só podem ser preenchidas por animal, uma

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vez que o material aparenta estar referindo-se ao paradigma em que uma raça animal pode
ser superior a outra. Nesse sentido, há a produção do efeito de sentido de que o conceito
de raça tem sua origem no pressuposto da ideia da biologia de que, no mundo animal, há
uma hierarquia de raças. Entretanto, se a língua é um “sistema sintático intrinsecamente
passível de jogo” (PÊCHEUX, 2014a), em outras condições de produção, as elipses
podem ser preenchidas por humana, produzindo o efeito de sentido de que raça tem
origem em uma falsa fundamentação oriunda da biologia que entende que há uma raça
humana superior a outra.
Ainda na SD 1, diante da discussão empreendida em relação à origem da noção
de raça , a cartilha marca que trata do termo não na posição de entender como uma
distinção biológica, mas de um modo político e histórico. Isso porque, segundo o material,
“a importância de falarmos sobre raça se dá no sentido de reconstituir a identidade da
população negra no país, que é marcada pela desvalorização de seus traços físicos e de
sua cultura” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 5). Tais
afirmações indicam que os saberes metalinguísticos mobilizados na SD 1 do que é raça
permitem compreender a língua como um espaço de incompletude, corroborando para a
ideia de “a falta, como temos dito, em abundância, é também o lugar do possível na
linguagem” (ORLANDI, 2022, p. 24). Em outras palavras, quando a cartilha traz à baila
dois possíveis sentidos (biológico ou político-histórico), é possível pensar que os sentidos
das palavras não são literais, pois não há apenas um sentido único. O sentido não se fecha.
Como exposto anteriormente, na seção Por onde começar a entender o assunto?,
há a abordagem dos conceitos de raça e cor. Após a exposição de raça, conforme a SD
1, a cartilha trata de cor, consoante à SD abaixo:

SD 2: Já a COR diz respeito à gradação do tom de pele. De forma semelhante,


na perspectiva daqueles que alimentam um pensamento discriminatório, é um
marcador de diferença e indicaria inferioridade daqueles que possuem a
tonalidade mais escura (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE
MINAS, 2021, p. 5).

Na SD 2, a noção de cor é significada em relação à gradação do tom de pele. Nesse


sentido, para pessoas com pensamento discriminatório, a cor, quando marca diferença
entre pessoas, é usada como forma de entender os indivíduos com o tom mais escuro
como inferiores. É desse modo que a cartilha afirma que “a partir desses conceitos [de
raça e cor], toda uma simbologia excludente foi construída no inconsciente coletivo, pela
qual a cor preta representaria o mal, o feio e o sem inteligência, ao passo que a cor branca

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Instrumentos Linguísticos
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representaria o bom, o bonito e o inteligente” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS


DE MINAS, 2021, p. 5, acréscimos meus). A partir disso, penso na noção de sujeito como
indivíduos assujeitados e interpelados inconscientemente pela ideologia (PÊCHEUX,
2014b), o que permite dizer que é a ideologia que produz o efeito de evidência
(ORLANDI, 2015) dos sentidos. Dito de outro modo, constituídos pela ideologia, em
nossa formação social, os sujeitos interpretam a cor preta como o mal, o feio e o sem
inteligência e a cor branca como o bom, o bonito e o inteligente.
O sentido de cor mobilizado pela Escola do Legislativo de Patos de Minas é em
relação a gradação do tom de pele. Conforme a SD 2, esse também é o mesmo sentido
para as pessoas que discriminam outras pela cor da pele. Nessa análise, destaco os verbos
é e indicaria na textualização [a cor, na perspectiva daqueles que alimentam um
pensamento discriminatório,] é um marcador de diferença e indicaria inferioridade
daqueles que possuem a tonalidade mais escura. Diante dos dois verbos em destaque,
chamo atenção para os tempos verbais. O verbo é está na forma irregular do verbo ser na
terceira pessoa do singular do presente do indicativo, enquanto indicaria está na terceira
pessoa do singular do futuro do pretérito do indicativo.
A atenção para tais marcas linguísticas expostas acima é produtiva, pois possibilita
compreender que os diferentes tempos verbais produzem efeitos de sentidos. Parafraseio
o destaque, por exemplo, em [a cor, na perspectiva daqueles que alimentam um
pensamento discriminatório,] é um marcador de diferença e indica inferioridade
daqueles que possuem a tonalidade mais escura, em que o verbo indicar assume a forma
do presente do indicativo. Essa paráfrase pode ser resumida em cor é um marcador de
diferença e indica inferioridade, uma formulação que corrobora com a ideia de que os
tons de pele, ao diferenciar as pessoas, indicam quem é superior, quem é inferior. Dito do
modo da SD 2, o verbo é no presente do indicativo produz o efeito de sentido de que a
cor é um marcador de diferença tanto para aqueles que formulam a cartilha quanto para
os que têm pensamento discriminatório. Entretanto, o verbo indicaria parece marcar
nesse tempo verbal que, apesar da cor marcar diferença entre pessoas, essa diferença não
imputa inferioridade, como pensam as pessoas que discriminam por tom de pele.
Dessa forma, as SD 1 e 2 marcam posições em relação aos sentidos de raça e cor.
Em relação à raça, a cartilha apresenta dois sentidos: o biológico em que uma raça é
superior a outra e o político-histórico em que a raça é tratada para compreender a

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identidade da população negra no Brasil. O material assevera que a noção biológica 6 não
pode ser aplicada à espécie humana, marcando que toma o segundo sentido. São dois
sentidos, duas posições. Já na SD 2, o sentido de cor parece ser o mesmo tanto para quem
formula a cartilha quanto para as pessoas que discriminam. A diferença é que essas
últimas tomam o sentido para inferiorizar as pessoas em detrimento do tom da pele. Por
fim, vale notar que tais sentidos são construídos sem mobilizar outros saberes externos
que poderiam servir de fundamentação técnica. A cartilha indica sentidos de raça e cor
sem mencionar textos especializados para legitimar a discussão.
Em seguida, há a textualização da seção O racismo é um fenômeno social e não
biológico!, ideia sustentada por duas citações do Supremo Tribunal Federal (STF). A
primeira trata-se do voto do relator Ministro Moreira Alves no habeas corpus 82,424/RS
julgado em 2004 pela plenária do STF que articula a noção de racismo como uma
definição jurídico-constitucional que considera os fatores e circunstâncias históricas,
políticas e sociais que permitem sua formação e aplicação no jurídico. A citação também
aborda que o racismo é um atentado contra os princípios da responsabilidade, dignidade
e convivência do ser humano. A segunda citação, o voto do relator Ministro Celso de
Mello na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26/DF julgado em 2019 pela
plenária do STF, trata que o conceito de racismo vai além de aspectos estritamente
biológicos ou fenotípicos, pois, em sua dimensão social, é resultado de uma construção
histórico-cultural motivada por controle ideológico, dominação política, subjugação
social e negação da alteridade (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS,
2 0 2 1 , p. 6 ).

Na seção em questão, a cartilha mobiliza outros saberes metalinguísticos ao


apresentar uma noção de racismo. A definição da palavra como um fenômeno social e
não biológico é fundamentada pelas citações do STF descritas anteriormente, e isso não

6 Projeto aqui u m efeito m etafórico (PÊ C H E U X , 2 0 1 4 b ) de cientificamente na SD 1 em relação à b io lo g ia ,


isso porque, na SD em questão, a form ulação Cientificamente, a terminologia é inaplicável à espécie
humana pode produzir o efeito de sentido de que não é p o ssív e l usar raça na ciên cia . Entretanto, em outras
ciên cias, assim co m o para a E sco la do L e g isla tiv o de Patos de M inas, a n oção de raça rom pe co m a
d iscussão b io ló g ic a do termo. N e sse sentido, M od esto discute: “Trata-se de u m fa lso con ceito cien tífico
que ampara e ju stifica a exploração do outro que é outrizado, inferiorizado e p a ssív el de dom inação. É
justam ente raça, esse fa lso con ceito cien tífico , que respalda contundentem ente o em prego de ‘n eg ro ’ (que,
a reboque, p ela contradição, respalda a noção de ‘b ran co’) (B A R R O S , 2019; B A L IB A R , W A L L E R ST E IN ,
2 0 2 1 ) com o form a de identificação. M esm o assim , se do ponto de v ista b io ló g ic o a n oção de raça e suas
derivadas não se sustentam , do ponto de v ista social, o s efeito s m a léfico s d esse fa lso con ceito cien tífico
perm anecem produzindo grandes con sequ ên cias. Se, b io lo g ica m en te, sab em os não existirem ‘raças’,
socialm ente, no entanto, o efeito da id eia de raça tem reproduzido d esigualdade e realim entado racism o”
(M O D E ST O , 2 0 2 1 , p. 16).

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Instrumentos Linguísticos
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produz um estranhamento (ERSNT-PEREIRA, 2009), dado que uma formação discursiva


jurídica é esperada em um material elaborado nessa instância. Dessa maneira,
diferentemente da construção dos sentidos de raça e cor nas SD 1 e 2, a cartilha
fundamenta o conceito de racismo pela perspectiva do jurídico. Em relação a tais sentidos,
ainda em O racismo é um fenômeno social e não biológico!, a expressão consciência
racial é conceituada como “a noção de que a construção de uma sociedade
verdadeiramente justa depende do reconhecimento coletivo das origens e dos efeitos
sistêmicos da discriminação entre negros e brancos” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE
PATOS DE MINAS, 2021, p. 6 ). Pela perspectiva discursiva, compreendo que a
articulação dos conceitos de raça, cor e racismo objetiva constituir os sujeitos-leitor do
material em vista de uma consciência coletiva em relação ao racismo em nossa formação
social. Pelo linguístico, a cartilha funciona, então, produzindo sujeitos do conhecimento
(ORLANDI, 2013) que possam reconhecer a discriminação entre negros e brancos e sua
origem.
Levando em conta a necessidade de pensar uma origem, a seção seguinte da
Direitos humanos e o combate ao racismo discute quando começou o racismo. Para isso,
aponta o contexto histórico em que as pessoas negras eram tidas como objetos e sofriam
violências como vítimas do tráfico humano e da exploração compulsória de mão de obra.
Entretanto, no Brasil, mesmo pós-escravidão, o racismo produziu políticas de exclusão e
marginalização do negro, de tentativa de branqueamento da população com a imigração
europeia e asiática e de proposta eugênica de educação. Em relação à tentativa de
branqueamento, conforme a cartilha, “a proposta de ocupação do Brasil por imigrantes se
dava não apenas para estimular o processo de branqueamento da sociedade, mas também
como um instrumento estatal de aniquilação do negro e de suas características físicas”
(ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 7). Nesse sentido, o
texto afirma que a indução à miscigenação produziu a noção de democracia racial,
definida como plena igualdade social de brancos e negros, não existindo racismo.
Entretanto, mais uma vez, o saber metalinguístico não é articulado por outro saber
externo.
Posteriormente, a cartilha mobiliza mais saberes metalinguísticos na seção O que
o racismo quer dizer?, conforme as SDs abaixo:

SD 3: Segundo a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, racismo é a


doutrina que afirma a superioridade de determinados grupos étnicos,

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Instrumentos Linguísticos
205

nacionais, linguísticos, religiosos, sobre outros (Lopes, 2014) (ESCOLA DO


LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 8).
SD 4: Importante destacar: o termo etnia não é sinônimo de raça! Ele
se refere a um grupo culturalmente homogêneo, ou seja, povo que tem
os mesmos costumes ou a mesma origem, cultura, língua ou religião
(ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 8 ).

Na SD 3, racismo é significado como uma doutrina que afirma a superioridade de


determinados grupos, sejam esses étnicos, nacionais, linguísticos, religiosos, sobre outros
grupos. A definição da palavra é sustentada pelo saber técnico da Enciclopédia Brasileira
da Diáspora Africana, o que não produz um estranhamento (ERNST-PEREIRA, 2009),
uma vez que uma enciclopédia, em alguma medida, aproxima-se de um dicionário,
funcionando como um objeto que descreve e instrumentaliza uma língua. Considerando
tal aproximação, vale lembrar, conforme Orlandi (2013, p. 121), que “a representação fiel
do dicionário nos dá uma língua (imaginária) homogênea, perfeita, completa, sem falhas,
de todos nós” . É nesse sentido que temos uma língua imaginária, projetada, por exemplo,
pelas gramáticas e pelos dicionários, em que a língua é um sistema fechado com normas,
enquanto há uma outra língua, a língua fluida, que é “a língua no mundo, sem regras que
aprisionem, língua no acontecimento do significar na relação de homens com homens,
sujeitos e sujeitos” (ORLANDI, 2013, p. 13).
Nessa SD, a relação de poder entre branco e negro em nossa formação social
parece silenciada 7 pelas formulações determinados e sobre outros, que não citam de
forma específica as populações branca e negra. Outro silenciamento que chama atenção
é a não-textualização de raciais entre os grupos citados na SD 3, assim como chama
atenção que os grupos étnicos, nacionais, linguísticos, religiosos parecem significar
questões socioculturais, mas não aspectos fenotípicos. Tais apontamentos possibilitam
questionar: na definição de racismo da Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, a
formulação grupos étnicos pode funcionar por efeito metafórico de grupos raciais,
considerando que, em determinadas condições de produção, as palavras são textualizadas
como sinônimas? Pairando tal questão, entretanto, na SD 4, tem a afirmação de que etnia
e raça não são termos sinônimas. Para a cartilha, a etnia refere-se a um grupo
culturalmente homogêneo, ou seja, povo que tem os mesmos costumes ou a mesma

7 N o aparato teórico da A n á lise de D iscu rso m aterialista, Orlandi (2 0 0 7 ) estuda as form as do silên cio . Para
a autora, o silên cio é o princípio da sign ificação e não o va zio , o nada, p o is “quanto m ais falta, m ais silên cio
se instala, m ais p ossib ilid ad es de sentid os se apresentam ” (O R L A N D I, 2 0 0 7 , p. 47). N o s estu dos da autora,
é com preendido que há u m silên cio constitutivo. E m outras palavras, um apagam ento necessário, um a v e z
que se d iz x para não d izer y e que, assim , u m sentido de um a outra form ação discu rsiva é evitada.

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Instrumentos Linguísticos
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origem, cultura, língua ou religião.


A título de condição de produção, no dicionário Michaelis (Online), em uma das
entradas do verbete raça, há a seguinte citação de Ziraldo Alves Pinto, em O aspite: há
um jeito pra tudo : “Não seja preconceituoso. Raça é uma só: a raça humana! [...] A raça
humana se divide, meu senhor, em etnias: a etnia negra, a etnia branca e a etnia amarela
etc.” (PINTO, 2005 apud MICHAELIS, Online). Por um lado, nesse exemplo, as palavras
raça e etnia também não são tratadas como sinônimas, assim como para a SD 4, pois,
nesse contexto, a raça humana é apenas uma e as diferenças que constituem os diversos
grupos são abordados como etnias e não como raças. Por outro lado, levando em conta a
aplicabilidade da noção de raça em uma perspectiva político-histórica e não biológica,
como defende a cartilha, no exemplo da Michaelis, etnia assume uma possível
textualização de raça , como na paráfrase a raça negra, a raça branca e a raça amarela
etc . Dessa forma, apesar da circulação de sentidos distintos de raça e etnia, parece que,
em determinadas condições de produção, essas podem funcionar como próximas8,
sobretudo por uma rejeição de raça pela atenção aos aspectos biológicos.
Ainda em O que o racismo quer dizer, comparece a seguinte afirmação: “o
racismo se expressa em ideias e práticas discriminatórias advindas da afirmação da
superioridade de um grupo étnico-racial sobre outro” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE
PATOS DE MINAS, 2021, p. 8 ). Nesse trecho, etnia e raça comparecem na formulação
grupo étnico-racial, que, ditas em conjunto, apontam a produção de sentidos distintos,
não funcionando por um efeito de sinonímia. Finalizando a seção em questão, o texto
apresenta mais um conceito de racismo: “é um conjunto de práticas, hábitos, situações,
falas, políticas e normatizações que promovem, direta ou indiretamente, a segregação e o
preconceito racial” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 8 ).
Considerando esses apontamentos em relação ao racismo, são apresentadas práticas
consideradas racistas pelo material, como inferiorizar as características estéticas de
negras e negros; desprezar seus costumes, hábitos e tradições, como na ofensa a religiões
de matriz africana e outras práticas.

8 V ale pensar tam bém que há um a relação de sentidos entre raça e etnia. N as d iscursividades, um a é
definida contrapondo a outra. T eoricam ente, isso retom a a id eia de que “u m d izer tem relação c o m outros
dizeres realizados, im agin ados e p o ssív e is” (O R L A N D I, 2 0 1 5 , p. 37) e que “quando se d iz ‘x ’, o não -dito
‘y ’ perm anece co m o um a relação de sentido que inform a o d izer de ‘x ’. Isto é, um a form ação d iscursiva
pressupõe u m a outra: ‘terra’ sig n ifica p ela sua diferença co m ‘Terra’, ‘co m co ra g em ’ sig n ifica p ela sua
relação co m ‘sem m e d o ’ etc.” (O R L A N D I, 2 0 1 5 , p. 81). D e ssa form a, raça e etnia se d efin em em suas
diferenças conform e as diferentes form ações d iscursivas (um a que entende a p ossib ilid ad e de d izer raça
negra e outra que entende que o adequado é etnia negra).

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Após elencar diversas práticas, a cartilha aborda Expressões populares que


refletem o racismo, asseverando que “ Sim! O racismo, igualmente, se materializa quando
a pessoa utiliza termos como:” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS,
2021, p. 10) e citando expressões como A coisa está preta; Da cor do pecado; Denegrir;
Inveja branca; Mulata e Morena. Nesse sentido, há o entendimento de que o racismo vai
além, por exemplo, da inferiorização e do desprezo às pessoas negras, funcionando
também no linguístico quando um falante opta pelas expressões citadas. A ideia de que
os termos refletem o racismo parece indicar desde já uma concepção de língua que
compreende os sentidos das palavras como literais, ou seja, tais expressões contém em si
sentidos racistas.
Abaixo analiso as expressões consideradas racistas pela cartilha Direitos humanos
e o combate ao racismo, visando compreender como a cartilha sustenta tais saberes
metalinguísticos, levando em conta seus efeitos de sentidos em possíveis e determinadas
condições de produção. Vale descrever que as expressões são tratadas de um modo que
aparenta um dicionário, apresentando uma entrada e os verbetes:

SD 5: “A coisa está preta": Essa situação é racista, porque reflete uma


associação entre “preto” e uma situação desconfortável, desagradável, difícil
ou perigosa (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021,
p. 10, grifos do autor).

A primeira expressão, A coisa está preta, é significada como racista pela


associação entre preto e uma situação considerada ruim, o que permite pensar os sentidos
não apenas do termo, mas também da palavra preto como relacionada a sentidos
negativos. Mais uma vez, ao formular que é racista, porque reflete, o material mobiliza
o saber metalinguístico (o sentido racista da expressão) considerando apenas um sentido.
É uma indicação de que se o leitor da cartilha está sendo racista caso use a expressão. Não
apresenta outros possíveis contextos e sentidos. Pensemos, por exemplo, em um cenário
hipotético em que um determinado sujeito responde A coisa está preta a pergunta A coisa
está de qual cor? de um outro sujeito sobre um objeto hipotético. Nesse exemplo, a
expressão não funciona do modo descrito pela cartilha9. Dessa forma, a sustentação da

9 A lém da situação hipotética, é p o ssív e l tam bém com preender o funcion am en to da exp ressão A coisa está
preta diante p esq u isa de Pereira e V in has (2 0 2 1 ), intitulada "Se a coisa tá preta, a coisa tá boa": a
resistência do sujeito negro frente a expressões racistas. N o texto, as autoras m ob ilizam para análise a
m úsica Meu caro amigo, de C hico Buarque, em que, con form e o s g esto s analíticos das autoras, A coisa tá
preta rem ete, assim co m o posto p ela cartilha em análise, algo ruim, d ifícil, fe io . Por outro lado, há um
m ovim ento entre as p esso a s negras para ressign ificar sentidos n egativos de exp ressõ es co m o essa . A ssim ,

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definição como racista é fundamentada apenas por uma situação linguístico-discursiva


específica.

SD 6 : “Da cor do pecado": Termo que reforça a objetificação e a


sexualização do corpo negro, especialmente das mulheres negras (ESCOLA
DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 10, grifos do autor).

Em Da cor do pecado, a expressão é tomada como racista por reforçar a


objetificação e a sexualização das pessoas negras, sobretudo as mulheres. Desse modo, a
cartilha restringe a argumentação da sexualização, não explicitando como há produção de
racismo. Contudo, a definição dada permite apontar que Da cor do pecado funciona nesse
contexto por efeito metafórico (PÊCHEUX, 2014b) de Da cor negra, o que põe em
relação os sentidos de pecado e negra. E, se, em nossa formação social cristã, o pecado
tem um sentido extremamente negativo pela transgressão das leis de Deus (Michaelis,
Online), Da cor do pecado seria uma expressão racista por associar o tom de pele de uma
pessoa negra a um sentido negativo. Além disso, não produz estranhamento (ERSNT-
PEREIRA, 2009) o sentido da expressão em relação à sexualização do corpo negro, dado
que, além de um dos principais pecados ser a luxúria (o vício em sexo), há, em nossas
condições de produção, uma memória que hipersexualiza os corpos negros, tanto de
homens quanto de mulheres.

SD 7: “Denegrir": Sinônimo de difamar, tornar negro, obscurecer (ESCOLA


DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 10, grifos do autor).

Em seguida, a cartilha trata da palavra Denegrir, apontando como sinônimo de


difamar, tornar negro e obscurecer. Novamente, não há informações explícitas do racismo
da palavra. É preciso que o leitor interprete conforme os sentidos dos verbos citados
(difamar, tornar negro e obscurecer). De início, vale ressaltar o radical negr- da palavra
Denegrir, indicando linguisticamente sua relação com a palavra negro. Na nossa
formação social, circula em excesso o uso de denegrir como difamar (ex.: você está
denegrindo minha reputação/você está difamando minha reputação), o que é considerado
um sentido negativo e sustenta o argumento do racismo da palavra. Assim, parafrasear

a pesquisa analisa a música A coisa tá preta, de Rincon Sapiência, em que há Se eu tefalar que a coisa tá
preta / A coisa tá boa, pode acreditar. Nesse contexto, a expressão toma um sentido diferente da música
de Chico Buarque, apontando um sentido positivo, e, dessa forma, as autoras concluem que há
desindentificação e resistência.

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também em você está tornando negra minha reputação ou você está obscurecendo minha
reputação sustenta a argumentação do racismo da palavra.
Entretanto, se denegrir funciona como obscurecer, em O dia denegriu-se de
repente, há um sentido racista? Dessa forma, mesmo apontando mais de um sentido para
denegrir (difamar, tornar negro e obscurecer), aparenta ter aqui novamente uma
concepção de língua que rejeita a relação entre língua e exterioridade na produção de
sentidos. Nesse caso, apenas um sentido é considerado. Isso constitui a semelhança da
mobilização do saber metalinguístico da cartilha temática em questão com o instrumento
linguístico dicionário, pois ambos, conforme a SD 7, não apresentam “como os sentidos
das palavras estão em processo, ou de como elas se distribuem, significando
diferentemente, de acordo com as diferentes formações discursivas, que correspondem a
diferentes posições do sujeito em face da ideologia” (ORLANDI, 2013, p. 120).

SD 8 : “Inveja branca": a cor branca é utilizada como adjetivação para


expressar algo positivo e suavizado (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE
PATOS DE MINAS, 2021, p. 10, grifos do autor).

Outra formulação abordada é inveja branca em que a explicação do racismo se


limita pela argumentação da adjetivação de inveja por branca, que produz o efeito de
sentido de uma inveja positiva e suavizada. Em nossas condições de produção, ter inveja
de outra pessoa, por exemplo, por pertences ou conquistas, é uma ação socialmente
repudiável e, assim, funciona por um sentido negativo. Entretanto, ao ser adjetivada pela
palavra branca, o sentido de inveja passa a circular como uma inveja considerada boa,
menos repudiável. Aqui o que fica silenciado pelo material é a relação de sentidos
(ORLANDI, 2015) entre branca e preta, que, como já exposto, essa última está associada
ao negativo em determinadas situações discursivas, ao passo que branca, como em inveja
branca, tem um sentido positivo. Novamente, apenas uma situação baseia o racismo da
expressão, apagando, outros sentidos possíveis. Um sentido não-racista, por exemplo, de
inveja branca poderia ser produzido em um cenário hipotético que um sujeito formula a
expressão, referindo-se a inveja de pessoas brancas.

SD 9: “M ulata": termo derivado de mula, usado para designar mulheres


negras de pele clara. A expressão é ainda mais pejorativa quando seguida de
“tipo exportação”, pois reitera a visão do corpo da mulher negra como
mercadoria. (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021,
p. 10, grifos do autor).
SD 10: “Morena": termo originalmente utilizado para caracterizar uma

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pessoa branca de cabelos pretos, usado para afastar a negritude de uma pessoa.
Palavra utilizada para evitar a caracterização de uma pessoa como “negra”,
acreditando que isso seria ofensivo (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE
PATOS DE MINAS, 2021, p. 10, grifos do autor).

As duas últimas palavras tratadas são mulata e morena. Sobre a primeira, o texto
afirma que é derivada de mula e usada para designar mulheres negras de pele clara.
Quando adjetivada por tipo exportação, a palavra seria ainda mais pejorativa por reforçar
o corpo da mulher negra como mercadoria. Apesar de citar a derivação da formulação, a
cartilha não discute a relação de sentidos entre mula e mulata, o que permite compreender
que a relação é dada como evidente. Ademais, a abordagem restringe à mulher negra de
pele clara e sua sexualização. Silencia o fato de que circula também a palavra mulato, por
exemplo. Em relação a esse verbete, Modesto (2022) analisa discursivamente suas
entradas em dicionários de língua portuguesa, produzidos entre os séculos XIX e XX. As
entradas de mulato apontam uma relação da ideia do cruzamento entre cavalo e jumento
com o cruzamento entre branco e preto, em que é preciso da prevalência das
características, seja do cavalo ou do branco. É nesse sentido que os dicionários produzem
uma discursividade que, na ordem da implicitude, promovem um apagamento ou
aniquilação do negro ou mestiço. Dessa forma, ao mobilizar um saber metalinguístico de
mulata, a cartilha em análise silencia toda a discussão em relação à mestiçagem no Brasil,
atentando-se apenas à sexualização das mulheres negras.
Finalizando a seção, a argumentação do racismo de morena é iniciada por uma
suposta origem da palavra: caracteriza uma pessoa branca de cabelos pretos . Entretanto,
a cartilha marca que o termo é usado também em detrimento de negra, dado que essa
circula por um sentido negativo. Assim, a indicação de uma origem e de um outro uso
apontam que a palavra é utilizada em dois sentidos distintos, um que designa uma pessoa
branca e outro que designa uma pessoa negra. É devido a esse último sentido (negativo)
que a palavra morena é significada como racista. Além disso, pela abordagem de um
possível sentido não racista, há uma contradição, dado que, diante da análise de outros
verbos, o modo como a cartilha mobiliza saberes metalinguísticos direciona para um
sentido de literalidade, mas, aqui, em morena, há dois sentidos expostos, apontando que
a palavra funciona além de um sentido racista.
Vale notar, como já expus em alguns casos, que os gestos de análise das SDs 5 a
10 constatam uma falta de fundamentação técnica externa que sustente a ideia de que as
expressões são racistas. Não há menção de textos especializados. A legitimação parte, em

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geral, do linguístico e seu uso. De modo semelhante a um dicionário, em suma, os


verbetes são expostos da seguinte maneira: nas SDs 1 e 2, o racismo de A coisa está preta
e Da cor do pecado é explicitado pelos sentidos negativos produzidos respectivamente
diante de uma situação desconfortável e uma situação de sexualização da mulher negra;
o sentido racista de Denegrir é mobilizado a partir de sinônimos. Para abordar inveja
branca, a cartilha parte da questão da adjetivação que produz um sentido positivo. E, por
fim, o texto trata da derivação e do uso de mulata e da origem e do uso de morena.
Após Expressões populares que refletem o racismo, outros saberes
metalinguísticos são mobilizados, os quais aqui não serão analisados, mas reforçam como
tais saberes são frequentes em uma cartilha que tematiza o racismo. Os saberes são
referentes às noções de lugar de fala , ações afirmativas, heteroidentificação e
autodeclaração: 1) “O LUGAR DE FALA de alguém deve ser entendido como uma
possibilidade para a democratização do diálogo e das trocas interpessoais, com vista à
diminuição das desigualdades existentes” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS
DE MINAS, 2021, p. 11); 2) “ [Ações afirmativas] são políticas temporárias que destinam
recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados pela exclusão no
passado ou no presente” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021,
p. 12, acréscimo meu) e 3) “A heteroidentificação, que é o reconhecimento da raça, cor
ou etnia por terceiros, baseado em aspectos visuais e características físicas. E a
autodeclaração, que é o reconhecimento próprio como pessoa de determinada raça, ou
etnia” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 13)” . Dessa
forma, a análise da cartilha Direitos humanos e o combate ao racismo ressalta o excesso
(ERNST-PEREIRA, 2009) de saberes metalinguísticos em um material que objetiva o
combate do racismo, em uma discursividade de e sobre raça.

Considerações finais
O presente texto surgiu motivado pela identificação de saberes metalinguísticos
em um arquivo composto por cartilhas que tratam de temas diversos. Nesta ocasião,
discuti como a cartilha temática Direitos humanos e o combate ao racismo mobiliza e
sustenta saberes metalinguísticos com o objetivo de combater o racismo em nossa
formação social. Tais saberes apresentam-se como importantes para uma erradicação do
racismo enquanto problema social. Dessa forma, o questionamento Por onde começar a
entender o assunto?, que dá título à primeira seção do material, mas também outros títulos
de seções como O que o racismo quer dizer? e Expressões populares que refletem o

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racismo, reforça a língua como um espaço essencial para tal finalidade.


Em suma, a cartilha trata de diversas noções, como raça, cor, racismo,
consciência coletiva, democracia racial, etnia e outras, além de apresentar uma seção em
que orienta o não uso de determinadas expressões consideradas racistas. Nessa tessitura,
o que chama atenção é a fundamentação técnica para conceituar algumas palavras e
designar expressões como racistas ser apenas o saber metalinguístico sem citação direta
de outros autores, outras obras e outros saberes. O modo como poucas definições são
legitimadas tecnicamente por outros saberes não causa estranhamento (ERSNT-
PEREIRA, 2009), pois, em uma ocorrência, a palavra racismo é tratada por um viés
jurídico, o que é esperado de um material produzido nesse âmbito e, em uma segunda
ocorrência, a mesma palavra é apresentada por uma enciclopédia, que, como instrumento
linguístico, é utilizada para sustentar um sentido de racismo . Já o racismo das expressões
A coisa está preta; Da cor do pecado; Denegrir; Inveja branca; Mulata e Morena não é
sustentado por um outro saber, mas sim a partir do linguístico e uso, sinonímia,
adjetivação, derivação e origem. A presente análise não esgota a investigação do
funcionamento da cartilha enquanto uma forma-material, mas sinaliza que essa, ao
funcionar como instrumento linguístico, apoia-se, em geral, nos saberes metalinguísticos
sem articulação com outros saberes, e isso ocorre porque um instrumento linguístico já é
um espaço de saber legitimado.
É possível dizer que atravessam o objeto analisado discursos de e sobre raça
(MODESTO, 2021) que permitem pensar como a língua é significada. A análise constata
que os saberes metalinguísticos são produzidos em uma contradição, apontando ora para
um efeito de completude, como dicionários, e ora por um efeito de incompletude, que
indica a língua como passível de jogo. É um jogo entre língua imaginária e língua fluida.
É nesse jogo que os sujeitos são constituídos pelo linguístico para uma consciência
coletiva em relação ao racismo. E isso ressalta que: apesar do deslizamento da cartilha de
alfabetização (um instrumento linguístico, nos termos de Auroux, 2014) para cartilha
temática (um instrumento regulatório da vida em sociedade, segundo Silva, 2014), o saber
linguístico ainda é textualizado constituindo os sujeitos como sujeito do conhecimento e
para uma vida social (ORLANDI, 2013).

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revista de estudos do discurso, Pouso Alegre, 2014, n. 8, p. 1-13.

Revista Porto das Letras, Vol. 9, N° 2. 2023


Instrumentos Linguísticos
215

SILVA, Mariza Vieira da; PFEIFFER, Claudia Castellanos. Pedagogização do espaço


urbano. Revista do L aboratório de Estudos U rbanos - RUA [online], Campinas,
2014, Edição Especial, p. 87-109.

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Expressões racistas: como evitá-las. Brasília:


Tribunal Superior Eleitoral, 2022.

Revista Porto das Letras, Vol. 9, N° 2. 2023


Instrumentos Linguísticos
216

Um instrum ento linguístico eventual: a “ dicionarização a n tirracista de


Instagram”1

An eventual linguistic instrum ent: the "an ti-racist dictionarization of In sta g ra m ” 12

Matheus Oliveira Souza


Universidade Estadual de Santa Cruz

Resumo: Este trabalho objetiva investigar, à luz da teoria da Análise de Discurso de orientação
materialista, a atuação de perfis da rede social Instagram que, atravessada pela discursividade
racial, simulam o funcionamento de instrumentos linguísticos como dicionários e cartilhas, em
alguma medida. Tais perfis combatem os usos de termos e expressões que, de acordo com certa
interpretação linguística vinculada à militância negra, foram constituídas por meio de uma origem
colonialista/racista, isto é, tentam trabalhar com o que se imagina ser a explicação
etimológica/histórica dessas expressões e propõem outras alternativas. Desse modo, este estudo
pretende não só analisar os discursos racializados sobre a língua, em circulação no Instagram,
mas também, observar a maneira como perfis do Instagram simulam a função de instrumentos
linguísticos tradicionais, chegando a ser classificado como um instrumento linguístico eventual.
No processo de montagem do arquivo, do qual extraímos nosso corpus de análise, depara-me com
uma regularidade que se substancia pela relação entre denúncia e sugestão. Isto é, os perfis
denunciam palavras e expressões consideradas racistas e prescrevem outras opções com sentidos
similares. Sendo assim, busco tensionar os discursos ali postos em circulação dissimulados pelo
efeito de evidência, produzindo, assim, uma abordagem normativa.
Palavras-chave: Análise de Discurso; Instrumentos linguísticos; Discursos racializados;
Dicionário; Instagram.

Abstract: This study aims to investigate, in light of the materialist-oriented Discourse Analysis
theory, the performance of Instagram social media profiles that, influenced by racial discursivity,
simulate the functioning of linguistic instruments such as dictionaries and manuals, to some
extent. These profiles combat the use of terms and expressions that, according to a certain
linguistic interpretation associated with black activism, were constituted through a
colonialist/racist origin. In other words, they try to work with what is imagined to be the
etymological/historical explanation of these expressions and propose other alternatives. Thus, this
study aims not only to analyze racialized discourses about language circulating on Instagram but
also to observe how Instagram profiles simulate the function of traditional linguistic instruments,
even coming to be classified as an eventual linguistic instrument. In the process of assembling the
archive, from which we extracted our corpus for analysis, I encountered a pattern that is
substantiated by the relationship between denunciation and suggestion. That is to say, the profiles
denounce words and expressions considered racist and prescribe alternative options with similar
meanings. Therefore, I seek to tension the discourses circulating there, disguised by the effect of
evidence, thereby producing a normative approach.
Keywords: Discourse Analysis; Linguistic Instruments; Racialized Discourses; Dictionary;
Instagram.

1 E sta pesq u isa é fruto do m eu Trabalho de C onclusão de Curso (TCC) a partir do qual pude recortar as
reflexões para d esen v o lv er este artigo.
2 T his research is the result o f m y Course C om p letion W ork from w h ich I w a s able to cut out the reflections
to d evelop this article.

Revista Porto das Letras, Vol. 9, N° 2. 2023


Instrumentos Linguísticos
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Subm etido em 31 de julho de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introdução
Neste estudo, empreendo uma discussão que se refere a dispositivos tecnológicos
que, eventualmente, descrevem e instrumentalizam a língua por meio de publicações de
perfis da rede social Instagram que fazem um atravessamento entre a discursividades
linguística e racial a partir de publicações, que dicionarizam alguns termos e expressões
compreendidas como racistas.
Com o propósito de investigar o funcionamento de tais perfis, traço aqui os
seguintes objetivos: identificar os perfis da rede social Instagram que simulam o ofício
dos dicionários e seus respectivos funcionamentos; caracterizar a ferramenta estudada
como um material que simula o funcionamento de um instrumento linguístico, a fim de
compreender como nele opera a descrição e a instrumentalização dos discursos
racializados3; produzir uma reflexão crítica que, no campo da linguagem, contribua com
a discussão sobre a relação entre a problemática racial e o ensino dos usos lexicais na
esfera digital.
À vista disso, mobilizo um dispositivo teórico-analítico formado por meio do
cruzamento entre a Análise de Discurso de orientação materialista, através dos estudos de
Orlandi (2007) e Lagazzi (1988) que nos permitirão analisar o funcionamento discursivo
conforme as demandas materiais em voga; a História das Ideias Linguísticas, a partir de
Auroux (2009); Zoppi-Fontana (2009); Ferreira (2020) pondo em questão a constituição
de um instrumental que nos permita fazer uma análise metalinguística; e os Estudos de
Raça, ensino e linguagem, por intermédio de Gonzalez (1984), Modesto (2021) e
Nascimento (2021), dada a necessidade de compreensão das tensões raciais nos limites
da língua.
Dessa maneira, explorar a possibilidade de perfis do Instagram funcionarem como
uma ferramenta que orienta os usos linguísticos com um caráter antirracista, além de ser
uma proposta contemporânea, isto é, mais próximo da realidade das gerações recentes,
aponta para uma direção que diz respeito às materialidades de caráter didáticos presentes
em suportes tecnológicos não tradicionais, possibilitando o desenvolvimento de

3 M od esto (2021).

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Instrumentos Linguísticos
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discussões e reflexões críticas em torno da língua e seus usos por intermédio de uma rede
social.
Acredito que seja de grande importância estudar a respeito da relação entre língua
e raça nesse suporte tecnológico, tendo em vista a sua grande popularidade e relevância
dentro do contexto digital. Nessa perspectiva, entendo que tal proposta venha a contribuir
com a reflexão crítica acerca da relação entre língua e racismo, questionando o que tem
circulado nas redes sociais, as quais, por sua vez, ao se portarem como instrumento
linguístico, podem tanto produzir uma educação linguística antirracista, quanto tornar-se
um meio de circulação de ideias com grande influência do senso comum.
Portanto, este estudo está organizado do seguinte modo: em primeiro lugar, na
fundamentação teórica, exploraremos o processo conhecido como gramatização e a noção
de instrumentos linguísticos (AUROUX, 2009) com o intuito de situar nosso objeto de
análise como tal. Além disso, discutiremos em torno da maneira como nosso objeto de
estudo materializa um discurso sobre a língua, que aponta também para a discussão racial.
Na sequência, mobilizo uma noção de instrumentos linguísticos eventuais em
consonância com uma análise a partir de sequências discursivas, as quais envolvem
postagens em torno da palavra denegrir, a fim de compreender os efeitos de sentido
produzidos e suas ressonâncias no político (ORLANDI, 2007).
Considero que esta pesquisa é muito cara para o avanço dos estudos no seio da
AD e da HIL, uma vez que temos como propósito desenvolver um trabalho crítico que
possa contribuir, sobretudo, para os estudos linguísticos que inscrevem, na discussão, o
caráter incontornável das questões raciais.

1. A rede social Instagram como um instrum ento linguístico possível


A partir do olhar constituído pela relação de um usuário que migra para a posição
de analista, compreendemos que a função primária do Instagram é proporcionar
interações entre sujeitos a partir de perfis que trocam mensagens e publicam mídias, tal
qual fotos e vídeos, impactando, em larga escala, como uma ferramenta de
entretenimento:

Hoje as máquinas/os instrumentos digitais do saber podem ser os mesmos utilizados


para descontração/entretenimento, se consideramos os computadores, notebooks,
tablets e smartphones. Cabe ao sujeito “a decisão”, a tomada de posição frente às
máquinas/aos instrumentos digitais (PETRI; GUASSO, p. 278, 2020).

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A maneira que a tecnologia será explorada dependerá de como o sujeito vai


preferir se inscrever nessa rede social, a qual permite que o usuário se relacione/socialize
de formas diversas. O modo de contato com o outro pode variar conforme os interesses
do sujeito e também de acordo com a sua posição-sujeito. Além do propósito já exposto,
a rede social possibilita a criação de conteúdos sobre diversos assuntos, adaptados ao
formato da plataforma, por intermédio de páginas que integram determinados campos
discursivos, como esporte, jornalístico, fofoca, culinária, moda, humor etc. Dentre essas
áreas, também estão perfis que tensionam problemáticas sociais.
Nessa direção, as redes sociais, de modo geral, incluindo o Instagram, podem
apresentar características comuns de outros espaços, inclusive características de
instituições educacionais, lemos o seguinte: “ [...] não há como escapar da re-significação
da concepção de ensino-aprendizagem com as mídias sociais, portanto, não há como
escapar às formas de divulgação em (dis)curso que produzem sentidos a partir dessa re-
significação” (DIAS; COUTO, 2011, p. 636).
Dias e Couto (2011) também declaram que através das redes sociais, existe uma
constituição de um sujeito do conhecimento no espaço digital, no qual tem acesso a
inúmeros saberes, mas que também produz conhecimento. Em outras palavras, este
sujeito se constitui não só pelo o que consome/acompanha na rede social, mas também
pelo o que ele mesmo coloca em circulação, conforme suas respectivas posições sujeito
e seus respectivos processos de identificação em que não é apenas instado a interpretar
(ORLANDI, 2007), mas também de pôr em circulação para que, inconscientemente,
outros sujeitos o façam.
No campo digital, alguns perfis veiculam discussões acerca do elemento racial e
da discursividade linguística, focalizando os usos do léxico e de expressões cristalizadas
da língua portuguesa. Nessa direção, tais perfis dizem combater usos de termos e
expressões que, de acordo com certa interpretação linguística vinculada à militância
negra, foram constituídas por meio de uma origem racista, isto é, tentam trabalhar com o
que se imagina ser a explicação etimológica/histórica desses termos e propõem outras
alternativas, com sentidos similares.
Este gesto se assemelha com a função de dicionários ao fornecer o significado de
determinado termo e suas possíveis origens. As páginas das redes sociais, desse modo,
são a representação de um usuário, independentemente de serem administradas por mais
de uma pessoa, o discurso sobre uma palavra, surge de um sujeito lexicográfico (NUNES,

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2010), o qual seleciona e decide produzir sentido, fazendo ressoar a posição da qual o
discurso se constitui, por exemplo:

[...] um missionário da Época Colonial, nas circunstâncias da colonização no Brasil,


ao elaborar um dicionário português-tupi, ocupa uma posição de sujeito religioso, o
que determina os sentidos das palavras selecionadas e definidas, bem como o
direcionamento geral dessa prática, que foi voltada, sobretudo, para a catequese dos
índios. Assim, os lexicógrafos dessa Época incluíam em seus dicionários palavras
religiosas que sequer existiam na língua indígena, como “pecado”, “Deus” e outras, e
atribuíam sentidos religiosos aos fatos e palavras descritos (NUNES, 2010, p. 7).

Pensando nisso, considero importante para a sequência deste raciocínio,


apresentar o conceito de gramatização trazido por Auroux (2009), que consiste no
processo pelo qual se descreve e se instrumentaliza a língua a partir de dois instrumentos
tecnológicos: gramática e dicionário, produzindo um saber metalinguístico. Ainda
segundo o autor, a gramática não consiste em ser apenas um registro da língua em um
material físico, a principal característica que a faz ser além de uma mera descrição é seu
caráter didático, ou seja, não basta descrever; tal descrição é/foi realizada com o propósito
de disponibilizar caminhos para que os sujeitos consigam aprender/aprimorar seus
conhecimentos linguísticos que não poderia ser realizado a partir do próprio sujeito.
Os instrumentos linguísticos, como a gramática e dicionário interferem no curso
da língua ao longo da história, uma vez que apresentam direcionamentos para a
aprendizagem de determinada língua. Esses instrumentos delineiam as práticas
linguísticas conforme um padrão definido. Diante disso, a função que o dicionário exerce,
está direcionada para a prática de aprendizagem de uma língua, pois, se assim não o fosse,
tais registros seriam nada mais que uma documentação histórica. Nesse sentido, na
ausência de suas interferências, por exemplo, as variedades linguísticas seriam ainda mais
recorrentes (AUROUX, 2009).
Pensar a língua a partir de um instrumento específico cujo papel é, sobretudo,
contribuir na aprendizagem ou aprimoramento dos níveis de conhecimento linguístico,
pode facilitar a compreensão do que seria concretamente a gramatização. Todavia, deve-
se ter cuidado com tal consideração, uma vez que a língua não se restringe ao que se
encontra nessas tecnologias. Os instrumentos linguísticos funcionam como uma norma,
um recorte (dentre outros), ou seja, a língua vai muito além do que se encontra em
gramáticas e dicionários. Em pensamento semelhante, Pfeiffer (ano) diz o seguinte:

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A questão da norma nos coloca diante da reflexão do modo de funcionamento da


língua, instrumentalizada, domesticada, administrada pela sua gramatização. A língua
normatizada não é da ordem do “ser”, mas do “deve ser” (PFEIFFER, 2002, p. 14).

O controle sobre a língua é parcial, haja vista que em diversas situações somos
surpreendidos por episódios ambíguos, pelos equívocos e mal-entendidos próprios da
língua. Dito de outro modo, a língua demonstra um caráter de incompletude, o qual
permite ser passível de ocorrências equívocas, as quais estão a ser suprimidas nos
instrumentos linguísticos tradicionais.
Por longos anos, o saber metalinguístico que tínhamos aqui no Brasil não foi
resultado de uma produção autônoma, tendo em vista que se importava esses
conhecimentos de Portugal. Só a partir da segunda metade do século XIX que são
desenvolvidos estudos sobre a língua no território brasileiro. A produção de saberes
linguísticos/metalinguísticos no Brasil tem uma relação direta com a desvinculação de
sua antiga colônia Portugal (GUIMARÃES, 1994). Isto fortaleceu a imagem de um
português diferente do que é falado na Europa, desenvolvendo uma autonomia em relação
aos estudos linguísticos sobre uma língua particular e a construção identitária dos sujeitos
brasileiros.
Nesse processo, surge a vertente brasileira da História das Ideias Linguísticas
(doravante HIL). Conforme a HIL brasileira, considera-se como instrumento linguístico
todo material que, de algum modo, descreve e instrumentaliza a língua a fim de
documentá-la para diversos usos, ampliando a especificação abordada por Auroux (2009).
Nesse sentido, a língua portuguesa brasileira é constituída por um valor simbólico
validado pelas instituições que impulsionam e afirmam seu caráter singular. Em Zoppi-
Fontana (2009), lemos o seguinte:

[...] um processo de gramatização deve ser compreendido como um processo de


instrumentação da língua. Assim, o domínio dos fenômenos da linguagem é explorado
como espaço de produção de tecnologias que mudam radicalmente a relação do
homem com suas condições materiais de existência, o que leva a descrever a invenção
da escrita e o surgimento das primeiras gramáticas e vocabulários como verdadeiras
revoluções tecnológicas (Auroux, 1992) que decidiram o destino do homem na sua
relação com os objetos simbólicos e com as formas de organização social. É preciso,
portanto, conceber as gramáticas, dicionários, e o u tr a s fo r m a s m a te r ia is de
o b je tific a ç ã o d a lín g u a c o m o in str u m e n to s lin g u ístic o s (ZOPPI-FONTANA, 2009,
p. 24 , grifo nosso).

A gramática e o dicionário são instrumentos significativos também para o ensino


e aprendizagem da língua e, talvez, sejam as principais ferramentas nesse processo. No

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entanto, a relação dos sujeitos com a língua está em constante transformação, e por esse
motivo, surgem novas tecnologias que assumem papel similar aos primeiros
instrumentos. Dessa maneira, é possível estender tal denominação a outras tecnologias,
uma vez que muitas outras surgiram a partir dos princípios das primeiras.
Para tanto, instrumentos linguísticos como manuais didáticos, e exames
nacionais, por exemplo, têm em sua composição elementos léxico-gramaticais,
organizados conforme a configuração do próprio material. Declaro que no Instagram, por
sua vez, está presente o que Adorno (2018), chama de ferramentas lexicográficas digitais,
que consistem em mecanismos que não existiam em dicionários impressos, mas que
surgiram com a circulação digital, como é o caso das hashtags, recurso que possibilita a
busca de temas, questões, matérias a partir de palavra-chave.
A rede social em si, não propõe orientações acerca dos usos lexicais, mas é um
terreno propício a modificações, adaptações e inovações na forma como os sujeitos se
relacionam no interior desta tecnologia. Entendo esta situação como um aspecto
desenvolvido conforme a mudança nas formas de utilização dessa rede social, como
ferramenta profícua para modos diversos de exploração, inclusive em perfis com uma
abordagem antirracista na discursividade da língua.

2. Racialização do discurso sobre a língua


Diante das condições de produção colonial e escravocrata como alicerce no
desenvolvimento da sociedade brasileira (ALMEIDA, 2019), é legítimo pensar no
direcionamento hegemônico dos discursos produzidos aqui e suas implicações na
estrutura social do Brasil. Na narrativa dominante, a problemática racial parece não ser
um problema a resolver. Amplamente se veicula que as tensões raciais são inexistentes.
Ou seja, não há racismo no Brasil. Entretanto, afirmações desse tipo dissimulam a
realidade de sujeitos negros, passando uma falsa sensação de que realmente as tensões
raciais não passam de falácias, tendo em vista o estado de naturalidade das coisas acerca
dessa questão, como Gonzalez (1984) aponta como mito da democracia racial.
No campo discursivo Modesto (2021) mostra como a discussão racial atravessa
outros discursos, os quais passam pelo processo de racialização, ou seja, que constituem
os discursos racializados. Ele declara que a formação social brasileira possibilita
considerar que todo discurso é um potencial discurso racializado, tendo em vista as

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especificidades conjunturais (MODESTO, 2021, p. 15) que constituíram a formação


social brasileira. Sobre os discursos racializados o autor pontua que:

Não é uma tipologia a priori, nem um tema. Pelo contrário, diz respeito a um
funcionamento discursivo que pode ser constituído em diferentes processos de
identificação e posições sujeito. Nesse sentido, uma série de discursividade podem
aparecer engendradas ou agenciadas por tensões raciais, o que nos permite falar em
discursos racializados “de” e discursos racializados “sobre” (MODESTO, 2021, p. 9).

Desse modo, determinados discursos funcionam a partir de atravessamentos


raciais devido às condições histórico-materiais, ao longo da história, que permitiram sua
produção e sua circulação entre os sujeitos. Dessa forma, o funcionamento desses
discursos ocorre no atravessamento com outras discursividades. É o que ocorre quando o
discurso sobre a língua é interseccionado pelo componente racial, quando chegamos no
discurso racializado sobre a língua. Esse é o caso, ao meu ver dos perfis do Instagram,
que mobilizam um discurso sobre a língua (o que pode ou não ser dito), na relação com a
racialidade. Efetivamente, é por causa de seu processo de racialização, atravessando
outras situações discursivas que permite ao analista sustentar esse caráter racializado.
Ainda no que diz respeito à relação entre racialidade e língua, Nascimento (2021)
chama atenção para o fato de que é preciso distinguir as dinâmicas do racismo linguístico
das dinâmicas daquilo que se poderia falar em termos de “politicamente correto” . Se o
politicamente correto circunscreve relações ingênuas dadas na superfície linguística, o
racismo linguístico, ao contrário, é algo profundo e tem a ver com as bases da nossa
formação histórica.
Sendo assim, com este aporte teórico, busco investigar o funcionamento de perfis
da rede social Instagram que assumem o ofício de alguns instrumentos linguísticos e,
como resultado, surge também um caráter didático que se assemelha às cartilhas,
dicionários e glossários. Além disso, interessa-me também os efeitos de sentidos
possíveis em relação à tentativa de combate a expressões compreendidas como racistas
que, amplamente, circulam na sociedade e na rede social Instagram.

3. Um instrum ento linguístico eventual


Baseado na construção do dispositivo teórico-analítico, o trabalho tem como
objeto de análise, publicações de perfis da rede social Instagram que apontam para os
usos de léxicos, frases e termos que são vistos como racistas com uma circulação, de

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modo frequente na sociedade. A seleção dos materiais foi realizada através de consultas
a perfis que fizeram/fazem postagens, as quais se enquadram ao nosso interesse de
investigação, ou seja, que divulgam palavras, frases, expressões com raízes ditas racistas
e tensionam sua utilização.
Nessa perspectiva, a seleção desses perfis não aconteceu de maneira aleatória,
minha estratégia de localização de publicações que apresentam essas características se
estabelece através de buscas por hashtags (que seriam equivalentes às palavras-chaves
das redes sociais, isto é, direcionam as pesquisas a determinadas discussões e assuntos).
Desse modo, para fim de localização, utilizei as seguintes hashtags: palavras racistas,
expressões racistas, negro, racismo.
A similaridade com o dicionário se mostra presente nesta ferramenta lexicográfica
digital (ADORNO, 2018), através da busca pela palavra, como acontece em dicionários
eletrônicos e digitais. É um mecanismo de consultas próprio ao digital, apesar de ser
diferente do modo tradicional, uma vez que no dicionário físico, essa busca ocorre por
ordem alfabética e quem consulta precisa percorrer as folhas até a palavra desejada. Na
sequência, serão apresentados, por meio de descrições, três perfis selecionados para este
estudo.

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Perfil da D efensoria P ú b lica da B ahia - F ig u ra 1

PUBLICAÇÕES S REELS SI IDENTIFICAÇÕES

Fonte: https://www.instagram. com/defensoriabahia/

O perfil oficial da Defensoria Pública da Bahia, caracteriza esse órgão como uma
organização sem fins lucrativos, a qual fornece orientações jurídicas e proporciona a
defesa judicial e extraconjugal, integral e gratuita dos direitos individuais e coletivos. A
página serve de porta-voz entre a própria defensoria e a população baiana, viabilizando
contato, informações, modo de atuação etc. Ao longo do feed, encontra-se publicações
que demonstram, por meio de vídeos e fotos, o engajamento da defensoria na busca de
promover justiça social para diversos grupos sociais: indígenas, crianças, negros,
comunidades carentes e mulheres. Ou seja, o perfil não se compromete exclusivamente
com uma única questão social, mas com diversas, dado o seu caráter jurídico de
intervenção.

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Perfil Q uebrando o Tabu - F ig u ra 2

q u e b ra n d o o t
Seguir Enviar mensagem +A
ab u

13 683 publicações 8,2 M seguidores A seguir 938

Quebrando o Tabu
Por um mundo mais informado e menos careta.
quebrandootabu.com.br/newsletter + 1

PUBLICAÇÕES 0 REELS IDENTIFICAÇÕES

A escuta de um psicólogo e
tndispensavel. Ex: um amigo ele vai dar
dicas do que se fazer, coisa e tal. Mas as
geral sabem que tem que

O que elas nao sabem sao os


mecanismos subjacentes que impedem a
IR|BI '1

Fonte: https://www.instagram.com/quebrandootabu/

A página do Quebrando o Tabu não tem uma área de exploração específica, o


perfil busca se desvincular de práticas que se materializam por um viés hegemônico. É
possível constatar tal posicionamento por meio de publicações em favor de movimentos
sociais minoritários como: movimentos étnico-raciais, discussões sobre gêneros, pautas
feministas entre outras. Entretanto, não se compromete com uma única área do saber. Em
determinados momentos, a página assume uma roupagem jornalística, compartilhando
informações com seu público por intermédio de matérias acerca de acontecimentos não
só nacionais, como notícias de assuntos internacionais.

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Perfil U buntu C onsultoria - F ig u ra 3


u b u ntu co n su ltori
a
1671 publicações 6247 seguidores A seguir 1114

Criador de conteúdos digitais


@dayse.ubuntuconsultoria
Especialista em diversidade, inclusão e liderança inclusiva (Palestras,
Treinamentos, Consultorias e Mentorias).
linkr.bio/myo87

(2 IDENTIFICAÇÕES

*
RESTAMSOMENTE
2 VAGAS
PARA0 PROGRAMADE
MENTORIAEMDAI


Caso de racismo em
consulta médica: 'A
negra tem um cheiro
mais forte', diz
ginecologista durante
1a audiência com juiz
Ginecologista d isse à paciente, u m a
jo v e m d e 19 anos, q u e a m a ioria das
m ulh e re s negras te m ch e iro fo rte nas
pa rtes íntim as. A m éd ica viro u r é e está

Fonte: https://www.instagram. com/ubuntuconsultoria/

O perfil Ubuntu Consultoria é voltado para a criação de conteúdo digital que


envolve cursos, palestras, treinamentos, consultorias e mentorias no que diz respeito à
diversidade e à liderança inclusiva, conforme consta na biografia o registro acima. Além
disso, assim como encontra-se no perfil Quebrando o Tabu, o caráter jornalístico se faz
presente nessa página.
A partir das descrições dos perfis, avalio que as contas, as quais publicam posts,
não se enquadram ou se definem como um sujeito-especialista, uma vez que as páginas
aqui descritas exploram questões diversas, e se preocupam com outras demandas
específicas da sociedade: no âmbito educacional, jurídico e jornalístico, por exemplo. A
língua não é explorada como a questão central nos perfis, mas como um saber que pode
ser abordado em momentos eventuais/pontuais. Ou seja, os saberes sobre a língua ali

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Instrumentos Linguísticos
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postos em circulação se enquadram na discussão acerca de saberes linguísticos do


cotidiano proposta por Ferreira (2020):

Os saberes linguísticos [...] são perpassados por discursividades construídas pelas


relações de contato/confronto linguístico em diferentes conjunturas e espaços, que vão
articulando sentidos e relações afetivas. No Brasil, os saberes linguísticos cotidianos
funcionam nessas conjunturas, em constante tensão com saberes de especialistas
(gramáticos, linguistas, literatos etc.) produzidos em espaços legitimados e
autorizados (universidades, faculdades, academias, associações científicas, imprensa,
no espaço das leis etc.) (FERREIRA, 2020, p. 329).

Diante disso, nas páginas mapeadas, o saber sobre a língua é apenas mais um
dentre outros, os quais fazem parte do cotidiano dos sujeitos de maneira
espontânea/orgânica, sem a necessidade de se desenvolverem como um conhecimento
especializado em um espaço legitimado. São saberes que na maioria das vezes estão
distantes do conhecimento técnico, mas que apesar disso, circulam e
produzem/reproduzem sentidos legitimados e não legitimados (pelas instituições
oficiais). Nessa direção, compreendo que os saberes linguísticos cotidianos podem ser
produzidos em qualquer lugar, inclusive no Instagram.
Parece-me que se trata de um fazer próprio das mídias digitais, onde o que
prevalece é o processo de retroalimentação do sujeito-seguidor, afetada pela política de
algoritmo, em que a constância na interação com os seguidores impacta no alcance dos
conteúdos ali colocados. Ou seja, quanto menos você interage com seus seguidores,
menor será o alcance que suas publicações poderão chegar ao seu público através de posts
futuros.
Entendo que tal fato influencie na ausência do saber de um especialista, uma vez
que a elaboração de um saber especializado pode demandar muito tempo, porém de
acordo com o serviço do algoritmo, quanto mais tempo sem publicar, maior será o
prejuízo para o perfil. Sendo assim, a saída para ocasiões desse tipo seria publicar sem
respaldo técnico. Nesses termos, o saber especializado, sobretudo o linguístico fica em
segundo plano para legitimar o conhecimento ali compartilhado. Isto é, “no espaço digital,
parece haver outro modo de legitimidade” (PETRI; GUASSO, 2020, p. 281). O
funcionamento dos perfis, desse modo, é marcado pela falta de uma periodicidade regular,
no que concerne aos saberes linguísticos, sendo capaz de colocar a língua em evidência
de determinada questão uma única vez e não mais fazer da língua objeto de discussão, a
partir de então

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Instrumentos Linguísticos
229

Este estudo, dessa forma, não está comprometido em revelar a verdade ou até
mesmo empregar juízo de valor (certo ou errado; verdadeiro ou falso), porém busco:
tensionar a regularidade do material de análise e os sentidos mobilizados; entender a
reprodução do efeito normativo dos dicionários; bem como, refletir, criticamente, sobre
como a ideologia se materializa nos discursos e como lidamos com isso na esfera
linguística.
No que concerne à montagem do arquivo, deparo-me com uma regularidade, a
qual diz respeito ao modo de organização das publicações. As páginas seguem um padrão
de publicações, que consistem em denúncia e sugestão. Isto é, os posts operam a partir da
seguinte estrutura: pare de usar X, em vez disso, fale Y. Ou seja, neste contexto, há uma
relação estreita entre a denúncia (de uma palavra ou expressão compreendida como
racista) e a sugestão (de uma palavra ou expressão compreendida como não racista).
Partindo deste ponto, declaro que a regularidade presente na estrutura de formulação das
sequências discursivas (não fale X e use Y), direciona a uma consciência linguística, a
qual faz com que os sujeitos optem em escolher, conscientemente, quais expressões irão
utilizar. Essa fórmula constitui, portanto, um discurso metalinguístico, ou melhor, um
discurso sobre a palavra (NUNES, 2010).
Entendendo que, a fim de combater o racismo nos limites da língua, as páginas
investigadas determinam um recorte aceitável da língua e o colocam como único possível.
Na tentativa de conter possíveis sentidos racistas, os movimentos sociais buscam colocar
em desuso termos que ofereceriam algum prejuízo à comunidade negra. Nesse aspecto,
as páginas do Instagram reproduzem o funcionamento de outros instrumentos
linguísticos, uma vez que prescreve como dicionários, gramáticas e cartilhas, com
propósito de estabilizar os sentidos, conjugada com uma proposta pedagógica e assumem
uma posição normativa, a qual direciona a maneira que os sujeitos vão se relacionar com
o mundo pelo simbólico, sendo o lugar da “completude dos sentidos, da certeza, da
exaustividade, do dizível” (SILVA, 1996, p. 203).
Desse modo, o material de análise tenta constituir seus sentidos univocamente,
tendo em vista a repercussão desse instrumento linguístico como um discurso de verdade.
Isto é, “um discurso que se estabelece ilusoriamente como um lugar de completude dos
sentidos” (GRIGOLETTO, 2010, p. 67), a ponto de ser considerada referência para o
estabelecimento de um dizer compreendido como antirracista. O Instagram criou um
ambiente virtual, a partir do qual o saber pode ser dito e construído por qualquer sujeito

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Instrumentos Linguísticos
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que se proponha a divulgar determinado assunto, em áreas diversas. Vejo tal ocorrência,
por exemplo, em perfis que trabalham com biologia, em que biólogos comentam acerca
de dadas espécies de seres vivos e seus respectivos comportamentos na natureza.
Nesse sentido, um profissional coloca em circulação um conhecimento técnico,
que não é de domínio da maioria das pessoas, devido a sua especificidade. Dessa maneira,
determinados sujeitos, se diferenciam através do entendimento de determinada área, mas
também no âmbito linguístico, pois as formulações ocorrem a partir de uma língua do
domínio científico específico (GUIMARÃES, 2009). Isto é, há uma linguagem técnica, a
qual se diferencia da linguagem comum.
Na esfera linguística, é possível encontrar também, perfis que se dedicam a
promover assuntos nos quais a língua é tematizada, tanto por aqueles que assumem a
roupagem de compartilhar somente conteúdos linguísticos, quanto por aqueles que,
pontualmente, tecem opiniões de acordo com a relevância do assunto em determinado
momento da história. É nesta última categoria, que caracterizamos os perfis aqui
estudados, uma vez que, em geral, as páginas que denunciam e sugerem (como apontamos
anteriormente), colocam como centro de suas discussões outras pautas, as quais podem
ou não ter a língua no núcleo do debate: racialidade, gênero, saúde etc.
À vista disso, julgo que em perfis do Instagram pode-se identificar um
deslocamento de funcionamento, semelhante ao que Ferreira (2012) explora em seu
trabalho acerca de enciclopédias virtuais (Wikipédia e na Desciclopédia). Embora as
publicações dos perfis no Instagram não tragam as mesmas demarcações (especialista,
todos e qualquer um ), entendo que, na prática, o saber sobre a língua/palavra parece ter
passado por um processo de amplificação de sujeitos lexicográficos. Nesse aspecto, o
especialista não será o único a elaborar saberes metalinguísticos.
Em algum momento da história, os lexicógrafos ou gramáticos puderam ser as
únicas figuras que tivessem a responsabilidade de produzir um saber metalinguístico
sobre palavras por meio de gramáticos, dicionários e vocabulários, por exemplo. No
entanto, em conformidade com as ferramentas tecnológicas disponíveis hoje, posso dizer
que todos e/ou qualquer um podem exercer tal função. Ou seja, não existem mecanismos
censores que impeçam todos e qualquer de produzirem/reproduzirem também um saber
linguístico, de maneira semelhante ao especialista, principalmente por perfis do
Instagram, os quais operam com ampla autonomia.

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Instrumentos Linguísticos
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Ao passo que perfis semelhantes aos apresentados anteriormente se propõem a


agir, de maneira eventual, como um saber metalinguístico, pensei em mobilizar uma outra
classificação para os dispositivos tecnológicos que, em certa medida, se enquadram no
que Auroux (2009) e Zoppi-Fontana (2009) exploram, mas que assumem, apenas
momentaneamente, o funcionamento de instrumentos linguísticos. Proponho, portanto, a
noção de instrumentos linguísticos eventuais, que descrevem e instrumentalizam a língua,
de maneira ocasional, que em algum momento (não sempre), assumem o ofício de um
instrumento linguístico tradicional (dicionário, gramática, manuais didáticos).
Nessa direção, um saber linguístico cotidiano é determinante para que venhamos
mobilizar a noção de instrumentos linguístico eventuais, tendo em vista o caráter
relativamente descomprometido com o conhecimento, unicamente, linguístico. Isto é, o
saber linguístico cotidiano, possivelmente, será posto em circulação em algum momento,
mas sem a responsabilidade de ser como o dicionário, a gramática, o livro didático (de
línguas), por exemplo, os quais posicionam a língua como ponto central do conhecimento
produzido e que estão a serviço das normatizações institucionais. Os saberes linguísticos
que estão presentes nesses dispositivos tecnológicos tradicionais, se desmembraram em
diversas searas tendo como coluna dorsal o saber sobre a língua, ao contrário do que se
encontra nos perfis de Instagram aqui estudados.
Apesar do saber linguístico se encontrar sob o domínio dos sujeitos e inscritos no
cotidiano deles, esse saber nem sempre será posto em circulação de maneira definitiva
e/ou regular. Acontece que quando este saber é concretizado materialmente, por meio de
um dispositivo tecnológico, chegamos em um estágio de realização do que estava apenas
na esfera da possibilidade, da latência, da idealização, ou seja, se refere a um saber sobre
a língua não manifestado em dispositivos tecnológicos. Desse modo, imagino que seja
possível também que outras ferramentas tecnológicas possam funcionar como um
instrumento linguístico eventual, dada suas operações particulares e que talvez fossem
suficientes para serem classificados como tal. Falo, nesse sentido, de Jornais impressos,
Blogs e algumas redes sociais como o Twitter.
Nessa perspectiva, as páginas do Instagram produzem um discurso sobre a língua
que se materializa a partir do âmbito lexical, por meio de explicações de ideias sobre o
conteúdo que seriam depositados nas palavras. Embora os perfis funcionem dessa
maneira, a palavra por si só não carrega um sentido imanente, ela só passa a ter valor

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significativo (SAUSSURE, 2008) a partir da relação diferencial com outros termos da


língua (PÊCHEUX, 1990) na história.
Em um pensamento consonante, no que diz respeito à inscrição da discussão racial
no nível linguístico-lexical, Nascimento (2019) põe em questão esse exercício de
depositar na palavra a responsabilidade de representar o racismo no real das relações
humanas. Para o autor, é preciso que o foco desse debate esteja nas formações históricas,
uma vez que são as condições de produção que possibilitam/possibilitaram que o racismo
se estabelecesse como base do mundo moderno. “Não basta, portanto, trocar apenas
palavras como unidades da superfície da língua” (NASCIMENTO, 2021, p. 3).
Propor uma mudança na superfície da língua isoladamente, desconexa da história,
ignora e descarta os meios pelos quais levaram a sociedade contemporânea ser o que é
hoje, convertendo em práticas materiais a hegemonia do discurso dominante. De um
ponto de vista discursivo, a língua depende de uma determinação histórica para que os
sentidos possam ser produzidos. Do contrário, “se se tira a história, a palavra vira imagem
pura” (ORLANDI, 2007, p. 32). Em outros termos, a tensão racial na/pela língua,
portanto, só poderá ter impactos significativos, quando o que estiver em jogo for a relação
constitutiva entre língua e história.

4. Denegrir na disputa de sentidos

Conforme a montagem e organização do nosso arquivo, decidimos analisar os


posts que envolvem a palavra denegrir, a qual representa um recorte do nosso corpus,
uma vez que não pretendemos esgotar o nosso material de análise. Pretendo entender o
que está sendo dito e a maneira que os sentidos estão sendo postos em circulação a partir
dessas publicações.
A análise discursiva será feita por meio de dois processos de dessintagmatização:
a linguística e a discursiva. Por intermédio da dessintagmatização linguística
trabalharemos com paráfrases, em busca de explicitar vínculos entre o dito e o não-dito,
pontuando, no nível do formulável, as relações de intertextualidade, enunciação, entre
outras.
Já a dessintagmatização discursiva, por sua vez, terá como finalidade chegar às
formações discursivas e à base ideológica que atravessam os discursos em análise, como
orienta Lagazzi (1988). Desse modo, a análise iniciará a partir da dessintagmatização
linguística e na sequência será comtemplada pela dessintagmatização discursiva.

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Para tanto, selecionei sequências discursivas (SD) que envolvem a palavra


denegrir, tendo em vista a recorrente presença desse termo entre as páginas apresentadas,
principalmente no que se refere ao racismo nas fronteiras da língua. Além disso, a
composição morfológica da palavra evoca uma memória discursiva que pode ser/é
relacionada diretamente a sujeitos negros. À vista disso, as SDs trazem uma questão muito
particular, a qual se estabelece a partir do ser negro e do tornar negro. A seguir
apresentamos as sequências discursivas (SD) a serem analisadas. Vejamos os posts
mapeados:

Sequência discursiva 1

Expressões racistas il? ! defensoriabahia O Dá pra entender por que não


do cotidiano —' é legal repetir essa expressão por aí, não é? Ser
negro não é uma coisa negativa! Compartilhe e
conte a seus amigos também!
Denegrir
Possui na raiz o significado de Compartilhe com os amigos para que também se
"tornar negro". Utilizado como
liguem!
sinônimo de difamar ou caluniar,
reforça, mais um vez, o ser negro
como negativo, ofensivo. #Racismo #expressõesracistas
#vidasnegrasimportam #blacklivesmatter
#DefensoriaBahia #pracegover
Alternativa Editada • 142 sem

Difamar/caluniar <0 Q V
Gostos: e outras pessoas
Defensorta SETEMBRO28, 2020
Publica
BAHIA

SD 1, retirada da rede social Instagram, do perfil da Defensoria Pública da Bahia (@defensoriabahia).

Sequência discursiva 2

Q Gostos: e ou tras pessoas

SD 2, retirada da rede social Instagram, do perfil Quebrando o Tabu (@quebrandootabu).

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Na atual conjuntura histórica, a significação de uma palavra, sob uma ótica


formalista, depende da validação e/ou das definições apresentadas pelos dicionários.
Entretanto, as entradas propostas nesse instrumento linguístico, não esgotam os sentidos,
embora entendamos que o dicionário tenta produzir esse efeito. Souza (2022) demonstra
em seu estudo sobre o verbete crioulo, que havia uma oposição nos sentidos, a qual era
marcada pela dissonância de definições, de acordo com a época de produção daqueles
dicionários. Em determinado material, se referia ao negro que morava na casa do seu
senhor, porém, a mesma palavra foi também definida como pessoa branca que vive na
América. Nesse aspecto, o político (ORLANDI, 2007), isto é, a divisão dos sentidos, está
presente até mesmo em dispositivos tecnológicos normativos, independentemente, de
qualquer interpretação, seja ela de militância negra ou não.
A partir do recorte da SD 1, vemos que a publicação integra uma sessão, a qual
está intitulada como expressões racistas do cotidiano, isto é, trata-se de uma manifestação
que se autodeclara como antirracista. A composição do post se divide em duas partes:
Expressão racista, que aponta qual é a expressão/palavra de cunho discriminatório; e
Alternativa , que oferece outras opções com sentidos equivalentes (sinônimos). A
informação acerca do termo denegrir é apresentada por meio de descrições semânticas,
estabelecendo fronteiras de sentidos dessa palavra. A publicação traz o significado, a
maneira como a expressão é utilizada e os supostos efeitos materiais provocados ao
enunciá-la. Vejamos: “Possui na raiz do significado ‘tornar negro’”, “Utilizado como
sinônimo de difamar ou caluniar, reforça, mais uma vez, o ser negro como negativo,
ofensivo” . Nessa direção, existem duas orações que fazem parte da descrição.
Na primeira oração, o significado da palavra é fixado como tornar negro , algo que
se fosse apresentado de maneira isolada, teríamos dificuldade para saber o contexto de
significação de seu teor semântico, porém, de saída, o termo já está envolvido em um
contexto de imputação, tendo em vista o título do post (seguindo o modo de leitura da
sociedade ocidental, da esquerda para a direita, de cima para baixo) Expressões racistas
do cotidiano. Ou seja, o título, como a primeira informação, direciona a leitura do sujeito-
usuário da rede social, empregando juízo de valor. Temos na sequência, a maneira de uso
da palavra, que consiste em algo negativo relacionado à honra de determinada pessoa.
Em sua afirmação, tornar/ser negro é visto como ofensivo.

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No caso da SD 2, a imagem do post não traz, explicitamente, a imputação no corpo


da imagem, o termo é elencado com o significado e as outras possibilidades de palavras.
O significado de denegrir é apresentado como tornar negro, remetendo a ideia de um
sentido negativo e ruim a tudo que é relacionado ao significante negro. Em seguida,
podemos ver a presença de outras opções a serem utilizadas como sinônimos: difamar e
caluniar.
Com o que aparenta ser um complemento, a legenda predica a palavra como de
uma origem preconceituosa e, portanto, ao ser usada, o sujeito estará reproduzindo o
racismo, mesmo sem a intenção de ser. Além disso, a página mobiliza o conceito de
origem. Nesse sentido, imaginamos que se refira a determinação do sentido através da
construção etimológica da palavra, porém não nos é apresentada a origem da palavra.
Com isso, é possível concluir que a origem já é dada como evidente (negativa), assim, a
única maneira de fugir da prática racista seria evitar a utilização do léxico denunciado.
Diante disso, em todos os casos a regularidade do arquivo, no que se refere à
denúncia e sugestão (não diga X, fale Y), se confirma. Ao mesmo tempo, nenhuma das
páginas traz um saber linguístico especializado como sustentação desse saber sobre a
língua. Embora as sequências discursivas até aqui tenham reproduzido o modo de um
discurso sobre a língua, tal qual faz o dicionário (postulando determinado verbete,
definindo seu sentido/origem) e em alguns momentos, complementado como uma cartilha
(por meio de alternativas, didaticamente), não ocorre o mesmo na publicação a seguir:
Sequência discursiva 3

SD 3, retirada da rede social Instagram, do perfil Ubuntu Consultoria (@ubuntoconsultoria).

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O post, o qual proporcionou o recorte da SD 3 tem uma característica de


apresentação diferente do que vimos até então, se difere de um dicionário, enquanto
estrutura. A composição da publicação é marcada por frases em quadros, onde cada um
interdita uma possibilidade de expressão com potencial racista. A interdição ocorre
quando o perfil faz uma substituição de palavras, em que modificam a superfície das
frases.
Nesse aspecto, o post se difere dos outros, porque apesar de ser uma discussão
sobre a língua/palavra e o elemento racial, não há uma justificativa que comunique os
motivos para desconsiderar a possibilidade de uso daquelas expressões. Diante dessa
perspectiva, posso dizer que ocorre um movimento arbitrário, o qual inviabiliza a opção
de escolha de uma alternativa, bem como também é negada a elucidação que suscita a
interdição. Por outro lado, se assemelha, como tenho dito nas SDs anteriores, pela
ausência de um saber linguístico-etimológico-histórico especializado.
O foco da publicação é produzir um saber sobre as palavras, assim como faz o
dicionário. No entanto, ocorre de maneira diferente, uma vez que é uma materialidade a
qual menos se assemelha com a maneira com a qual o dicionário se organiza. Ou seja,
surgem instrumentos linguísticos (eventuais) que reproduzem mais fielmente o
funcionamento do dicionário do que outros, desde o modo de organização do verbete à
tecnologia pela qual a reprodução do funcionamento é operada. Nesse aspecto, o recorte
da SD 3 funciona a partir dos não-ditos, significando através de um simbólico imagético,
em que a própria publicação faz substituições, tentando excluir a possibilidade do sujeito
leitor/seguidor examinar se as substituições devem ser postas em prática, concretizando
a instabilidade das relações semânticas, “a partir das quais instala-se um sentido,
apagando outros possíveis/dizíveis” (ZOPPI-FONTANA, 1999, p. 203).
Diante do que foi discutido, entendendo que o sentido sempre pode ser outro, mas
não qualquer um (ORLANDI, 2007), farei uma sequência parafrástica (P), a fim de
compreender a formação discursiva das SDs analisadas e encontrar possibilidades no
nível do formulável em torno de denegrir: Vejamos:

Situação hipotética 1: A chamou B de negro.


Situação hipotética 2: B não gostou de ser chamado de negro.
P1. A denegriu B.

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P2. B se sentiu ofendido.


P3. B foi difamado por A.
P4. B foi rebaixado à condição de negro por A.
P5. B não gostou de ser humilhado.
P6. B não gostou de ser tratado como negro.

Por meio do olhar de um hipotético de uma terceira pessoa, farei aqui algumas
reflexões acerca das situações envolvendo A e B. Na tentativa de se deparar com
deslocamentos de sentidos, irei produzir uma linha de raciocínio supositório. Tendo como
ponto de partida a compreensão do que seria denegrir, a partir de uma relação sinonímica,
considero substituir em algum momento este significante por difamar a fim de saber até
onde as paráfrases podem nos levar no limite do intradiscurso.
Pensemos que em dada situação um sujeito (A) tenha proferido falas que viessem
a ofender a reputação de alguém (B). O sentimento do sujeito ofendido é de ser visto
como inferior. O sujeito C (terceira pessoa), que está fora da situação, pode seguir ao
menos dois caminhos, vejamos: primeiro, pode-se concluir que A foi racista, porque B se
ofendeu ao ser chamado de negro ; outra abordagem possível seria a de que ao ser
interpelado como negro, B rejeitou a atribuição, pois conforme seus processos de
identificação, não se reconhece como tal e, portanto, julga não merecer ser tratado dessa
forma.
Chamo a atenção, dessa maneira, para o radical negr, visto em negro e denegrir.
Não é do meu interesse aqui, apontar a origem dos termos ou discuti-las, mas pretendo
compreender o que pode ter levado ao surgimento de sentidos postos em circulação que
relacionam a palavra denegrir a práticas racistas. Considero que por um efeito de
memória, o qual orbita a cadeia de sentidos do radical negr, em que o negro em diversos
casos é relacionado a algo maléfico, faz com que haja um esvaziamento do saber técnico-
linguístico-etimológico, ocasionando em uma construção de sentidos por associações de
palavras com o radical comum. Ou seja, a direção do dizer depende do interdiscurso que
determina o lugar do sujeito negro como sinônimo de desqualificação.
Essa ideia é ratificada na SD 3, na qual podemos ver uma articulação que traceja
o radical negr em outras construções sintáticas, em virtude de eliminar arbitrariamente a
possibilidade de sentidos pejorativos em formulações semelhantes. Nessa perspectiva, o

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sujeito negro é constantemente interpelado em sujeito inferior e/ou desumano pelo


próprio significante que lhe foi atribuído, como declara Modesto (2018):

N a ev id ên cia que interpelação id eo ló g ica b u sca produzir, sentidos em disputa marcam


a questão que atravessa as ten sõ es raciais e o m odo com o o sujeito-n egro se elabora
co m o negro. Se u m grito é lançado para dar a v er que o negro é negro [negativam ente],
a apropriação d esse grito, por e sse que sofre co m tal estím u lo em terceira p essoa, é
tam bém um a desapropriação dos sentidos prim eiros que dão lugar a sentidos alhures.
U m a desapropriação nada fá cil de se produzir, v a le pontuar, porque a reelaboração do
corpo negro que perm ite a d esestab ilização das sin oním ias racistas que se im pregnam
ao sign ificante negro v em , em geral, a partir de u m processo de lutar, de dor, de
resistência, de sangue (M O D E ST O , 2 0 1 8 , p. 143).

A disputa de sentidos, por sua vez, coloca em jogo os processos de identificação


do sujeito negro, principalmente, pela/na língua afetando a maneira de aceitar a
interpelação de sujeitos outros, por significantes, usualmente, prejudiciais ao
reconhecimento de si. É compreensível se deparar com a afirmação que denuncia e
interdita a palavra denegrir como racista, aliada à uma proposta de sua substituição por
outras palavras que teriam outros sentidos. Dadas as condições de produção estabelecidas
hoje no Brasil, constituídas e marcadas em nosso processo histórico, pela colonização e
escravização no país, vejo uma interdição concernente à ressignificação dos sentidos que
orbitam a palavra, por meio de um sentido positivo ou não. Isso, contudo, já foi feito com
outros termos.
Em 2022, no lançamento da chapa do atual presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula
da Silva, uma apresentadora deste evento utilizou o termo escurecimento para se referir a
uma elucidação/esclarecimento4. Em vez de apontar na mesma direção que denegrir,
como um sentido negativo de tornar algo escuro e/ou negro, a apresentadora faz um
movimento contrário, que nos leva entender que o negro tem algo positivo para
compartilhar.
Dessa maneira, há um estranhamento (ERNST-PEREIRA, 2009), uma mudança
inesperada do sentido, ou seja, ocorre um acontecimento discursivo, uma atualização de
sentido na história (PÊCHEUX, 2006), o qual atravessa um processo de significação que
se encontrava estabilizado, deslocando e afetando a memória do dizer por meio da
ressignificação de um possível sentido ofensivo a partir do termo.

4 https://youtu.be/T R C 4nH K lSW 0

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[...] o interdiscurso é a memória do dizer. Há coisas que fazem sentido e há as que


não fazem. [...] O que tem de ser atingido é justamente essa relação com o
interdiscurso, com a memória para poder significar outras coisas. Transformar-se,
desenvolver-se. Transferir: produzir efeitos metafóricos, deslizamentos de sentidos
[...] (ORLANDI, 2007, p. 141).

Assim sendo, é pelo efeito de memória que perfis do Instagram, influenciados por
uma interpretação de militância negra, podem dizer que determinadas expressões são
racistas. Embora o funcionamento da língua não dependa exclusivamente do recorte
normativos de certos sentidos apresentados nos perfis.
Nos deparamos com o discurso de resistência que, a sua maneira, tenta comedir
uma memória discursiva, em práticas materiais, no seio da língua, preenchendo a lacuna
proporcionada pela falha da ideologia a partir de uma demanda social, a qual irá confluir
no batimento entre a discursividade linguística e o elemento racial, resultando em um
discurso racializado sobre a língua (MODESTO, 2021).
Portanto, o funcionamento remete ao êxito do fazer sentido, assim como um livro
que foi pensado, produzido e publicado com o propósito de ser lido, mas funciona muitas
vezes como uma indumentária doméstica em uma prateleira, os sentidos poderão ser
outros, uma vez que não há como regulamentá-los, embora não se deixe nunca de tentá-
lo (ORLANDI, 2007), principalmente, pelos instrumentos linguísticos, sejam eles
tradicionais ou eventuais.
É possível concluir que os posts do Instagram não atingem a profundidade do
racismo linguístico, ficando apenas na superficialidade do politicamente correto,
consoante já sinalizava Nascimento (2021), mas também que, ao fazê-lo, promovem uma
intervenção na língua, cujos resultados são aqui apresentados.

Considerações Finais
Neste trabalho tínhamos como objetivo investigar a maneira como o Instagram
funciona, reproduzindo/assumindo o ofício de instrumentos linguísticos, sobretudo, do
dicionário, tendo em vista as discussões propostas pelos perfis em torno de palavras que,
em alguma medida, manifestam potenciais sentidos racistas. Isto é, que colocam em
circulação saberes sobre a língua, nos quais se incluía à discursividade racial.
Em primeiro lugar, concernente à dicionarização dos perfis do Instagram,
empreendi uma discussão, na qual a partir do corpus, foi identificada uma regularidade
nas publicações, as quais são compostas por denúncia (de racismo), bem como sugestão
de alternativas (de opções não racistas), o que nos permitiu caracterizar o Instagram como

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Instrumentos Linguísticos
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uma ferramenta que reproduz o funcionamento de instrumentos linguísticos com o


prestígio de um saber institucionalizado, mesmo não sendo, uma vez que o discurso sobre
a palavra postos em circulação, se estabeleciam sob um efeito de evidência, mesmo que
de maneira eventual. Nesse sentido, ainda que ilusoriamente, o sujeito (enquanto
subjetivação dos perfis, o sujeito) entende que pode determinar os sentidos, de maneira
autossuficiente, uma vez que em sua concepção, ele mesmo é fonte do seu dizer
(ORLANDI, 2007).
Relativo aos efeitos de sentido em torno de denegrir, por sua vez, identificamos
um funcionamento discursivo que apesar de não ser sustentado por um saber
especializado, mas se estabelece de acordo com uma memória discursiva desfavorável ao
que deriva do significante negro. A fim de conter qualquer possibilidade de sentidos
racistas, as páginas delimitam fronteiras na relação dos sujeitos na/pela língua, por
decorrência de uma formação discursiva constituída pela resistência.
Nesse aspecto, avaliamos como improvável se deparar, nesse momento, com um
sentido positivo a partir de denegrir, embora um movimento parecido tenha ocorrido com
outras palavras, como escurecer/escurecimento, em um paralelo com
esclarecer/esclarecimento. A discussão racial envolve, sobretudo, as condições de
produção, que determinam e permitem que determinados sentidos funcionem em
detrimento de outros. Devemos pensar além da palavra, mas também em como a formação
histórica (NASCIMENTO, 2021) intervém nesse jogo.
Os perfis do Instagram, portanto, não só reproduzem determinados
funcionamentos do dicionário, mas também de outros instrumentos linguísticos que
prescrevem e direcionam a maneira que os sujeitos poderão interpretar e produzir sentidos
a partir da intersecção entre a discursividade linguística e o componente racial. Contudo,
fazem isso de modo ocasional, tornando-se, assim, instrumentos linguísticos eventuais.
Considero, portanto, que a produção/circulação do saber sobre a língua nem
sempre será institucionalizada, especialmente no campo digital. Sendo assim, os limites
entre o senso comum e o conhecimento científico nas redes sociais (Instagram ) em relação
à língua, se mostram intangíveis.

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políticas da língua no limiar do linguístico e do visual. Instrumentos Linguísticos, N. 42,
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Instrumentos Linguísticos
243

CRIA ÇÃ O DO CO DIC - CORPUS O RAL DE DIVULGAÇÃO C IEN T ÍFIC A :


CO NSID ERA ÇÕES LIN G U ÍSTIC A S E M ETO D O LÓ G IC A S

C REA TIO N O F CO DIC - O RAL CORPUS O F SC IE N TIFIC DISSEM IN A TIO N :


LIN G U ISTIC AND M E T H O D O LO G IC A L CO NSID ERA TION S

Jackson Wilke da Cruz Souza1


Universidade Federal da Bahia

Resumo: Diante da escassez de trabalhos que disponibilizam recursos para investigação


linguística sobre a Divulgação Científica (DC) na modalidade oral, objetiva-se neste trabalho
apresentar o Corpus Oral de Divulgação Científica (CODiC). O CODiC é composto por
transcrições de respostas de especialistas (professores, técnicos e alunos) da Universidade Federal
de Alfenas às perguntas enviadas pela comunidade externa ao projeto de extensão “A Voz da
Ciência”, que foram veiculadas durante a programação de uma rádio local. Baseando-se nos
princípios teóricos da Linguística de corpus, o CODiC constitui-se de transcrições das cinco
primeiras temporadas temáticas do projeto, relativo ao período do segundo semestre de 2019 até
o segundo semestre de 2021, somando um pouco mais de 4 horas de gravação, 32.094 tokens e
7.685 types. Apresentam-se caracterizações linguísticas e de metadados sobre a maneira como o
conhecimento técnico-científico circula em espaços midiáticos abertos à DC. Ademais, são feitas
reflexões sobre as mobilizações discursivas realizadas pelos interlocutores em determinado
momento histórico, ideológico e cultural, o que auxilia a compreender o CODiC como um
instrumento linguístico.
Palavras-chave: Corpus oral; Linguística de corpus; Divulgação Científica.

Abstract: Given the scarcity of works that provide resources for linguistic research on Scientific
Dissemination (SD) in the oral modality, the objective of this work is to present the Corpus Oral
de Divulgação Científica (CODiC). CODiC is made up of transcripts of responses from experts
(teachers, technicians, and students) from the Federal University of Alfenas to questions sent by
the external community to the “A Voz da Ciência” extension project, which were broadcast during
local radio programming. Based on the theoretical principles of Corpus Linguistics, CODiC
consists of transcriptions of the first five thematic seasons of the project, covering the period from
the second half of 2019 to the second half of 2021, totaling a little more than 4 hours of recording,
32,094 tokens and 7,685 types. Linguistic and metadata characterizations are presented on the
way in which technical-scientific knowledge circulates in media spaces open to SD. Furthermore,
reflections are made on the discursive mobilizations carried out by the interlocutors in each
historical, ideological, and cultural moment, which help to understand CODiC as a linguistic
instrument.
Keywords: Oral corpus; Corpus linguistics; Scientific dissemination.

Subm etido em 11 de abril de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

1 D outor em L in gu ística p ela U niversidad e Federal de São Carlos A tua co m o docen te na U niversidade
Federal da B ah ia no Instituto de C iência, T ecn o lo g ia e In ovação e no Program a de P ós-G raduação em
L íngua e Cultura. E-m ail: jack cru zso u za @ g m a il.co m .

Revista Porto das Letras, Vol. 9, N° 2. 2023


Instrumentos Linguísticos
244

Introdução
Devido a acontecimentos sociais, políticos e econômicos dos últimos anos,
acompanhamos uma profusão de atividades de Divulgação Científica (DC) que
contribuem para a construção de imaginários sobre o fazer científico e quem o faz. Nesse
esteio, percebe-se que a DC pode ser considerada como importante e poderosa ferramenta
de combate e resistência à Fake News (DANTAS; DECCACHE-MAIA, 2020), à
desinformação (FREIRE, 2021) e ao negacionismo (CORREIA; MARTINS, 2022) que
se espalham notoriamente na sociedade. Isso se deve ao fato de a DC acessar, em certa
medida, esferas subjetivas da sociedade, permitindo com que haja deslocamentos de
significados e concepções sobre ciência, cientistas/pesquisadores e das instituições de
ensino e pesquisa envolvidas nesse processo (SOUZA, 2021).
Desde que centros de pesquisas e, em especial, universidades perceberam a
importância de dialogar com a comunidade não especializada e externa acerca de suas
atividades de pesquisa, tecnologia e inovação, bem como explanar conceitos e aspectos
científicos a fim de torná-los inteligíveis por esse público, a DC tem ganhado notoriedade.
A universidade, compreendida como um dos agentes de promoção da DC como prática
(LIMA; GIORDAN, 2021), tem construído pontes de interlocução com esse público,
mobilizando meios e estratégias de comunicação que tendem ir ao encontro do público-
alvo em diferentes práticas de divulgação.
Essas estratégias comunicativas podem se dar em registros linguísticos escrito,
oral e multimodal. Em cada um deles adotam-se estratégias específicas para promover
explicações, exemplificações, demonstrações e definições de metodologias e conceitos
científicos, por exemplo, que sejam funcionais do ponto de vista linguístico-cognitivo,
em determinados veículos de comunicação, como revistas, podcasts e vídeos curtos.
Apesar da vasta utilização das redes sociais, que implicam a utilização de recursos
e estratégias que demandam aspectos multimodais, uma das formas ainda democráticas e
das mais antigas de promover a DC é o rádio. Esse aspecto mais democrático ocorre pelo
alcance que se pode obter quando comparado aos meios e veículos de comunicação que
são promovidos pela escrita, especialmente em programações que atinjam comunidades
bem específicas.
Com relação aos estudos e pesquisas sobre produção e circulação de textos de DC,
há uma vasta literatura que investiga as operações linguísticas utilizadas por divulgadores
em textos escritos para promover a interlocução com a comunidade não especializada.

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245

Cataldi (2008), ao analisar a mídia impressa, considerou três grandes grupos de operações
linguísticas que ocorrem em textos escritos de DC, a saber: (i) Expansão, que se trata de
inclusão de informações, com o propósito de disponibilizar significados conceituais para
efetuar participação cognitiva e comunicativa do leitor; (ii) Redução, que se trata de
estratégias de condensação ou de eliminação de informações científicas, mas mantendo-
se conceitos relevantes; e (iii) Variação, que são procedimentos que se baseiam nos níveis
lexical, semântico para promover a reformulação discursiva do texto.
Salienta-se que o registro escrito, ao ser utilizado em determinados veículos de
comunicação, possibilita a utilização de certos recursos estruturais para promover maior
compreensão do conteúdo, como notas de rodapé e/ou explicativas, imagens e
infográficos, por exemplo. Essas possibilidades se enquadram na proposta de Cataldi
(2008), ao conceber que uma nota de rodapé pode promover Expansão sobre o que está
sendo dito, ou mesmo indicar um material suplementar de maneira a não comprometer
ou interromper a narrativa científica.
Entretanto, quanto ao registro oral, percebe-se que há poucos estudos que
investigam como o texto e o discurso de DC se estruturam e se realizam, e como eles
mobilizam seus interlocutores no processo de letramento científico e inserção de um
público não especializado na cultura científica. Esses estudos podem partir da
caracterização de usos, operações e construções linguísticas específicas, que passam a ter
funções determinadas na produção de sentido em um conjunto de dados linguísticos
concebido especialmente para essa finalidade, como propõe a Linguística de Corpus
(LC).
Nesse sentido, tem-se um instrumento linguístico que pode ficar limitado à
descrição ou representação da atividade linguística de determinados grupos de falantes
que o corpus representa. Entretanto, sabendo-se que (i) a construção de um corpus
linguístico não é a simples organização de textos (orais, escritos e/ou multimodais), mas
que evidencia certo objetivo de pesquisa, e (ii) é possível acessar dimensões políticas e
históricas, demonstrando que não há neutralidade nos enunciados que compõem os textos,
pode-se afirmar o Corpus Oral de Divulgação Científica (CODiC) pode ser considerado
um instrumento linguístico.
Assim, objetiva-se neste trabalho destacar os processos metodológicos de criação
do CODiC, entendendo-o como um instrumento linguístico que possibilita investigação
e caracterização de usos técnicos e estratégias linguísticas para a popularização de
conceitos e metodologias científicas. Para tanto, são descritas características linguísticas

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Instrumentos Linguísticos
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e de metadados que elucidam como os enunciados linguísticos mobilizam sentidos a


partir de um recorte histórico, político e ideológico.
Seguindo os princípios metodológicos da LC, em que se prevê representatividade,
naturalidade e autenticidade aos dados linguísticos (SARDINHA, 2000), espera-se
contribuir com a própria área e a Linguística descritiva, publicizando um instrumento e
recurso linguístico-computacional que permitirá investigar diferentes fenômenos sobre a
linguagem no âmbito da Enunciação, Sintaxe, Semântica e Sociolinguística em
determinadas situações comunicativas, e perceber como interlocutores produzem,
circulam e recepcionam a DC como discurso e materialidade.
Este artigo está organizado em outras quatro seções, além desta Introdução. Na
seção 2, apresentam-se os trabalhos relacionados a esta pesquisa sob a forma de Revisão
da literatura. Na Seção 3, apresenta-se a metodologia deste trabalho, equacionada em
tarefas executadas ao longo do projeto de pesquisa. Na Seção 4, são apresentados e
discutidos os resultados a partir do corpus de maneira quantitativa e qualitativa. Por fim,
na Seção 5, tecem-se considerações finais, além de apontar para trabalhos futuros.

1. R ecuperando Alguns Conceitos e Procedim entos em Linguística de Corpus


Para o desenvolvimento do CODiC, esta pesquisa se baseou nos princípios
teóricos da LC. Por conta disso, destaca-se a importância de recuperar conceitos
importantes à área de LC, seguindo a proposta de Biber (1993) e Biber, Conrad e Reppen
(1998), que incluem o registro escrito e oral na noção de “textos” que compõem o corpus
linguístico, e Berber Sardinha (2004).
Biber (1993), propõe que algumas etapas são necessárias para a construção de um
corpus linguístico, a saber: (i) planejamento, (ii) coleta e (iii) armazenamento dos textos.
Em (i), definem-se os parâmetros situacionais que variam entre os textos de diferentes
comunidades discursivas, além de ser o momento de definir quais os fenômenos
linguísticos que serão investigados. Como resultado dessas decisões, parte-se para a
coleta dos textos e decide-se o formato de armazenamento deles.
Biber (1993, p.12) chama à atenção sobre a necessidade de representatividade, a
despeito de corpora eletrônicos, que oferecem “uma base empírica sólida para
ferramentas e descrições linguísticas de uso geral, permitindo a análise de uma dimensão
que, de outra forma, não seria possível” . Assim, quando se pensa em “representatividade”
é necessário levar em conta que o conjunto de textos deve ser adequado para promover
generalizações acerca dos fenômenos linguísticos investigados.

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Apesar de Berber Sardinha (2004) salientar que não existam critérios objetivos
para determinar a representatividade do corpus, ele destaca que a amostra deve ter uma
dada extensão. Esse procedimento tenta garantir que o corpus represente nele fenômenos
linguísticos ou aspectos outros que estejam no horizonte da pesquisa. Para tanto, o autor
destaca que determinar a população-alvo e os fenômenos linguísticos a serem estudados
são estratégias relevantes para contornar a difícil tarefa de definir a extensão do corpus,
sempre norteando-se pelas perguntas “ representativo do quê” e “representativo para
quem”.
Para que o corpus represente a variedade linguística de determinada construção
fonética-fonológica, por exemplo, é importante que ele contenha diferentes variantes e
que tenham sido produzidas naturalmente (em contraposição a uma criação artificial dos
sons neste caso). Assim, é possível dizer que quanto mais raro é um fenômeno, maior
deverá ser o corpus para poder representá-lo; ao passo que, quanto mais comum o
fenômeno em observação, menor será o corpus. Nesse sentido, há uma relação direta entre
a representatividade e o tamanho do corpus, considerando os objetivos de pesquisa que
conduziram a construção daquela coletânea de textos.
Ainda, Biber (1993), na mesma perspectiva, contrasta a extensão do corpus (em
quantidade de textos e de palavras, por exemplo) à definição de uma população-alvo, com
relação às decisões sobre os métodos de amostragem. Levar em conta apenas
características estatísticas pode conduzir à seleção de textos que conduzem análises
equivocadas, como deixar de catalogar determinados fenômenos porque ocorrem em
baixa frequência ou não ocorrem naquele conjunto de textos compilados.
Diante disso, Berber Sardinha (2004) propõe três pontos que o corpus precisa
atender para responder essas duas últimas questões: (i) Tipologia, em que se detalham
aspectos do design do corpus e as formas como ele foi coletado; (ii) Representatividade
e (iii) Extensão, que juntos apontam para o tamanho do conjunto de dados, partindo do
princípio que a língua é um sistema probabilístico (HALLIDAY, 1991) e, portanto,
quanto maior o corpus, maior é a chance de descrever e encontrar fenômenos linguísticos
que estão sob foco dos estudos.
Biber, Conrad e Reppen (1998, p.4) caracterizam os estudos realizados em LC
como (i) empíricos, que permitem análise de padrões reais de uso em textos naturais; (ii)
extensos, que é uma coleção grande de textos coletados criteriosamente; (iii) apresentar
análises metodológicas, com utilização de abordagens automáticas, semiautomáticas e/ou
manuais, além de análises qualitativas e quantitativas.

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Por fim, cabe destacar que um corpus linguístico não representa apenas
fenômenos linguísticos isolados de seus falantes, já que a naturalidade é um aspecto
imprescindível em LC. Os corpora linguísticos, antes de mais nada, representam decisões
baseadas em objetivos de pesquisa, o que justifica o tamanho esforço para que haja
representatividade sobre a língua ou alguma de suas modalidades. Pontua-se, então, que
quaisquer que sejam os métodos de compilação, os textos não são escolhidos ao acaso,
pois há, ainda que pouco, enviesamento sobre essas escolhas. Mesmo em sua dimensão
técnica, é possível que os corpora linguísticos reflitam uma dimensão político-histórica,
no sentido de não haver neutralidade e não haver razão de ser feito, conforme Aquino
(2020) aponta sobre a caracterização dos instrumentos linguísticos.
Além disso, os textos que são compilados que fazem parte do corpus são
recuperados a partir de determinadas fontes, em dado recorte temporal e produzidos
naturalmente por certos falantes. Assim, os corpora auxiliam não apenas sobre o
conhecimento da língua e dos usos linguísticos dos falantes, mas também permite acessar
ideologias e pensamentos dominantes e marginais, percepções sobre o mundo em dado
momento histórico e cultural. Por conta disso, é possível considerar que o corpus
contribui aos estudos linguísticos sendo também um objeto cultural e técnico-histórico,
com pontua Medeiros (2020) ao analisar glossários.

2. M etodologia
A priori, a criação do CODiC está alinhada à investigação de fenômenos inerentes
à Sintaxe, à Semântica e à Enunciação. Nesse sentido, as decisões metodológicas de
transcrição dos áudios, anotação de certos fenômenos linguísticos e formatos de
armazenamento dos arquivos estão subjacentes a esses níveis de análise linguística.
Quanto à transcrição, foi utilizada a ferramenta on-line e gratuita Dictation2. Essa
ferramenta possui extensão para diversos idiomas, além de permitir que qualquer formato
de áudio possa ser processado e que a transcrição seja exportada para diferentes
plataformas (como redes sociais e E-mail), como demonstrado na Figura 1.

2
Disponível em: https ://dictation.io/

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F ig u r a 1: Visualização da tela da ferramenta Dictation.

Fonte: Elaboração própria.

Como demonstrado na Figura 1, tem-se a tela de apresentação da ferramenta


Dictation, organizada em cinco seções. Em (I), tem-se a área de transcrição do áudio;
nela, a partir do reconhecimento do áudio, a ferramenta imprime na tela o texto
compreendido, permitindo que o usuário também faça correções e/ou inserções na
transcrição, bem como edições (alinhamento, destaques, paragrafação etc.). Em (II), o
usuário deve selecionar qual o idioma do áudio que será transcrito. Em (III), deve ser
selecionado o tipo de microfone que será utilizado para reconhecer o áudio: o usuário
pode optar entre um microfone interno do computador, que pode reconhecer qualquer
formato de áudio, ou o microfone externo, para transcrever o áudio dito pelo usuário. Em
(IV), tem-se o botão “Start” que permite iniciar, pausar e interromper a transcrição. Por
fim, em (V), têm-se as opções de exportar a transcrição, admitindo diferentes formatos e
extensões.
Para esta pesquisa, foi utilizado o microfone interno do computador, sendo que a
transcrição foi feita com base no áudio que está disponível nas plataformas de streaming
do projeto de extensão “A voz da ciência” . As transcrições foram feitas a partir de
respostas elaboradas por pesquisadores ou especialistas de determinados assuntos a
perguntas enviadas pelo público externo à universidade. As respostas foram veiculadas
inicialmente na Rádio Federal de Alfenas durante sua grade de programação e,

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posteriormente, armazenadas em uma plataforma de streaming, de onde se extraíram os


áudios. Por não ter sido utilizado o áudio original das respostas, a ferramenta Dictation
precisou lidar com ruídos do áudio original e com falas concomitantes a músicas de fundo.
Como resultado, foi necessário incluir uma fase de revisão para corrigir equívocos do
processo automático de transcrição, como demonstrado em (1).

(1)
a) Olá meu nome é Luciene Marques Eu Sou professora do curso de farmácia e eu vou
responder a sua pergunta em relação se a depressão tem alguma relação com a idade
são com a idade observamos que crianças podem ter depressão adolescentes pessoas
adultas idosos então não existe uma relação da depressão com a idade se manifestar
fase da nossa vida em qualquer faixa etária.
b) Olá, meu nome é Luciene Marques._ Eu Sou professora do curso de farmácia e eu vou
responder a sua pergunta em relação se a depressão tem alguma relação com a idade._
Não, não há uma relação com a idade. Nós observamos que crianças podem ter
depressão, adolescentes, pessoas adultas, idosos tá? Então, não existe uma relação
da depressão com a idade. Ela pode se manifestar em qualquer fase da nossa vida, em
qualquer faixa etária.

Em (1), tem-se um exemplo de uma transcrição do corpus cuja temporada


discutida foi Saúde mental. Em (1a), tem-se a transcrição da resposta como o software
realizou a tarefa. Percebe-se diversos desvios sintáticos, caracterizados pela ausência de
determinadas palavras na construção frasal. Assim, após a revisão manual, a transcrição
que consta no corpus é a versão exemplificada em (1b).
Nesse processo de revisão dos textos, mantiveram-se repetições de palavras e sons
(como “remédio remédio'" e “eh eh eh"), repetição de sons iniciais de palavras (como
“saúde me m ental ’) e desvios da norma padrão da língua (como “foi feito muitos
procedimentos”), a fim de garantir que a transcrição, apesar da revisão, pudesse
representar textos naturais, como proposto pela LC.
Além disso, foram tomadas cinco outras decisões metodológicas sobre o processo
de transcrição:
• Diante de sons vocálicos, optou-se por acrescentar a consoante ‘h ’, resultando em
“ah”, “eh”, “ih”, “oh” e “uh”, para não provocar ambiguidade com conectivos ou
repetições silábicas nos áudios;

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• Os números foram transcritos por extenso e nunca em algarismos, como “um” e


“dois mil e dezenove”;
• As siglas foram sempre transcritas em caixa-alta, como “UNIFAL” e “AIDS”;
• Ao que se refere à pontuação, os pontos-finais eram acrescentados automaticamente
quando a ferramenta Dictation identificava a finalização de enunciados; quando
isso não ocorria, pontos de finalização (ponto-final e interrogação) e vírgulas foram
acrescentadas durante a fase de revisão;
• As transcrições não apresentam nenhuma segmentação em unidades de sentido ou
turnos, já que se tratam de um tipo de monólogos (provocados por perguntas
acessadas pelos especialistas e/ou divulgadores científicos posteriormente ao ato de
fala), e pela transcrição não apresentar informações prosódicas que poderiam
auxiliar nesse processo.
Vale destacar que essas duas últimas decisões descritas, para além das
justificativas linguísticas e de projeto já apresentadas, baseiam-se no uso posterior de
ferramentas de processamento automático de texto. Assim, essas decisões poderiam
auxiliar o processo de busca de automáticas por padrões linguísticos, como a estrutura de
apresentação de conceitos científicos diante de determinados assuntos, por exemplo.
Quanto ao formato de disponibilização do corpus, elegeu-se o formato .xml (do
inglês, “Extensible Markup Language”). Esse formato permite a inserção de dados (como
marcadores linguísticos específicos) e metadados (como informação de estruturação e
duração das respostas) ao longo do corpus, como demonstrado na Figura 2. Além disso,
esse formato facilita tanto a consulta quanto o processamento manual e/ou automático das
informações.

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Figura 2: Exemplo de anotação xml do CODiC.


<CODIGO_Tl-All>
<PERGUNTA_EDITADA>Por que o virus nào é capaz de entrar pela barreira da pele?</PERGUNTA_EDITADA>
<RESPOSTA>
<TEXTO>
<APRESENTACA0>01á, meu nome é Bárbara Ávila, eu sou médica dermatoloqista, professora da Faculdade
de Medicina da UNIFAL. /APRESENTACAO>
<C0NTEUD0>O que hoje nós sabemos é que o coronavirus ele apresenta diversas proteinas. Uma delas é
responsável pela sua ligaçào no receptor de enzima conversora de angiotesina, o que faz com que o
virus seja capaz de penetrar nas células. Esse receptor não está presente nas camadas da pele, por
isso o virus nào é capaz de penetrar a barreira da pe l e .</CONTEUDO>
</TEXTO>
<AUDIO>
<INICIO_DA RESPOSTAX):00:37</INICIO_DA_RESPOSTA>
<FINAL_DA_RESPOSTA>0:01:08</FINAL_DA_RESPOSTA>
<DU RACA0_DA_RE SPOSTA>0:0 0 :31</DURACA0_DA_RESP0STA>
<DURACAO_DO_AUDIO_COMPLETO>0:01:41</DURACAO_DO_AUDIO_COMPLETO>
<L INK>https://open.spotif y .com/episode/2t6RPnlBI2g5YDplv2ullw?si=7149ff8a41ef4598</LINK>
</AUDI0>
</RESP0STA>
<RESPONDENTE>
<NOME>Bárbara Ávila</NOME>
<SEXO>Feminino</SEXO>
<CURSO_DE_GRADUACAO>Medicina</CURSO_DE_GRADUACAO>
<AREA_DO_CONHECIMENTO>Ciências da saúde</AREA_DO_CONHECIMENTO>
<TITULACAO>Especializaçào</TITULACAO>
<ATUACAO_NA_UNIFAL >Docente</ATUACAO_NA_UNIFAL>
<UNIDADE_ACADEMICA>Faculdade de Medicina [FAMED] /UNIDADE_ACADEMICA>
</RESPONDENTE>
</C0DIG0_Tl-Al1>

Fonte: Elaboração própria.

O .xml é um formato de linguagem de anotação que permite realizar marcações


especiais no texto por meio de tags entre colchetes angulares que delimitam o início e o
final da informação marcada. Na Figura 2, por exemplo, tem-se as tags <RESPOSTA> e
</RESPOSTA> que abrigam hierarquicamente outras tags, a saber: texto e áudio. Em
cada uma dessas outras duas tags há delimitações de outras informações, como trechos
de apresentação dos respondentes, a resposta elaborada por eles, a duração e o link dos
áudios completos, por exemplo. Salienta-se que esse formato de linguagem de anotação
é compatível com editores de texto (como o Notepad ++) e interfaces gráficas para
anotação de corpus que processem essa extensão de arquivo. O CODiC está disponível
em um repositório eletrônico 3sob a licença Creative Commons.

3. Resultados e Discussão
Nesta seção estão detalhados resultados desta pesquisa, organizados em
Caracterização do corpus, Organização das informações, Considerações sobre o perfil
dos respondentes e Considerações sobre a oralidade no corpus.

3.1. C aracterização do corpus


A caracterização do corpus, em certa medida, reflete decisões do projeto de
extensão do qual os áudios foram transcritos. A equipe executora do projeto de extensão
elege um tema que julgue ser atual e relevante à comunidade externa, a qual pode enviar

3
Disponível em: https://github.com/iackcruzsouza/CODiC.

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Instrumentos Linguísticos
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suas dúvidas por meio de redes sociais4. Em seguida, as perguntas são encaminhadas a
possíveis especialistas e/ou divulgadores científicos da universidade (professores,
técnicos e/ou alunos) que atuarão como respondentes. Eles são instruídos a produzirem
respostas curtas com linguagem acessível pelo público não especializado (aspecto que
será retomado na subseção 3.3).
Para elaboração do CODiC, foram consideradas as cinco primeiras temporadas do
projeto com as seguintes temáticas “Covid-19”, “Atemático”, “ Saúde mental”, “Uso
Racional de medicamentos” e “LGBTQIAP+” . De acordo com a Tabela 1, a quantidade
de áudios transcritos referentes a cada uma das temporadas decaiu ao longo das
temporadas. As transcrições foram realizadas a partir dos áudios disponíveis na
plataforma streaming do projeto, e não constam todos os áudios que foram veiculados na
programação da Rádio Federal de Alfenas, especialmente para as temporadas 4 e 5.

T a b e la 1: Caracterização do C O D iC .

T em p orad a/ Q n t. de Q n t. d e Q n t. de D u r a ç ã o m é d ia D u r a ç ã o to ta l
A ssu n to á u d io s tokens types d a s re sp o sta s d a s re sp o sta s

T1: C ovid -19 44 8.7 7 9 1.876 00:0 1 :3 0 01:0 5 :5 0


T2: A tem ática 40 8.4 0 7 1.908 00:01:33 01:02:05
T3: Saúde m ental 35 7.053 1.599 00:0 1 :3 7 00:5 6 :2 8
T4: U so racional de m edicam entos 23 3.711 1.080 00:0 1 :0 9 00:26:31
T5: L G B T Q IA P + 24 4 .1 4 4 1.222 00:0 1 :1 6 00:3 0 :1 8

TOTAL 166 3 2 .0 9 4 7 .6 8 5 00:01:25 04:0 1 :1 2


Fonte: Elaboração própria.

Com relação à Temporada 1, destaca-se que essa temporada foi marcada por estar
sendo produzida concomitante à pandemia de Covid-19. Nesse sentido, as respostas
elaboradas refletem certas preocupações técnicas, informativas e científicas que se tinham
à época da temporada, como, por exemplo, a caracterização de sintomas, material de
máscaras e material de assepsia, como demonstrado em (2). Ainda que a informação em
si não seja mais adequada, dado que a instrução de utilizar máscaras de tecido não sejam
mais indicadas por órgãos fiscalizadores de saúde, a resposta foi mantida no corpus por
possibilitar o mapeamento da preocupação tanto da comunidade externa (no sentido de
levantar pontos de questionamento) quanto da universidade (no sentido de tornar
acessível a informação fidedigna à realidade) criarem interlocução sobre esse ponto.

4 Disponível em: https://www.instagram.com/avozdaciencia/.

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Instrumentos Linguísticos
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Outra justificativa para a manutenção de respostas como (2) no corpus é o fato de a


resposta possibilitar análises de estratégias linguísticas utilizadas no discurso oral para a
popularização científica, para além da questão temporal levantada anteriormente.

(2)
Pergunta: Como devo higienizar a minha máscara de tecido?
Resposta: Olá, meu nome é Leonardo Almeida, sou professor da UNIFAL. As máscaras
de pano, elas podem ser lavadas com água e sabão, assim como elas também podem
ser deixadas de molho em água sanitária por aproximadamente meia hora. Depois
disso, essas máscaras devem ser lavadas com água e sabão e também podem ser
penduradas para secarem naturalmente. Quando elas estiverem secas, as máscaras
devem ser passadas a ferro quente antes de serem utilizadas novamente. é importante
lembrar que as máscaras são de uso pessoal, não podendo ser compartilhada com
outras pessoas, e somente as máscaras de pano são reutilizáveis, são laváveis. As
máscaras descartáveis só são utilizadas uma única vez.

A Temporada 2 foi tida como atemática pois foi a única em que o projeto se abriu
à comunidade externa para responder quaisquer perguntas enviadas, e não a partir da
decisão de um tema específico. Aqui estão contempladas respostas com relação à atuação
e disponibilidade de serviços da universidade no município mineiro de Alfenas,
importância de certos animais aos seres humanos (como abelhas e peixes), uso de
medicamentos e como lidar com casos de suicídio.
Na Temporada 3 contemplou-se a discussão sobre saúde mental, tendo como
respondentes profissionais da área da saúde. Nessa temporada, percebe-se que há duas
naturezas de respostas, a depender da formação acadêmica dos respondentes: se eram de
áreas que propiciavam maior discussão com a temática e seus subtemas (como as áreas
de Psicologia, Medicina e Enfermagem), as respostas apresentam maior detalhamento
informativo; se os respondentes eram de áreas afins, (como Odontologia), as respostas
foram precisas, apesar de concisas, destacando-se o aspecto de interlocução com o
público ouvinte (como “Não desista dapsicoterapia ”).
A Temporada 4 também foi executada durante a pandemia de Covid-19,
concomitante à polêmica em torno do uso de medicamentos que não tinham eficácia
comprovada cientificamente para combater a doença. Na tentativa de produzir mais
adesão do público ouvinte, decidiu-se não nomear a temporada com os medicamentos
questionados à época, mas tornar a discussão mais abrangente. Como resultado, as
perguntas enviadas contemplaram tais medicamentos, mas também outros mais comuns

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Instrumentos Linguísticos
255

(como dipirona e anti-inflamatório, por exemplo), bem como o uso devido de cada um
deles (quanto à dosagem e ao vencimento, por exemplo).
Por fim, na Temporada 5 discutiram-se temas relacionados à comunidade
LGBTQIAP+. Ainda que o foco deste estudo esteja nas respostas elaboradas, é
interessante perceber que a maioria das perguntas enviadas ao projeto foram anônimas,
diferentemente das temporadas 1, 2 e 4, em que, possivelmente, explica-se devido à
própria temática da temporada. Essa é a única temporada que escapa à área da saúde no
CODiC, possibilitando verificar construções frasais e estratégias linguísticas que advêm
de formações e experiências acadêmico-profissionais distintas. Ademais, é possível
detectar menor interlocução nas respostas, ao passo que há maior indicação de materiais
complementares e fontes de mais informações (como sites institucionais e organizações
civis municipais).
Quanto à duração das respostas, os respondentes eram instruídos a produzirem
textos com duração máxima de 2 minutos, já que a grade de programação da rádio
disponibilizou 3 minutos de inserção midiática. Assim, as respostas elaboradas tiveram
duração média total de 00:01:25, indicando capacidade de síntese dos respondentes em
relação ao conteúdo elaborado em formato de DC.
Quanto à análise estatística do CODiC, utilizou-se a ferramenta AntConc
(ANTHONY, 2005), a qual possibilitou a contabilização de sequência de caracteres
separados por espaços em branco (tokens) e a quantidade dessas sequências sem repetição
(types). A diferença entre tokens e types permite inferir certa novidade linguística que os
respondentes empregam em seus textos. Observou-se que a variabilidade linguística das
respostas é bastante pequena devido à relação numérica entre tokens e types (no caso,
24.409), sendo possivelmente explicado por usos linguísticos mais simplificados em
função da intenção discursiva e argumentativa, do público-alvo e do suporte de
comunicação.

3.2. O rganização das inform ações


Como visto, o corpus está disponibilizado em formato .xml, o qual permite
segmentar trechos de informação para recuperação e análise manual e automática mais
facilmente por meio de tags. As tags utilizadas no corpus dizem respeito à Pergunta
editada, Resposta e Respondente.

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Instrumentos Linguísticos
256

a) Tag “Pergunta editada”


A tag “Pergunta editada” compreende a pergunta enviada ao projeto de extensão
pela comunidade externa à universidade. Para ir ao ar, a pergunta pode ter passado por
algum processo de edição técnica (para remover silêncios e repetições de palavras, por
exemplo) ou textual (para substituir palavras e/ou expressões preconceituosas, ou retirar
apreciações do público sobre o projeto). Visando a atender às exigências da Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD), todas as perguntas do corpus disponibilizado foram
anonimizadas, ou seja, as informações relativas a nome, idade e/ou localização foram
removidas da transcrição.

b) Tag “Resposta”
Na tag “Resposta”, armazenam-se duas macro-categorias, a saber: “resposta” e
“áudio” . Em “resposta”, dividiu-se em “apresentação” e “conteúdo”, que foram
elaborados pelos respondentes. Essa divisão se deu por observar a roteirização no trecho
compreendido em “apresentação”, já que os respondentes eram instruídos a dizerem seus
nomes, formação acadêmica e unidade acadêmica que atuavam na UNIFAL-MG. Em
“conteúdo” consta a resposta elaborada, em que a tag foi inserida não seguindo padrões
sintáticos, mas onde, de fato, ocorreram, como demonstrado na Figura 3.

Figura 3: Exemplo de uso de tags no CODiC.


<CODIGO_Tl-A6>
<PERGUNTA_EDITADA>Se eu tiver roupas velhas em casa, como moletom e camisas, eu posso utilizá-las
pra fazer as máscaras? Qual o perigo disso? E qual a eficiência dessa máscara?</PERGUNTA_EDITADA>
<RESPOSTA>
<TEXTO>
<APRESENTACAO>Bom dia, eu sou o professor Lucas Lopardi Franco. Eu sou Professor na
faculdade de ciências farmacêuticas da Universidade Federal de Alfenas</APRESENTACAO>
<CONTEUDO>e eu vou responder agora essa pergunta sobre a eficiência das máscaras
artesanais, se elas são confiáveis. E sim elas são confiáveis. A gente hoje tem um bom
respaldo de estudos que mostram a confiabilidade desses tecidos, mas é importante olhar o
tipo de material que você tá usando. Existe um tipo de tecido, por exemplo, que não é de
grande capacidade de retenção que à base de TNT. Então, se você tá usando como máscara
artesanal uma camada de TNT a segurança não é muito grande, mas se você usa, por exemplo,
o algodão 2 ou 3 camadas você já tem uma grande eficiência sobre isso. Então, você pode
fazer essas máscaras artesanais, você tem que avaliar se elas têm mais de uma camada de
tecido e o tipo de tecido que ele é feito. E mais comum hoje para facilitar a respiração
você, por exemplo, fazer dois tecidos de algodão e vim de TNT neh 2 camadas de algodão e 1
de TNT interna você pode inclusive nessas máscaras que têm duas camadas de algodão externa
e interna ela tem um compartimento mesmo artesanal neh ela tem um compartimento pra você
trocar o do meio e ai você pode, por exemplo, até usar o filtro de papel que já foi
mostrado uma alta eficiência de retenção. Então uma saida também é você usar essas
máscaras de tecido artesanais que tenham vim um espaço interno pra você trocar pra você
pode usar um filtro de papel para aumentar a segurança, um de TNT pro dia a dia pra
facilitar a respi a respiração. Então sim: pode usar máscara artesanal, mas tem que tomar
cuidado com o tipo de material. Se você quiser acompanhar mais o projeto nas midias
sociais, a gente mostrou lá os materiais mais seguros, as camadas, tem tudo mais detalhado
lá. Então sim: pode usar a máscara artesanal.</CONTEUDO>

Fonte: Elaboração própria.

Como visto, um dos pressupostos da LC é observar os fenômenos linguísticos em


seus contextos naturais de ocorrência. Nesse sentido, julgou-se ser necessária essa divisão
no interior da reposta para que pudessem ser recuperados mais facilmente os trechos em

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que houvesse certa espontaneidade na resposta elaborada, para que fenômenos ligados à
oralidade pudessem ser observados, além de ser possível manipular e/ou recuperar trechos
específicos: do “conteúdo”, da “apresentação” do respondente, ou do “texto” da pergunta.
Ainda sobre a resposta, na tag “Áudio” compreende-se a caracterização numérica
dos dados sobre a resposta e o áudio completo (com introdução, pergunta, resposta e
agradecimentos), além do endereço eletrônico do áudio completo na plataforma de
streaming do projeto.

c) Tag “Respondente ”
Nesta tag estão compreendidas as informações sobre os respondentes, a saber:
Nome, Sexo, Curso de graduação, Área de conhecimento, Titulação, Atuação na
UNIFAL-MG e Unidade acadêmica. Todas essas informações foram extraídas a partir do
Portal de Dados Abertos da UNIFAL-MG5 (que armazena informações acerca de seus
servidores) e da Plataforma Lattes (a respeito das informações acadêmicas).

3.3. Considerações sobre o perfil dos respondentes


É importante destacar que a produção textual em DC depende da mobilização não
apenas de conceitos científicos, mas também da adoção de estratégias discursivas para
promover interlocução e compreensão do conteúdo com o público-alvo. Sabe-se ainda, o
quão difícil é transpor os muros acadêmicos, já que isso exige mais que o domínio de uma
linguagem tida como acessível, mas também fazer com que as pesquisas científicas
acolham agendas sociais e culturais, para que a comunidade externa compreenda e apoie
a necessidade de pesquisas científicas.
O divulgador científico pode, por vezes, ser um cientista ou pesquisador
acadêmico, que, no imaginário brasileiro, são (a) pessoas inteligentes que fazem coisas
úteis à humanidade, (b) pessoas comuns com treinamento especial, (c) pessoas que
servem a interesses econômicos e produzem conhecimento em áreas nem sempre
desejáveis, (d) pessoas que se interessam por temas distantes das realidades das pessoas
ou ainda (e) pessoas excêntricas de fala complicada (CGE, 2019).
Compreender o perfil dos divulgadores científicos permite-nos repensar nas
estratégias linguísticas e multimodais de reformulação discursiva (FINATTO; EVERS;
STEPHANI, 2016) em determinado registro da língua, bem como avaliar a pertinência

5 Disponível em: https://sistemas.unifal-mg.edu.br/app/si3/home.php.

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da fonte de informação utilizada (CUNHA; GIORDAN, 2015). Como resultado, ter-se-


ão maneiras populares de tornar mais acessível e compreensível o conhecimento que se é
produzido na Universidade, a partir de dimensões objetivas e subjetivas da DC (SOUZA,
2021).

Tabela 2: Caracterização de perfil dos respondentes no CODiC.


AREA DO
TEM PORADA ATUAÇAO T IT U L A Ç A O
C O N H E C IM E N T O
C L
i i
ê n
C n g
i C C ic u
E ê i i a í
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G G p M D D A c n n sS t
T D r r e e M o s i i
A é o a a c s e u uo t a c c
i i oc c
SE i s t t r s a
XO
l c c d d a t t o o o B a a i
u n e u u l r r r r n i s s a L
1 2 3 4 5 n i n a a a d H i
o c t n i n a a o o e
o e
ç
ã d z d d n ad m l a u s
S m t
o o a o o d o i ó a a A r
ç o a g ú n lp a
ã i d a i s
o c e s c e
a A
s a r
d t
a e
s s
F em . 8 16 6 12 14 4 6 44 1 1 5 0 1 3 40 0 8 35 5 2 3
M asc. 14 12 4 9 7 3 5 37 0 1 6 4 2 0 32 1 10 26 4 0 4
Fonte: Pocobello, Silva e Souza (2022).

De acordo com a Tabela 2, no projeto, há maior presença de especialistas do sexo


feminino (56) quando se compara a pessoas do sexo masculino (46). Quanto à atuação na
UNIFAL-MG, há participação maior de docentes (81), seguidos de técnicos (11) e alunos
(7), sendo que a maioria possui o título de doutor/a (72). Com relação à área do
conhecimento, percebe-se que há massiva presença de respondentes da área de Ciências
da saúde (61), ao passo que as outras áreas do conhecimento estão sub-representadas,
bastante explicado por conta dos temas abordados no CODiC e à natureza das perguntas
enviadas ao projeto.
A partir dessas informações iniciais, Pocobello, Silva e Souza (2022) apontaram
que o perfil de divulgadores do projeto de extensão “A voz da ciência” se concentra em
indivíduos do sexo feminino, com doutorado e que atuam como docentes na UNIFAL-
MG, predominantemente da área de Ciências da saúde. Tal perfil advém da correlação
entre a temática das temporadas e a própria configuração do corpo de servidores e alunos

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da referida universidade. Ademais, é possível conjecturar que a não articulação do projeto


com outras áreas do conhecimento, por vezes, corrobora um estereótipo social acerca da
concepção de Ciência e da figura do cientista: aquela deve sempre se conectar a áreas de
Ciências exatas ou da Saúde, enquanto esta deve sempre estar enquadrada na imagem de
uma pessoa em um laboratório.
Cabe sinalizar uma distinção terminológica e conceitual que está presente no
CODiC. As pessoas que responderam às perguntas, até o momento, estão sendo tratadas
como “respondentes” ou como “divulgadores”, mas não exclusivamente como
“especialistas” . Para ser considerado esta última categoria, seria necessário que os
respondentes possuíssem formação e atuação acadêmicas compatíveis às perguntas. Um
jornalista, por exemplo, pode ser considerado como um divulgador ao abordar uma
temática sobre ciência, por exemplo; porém, isso não o torna um especialista no assunto.
É possível perceber que, na Temporada 5, cuja temática foi LGBTQIAP+, por
exemplo, a maioria dos respondentes tinham alguma ligação com a temática (constitutiva,
participativa ou ideológica, por exemplo), sem que necessariamente pesquisassem
questões voltadas ao tema. Uma das atualizações que o CODiC receberá em uma de suas
próximas versões será o acréscimo da informação “especialista” (aquele que tem
engajamento científico com a questão) ou “divulgador” (aquele que responde à pergunta
a partir de fontes científicas sem que ele tenha engajamento científico com a questão) a
cada um dos respondentes, para que análises mais específicas sobre os usos linguísticos
e estratégias de DC possam ser estudadas.

3.4. Considerações sobre a oralidade no corpus


Por ser um corpus oral, o CODiC tem representatividade de traços e fenômenos
linguísticos desse registro da língua, considerando que este molda-se às necessidades
comunicativas dos interlocutores (no caso, respondentes e ouvintes), além das
características formais do suporte midiático que publiciza os áudios.
Antes, é necessário refletir que o discurso de DC está engendrado em um
complexo sistema de atividades de produção da DC, o que inclui mecanismos
linguísticos, como apontam Lima e Giordan (2018).

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F ig u r a 4: Sistema de atividades de produção da DC.

Lima e Giodan (2018) concebem a DC dentro de um sistema de atividades


complexas e interligadas, ora diretamente, ora indiretamente, conforme ilustrado na
Figura 4. A Linguagem verbo-visual, em especial, é entendida como um sistema
simbólico capaz de promover ilustração do tema e representação do cientista. Segundo os
autores, o objeto da produção da DC é a cultura científica, tida como um
“empreendimento humano produzido por meio de processos comunicacionais tendo em
vista a comunicação e inserção de novos membros nessa cultura” (LIMA; GIORDAN,
2018, p. 501). Por conta disso, na representação da Figura 4, a Linguagem verbo-visual,
conecta-se diretamente ao Divulgador, à Cultura Científica e a Comunidade de
divulgadores para promover comunicação e inserção.
Porém, como demonstrado inicialmente, muitos recursos linguísticos conhecidos
atualmente que são empregados nesse tipo de linguagem estão restritos ao registro escrito.
Se por um lado ilustrações visuais e notas de rodapé explicativas não são possíveis de
serem utilizadas, por outro, utilizam-se outras estratégias de explicação nos textos orais,
como demonstra-se em (3)

(3)
Olá, meu nome é Ana Carolina Padovan, sou professora de microbiologia da UNIFAL.
Para você desinfetar suas roupas e sapatos pense o seguinte: sabão e água são os nossos
maiores aliados. Então a sua roupa você pode lavar da forma como você tá acostumada:
pode colocar na máquina, pode colocar no tanquinho, pode lavar à mão. O importante
é esfregar bem com sabão e água. Se você estiver usando uma máscara de pano, é
importante que você deixa essa máscara de molho pelo menos por 30 minutos com sabão
e água antes de lavar normalmente. Já o seu sapato dê preferênciapra desinstalá-lo fora
da sua casa. Você pode manter uma vasilha com uma solução de água 9 partes de água,
uma parte de água sanitária pra você passar na solas do seus sapatos. Se o seu sapato é

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delicado, você pode usar também água e sabão, sempre nas solas e de preferência manter
o seu sapatos, mesmo que higienizados, fora da sua casa.

A resposta transcrita em (3) advém da primeira temporada, cuja temática foi


Covid-19. Observa-se que a respondente faz uso de ao menos três estratégias para
construir seu discurso: (i) construção imagética, em que a respondente utiliza a
construção “pense o seguinte”, no intuito de conduzir o ouvinte a visualização da cena
instrutiva que será construída no desenrolar da narrativa; (ii) interlocução direta , em que,
de maneira explícita (como em “se você estiver...” e “ você pode lavar..”), tenta promover
proximidade com o ouvinte; e (iii) sequenciação, em que por meio de procedimentos
seriados, promove a instrução de como poderia ser promovida a higienização de
máscaras, roupas e sapatos, utilizando o tipo textual injuntivo, tido como comum e
circulante na sociedade em outros gêneros textuais.
A repetição também pode ser tida como marca da oralidade na Linguagem verbo-
visual. Dentro da sequência de instruções, a respondente repete a estrutura de condição
(“se o seu sapato...”, por exemplo) e de modalização ( “pode lavar à mão...”, bem como
um conjunto de palavras (como “água”, “sabão”, “água sanitária”, “máquina”,
“tanquinho”, “lavar” e “esfregar”, por exemplo), que se circunscrevem em um
determinado campo semântico para tentar promover ênfase às instruções fornecidas.
Outro aspecto presente nos textos que constituem o CODiC é o planejamento e
não-planejamento das respostas, como ilustrado em (4)

(4)
a) Olá, eu sou Larissa Bueno. Médica de Família e professora do curso de Medicina
da Universidade Federal de Alfenas. Muitas pessoas podem achar que as relações
sexuais com o mesmo gênero são mais tranquilas em relação às doenças, mas a relação
sexual homoafetiva transmite sim as DSTS, que nada mais são do que as doenças
sexualmente transmissíveis, e as doenças transmitidas elas podem ser desde o HPV, até
mesmo o HIV que é uma doença crônica, grave. Portanto o cuidado e a prevenção eles
devem sempre existir.

b) Meu nome é Robson, sou professor aqui da Unifal, minha especialidade é


nefrologia e vim responder a pergunta do José Alfredo aqui sobre a respeito do uso das
medicações para diabetes. Então tomar dois comprimidos porque comeu mais doce, isso
não vai funcionar muito bem porque os medicamentos, principalmente via orais, eles
demoram a fazer o efeito, geralmente eles têm um tempo maior neh pra fazer efeito,
diferente da insulina que age mais rapidamente. Porém, o remédio não vai substituir a
insulina. Então, o medicamento, o comprimido. Então o ideal é que você não aumente,
pelo contrário, que você tente reduzir as próximas refeições com eh... alimentos neh,

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reduza um pouco os alimentos pra tentar reduzir essa glicemia, e retornar no médico pra
reavaliar se tem necessidade de aumentar as doses ou não dos medicamentos.

As respostas apresentadas em (4) advêm das Temporadas 5 e 4, respectivamente.


Ao analisar (4b), percebe-se a utilização demasiada de marcadores discursivos de
conclusão para introduzir ideias (como “Então tomar dois comprimidos...’’), pausas
(marcado por “ . . ”), quebra de continuidade discursiva (como em “Então, o medicamento,
o comprimido. Então o ideal é que você não aumente...’’) e hesitações (evidenciado por
“eh”), o que leva a concluir que o referido texto não apresenta planejamento. Já (4a)
demonstra certo planejamento textual por conta do uso do conectivo de conclusão para
finalizar uma ideia (em “Portanto o cuidado e a prevenção ...”), e apresenta marcas da
oralidade com a retomada do tema, em relação ao rema, pelo pronome “eles” em “[o
cuidado e a prevenção] eles devem sempre existir’".
Outra consideração sobre a oralidade no CODiC é a construção de um interlocutor
receptor da resposta. Como visto, a resposta elaborada é provocada por uma pergunta que
é encaminhada ao projeto de extensão que, posteriormente, é veiculada na programação
da Rádio. É interessante notar que quem envia as perguntas ao projeto, na interlocução
assume um papel apenas de provocador da resposta, já que quem envia as perguntas pode
não ser do município mineiro de Alfenas, como observado por Vilaça et al. (2022). Como
resultado, observa-se que mesmo de maneira explícita, como em (3), a interlocução, na
verdade, está sendo construída em função de uma representação do possível ouvinte da
rádio.
Com relação a isso, há respostas no corpus em que há explicitude de quem envia
a pergunta (como “O NOME-DO-PERGUNTADOR, de LOCALIDADE-DO-
PERGUNTADOR, gostaria de saber se os fumantes correm o maior risco de infecção
pelo coronavírus...”), do próprio ouvinte (como “Então, o problema eh, querido ouvinte,
não é a prática do sexo sem a camisinha e sim o contato muito próximo . . ”), ou ainda dos
dois simultaneamente (como em “CarosNOME-DO-PERGUNTADOR e ouvintes...”).
Ainda, percebe-se que em algumas respostas há movimentos enunciativos, que
fazem com que os respondentes ora se comuniquem evocando quem envia a pergunta,
ora com o ouvinte, como demonstrado em (5).

(5)
a) Pergunta: Sou gay, posso doar sangue?

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b) Resposta: Olá, pessoal. Eu sou Iara, médica hematologista e professora da


UNIFAL e a resposta é sim. Até que enfim rege o bom senso, paciência e a justiça. A
partir de maio de 2020 o STF derrubou a cláusula que proibia homossexuais de doarem
sangue. Até 2020 homossexuais não podiam doar sangue, isso é ridículo. Agora você
pode procurar o banco de sangue mais próximo de você, independente de sua orientação
sexual, e doar sangue desde que você tenha tido apenas um parceiro nos últimos seis
meses. Diante disto, procure o banco de sangue, ajude o próximo. Espero que eu tenha
respondido, deixado tudo isso muito claro e até uma próxima oportunidade. Tchau!

Observa-se que a resposta em (5b) é elaborada a partir da pergunta enviada em


(5a), da quinta temporada do projeto. A resposta inicia-se diretamente ao ouvinte que
enviou a pergunta, seguida de informações evocadas pela respondente. Porém, mais ao
final da resposta, a construção “Agora você pode procurar o banco de sangue mais
próximo de você, independente de sua orientação sexual(...)” parece dirigir-se tanto ao
perguntador quanto ao ouvinte da programação, tendo em vista que aquele explicitou sua
orientação sexual, ao passo que a resposta evoca “independentemente de sua orientação
sexual” . A resposta é finalizada sendo redirecionada ao perguntador, com o desejo de que
a pergunta tenha sido respondida, de fato.
Por fim, cabe pontuar que, apesar de as transcrições do CODiC serem
provenientes de uma plataforma de streaming e estarem armazenados em formato de
podcast, os áudios poderão ser analisados a partir de concepções de suporte midiático
sobre o rádio. Nas análises que se derivam, então, implica-se considerar tempo de duração
dos áudios, construção da imagem do cientista, construção imagética de um público-alvo
mais amplo e mecanismos linguísticos a partir da relação dialógica e interlocucional entre
respondentes e (possíveis) ouvintes.

Considerações Finais
O objetivo deste trabalho foi pautar as etapas de criação do CODiC, como recurso
linguístico que possibilita investigação e caracterização linguísticas de especialistas na
popularização de conhecimento científico. Como resultado, mais que apresentar o corpus,
foi destacada uma metodologia de coleta e análises iniciais de aspectos relevantes para a
LC.
Ao longo deste artigo, apresentaram-se fragmentos do que os consulentes ao
corpus poderão encontrar ao acessá-lo e baixá-lo. Antes, será necessário partir do
princípio que os respondentes representados ao longo do corpus mantêm interlocução
contínua e rotineira com seus pares especialistas, que valorizam e entendem o processo

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de construção e constituição do conhecimento científico. Esse não é um processo fácil,


como destaca Souza et al. (2022), pois

requer que o texto fuja aos jargões científicos e que, ao mesmo tempo,
não caia no engano de ser um texto simples; requer que o autor ao
explicar e pontuar fatos, teorias e pesquisas científicas não as
simplifique a ponto de torná-las vulgar, simples ou inexistente; requer
entendimento de como os sentidos circulam, se produzem e se
(re)significam em uma sociedade hiper conectada; por fim, requer que
o autor fuja à proposição de um leitor médio e parta do princípio que o
óbvio nunca é tão óbvio (SOUZA et al., 2022, p.6).

Nesse sentido, o consulente não terá à sua disposição apenas um recurso para
analisar textualmente as construções frasais e mobilização de conceitos científicos em
disputa, mas também a possibilidade de observar como interlocutores acadêmicos se
deslocam discursivamente para se inserem em atividades comunicativas novas de
mobilização de sentidos a fim de tornar mais acessível o conhecimento.
Vale ressaltar que, ao analisar as respostas produzidas pelos respondentes, o
CODiC reflete um recorte histórico-ideológico peculiar e, infelizmente, expressivo na
sociedade atual: desinformação generalizada, aumento de notícias falsas, pensamentos
anti e pseudocientíficos. É necessário partir do princípio que a DC produz intersecções
entre esferas de criação ideológicas, em que as atividades pleiteiam motivos, objetivos,
diretrizes, agentes e ferramentas culturais (LIMA; GIORDAN, 2021), importantes no
processo de resistência da Ciência. As respostas, nesse sentido, não foram produzidas ao
acaso: elas foram provocadas a partir de perguntas que se ancoram em temáticas
escolhidas pelo projeto de extensão “A voz da Ciência” . É possível dizer que as respostas
fazem parte de um projeto discursivo do grupo extensionista, na tentativa de mobilizar
sentidos e fomentar o conhecimento. Tais pontos também poderão ser explorados no
corpus, pois ele foi tido na concepção de que a DC “se apresenta como uma ferramenta
fundamental para repensar os caminhos que a ciência faz atualmente [...] que podem se
afastar de uma classe elitizada e se aproximar de um leitor não especialista” (SOUZA et
al. 2022 p.6).
Como alguns dos trabalhos futuros que serão desenvolvidos a partir do CODiC
destacam-se: (i) acréscimo de meta informação sobre (não) espontaneidade nos textos;
(ii) inserção de campos semânticos em cada uma das temporadas; (iii) anotação
enunciativa, com vistas a identificar quando os respondentes alteram ou alternam seus
alvos interlocucionais. Ademais, há outros trabalhos que servirão de ampliação da

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Instrumentos Linguísticos
265

representatividade do corpus, como acrescentar outras mídias que suportam o registro


oral (como vídeos e podcasts transcritos, por exemplo), e aplicar notação de oralidade
para que sejam identificados e analisados aspectos prosódicos, resultando em outras
versões do CODiC.

A gradecim entos
Agradeço a todos alunos, professores e comunidade externa que estiveram envolvidos no
projeto de extensão “A Voz da Ciência”, especialmente ao idealizador do projeto,
Professor Dr. Lucas Lopardi Franco.

Referências
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histórica. In: MEDEIROS, Vanise; Esteves, Phellipe Marcel da. S. et al. (Org.).
A lm anaque de Fragm entos: ecos do século XIX. Campinas: Pontes, 2020, p. 113-118.

ANTHONY, L. AntConc: design and development of a freeware corpus analysis toolkit


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Instrumentos Linguísticos
268

ENSINO DA LEITU R A E DA ESC R IT A D E/EM CLASSES NO


PE R IÓ D IC O C O R R EIO B R A Z IL IE N SE : G ESTO S DE ANÁLISE DISCURSIVA

TEA C H IN G REA D IN G AND W R IT IN G FR O M /IN CLASSES IN TH E


PE R IO D IC C O R R EIO B RA ZILIEN SE: G ESTU RES O F DISCURSIVE
ANALYSIS

Juciele Pereira D ias1


UERJ

Resumo: Inscrito no entremeio da Análise de Discurso (Pêcheux, 2006; Orlandi, 2001), da


História das Ideias Linguísticas (Auroux, 1992) e da História da Educação (Limeira; Gondra,
2022), este trabalho tem como objetivo compreender como o ensino da leitura e da escrita é
definido em relação ao complexo material das divisões de sentidos e com dominância no discurso
do método de ensino mútuo em circulação por instrumentos linguístico-midiáticos, nos processos
de independência do Brasil do início do século XIX. Para isso, o corpus de análise é constituído
por recortes de textos sobre Educação Elementar publicados no periódico Correio Braziliense
em 1816, que divulgam o método Lancaster para leitores em língua portuguesa. Também é
analisado um recorte do periódico, publicado em 1822, sobre a definição das gentes do Brasil,
postos em correlação com recortes do texto da Constituição Política do Império de 1824 que
determina a lei de 15 de outubro de 1827 sobre a criação de escolas de primeiras letras. Buscamos,
assim, compreender como a divisão social da leitura, do trabalho e da própria denominação
“brasileiro” tomam forma em meio a tensas relações de poder e de constituição de um imaginário
de unidade língua-estado-nação na emancipação política do Brasil em relação a Portugal.
Palavras-chave: Análise de Discurso; História das Ideias Linguísticas; História da Educação;
Instrumentos Linguísticos; Leitura e Escrita.

Abstract: Inserted in the midst of Discourse Analysis (Pêcheux, 1997; Orlandi, 2001), the History
of Linguistic Ideas (AUROUX, 1992) and the History of Education (Gondra & Limeira, 2022),
this work aims to understand how the teaching of reading and writing is defined in relation to the
complex material of the divisions of senses and with dominance in the discourse of the mutual
teaching method in circulation by linguistic-media instruments in the processes of independence
in Brazil at the beginning 19th century. For this, the corpus of analysis consists of excerpts from
texts on Elementary Education published in the periodical Correio Braziliense in 1816, which
disseminate the Lancaster method for readers in Portuguese. A newspaper clipping, published in
1822, on the definition of the people of Brazil is also analyzed, put in correlation with excerpts
from the text of the Political Constitution of the Empire of 1824 that determines the law of October
15, 1827 on the creation of schools of first letters. We seek, therefore, to understand how the
social division of reading, work and the very name “Brazilian” take shape in the midst of tense
power relations and the constitution of an imaginary of language-nation-state unity in the political
emancipation of Brazil in relation to Portugal.

1 D outorado em Letras - U F SM ; D outoranda em Educação -UERJ; P rofessora do Program a de P ós-


Graduação em Letras e L in gu ística da FFP-U ER J. P rofessora Adjunta do D L L -C A p-U E R J. B o lsista
Prociência-FA PE R J. Em ail: ju c ieled ia s@ g m a il.co m .

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Instrumentos Linguísticos
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Keywords: Discourse Analysis; History of Linguistic Ideas; History of Education; Linguistic


Instruments; Reading and writing.

Subm etido em 17 de julho de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introdução
Os processos de ensino da leitura e da escrita a meninos, e meninas2, pela língua,
tomaram outras formas ao se denominar e classificar as gentes do Brasil em meio aos
processos de independência do século XIX, quando se buscava construir um efeito de
unidade imaginária de língua-estado-nação (Orlandi, 2007) separada de Portugal e, por
conseguinte, a própria questão da educação nacional nessa língua. Nas circunstâncias
sócio-históricas da Revolução Industrial, na Inglaterra, por Hipólito José da Costa Pereira
Furtado de Mendonça, para circulação em Portugal e no Brasil, foi editado o periódico
C orreio Braziliense em que por dois anos se divulgou o systema/método de ensino de
Joseph Lancaster: sete ensaios intitulados Educação Elementar publicados em 18163.
Estes envolvem tanto o processo de unificação do Brasil a Reino Unido de Portugal,
Brazil e Algarves (1816), sob o reinado de Dom João VI, quanto são constitutivos das
condições de produção de sentidos de separação do Brasil (1822), sob o império de Dom
Pedro I, ao mesmo tempo que demanda uma administração do Estado-nação brasileira
independente.
Até o século XIX, segundo Bastos (1997), os professores de primeiras letras
adotavam o ensino individual, principalmente no predominante espaço rural do país. Este
“consiste em fazer ler, escrever, calcular, cada aluno separadamente, um após o outro, de
maneira que quando um recita a lição, os demais trabalham em silêncio e sozinhos”
(BASTOS, 1997, p. 116). O ensino individual, com alunos trabalhando em separado ou
em silêncio e sozinhos, contrasta com a proposta de ensino mútuo, dos alunos (meninos,
principalmente) alocados em longas classes no método de Lancaster e implementado
principalmente em áreas urbanas. Apesar de chegar a ser considerado como um sistema
que não vigorou no Brasil, as referências ao método de ensino mútuo foram divulgadas

2Destacamos a inclusão das meninas no ensino mútuo, ainda que representando um número bem menor do
que de meninos e com instruções mais voltadas às tarefas domésticas.
3 C O R R E IO B R A Z I L I E N S E . Disponível em:
http://obidigital.bn.br/acervo digital/div periodicos/correio braziliense/correio braziliense.htm. Acesso
em 19 jul. 2022.

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Instrumentos Linguísticos
270

em países sul-americanos no início do século XIX, incluindo o Brasil. Tal método foi
legitimado após a Constituição do Império de 1824, na lei nacional de 15 de outubro 1827
e a seguir em leis de certas províncias para a criação das escolas das primeiras letras.
As condições materiais de vida das gentes trabalhadoras do Brasil incluíam as
crianças com idade considerada para o trabalho (7 anos, advindas ou não da situação de
expostas/enjeitas) que deveriam ter um espaço de instrução disciplinar, de uma instrução
que serviria tanto para as primeiras letras, escrita, quanto para a subordinação e
obediência aos “brazilienses” ou a seguir ao Imperador, soberano dos “cidadãos
brasileiros” . Essas e outras formas de denominar as gentes do Brasil se inscrevem pelo
funcionamento de um jogo de forças materializadas na/pela língua, todavia esta é “capaz
de falha, [e] o ‘impossível’ acontece, isto é, sufixos não previstos para gentílicos, como é
o caso de -eiro, fazem furo e se instalam formando gentílico” (FERRARI; MEDEIROS,
2012, p. 86). Temos, assim, neste estudo as formas de denominação dos brasileiros
produzindo diferentes efeitos de sentido na história do Brasil e no ensino de leitura e da
escrita, na/pela língua, práticas que significam a cidadania. Segundo Orlandi (2001, p. 8),
“a forma política dessa cidadania é a Independência”, a qual inicialmente é forjada por
instrumentos linguístico-midiáticos que fazem circular determinados sentidos para que
sejam não somente legitimados, mas também (re)conhecidos.
Para o gesto de leitura empreendido neste estudo, o corpus de análise é constituído
por cinco recortes sobre o ensino da leitura e da escrita presentes em ensaios (textos) de
divulgação do sistema de ensino mútuo, intitulados Educação Elementar e publicados no
C orreio Braziliense de 1816. Também é analisado um recorte do mesmo periódico,
publicado em 1822, sobre a definição das gentes do Brasil, colocado em relação com
recorte do texto da Constituição Política do Império de 1824 que determina a lei de 15 de
outubro de 1827 sobre a criação de escolas de primeiras letras.
A partir da perspectiva teórico-metodológica da Análise de Discurso, produzimos
uma análise discursiva desses recortes correlacionados e remetidos às suas condições de
produção de sentidos. De acordo com Orlandi (1984), os recortes são fragmentos de
unidade e situação, de modo que um significa em relação ao outro, ou seja, um texto em
análise é significado não como uma unidade fechada em si mesma, mas em relação a
outros recortes, a outros textos correlacionados.
Este procedimento de análise produzido no entremeio de diferentes áreas das
ciências da linguagem e das ciências da educação está sustentado teoricamente em
Pêcheux (2006, p. 44) ao propor “as relações entre o que é dito aqui (em tal lugar), e o

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Instrumentos Linguísticos
271

dito assim e não de outro jeito, com o que é dito em outro lugar e de outro modo, a fim
de se colocar em posição de ‘entender’ a presença de não ditos no interior do que é dito” .
Desse modo, o gesto de leitura sobre formas de denominação dos leitores e dos
trabalhadores, não leitores, do Brasil é um ponto fundamental para nossa presente
pesquisa que, de maneira mais ampla, busca compreender como se dá a divisão social do
trabalho do ensino da leitura e da escrita, bem como da própria formação e denominação
da língua nacional, das gentes do Brasil, em seus processos de independência no início
do século XIX.

As práticas do ler e do escrever enquanto form as de dom inação no Brasil


As práticas do ler e do escrever, historicizadas no espaço discursivo geopolítico
hoje denominado Brasil, advêm de uma da tradição da escrita ocidental greco-latina e
remontam aos processos de colonização linguística (MARIANI, 2004) do século XVI.
Essas têm por base instrumentos linguísticos e ideológicos de dominação de um povo
colonizador sobre povos colonizados, de diferentes etnias constituídas sobretudo por
memórias de oralidade (SOUZA, 1994). Desses instrumentos linguísticos podemos
denominar ao menos quatro gramáticas mais referenciadas na historiografia em ciências
da linguagem e em ciências da educação, que tiveram sua circulação em meio aos
processos de formação dos estados-nação de língua portuguesa e de colonização,
determinadas por sentidos da expansão dos domínios da igreja católica: G ram m atica da
lingoagem portuguesa, de 15364, de Fernão de Oliveira; a Cartinha ou G ram m atica da
lingua portuguesa com os m andam entos da santa m ádre igreja, de 15395, de João de
Barros; G ram m atica da lingua portuguesa, de 15406, de João de Barros; A rte de
G ram m atica da lingoa mais usada na costa do Brasil, de 15957, de José de Anchieta.
Da perspectiva da leitura de um país colonizado, as gramáticas da língua
portuguesa do século XVI produzem diferentes efeitos de sentidos, dentre os quais
podemos destacar dois. O primeiro, supracitado, é o de funcionar como instrumentos
linguísticos de dominação, de modo que esses efeitos se inscrevem na memória social.

4 H á um a có p ia púb lica digitalizada na B ib lio teca N acion al de Portugal. D isp o n ív e l em:


https://purl.pt/369/1/ficha-obra-gram atica.htm l. A ce sso em: 16 ju l. 2023.
5 H á um a có p ia p úb lica digitalizada na B ib lio te ca N acion al D ig ita l do Brasil. D isp o n ív e l em:
https://acervobn d igital.b n.gov.b r/soph ia/ind ex.htm l. A c e sso em: 16 ju l. 20 2 3 .
6 H á um a có p ia púb lica digitalizada na B ib lio teca N acion al de Portugal. D isp o n ív e l em:
https://purl.pt/12148. A c e sso em: 16 ju l. 20 2 3 .
7 H á um a có p ia p ú b lica d igitalizada no acervo digital da B ib lio te ca B rasiliana (U S P ). D isp o n ív e l em:
https://digital.bbm .usp.br/handle/bbm /4674. A ce sso em: 16 ju l. 20 2 3 .

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Instrumentos Linguísticos
272

o s efeito s id e o ló g ic o s da colon ização m aterializam -se em con son ân cia co m um


p rocesso de co lo n iza çã o linguística, que supõe a im p osição de id eias lin gu ísticas
v ig e n tes na m etrópole e um im aginário colon izad or enlaçando língu a e nação em um
projeto ú n ico . É co m um a im agem de coletivid ad e p o lítica nacional, d efen sora da
expansão do ca tolicism o, e associad a a u m im aginário de unidade do português com o
língu a de Estado é que o s p ortugueses se lançam através do A tlântico (M A R IA N I,
2 0 0 4 , p. 25).

Enlaçado este projeto de expansão da fé e de estados-nação, tendo por base a


colonização linguística no período das grandes navegações europeias, dá-se os processos
de gramatização das línguas ibéricas e da língua mais falada na costa do Brasil, os quais
são constitutivos de uma “revolução tecnológica da gramatização”8. Gramatização, de
acordo com Auroux (1992), é um processo que conduz a descrever e instrumentar uma
língua na base de duas tecnologias pilares do nosso saber metalinguístico: a gramática e
o dicionário. A partir da revolução neolítica, da formação das cidades, com a demanda e
invenção da escrita foi possível a transmissão de testemunhos por diferentes meios no
espaço e no tempo. Ao lado da escrita, considerada uma primeira revolução técnico-
linguística, Auroux (1992, 1998) propõe a gramatização enquanto a segunda revolução
técnico-linguística. Esse é o segundo ponto que destacamos: o da maneira como a
colonização linguística é estruturada discursivamente com a gramatização, que tem uma
base tecnológica, ou seja, está determinada por conhecimentos científicos da linguagem
(Dias, 2012).
Na concepção de gramática como instrumento linguístico, Auroux (1992, p. 69)
salienta que: “do mesmo modo que um martelo prolonga o gesto da mão, transformando-
o, uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de formas
que não configuram junto na competência de um mesmo locutor” . A ideia de gramática
como instrumento linguístico é ressignificada na segunda revolução tecnológica da
gramatização e com as ciências designadas como modernas.
Quando nos referimos a gramáticas, não as restringimos a noções de manuais de
ensino de uma língua particular como advém da tradição da colonização linguística
(DIAS, 2012, SCHERER, 2020), mas as tomamos também enquanto instrumentos

8 N a gram atização, essa id eia de revolução, segundo A uroux (1 9 9 2 ), não segu e o m esm o m od elo das
revolu ções cien tíficas proposto por Thom as K uhn em relação às ciên cia s da natureza ou exatas, no qual há
u m rom pim ento co m u m estado de “ciên cia norm al”, passando a constituir outro estado de “ciên cia
norm al”. A proposta de A uroux (1 9 9 2 ) sobre a gram atização assenta-se na id eia de revolução a partir de
T ocq u eville, na qual a revolução representa u m m ovim ento que afeta a v id a so cia l a lon go term o, sem o
apagam ento da co-p resen ça de con h ecim en to, ou seja, sem u m efeito de “tábua rasa” do passado.

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Instrumentos Linguísticos
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linguísticos, entendidos como tecnologia de linguagem que nos possibilitam descrever e


instrumentalizar uma língua, que pode corresponder, esta, a um determinado Estado e/ou
a uma determinada Nação. Todavia, há no projeto de colonização linguística o
funcionamento das gramáticas da língua portuguesa no Brasil, tomadas como modelo de
disciplinarização, conforme a tradição dos manuais de ensino da língua da metrópole, ou
seja, o modelo de língua e de como se deve ensinar é o da antiga e nobre língua
portuguesa, segundo definição de Fernão de Oliveira em 1536 (DIAS, 2012).
Determinado por domínios da tradição do ensino-aprendizagem português e
filiados a diferentes formas do saber metalinguístico, este projeto de colonização, com
seus mecanismos imaginários de controle das colônias, consolidou-se de tal forma que
mesmo com os processos de independência do século XIX, com a construção do estado-
nação Brasil independente politicamente de Portugal, até os dias atuais se diz que falamos
a língua portuguesa, mas sempre há um “mas” fazendo furo e introduzindo a
especificidade brasileira: mas falamos diferente9, mas falamos errado, mas é o brasileiro,
mas é a língua portuguesa do Brasil.
Ainda a partir do fim do século XVIII, segundo Assunção (2007, p. 282), após ser
publicado o “Alvará Régio de 28 de Junho de 1759 em que dita a extinção de todas as
escolas que utilizem o método jesuítico”, foi publicada a A rte da G ram m atica da
Lingua Portugueza, de Antonio José dos Reis Lobato, de 177010, tida como primeira
gramática escolar da língua portuguesa no espaço ibérico. Segundo Fávero (1996),
também por meio de outro Alvará Régio de 1770, foi determinado que os discípulos
deveriam ser instruídos pela gramática portuguesa de Reis Lobato nas aulas de letras.
Nesse fim de século XVIII, conforme Fonseca e Dias (2022), nos A utos da
Devassa da C onspiração dos Alfaiates (ou Conjuração Baiana, ou Revolta dos Búzios)
há cópias de fragmentos da gramática de Reis Lobato sobre a definição de Hipérbato,
sistema sintático do poema Igualdade e Liberdade, de autoria atribuída ao professor régio
de gramática latina Francisco Muniz Barreto de Aragão e declamado “por Manuel
Faustino e depois por Lucas Dantas, ambos nascidos no cativeiro e condenados à forca”
(FONSECA e DIAS, 2022, p. 102). Apesar de Reis Lobato (1770, p. 1) definir que a
“GRAMATICA Portugueza he a Arte, que ensina a fazer sem erros a oração Portugueza”,

9 E ni Orlandi (2 0 0 5 ), em seu texto L íngu a Brasileira, retom a p esq uisas do program a H istória das Ideias
L inguísticas no B rasil e analisa a com p osição de sentidos inscritos na m em ória da língu a do Brasil.
10 H á um a có p ia púb lica digitalizada na B ib lio te ca N acion al de Portugal. D isp o n ív e l em: https://purl.pt/196.
A ce sso em: 16 ju l. 20 2 3 .

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Instrumentos Linguísticos
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foi pelo próprio sistema ensinado por este manual que os conjurados se significaram nos
fins do século XVIII. Já no século XIX, com a vinda da corte para o Brasil e os processos
de independência, tem-se os debates sobre a educação e a instrução na Assembléia
Constituinte de 1823, a Constituição de 1824 e a lei de 15 de outubro de 1827 que
determinou a criação de escolas de primeiras letras para meninos e meninas em cidades e
vilas.

Gestos de leitu ra do m étodo de ensino m útuo nos processos de independência do


Brasil
No periódico C orreio Braziliense, sob edição de Hipólito José da Costa Pereira
Furtado de Mendonça, foram publicados em 181611 sete ensaios (textos) sobre Educação
elementar, escritos em língua portuguesa, com o objetivo de promover o método de
“ensino mútuo”, de Joseph Lancaster. Segundo Bastos (2005), trata-se do primeiro jornal
brasileiro, com cerca de 100 páginas, que era publicado em Londres com a finalidade de
ser lido no Brasil e em Portugal. Até o século XIX, a imprensa era proibida na colônia, e
de 1808 a 1822 o editor contornou a censura régia com a impressão no exterior,
difundindo “na América os ideais do liberalismo e as vantagens do sistema de governo
baseado na Constituição [o que] foi também fundamental” (LUSTOSA, 2003, p. 8).
Na esteira dos instrumentos linguísticos que contribuíram para o conhecimento
das formas da língua de um estado-nação, um periódico internacional fez circular um
determinado método de ensino do ler e do escrever. Considerando a gramatização
brasileira ser determinada por uma memória de colonização-ensino da língua portuguesa,
as divulgações do ensino de leitura e de escrita lancasterianos nos textos de Educação
Elementar inscrevem esse periódico enquanto um instrumento linguístico-midiático,
pois, ao buscar popularizar um novo método de ensino, ele coloca determinados sentidos
de ensino de leitura e de escrita em língua portuguesa em circulação e não outros naquele
momento. Isso faz com que esse ensino se constitua de certa maneira em um estado-nação
em separação. A questão que se coloca é: de quem, pra quem e como os sentidos de
educação elementar de leitura e de escrita são produzidos por meio deste instrumento
linguístico-midiático em 1816, após a coroação do Rei Dom João VI do Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves?

11 Educação elem entar ano 1816: n. 1 v. 16, p. 346; n. 2 v . 16, p. 460; n. 3, v . 16, p. 591; n. 4 v . 17, p. 58;
n. 5 v. 17, p. 205; n. 6, v . 17, p. 317; n. 7 v . 17, p. 468.

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Instrumentos Linguísticos
275

De acordo com Limeira e Gondra (2022), a marcha da política portuguesa e todos


os processos de sua administração foram criticados no jornal, porém Dom João VI era
considerado um leitor assíduo das publicações, diferentemente da Regência em Portugal
que o vedou. Cabe salientar que, em meio a essas críticas à administração régia, o novo
sistema de ensino mútuo era divulgado como método vantajoso de difusão das primeiras
letras de forma rápida, econômica e eficaz, diferente do método anterior das aulas régias
ou mesmo dos jesuítas (LIMEIRA e GONDRA, 2022).
A divulgação, assim, dava-se na parte MISCELLANEA do C orreio Braziliense,
em que foram publicados sete ensaios intitulados Educação Elementar, e numerados de
N. 1 a N. 7, sendo que os três primeiros são datados de 1816 no volume 16 e os quatro
últimos de 1816 no volume 1712. Em nossos gestos de análise, concentramo-nos
especialmente nos três primeiros ensaios de introdução e historicização do novo sistema
de ensino inglês, bem como de apresentação de como o método de Lancaster é aplicado
no ensino da leitura e da escrita elementar.
O primeiro texto, Educação elementar n. 1, é aberto com a definição do sistema
de educação elementar vigente como “mui dispendioso, e mui limitado” (p. 346), posto
em contraste com os “novos systemas de educação elementar” (p. 346) praticados em
Londres e em propagação por outros países, com destaque para a França. Nesse sentido,
para “dar á pátria cidadaõs laboriosos e probos” (p. 346), é proposto um novo systema
inglês que apresenta tanto um problema quanto a sua resolução junto à sociedade.
Podemos ler no recorte 1 (R1), a seguir, a pergunta do problema.
(R1) Educação elementar n. 1

. O problema, pois, que ba para resolver he i Gomo st


poderá generalizar uma boa edaeaçaõ elementar, sem
grandes despejas do Governo, c sem que se lire ás classes
trabalhadoras o tempo, qae be necessário que empreguem,
nos differentes ramos de suas respectivas occnpacoens ?

Fonte: (Correio Braziliense, 1816, p. 348)

Apesar de o primeiro ensaio não ter dia e mês de publicação, ele é seguido pela
notícia de uma sessão de 8 de abril de 1816, da Câmara dos Deputados da França, e está

12 E D U C A Ç Ã O E L E M E N T A R N . 1. “Introducçaõ” ; N . 2. “O rigem do N o v o S ystem a em Inglaterra” ; N .


3. “P rincípios em que se funda este System a” ; N . 4. “E m p regos das differentes C lasses de m en in os na
E sch ola” . N . 5. “E m prego d os m en in os nas differentes cla sses” . N . 6. “D isc ip lin a das esch olas. P rem ios” .
N . 7. “D iscip lin a nas E sch olas. C astigos” .

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Instrumentos Linguísticos
276

inscrito nas circunstâncias sócio-históricas posteriores à derrota de Napoleão pela


Inglaterra e pela Prússia na batalha de Waterloo, na Bélgica, em 18 junho de 1815. Este
acontecimento é contemporâneo ao processo de elevação do Brasil, politicamente, à
condição de Reino Unido a Portugal, Brasil e Algarves em 15 de dezembro de 1815, tendo
sido o rei Dom João VI coroado em 20 de março de 1816. Ano em que se dá uma
divulgação de um novo systema de ensino para se “generalizar uma boa educação
elementar” (p. 348), voltada para as “classes trabalhadoras” (p. 348), de modo que fosse
econômica no tempo e nas despesas.
O que significa a pergunta: como generalizar uma boa educação elementar?
Estaria esta demanda de uma boa educação determinada pela condição do Brasil enquanto
parte de um Reino Unido? Quais os sentidos de boa educação elementar naquelas
condições de produção de sentidos?
No recorte 1, de formulação do problema/pergunta, é enunciada a palavra
“classes”, especificada enquanto “classes trabalhadoras”, que, por sua vez, é determinada
pelos sentidos dos “diferentes ramos de suas respectivas occupacoens” (p. 348). Trata-se
de um novo sistema de educação elementar apresentado em um instrumento linguístico-
midiático para leitores letrados, mas destinado a ser aplicado especificamente aos
trabalhadores (meninos, e meninas), o que nos faz questionar ainda: quais os efeitos de
sentidos do plural classes trabalhadoras e sua relação com os que sabiam ler e escrever
em língua portuguesa? Quais os sentidos de trabalho na época? E como classificar o lugar
do professor nessa sociedade?
Sem a pretensão de encontrar respostas e sim de produzir condições de
possibilidade para outras leituras na história da educação linguística, temos uma relação
de sentidos entre “classes trabalhadoras” e “diferentes ramos de suas respectivas
occupacoens”, as quais especificam a ideia de um “officio mechanico” ou “trabalho
manual” a “se empregar” . Dentre os trabalhadores, as ocupações, há algumas postas como
mais prestigiadas, tais como: “médicos, mathematicos, jurisconsultos” (p. 347). É
interessante que nos ensaios de Educação Elementar os sentidos de aprender a “ler,
escrever e contar” estão em relação a uma “boa educação” e o lugar do matemático é
posto entre as ocupações de prestígio, porém não há uma relação mais direta com os
homens de letras, os letrados. Seria o jurisconsultos? Ou todas as ocupações?

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Passamos, a seguir, à análise dos recortes 2.113 e 2.2, em que são apresentadas as
vantagens do novo sistema para a “toda a sociedade” na Inglaterra, o que nos leva a
antecipar outra pergunta: quem eram os membros da sociedade?

(R 2.1). Educação Elementar n.1

Naõ púde deixar de couhi-cer-se a vaiitageini que


a sociedade tira destes estabelecimentos »ia li»glíderfílí
quando se visitam as cscludas. Us ineniuos, e menui*1-»
aprendendo a ler, escrever; e contar, segundo o novo »y>

Fonte: (Correio Braziliense, 1816, p. 348)

(R 2.2). Educação Elementar n.1

tema, «s habituara necessariamente a ura oomporlamento


bem regulado de obediencia e de suboidinaçaõ, methodica
de umas ciasses a outras ; a promoção dos individuos J»aõ
Fonte: (Correio Braziliense, 1816, p. 348)

O “novo systema” para o ensino de leitura e de escrita é definido como vantajoso


na manutenção de uma divisão social de classes trabalhadoras em que há uma outra classe
que tiraria vantagens de subordinação e obediência daquela. Esta última é denominada
“toda a sociedade”, ou seja, fazem parte da sociedade aqueles letrados considerados
superiores. A vantagem de se ensinar as “classes trabalhadoras” estaria no fato de que,
pelo método de ensino de ler, escrever e contar, os meninos, e meninas, também se
habituariam a um comportamento condicionado de servidão a uma sociedade letrada,
douta, condição para se tornar um “cidadaõ útil, obediente, e morigerado” (p. 349). Essa
sociedade se sustenta em uma tradição de escrita, que tem em suas bases tanto o
instrumento linguístico da gramática da língua portuguesa (da qual é modelo para o bom
uso) quanto a Bíblia cristã.
Sem nomear o “novo systema”, é reforçado que as “despesas da educaçaõ, entre
as classes pobres, seria talvez o unico obstaculo” (p. 349), mas a seguir é enfatizada a
“vantagem de economia; porque um só mestre pode encarregar-se do ensino de nove­

13 A num eração d os recortes parte de u m a sequ ên cia ló gico-m atem ática 1, 2, 3 4, 5 e 6 e constitui um a
lógica-m aterial quando a m aterialidade do texto, em análise, tem sua im a g em dividida o que lev a a
apresentação de u m recorte co m duas partes. L ogo, a num eração é esp ecifica d a em partes, por exem p lo,
2.1, 2.2 ou 4 .1 , .4.2.

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centos ou mil discipulos” (p. 349). Essas “vantagens” também são consideradas no
segundo texto, de 1816, sobre a origem do novo sistema na Inglaterra, que começa com
breve menção à irrelevância de se atribuir a autoria ao “Dr. Bell” 14 ou a “Jozé Lancaster”,
porém enfatiza o segundo por sua ampla disseminação na Inglaterra, Canadá, Estados
Unidos, Escócia, Irlanda, França e em Sierra Leona na África. No ensaio é ainda
destacada a exposição histórica como importante para se tomar conhecimento do que foi
feito pelos ingleses e assim se estabelecer o sistema em Portugal.
No terceiro texto, a seguir, são apresentados os “Princípios em que se funda este
Systema” já introduzindo a denominação “novo methodo de educaçaõ”, sustentado em
três grandes vantagens, conforme podemos ler no recorte 3.

(R 3). Educação Elementar n. 3

MISCELLANEA.
tBUCAÇAÜ ELEHÉÍTTAR,

N'. 3.
Principio* cm que sefunda este Systema.

D i s s e m o s > , que o novo methodo de educaçaõ que


nos propu2 cmos a explicar, tem em vista tres grande* van­
tagens. 1*. abreviar o tempo necessário psra aeducaçaS
das crianças. £*. diminuir as despezas das eschotaa; e 3-,
generalizar a ínstrucçaõ necessária às classes inferiores da
sociedade.

Fonte: (Correio Braziliense, 1816, p. 591)

Ao pontuar novamente as duas primeiras “grandes vantagens” da economia do


tempo e das despesas, é atribuído ao “novo methodo” também uma vantagem de
generalização da instrução necessária das “classes inferiores da sociedade”, ou seja, um
retorno da necessidade de massificação de uma boa educação elementar. Nesse terceiro
ensaio, assim como há um deslocamento na especificação da denominação de “systema”
enquanto “methodo”, há também outro: de “classes trabalhadoras” enquanto “classes
inferiores”, o que nos leva a uma compreensão necessária do modo como os sentidos de
sociedade são significados por esse instrumento linguístico-midiático, determinando uma
possível estrutura imaginária, ou seja, um certo modo de definir a sociedade a ser recebida

14 Um trabalho a ser d esen v o lv id o é u m a análise d os p o ssív e is g esto s de leitura de Joseph L ancaster (1 7 7 8 ­


1838) sobre o trabalho p ed a g ó g ico realizado por A ndrew B e ll (1 7 5 3 -1 8 3 2 ) em M adras, na Índia e sobre as
ideias de Jérem y B enth am (1 7 4 8 -1 7 9 2 ), autor do Panóptico.

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por leitores do C orreio Braziliense. Temos, assim, de um lado, as denominadas classes


inferiores, trabalhadoras, que podem vir a ser leitoras e cidadãs: mas a quem os sentidos
de leitura e escrita (elementar) servem socialmente? O que significa uma boa educação
elementar para classes inferiores? Há um direcionamento da boa educação em oposição
aos “mil hábitos viciosos” (p. 465), ao acostumar-se a “ociosidade” (p. 465), a “pessoas
depravadas” (465), a crianças deixadas como “vadios pelas ruas” (p. 465) enquanto os
responsáveis pobres trabalham. Se antes o ensino de ler e escrever servia para apresentar
os mandamentos da Igreja e para se salvar/ser servo de Deus, agora o ensino de ler e
escrever serve para quê/quem? Com a condição de também sede do poder do Reino
Unido, na leitura do periódico há movimento de organização da antiga colônia que aponta
para tentativas de atender às demandas da condição na participação do estado português
a manter relações comerciais e políticas com a Inglaterra.
Outro aspecto fundamental é o deslocamento de “systema” para “methodo” ao ser
descrito, detalhadamente, como funcionaria a aplicação do systema na instrução da classe
em classe. Diferente do ensino individual em que temos imagens históricas1516do professor
sentado diante dos alunos dispersos em seu entorno no chão, na estrutura física do método
Lancaster os alunos são alinhados sentados juntos a uma longa mesa, disposta igualmente
com outras mesas enfileiradas.

Figura 1 - Escola de ensino mútuo de 1818 na França16

15 Conferir frontispício da gramática de João de Barros, de 1539, para o ensino da leitura aos meninos (nota
4). Também a obra “Le Maitre d'école", de 1662, de Adriaen Van Ostade. Disponível em:
https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010062479.
16 Fonte: SANTANA, C. Educação pública se iniciou durante processos de independência na América do
Sul. Disponível em:
https://iornal.usp.br/universidade/educacao-publica-iniciou-durante-processos-de-independencia-na-
america-do-sul/. Acesso em: 20 set. 2023.

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No ensaio n. 4 do Educação Elementar, esta mesa é denominada “classe” e o


conjunto das mesas é denominado “as classes”, que são divididas e alocadas em certas
etapas da instrução da leitura e da escrita, conforme os recortes 4.1 e 4.2 a seguir.

(R 4.1). Educação Elementar n. 3


As classes, segundo o plano de M. Lancaster Be achani
divididas cm oito ; ctn uma escbola de mil meninos, se
podem coavenienlcmcute dividir em dez; da seguinte
iíuma. - ■
J. . - À. B. C.
2“ - . Palarrns ou syllabac de duas tetras.
3* • . Dito de ires letras,
4* • • Dito de quatro letras.
5‘ - • Dito de cinco IctraB.
6‘ - - Liçoens dc palavras de muita» gjüahas. .
7* - . - Leitura da Bíblia. '
8* . -Selecçaõ dos menioos que melhor lem na 7*
Os meninos que aprendem o A, B, C. se exercitam a
escrever as letras na area, como ao depois se dirá*
Depois disto, estejam em que classe estivèrem, sc exer-
«iUraõ em escrever as letras na pedra. , . c ■"
Uahi escreverão na pedra as palavras da desse em qu8 - -

Fonte: (Correio Braziliense, 1816, p. 594)

(R 4.2). Educação Elementar n. 3

. H ü ís c e líâ n r á . 6%
itluaTmóiiíb eií bçtiAvcin j' assim as clsawsde escrever sç
afháffl dividi dai da mesma, furmn que as ciasses da let*

Fonte: (Correio Braziliense, 1816, p. 595)

A leitura e a escrita propostas na Educação Elementar contaria com oito a dez


classes, cada uma atendida por um “decurião” (monitor), e todas/todos sob a supervisão
do professor da escola. Os três primeiros ensaios, publicados no volume 16 em janeiro de
1816, fizeram três diferentes apresentações do sistema/método de Lancaster. Já nos
quatro ensaios publicados no volume 17 em julho de 1816, são descritos alguns detalhes
das formas de aplicação do método: No texto 4 é apresentado o ensino das letras, escritas
na areia, envolvendo também a prática de decorar as orações nas primeiras classes dos
meninos mais novos. E o texto 5 é direcionado para a terceira classe e as seguintes, com
escrita na pedra, sendo a terceira centrada na instrução das sílabas de três letras; na quarta

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classe nas de quatro letras; a quinta classe na de muitas letras; e a partir da sexta classe
seria possível ler um livro, preferencialmente a Bíblia. Neste ensaio também é observado
que, para as meninas, é preferível o ensino da costura.
Já os dois últimos ensaios são voltados para a disciplina nas escolas, sendo o texto
6 centrado nos prêmios e o texto 7 nos castigos, considerados essenciais para a
manutenção da subordinação e da obediência daquelas classes trabalhadoras que
passariam a ser instruídas na língua portuguesa. Em meio ao processo de deixar de ser
colônia de Portugal e passar a fazer parte de um reino, o Brasil enquanto estado tem um
nome, mas a nação ainda é dominada pela portuguesa e classificada tendo por base as
suas condições de vida nas relações sociais.
No C orreio Braziliense os nomes dos países colonizadores, Portugal e Inglaterra,
colocam em evidência as relações de força (de poder), de sentidos, que se fazem
representar ao mesmo tempo em que silenciam o nome do Brasil, fazendo-o significar
pela ausência. Nesse sentido, cabe salientar o próprio título “Correio Braziliense”, visto
que, segundo Lustosa (2003, p. 14), “brazilienses eram os portugueses nascidos ou
estabelecidos no Brasil e que se sentiam vinculados ao país como a sua verdadeira pátria” .
Estes seriam os leitores do jornal e eram denominados de forma diferente dos
“brasilianos”, ou seja, os indígenas17.
Nessas condições de produção de sentidos, “brasileiros” eram chamados os
comerciantes que negociavam com o Brasil (Lustosa, 2003), o que nos leva a estabelecer
uma relação com a denominação “classes trabalhadoras” presente no jornal, considerando
que o ano de 1822, da publicação das duas últimas edições de C orreio Braziliense, é
também considerado o ano em que se comemora oficialmente a Independência
(separação) do Brasil.
No penúltimo volume da publicação em 1822, intitulado “Reflexões deste mês.
Reyno Unido de Portugal Brazil e Algarves. Uniaõ de Portugal com o Brazil”, é colocado
que as posições contrárias à continuação da união provinham de algumas pessoas
inconsideradas no Brasil, que não seriam os Brazilienses a quem o periódico se dirigia,
mas sim que há entre os Portugueses e os Brasileiros alguns que adotam medidas
favoráveis à separação, enquanto o editor esperava que alguns portugueses europeus
fossem desfavoráveis a essa cisão. Dito de outro modo, Braziliense está para o Brasil na

17 Sobre o s p ro cesso s de ressign ificação de b rasilien ses e brasilianos no sécu lo X X , conferir Ferrari e
M edeiros (2 0 1 2 ).

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condição de Reino Unido, já a independência é demandada por portugueses e por


brasileiros. E quem são os brasileiros em 1822?
Nesse jogo de denominações sobre as gentes do Brasil, ao elaborar a reflexão, o
editor faz uma nota de rodapé explicativa, que podemos ler a seguir, no recorte 5.

(R 5). União de Portugal com o Brasil


' ^ >
* C b fliti& rtiw B r jf S L itt iíc ,, o iif.tur% l dé? B r a s i l : B r a t l l e j r O } o P o r t u g u i -!
■ E n r o f d ü e t i r n a g e i r o , q u e In vai negociei1nu «tabele er-*r; sr^iilndo
6 gênio da língua Portupuoia, na igual a terminnfhfi tiro denota a gcce-
p a ja í j e x e m p lo ^ i ip ii/e J r D f iq u r t it ^ f n p iilD a .i / c r ^ í r i i u ijn e i w l iu lb i u n i

ferto: ccrUiro o que trabalha em cera: òrnriYpic. o qne uegereía tm


Iji^iiaoQ gflnerftaVo B rsirl, <tc.: (wr outra paflts o m uigaldaFerfocha-
P p t í #*fte na6 Portueira ; o uaturai da Bahia Jlakieiu* i i a í
A tennÍQ£*a& cm nua lambem eer riria pdra bti^ como por
exemplo, de BeniambucrfPernainb urano: e *»'ín< prtih'r[iJB6u dÍ7*rBt-a.
^ t n o * .tttttcpor vla de disiiícrkêj dnile que rortefniiiojf a encj-eireT esto
o derivado BruiilianeJ pn?< » íridijr-o^s do pelz,
* uHoiílodlb‘on^D Erftzllleftsc, part o» ttfringotto* e *mii díscfm tentn alj
"ireirtai 0(, | c aclufle* puiiuidort» do paiz.'
* -

Fonte: (Correio Braziliense, 1822, p. 165)

No jornal, os sufixos -ense e -ano são os que significam aqueles que são naturais
do Brasil: os Brazilienses e os Brazilianos (indígenas), assim como os Pernambucanos,
os Bahienses etc. Nesse sentido, as denominações funcionam como uma forma de definir
uma nação em meio aos processos de independência, de modo que possibilita a leitura de
uma “denúncia” do editor ao considerar que o Brasil está na condição de propriedade dos
Brasileiros, ou seja, dos “estrangeiros e seus descendentes ali nascidos ou estabelecidos” .
Há uma problematização de base em certa tradição gramatical para sustentar que
a “Brazileiro” são atribuídos sentidos de “Portuguez Europeo ou o estrangeiro, que la vai
negociar ou estabelecer-se”, ressaltando-se, pela língua portuguesa, o sufixo “-eiro”
enquanto determinado por “occupação” . Poderia esta ocupação ser daquele que “negocia
em brazia ou generos do Brasil”? Ou seria daquelas ocupações das classes trabalhadoras
que deveriam ser subordinadas às classes superiores no Brasil?
A denominação “Brazileiro” é significada por oposição a Braziliense, sendo este
um cidadão nascido no Brasil, quando o outro está em movimento, disperso, vai negociar
ou vai se estabelecer no país. É interessante a designação “Europeu” em “Portuguez
Europeo”, pois abre para a questão: e o príncipe regente Dom Pedro I do Brasil, de abril

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de 1821 a setembro de 1822, como seria denominado, considerando que nasceu


“Portuguez Europeo” e estabeleceu-se no Brasil?
A tensão entre fixidez e mobilidade é observada pelo historiador Fernando Novais
(1997, p. 22) ao afirmar que tanto a “necessária diversidade” quanto a “mobilidade,
dispersão, instabilidade, enfim, são características da população nas colônias” .

E do convívio e das inter-relações desse caos foi emergindo, no cotidiano, essa


categoria de colonos que, depois, foi se descobrindo como “brasileiros”. “Brasileiros”,
como se sabe, no começo e durante muito tempo designava apenas os comerciantes
de pau-brasil. A percepção de tal metamorfose, ou melhor, essa tomada de consciência
-, isto é, os colonos descobrindo-se como “paulistas”, “pernambucanos”, “mineiros”
etc., para afinal identificarem-se como “brasileiros” - constitui, evidentemente, o que
há de mais importante na história da Colônia, porque situa-se no cerne da constituição
de nossa identidade. (NOVAIS, 1997, p. 23, grifos do autor).

Nos processos de independência do Brasil, há diferentes movimentos sociais


constituídos por essas mobilidades, dispersões, instabilidades próprias das complexas
relações entre tantas vidas intensamente diferentes. Os jogos das denominações são
efeitos do político, da divisão de sentidos (poder, forças) em meio a tentativas de
administração da impossibilidade de significar os diferentes no mesmo reino. Na
perspectiva de Novais, é a partir dos processos de identificação enquanto parte de partes
do Brasil (paulistas, pernambucanos, mineiros etc.) que emerge a possibilidade da
denominação “brasileiros”, determinada por sentidos outros desde já relacionados à
mobilidade (comércio, migrantes).
Há de se salientar que pela primeira Constituição do Império do Brasil em 1824 é
instituída a denominação “Cidadãos Brasileiros”, enquanto aqueles que fazem parte de
uma “Nação livre e independente, que não admite com qualquer outra [nação] laço algum
de união, ou federação, que se oponha à sua Independencia”, conforme recorte 6 do texto
a seguir.

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(R 6). Constituição do Império do Brasil

A primeira constituição produz um efeito de unidade das partes do Brasil, as


províncias, e institui também a “Instrucção primária, e gratuita a todos os Cidadãos
[Brazileiros]”, introduzindo a possibilidade de formação de professores no método de
Lancaster, posteriormente instituído, pela Lei de 15 de outubro de 1827, para o ensino da
leitura e da escrita, com destaque para os castigos. Os textos de preferência para leitura
são o da Constituição do Império e a História do Brasil, ressaltando que o ensino se dará
na “Grammatica da língua nacional” e inclui a classe trabalhadora na instrução elementar,
denominada classe inferior pelo C orreio Braziliense.
Naquele momento, de ruptura com o processo sócio-histórico e político de
colonização por Portugal, entra em cena uma divisão social (do trabalho, da instrução) da
nação entre os leitores, letrados em língua portuguesa e os não leitores, a serem letrados
naquela língua, visto que não há estudos de referência legitimados sobre as diferenças
linguísticas entre Portugal e Brasil e o lugar dos povos indígenas (brasilianos) é quase
sempre mencionado para ser silenciado. Por fim, o que se sobressai é a língua do Reinado,
da Língua do Rei, do Príncipe, do Imperador, ou seja, a língua portuguesa. Desse modo,
o gesto de nomear língua nacional é uma forma de não nomear a língua oficial do Brasil
e no país produzir um “efeito de unidade língua-estado-nação” independente (cf.
ORLANDI, 2007).

18 D ocu m en to original digitalizado. D isp o n ív e l em:


https://bd.cam ara.leg.br/bd/bitstream /handle/bdcam ara/1737/constituicao 1824 texto original.pdf?seaue
n c e = 6 & isA llo w e d = y . A ce sso em: 2 6 ju l. 20 2 2 .

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Considerações Finais
Os processos de independência do Brasil, nas primeiras décadas do século XIX,
são determinados pelo complexo material das diferentes condições da vida das gentes do
Brasil e suas históricas relações desiguais, de força, que se fazem representar enquanto
relações de sentidos, bem como por silenciamentos quando há tentativas de se interditar
o nome de língua brasileira, base do ensino da leitura e da escrita da nação. Neste estudo,
produzimos gestos de leitura sobre a maneira como o systema/método de Lancaster é
divulgado por um instrumento linguístico-midiático denominado “Correio Braziliense”,
em que são divulgadas as possibilidades de se “generalizar uma boa educação elementar”
que serviria especialmente para disciplinar, desde a infância, a classe trabalhadora (os
brasileiros), meninos e meninas, para se subordinarem e obedecerem àqueles membros
da “sociedade” (os brasilienzes).
Além do pouco investimento de tempo e de dinheiro no systema de ensino mútuo,
são salientadas as suas vantagens em alcançar a subordinação e obediência, considerando
seu método de instrução de/em classes, que introduzem ao mesmo tempo o aprendizado
das letras atrelada a uma subordinação. Com a legitimação do método de instrução pela
lei de 1827, destacamos dois fatos: a denominação língua nacional e o objeto da leitura
ser preferencialmente a Constituição do Império e a História do Brasil, o que produz um
efeito de unidade pela concentração do próprio Imperador (português europeu/brasileiro)
enquanto simulação de poder soberano ao mesmo tempo que se produz um efeito de tábua
rasa do passado da nação brasileira, do cidadão brasileiro em formação e sua história.

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SCHERER, Amanda. Disciplinarização e manualização. Niterói: UFF, 2020. 1 vídeo


(7:59 min). Postado pelo canal EnciDIS UFF, Enciclopédia Virtual de Análise do
Discurso. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SLLEfmy_ZqM. Acesso
em: 08 set. 2023.

Revista Porto das Letras, Vol. 9, N° 2. 2023


Instrumentos Linguísticos
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O ESTUDO DO LÉ X IC O NA GRAMMATICA EXPO SITIVA , DE EDUARDO


CA RLO S PE R E IR A

TH E STUDY O F TH E LEX IC O N IN GRAMMATICA EXPOSITIVA , BY


EDUARDO CARLOS PE R E IR A

Emanuela Rodrigues de Oliveira1


Universidade Federal de Campina Grande

Herbertt Neves12
Universidade Federal de Campina Grande
Universidade Federal de Pernambuco

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar como o estudo do léxico foi descrito na
Grammatica expositiva: curso superior (1907), de Eduardo Carlos Pereira, a partir de fenômenos
lexicais referentes ao som, à formação, ao sentido e à organização das palavras. Para isso, tecemos
comentários sobre a gramatização (AUROUX, 2014), mais especificamente sobre a gramatização
de língua portuguesa no Brasil, bem como sobre o estudo do léxico (ANTUNES, 2012;
VILLALVA; SILVESTRE, 2014) em gramáticas. Nesse intuito, analisamos como os fenômenos
lexicais estiveram presentes na Grammatica expositiva, verificando os impactos que a atmosfera
intelectual da época teve na descrição do conhecimento lexical, expondo como tais fenômenos
foram descritos. Como resultados, podemos inferir que a gramática em questão seguiu o padrão
da gramática advinda do século XIX, sem maiores inovações para o momento de sua primeira
edição, embora tenha sido um compêndio utilizado em larga escala por colégios à época e bastante
conhecido até os dias atuais.
Palavras-chave: Gramatização; gramaticografia brasileira; descrição lexical.

Abstract: This article aims to analyze how the study of the lexicon was described in Grammatica
expositiva: curso superior (1907), by Eduardo Carlos Pereira, based on lexical phenomena related
to the sound, formation, meaning and organization of words. For this, we make comments on
grammatization (AUROUX, 2014), more specifically on the grammatization of the Portuguese
language in Brazil, as well as on the study of the lexicon (ANTUNES, 2012; VILLALVA;
SILVESTRE, 2014) in grammars. To this end, we analyze how lexical phenomena were present
in Grammatica expositiva, verifying the impacts that the intellectual atmosphere of the time had
on the description of lexical knowledge, and exposing how such phenomena were described. As
a result, we can infer that the grammar in question followed the pattern of grammar from the 19th
century, without major innovations for the time of its first edition, although it was a compendium
used on a large scale by colleges at the time and well known until the present day current.
Key-words: Grammatization; brazilian grammar; lexical description.

1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Campina


Grande (PPGLE/UFCG). E-mail: emanuelarodrigues11@gmail.com.
2 Doutor em Letras (Linguística) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); professor de língua
portuguesa e linguística da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE). E-mail: herbertt.neves@ufpe.br

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Subm etido em 16 de ju n h o de 2023.


A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introdução
A elaboração de gramáticas ao longo da história, segundo Auroux (2014), criou
uma tecnologia intelectual cuja força e importância transcendem o próprio campo de
estudos da linguagem. Conforme o autor, a gramatização pode ser entendida como um
processo de transferência cultural entre povos que consiste na descrição e
instrumentalização de uma língua com base na gramática e no dicionário, duas
tecnologias que sustentam o saber metalinguístico. Mais do que um compêndio que
instrumentaliza uma língua, a gramática se insere no cenário linguístico de uma nação
contando a história de seus falantes.
Nesse contexto, a produção dos instrumentos linguísticos, em uma dada
conjuntura social, histórica e política, conduz, como mostra, por exemplo, a
Historiografia da Linguística (HL), nos termos de Swiggers (2012), à gramatização,
entendida por Auroux (2014) como um modo de se conceber as práticas linguísticas e a
história de um saber sobre a língua. Ademais, segundo Aquino (2016), a gramatização é
um processo de instrumentalização das línguas que altera os espaços de comunicação,
permitindo uma maior estabilidade linguística. Isso ocorre, ainda segundo o autor, porque
seus produtos - a gramática, o dicionário e outras publicações sobre a língua - “ampliam
e alteram a capacidade linguística dos falantes, construindo normas e referências, quer
dizer, uma imagem de língua, de unidade linguística” (AQUINO, 2016, p. 39), o que
apresenta implicações para a descrição do léxico de uma dada língua.
Em termos de descrição linguística, as gramáticas, no geral, pretendem descrever
a língua em sua completude, e isso envolve múltiplos aspectos - gramaticais e lexicais,
por exemplo - além do momento em que ela foi publicada, e por qual teoria o autor
escolhe seguir. Como a descrição linguística presente nas gramáticas envolve aspectos
gramaticais e lexicais, é importante, de início, destacar a diferença entre léxico e
gramática.
Sobre essa distinção, Perini (2016) afirma que, enquanto o significado lexical
evoca esquemas mentais específicos, permitidos, de acordo com Neves (2020), pela
interação verbal, o significado gramatical é possibilitado pelas construções e associações
que se desenvolvem no interior do texto, oportunizando diferentes possibilidades de

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significação em relação ao significado lexical. Como nas próprias unidades do léxico


atuam também fenômenos da gramática, e vice-versa, o sistema lexical e o sistema
gramatical têm interseções indissociáveis no sentido de que um fornece para o outro
algumas condições para a sua realização.
A partir disso, as distinções entre léxico e gramática não podem ser estudadas
como dicotômicas, como se os dois sistemas se desenvolvessem separadamente, entrando
em contato apenas em alguns momentos, mas, sim, devem ser vistas a partir de um
continuum. Retomamos, dessa forma, a ideia de que um compêndio gramatical descreve
o sistema gramatical e o sistema lexical de uma língua, e o faz, portanto, de diversas
maneiras, a depender da influência teórica na qual está submerso.
A questão que nos é posta, no entanto, é que, diferentemente da sintaxe, por
exemplo, o estudo do léxico não teve/tem um espaço definido, mais estável nas
gramáticas. Se analisarmos a gramaticografia de língua portuguesa produzida no Brasil
do século XIX até a publicação de Ribeiro (1881), não há uma sistematização explícita
quanto ao espaço dedicado ao estudo do léxico nas gramáticas. É somente a partir do final
do século, mais precisamente com a publicação da Grammatica portugueza, de Júlio
Ribeiro, que o estudo do léxico tem uma breve estabilidade de posição. Isso porque
Ribeiro (1881) divide a sua gramática em duas partes - lexeologia e sintaxe - , iniciando
um período da gramaticografia brasileira em que ter lexeologia como uma das partes da
gramática foi comum. Sobre isso, Cavaliere (2000) afirma que

A lexeologia é, certamente, no projeto de descrição gramatical proposto por Ribeiro,


o núcleo de onde reverberam todos os campos de investigação linguística. Isso porque
é efetivamente a palavra que sintetiza o foco das atenções, seja como elemento
monolítico isolado, seja enquanto conjunto de segmentos morfológicos, seja como
item da organização frasal. A sintaxe, destarte, embora constitua a segunda parte da
descrição gramatical, na prática não vai além de um grande tentáculo da lexeologia
(CAVALIERE, 2000, p. 53-54).

A partir desse pensamento de que a palavra é o núcleo da investigação linguística,


havia, nesses compêndios, uma concentração do estudo do léxico em uma só parte da
gramática. Isso perdurou até o início do século XX, e, logo após, a lexeologia foi
desmembrada em outras partes, como fonética, fonologia e morfologia. Instaurada a
fluidez de posição do estudo do léxico, desaparece, de certo modo, junto com a lexeologia
como parte dos compêndios gramaticais, o interesse no estudo do sistema lexical na área
da gramaticografia.

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Devido ao tratamento essencialmente formal dado aos estudos do léxico na


pesquisa linguística (NEVES, 2020), focando muito na estrutura mórfica da palavra ou
em seus significados imanentes, identificamos a necessidade de observação de uma
relação dessa visão com a elaboração de instrumentos gramaticais, avaliando como o
estudo do léxico esteve presente em uma das primeiras e mais importantes gramáticas do
século XX. Para isso, nosso objetivo, neste artigo, é analisar como o estudo do léxico foi
descrito na Grammatica expositiva: curso superior (1907), de Eduardo Carlos Pereira, a
partir de fenômenos lexicais referentes ao som, à formação, ao sentido e à organização
das palavras - nossas categorias de análise. Desse modo, a nossa análise se centra no
âmbito descritivo, mas também interpretativo, em como as orientações teóricas gerais da
produção gramatical do século XX repercutem no tratamento dado ao sistema lexical da
língua pela Grammatica expositiva , assim como quais orientações estão presentes na
abordagem do léxico em tal gramática.
A escolha dessa gramática se deu pelo fato de ela ser a primeira gramática de
referência do século XX e pelo prestígio que ela tem desde a sua publicação, até os dias
atuais. Escolhida a gramática, selecionamos dela todos os trechos em que havia descrição
de fenômenos relativos ao sistema lexical do português, conforme os listados em Antunes
(2012) e Neves (2020). Tais trechos aparecem aqui transcritos em citações que mantêm a
mesma grafia registrada na obra original. A identificação dos fenômenos permitiu que
organizássemos nossa análise nos blocos relativos ao som, à forma, ao sentido e à
organização das palavras. Em termos de classificação da pesquisa, ela está imersa no
paradigma interpretativo (MOREIRA; CALEFFE, 2008), é uma pesquisa documental
(SEVERINO, 2007), com abordagem qualitativa (LAVILLE; DIONNE, 1999).
Organizamos, portanto, este trabalho, além desta introdução e das considerações
finais, em mais 3 tópicos. No primeiro, destinado à fundamentação teórica, refletimos
sobre o processo de gramatização e sobre as gramáticas como instrumentos de descrição
linguística, para, por fim, apresentarmos brevemente a trajetória da gramaticografia de
língua portuguesa. No segundo tópico, também de natureza teórica, centramo-nos nas
reflexões sobre o estudo do léxico em gramáticas brasileiras.
No tópico destinado aos procedimentos analíticos, expomos primeiramente como
a obra foi organizada, para depois analisarmos cada fenômeno lexical encontrado quanto
às categorias de análise estabelecidas, finalizando com uma síntese analítica
comprimindo o que foi encontrado nas gramáticas e tecendo comentários sobre a
influência do clima de opinião sobre os dados.

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1. G ram atização e gram áticas como instrum ento de descrição linguística na língua
portuguesa

A gramática tal como concebemos hoje surge na Alexandria, no início do século


I a.C., fruto do movimento intelectual promovido juntamente com a conhecida Biblioteca
de Alexandria. Dionísio Trácio é autor da possível gramática mais antiga de que se tem
conhecimento, a Téchne Grammatiké, a qual reúne o conhecimento linguístico disponível
à época em forma de um manual, apresentando de forma sistemática parte das regras da
língua grega.
A partir desse longo percurso até o desenvolvimento do que podemos entender
como uma gramática de uma língua, Auroux (2014) compreende globalmente o
desenvolvimento das ideias linguísticas europeias em um período que vai do século V até
o fim do século XIX. Assim, dentro desses 13 séculos, podemos vislumbrar o que o autor
denomina de gramatização massiva das línguas do mundo a partir da tradição greco-latina
(AUROUX, 2014). Para o autor, essa gramatização constitui - depois do advento da
escrita no terceiro milênio antes da nossa era - o “processo que conduz a descrever e a
instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de
nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” (AUROUX, 2014, p. 65).
Durante o desenvolvimento das ciências modernas, o que Auroux (2014) chama
de segunda revolução técnico-linguística foi fundamental tanto para a origem quanto para
as consequências sociais dessas ciências. Para o autor, a gramática torna-se
“simultaneamente uma técnica pedagógica de aprendizagem das línguas e um meio de
descrevê-las” (AUROUX, 2014, p. 36). É somente no século XVI que uma
marginalização epistemológica se inicia, fazendo da etimologia um dos raros domínios
do saber linguístico antigo que não serão integrados às ciências modernas da linguagem.
Sabe-se que, pelo menos desde a segunda metade do século XII, já se escrevia em
língua românica, a língua que deu origem ao português. Em Portugal, o latim ainda era
ensinado por meio das obras de Donato, Prisciano, entre outros gramáticos. Apenas na
segunda metade do século XIII, na qual o trovadorismo galego-português encontrava seu
auge e se iniciava a produção literária portuguesa em prosa, a língua românica se tornaria
a língua da administração do reino de Portugal. Dois séculos e meio depois, as primeiras
gramáticas em “língua portuguesa” eram escritas.

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O propósito dos gramáticos nesse momento inicial era de dar à “nova língua” um
status de privilégio. A tentativa de criar uma identidade lusitana agregada a uma
gramática consistente era também para levar a língua supostamente de prestígio aos novos
territórios conquistados. No entanto, como afirma Leite (2007), havia, aliada a esse
desejo, a preocupação de uma constituição de uma norma, embora a diversidade regional
não fosse tão acentuada como a de outras línguas, como o espanhol e o italiano.
Com isso, compreendemos que o processo de gramatização legitima uma língua
a partir do momento em que o instrumento linguístico em questão - as gramáticas -
repercute no processo de constituição das nações. Não obstante, ocorre uma profunda
transformação das relações sociais (nascimento do capital mercantil, urbanização,
mobilidade social, extensão das relações sociais, entre outros) inerentes ao processo de
formação das nações europeias (AUROUX, 2014), construindo, inclusive, tensões a partir
do momento em que são geradas disputas entre elas.
Para Cavaliere (2012), o percurso historiográfico da gramaticografia de língua
portuguesa no Brasil inicia com a publicação do Epítome de gramática portuguesa
(1806), do carioca Antônio de Morais Silva (1755-1824). Antes disso, a produção
linguística atestada em solo brasileiro era escassa, e, ao longo dos três primeiros séculos
da colonização, podemos citar apenas alguns poucos textos linguísticos escritos em terra
brasileira.
O período conhecido como científico, no século XIX, inicia-se com uma geração
de professores que passaram a trabalhar teses histórico-comparativistas. Esse período
conta com uma fase inicial de gramáticos que escreveram seus textos inspirados na escola
comparativista alemã e nos volumes de língua vernácula francesa e inglesa. Cavaliere
(2012) aponta como um dos nomes mais destacados do período Eduardo Carlos Pereira
(1855-1923), autor da gramática analisada neste artigo.
Segundo Orlandi (2000), os estudos empreendidos sobre a linguagem no Brasil
passaram a caracterizar-se como uma questão brasileira apenas a partir do século XIX,
quando o português do Brasil passou a ser considerado, diante das variações existentes
do português europeu. Foi somente neste momento que começaram a ser produzidas as
gramáticas brasileiras da língua portuguesa, iniciando o que se chama de gramatização
brasileira do português. Entre o final do século XIX e o início do século XX, momento
em que algumas instituições escolares já estavam consolidadas no país, surgiram também
as primeiras gramáticas de professores de colégios situados no Rio de Janeiro e em São
Paulo.

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A partir de 1870, a disciplina escolar Português, ministrada no curso secundário


do Colégio Pedro II, importante instituição de ensino à época, passou a lidar com três
eixos de ensino: gramática, leitura e escrita (RAZZINI, 2010; SOARES, 2004), tendo a
gramática um lugar de primazia em relação à leitura e escrita de textos. Segundo Bunzen
e Medeiros (2016), os planos de ensino de Português do Colégio Pedro II, importante
instituição de ensino à época, entre o final do século XIX e a terceira década do XX,
previam o estudo da gramática expositiva e da gramática histórica, tendo o ensino de
português voltado ao aprendizado da gramática normativa da língua portuguesa. Sendo
mais específicos, podemos dizer que esse final de século XIX se restringe à década de
1890, já que, em 1878, há registros de trabalho com gramática filosófica nesses planos de
ensino (VECHIA; LORENZ, 1998).
O início do século XX encontra a gramaticografia brasileira em um processo de
mudança que havia começado nas últimas décadas do século XIX, com o abandono das
teses racionalistas herdadas da gramática filosófica, para que uma perspectiva historicista
desse lugar à gramática científica. É também nesse início de século que a dialética da
gramática como arte e como ciência já figurava nos textos linguísticos brasileiros,
devendo-se à tarefa dual que a reforma trazida pelo movimento histórico-comparativo
impôs de se pesquisar e de ensinar a língua.
Ao empreendermos uma análise detalhada sobre o estudo do léxico na
Grammatica Expositiva, de Eduardo Carlos Pereira, oferecemos elementos para a
compreensão de quais aspectos do sistema lexical foram contemplados em tal gramática
do início do século XX.

2. O estudo do léxico em gram áticas brasileiras


A definição de léxico é comumente associada ao vocabulário de uma língua, isto
é, é tido como o amplo repertório de palavras existentes em uma língua; o conjunto de
itens à disposição para atender às necessidades de comunicação dos falantes. Por
conseguinte, não é incomum também encontrarmos quem defina o léxico como o
dicionário e/ou o glossário de uma língua, a partir da percepção anterior. O fato é que a
multiplicidade de designações pode ser explicada pela longa tradição de polissemia
inerente ao termo, além de estarmos tratando de um conceito complexo que remete a uma
realidade analisável sob múltiplos pontos de vista, o que pode levar, muitas vezes, ao
equívoco.

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Em relação ao estudo do léxico inserido em gramáticas/compêndios gramaticais,


Antunes (2012) aponta que, junto à gramática (morfossintaxe) e à fonologia, o léxico se
constitui como um grande componente da língua. Em conformidade com essa ideia,
Villalva e Silvestre (2014, p. 28) apontam que, “enquanto parte da gramática, o léxico
pode ser visto como um lugar onde reside toda a informação que não é derivável, todas
as propriedades idiossincráticas das línguas” . Ainda sobre o que o estudo do léxico
representa nas gramáticas, Villalva e Silvestre (2014, p. 28) postulam que

É nesse papel que o léxico se distingue da sintaxe, da semântica e da fonologia,


módulos que se encarregam da mecânica e da interpretação dos enunciados frásicos,
formados a partir da matéria-prima lexical, mas também se distingue da morfologia,
a quem cabe a estruturação das palavras, igualmente formadas a partir de matéria-
prima lexical. Mais do que um mero repositório de unidades lexicais, o léxico lembra
um entreposto de bens essenciais, nesse caso, as palavras a quem também compete
garantir a boa comunicação entre as restantes partes da gramática (a morfologia, a
sintaxe, a semântica, a fonologia) (VILLALVA; SILVESTRE, 2014, p. 28).

A partir dessa separação proposta pelos autores, compreendemos que o léxico tem
valor dúbio: ao mesmo tempo em que está presente em toda a gramática, se distingue das
partes que a compõem. Além disso, a descrição do léxico empreendida por gramáticas
deve poder refletir propriedades de cada manifestação linguística particular, embora
nenhuma manifestação particular possa determinar propriedades gerais dessa
representação do léxico.
Podemos delimitar um pouco mais a definição de léxico, indo além da percepção
de uma lista de palavras à disposição dos falantes e um repertório de unidades. O léxico
é, conforme observa Antunes (2007, p. 42), “um depositário dos recortes com que cada
comunidade vê o mundo, as coisas que a cercam, o sentido de tudo”, transpassado pela
história de uma língua, expressando a função da língua como elemento que confere aos
seus falantes uma identidade.
Na interação verbal, mais precisamente nos textos que elaboramos, o léxico
admite diferentes funções. É como unidades de sentido que as palavras constituem as
peças com que se vai tecendo a rede de significados do texto, e são elas que vão
materializando, mediando as intenções do falante, funcionando como elos de subpartes
do texto (ANTUNES, 2007). Logo, a associação entre léxico e gramática permite a
atividade significativa de nossas atuações verbais, uma vez que utilizamos o léxico de
uma língua em textos, combinações, cadeias e sequências, a partir de regras reveladas
pela gramática.

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Pelo fato de a língua poder ser estudada sob diferentes perspectivas (descritiva,
social, cognitiva, etc.), geralmente, o estudo descritivo da linguagem, ou seja, o estudo da
língua a partir da descrição linguística, é dividido em vários níveis, como o nível fonético-
fonológico, o nível morfológico e o nível sintático, que constituem, estes últimos, a
gramática de uma língua. O estudo dos significados das palavras e das frases (ou dos
enunciados) é objeto da semântica e da pragmática, dependendo do foco dado no estudo
do significado puramente linguístico ou da língua inserida em seu uso concreto
(CANÇADO, 2012). Todos esses níveis ficam relacionados, em geral, ao sistema
gramatical, sem que se dê destaque às suas relações com o sistema lexical.
Desse modo, é importante compreender como o estudo do léxico está presente nas
gramáticas, enquanto instrumento linguístico, e como tem sido feita a sua descrição,
associando-o aos níveis de análise já presentes na descrição gramatical. Defendemos,
portanto, o léxico como um macronível de análise linguística, ao lado do macronível
gramatical.

3. A Grammatica expositiva, de E d u ard o C arlos P ereira


Neste tópico, analisaremos como o estudo do léxico foi descrito na Grammatica
expositiva, de Eduardo Carlos Pereira. O percurso que faremos para tal análise se dará da
seguinte maneira: primeiramente, discorreremos sobre a gramática, o contexto em que ela
foi produzida e sobre o seu autor; nos subtópicos seguintes, vamos expor e analisar os
fenômenos lexicais presentes na gramática, isto é, faremos uma visão geral da obra quanto
ao nosso objeto de estudo, tecendo comentários analíticos quanto à presença - ou ausência
- de cada fenômeno. Esses comentários são realizados a partir de blocos que focalizam
os aspectos do som, da formação, do sentido e da organização das palavras.

3.1. O contexto de produção e o a u to r da Grammatica expositiva


Entre as gramáticas lançadas de 1900 a 1930, a Grammatica expositiva - curso
superior (1907), de Eduardo Carlos Pereira, foi a que mais esteve presente nos bancos
escolares. Publicada em 1907 pela editora Weiszflog Irmãos e Companhia e com 114
edições até o ano de 1958, a Gramática expositiva tinha como propósito atender ao
programa oficial para os três primeiros anos do ginásio. A própria experiência pedagógica
de Eduardo Carlos Pereira, como afirma o autor no Prólogo da 1a edição de sua gramática,
motivou a produção da referida obra: “A boa regência de nossa cadeira de português no

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Ginásio Oficial da cidade de São Paulo nos levou ao presente trabalho” (PEREIRA,
Prólogo da 1a edição, 1907, p. I).
Eduardo Carlos Pereira (1855-1923) nasceu em Caldas, Minas Gerais, e por lá
vivenciou a sua infância. Em São Paulo, cursou o Colégio Ipiranga, de Araraquara,
seguindo os estudos superiores na Academia de Direito de São Paulo. Durante sua carreira
no magistério, lecionou Latim e Português no Colégio Culto à Ciência, em Campinas, na
Escola Americana (Mackenzie) e no Ginásio Oficial de São Paulo, ambos localizados na
capital paulista (MOLINA, 2004; FACCINA; CASAGRANDE, 2006). Eduardo, que
também foi ministro evangélico, presbiteriano e um dos mais importantes líderes do
movimento protestante brasileiro do final do século XIX, fez parte de uma geração de
autores de livros escolares que também exerciam a docência.
No final do século XIX, momento em que começa a surgir a concepção de
gramática do século XX, havia uma confluência de dois modelos em vigência, em que o
modelo mais antigo, denominado racionalista - ou de gramática racionalista - passava a
ser substituído, paulatinamente, por um modelo cientificista. A chegada dos estudos
comparativistas ao Brasil, sobretudo com a chegada da Linguística Naturalista, a
revolução científica da Química, da Biologia e da História Natural e da concepção de
língua como um ser, foi penetrando a gramática brasileira de língua portuguesa a ponto
de transformar não só a figura da gramática como a figura do próprio gramático.
Um traço característico da gramática brasileira no início do século XX é um
texto descritivo-prescritivo destinado tanto a um leitor consulente quanto a um leitor
pesquisador (CAVALIERE, 2012). Essa é uma perspectiva necessária para lermos
adequadamente um texto produzido nesse momento. Para isso, precisamos de levar em
consideração que o propósito da gramática era o de prescrever, mas também era
descrever: com o propósito de atender ao leitor consulente, a gramática teria que ter
necessariamente caráter prescritivo, uma vez que, no imaginário popular leigo, uma
gramática se presta a estabelecer normas prescritivas; já assumindo o propósito de
descrever, a gramática buscava atender aos anseios do leitor pesquisador.
O professor e gramático Eduardo Carlos Pereira, com a sua Gramática expositiva
(1907), desponta como um importante nome do século XX que conseguiu congregar tanto
o antigo modelo racionalista como o novo modelo cientificista, amplamente influenciado
pelas contribuições advindas de Julio Ribeiro e sua Grammaticaportugueza (1881). Logo
nas primeiras páginas, Pereira (1907) expressa o fato de os dois modelos coexistirem nas
gramáticas quando afirma buscar a resultante entre eles: “o da corrente moderna, que dá

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emphase ao elemento histórico da língua, e da corrente tradicional, que se preocupa com


o elemento lógico na expressão do pensamento” (PEREIRA, Prólogo da 1a edição, 1907,

p. I).
Esse é o início da gramaticografia brasileira no século XX, em que ainda se
buscava um rumo mais adequado, tendo em vista a força do novo modelo, baseado na
pesquisa histórica e na investigação do fato linguístico com uma metodologia própria, e
a presença do antigo modelo, que se pautava no estudo da língua como arquitetura da
razão humana.
A natureza do corpus utilizado por Pereira (1907) é restrita à língua literária
escrita, como era comum à época. Havia uma exigência de que os fatos linguísticos
descritos tivessem amparo na literatura de língua vernácula, mais especificamente
retirados de obras literárias do século XVI (Gil Vicente e Camões, por exemplo) até o
século XIX (Alexandre Herculano, Antônio Feliciano de Castilho são outros exemplos).
Como já era de se esperar, poucos autores brasileiros figuravam na gramática de Pereira
(1907), sendo os poucos nomes Gonçalves Dias, Odorico Mendes e João Francisco
Lisboa.
No entanto, o próprio autor sinaliza, no Prólogo de sua gramática, uma
preocupação com a seleção de um corpus mais atualizado: “Dada a evolução da língua,
não se póde provar, em boa lógica, a vernaculidade actual de uma expressão qualquer
com a autoridade de um clássico antigo” (PEREIRA, 1907, p. VIII). Ademais, por
considerar a língua literária como a expressão mais correta dos fatos linguísticos, toma-
se por autorizada a construção que tenha conquistado presença nas páginas das obras
clássicas.

3.2. O rganização da gram ática


A Grammatica expositiva (1907), de Eduardo Carlos Pereira, é dividida em duas
partes - Lexeologia e Syntaxe. A explicação para essa divisão advém da ideia do autor de
que as palavras são o objeto da gramática, as quais podem ser estudadas isoladas ou
combinadas. Desse modo, para ele, a Lexeologia é “o estudo das palavras isoladas,
consideradas em si mesmas” (PEREIRA, 1907, p. 4), enquanto a Syntaxe é “o estudo das
palavras combinadas para a expressão de nosso pensamento” (PEREIRA, 1907, p. 4). Por
essa divisão de gramática e definição de cada parte que a compõe, há uma clara retomada
do que acreditava Julio Ribeiro ser importante tratar em um compêndio gramatical.

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Ademais, por considerarmos a gramática de Pereira (1907) como a que inicia o século
XX, é compreensível que ela tenha como norte as gramáticas do século anterior.
Por considerar a palavra como o objeto de estudo de uma gramática, o autor a
define como “a combinação de sons oraes indicando uma cousa ‘qualquer [sic], ou
exprimindo uma ideia” (PEREIRA, 1907, p. 1), e faz a distinção entre forma material e
ideia, indicando que a form a é a combinação de sons, ou das letras que os representam,
enquanto a ideia é a significação ou o sentido da palavra. Com isso, podemos observar
que o autor concebe a palavra pelos critérios morfológico e semântico, se pensarmos na
tríade tradicional de critérios classificatórios, deixando o sintático para trás.
Pereira (1907) segue sua explanação sobre palavra ao dizer que a chamamos de
vocábulo ou dicção quando nos referimos à sua forma e termo quando nos referimos à
sua ideia. Mais adiante, compreende como vocabulário ou léxico de uma língua a lista de
seus vocábulos ou dicções, sendo esta lista denominada dicionário ou lexicon, “quando
cada palavra ou dicção, disposta em ordem alfabética, vem acompanhada da explicação
de seu sentido” (PEREIRA, 1907, p. 2). A partir dessa divisão, observamos a ideia antiga
de léxico exclusivamente como uma lista de palavras de uma língua, que hoje já
compreendemos de outra maneira.
A primeira parte da gramática, denominada Lexeologia, é subdivida em
Phonologia e Morphologia, sendo a primeira compreendida como o “estudo dos
elementos materiaes da palavra, isto é, dos sons elementares” (PEREIRA, 1907, p. 4). A
Phonologia, por sua vez, é subdividida por Pereira (1907) em Phonetica, Prosodia e
Orthografia. Já a Morphologia, segundo o autor, “é a parte da Lexeologia que estuda a
palavra em seu elemento immaterial, isto é, em sua idéa ou significação” (PEREIRA,
1907, p. 47), e é subdividida em Taxeonomia e Etymologia.
Com a divisão de sua gramática dessa maneira, admitindo a palavra como objeto
principal de estudo e dissecando-a de maneira isolada e combinada, o autor reproduz o
ideário da época de divisão gramatical simples em Lexeologia e Syntaxe, também
reproduzida por Ribeiro (1881), que marcou o início do que foi considerada a gramática
científica. Ademais, tal divisão aponta mais do que uma adequação ao clima de opinião
da época, mas também um cuidado ao simplificar o estudo da língua, visto que muitas
das gramáticas tidas como referência eram também utilizadas em escolas, cujos usuários
não podiam contar com um texto complexo e denso.
Um quadro-síntese das partes da Lexeologia é apresentado pelo autor e
reproduzido a seguir:

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Figura 1. Quadro-síntese da Lexeologia em Pereira (1907)


P h o n e tic a 1 P lio n em as [ Y ozes .
| | C onsonâncias
i » I Q u an tid ad e
g | P ro so d ia J S y lla b a { T o n icid ad c
I ( M etaplasm os
| O rth o g ra p liia } S y stem as, n otações, re g ra s
C ateg o rias j flexiyas
g ram m aticaes ( inflexivas
T axeo n o m ia | F u n cção
L ex eo lo g ia
O u tras classes < F ô rm a
| S en tid o
M orphologia
p ró p ria }• Suffixos I( vn0I?*naes
D eriv ação | vnerb
.r h ííaes
p ss
im p ró p ria
E ty m o lo g ia
P re iix a çã o H y b rid o s
C om posição \ A g g lu tin açã o C om postos
| Ju x ta p o siç fto 1 g reg o s

Fonte: Pereira (1907, p. 364).

O quadro indicado na Figura 1 mostra a divisão da gramática para a parte da


Lexeologia, foco do nosso olhar analítico, visto que os fenômenos lexicais advêm dessa
parte da gramática de Pereira (1907). Ele aponta, primeiramente, para a compreensão do
que era considerado estudo do léxico de uma língua naquele momento da gramaticografia
brasileira. Assim, podemos inferir que, em termos de nomenclatura, o autor não destoa
tanto do que concebemos hodiernamente. No entanto, podemos observar que a ortografia,
por exemplo, está situada dentro do que Pereira (1907) compreende como “o estudo dos
sons elementares” (PEREIRA, 1907, p. 4), dentro da Phonologia, fato singular para a
época, mas no qual não vamos nos debruçar neste estudo.

3.3. Fenômenos lexicais na Grammatica expositiva


Nos próximos subtópicos, entenderemos como o estudo do léxico foi empreendido
na gramática de Pereira (1907), verificando e analisando como os fenômenos lexicais
quanto ao som, à formação, ao sentido e à organização das palavras foram descritos.
Quando pensamos sobre o estudo do léxico em uma gramática que compreende ser a
palavra o seu objeto de estudo, como é o caso da Grammatica expositiva, deduzimos que
tal objeto vai ser bem trabalhado ao longo do compêndio. No entanto, é preciso
explicarmos que nem tudo vai ser trazido à lume nas discussões analíticas sobre tal

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gramática, uma vez que o que nos interessa unicamente é a compreensão de como o
estudo específico dos conceitos relativos ao léxico foi contemplado nela.

3.3.1. Q uanto ao som das palavras


Dentro do que o autor admite como Phonologia, a prosódia, nosso primeiro
fenômeno lexical analisado, é definida como a “parte da Phonologia que tracta da correcta
pronuncia dos fonemas combinados para a formação dos vocábulos” (PEREIRA, 1907,
p. 21). Para o autor, existem três condições para a correta pronúncia de um vocábulo:

1.° O conhecimento exacto dos valores phoneticos das vogais e consoantes que entram
na formação do vocabulo; 2.° A enunciação ou prolação discriminada dos fonemas ou
grupo de fonemas, chamado syllabas, de que se compõe o vocabulo; 3.° O
conhecimento da syllaba predominante, chamada tonica (PEREIRA, 1907, p. 21-22).

A partir dessa lista de condições para que o falante de língua portuguesa no Brasil
saiba pronunciar “corretamente” os vocábulos que a compõem, vemos a preocupação do
autor em fazer parte de uma comunidade de professores e autores de gramáticas que
visavam ao “escrever e falar bem” como objetivo principal para o ensino de língua, além
da intenção de melhorar a conduta desse falante brasileiro em detrimento ao falante do
português europeu. Não à toa, eram muito comuns à época comparações de palavras
pronunciadas “incorretamente” frente ao português de Portugal, denominando-as
“brasileirismos” .
Pereira (1907), ainda, tece definições e exemplos acerca da syllaba, conceituando-
a como “um phonema ou grupo de fonemas pronunciados em uma só emissão de voz na
enunciação de vocabulo” (PEREIRA, 1907, p. 22). Após a conceituação, há uma nota do
autor que diz:

A quantidade das syllabas não tem em nossa lingua, bem como nas outras linguas
derivadas do latim, chamadas novo-latinas, a importancia que teve no periodo classico
do latim e do grego. Nesse periodo o acento tonico era subordinado à quantidade, a
qual era, na expressão de Guardia, a alma do aecento latino. Nas linguas novo-latinas
dá-se phonomeno inverso: a quantidade subordina-se à tonicidade, a tonica é o centro
de gravidade do vocabulo.
Todavia não desapareceu inteiramente a quantidade proso-dier em portuguer, e o
importante conhecer-so o valor quantitativo das syllabas para tuna boa pronuncin dos
vocabulos. Una das principaes difterenças entre i prosodia lusitana e a brasileira está
na quantidade syllabica.
No portuguez europeu é bem sensivel a quantidado das syllabas breves, que são
brevissima em relação ao portuguez no Brazil, exs.: p'ssoa, pltão, pu'rer, d'''gado,
sbrulo, pra. p'rigo. (PEREIRA, 1907, p. 22)

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Notas como essa são bem comuns ao longo da Grammatica de Pereira (1907) e
corroboram para o fato de que ela estava inserida num momento da gramatização
brasileira em que comentários sobre a evolução das línguas eram comuns, herdados da
gramática histórica. Além disso, a razão de o autor comparar a língua portuguesa com o
latim e o grego reside no fato de que tais línguas clássicas ainda eram ensinadas nas
escolas da época.
Em relação ao número de sílabas, o gramático vai considerar a mesma divisão que
hodiernamente conhecemos (monossílabos, dissílabos, trissílabos e polissílabos), sem
nenhuma informação extra. Já na subseção “quantidade”, Pereira (1907) apresenta:
“chama-se quantidade de syllabas o maior ou menor espaço de tempo gasto na prolação
de umas syllabas em relação a outras do vocabulo. Esta proporção é expressa por um
tempo na prolação da syllaba breve, e por dois tempos na prolação da syllaba longa”
(PEREIRA, 1907, p. 23). A partir dessa definição, o autor compreende que as sílabas
podem ser iniciais, medial ou finais, “confome occupa o principio, o meio ou o fim do
vocabulo” (PEREIRA, 1907, p. 23). Sobre tal divisão, acreditamos que essa discussão
empreendida por Pereira (1907) antecede a discussão sobre a tonicidade, preparando o
leitor para a compreensão dessa característica dos vocábulos.
Sobre o que o autor chama de quantidade prosodica, comenta que “a syllaba so
diz longo ou breve, conforme a sua vogal ou voz é longa ou breve. Como não ha syllaba
sem vogal, a quantidade da syllaba é a quantidade de sua vogal” (PEREIRA, 1907, p. 23).
Ele complementa:

São por natureza longas: 1.° As syllabas diphthongaes e triphthongaes, por exigirem
as duas ou tres vozes dobrado tempo para sua prolação: esperoidal, fluidez, quaesquer.
2.° As syllabas contractas, por encerrarem latentemente duas vozes - ás, áquelle. 3.°
As syllabas nasaes, por exigirem as vogaes nasaes maior esforço na prolação que as
puras - tentação, lançar. 4.° A syllaba seguida de duas consoantes, quando uma dellas
lhe pertença, por exigir a consoante prolongação do som vogal - alteza, tortura:
textual. 5.° As syllabas tonicas, por exigir a intensidade predominante da vogal
dobrado tempo na prolação - verdade, tortura, petala, avó (PEREIRA, 1907, p. 23­
24).

Acreditamos que essa riqueza de denominações para a explanação sobre a


quantidade de sílabas é um traço da época de ensino de língua pautado na forma, além de
uma influência do ensino da língua latina, afinal Eduardo Carlos Pereira, além da língua
portuguesa, também lecionava latim nas escolas. Por apresentar a noção de vogais longas

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e curtas, acreditamos que essa ideia posta por Pereira (1907) advenha da influência das
descrições do latim.
Enfim, sobre a tonicidade, o autor a conceitua como “o tom forte da voz na
pronunciação de uma syllaba do vocabulo. Esta syllaba em que a voz se eleva, e adquire
maior força ou intensidade do que a necessaria para a sua simples prolação, denomina-se
syllaba tonica, exs.: justiça, numero, numero” (PEREIRA, 1907, p. 24, grifos do autor).
A partir disso, Pereira (1907) elabora sua teorização sobre o acento tônico ou prosódico
afirmando constituir-se de uma entonação mais forte ou acentuação mais intensa da voz,
tornando saliente a sílaba sobre que recai, classificando as sílabas como tônicas e átonas,
assim como sobre palavras oxítonas ou agudas, paroxítonas ou graves e proparoxítonas,
esdrúxulas ou dactílicos. Tal exposição de fatos sobre a língua é bem próxima do que hoje
concebemos nas gramáticas tradicionais de referência.
Após tal explanação, o autor apresenta uma observação feita por Grivet, outro
grande gramático, como forma de complementar e legitimar sua explanação. Isso também
é algo muito comum em toda a sua gramática, e também considerarmos como um traço
da gramática histórica, que se remete a estudos anteriores da linguagem. Ademais, na
mesma nota em que menciona Grivet, Pereira (1907) elabora que

O tracto de pessoas cultas e o uso de um bom diccionario prosodico são os meios de


evitar constantes syllabadas na pronuncia das palavras da nossa lingua. [...] São
relativamente poucos os vocabulos proparoxytonos ou esdrúxulos e estes mesmos de
uso erudito, pois o povo repelle o exdruxulo (PEREIRA, 1907, p. 25).

A esse comentário, atribuímos um certo teor de superioridade em relação aos


usuários da língua que falam “incorretamente”, bem como o fato de que o “incorreto” é
repelido pelas pessoas ditas cultas. O preconceito à época empenhado aos
“brasileirismos” era bem incidente e se verifica em grande parte da Grammatica
expositiva. Não obstante, comentários dessa natureza podem ser considerados indícios do
que hoje denominamos como preconceito linguístico.

3.3.2. Q uanto à form ação das palavras


Na parte em que Pereira (1907) se propõe a falar sobre a Etymologia, há o
detalhamento do estudo sobre a derivação e composição. A derivação, segundo o autor,
“é o processo pelo qual de umas palavras se formam outras chamadas derivadas. Em
relação a estas chamam-se aquellas prim itivas” (PEREIRA, 1907, p. 157, grifos do

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autor). Para Pereira (1907), há dois tipos de derivação: a derivação própria e a derivação
imprópria.
O autor julga que a derivação própria é desenvolvida por meio de sufixos que,
aglutinados ao tema das palavras primitivas, modificam a significação, determinando-a.
Para Pereira (1907), os sufixos têm significação própria, pois trazem sentido novo à
palavra primitiva. Porém, esse valor significativo, essa vida própria só se revela em
conjunção com o tema; separado do tema, o sufixo não tem vida própria. Após essa
explanação, o autor faz uma nota que determina: “a terminação da palavra primitiva não
se chama suffixo, porém mera desinencia, como. p. ex., a ultima vogal de ferr + o, quere
+ -a” (PEREIRA, 1907, p. 157), adentrando no que hoje conhecemos como desinência e
aludindo à vogal temática, mesmo sem assim denominá-la. Por fim, explica que os sufixos
podem ser nominais ou verbais, formando substantivos, adjetivos e verbos,
respectivamente.
Já sobre a derivação imprópria, o autor é bem breve ao afirmar ser a mudança que
sofre uma palavra no sentido ou na categoria gramatical sem a intervenção de sufixos.
Desse modo, são formados os substantivos, adjetivos, advérbios, preposições, conjunções
e interjeições. Para cada classe de palavras listada, Pereira (1907) dá exemplos ilustrativos
que nem sempre facilitam o entendimento do leitor, como no caso de apresentação dos
substantivos próprios e apelativos (PEREIRA, 1907, p. 168), em que, apenas pela
listagem de palavras, o leitor precisa deduzir os conceitos das subclasses de substantivos.
Para além do processo de derivação, Pereira (1907) classifica a composição como
outro processo de formação de palavras, conceituando-a como “o processo pelo qual se
fórmam palavras novas com a união de dous ou mais elementos, como, p. ex.: re+fazer,
couve+flor, agu+ardente = refazer, couve-flor, aguardente” (PEREIRA, 1907, p. 169).
Após essa explicação breve e clara do fenômeno, o autor traz a ideia de determinante e
determinado, não popularmente conhecida à época:

Em todo o composto existe um elemento principal, que contém a idéa generica: é o


determinado: e um elemento accessorio, que contém a idéa especifica : é o
determinante. Em refazer, o elemento principal ou determinado é fazer, e o elemento
accessorio ou determinante é a particula re: a idéa generica de fazer é restringida ou
especificada pela particula ro. Em couve-flor e aguardente, couve e agua con-teem a
idéa principal ou generica: são os determinados: no passo que flor e ardente trazem a
idéa accessoria ou especifica: são os determinantes (PEREIRA, 1907, p. 169).

Trazer termos como determinado e determinante, antes mesmo da publicação do


Curso de Linguística Geral (CLG), de Saussure (1916), é um ponto importante e inovador

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da gramática de Pereira (1907). Não se costumava pensar, ou mesmo trazer em


compêndios gramaticais, tais considerações, que só foram amplamente divulgadas e
comentadas sob a luz do Estruturalismo que surgiria no Brasil apenas mais tarde. A
presença de tais conceitos só corrobora com a crítica comum de que Saussure não inovou
com algumas de suas ideias, mas que elas já circulavam antes de suas teses estruturalistas
(as do CLG).
Por fim, para encerrar a discussão sobre o processo de composição, o autor afirma
que o processo formativo do nosso léxico é tríplice, podendo as palavras serem compostas
por prefixação, justaposição e aglutinação, sem tecer comentários diferentes do que hoje
compreendemos cada processo mencionado.

3.3.3. Q uanto ao sentido das palavras


Ao final da parte dedicada à Morphologia, Pereira (1907, p. 149) propõe “outras
classes de palavras”, alegando que, “classificadas e estudadas as palavras isoladamente
em seu elemento ideologico, podemos ainda classifical-as [sic] do ponto de vista
comparativo de certas analogias de funcção, fórm a e significação, bem como de
opposição de sentido” (PEREIRA, 1907, p. 149, grifos do autor). Certamente, essa outra
proposta de classificação das palavras é um dos pontos de originalidade da descrição
linguística empreendida por Pereira (1907) e que não era muito comum à época.
Quanto ao que o autor denomina de “analogia de fórma”, ele apresenta três
grupos: “homonymas, paronymas e cognatas” (PEREIRA, 1907, p. 149). Para representar
ao leitor os exemplos de cada tipo de “analogia”, o autor expõe em lista diversas palavras,
conforme o fenômeno é apresentado.
As palavras homônimas, para Pereira (1907), são palavras análogas na forma e
diversas na significação, podendo a homonímia se dar em relação aos fonemas e às letras,
denominando-se homófonas e homógrafas, respectivamente. As homófonas, para o autor,
são palavras diferentes na significação e idênticas no som, quer escritas com as mesmas
letras, quer não; já as homógrafas, segundo Pereira (1907), são palavras diferentes na
significação e idênticas na forma escrita, embora possa haver diferença na qualidade e
tonicidade das vogais. Tais definições se assemelham bastante com as propostas por
Polguère (2018).
As parônimas são conceituadas como palavras diversas na significação e
parecidas na forma, enquanto as cognatas são as palavras que pertencem à mesma família
ou grupo morfológico, ou seja, derivadas de um mesmo tronco, tendo uma raiz ou radical

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comum, como ferro, ferreiro, ferragem, entre outros. A menção às palavras cognatas se
deve à influência da Linguística Histórica de que Pereira (1907) se valeu em sua descrição
de língua. Isso porque o trabalho com cognatos era comum nesse ramo da Linguística
devido à busca de parentescos entre as línguas a partir da análise fonológica e,
principalmente, morfológica.
Por fim, dentro do que Pereira (1907) defende como analogia e oposição de
sentido, há as definições de palavras sinônimas e antônimas. Segundo o autor, certas
palavras apresentam entre si significação análoga, e outras sentido oposto. As palavras
sinônimas são diversas na forma e idênticas ou semelhantes na significação, e é
justamente dessa identidade ou semelhança de sentido que Pereira (1907) ainda subdivide
em sinônimos perfeitos, como lábio e beiço, cara e rosto, por exemplo, e sinônimos
imperfeitos, como olhar e ver, bom e misericordioso, por exemplo. Sobre a ideia de
sinônimos perfeitos ou exatos, estamos de acordo com a quase totalidade dos
semanticistas atuais de que essa relação entre palavras não existe (CANÇADO, 2012;
NEVES, 2020), uma ideia que, à época, ainda não era consensual.
Após a exposição de tais fenômenos, o autor põe uma observação em que se
destaca:

Obs. - Quanto à significação, as palavras podem ainda ser tomadas no sentido proprio,
como, p. ex.: pé, cabeça, braço, falando-se das partes do corpo humano; ou no sentido
translato ou figurado, como, p. ex.: pé de vento, cabeça da revolta, braço da revolução.
Todas as vezes que uma palavra é desviada de seu sentido natural, primitivo, proprio,
e é applicada, por analogia, a designar um objeto differente do primitivo, adquire um
sentido chamado figurado ou translato.

Quanto a fórma, devemos ainda mencionar o sy n c r e tism o vocabular.

Antes que fossem publicadas no século XVI as primeiras grammaticas de nossa


lingua, a de Fernão de Oliveira (1536) e a de João de Barros (1510), era grande a
oscillação das fórmas vocabulares: assim se vê no mesmo texto - o e lo, sua e sa, suo
e seu, casales e casaes, sou, som e so.

Chamam-se essas formas duplas, triplas o, até, quadruplas do mesmo vocabulo-lórmas


synereticas. Syncretismo (gr. syn + Creta + ismo) era termo com que os autores gregos
indicavam as variadas populações da ilha de Creta.

Com a publicação dessas primeiras grammaticas começou, para a lingua, o periodo da


disciplina grammatical, e as fórmas syncreticas foram diminuindo. Em Camões ainda
se encontram concorrentemente agradecer e agardecer, antão e então, piadoso o
piedoso, antre e entre, fruito e fructo, contrairo e contrario (PEREIRA, 1907, p. 152).

Nesse trecho, podemos observar a busca por um falar mais correto e unívoco e a
ideia de sincretismo que rotula o presente momento em que o autor se vê perante sua

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língua. É importante notar, não só nesse trecho, mas ao longo da gramática, o quanto essa
é uma preocupação latente de Pereira (1907). Quanto a uma possível inspiração que o
autor teve para tal classificação em analogias e oposição de sentidos, Fávero e Molina
(2009) apontam para Bréal (1992, p. 92) quando este afirma que “é preciso olhar a
analogia como uma condição primordial de toda a linguagem. Se ela foi uma fonte de
clareza e de fecundidade, ou se foi uma causa de uniformidade estéril, é o que somente a
história individual de cada língua pode nos ensinar”, uma clara filiação à corrente
histórico-comparativa, predominante à época de publicação da gramática de Pereira
(1907).

3.3.4. Q uanto à organização das palavras


Na parte da gramática de Pereira (1907) denominada Taxeonomia, a qual acredita
estudar as diversas classes de palavras e as suas propriedades em relação à ideia que
exprimem, as palavras são divididas em oito classes: substantivo, adjetivo, pronome,
verbo, advérbio, preposição, conjunção e interjeição. Em nota, o autor infere que “contam
muitos grammaticos dez partes da oração, incluindo entre ellas - o artigo e o participio.
Porém estas partes estão naturalmente incluidas na classe do adjectivo” (PEREIRA, 1907,
p. 48). Tal classificação está em conformidade com o que se acreditava constituir uma
classe de palavras à época, e até mesmo antes do século XX, nas gramáticas científicas
do fim do século XIX (CAVALIERE, 2022).
Ademais, o autor também faz a divisão de tais classes em variáveis ou flexivas
(substantivo, adjetivo, pronome e verbo) e invariáveis ou inflexivas (advérbio,
preposição, conjunção e interjeição). As definições para cada uma delas corroboram com
as que concebemos na atualidade, o que prova a força que a gramática tradicional tem ao
longo dos séculos, herdada da tradição greco-latina. Além disso, esta é uma divisão
pautada a partir do critério morfológico, que vai ser uma prática comum nas gramáticas
que sucedem a de Pereira (1907), condensando, inclusive, as classes de palavras na parte
da Morfologia.
Um fato notável da gramática de Pereira (1907) é considerar interjeição como
uma classe de palavras, se opondo a muitos gramáticos que o antecederam. Para o autor,
a interjeição “é a palavra invariavel que exprime os affectos vivos e subitos da alma, como
a dor, a alegria, o espanto, etc.” (PEREIRA, 1907, p. 148). Outro ponto que merece ser
destacado é uma das poucas distinções entre a gramática de Júlio Ribeiro (1881) e a de
Pereira (1907): enquanto na deste último os artigos não são considerados como uma

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classe à parte, mas incluída na dos adjetivos, Júlio Ribeiro os considera independentes e
os classifica como palavras que se antepõem ao substantivo a fim de particularizarem-lhe
a significação, uma conceituação bem próxima da que hodiernamente concebemos.
Ademais, como já fora exposto no subtópico anterior, o autor ainda apresenta uma
outra proposta de classificação das palavras quanto à analogia de função, distribuindo as
classes já explicitadas por ele em palavras denominativas, que têm por função nomear os
seres (substantivos e pronomes), palavras modificativas, que modificam outras palavras
(adjetivos, verbos e advérbios), e palavras conectivas, que têm por função ligar ou
relacionar outras palavras entre si (preposição, conjunção e verbos de ligação). Essa
proposta de classificação, considerada bastante ousada para a época, apenas aparece ao
fim da seção de Morphologia, e não se detém na explicitação de cada uma das classes.
Da maneira como está posta na gramática, essa é, de fato, apenas mais uma maneira de
agrupar classes já existentes e definidas. No entanto, essa classificação adota o critério
semântico, que mais tarde será predominante na Nomenclatura Gramatical Brasileira
(NGB), mesmo que ainda sob o rótulo da morfologia.

Considerações finais
A Grammatica expositiva de Pereira (1907) foi publicada em um momento da
nossa gramaticografia em que a corrente da gramática científica estava dando os seus
primeiros passos e tinha como “norte” a Grammaticaportugueza, de Júlio Ribeiro (1881),
o que explica tantas semelhanças entre os dois compêndios. Além disso, Eduardo Carlos
Pereira era um grande crítico do momento que o ensino de nossa língua estava vivendo,
atribuindo os fracassos à adoção exclusiva de uma ou de outra corrente teórica ou didática
para esse ensino. Talvez por isso, há, em alguns momentos de sua gramática, alguns
poucos avanços para o que era frequente encontrar em compêndios à época.
Sobre a adoção de uma corrente aos seus estudos, o gramático assegurava que o
melhor seria se os professores ministrassem ao aluno o conhecimento histórico da língua,
e essa marca foi deixada em sua gramática, como podemos ver em alguns exemplos de
notas que trazem o fator histórico para a descrição da língua portuguesa. Contudo, o fato
de essas informações serem apresentadas em notas, e não no corpo do texto, denota ainda
uma hesitação com o que o próprio gramático pretendia ao contemplar com essa ideia.
Retomando o Prólogo da 1a edição, o autor finaliza-o esclarecendo que havia
enriquecido o seu trabalho para atender à sugestão do programa oficial de português “com
dezenas de provérbios, máximas e ditos sentenciosos tanto para aclarar e fixar regras,

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quanto para aguçar o intelecto e formar o caráter” (PEREIRA, 1907, p. II). Com isso,
supomos que ele não tinha a intenção de formar um leitor e escritor proficiente em sua
língua, mas atingir os que pretendiam acessar a língua dita culta, afastando qualquer
desvio de língua ou “brasileirismos”, fato que também pudemos constatar em muitas
partes de sua gramática.
Outro fato bastante observado foi a perpetuação dos moldes de gramáticos
anteriores a Pereira (1907) no fazer gramatical. Como já indicado, era comum à época
uma mesma gramática servir ao leitor consulente e ao leitor pesquisador, fato explicado
pelo incipiente mercado editorial do período. Por isso, o gramático pensava em atender
ao grande público e vender suas obras em larga escala, como foi o caso de Pereira e as
suas 114 edições da Grammatica Expositiva. Sendo assim, analisando globalmente,
justifica-se o fato de haver pouca inovação em suas descrições linguísticas, se
compararmos com os gramáticos que o antecederam.
Conseguimos compreender o quanto a atmosfera intelectual do período influencia
o gramático ao traçar a sua linha de descrição linguística. Ademais, o fazer gramatical é
uma atividade totalmente inserida na sociedade em que a gramática é publicada, isto é,
voltado para o público que irá consumi-la. Mesmo filiadas ao paradigma tradicional de
gramatização (VIEIRA, 2018) e seguindo o modelo greco-latino, o clima de opinião dita
algumas particularidades das gramáticas, funcionando a percepção do autor como uma
trena que mede o que fica e o que sai da tradição milenar de gramatização.
Na gramática aqui analisada como modelo para as demais, o conteúdo e a maneira
com que Pereira (1907) conduziu a descrição da língua portuguesa têm traços do
momento histórico que o autor e a população brasileira estavam vivenciando.
Conseguimos enxergar uma preocupação com o “escrever e falar bem” como forma de
sobressair ao português falado na Europa, afinal a gramática de Pereira surgiu no período
pós-República, e muitas transformações estavam acontecendo no país. A sociedade estava
norteada por ideais positivistas e acreditava no progresso que o modelo Republicano
podia oferecer, bem como no poder da Educação em transformar uma sociedade
praticamente iletrada.
Por fim, apresentamos os principais pontos observados mediante a busca por
fenômenos lexicais presentes na gramática de Pereira (1907), interpretando os dados e
expondo-os ao leitor. Podemos inferir, de tal maneira, que a gramática de Pereira (1907)
tinha objetivo pedagógico, advindo das necessidades expressas à época, como seguir
programas oficiais como o do Colégio Pedro II, onde o próprio autor lecionava. Portanto,

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Instrumentos Linguísticos
310

sem muita inovação pelos motivos já listados, a Grammatica Expositiva é considerada


mais próxima do modelo tradicional, advindo das gramáticas greco-latinas, do que as
demais de sua época, mesmo o autor inferindo o modelo histórico-comparativo, também
importante à época, em muitas de suas páginas.

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Instrumentos Linguísticos
312

Instrum entação linguística no espaço-tem po brasileiro: o nacional e o regional a


p a rtir de Said Ali e Nascentes
Linguistic Instrum entation in the B razilian space-time: the national and regional
from Said Ali and Nascentes

Thaís de Araujo da Costa1


UERJ

Bruna Alves Goulart12


UERJ

Giulia Nascimento de Mello3


UERJ

“[...] a questão da língua é, portanto, uma questão de Estado


com uma política de invasão, de absorção e de anulação das
diferenças, que supõe antes de tudo que estas últimas sejam
reconhecidas”.
(PÊCHEUX; GADET, 2009 [1981], p. 37)

Resumo: O presente artigo objetiva discutir o conceito de instrumentos linguísticos à luz da


perspectiva discursiva da História das Ideias Linguísticas, considerando-o especificamente em
relação ao processo de gramatização de brasileiros para brasileiros (ORLANDI, 2009a). Para
tanto, parte de uma reflexão teórica para, no batimento entre teoria e análise, investigar
materialidades que se debruçam sobre as dimensões nacional e regional da língua no/do Brasil.
São elas: sobre a dimensão nacional, a Gramática Histórica da Língua Portuguesa (GH, 1931
[1921-7]) e a Gramática Secundária da Língua Portuguesa (GS, 1964 [192?]), ambas de autoria
de Manuel Said Ali Ida; e sobre a dimensão regional, O Linguajar Carioca (LC, 1953 [1922]), de
Antenor de Veras Nascentes. Com esse propósito, retoma a discussão iniciada por Orlandi e
Guimarães (2001), entre outros, acerca da ambivalência entre unidade e diversidade constitutiva
da gramatização brasileira e acerca dos processos de colonização/descolonização linguística
buscando ainda compreender, a partir da análise das materialidades supramencionadas, como a
ciência linguístico-gramatical do início do século XX formula a relação entre línguas e sujeitos
no/do Brasil.
Palavras-chave: Instrumentos linguísticos. Gramatização brasileira. Said Ali. Antenor
Nascentes.

1 Thaís de Araujo da Costa é procientista e professora adjunta de língua portuguesa da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É coordenadora do Projeto Arquivos de Saberes Linguísticos
(SaberLing/UERJ/Fapeij) e uma das coordenadoras do Laboratório de Estudos em Gramática & Discurso
(LabGraDis/UERJ/Faperj).
2 Bruna Alves Goulart é graduanda em Letras (português/literaturas) na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). É membro do Projeto Arquivos de Saberes Linguísticos (SaberLing/UERJ/Fapeij) e
bolsista de Iniciação Científica (UERJ/Faperj).
3 Giulia Nascimento de Mello é graduanda em Letras (português/francês) na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). É membro do Projeto Arquivos de Saberes Linguísticos (SaberLing/UERJ/Faperj)
e bolsista de extensão (UERJ).

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Instrumentos Linguísticos
313

Abstract: This artide’s objective is to discuss the concept of linguistic tools by the discursive
perspective of the History of Linguistics Ideas, considering it specifically in relation to the process
of grammaticalization of Brazilians to Brazilians (ORLANDI, 2009a). Therefore, it starts from a
theoretical reflection to, in the confrontation between theory and analysis, investigate materialities
that deal with national and regional dimensions of Brazil’s language. These materialities are:
about the national dimension, the Gramática Histórica da Língua Portuguesa (GH, 1931 [1921­
7]) and the Gramática Secundária da Língua Portuguesa (GS, 1964 [192?]), both of the
authorship of Manuel Said Ali Ida; and about the regional dimension, O Linguajar Carioca (LC,
1953 [1922]), written by Antenor de Veras Nascentes. With this purpose, it resumes the discussion
initiated by Orlandi e Guimarães (2001), among others, about the ambivalence between the unit
and diversity that is constitutive of the Brazilian grammaticalization and about the process of
linguistic colonization/decolonization with the purpose of comprehending, from the analysis of
the materialities already mentioned before, how the linguistic-grammatical science from the
beginning of the XX century formulates the relation between languages and subjects of/in Brazil.
Keywords: Linguistic tools. Brazilian grammaticalization. Said Ali. Antenor Nascentes.

Subm etido em 01 de agosto de 2023.


A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introdução
Este artigo apresenta resultados parciais de duas pesquisas que, à luz da Análise
do Discurso Materialista em sua relação com a História das Ideias Linguísticas (AD-
HIL)4, vêm sendo desenvolvidas no âmbito do projeto Arquivos de Saberes Linguísticos
(UERJ/FAPERJ)5 e que partem de textualidades pertencentes aos acervos dos Arquivos
Said Ali e Antenor Nascentes6. Dentre outras questões movimentadas por esses acervos,
adotamos como eixo temático norteador desta reflexão o modo como a ciência
linguístico-gramatical do início do século XX formula a relação entre línguas e sujeitos
no/do Brasil para, a partir disso, discutir o conceito de instrumentos linguísticos, tal como
comparece em Auroux, notadamente em textualidades postas em circulação no Brasil e
na França entre 1992 e 20087. Nessa discussão, dada a nossa filiação teórica,

4 Deve-se esclarecer que a reflexão ora apresentada se filia ao dispositivo teórico-analítico da AD e que,
nessa relação, as ideias linguísticas e suas histórias são tomadas como objeto (Cf. COSTA, 2019b). Assim,
mesmo quando consideramos gramáticas como instrumentos linguísticos, o fazemos à luz da perspectiva
discursivo-materialista, realizando os devidos deslocamentos como será demonstrado adiante.
5 Para mais informações, acesse: https://www.saberling.institutodeletras.uerj.br/.
6 Desenvolvem tais pesquisas, sob a orientação da Profa. Dra. Thaís de Araujo da Costa, as graduandas
Bruna Alves Goulart (IC-FAPERJ) e Giulia Nascimento de Melo (EXT-UERJ).
7 Entendemos que esse conceito segue em movimento nos trabalhos de Auroux e de outros pesquisadores
filiados à História das Ideias Linguísticas no Brasil e na França e que, nesse sentido, muitas outras
textualidades poderiam ser mobilizadas nesta reflexão. Contudo, com esse recorte, objetivamos dar um
primeiro passo rumo à investigação da historicidade do conceito em obras fundadoras filiadas ao nome de
Auroux, buscando compreender como os sentidos nelas inscritos afetam os trabalhos desenvolvidos à luz
da perspectiva discursiva da HIL e propondo deslocamentos necessários em função dos princípios
epistemológicos que fundamentam os dois campos, entre os quais, como ensina Nunes (2008), não há uma
relação de complementaridade, mas de ressonância para ambos os lados.

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consideramos os deslocamentos postos a funcionar no Brasil, a partir do encontro, mais


ou menos na mesma época, com a perspectiva discursiva (Cf. COSTA, 2019b), partindo
dos trabalhos de Orlandi (2001; 2009a) Orlandi e Guimarães (2001). Tendo em vista a
movência desse conceito no domínio discursivo, também mobilizamos estudos
contemporâneos em que, a sua retomada tem como efeito a produção de novos
deslocamentos, como em Costa (2019a [2016]; 2019b), Ferreira (2020) e Pfeiffer, Costa
e Medeiros (2022).
Quanto ao eixo temático norteador da análise, faz-se preciso esclarecer que, em
nosso movimento de leitura, impôs-se compreender a relação estabelecida em
instrumentos linguísticos entre as dimensões nacional e regional da língua no/do Brasil
para, nessa relação, identificar os modos de significação do (des)encontro entre a(s)
língua(s) portuguesa(s), a(s) língua(s) indígena(s) e a(s) língua(s) africana(s), bem como
entre os sujeitos nessas/dessas línguas. Para tanto, recortamos três materialidades para
serem analisadas, a saber: a Gramática Histórica da Língua Portuguesa (GH, 1931
[1921-7]), a Gramática Secundária da Língua Portuguesa (GS, 1964 [192?]), ambas de
autoria de Said Ali, e O Linguajar Carioca (LC, 1953 [1922]), de Antenor Nascentes.
Tendo em vista esses objetivos, organizamos nosso percurso analítico em seis
momentos, além desta introdução e das considerações finais. No primeiro momento,
buscamos historicizar o conceito de instrumento linguístico, tal como formulado por
Auroux (2009 [1992]; 1998a; 2008; 2021 [2006]) a partir do lugar da HIL, voltando-nos
sobretudo para a sua reflexão a respeito do objeto gramática. No segundo momento, com
base em Costa (2019a [2016]; 2019b), Ferreira (2020) e Pfeiffer, Costa e Medeiros
(2022), pontuamos alguns deslocamentos necessários para o desenvolvimento de uma
reflexão calcada na perspectiva discursivo-materialista. No terceiro momento, retornamos
a Auroux (2009 [1992], 1998a; 1998b), com vistas a compreender a relação tecida em sua
teorização entre os conceitos de instrumento linguístico e hiperlíngua. Mais uma vez
perseguindo o percurso histórico empreendido por esses conceitos, interessamo-nos, em
função do incômodo que nos foi suscitado pelas materialidades em análise,
especificamente por identificar nessa teorização o que (não) se diz sobre a relação entre
o nacional e o regional. No quarto momento, partindo da definição de Auroux de
hiperlíngua enquanto espaço-tempo estruturado, retomamos os estudos de Orlandi e
Guimarães (2001) e Orlandi (2001; 2009a) sobre a relação ambivalente entre unidade e
diversidade no processo de gramatização brasileiro da língua portuguesa. No quinto
momento, damos continuidade a essa reflexão pensando especificamente as gramáticas

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de Said Ali e Nascentes e discutindo, com base em Guimarães (2004), Payer (2006) e
Medeiros e Petri (2013), o modo como se inscrevem/são inscritas na gramatização
brasileira frente à dimensão ou à parte da língua posta como objeto. Por fim, no sexto
momento, adentramos a materialidade das gramáticas, em busca de sentidos que, no
batimento entre teoria e análise, nos permitam compreender a relação nelas estabelecidas
não só entre línguas e sujeitos, mas também entre o que se coloca como nacional e
regional, assim como o modo como essas relações afetam o imaginário de instrumentação
linguística no/do Brasil.

1. A historicidade do conceito de instrum ento linguístico em A uroux8


Em A revolução tecnológica da gramatização, Auroux (2009 [1992]) define a
gramática enquanto uma forma (abstrata) de saber metalinguístico cuja constituição no
Ocidente remonta à Antiguidade Clássica e que hoje se distingue de outras formas como
a linguística, tal como formulada a partir do século XX. Em seguida, a caracteriza
também, ao lado dos dicionários, como instrumentos linguísticos, isto é, objetos técnicos
nos quais comparecem explicitamente conhecimentos teóricos de natureza empírica e se
projeta, num “subespaço de representação”, uma hiperlíngua - um “sistema dinâmico”
estruturado num determinado espaço/tempo (ibid., p. 128). Especificamente em relação
às gramáticas, Auroux diz tomá-las como instrumentos porque, tal como um “martelo
prolonga o gesto da mão, transformando-o”, elas também, ainda que de forma mais
complexa, “prolongam a fala natural” ao dar “acesso a um corpo de regras e de formas
que não figuram juntas na competência de um mesmo locutor” (ibid., p. 70).
Sobre o caráter empírico da gramática, diz Auroux em nota - referindo-se
especificamente à gramática geral e à comparada, mas que entendemos também pode se
estender às gramáticas prescritiva e descritiva de um modo geral - que

um saber especulativo (uma representação) é de natureza empírica se seu valor


de verdade depende de uma ou várias asserções factuais. Nesse sentido, entre
as ciências da linguagem, a lógica não é uma disciplina empírica. A gramática
geral e a gramática comparada o são, ainda que de modos diferentes.
(AUROUX, 2009 [1992], p. 34, nota 7)

8 Parte da reflexão tecida aqui e na seção seguinte comparece no vídeo-verbete Gramática, da Enciclopédia
Virtual de Análise de Discurso (Encidis/UFF), de autoria de Thaís de Araujo da Costa. O vídeo-verbete
encontra-se disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=7JvfU46lfyQ&t=44s> Acesso em: 18 jul.
2023.

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Um certo sentido de empirismo também ressoa na comparação estabelecida entre


a gramática e o martelo, ainda que em outra nota o autor, pondo em relação forma
(abstrata) e objeto técnico, ressalte que “uma gramática é um objeto técnico mais
complexo que um simples martelo”, visto que “ela investe necessariamente
conhecimentos teóricos explícitos” (ibid., p. 95, nota 9). Por fim, note-se ainda que essa
relação se faz igualmente presente na reflexão de Auroux em relação à linguística, com a
diferença de que nesse caso não há homonímia na nomeação de um e outro como ocorre
com a gramática. Assim é que, conforme o autor, do lugar de que fala, a linguística é
tomada em seu “duplo sentido”, a saber: “da forma abstrata de uma formação discursiva
de caráter científico e de sua aplicação a objetos empíricos” (ibid., p. 45).
Como se pode notar, o autor fala de diferentes aspectos do que nomeia como
gramática, muito embora essa diferença ainda não compareça de forma regular e
sistematizada na sua reflexão. Posteriormente, no entanto, ele dá consequências a essa
questão, formulando uma distinção entre o que coloca como objetos de conhecimento, de
um lado, e instrumentos técnicos, também ditos objetos técnicos ou externos, de outro -
ambos considerados enquanto objetos históricos. Para tanto, em A historicidade das
ciências (2008), o autor mobiliza o conceito filosófico de representação - que já
comparecia de forma lateral na obra de 1992 - , entendendo, por meio dele, ser possível
compreender como se dá a externalização de estados internos por parte de seres vivos.
Diz Auroux:

Os seres vivos do tipo ‘animal’ são caracterizados pela possibilidade de serem


‘afetados’, ou seja, de terem estados internos em função de suas relações com
o ambiente. Dentre aquilo que os afeta, existem algumas impressões que
possuem a propriedade de ser automaticamente relacionadas/relacionáveis aos
objetos e aos sujeitos do mundo exterior, não simplesmente como causas, mas
como algo que vale em seu lugar. São as r e p r e se n ta ç õ e s. (AUROUX, 2008,
p. 125 [itálico e negrito do autor])

Em seguida, Auroux explica que, no processo de representação do saber


(também dito referenciação), os referentes construídos - isto é, os objetos de
conhecimento ditos “científicos” - não são o real, ainda que possam, para determinados
sujeitos (e não necessariamente ou igualmente para todos), a ele equivaler ou substituir.
Essa não equivalência entre objetos de conhecimento e o que designa como real se dá, a
seu ver, a despeito de a realidade material das representações ser de certo modo atestada
pelo que designa como externalidades cognitivas, as quais, inerentes ao domínio

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científico, “levam a ultrapassar as capacidades individuais por meio de instrumentos


técnicos e significantes” (id., 2008, p. 125).
Trata-se, assim, de uma tomada de posição9 que aqui nomearemos como
externalista10 e que já havia se feito significar de forma bastante potente em La raison, le
langage et les normes, obra de 1998 na qual a tese do caráter empírico e técnico do saber
metalinguístico defendida em A revolução tecnológica da gramatização, em 1992, é
reformulada com a proposta de constituição das bases do que nomeia como “empirismo
externalista ou (...) externalismo” (id., 1998a, p. 4 [tradução nossa]). É, então, a partir
dessa reformulação - que se calca no pressuposto de que “a inteligência é originalmente
um artifício (...) cujas manifestações são dependentes de instrumentos externos” (ibid., p.
7 [tradução e grifo nossos]), como livros, bibliotecas, calculadoras etc. - que Auroux irá
propor a distinção entre objetos de conhecimento ou de saber e objetos externos ou
técnicos. Note-se aqui que, nessa reformulação, o caráter empírico da gramática parece
se deslocar do seu objeto - o saber especulativo e empírico, já que sustentado por
asserções factuais que possibilitam construir o seu valor de verdade - para a gramática
enquanto objeto no mundo - sentido que, de certa maneira, já se presentificava na
metaforização da gramática enquanto um martelo. Da mesma sorte, o conceito de “forma
abstrata” parece ser, não sem efeitos, substituído pelo de “objeto de conhecimento” .
A reboque dessa reestruturação teórica, o filósofo francês também reformula,
nessa mesma obra, o conceito de instrumento linguístico, passando agora a apresentá-lo
como uma hipótese. De acordo com a hipótese dos instrumentos linguísticos, gramáticas
e dicionários são instrumentos, não apenas empíricos, mas externos à competência
linguística “natural” do falante (ibid., p. 264-265 [tradução nossa]). Ou seja, com essa
(re)formulação, passa-se então a conceber que os instrumentos linguísticos, enquanto
objetos empíricos, possibilitam a externalização de objetos de conhecimento, isto é, de
saberes metalinguísticos, que, por sua vez, passam a ser tomados como “representações

9 A constituição do sujeito em autor implica, a partir da sua inscrição em um dado domínio de saber, uma
tomada de posição frente ao objeto do dizer. De acordo com Orlandi (2007, p.40), “Em toda língua há
regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O que
significa no discurso são essas posições. E elas significam em relação ao contexto sócio-histórico e à
memória (o saber discursivo, o já-dito)”.
10 Essa nomeação remete à proposta do autor de um “empirismo externalista ou (...) externalismo” (id.,
1998a, p. 4 [tradução nossa]); não se configura, pois, como uma crítica, mas como um empreendimento
analítico que se calca na constatação de uma regularidade na obra em questão, a saber: o comparecimento
dos adjetivos externo e externalista, para determinar, respectivamente, os substantivos objeto e empirismo,
e do substantivo externalismo. A análise visa, portanto, compreender os efeitos de sentidos, em relação ao
conceito de instrumentos linguísticos e à rede conceitual em que se inscreve, produzidos a partir desses
comparecimentos.

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de fenômenos linguísticos” (ibid., p. 268 [tradução nossa]) produzidas pelos sujeitos da


ciência.
Passa-se a considerar ainda que os objetos empíricos, embora afetem o
indivíduo, as suas “capacidades individuais”, são da ordem de uma coletividade, devendo
o historiador estudar a sua “construção progressiva, geração após geração” (id., 2008, p.
125) - donde a sua consideração como objetos históricos: eles se constituem
historicamente e, a partir deles, é possível ao sujeito historiador construir uma certa
história. Para tanto, é preciso que, tomando-os tão somente como “apoio empírico” (ibid.,
loc. cit.), persiga a representação de um dado objeto de conhecimento produzida e
transmitida no curso do tempo a partir do lugar do cientista (no caso, das gramáticas, do
lugar do gramático), de modo a atestar a sua estabilidade e permanência.
Assim é que, nessa perspectiva, objetos de conhecimento também são tomados
como objetos históricos. Isto é, serão históricos os conhecimentos cuja existência
(enquanto representação) na longa duração for atestada pelo historiador em um
movimento retrospectivo em que busca estabelecer linhas causais. É sobre essa
representação que, partindo de objetos empíricos, o historiador se debruça buscando
reconstruir relações de causa e efeito. Sobre a historicidade dos objetos de conhecimento,
conclui, então, Auroux (2021 [2006], p. 3) 11 que “B é ‘histórico’, se não há existência
sem um B que o precede”, o que, em um movimento parafrástico (ORLANDI, 2009b
[1983])1112, nos permite ler que B não é histórico, se existe sem um B que o precede - donde
interpretamos que, do lugar do historiador, admite-se a existência de objetos a-históricos.

2. Instrum entos linguísticos vistos discursivam ente


Na esteira de Costa (2019a [2016]; 2019b), entendemos que pensar gramáticas
a partir de uma perspectiva discursiva envolve aproximar-se e distanciar-se da proposta
de Auroux. E isso porque o conceito de instrumento linguístico, tal como formulado pelo
autor, pressupõe concepções de comunicação, sujeito, língua e história dissonantes em
relação àquelas com que trabalhamos numa tomada de posição materialista da Análise de

11 Esse texto foi originalmente publicado em francês em 2006 e traduzido para o português brasileiro em
2021.
12 Em Análise de Discurso, a paráfrase é tomada como procedimento analítico, visto que, como explica
Orlandi (2009b [1983], p. 125), por meio dela, o analista pode observar “o retorno aos mesmos espaços do
dizer”, produzindo “diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado” (id., 2007, p. 36), o que lhe
permite ler no que é dito o que não é dito, mas o constitui significativamente.

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Discurso. Essas dissonâncias foram abordadas de forma detalhada em Costa (2019b)13.


Aqui, no entanto, tendo em vista a rede conceitual em que por meio da análise observamos
a inscrição do conceito de instrumentos linguísticos, interessa-nos ainda tecer alguns
comentários em relação à consideração dos chamados objetos de conhecimento,
notadamente de conhecimento gramatical, como objetos históricos.
Mesmo que, tanto para a HIL quanto para a AD, os objetos gramática sejam
considerados em sua historicidade, discursivamente, como ensina Paul Henry (2010), a
história diz respeito à possibilidade de fazer sentido. E faz sentido porque enquanto
sujeitos de linguagem somos a todo instante ideologicamente interpelados a significar a
nós mesmos e o mundo a nossa volta, filiando-nos a formações discursivas (FDs)14. É,
pois, nesse viés, que entendemos que não há objeto - e, para nós, todo objeto é um objeto
de dizer - que não seja histórico ou ainda que não há objeto fora da história. Em nossa
perspectiva, a constituição de gramáticas enquanto objetos históricos se dá na medida em
que se configuram como frutos de gestos de interpretação empreendidos por sujeitos-
gramáticos inscritos em condições de produção específicas - consideração essa que traz

13 Diz a autora (COSTA, 2019b, p. 27-28): “o conceito de gramática enquanto instrumento linguístico é
problemático tanto pela própria noção de instrumento como pela de hiperlíngua. No que tange à noção de
instrumentos linguísticos, cabe pontuar que essa vem sendo mobilizada discursivamente por analistas
brasileiros pelo menos desde Língua e cidadania (Orlandi e Guimarães, 1996, p.9), obra na qual se ressalta
na apresentação a importância de considerá-los na sua relação com o “modo como a sociedade constrói
elementos da sua identidade”, ao mesmo tempo em que “se constitui historicamente”. A noção de
hiperlíngua, por seu turno, como explicaram Zoppi-Fontana e Diniz (2008, p.96), “implica uma concepção
de comunicação, sujeito, história e língua bastante diferentes - por vezes, opostas - daquelas da Análise do
Discurso”. A nosso ver, o mesmo pode ser dito sobre a noção de instrumento. E isso porque a concepção
de uma hiperlíngua que se projeta num instrumento linguístico pressupõe o estabelecimento em certos
ambientes de relações de comunicação entre indivíduos baseadas em competências linguísticas. Essa
concepção é conflitante em relação aos pressupostos teóricos da AD, porque, em função da noção de
interpretação, entende-se que há sempre comunicação e não comunicação. O equívoco é sempre possível,
ele faz parte da língua, de modo que as mesmas palavras, sob condições de produção distintas, podem
significar diferentemente. Isso significa que, em nossa perspectiva, uma vez que o equívoco é tomado como
constitutivo, a suposta competência desenvolvida pelo instrumento não garante o estabelecimento de
comunicação, mas produz a ilusão de. Além disso, a noção de indivíduo dado a priori incutida no conceito
de hiperlíngua e no de instrumento, já que se entende que por meio deste aquele pode ter a sua competência
linguística desenvolvida, também é problemática do ponto de vista teórico. Em AD, entende-se que os
sujeitos se constituem/são constituídos nos/pelos processos discursivos, ou seja, a concepção de indivíduo
presente na proposta de Auroux apaga, portanto, o processo histórico a partir do qual o sujeito, por meio do
processo de identificação/subjetivação, se projeta no dizer. Por fim, outro ponto que é controvertido diz
respeito à atuação do instrumento linguístico como ferramenta que possibilita o desenvolvimento da
competência linguística do indivíduo. Tal concepção revela uma visão positivista do processo de ensino-
aprendizagem, uma vez que, com o apagamento das condições históricas do sujeito, da gramática e das
regras que nela comparecem, bem como do próprio processo de ensino-aprendizagem, o qual é visto como
transparente e evidente, pressupõe-se que qualquer um, em qualquer lugar, pode, com uma gramática, ter
acesso ao corpo de regras de uma língua e aprimorar a sua competência como falante, prolongando a sua
fala natural.”
14 Diz Orlandi (2007, p. 43): “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica
dada - ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada - determina o que
pode e deve ser dito”.

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à baila a heterogeneidade, de um lado, dos saberes que constituem o que, numa dada
conjuntura, se nomeia como gramática e, de outro, das formas materiais em que tais
saberes (não) podem/devem se inscrever.
Tendo em vista essa heterogeneidade, Costa (2019a [2016]) formulou a distinção
entre a Gramática, com inicial maiúscula e precedida de artigo definido, também por
vezes adjetivada como normativa ou tradicional, enquanto dom ínio de saber, e
gramática, com letra minúscula, enquanto form a m aterial15.
Enquanto domínio de saber, na esteira de Pêcheux (2009 [1975]), a Gramática
é tomada pela autora como uma FD constitutivamente heterogênea na qual se inscrevem
diferentes formas de saberes linguísticos (a fonética, a fonologia, a morfologia, a sintaxe
etc.) e que se distingue e se relaciona, por vezes de forma tensa, com outros domínios,
como a Linguística, a Filologia, entre outros, igualmente heterogêneos. Considerando
especificamente o que designa como discurso gramatical brasileiro, Costa (2019a [2016])
destaca ainda que dizer que a Gramática se constitui enquanto um domínio de saber
significa tomá-la como um conjunto de dizeres que - determinados sócio, histórica e
ideologicamente - se impõe como a única memória possível para esse discurso e, por
conseguinte, considerar a sua filiação a uma prática discursiva desenvolvida por sujeitos
inscritos em condições determinadas.
Logo, dizer que a Gramática, enquanto domínio de saber, não é homogênea
implica, dessa perspectiva, considerar que os sentidos que a ela se filiam são
historicamente construídos e se significam em relação a outros sentidos com os quais
disputam espaço na forma material da gramática. Assim sendo, cabe ao analista-
historiador (NUNES, 2008) buscar compreender o processo de naturalização de
determinados sentidos em detrimento de outros - processo esse que, por ser histórico, não
é evidente, não se dispõe linearmente na linha do tempo de modo a se estabelecer relações
óbvias ou transparentes de causa e efeito. E isso porque, desse lugar, concebemos, na
esteira de Nunes (2002, p. 107), que “as determinações causais estão relacionadas com as
condições de produção do discurso” ou, dito noutros termos, que as relações de

15 Orlandi, considerando a relação entre língua e história, propõe, deslocando o conceito hjelmsleviano,
que aquela seja tomada enquanto forma material, isto é, como “forma encarnada na história para produzir
sentidos”(ORLANDI, 2007, p. 19). Em sua reflexão, a expressão “forma material” é retomada ainda como
“materialidade linguística e histórica” (ORLANDI, 2007, p. 59), “materialidade discursiva” (ibid., p. 90) e
“materialidade simbólica e significativa” (ibid., p. 18). Lagazzi (2011, p. 401 [itálicos da autora]),
observando a necessidade de “concernir o trabalho com as diferentes materialidades [e não apenas a
linguística]”, propõe a formulação “materialidades significantes”, lembrando que estas se constituem como
“materialidades prenhes de serem significadas”, isto é, o “modo significante pelo qual o sentido se formula”
(ibid., loc. cit.). É, pois, nesse sentido, que tais expressões comparecem neste trabalho.

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causalidade estabelecidas no dizer a partir do lugar do sujeito-historiador configuram-se


como efeitos de injunções sociais, históricas e ideológicas.
Já o nome gramática com letra minúscula tem, como depreendemos de Costa
(2019a [2016]), funcionamento polissêmico, visto que designa diferentes formas
materiais nas quais se inscrevem discursos sobre língua, linguagem e metalinguagem,
dentre estes, mas não só, aqueles que se filiam à Gramática, com G maiúsculo. Enquanto
tal, uma vez que presentifica um imaginário de instrumentação, descrição e/ou
normatização do que se concebe como a língua, também é um produto de práticas
discursivas - filiadas ao lugar do gramático normativo ou ao do gramático-linguista, por
exemplo - , daí haver, segundo a autora, entre gramática (forma material) e a Gramática
(domínio de saber) uma relação de dupla determinação, no sentido em que “as gramáticas
são determinadas pela Gramática, mas nela também produzem efeitos, podendo fazerem-
se significar na memória (oficial) do discurso gramatical brasileiro” (ibid., p. 29).
Por fim, cabe assinalar que, tendo em vista o imaginário projetado na gramática
(forma material), outros analistas-historiadores têm proposto o deslocamento do conceito
de instrumento linguístico para operacionalizá-lo em pesquisas realizadas à luz da
perspectiva discursiva. Esse é o caso de Ferreira (2020) e de Pfeifer, Costa e Medeiros
(2022), dentre outros.
Indo na direção da proposta de Costa (2019a [2016]) no que concerne à
consideração da materialidade significante (LAGAZZI, 2011) em que se inscrevem os
saberes metalinguísticos, Ferreira (2020, p. 95) pontua que:

Enquanto objetos históricos em funcionamento, os instrumentos linguísticos


podem ser pensados em sua materialidade discursiva. Para isso, as análises
sobre esses artefatos são empreendidas considerando sua materialidade
linguística, ou seja, a língua em sua historicidade.

Já Pfeiffer, Costa e Medeiros (2022), lembrando que instrumentos linguísticos


têm sido também considerados enquanto objetos discursivos (COLLINOT; MAZIÈRE,
1997; NUNES, 2006), o que implica pensá-los em relação a sua exterioridade constitutiva
(PFEIFFER, 2015), assinalam que, discursivamente,

são o prolongamento e a acessibilidade projetados nos/pelos instrumentos


tomados enquanto efeitos: por meio dessas tecnologias, os discursos sobre as
línguas, indissociavelmente relacionados à história, à ideologia e ao político,
são (re)produzidos e colocados em circulação numa dada formação social, ao
mesmo tempo em que a língua, imaginariamente instrumentalizada, se

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constitui/ é constituída ou fabricada, para retomar o termo de Auroux.


(PFEIFFER; COSTA; MEDEIROS, 2022, p. 331, nota 2)

3. Instrum entos linguísticos e hiperlíngua


Como buscamos demonstrar na seção anterior, o conceito de instrumento
linguístico tem uma história no campo da História das Ideias Linguísticas. Essa história
não se estagna quando se dá o seu encontro com a Análise de Discurso materialista. Ao
contrário, esse conceito segue em movimento, em deslocamento contínuo em função das
condições outras em que passa a ser mobilizado pelos pesquisadores brasileiros16. Até
certo ponto, o mesmo pode ser dito a respeito da historicidade do conceito de hiperlíngua.
Nesta seção, como anunciamos na apresentação, perseguiremos nas formulações de
Auroux sobre instrumento linguístico e hiperlíngua a relação que se tece entre o que se
propõe como nacional e regional.
Como vimos, segundo Auroux, no instrumento linguístico se projeta uma
hiperlíngua. Agora, acrescentemos que, em A revolução tecnológica da gramatização, o
autor considera que a taxa de utilização desta, desde que significativa, é determinante para
que aquele modifique “a ecologia da comunicação” (AUROUX, 2009 [1992], p. 128).
Também nessa obra o conceito de hiperlíngua é mobilizado para se referir a “um conjunto
de indivíduos munidos de aptidões lingüísticas e mergulhados em um contexto social
e[m] uma parte do mundo” (ibid., p. 128). Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se
coloca que toda hiperlíngua “é por definição incomensurável”, coloca-se também que
“em relação à realidade da hiperlíngua a atividade de gramatização é sempre, pelo menos
em parte, uma atividade de redução” (ibid., p. 129).
Em “Língua e Hiperlíngua”, artigo publicado no Brasil em 1998, Auroux retoma
a questão da incomensurabilidade, reformulando-a ao associá-la ao que distingue como
língua empírica e língua gramatical. Diz o autor:

O conjunto das frases que permite construir uma gramática é uma língua
gramatical. Se nomeamos língua empírica o conjunto das frases efetivamente
pronunciadas por um grupo de seres humanos e seus descendentes, é possível
mostrar que língua gramatical e língua empírica são incomensuráveis
(AUROUX, 1998b, p. 18).

16 Não é nosso objetivo aqui percorrer todos os meandros dessa história ou de qualquer outra, porque, para
a perspectiva discursiva, a incompletude é constitutiva e, mesmo para a HIL, como pontua Auroux (2021)
toda (representação da) história é necessariamente parcial. É parcial porque algo sempre fica de fora, mas
também porque demanda tomada de posição, inscrição em uma memória. “O sentido pode sempre ser
outro”, nos ensina Orlandi (2007, p. 83). E nesta história dos conceitos da história das ideias linguísticas
não poderia ser diferente.

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Nesse artigo, o conceito de hiperlíngua, tomado então enquanto uma “hipótese


empirista” (ibid., p. 27), é reformulado passando a significar “um espaço-tempo
estruturado” em que “uma mesma rede de comunicação” é compartilhada por sujeitos
falantes que possuem diferentes competências, que podem ter acesso ou não a
instrumentos linguísticos e que estão inseridos em ambientes sociais, culturais e
comunicativos diversos. Essa reformulação parte, portanto, do pressuposto de que “as
línguas em si não existem”, a não ser nos sujeitos “envolvidos por um mundo e artefatos
técnicos, entre os quais figuram (por vezes) gramáticas e dicionários” (ibid., p. 19). Calca-
se ainda, como vimos na seção anterior, no princípio de que a língua que comparece nas
gramáticas é uma representação produzida pelos sujeitos da ciência. Apesar disso, a
relação entre hiperlíngua, língua empírica e língua gramatical ainda comparece aí de
forma um tanto nebulosa.
É com La raison, le langage et les normes (1998a), obra já mobilizada na seção
anterior, publicada na França no mesmo ano do artigo supracitado e ainda não traduzida
para o português brasileiro, que podemos avançar um pouco mais em direção a uma
possível compreensão dessa relação. Nessa obra, ao estabelecer a distinção entre língua
empírica e língua gramatical, o autor mobiliza duas hipóteses, a seu ver inconsistentes,
que, como demonstra, comparecem recorrentemente nos estudos linguístico-gramaticais,
ainda que por vezes com uma roupagem distinta. São elas as hipóteses da língua e do
cálculo (ou da sua calculabilidade). Esta, de acordo com Auroux (ibid., p. 98 - tradução
nossa), diz respeito à possibilidade, comumente considerada por exemplo do lugar da
gramática gerativa, de “todas as propriedades de todas as frases possíveis de uma língua
L” poderem ser “descritas (ou geradas) por um conjunto consistente de axiomas” . Já
aquela pressupõe que “a língua é um conjunto de representações comuns aos indivíduos”
a partir do qual se construiria “uma representação coletiva [...] estritamente dependente
de uma coerção biológica do tipo hereditária” (ibid., loc. cit. - tradução nossa).
Essas hipóteses, ao reduzirem “todas as atividades linguísticas a um cálculo” e ao
não considerarem “a conjectura sociológica, segundo a qual a linguagem é o que se passa
entre os indivíduos falantes, e não somente dentro da cabeça de cada um deles”,
sustentam-se na concepção, segundo o autor, de “uma língua única e homogênea,
interiorizada por todos” (ibid., p. 97-98 - tradução nossa). Para constituição de tal língua,
contribuiria, atribuindo-lhe consistência empírica, o processo de estandardização
empreendido pelos Estados nacionais por meio de mecanismos de coesão/coerção

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linguística, dentre os quais se destacam, entre outros, os objetos técnicos do campo dos
estudos da linguagem, como os dicionários e as gramáticas normativas ou tradicionais.
Sob essa perspectiva, uma língua gramatical concerne, portanto, a “toda língua
gerada por uma gramática” que, sendo definida pelos axiomas do cálculo e da língua,
constitui a “contraparte objetiva (real ou ideal) de uma gramática” (ibid., p. 103 - tradução
nossa) - daí mais adiante afirmar que as gramáticas se assemelham a “ ‘máquinas’ de
fabricar a língua ou ao menos a forma consensual aceita em uma dada época” (ibid., p.
264 - tradução nossa).
Expliquemos. Lembrando que, habitualmente, concebemos a gramática enquanto
a gramática de uma língua, como a gramática do francês, por exemplo, Auroux pontua
que, por vezes, ingenuamente tendemos a considerar “i. que a língua preexiste à
gramática” ; e “ii. que a gramática é a representação da língua” (ibid., p. 103 - tradução
nossa). Dessa relação especular, segundo o autor, decorre inclusive o reconhecimento da
validade da gramática, ou seja, será válida aquela em que é possível identificar o que é
comumente chamado de francês, no caso da gramática do francês.
Entretanto, há, conforme Auroux, uma outra forma de identificar uma língua. Esta
ocorre quando somos colocados diante de uma “realização empírica” (ibid., loc. cit.), seja
falada ou escrita, e reconhecemos como sendo manifestação de uma língua e não de outra.
É, pois, o conjunto não fechado de realizações empíricas possíveis que constitui o que o
autor designa como língua empírica. Dessa maneira, com essa conceituação, Auroux
afirma introduzir na definição de língua a sua temporalidade e os sujeitos falantes,
distanciando-se para tanto de uma concepção recursiva.
É nesse ínterim que entra em cena na obra francesa o conceito de hiperlíngua com
vistas a “admitir certa incomensurabilidade entre a língua empírica e a língua gramatical”,
sendo então ambas consideradas como “construções, elementos de nossa representação”
(ibid., p. 113 - tradução e itálico nossos). A partir dessa reconfiguração teórica, Auroux
levanta o seguinte questionamento: “o que existe em matéria de linguagem?” . E responde:

a língua empírica não tem existência autônoma (ou substancial, como diziam
antigamente os filósofos), ela existe nas manifestações sonoras ou escritas sem
poder ser a elas reduzidas, porque a característica de um enunciado linguístico
é justamente a de não ser simplesmente uma vibração do ar ambiente. Mas
apenas existe, em certas porções de espaço-tempo, nos sujeitos, dotados de
certas capacidades linguísticas ou ainda de “gramáticas” (não necessariamente
idênticas), cercados por um mundo de artefatos técnicos, entre os quais figuram
(por vezes) as gramáticas e os dicionários. Dito de outro modo, o espaço-
tempo, em relação à intercomunicação humana, não é vazio, ele dispõe de uma

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certa estrutura que lhe conferem os objetos e os sujeitos que o ocupam (ibid.,
p. 115 [tradução nossa]).

É, pois, esse espaço-tempo assim estruturado que Auroux designa como


hiperlíngua, ressaltando que introduzir um novo objeto nele muda a sua estrutura. Esse é,
por exemplo, o caso da gramática, visto que esta, enquanto objeto técnico, conforme o
autor, “contém um conjunto de hipóteses sobre a estrutura de uma certa hiperlíngua”
(ibid., loc. cit.).
Lembrando ainda que o mundo externo participa das construções do sentido,
Auroux convoca o princípio da “externalidade da referência” - princípio este segundo o
qual se admite que “os objetos de que fala a linguagem encontram-se no seu exterior”
(ibid., p. 118 [tradução nossa]). É nesse ponto que os processos de
colonização/descolonização, enquanto acontecimentos linguísticos (ORLANDI, 2009a),
fazem-se significar em sua reflexão. Observando que algumas expressões não têm o
mesmo sentido no Brasil e em Portugal, o autor afirma que o que mudou não foi a língua
gramatical, foi o mundo, “provocando uma mudança da hiperlíngua” (AUROUX, 1998a,
p. 118 - tradução nossa). Em seguida, ele continua:

A evolução da hiperlíngua não se marca necessariamente na estrutura abstrata


(geralmente morfossintática e fonológica), mínima e não dinâmica, que as
nossas gramáticas descrevem. Não chega necessariamente até a incompreensão
absoluta que corresponde às relações geradas pela longa passagem das proto-
línguas às suas descendentes distantes. Mas, quando se muda de natureza e se
constituem espaços novos para a comunicação, a vida e a história dos homens
(p.ex. quando se estende a hiperlíngua portuguesa, espanhola, francesa ou
inglesa a territórios americanos), produz-se uma nova estrutura local de
hiperlíngua, que se nota rapidamente nas diferentes estruturas discursivas
(ibid., p. 119 [tradução nossa]).

Esses sentidos também comparecem no artigo publicado no Brasil, com a


diferença de que Auroux nele mobiliza o conceito de gramatização17. Nesse ponto de sua
reflexão, assinalando que “a gramatização não deixa os espaços de comunicação
inalterados: ela produz instrumentos lingüísticos que figuram na hiperlíngua e modificam
sua estrutura”, (id., 1998b, p. 21), traz à baila a questão da língua nacional, citando como
exemplo a sua constituição no Brasil.

17 A gramatização é, segundo Auroux (2009 [1992], p. 65), “o processo que conduz a descrever e a
instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber
metalingüístico: a gramática e o dicionário”.

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Antes de continuarmos, devemos esclarecer que não nos interessa aqui explorar
os problemas epistemológicos ocasionados pela mobilização do conceito de hiperlíngua
em pesquisas desenvolvidas à luz da perspectiva discursiva da HIL. Isso já foi abordado
com propriedade por Zoppi-Fontana e Diniz (2008), com quem concordamos18. A nós,
interessa pensar especificamente a relação estabelecida entre instrumentos linguísticos e
o que neles se formula como nacional e regional e, para isso, impôs-se considerar também
a relação com o que Auroux nomeia como hiperlíngua.
Dito isto, seguimos nossa reflexão ainda debruçando-nos sobre o artigo de Auroux
supracitado. Nele, o autor relaciona a “questão da língua nacional” ao processo de
gramatização brasileiro da língua portuguesa, momento no qual se dá início à descrição
de modos de dizer em outro espaço-tempo (outra hiperlíngua) que não o europeu com o
desenvolvimento, notadamente a partir do século XVIII, de dicionários monolíngues e
“igualmente [de] dicionários de regionalismos” (ibid., p. 21), entre outros. Dicionários
monolíngues dizem da dimensão nacional da língua, mas em Auroux comparecem ao lado
dos dicionários ditos regionalistas. Esse comparecimento nos impôs as seguintes
questões: Como o nacional e o regional se articulam no espaço-tempo estruturado da
hiperlíngua? Como o regional afeta/é afetado pelo processo de gramatização?
Sobre isso, nada é dito nos textos de Auroux recortados para esta reflexão.
Embora, por ora, não nos interesse ir atrás do porquê dessas ausências com que nos
deparamos, fato é que elas são, em nosso percurso, significativas e nos levaram a
mobilizar na próxima seção teóricos brasileiros que, inscrevendo-se numa relação, não de
filiação, mas produtiva quanto às ideias de Auroux, se propuseram a refletir sobre o
processo de gramatização no/do Brasil, operacionalizando em suas análises o conceito de
instrumentos linguísticos e pensando-o no que toca aos processos de
colonização/descolonização.

4. Instrum entos linguísticos em outro espaço-tem po - a gram atização brasileira


A partir da perspectiva discursiva da HIL, Orlandi (2001), considerando a
gramatização brasileira da língua portuguesa, comenta a necessidade de considerar outras
materialidades, para além de gramáticas e dicionários, como instrumentos linguísticos nas
pesquisas desenvolvidas no Brasil. Segundo a autora, tais instrumentos “concorrem para
a formação do imaginário que sustenta a constituição da (unidade da) língua nacional”

18 Na nota 13, trouxemos rapidamente as ponderações dos autores. Aos leitores interessados, porém,
indicamos a leitura do artigo na íntegra.

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(ibid., p. 17), possibilitando implantar no Brasil a área de estudos de história da língua


nacional, a qual se relaciona com a história da sociedade, da ciência e, portanto, das ideias
linguísticas19.
Nessa linha, Orlandi e Guimarães (2001, p. 24) também afirmam que “a questão
da língua nacional está ligada aqui ao processo de gramatização brasileira do português
que é posto em curso a partir da segunda metade do século XIX” e que possibilitou ao
Brasil ter “seus próprios instrumentos lingüísticos de gramatização, diferentes dos de
Portugal” . Trata-se, assim, nos termos de Orlandi (2009a, p. 216)20, de uma
“gramatização feita de brasileiros por brasileiros”, um segundo passo no processo por ela
nomeado como de “historicização da língua de colonização” (ibid., p. 212). No tocante
especificamente à produção de gramáticas no século XIX, a autora afirma ser este um
momento de tomada de posição de autoria do gramático brasileiro frente à produção de
saber metalinguístico sobre a sua língua - saber este que já “não reflete apenas o saber
gramatical português” (ibid., loc. cit.), concorrendo, assim, para o processo de
descolonização linguística.
Por descolonização linguística, Orlandi concebe a produção de um imaginário que
se sustenta no “fato de que a língua faz sentido em relação a sujeitos não mais submetidos
a uma posição de poder que impõe uma língua a sujeitos de uma outra sociedade, de um
outro Estado, de uma outra nação” (ibid., p. 213). Assim, conclui a autora: “se, na
colonização, o lugar de memória pelo qual se significa a língua e seus falantes é Portugal,
no processo de descolonização essa posição se inverte, e o lugar de significação é desse
lado do Atlântico, com sua memória local” (ibid., loc. cit.).
Ainda em conformidade com a sua reflexão, tanto na colonização quanto na
descolonização, coloca-se em questão “a unidade necessária e a diversidade concreta em
um mesmo território” (ibid., p. 214). A diferença consistiria no fato de que, na
descolonização, há “um giro no regime de universalidade da língua portuguesa que passa
a ter a sua referência no Brasil” (ibid., p. 213) de modo que a diversidade concreta no
território brasileiro coloca em cena, em decorrência de nossa história de país colonizado,
a relação entre povos e línguas distintas de origem indígena, africana e europeia

19 Por ideias linguísticas, consideramos, com Costa (2023), os discursos sobre (meta)língua(gem). Tais
discursos, conforme Orlandi e Guimarães (2001, p. 32), colocam em circulação sentidos relacionados “à
definição da língua, à construção de um saber sobre a língua, à produção de instrumentos tecnológicos”.
20 Nesse texto, a autora, de um modo geral, retoma ideias que vem desenvolvendo em trabalhos dispersos
desde os anos 1990, fato que justifica o seu recorte em detrimento de outras textualidades em que também
se dedica à temática aqui abordada.

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(notadamente a portuguesa, mas também outras em decorrência das constantes migrações


no início do século XX). Dito de outro modo, é a diversidade concreta que estrutura o
espaço-tempo brasileiro (a sua hiperlíngua, diria Auroux) que possibilita a projeção da
distinção entre a língua do Brasil e a de Portugal.
Com isso, a autora traz a lume um outro efeito da gramatização ou, mais
especificamente da endogramatização, tal como formulada por Auroux (2009 [1992]),
enquanto processo de gramatização colocado em curso por falantes nativos de uma língua.
Diz ela:

A gramatização, ou melhor, a endogramatização [...] torna visível a


historicização da língua e pode ser considerada como um instrumento no
processo de descolonização, pois ter uma gramática que é sua (feita por
brasileiros para brasileiros) pode ser um documento de ‘identidade’ linguística
(ORLANDI, 2009a, p. 214).

A partir do processo de endogramatização em solo brasileiro, tem-se, então, três


movimentos imbricados e fundamentais para a descolonização e para a formação da
identidade linguística, da identidade nacional e da identidade do cidadão brasileiro. São
eles: 1. a produção de um saber sobre a língua por gramáticos brasileiros (a gramática);
2. a estabilização/estandardização da língua (escrita) do Brasil cuja unidade constitui uma
das formas de materialização da unidade do Estado brasileiro; e 3. a legitimação do gesto
de apropriação dessa língua por brasileiros, o que implica a constituição de um sujeito
nacional cujo saber se torna visível na/pela gramática. Por esses motivos, ser autor de
gramática no século XIX era, segundo Orlandi (ibid., p. 217), “ter o lugar de
responsabilidade enquanto intelectual e uma posição de autoridade em relação à
singularidade do português do Brasil” .
Paralelamente, fez-se necessário que a diversidade concreta, reivindicada como
elemento de distinção em relação à língua de Portugal, fosse, no âmbito nacional, para
garantia do imaginário de unidade linguística, silenciada, domesticada, controlada ou,
ainda, como dizem Pêcheux e Gadet (2009 [1981]) no excerto em epígrafe, absorvida,
anulada.
Essa situação, todavia, se modifica no século XX quando o Estado brasileiro já se
encontra constituído e a diferença em relação a Portugal se torna uma evidência, tanto
interna quanto externamente. Contribuem para essa modificação ainda dois
acontecimentos: a institucionalização da chamada Linguística moderna nas Faculdades
de Letras a partir da década de 1940 e a implementação, por meio de decreto ministerial,

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da Nomenclatura Gramatical Brasileira em 1959. A essa época, o lugar de autoria do saber


linguístico é deslocado para o do linguista, cabendo, então, ao gramático a “função de
guardião da norma gramatical” (ORLANDI, 2009a, p. 219).
Há, desse modo, para Orlandi, o esquecimento do processo de gramatização
perpetrado no século XIX, “que nos garantiu uma língua legítima institucionalmente, [...]
como língua nacional, oficial” . Com esse esquecimento, acontece também, segundo a
autora, um deslizamento ideológico que impõe um imaginário de necessidade, “sobretudo
nas escolas, [...] da preservação da pureza da língua” . E mais: determinado pela
ambiguidade da ideologia da colonização, esse deslizamento por vezes coloca em
circulação sentidos em que o que se toma por “língua verdadeira, pura, é ainda a língua
portuguesa de Portugal”, sendo o brasileiro “um português mal falado” (ibid., loc. cit.).
Assim é que, como pontuam Orlandi e Guimarães (2001, p. 33), “a gramatização
brasileira dividida entre o específico brasileiro e o modelo português chega ao final do
século XX afirmando - no nível da política linguística oficial - que malgrado séculos de
mudanças e de diferenciação há unidade entre Brasil e Portugal” .
É, portanto, considerando essa ambivalente relação entre unidade e diversidade
que os autores aproximam o conceito de hiperlíngua, de Auroux, do conceito de língua
fluida, tal como formulado por Orlandi e Souza (1988). Breve, o conceito de língua fluida
opõe-se na teorização das autoras ao de língua imaginária. Enquanto este conceito diz
respeito aos “objetos-ficção” (ibid., p. 28) sistematizados pelos sujeitos da ciência, como
os gramáticos e os linguistas, em seus gestos de descrição, instrumentação, aproximando-
se da noção de língua gramatical de Auroux; aquele refere-se à língua que não se permite
(a)pre(e)nder, conter “no arcabouço de sistemas e fórmulas” (id., ibid., p. 34), mas que
pode ser observada e reconhecida quando focalizados os processos discursivos “através
da história da constituição de formas e sentidos (id., ibid., loc. cit.). Desse modo,
compreendendo hiperlíngua como “espaço de circulação”, Orlandi e Guimarães (2001, p.
34) dizem ressaltar, ao aproximá-la do conceito de língua fluida, “a historicidade presente
nesta noção” de Auroux, afirmando ainda introduzir “a dimensão discursiva (não da
língua mas na língua)” .
Logo, devido às diferentes formas de materialização da ambivalência ao longo de
nossa história entre a unidade da língua imaginária do Brasil construída e garantida
pela/na gramática e a diversidade constitutiva da língua fluida, asseveram, então, os
autores “que a constituição da língua nacional no Brasil é o produto da história
contraditória da gramatização brasileira” . Isso significa considerar, noutras palavras, que

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“a gramatização de uma língua é uma parte da história desta língua”, donde a conclusão
de que “as tecnologias lingüísticas não são somente os produtos de um saber”, mas
também “contribuem para a constituição dos fatos da língua” (ibid., loc. cit.).
Voltemos às inquietações compartilhadas no final da seção anterior e que nos
movem nesse percurso de leitura. Com Orlandi (2009a) e Orlandi e Guimarães (2001),
vimos como unidade e diversidade se relacionam, no espaço-tempo brasileiro, em um
processo de gramatização/endogramatização cujo efeito é a projeção de uma língua
imaginária que passa a equivaler à língua nacional brasileira. Ocorre que, nesse processo,
há também instrumentos linguísticos que se voltam não para a dimensão nacional, mas
para uma dimensão regional da língua do Brasil ou ainda para uma parte dessa língua.
Nesses casos, como pensar a relação entre unidade e diversidade ou, ainda, entre língua
fluida e língua imaginária? Nosso incômodo persiste e sobre ele continuaremos a nos
debruçar nas próximas seções, agora tomando como objeto de análise três instrumentos
linguísticos aqui, como dito, concebidos enquanto materialidades significantes.

5. As obras de Said Ali e Nascentes como instrum entos linguísticos


Como anunciamos, consideramos as materialidades aqui recortadas para análise
como instrumentos linguísticos decorrentes do processo de gramatização realizado por
brasileiros para brasileiros. Mais especificamente, as tomamos como gramáticas, ainda
que esse nome não compareça no título de O Linguajar Carioca, de Antenor Nascentes,
o que por si só já se constitui como um ponto que convoca a nossa reflexão. Assim como
Petri (2012, p. 29), entendemos que a necessidade de ampliação do conceito de
instrumentos linguísticos instaurada em solo brasileiro acarreta também a inclusão21 do
que se propõe como regional. E isso porque, pensando especificamente dicionários de
regionalismos, segundo a autora, em tais instrumentos se estabelecem igualmente
“relações entre os sujeitos e o saber, via a discursividade que lhe é constitutiva” (ibid., p.
29).
Ademais, assim como nas gramáticas predicadas como histórica e secundária de
Said Ali, comparecem, no livrinho com cerca de 200 páginas de Nascentes, os três
elementos que compõem uma gramática de acordo com a reflexão de Auroux (2009

21 O termo inclusão remete às ausências observadas nas textualidades filiadas ao nome de Auroux e postas
em circulação no Brasil e na França mais ou menos na mesma época em que teóricos brasileiros se
dedicavam à reflexão sobre o processo de gramatização no/do Brasil tendo em vista a sua relação
incontornável, como podemos depreender a partir de Orlandi (2001) e Orlandi e Guimarães (2001), com os
processos de colonização/descolonização.

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[1992], p. 66), a saber: “categorização das unidades”, “exemplos” e “regras mais ou


menos explícitas para construir enunciados” . Ele também contempla o “conteúdo
relativamente estável” (ibid., loc. cit.) que comumente se faz presente, segundo o filósofo
francês, em gramáticas, dividindo-se a edição aqui analisada em: Prefácio; Prefácio da
primeira edição; O falar brasileiro; Posição do linguajar carioca no conjunto do falar
brasileiro; Fonética; Morfologia; Sintaxe; Léxico; e Vocabulário.
Sendo assim, impõe-se, pois, a pergunta: por que se diz gramática da língua
portuguesa, mas não se diz gramática do linguajar carioca? E mais: por que, em Said
Ali, diz-se sobre língua e, em Nascentes, sobre linguajar? Como língua e linguajar
significam nessas materialidades? Ainda: se um gramático produz gramáticas, em que
lugar de autoria Nascentes se inscreve/é inscrito ao dizer (gramaticalmente) sobre o que
nomeia como “linguajar carioca” numa materialidade não nomeada como gramática e que
também conta com um capítulo intitulado “Vocabulário”? Considerando também com
Orlandi e Guimarães (2001, p. 93) que os “modos de tratar a diferenciação lingüística
espelham teorias sobre a língua”, a que teoria(s) se filiam Said Ali e Nascentes ao se
projetarem como autores nas materialidades em questão e como, a partir dessa filiação,
língua portuguesa, falar brasileiro e linguajar carioca significam? Essas são algumas
questões que se impuseram ao nosso olhar, mas que, embora tenham passado a constituí-
lo, não necessariamente serão respondidas aqui. Aquelas, porém, que não forem
respondidas em função do espaço deste artigo, deixamos registradas como acenos para
movimentos futuros de análise.
Também como já pontuado, as três materialidades sobre as quais nos debruçamos
foram postas em circulação no Brasil na segunda década do século XX - antes, portanto,
das modificações no tocante à autoria do saber metalinguístico serem colocadas em curso
e no final de um período em que, segundo Guimarães (2004, p. 28), embora tenha se
tornado possível falar de um português do Brasil, ainda se observavam “posições puristas
e de unidade da língua em Portugal e no Brasil” . Para o autor, contudo, tanto as gramáticas
de Said Ali quanto os estudos dialetológicos desenvolvidos na década de 1920, nos quais
inclui o trabalho de Nascentes, se situam em um “ponto de inflexão no qual se desloca da
“língua nacional para a língua [que língua?] objeto dos estudos de linguagem no Brasil”
(ibid., p. 31).
Como vimos, o processo de gramatização brasileiro que tem como efeito, por um
lado, a distinção em relação à língua de Portugal e, por outro, a unificação da língua do
Brasil se dá a partir do jogo ambivalente entre unidade e diversidade. Tanto em Auroux

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(1998a; 1998b), como em Orlandi (2009a) e Orlandi e Guimarães (2001), o processo de


gramatização/endogramatização é colocado como um dos fatores que promovem a
unidade linguística e, portanto, a constituição da chamada língua nacional. Orlandi
(2009a, p. 212) afirma inclusive que é a normatização da língua por meio de instrumentos
linguísticos “que nos leva à necessidade de desmembrar, classificar, nomear distintos
estados de língua: língua materna, língua nacional, língua oficial” . E a(s) língua(s)
regional(is)?, perguntamos.
Pensando as nossas materialidades de análise e considerando a não transparência
da linguagem, também questionamos como essa relação ambivalente entre unidade e
diversidade nelas se inscreve. De imediato, a leitura dos títulos e dos índices colocou para
nós uma tensão entre o que é posto como nacional (a língua portuguesa, o falar brasileiro)
e regional (o linguajar carioca) a qual se manteve ao percorrermos os prólogos, prefácios
e capítulos iniciais. Essa relação que, como vimos, só comparece de forma lateral nos
textos aqui mobilizados de Auroux, é tematizada de forma aprofundada por Orlandi e
Guimarães e outros teóricos filiados à perspectiva discursiva da HIL. No entanto, em
nosso gesto de leitura, interessa compreender especificamente como tal relação se faz
significar em textualidades que recortam como objeto dimensões distintas da língua.
No prólogo da GS, de Said Ali, lemos, por exemplo, que “Tem o presente
compêndio por objecto expôr as doutrinas e regras grammaticaes relativas á nossa língua”
(GS, 1964 [192?], n. p.), em que o sintagma “a nossa língua” reescreve o nome “língua
portuguesa” presente no título, colocando-nos diante da inevitável pergunta: quem está
incluído no pronome possessivo de primeira pessoa do plural nossa?
Em sua gramática histórica, já no primeiro parágrafo do prólogo, observamos
regularidade no que toca à nomeação da língua tomada como objeto por meio da retomada
de “língua portuguesa” por “português” ou ainda por “português histórico” (GH, 1931
[1921-7]). Na GH, assim como na GS, essa língua de que se diz também não é
determinada pelo espaço de enunciação em que é posta a funcionar e, diferentemente
daquela, não apresenta nenhum especificativo que coloque em cena, ainda que pela
indeterminação, o sujeito falante, como ocorre com o pronome nossa.
Já no prefácio à 1a edição da obra de Nascentes, o sintagma “o linguajar carioca”
presente no título é parafraseado por “as alterações sofridas no Brasil pela língua
portuguesa” (LC, 1953 [1922], n. p.). Ou seja, diferentemente do que observamos nas
gramáticas de Said Ali, é o espaço-tempo brasileiro que está em jogo aqui. Além disso,
lembremos que, nessa obra, há, como vimos, um capítulo intitulado “O falar brasileiro” e

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outro intitulado “Posição do linguajar carioca no conjunto do falar brasileiro” . No


primeiro, afirma-se que, com o “descobrimento” em 1500, a língua portuguesa foi
transplantada para o Brasil onde “sofreu grandes alterações porque teve de ser aprendida
por homens de duas raças que falavam línguas de estrutura inteiramente diversa do tipo
flexional” (ibid., p. 11) e estabelece-se como objeto de estudo a distinção de variação
“entre a língua do Brasil e a de sua antiga metrópole” (ibid., p. 12), notadamente a
chamada “língua do povo” em detrimento da dita “língua das classes cultas” . Os motivos
formulados para justificar esse recorte são: 1) porque esta “é correta” e 2) “porque lhe
falta a naturalidade, a espontaneidade da língua popular” (ibid., p. 14). Em virtude disso,
estabelece-se, então, como objetivo, em relação à chamada língua do povo, “ver os erros,
tentar explicar a razão de ser deles, do mesmo modo por que o medico estuda a etiologia
das moléstias” (ibid., loc. cit.).
Note-se, primeiramente, que, no eixo parafrástico a partir do qual o falar
brasileiro é significado, colocam-se sentidos que dizem da sua origem (língua
portuguesa) e pertinência/abrangência territorial (língua do Brasil - também é dito em
outro momento português brasileiro). Em seguida, um terceiro recorte se coloca fazendo
significar uma divisão social: a língua do Brasil, em sua distinção em relação à língua da
antiga metrópole, é constituída tanto pela língua das classes cultas, à qual se associa um
imaginário de correção, quanto pela língua do povo, à qual se associa um imaginário de
incorreção (erros) e, numa metáfora que mobiliza o discurso médico, de patologia
(moléstias). É essa língua, também predicada como popular, que é posta como objeto do
gesto de descrição de um sujeito que diz do lugar da dialectologia, o que nos permite
também ler língua do povo como paráfrase de linguajar carioca . É importante observar,
todavia, que, tal como anuncia o título do capítulo seguinte, o linguajar carioca é tomado
como parte do falar brasileiro e que, portanto, a divisão entre sujeitos que se estabelece,
nesse recorte social, atinge a ambos, isto é, ao linguajar carioca e, por extensão, ao falar
brasileiro.
O capítulo posterior é aberto com a seguinte afirmação: “O falar brasileiro, apesar
de sua relativa uniformidade, apresenta variações bem características” (ibid., p. 18). Tais
variações são justificadas, no caso do Brasil, em função da “enorme extensão territorial
sem fáceis comunicações interiores” que “quebrou a unidade do falar, fragmentando-o
em subfalares” . Ou seja, se antes o que dividia o falar brasileiro era tão somente um
recorte social, agora essa divisão passa a ser colocada também em função de um recorte
geográfico. Assim, o Rio de Janeiro insere-se, conforme a proposta do autor de

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delimitação de seis zonas de subfalares do que formula como falar brasileiro, ao lado de
Espírito Santo, Sul de Minas e Distrito Federal, no chamado subfalar fluminense, sendo,
portanto, o linguajar carioca significado como “uma variedade” desse subfalar (ibid., p.
26), isto é, como uma subparte regional (variedade ou linguajar do Rio de Janeiro) de uma
parte regional (subfalar fluminense) de um todo nacional (o “falar brasileiro”).
Para pensar essa tensão entre unidade e diversidade no tocante ao que se projeta
como nacional e regional nas obras de Said Ali e Nascentes, retomamos o conceito de
dimensões discursivas da linguagem formulado por Payer (2006, p. 107), considerando,
então, língua nacional e língua regional como duas dimensões que “não são autoevidentes
nem semelhantes em quaisquer circunstâncias históricas” e que colocam em cena
diferentes modos de relação entre línguas, sujeitos e memória. Nesse sentido,
consideramos que, nas gramáticas de Said Ali, é a dimensão nacional da língua em sua
unidade imaginária que é posta como objeto, mesmo que, dada a ambivalência da relação
com Portugal, nem sempre a relação com o Brasil possa/deva comparecer de forma
marcada. Na gramática de Nascentes, por seu turno, a dimensão objetificada é a dimensão
regional, notadamente a da região do Estado do Rio de Janeiro, ainda que por vezes, para
dizer desta, imponha-se também dizer da dimensão nacional. Sobre essa dimensão
regional, como visto, diz-se ainda que se irá fazer um recorte social específico, tomando
como objeto a chamada “língua do povo” .
Por isso, retomamos ainda as reflexões de Medeiros e Petri (2013) quanto ao que
propõem como partição da língua para então tentar continuar uma conversa sobre a
relação entre o nacional e o regional em instrumentos linguísticos produzidos por
brasileiros para brasileiros, nos quais, como observam, comparece “uma língua partida,
uma língua que se parte [em partes]” (ibid., p. 63). Debruçando-se, dentre outras
materialidades, sobre o capítulo “Vocabulário” da obra de Nascentes aqui tomada como
objeto, as autoras afirmam que as partições da língua “podem funcionar, por um lado,
como metonímias do nacional - na medida em que é posto como parte da língua; por
outro lado, podem ser, contraditoriamente, excluídas do nacional por serem muitas vezes
significadas como desvio, incorreção, vício, patologia [...]” (ibid., p. 45), configurando-
se este último, a seu ver, como o caso do capítulo analisado da obra de Nascentes. Tal
funcionamento parece, porém, a princípio, contradizer o que se diz no capítulo “Posição
do linguajar carioca no conjunto do falar brasileiro”, no qual, como pontuamos, tal
linguajar é significado como uma subparte de uma parte regional do todo nacional.
Dizemos a princípio porque, como vimos, no capítulo “O falar brasileiro”, os usos

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próprios da chamada “língua do povo” são significados como “erros”, “moléstias”, o que
nos leva a perguntar: funcionaria em Nascentes o linguajar carioca como uma metonímia
ou como um antônimo do falar brasileiro? É, pois, o caso de continuar investigando e de
verificar se o funcionamento descrito pelas autoras é observado em outros capítulos da
obra.
Para concluir esta seção, cabe lembrar o que pontuam Medeiros e Petri sobre a
relação entre língua e sujeito. Dizem as autoras que “tratar da língua e das tensões que
nela e por ela se instalam é também tratar da questão do sujeito” (ibid., p. 48). Com isso,
deslocam a ideia de um “ sujeito brasileiro” universal para, então, ressaltar a necessidade
de pensar o lugar em instrumentos linguísticos desse sujeito que, tal como a língua,
também não é uno. Aceitando essa sugestão, estabelecemos, como exporemos no próximo
momento, como um primeiro recorte analítico do corpo das gramáticas de Said Ali e
Nascentes a relação entre línguas e sujeitos no/do Brasil.

6. Línguas e sujeitos em instrum entos linguísticos de brasileiros p a ra brasileiros22


Considerando que as gramáticas de Said Ali e Nascentes, enquanto instrumentos
linguísticos, se inscrevem no momento que Orlandi (2009a) formulou como de
descolonização linguística e buscando compreender a tensão observada na seção anterior,
as percorremos a fim de recortar sequências discursivas (SDs) em que se inscrevessem
sentidos acerca da constituição da(s) língua(s) e do(s) sujeito(s) no/do Brasil tendo em
vista o fato discursivo da colonização (MARIANI, 2004).
Para tanto, selecionamos, de Said Ali, os capítulos “Vícios da Linguagem”, da
GS, e “História resumida da Língua Portuguesa”, da GH, e, de Nascentes, além do
capítulo “O falar brasileiro”, já mobilizado na seção anterior, o capítulo intitulado
“Léxico” . Em seguida, buscamos, no corpus então constituído, menções a povos e línguas
indígenas e africanos e, então, recortamos quatro SDs, duas de cada autor.
Na GS de Said Ali, não há menção a povos ou línguas africanos. Em relação a
povos ou línguas indígenas, somente encontramos tal comparecimento na seção referente
a neologismos, em que lemos:

22 Uma primeira versão da análise aqui empreendida foi apresentada em formato de pôster no XIII
Seminário dos Alunos de Pós-Graduação em Letras da UERJ, realizado na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, em 23 de novembro de 2022, por Bruna Alves Goulart, Giulia Nascimento de Mello e Gabrielly
Azalim Braz, sob o seguinte título: “Efeitos da Colonização Linguística em Said Ali e Antenor Nascentes”.

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SD1: N eo lo g ism o é o contrario do archaismo, é a expressão ou palavra nova, quer formada com os recursos
proprios do idioma, quer tirada de idioma estrangeiro. O neologismo indigena produz-se em geral por
analogia de outros vocabulos segundo os processos de derivação e composição. [...] Ao neologismo tomado
de outra lingua dá-se o nome de e str a n g e ir ism o [...]. A adopção de estrangeirismos fez-se em todas as
épocas, sempre que no vocabulário da lingua não se encontrava termo perfeitamente adequado ao conceito
novo. Assim o portuguez antigo adoptou grande numero de vocábulos arabes, e os escriptores quinhentistas
se utilisaram de muitas denominações asiaticas e brasilicas.” (ALI, 1964 [192?], p. 308-309 [negrito do
autor; grifo nosso]).

Já na GH encontramos o reconhecimento de que houve um:

SD2: “enriquecimento do vocabulario portuguez, de um lado com termos asiaticos e africanos, de outro
lado com expressões das linguas brasilicas” (ALI, 1931 [1921-7], p. 4-5 [grifo nosso]).

É importante esclarecer, primeiramente, que tomamos aqui línguas brasílicas


como paráfrase de línguas indígenas, visto que esse é, conforme Mariani (2004), um
termo que comparece em relatos de viajantes e de missionários jesuítas para se referir às
línguas dos povos originários da então colônia. Dito isto, quatro pontos das SD1 e 2
merecem destaque, quais sejam:
1) o apagamento dos sujeitos/línguas africanas na GS (SD1) - uma gramática que
se propõe a abordar a língua a ser ensinada na instituição escolar a partir de uma
perspectiva dita sincrônica - e o seu comparecimento metonímico na GH (SD2) - uma
gramática que, a priori, olha para a língua a partir de uma perspectiva diacrônica23 - como
“termos”, ao lado de “expressões de línguas brasílicas”;
2) o comparecimento na GS (SD1) do elemento indígena, em um capítulo
intitulado “Vícios da Linguagem”, como "neologismo estrangeiro" e, na GH (SD2), como
“enriquecimento” do nível lexical;
3) a tensão entre o que, na GS (SD1), é tomado como novo (os neologismos
indígenas) e como antigo na língua (já que as “denominações brasílicas” foram utilizadas
por “escritores quinhentistas”); e como antigo na GH (SD2) quando confrontada com a
GS (já que tanto os “termos africanos” quanto as “expressões das línguas brasílicas” são
abordados a partir de uma perspectiva dita histórica); e
4) a contradição entre o que é posto como nativo (próprio do espaço de enunciação
brasileiro) e o que é posto como estrangeiro. O primeiro se faz significar no radical do
adjetivo “brasílicas” que determina “denominações” e “línguas”, respectivamente, na GS

23 Dizemos a priori porque, como explica Costa (2021), a caracterização da abordagem empreendida na
GH como diacrônica é polêmica na história do conhecimento linguístico-gramatical no/do Brasil.

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(SD1) e na GH (SD2). Já o segundo se presentifica, na GS (SD1), por meio da retomada


de neologismo como estrangeirismo e na oposição entre os escritores quinhentistas
[portugueses] e as denominações brasílicas [i.e., dos brasílicos], e, na GH (SD2), pela
significação das línguas brasílicas, ao lado das asiáticas e das africanas, como línguas que
enriquecem o “vocabulário português” .
Esse procedimento de descrição observado na GH configura aquilo que
Guimarães (2007) formulou como “movimento de fora para dentro”, isto é, das línguas
postas como estrangeiras (as línguas indígenas) para a língua nacional (a língua
portuguesa). Assim, embora, segundo o autor, Said Ali não se inscreva numa posição
purista, haja vista que concebe empréstimos lexicais como enriquecimento, a língua
tomada como referência em seu dizer é a portuguesa, e não as línguas nativas do espaço
enunciativo brasileiro. Essa referência é mantida mesmo quando o movimento é de
“dentro para fora” (GUIMARÃES, 2007), como ocorre na GS, na qual se diz,
primeiramente, sem se especificar o agente, que “A adopção de estrangeirismos [por ?]
fez-se em todas as épocas”, construção essa que, em seguida, é retomada por “o portuguez
antigo adoptou grande numero de vocábulos” .
Em LC, de Antenor Nascentes, a diversidade linguística concreta também se faz
significar, produzindo ressonâncias na narrativa sobre o (des)encontro entre povos e
línguas distintos, como lemos na SD3, recortada de “O falar brasileiro”, e na SD4,
recortada de “Léxico” :

SD3: Desde meados, pois, do seculo XVI, colonos portugueses, indios, africanos, seus descendentes puros
ou mestiçados, começaram, cada qual a seu jeito, a modificar a língua portuguesa e mais tarde as
modificações por eles introduzidas vieram a constituir o falar brasileiro (NASCENTES, 1953 [1922], p. 10
[grifo nosso]).

SD4: A principal característica do léxico carioca é, se assim nos podemos exprimir, o seu cosmopolitismo.
Com efeito, capital e mais importante cidade do Brasil, o Rio de Janeiro exerce sôbre o resto do pais uma
força centrípeta que acarreta para o vocabulário carioca termos oriundos de todos os Estados.
Ao lado desta força existe a contraria, que espalha pelo país inteiro os neologismos cariocas, como se deu
com o verbo avacalhar e com a palavraparedro, por exemplo.
O vocabulário carioca, ao lado dos elementos portugueses, tupis e africanos, comuns a todo o Brasil, contem
elementos estaduais e elementos proprios. [...]
A incorporação imediata pode ser mais bem apreciada. Vejamos, por exemplo, o que se deu com a palavra
urucubaca. Esta palavra, apesar conhecida de grande numero de cariocas que mantêm relações com pessoas
do norte, era ignorada de muita gente. Uma circunstancia eventual (a cantiga Ó Filomena) deu-lhe uma
aplicação que a impôs à generalidade da população e assim incorporou-se ela imediatamente ao léxico
carioca (ibid., p. 181-182 [grifos nossos]).

Na SD3, comparecem sentidos que apontam, ao mesmo tempo, para uma


constituição igualitária do falar brasileiro pelos três povos (portugueses, índios e

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africanos) e para uma relação assimétrica de poder, pois o SN destacado tem um


funcionamento polissêmico, como podemos observar a seguir:

SN 1 = [colon os [portugueses], indios, africanos, seus descen dentes [puros ou m estiçados]]


N do S N SM
vaaaaaaa A
N do S N N do S N N do S N SAdi
WWWVkA

C olon o = aquele que em igra para povoar e/ou explorar um a terra estranha

SN 2 = [colon os [portugueses, ín dios, africanos,] seus descendentes [puros ou m estiçados]]


N do S N SM N do S N SAdi
C olon o = aquele que habita um a colônia; m em bro de um a colônia

No Grande Dicionário Houaiss (on-line) temos três definições para o verbete


colono. Dessas, interessam-nos as duas primeiras por nelas comparecem sentidos que
ressoam na SD em análise. São eles: 1. “aquele que habita uma colônia; membro de uma
colônia e 2. “aquele que emigra para povoar e/ou explorar uma terra estranha” .
Enquanto os três povos se enquadrariam no primeiro sentido de colono, a injunção
histórica impõe que somente os portugueses possam ser identificados ao segundo. Há, em
decorrência disso, também mais de uma forma de apreender a relação estabelecida entre
os termos no interior do SN. Para o primeiro sentido de colono (SN1), temos apenas dois
núcleos possíveis: “colonos” - que é determinado pelos adjetivos “portugueses, indios,
africanos” - e "descendentes" - que é determinado pelos adjetivos "puros ou mestiços".
Já para o segundo sentido de colono (SN2), temos quatro núcleos: “colono” - que
é determinado pelo adjetivo “portugueses” - “indios”, “africanos” e “descendentes” - que
continua determinado pelos adjetivos “puros ou mestiços” . A despeito disso, o
comparecimento do nome da língua do colonizador (língua portuguesa), ao lado do
silenciamento das demais línguas, e o apagamento da violência constitutiva do processo
de colonização e, portanto, da história da nossa língua sugerem a predominância da
primeira leitura, em detrimento da segunda.
Note-se ainda que, diferentemente do que comparece nos recortes desse mesmo
capítulo analisados na seção anterior, também aos portugueses, ao lado dos índios,
africanos e seus descendentes, é atribuída na SD3 a responsabilidade de modificar no solo
brasileiro a língua portuguesa. Note-se também que as modificações por esses sujeitos
produzidas é o que se diz constituir em um tempo posterior o chamado falar brasileiro.
Este é, portanto, concebido como uma alteração da língua portuguesa, reiterando assim
sentidos que, como vimos, comparecem desde o prefácio da 1a edição. Sabemos, então, o

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papel atribuído aos sujeitos europeus - ainda que por vezes a sua participação como
agente de mudanças linguísticas seja silenciada - e à sua língua. Sabemos também o papel
atribuído aos sujeitos não europeus, mas nada se disse até então sobre as suas línguas ou
sobre como elas participam da constituição daquilo que se nomeia como falar brasileiro
e, mais especificamente, do chamado linguajar carioca.
Na SD4, ao se dizer sobre o léxico ou vocabulário carioca, diz-se da sua
heterogeneidade constitutiva. Ele é composto, assim como o vocabulário dos demais
subfalares brasileiros, por elementos portugueses, tupis e africanos, mas também
estaduais, i.e, advindos de outros Estados, e próprios. Ao que perguntamos: em que
consistiriam esses elementos ditos estaduais e próprios?
Como exemplos de neologismos cariocas que se espraiaram por todo o país,
citam-se avacalhar e paredro. O primeiro é um verbo formado, segundo o Grande
Dicionário Houais (on-line), no início do século XX, por parassíntese a partir do
acréscimo do prefixo a- e do sufixo -alhar, ambos portugueses, ao radical do substantivo
vaca, palavra também portuguesa de origem latina (vacca, ae). O segundo, de acordo com
o mesmo dicionário, tem origem grega, mas foi incorporado ao léxico da língua
portuguesa via latim (paredros ou parêdros,i) no início do século XVIII.
Já como exemplo de neologismo advindo de outro Estado que, após generalizar-
se, foi incorporado ao léxico carioca, cita-se o termo urucubaca. Este, segundo o Houais
(on-line), teria possivelmente se formado, no século XIX, por hipértese dos fonemas
consonantais da terceira e da quarta sílaba de *urubucaca, palavra derivada do
substantivo urubu, que é de origem tupi.
Assim, um olhar atento aos exemplos elencados para ilustrar o que se formula
como elementos estaduais e próprios nos possibilita observar que: 1. os elementos
tomados como próprios do chamado linguajar carioca que se estenderam para outros
subfalares do falar brasileiro são elementos da língua portuguesa oriundos do latim ou,
indiretamente, do grego; e 2. que o elemento posto como oriundo de outro estado filia-se
a uma língua indígena. Note-se ainda que, contemporaneamente, os três itens mobilizados
como exemplos são considerados como pertencentes ao léxico da língua portuguesa,
comparecendo, como apontado, no Grande Dicionário Houaiss.
Desse modo, o apagamento dessa historicidade pode ser tomado como uma forma
de deslocamento dos lugares de memória a partir dos quais a língua do Brasil e os seus
falantes são significados. No primeiro caso, tem-se uma ruptura com Portugal por meio
do silenciamento da relação com a língua portuguesa e do alçamento do linguajar carioca

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ao lugar de origem. No segundo caso, por sua vez, põe-se em silêncio a relação com as
línguas indígenas alçando outros Estados brasileiros ao lugar de origem e inscrevendo as
línguas e os sujeitos indígenas, assim como os europeus, em um outro espaço-tempo que
não o brasileiro.
Além disso, a organização sintática do período “O vocabulário carioca, ao lado
dos elementos portugueses, tupis e africanos, comuns a todo o Brasil, contem elementos
estaduais e elementos próprios” diz-nos da divisão estabelecida entre elementos
portugueses, indígenas e africanos e entre eles e aqueles que são colocados como
estaduais e próprios. Notemos que “ao lado dos elementos portugueses, tupis e africanos,
comuns a todo o Brasil” é formulado como um termo acessório encaixado entre o sujeito
e o predicado de “O vocabulário carioca contem elementos estaduais e elementos
próprios”. No termo acessório, há entre portugueses, tupis e africanos uma coordenação
que, a princípio, poderia fazer supor igualdade, mas cuja ordem coloca em cena uma
hierarquização. Sintoma disso é, por exemplo, o fato de, nesse capítulo, não termos
encontrado exemplos que remetessem a línguas africanas ou que nos permitissem
observar ressonâncias dessas línguas. A esses elementos, sobrepõem-se, contudo, os que
são predicados como estaduais e próprios, isto é, aqueles que, do lugar de que fala o
estudioso da linguagem, entende-se como a marca de distinção do nacional (o falar
brasileiro) e que comparecem no lugar de termos integrantes da oração. Notemos ainda
que mesmo os elementos ditos portugueses, tupis e africanos são concebidos em relação
ao nacional, já que se diz serem “comuns a todo o Brasil” .
Por último, cabe salientar que os silenciamentos operados contribuem para a
projeção de um imaginário de hierarquização também na dimensão nacional entre os
subfalares (as partes) que constituem o falar brasileiro, no qual tem lugar de destaque o
que se nomeia como linguajar carioca (dimensão regional) por ser ele tomado como o
subfalar da “capital e mais importante cidade do Brasil, o Rio de Janeiro” . Ou seja, apesar
de inicialmente se anunciar que se tomará como objeto a língua do povo tida como errada,
o linguajar carioca, pelo menos no que respeita ao capítulo intitulado “Léxico”, é
significado como cosmopolita e como o subfalar mais importante do falar brasileiro, um
subfalar que tanto recebe “termos oriundos de outros estados” (força centrípeta) como
também “espalha pelo país inteiro” os seus elementos próprios (força centrífuga),
constituindo-se, por isso, como o pilar de sustentação da unidade imaginária da língua

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Instrumentos Linguísticos
341

nacional24. Com isso, no que respeita aos chamados empréstimos linguísticos ou


neologismos, instaura-se ainda uma relação distinta daquela que vimos, com Guimarães
(2007), a partir da análise das gramáticas de Said Ali, já que não estão mais em jogo nesse
imaginário os movimentos de dentro para fora ou de fora para dentro da dimensão
nacional, mas sim o movimento de dentro para dentro (do Rio de Janeiro para outros
Estados e de outros Estados para o Rio de Janeiro).
Noutras palavras, o que a análise demonstrou é que dizer da dimensão regional
(do linguajar carioca) é, em Nascentes, dizer da dimensão nacional (do falar brasileiro),
isto é, dizer da sua parte posta como mais importante - porque transregional - é também
dizer do todo. Assim, dado esse seu caráter transregional, o linguajar carioca parece
funcionar não apenas como uma metonímia, mas como uma metáfora do falar brasileiro.

Considerações finais
Neste artigo, buscamos, primeiramente, refletir sobre a historicidade do conceito
de instrumentos linguísticos - um conceito que poderíamos caracterizar, nos termos de
Stengers (1987)25, como nômade, tendo em vista o seu deslocamento da História das
Ideias Linguísticas - tal como formulada e posta em circulação na França no final do
século XX - para o da perspectiva materialista da Análise de Discurso - tal como
desenvolvida no Brasil desde mais ou menos a mesma época. Em nosso percurso de
leitura, como princípio metodológico, priorizamos discursividades fundadoras desses
lugares teóricos em que tal conceito comparece. Assim, da HIL, foram recortados
exemplares discursivos filiados ao nome de Auroux e, da AD-HIL, de Orlandi e
Guimarães - todos publicados entre o início dos anos 1990 e 2000.
Nesse percurso, por questão de coerência epistemológica, filiamo-nos a estudos
que tomam os instrumentos linguísticos discursivamente como formas materiais e
buscamos depreender o que se diz teoricamente sobre a relação entre o nacional e o
regional em tais instrumentos. Foi então que, deparando-nos com ausências nas
textualidades filiadas ao nome de Auroux no tocante a essa relação, voltamos o nosso
olhar para os trabalhos dos teóricos brasileiros. Nesses trabalhos, observamos que a

24 Considerando que, nessa materialidade, não é qualquer linguajar ou subfalar que metaforiza o falar
brasileiro, mas aquele que é significado como “cosmopolita”, julgamos importante em gestos futuros de
análise refletir, na esteira de Rodriguez-Alcalá (2011), sobre a constituição desse instrumento linguístico,
na relação com o espaço, enquanto uma tecnologia urbana.
25 Em sua reflexão, a autora aborda os modos e efeitos da propagação de um conceito de um domínio
científico a outro.

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reflexão sobre as dimensões nacional e regional não só se fez presente de forma regular
por meio da depreensão da ambivalência entre unidade e diversidade constitutiva do
processo de gramatização brasileiro, como foi posta em relação com a “especificidade da
nossa história de país de colonização” (ORLANDI, 2001, p. 7).
A partir disso, lançamo-nos à análise de instrumentos linguísticos que, filiados
aos nomes de autor Said Ali e Antenor Nascentes e voltados para essas diferentes
dimensões linguísticas, foram publicados no Brasil na segunda década do século XX.
Com esse batimento entre teoria e análise, objetivamos, por um lado, depreender os
modos de significação nessas materialidades das relações estabelecidas entre sujeitos e
línguas no/do Brasil e o que se formula como nacional e regional; e, por outro, contribuir
para as reflexões à luz do dispositivo teórico que habitamos (e que também nos habita)
sobre a história do conhecimento linguístico-gramatical no/do Brasil, notadamente no que
respeita ao processo de instrumentação linguística.
A análise possibilitou compreender como, tanto nos dizeres de Said Ali quanto
nos de Nascentes, faz-se significar o que Mariani definiu como colonização linguística,
visto que, como demonstramos, neles é possível observar, predominantemente, a
“imposição de ideias linguísticas vigentes na metrópole e um imaginário colonizador
entrelaçando língua e nação em um projeto único” (MARIANI, 2004, p. 25). Assim é
que, nas materialidades analisadas, depreendemos o comparecimento de sentidos que
apontam para a unidade da língua do Brasil e também entre esta e a língua de Portugal,
ainda que de modos distintos.
Em Said Ali, a língua da nação brasileira é uma: a língua portuguesa, a nossa
língua. As línguas indígenas e africanas, quando comparecem, são significadas como da
ordem de uma variação lexical. São advindas de tempo e espaço outros. São elementos
estrangeiros (de fora) que apenas por empréstimo podem compor o nacional (o dentro).
Nesse imaginário, sujeitos indígenas e africanos são postos como alteridades em relação
ao sujeito universal nacional brasileiro.
Na obra de Nascentes, contudo, ao se tentar apreender a fluidez da língua
brasileira, descrevendo-a, instrumentalizando-a, produz-se uma língua imaginária
(trans)regional que por vezes é tomada como metáfora do falar (e não da língua) nacional,
deslocando para o Brasil o lugar de referência a partir do qual língua e sujeitos são
significados. Como efeito desse movimento de instrumentação de um subfalar, a
ambivalência entre unidade e diversidade constitutiva da gramatização brasileira e do
processo de constituição da língua nacional do Brasil faz, tal como pontuaram Orlandi

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(2001; 2009) e Orlandi e Guimarães (2001), contraditoriamente, funcionar também o


processo de descolonização linguística.
Ao mesmo tempo em que o dito falar brasileiro - e, por extensão, o que se formula
como linguajar carioca - é colocado como uma versão alterada da língua portuguesa,
atribuindo a essa língua um lugar de origem da língua do Brasil, no capítulo referente ao
léxico os elementos dela provenientes são desse lugar destituídos. Essa destituição se dá
a partir de dois deslocamentos concomitantes, a saber: 1. o dos elementos portugueses
para um lugar secundário, ao lado de elementos indígenas e africanos; e 2. o do lugar de
origem de itens lexicais para o território brasileiro. Assim, o Brasil (os seus diferentes
espaços geográficos) passa a ser a referência da língua do Brasil (dos seus diferentes
subfalares) e da sua unidade imaginária (sustentada, haja vista a relação entre o que se
formula como forças centrífugas e centrípetas, pelo/no linguajar carioca), caracterizando,
dessa maneira, o que, em referência ao espaço enunciativo nacional brasileiro, propomos
chamar de movimento de dentro para dentro.
Cabe, então, perguntar: se em Nascentes há, assim como em Said Ali, um gesto
de descrição/instrumentalização que tem como produto a fabricação de uma língua
imaginária, por que então não se fala em uma gramática do linguajar carioca ou do falar
brasileiro? Parece-nos que a resposta já havia sido de certa maneira apontada por
Medeiros e Petri (2013, p. 47) ao afirmarem que instrumentos como esse “se relacionam
com a gramática da língua, mas que fazem emergir, de fato, as diferenças” . Em O
linguajar carioca, diz-se gramaticalmente sobre o falar brasileiro, sobre aquilo que o
constitui como marca de distinção em relação à língua de Portugal. Diz-se das diferenças
e não se diz das semelhanças, mas essas também significam no jogo incessante entre o
mesmo e o outro. E significam porque sobre elas já diz a Gramática da língua portuguesa
(domínio de saber) na gramática (forma material). Essa Gramática das semelhanças
funciona, então, como um já sabido em relação ao qual se institui a alteridade possível, a
diferença formulável em condições de produção específicas.
Como sabemos, o diferente é sempre diferente em relação a algo tomado como
norma e por isso não marcado. Nesse caso, o que é posto como diferente tem como
referência a língua do colonizador; é em relação a essa língua que o que se toma por
diferente é marcado. Desse modo, não dizer gramática do linguajar carioca ou do falar
brasileiro é também, a nosso ver, reiterar o imaginário de unidade linguística entre Brasil
e Portugal, o que nos leva a questionar, com e a partir dos trabalhos de Orlandi (2001;
2009) e Orlandi e Guimarães (2001) aqui mobilizados, até que ponto o processo de

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descolonização linguística, tal como empreendido no Brasil, pode se dar sem uma relação
tensa, tão necessária quanto contraditória, com o de colonização. É o caso de seguir
investigando.

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JO S É JU L IO C LE TO DA SILVA E A GÍRIA CABOCLA DO SUL DO PARANÁ


NA H IST Ó R IA DAS ID EIA S LIN G U ÍSTIC A S DO BRASIL

JO S É JÚ L IO C LE TO DA SILVA AND GÍRIA CABOCLA DO SUL DO PARANÁ


IN TH E H ISTO R Y OF LIN G U ISTIC IDEAS O F BRA ZIL

Dener Gabriel Ferrari1


Universidade Estadual de Campinas

Resumo: Neste texto, realizamos um gesto inicial de análise sobre o vocabulário Gíria cabocla
do sul do Paraná, produzido no início do século XX por José Júlio Cleto da Silva. Para tanto,
reconstituímos a conjuntura ampla e as circunstâncias específicas em que o autor desenvolveu seu
trabalho e traçamos algumas considerações analíticas acerca do título, do prefácio e de alguns
verbetes do vocabulário. Adotamos a perspectiva teórica da História das Ideias Linguísticas em
diálogo com as áreas de Análise de Discurso e de Saber Urbano e Linguagem, perseguindo a tese
discursiva desenvolvida por Rodríguez-Alcalá (2011a) de que sujeitos, sentidos e espaços se
constituem conjuntamente em um mesmo movimento histórico. Os gestos analíticos aqui
empreendidos permitem observar: i) uma tomada de posição (favorável ao Paraná e desfavorável
à Santa Catarina) diante da política de produção e legitimação das divisas interestaduais, no
próprio título do vocabulário; ii) uma dificuldade na definição da unidade linguística, espacial e
temporal da gíria cabocla, no prefácio; e iii) um certo processo de tradução da gíria cabocla para
a língua nacional, na definição sinonímica dos verbetes.
Palavras-chave: História das Ideias Linguísticas; José Júlio Cleto da Silva; Gíria cabocla do sul
do Paraná.

Abstract: In this text, we perform an initial gesture of analysis on the vocabulary called “Gíria
cabocla do sul do Paraná”, produced in the early 20th century by José Júlio Cleto da Silva. To do
so, we reconstructed the broad conjuncture and specific circumstances in which the author
developed his work, and we made some analytical considerations about the title, preface, and
some entries in the vocabulary. We adopted the theoretical perspective of the History of Linguistic
Ideas in dialogue with the areas of Discourse Analysis and Urban Knowledge and Language,
pursuing the discursive thesis developed by Rodríguez-Alcalá (2011a) that subjects, meanings,
and spaces are jointly constituted in the same historical movement. The analytical gestures
undertaken here allow us to observe: i) a position (favorable to Paraná and unfavorable to Santa
Catarina) in relation to the politics of production and legitimation of interstate borders, in the title
of the vocabulary; ii) a difficulty in defining the linguistic, spatial, and temporal unity of “gíria
cabocla” in the preface; and iii) a certain process of translating “gíria cabocla” into the national
language, in the synonymous definition of the entries.
Keywords: History of Linguistic Ideas; José Júlio Cleto da Silva; Gíria cabocla do sul do Paraná.

Subm etido em 06 de julho de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

1Doutorando em Linguística. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico


(CNPq) - Processo n. 140775/2022-6. E-mail: ferraridenergabriel@gmail.com.

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Introdução
O final do século XIX e o início do século XX foram bastante conturbados na área
que atualmente corresponde ao Sul e Sudoeste do Paraná e ao Oeste e Planalto Norte de
Santa Catarina. Toda essa região - à época ainda indefinida - foi palco de disputas
territoriais, tais como a questão Palmas/Misiones e da questão de limites entre Paraná e
Santa Catarina, e de conflitos sociais, que desencadearam a Guerra do Contestado.
Ao mesmo tempo em que levantes sociais se desenvolviam e as fronteiras
internacionais e as divisas interestaduais eram demarcadas, houve uma pesquisa histórica
e geográfica por parte da elite intelectual paranaense para fornecer argumentos que
justificassem a instauração de um domínio paranaense na área em disputa, bem como para
a criação de símbolos e tradições estaduais que proporcionassem uma homogeneização
social no âmbito estadual.
É dentro de toda essa conjuntura histórico-social que verificamos2 a produção do
vocabulário regionalista Gíria cabocla do sul do Paraná por parte de José Júlio Cleto da
Silva. Trata-se de um autor e de uma obra praticamente desconhecidos, especialmente no
campo dos estudos da linguagem.
Assim, nosso objetivo neste texto é realizar um gesto inicial de análise sobre esse
vocabulário. Buscamos, em certa medida, “reconstituir” as condições de produção em
que se desenvolveu o trabalho linguístico do autor, e esboçamos algumas considerações
analíticas acerca do título, do prefácio e de alguns verbetes do vocabulário, a partir da
perspectiva teórica da História das Ideias Linguísticas em diálogo com a Análise de
Discurso.
A exposição estará organizada da seguinte forma: inicialmente, abordamos a
conjuntura histórica do final do século XIX e início do século XX no Paraná, destacando
alguns fatos que julgamos pertinentes para a compreensão da conjuntura ampla de
produção do vocabulário. N a sequência, trazemos à tona algumas considerações acerca
do autor, com vistas a compreender as circunstâncias específicas de produção do
vocabulário. Após, fazemos uma descrição breve da obra, para analisar seu prefácio e
duas regularidades sintáticas que se fazem presentes nos verbetes. Por último, nas

2 Optei por escrever este artigo na primeira pessoa do plural, uma vez que ele é fruto de várias discussões
coletivas. Agradeço à Carolina Rodríguez-Alcalá, José Horta Nunes e Verli Petri pelas leituras de diferentes
versões deste manuscrito e pelas várias contribuições que me deram. Também agradeço às diferentes
instituições que permitiram consultas em seus acervos: Arquivo Histórico de Guarapuava, Arquivo
Histórico do Exército, Biblioteca Pública do Paraná, Casa da Memória de Curitiba, Departamento de
Arquivo do Estado do Paraná, Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e Museu Paranaense.

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considerações finais, salientamos as compreensões analíticas que nos pareceram mais


relevantes.
Com este trabalho, esperamos colocar em cena um instrumento linguístico, um
autor e uma parte da história do interior paranaense ainda pouco conhecidos.

1. A invenção do P a ra n á
Em sua dissertação de mestrado, Christiane Marques Szesz (1997) defende a tese
de que o Paraná foi inventado a partir de suas fronteiras. A autora nos conta que a província
do Paraná foi criada em 1853, a partir do desmembramento da província de São Paulo,
sendo fruto de uma medida administrativa. Além disso, ela argumenta que a delimitação
das fronteiras não era clara e que parte dos territórios que atualmente corresponde ao oeste
de Santa Catarina e ao sudoeste do Paraná não era muito bem conhecida.
A autora salienta que, a partir da segunda metade do século XIX, essa região passou
a ser ocupada, de modo que se constituíram grandes fazendas de pecuária e foram fundadas
localidades importantes, como Palmas e Porto União da Vitória. Ao lado disso, parte da
região era rica em madeira e erva-mate. Tais fatores despertavam o interesse por parte do
Paraná, de Santa Catarina e da própria República Argentina. Tratava-se de uma área que
interessava particularmente às elites paranaenses que, diante dos conflitos territoriais que
se intensificaram entre o final do século XIX e o início do século XX, mobilizaram a
História e a Geografia como argumentos para justificar seu domínio sobre a região.
A disputa pelo domínio econômico, jurídico e político dessa região desembocou
em dois conflitos territoriais, referidos por Szesz (1997). O primeiro deles foi a questão
de Palmas ou Misiones3, em que os governos brasileiro e argentino buscaram delimitar
suas fronteiras. Os tratados de Madrid (1750) e de Santo Ildefonso (1777), celebrados
entre Portugal e Espanha, haviam determinado que a fronteira entre a região meridional
das colônias estava traçada pelos rios Uruguai e Iguaçu, e pela faixa intermediária entre
o vale dos rios. O tratado de 1777 estabelecia que, nessa faixa intermediária, a fronteira
internacional seria delimitada pelos rios Peperi-Guaçu e Santo Antônio, mas as
metrópoles europeias nunca definiram in loco quais eram os rios que eram assim
nomeados, embora esses estivessem presentes nos mapas. Havia, assim, certa indefinição
das fronteiras entre Brasil e Argentina que não foi levantada em um primeiro momento,

3 No âmbito da História das Ideias Linguísticas, esse conflito diplomático é discutido por Lemos (2019),
que analisa como o espaço de fronteira entre Dionísio Cerqueira-SC, Barracão-PR (Brasil) e Bernardo de
Irigoyen (Misiones, Argentina) vai sendo construído discursivamente.

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mas que veio à tona em 1857, por iniciativa do governo brasileiro. Em 1881, a Argentina
definiu sua interpretação sobre o tratado de 1777 e, segundo essa, o rio que os brasileiros
denominavam de Chapecó seria o rio Peperi-Guaçu e o rio chamado de Chopim pelos
brasileiros seria o Santo Antônio. Em 1888, a Argentina deu uma nova interpretação ao
tratado de Santo Idelfonso e passou a argumentar que o rio chamado pelos brasileiros de
Jangada seria o rio Santo Antônio. A disputa foi somente definida em 1895, quando a
região contestada passou a pertencer ao Brasil, graças ao arbitramento internacional
realizado por Grover Cleveland, então presidente dos Estados Unidos da América (EUA).

Figura 1. Questão Palmas/Misiones.

Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-2-Mapa-da-Questao-de-Palmas-Fonte-
Readaptado-de-BARROS-1980-p-59 fig5 329454328

Pouco tempo após a resolução do primeiro conflito territorial, em 1900, um


segundo conflito territorial teve início na região, desta vez entre os estados do Paraná e
de Santa Catarina. O estado do Paraná pretendia governar a área entre o rio Iguaçu e o rio
Uruguai, mas, em 1901, o estado de Santa Catarina ingressou com uma ação no Supremo
Tribunal Federal (STF)4 contra o estado do Paraná, em que reivindicava o território entre
os rios Negro e Uruguai, até a fronteira com a Argentina. Do outro lado, os governantes
paranaenses afirmavam que o território do Paraná iria até o rio Uruguai, fazendo divisa
com o Rio Grande do Sul. Estava em disputa uma área de aproximadamente 48.000 km2,
em um conflito que ficou conhecido como a questão de limites entre Paraná e Santa
Catarina. Santa Catarina obteve três sentenças favoráveis no STF nos anos de 1904, 1909
e 1910, mas o governo paranaense se negava a assumir a derrota. A questão somente foi
solucionada em 1919, quando os estados assinaram um acordo mediado por Wenceslau

4 Uma versão digitalizada do processo está disponível na página da internet do Tribunal de Justiça do
Paraná. Disponível em: https://www.tipr.ius.br/memoria-e-iustica-museu/-
/asset publisher/51Sv/content/guerra-do-contestado/397262. Acesso em 20/09/2022.

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Brás, então presidente da República, por meio do qual o território contestado foi dividido
ao meio.

Fonte: https://www.researchgate.net/figure/FIGURA-7-Mapa-dos-limites-entre-o-Parana-e-Santa-
Catarina-1865-1916-Fonte-Base fig3 316475770

É no âmbito dessa conjuntura marcada pela indefinição de fronteiras, que Szesz


(1997) propõe que “o Paraná foi inventado” . Isto é, de acordo com a autora, era necessário
que houvesse um território a ser apropriado e delimitado. E os especialistas do saber
ligados às classes dominantes e envolvidos direta ou indiretamente com o jogo político
local, tiveram um papel central na elaboração de um discurso regional para o Paraná,
tendo como um dos lugares de enunciação privilegiados o Instituto Histórico Geográfico
do Paraná (IHGPR)5.
Esses intelectuais6 buscavam, de acordo com a autora, pensar o Paraná a partir da
Geografia e da História, bem como a partir de “postulados de um discurso comprometido
com as classes dominantes no Estado” (SZESZ, 1997, p. 126). Em outras palavras,

5 Como poderá ser visto mais à frente, a nomeação do instituto foi mudando ao longo do tempo.
Inicialmente, entre 1900 e 1947, o nome adotado era Instituto Histórico e Geográphico Paranaense, depois
passou a Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico Paranaense até 1999, ano em que se adotou o nome
que mantém até hoje: Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. Disponível em:
https://ihgpr.com.br/estatuto.php. Acesso em: 05/01/2023. Essa variação da nomeação do instituto ao longo
da história é particularmente interessante se considerarmos outros nomes de instituições, como é o caso do
instituto congênere cearense: Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico). Nessas
nomeações, tanto “etnográfico” (etno - povo) como “antropológico” (antro - homem) apontam para os
sujeitos, enquanto “geográfico” (geo - terra) se relaciona com o espaço. Nos institutos históricos, também
se produziu um importante saber sobre a língua, seja por meio da viabilização da produção de dicionários
bilíngues e de dicionários de regionalismos (NUNES, 1996), seja por meio da divulgação de um saber
linguístico na revista do IHGB, por meio de diferentes formas e em diferentes domínios (GARCIA, 2011),
mas, ao menos pelo que sabemos, em nenhum caso essa marcação se fez presente no nome do instituto.
6 Sobre os sócios fundadores do IHGPR, Szesz (1997, p. 129) afirma: “A maioria dos seus componentes
eram funcionários públicos e desempenhavam funções no aparelho do estado, fossem aqueles que seguiam
a carreira de magistratura após estudos jurídicos, ou aqueles, que mesmo sem estudos universitários
percorriam uma carreira média na burocracia”.

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tratava-se de delinear um perfil regional, em que a Geografia e a História apareciam como


argumentos que garantiriam a posse do território ao Paraná. Essa ligação entre o estado e
o IHGPR se manifestava inclusive sob forma financeira, já que, como destaca Szesz
(1997), o estado fornecia muitas das verbas para a manutenção do Instituto, para a
realização das pesquisas e para a publicação dos boletins, ao mesmo tempo em que se
servia diretamente dos estudos ali realizados para forjar um discurso regional que
legitimava a ocupação de uma determinada porção de terra e uma interpretação específica
sobre a delimitação das fronteiras do estado.
Szesz (1997) salienta que a própria fundação do IHGPR, em 1900, esteve
diretamente ligada à questão dos limites do Paraná com Santa Catarina, de modo que,
nessa conjuntura histórica, se fazia necessária a invenção de uma identidade regional
paranaense. De acordo com os próprios fundadores, a finalidade do IHGPR era “resolver
a problemática da instituição de uma história do Paraná e da geografia de seu território”
(SZESZ, 1997, p. 127). E, ainda de acordo com os fundadores, as tarefas específicas eram
“descrever a natureza geográfica do Estado, expor a feição de sua composição
populacional, exaltar o nome de seus heróis” (SZESZ, 1997, p. 127-128), além de
determinar as divisas do estado do Paraná com Santa Catarina.
No que diz respeito à Geografia, Szesz (1997) destaca que a estratégia adotada
pelos intelectuais ligados ao IHGPR foi descrever os limites físicos, a partir dos quais se
buscou delimitar as fronteiras e criar uma memória e uma identidade para o Paraná. Nesse
sentido, a autora dá ênfase ao trabalho realizado por Romário Martins, que foi o
responsável por apresentar uma imagem cartográfica do Paraná7, destacando os contornos
geográficos das fronteiras do estado. No mapa produzido por Romário Martins, o
território paranaense se estenderia até o rio Uruguai, fazendo assim divisa com o Rio
Grande do Sul, diferentemente do que defendiam os catarinenses, para quem os limites
eram demarcados pelos rios Negro e Iguaçu.
Em relação à História, Szesz (1997) nos conta que alguns intelectuais buscaram
elaborar uma memória histórica da formação territorial. Assim, para eles, era necessária
a criação de tradições8, isto é, de orientações valorativas vindas do passado que ligassem
espaço e sociedade. Mais especificamente, a autora detém-se sobre o trabalho de Romário

7 Este mapa pode ser observado na coleção de mapas históricos do Paraná, que se encontra no site do
Instituto Água e Terra. Disponível em: https://www.iat.pr.gov.br/Pagina/Coletanea-de-Mapas-Historicos-
do-Parana. Acesso em: 08/01/2023.
8 Para uma melhor compreensão do papel das tradições na criação das identidades nacionais, ver Thiesse
(1999) e Hobsbawn e Ranger (2008).

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Martins e de Ermelino de Leão, historiadores que defenderam a ideia de que as terras em


disputa por Paraná e Santa Catarina foram descobertas pelos paulistas, de quem os
paranaenses seriam os herdeiros legítimos. Assim, a autora salienta que esses intelectuais
faziam frequentes menções nostálgicas a um passado para tentar garantir a posse das áreas
disputadas, ao mesmo tempo em que buscavam construir uma memória que servisse para
criar laços de coesão na sociedade paranaense.
Ao aproximar essa discussão realizada por Szesz (1997) para o campo da História
das Ideias Linguísticas, em relação com as áreas de Análise de Discurso e Saber Urbano
e Linguagem, levamos em conta uma compreensão que, para nós, tem uma importância
capital.
A compreensão a ser por nós perseguida tem a ver com as discussões propostas
por Rodríguez-Alcalá de que a produção da língua é indissociável da produção do espaço,
da mesma forma que a produção do saber sobre a língua é indissociável da produção do
saber sobre o espaço. Essa discussão parte da tese discursiva - proposta inicialmente por
Althusser e depois retomada por Pêcheux e Orlandi - da evidência do sujeito como causa
de si e da evidência da linguagem como um código transparente. A Análise de Discurso
postula que o sujeito é desde sempre um indivíduo interpelado em sujeito por uma
ideologia, e que os sentidos são determinados pelas posições ideológicas em jogo, bem
como que sentidos e sujeitos se constituem em um mesmo processo histórico. É dentro
desse quadro que Rodríguez-Alcalá se propõe a pensar a evidência do mundo , não como
um espaço neutro, exterior e anterior, mas como um espaço simbólico e postula que os
“sujeitos, sentidos [linguagem] e espaço se constituem num mesmo processo histórico,
existindo entre esses termos uma relação constitutiva” (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2011a,
p. 246, grifos da autora).
Essa compreensão discursiva de que sujeitos, sentidos e espaço se constituem em
um mesmo processo histórico é extremamente produtiva para pesquisas na área de
História das Ideias Linguísticas, uma vez que possibilita pensar a constituição da língua
(e do saber sobre a língua) e a constituição do espaço (e do saber sobre o espaço) como
processos articulados. Isso pode ser observado em trabalhos já desenvolvidos por
Rodríguez-Alcalá (2011b, 2020). Em um trabalho mais antigo (RODRÍGUEZ-ALCALÁ,
2011b), a autora analisa detalhadamente as relações que se estabelecem entre, de um lado,
a história da cidade e, de outro, a história da escrita e a história da gramática, o que a leva
a formular a tese de que “os processos de gramatização que se desencadearam a partir da
escrita estiveram sempre acompanhados por processos de urbanização, nas mais

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diferentes formas que tais processos assumiram ao longo da história” (RODRÍGUEZ-


ALCALÁ, 2011b, p. 199). E em um trabalho recente (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2020),
ela retoma o que já havia exposto anteriormente e nos apresenta alguns exemplos
emblemáticos da história brasileira em que a constituição da língua nacional se faz no
mesmo processo de constituição do espaço nacional. É o caso: i) da produção de
gramáticas de línguas indígenas pelos jesuítas no início do período de colonização
associada a uma política de aldeamento; ii) da gramatização brasileira da língua
portuguesa vinculada a um processo significativo de urbanização e em uma conjuntura
histórica em que o Brasil se afirmava como Estado independente; e iii) da gramatização
da língua Apurinã e de outras línguas indígenas amazônicas, da reedição de gramáticas e
dicionários coloniais elaborados nas missões jesuíticas do Paraguai, e da implantação de
escolas nas fronteiras com a Argentina, todos esses fatos ligados a um processo de
reorganização interna do território nacional e de demarcação das fronteiras internacionais
nas regiões norte, oeste e sul.
Em nosso caso, acreditamos que é essencial considerar que o processo de
“invenção do Paraná” mencionado por Szesz (1997) refere-se à criação de um discurso
oficial sobre o Paraná, em que é possível observar a construção de sentidos sobre o espaço
e sobre os sujeitos paranaenses, por meio do IHGPR. De nossa parte, ao considerarmos a
tese proposta por Rodríguez-Alcalá de que sujeitos, linguagem e espaço se constituem
em um mesmo movimento na história - assim como o saber sobre a língua e o saber sobre
o espaço - nos propomos a explorar como o processo de “invenção do Paraná” também
envolve um saber linguístico que influencia o saber sobre o espaço e que produz efeitos
na definição de fronteiras e na identificação dos sujeitos com essa língua e esse espaço.
Assim, interessa-nos compreender as relações entre linguagem, espaço, sujeitos e
instituições nessa política mais ampla de construção e legitimação das divisas
interestaduais entre Paraná e Santa Catarina.
De modo a ensaiar uma resposta aos questionamentos que levantamos, realizamos
a seguir um breve percurso produção intelectual de José Júlio Cleto da Silva.

2. José Júlio Cleto da Silva


José Júlio Cleto da Silva é um sujeito ainda pouco conhecido, especialmente na
área dos estudos da linguagem, e os raros trabalhos publicados sobre ele são realizados
em campos vizinhos, especialmente a História. Assim, diante dessa ausência, recorremos
ao trabalho de conclusão de curso de Gabriel Goulart Barboza (2017), que tangencia

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algumas das questões que nos interessam. Trata-se de um trabalho único que busca
compreender o papel desempenhado por José Júlio Cleto da Silva como líder da
resistência ao Acordo de Limites.
Barboza nos narra que a família Cleto da Silva buscava estreitar relações que
permitissem uma colocação na política paranaense no início do século do século XX.
Nesse sentido, o autor relata que José Júlio Cleto da Silva se mudou para o interior do
estado em 1896, buscando uma colocação como comerciante. À época, o pai de José Júlio
Cleto da Silva - José Cleto da Silva - já se encontrava na região e estava inserido no
círculo de poder local, ocupando o cargo de presidente da câmara e tendo fundado um
colégio em União da Vitória.
Foi esse caminho pavimentado pelo pai que, segundo Barboza (2017), permitiu a
Cleto da Silva se inserir rapidamente no cenário político local. Alguns anos após sua
chegada à região, em 1900, ele casou-se com Francisca Pacheco, que era membra de uma
família pioneira na colonização dos Campos de Palmas. Nesse mesmo ano, ainda de
acordo com Barboza (2017), Cleto também teve atitudes que apontam para uma prática
comum de grilagem. Trata-se da tentativa de compra9, junto a outros, de uma área de
aproximadamente seis mil hectares de terras devolutas, na região então em disputa entre
Brasil e Argentina. Nessa tentativa de compra, ele e seus colegas exigiam que fossem
demarcados os limites, e que a União declarasse a parte desse território que seria utilizado
para defesa da fronteira.
Na visão de Barboza (2017), a fama e o prestígio conquistados pelo pai de Cleto
também foram fundamentais para sua eleição como prefeito da então cidade de Bela Vista
de Palmas, em 1908. Em seu mandato, Cleto foi o responsável por realizar a mudança do
nome da cidade para Clevelândia, em homenagem a Grover Cleveland, presidente dos
EUA e árbitro na questão de Palmas/Misiones entre Argentina e Brasil.
No entanto, em 1909, o estado de Santa Catarina obteve uma segunda sentença
favorável ao processo que movia no STF contra o Paraná, o que, de acordo com Barboza
(2017), deixou os coronéis da região preocupados. Diante disso, Cleto e outras lideranças
locais, reunidos em um comício em Palmas, expressaram a ideia da criação de um estado
independente na região contestada, o estado das Missões. Nesse momento, Cleto também
renunciou ao cargo de prefeito e mudou-se para União da Vitória, buscando defender os
interesses paranaenses na questão dos limites. Em 1910, em União da Vitória, Cleto passa

9 Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/215554/11546. Acesso em: 30/05/2023.

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então a atuar na redação do semanário Missões 10 - um jornal criado para defender os


interesses paranaenses diante da questão de limites com Santa Catarina - , funda uma
livraria com o nome Ferreira Pacheco, assume o cargo de tabelião - que até então era
exercido por seu pai - e, mais tarde, em 1915, é eleito para o cargo de deputado estadual,
comprometendo-se a trabalhar em prol dos interesses paranaenses na questão de limites.
A questão ganhou um novo capítulo em 1916, quando começaram as tratativas
entre Paraná e Santa Catarina para o estabelecimento de um acordo. Barboza (2017) nos
conta que os coronéis do sul e sudoeste paranaense não aceitavam uma solução que
dividisse ou desincorporasse localidades que estavam sob sua zona de influência. Estes
apoiavam um acordo que garantisse a totalidade das terras em litígio ao Paraná e, caso
isso não fosse possível, preferiam a criação do Estado das Missões a perder terras e
influência política para Santa Catarina.
Contudo, à revelia das vontades da elite local, Paraná e Santa Catarina assinaram
um acordo de limites em 1916, no qual ambos os estados faziam concessões. Conforme
nos narra Barboza (2017), a zona mais reivindicada pelos coronéis do sul e sudoeste do
Paraná acabou sofrendo grandes perdas, de modo que vários municípios disputados
passaram para o domínio catarinense e outros foram divididos.
Nesse cenário, Barboza (2017) salienta que Cleto da Silva desempenhou um papel
de líder da resistência ao acordo de limites, em duas frentes. N a primeira, ele se servia do
semanário Missões para divulgar abertamente suas ideias de preferência à criação do
Estado das Missões ao invés de um acordo tido como desonroso. No entanto, embora
essas ideias tenham surtido um efeito na região contestada e Cleto tenha conseguido
alguns adeptos, isso não foi suficiente para barrar a negociação em curso. A segunda
frente se deu na atuação parlamentar de Cleto junto à Assembleia Legislativa. Enquanto
se davam discussões, Cleto protocolou requerimentos, abaixo-assinados colhidos na
região do contestado e chegou até mesmo a apresentar um projeto substitutivo que
propunha a criação do estado das Missões. Entretanto, apesar de seu esforço e de seu voto
contrário, o acordo acabou sendo aprovado em duas votações, sendo a primeira delas em
dezembro de 1916 e a segunda em fevereiro de 1917.
Barboza (2017) destaca ainda que, após a assinatura do acordo, a questão não foi
simplesmente suprimida e aceita por todos. Pelo contrário, enquanto o acordo tramitava,
os ânimos se acirravam na região: Cleto tentava realizar reuniões políticas, mas sofria

10Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/888214/1. Acesso em: 01/06/2023.

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repressão por parte do governo estadual, que enviou tropas à região, com vistas a
desmanchar movimentos de resistência ao acordo, fossem eles armados ou não.
Descontente com a situação, em abril de 1917, Cleto solicitou uma licença do cargo de
tabelião e passou a realizar reuniões a fim de organizar um levante armado na região, em
prol da criação do estado das Missões. Havia adeptos da ideia nas cidades de Curitiba,
União da Vitória, Palmas, Três Barras, Clevelândia, Rio Negro e Timbó. Cleto também
contava com o apoio de políticos e líderes locais, de modo que acreditava contar com
homens e recursos suficientes para combater as tropas federais e estaduais.
Sobre o levante, Barboza (2017) nos conta que este estava marcado para o dia 30
de julho. Porém, denúncias chegaram ao conhecimento do governo federal, que enviou
tropas para a região no dia anterior à data programada. Assim, Cleto e seus homens
deixam União da Vitória e vão em direção à estação de trem Nova Galícia, localizada a
28 quilômetros de distância. Eles pretendiam interromper a comunicação ferroviária da
região com o Rio Grande do Sul, enquanto esperavam que a população aderisse ao
movimento e que mais homens pegassem em armas. No entanto, dos mais de 100 homens
que deveriam seguir o movimento, apareceram apenas 22 e, mais tarde, outros 11, sendo
que desse total nem todos estavam armados. Com os planos frustrados, nos dias que se
seguiram, o grupo marchou para Palmas, cidade que pretendiam atacar, o que acabou não
se concretizando. No dia 14 de agosto, o movimento havia fracassado. Os manifestantes
debandaram então para Clevelândia e, de lá, alguns atravessaram a fronteira com a
Argentina.
Cleto, por sua vez, foi para Guarapuava, onde escreveu o livro Accordo Paraná-
Santa Catharina ou O Contestado diante das carabinas, em que detalha sua versão sobre
o acontecimento. Cleto também foi indiciado na comarca de Palmas e perdeu o cargo de
deputado estadual. No entanto, antes mesmo da publicação do livro, ele obteve a anistia
e voltou a exercer a função de tabelião de União da Vitória. Depois dos acontecimentos,
Cleto continuou com sua vida intelectual, escrevendo sobre outros temas e participando
de instituições, sem se envolver em outras polêmicas. Anos mais tarde, em 1937 e 1938,
Cleto da Silva foi admitido como sócio correspondente do Círculo de Estudos
Bandeirantes (CEB) (FERRARINI, 2011) e do IHGPR11, respectivamente. Além disso,
consta que ele participava ativamente da Loja Maçônica de União da Vitória entre as
décadas de 1930 e 1950 (GOHL, 2003).

11 Conforme registros do livro de sócios do IHGPR.

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Por fim, a obra de José Júlio Cleto da Silva passou por um processo de resgate
realizado pelo neto do autor, Josaphat Lona Cleto, procurador aposentado e associado do
IHGPR.

Figura 3. Estado das Missões.

Fonte:https://rbi.com.br/conheca-a-historia-do-movimento-que-quase-tornou-palmas-capital-de-
um-estado/

Por meio desse percurso histórico, é possível entender que a posição social de José
Júlio Cleto da Silva era a de um burocrata médio do estado (prefeito municipal de
Clevelândia, jornalista, tabelião e oficial do Registro de Imóveis, deputado na Assembleia
Legislativa do Estado) e que ele esteve envolvido nas relações de coronelismo e nos dois
conflitos territoriais que se desenvolveram no Paraná à época de diferentes formas: por
meio da compra de terras, por meio da atuação como jornalista no semanário Missões,
por meio da atuação na Assembleia Legislativa, por meio do levante armado ou mesmo
por meio da escrita de trabalhos literários e históricos.
Ao lado desse percurso de pesquisa sobre a vida de José Júlio Cleto da Silva,
procuramos elaborar uma lista com as obras de sua autoria a partir de uma pesquisa de
arquivo 12

• Accordo Paraná-Santa Catharina ou O Contestado diante das carabinas.


Coritiba: Globo, 1920.*
• [sob o pseudônimo de Thales Patricio] Campos e Selvas. Porto União: Livraria
Editora F. Pacheco Cleto, 1924.*
• O centenário de Palmas. Revista do Círculo de Estudos “Bandeirantes”. Curitiba:
João Haupt & Cia, tomo 1, n. 4, 1937.*12

12 O asterisco (*) indica que não tivemos acesso a essas obras e que apenas sabemos de sua existência por
meio de outros textos.

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• Apontamentos sobre o movimento fanático. Boletim do Instituto Histórico,


Geográfico e Etnográfico Paranaense, v. XXVIII, p. 46-64, 1976.
• Apontamentos históricos de Palmas e Clevelândia (1630-1930). Boletim do
Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense, v. XXVIII, p. 65-104,
1976.
• Apontamentos históricos de União da Vitória. Boletim do Instituto Histórico e
Geográfico do Paraná, Curitiba, v. XXX, p. 9-228, 1976.*
• Pequeno vocabulário indígena. Curitiba: Museu da Imagem e do Som, 1989.
• Gíria cabocla do sul do Paraná. Curitiba: Assembléia Legislativa do Estado do
Paraná, 1990.
• Reminiscências: 20 de maio de 1894. Boletim do Instituto Histórico e Geográfico
do Paraná, v. L, p. 245-246, 1999.
• Municípios do Paraná em 1937. Boletim do Instituto Histórico e Geográfico do
Paraná, v. LI, p. 277-303, 2000.
• Brumas do passado. Manuscrito inédito.*
• Festa da bandeira (versos caipiras). Manuscrito inédito.*
• Lenda do pinheiro. Manuscrito inédito.*
• Municípios do Estado de Santa Catarina. Manuscrito inédito.*
• Pinchando Barro (versos caipiras). Manuscrito inédito.*
• Simbologia maçônica. Manuscrito inédito.*

Ao olharmos para os títulos das obras, verificamos que o trabalho intelectual de


Cleto pode ser associado, em sua maioria, à História, mas também há produções que
podem ser vinculadas aos campos da Geografia, da Literatura e da Linguística. Isto é,
podemos dizer que há um trabalho intelectual do autor em torno do espaço e da língua.
Em relação à publicação das obras, a maioria se deu depois de sua morte, por meio dos
boletins editados pelo IHGPR e por intermédio do trabalho de seu neto, Josaphat Lona
Cleto. Contudo, é possível observar que algumas publicações se deram em vida, por meio
de uma editora da família, da Revista do Círculo de Estudos Bandeirantes e de uma
editora particular localizada em Curitiba.
Feito esse movimento geral de apresentação do autor e do conjunto da obra,
passemos, então, a olhar mais detidamente para o vocabulário Gíria cabocla do sul do
Paraná.

3. A Gíria cabocla do sul do Paraná


No que tange ao vocabulário Gíria cabocla do sul do Paraná, é importante
destacar uma nota que se faz presente na folha de rosto do livro. Ali explica-se que esse
livro tem alguma relação com um livro de contos intitulado Campos e selvas, que foi
publicado pelo autor sob o pseudônimo Thales Patrício, em 1924. Entretanto, por não
termos acesso ao livro de contos, não conseguimos saber como essa relação se dava

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(acreditamos que era uma espécie de vocabulário ao final do livro)13. Na nota, explica-se
ainda que parte do trabalho foi publicado no jornal A república, embora também não
tenhamos conseguido encontrar em nossas pesquisas a edição específica do jornal em que
se deu a publicação.
Assim, enfatizamos que o vocabulário a partir do qual realizamos as análises mais
à frente é uma republicação desses trabalhos ao qual foram acrescidos manuscritos
inéditos. Trata-se de uma republicação realizada pela Assembleia Legislativa do Estado
do Paraná, no ano de 1990, que se insere no âmbito do projeto mais amplo de resgate da
obra de José Júlio Cleto da Silva empreendido por Josaphat Lona Cleto, neto do autor e
historiador ligado ao IHGPR.
Por fim, gostaríamos de destacar um ponto importante na nomeação do
vocabulário. Pensamos que esse título, em si mesmo, significa como uma tomada de
posição diante da questão dos limites entre Paraná e Santa Catarina. Ao nomear o
vocabulário como Gíria cabocla do sul do Paraná, o uso do adjunto adverbial de lugar
marca que o material linguístico que ali está reunido é falado no território que se considera
ser o sul do Paraná e não outra região, como o planalto norte de Santa Catarina, por
exemplo.
Em outras palavras, o próprio título do vocabulário - aliado às condições de sua
produção - nos direciona para uma interpretação de que a produção deste instrumento
linguístico está associada, em alguma medida, a uma política de produção e legitimação
das fronteiras territoriais (favorável ao Paraná e desfavorável à Santa Catarina), de
maneira similar ao que se passa nos exemplos apresentados por Rodríguez-Alcalá (2020)
e que retomamos anteriormente.
Tendo apresentado algumas considerações sobre o processo de publicação da obra
e algumas observações14 sobre seu título, passemos à análise do vocabulário, iniciando
pelo prefácio.

13 Essa hipótese parte de uma referência que consta na bibliografia do Glossário do Vale do Iguaçu, de
autoria de Francisco Filipak (1976, p. 31): “2) Vocabulário da Gíria Cabocla do livro CAMPOS E SELVAS
de Thales Patrício, pseudônimo de José Júlio Cléto da Silva, União da Vitória, PR, 1924”.
14 Salientamos o uso do adjetivo “cabocla” no título do vocabulário, que significa a variedade linguística
falada no espaço e os sujeitos que a falam. Assim, podemos concluir que não são todos os sujeitos da região
que se considera ser o “sul do Paraná” que falam o que ali está reunido, mas uma parte específica dos
sujeitos, os “caboclos”. Embora Cleto não especifique o que entende por caboclo nem os motivos pelos
quais utiliza esse adjetivo, pensamos que uma possibilidade de resposta a essa questão aparece ao olharmos
para a crítica ao trabalho de Cleto realizada por Filipak e Sicuro (1976, p. 135, grifos nossos): “Foi o
primeiro autor a estudar os falares e a gíria cabocla regional, deixando inédito um rico glossário lingüístico
digno de maiores estudos. Ninguém como ele, através de sua pena versátil, soube retratar a feição moral, o
meio ambiente e os hábitos lingüísticos do nosso primitivo homem iguaçuano”.

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3.1. O prefácio
Os prefácios dizem algo sobre a obra que acompanham. Em nosso entendimento,
eles nos dão pistas sobre as condições de produção e de publicação das obras, além de
construírem/reproduzirem determinados sentidos sobre a obra e o autor. Em nosso caso,
em que olhamos para uma obra lexicográfica publicada em parte em 1924 e que
posteriormente foi republicada em 1990, acreditamos que o prefácio que acompanha a
obra pode nos dizer algo sobre o autor, sobre a obra e sobre a descrição da língua que ali
se realiza.
Esse entendimento não é uma novidade ou exclusividade de nosso trabalho e, por
isso, lembramos dois trabalhos de pesquisa desenvolvidos no âmbito da História das
Ideias Linguísticas que apontam para a relevância desses materiais.
Em um capítulo da obra Terra à vista, Eni Orlandi (2008, p. 120-121) analisa as
reedições de relatos de missionários e viajantes europeus ao Brasil, interessando-se pelos
aparelhos críticos que acompanhavam essas novas edições e pela maneira como esses
aparelhos críticos orientam e até mesmo determinam a leitura e a interpretação desses
documentos históricos. Na perspectiva da autora, a inserção de um prefácio e de notas
não deixa intactos os sentidos: “Com os prefácios e as notas, os autores visam conter o
texto nos limites, ou melhor, procuram não deixar que ele signifique além de certos
limites, e apagar as transformações de sentido trazidas pelo fato de que, na sua
materialidade, eles são objetos integralmente históricos (e linguísticos)” .
Verli Petri (2007) também discute o funcionamento do prefácio, ao comparar um
dicionário de regionalismos e um dicionário geral de língua, ambos produzidos na década
de 1980. Em seu texto, a autora afirma que, apesar de apresentar formas bastante diversas
(a depender de quem produz o prefácio e dos objetivos do texto), o prefácio tem um
funcionamento específico: ele precede o texto principal e funciona como um lugar para
enaltecer a obra que se segue, o que é próprio do espaço mercadológico.
Na sequência, analisamos o prefácio da Gíria cabocla do sul do Paraná, buscando
compreender como se constroem discursivamente os sentidos em torno da língua, do
espaço e dos sujeitos. Destacamos que se trata de um prefácio escrito por Antonio Lustosa

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de Oliveira15, que se declara amigo de José Júlio Cleto da Silva. Para observarmos esse
processo, selecionamos o seguinte recorte:

Como expressão desses tão louváveis sentimentos, Josaphat Lona Cleto,


neto do grande paranaense aqui evocado, reuniu numerosas anotações de seu
ilustre avô, deu-lhes forma e harmoniosa disposição e manda imprimir aquilo
que, em seu conjunto, significa uma preciosa coletânea da gíria usual entre os
antigos habitantes do sul e sudoeste paranaense. Digo mais ainda - são
preciosas relíquias do singelo porém tão expressivo e tão autêntico linguajar
dos nossos antepassados.
[.]
Como é útil e importante conhecer as velhas formas de expressão do antigo
português, ainda hoje, aqui e acolá, vivas e atuantes.
Como é confortador constatar essa tão grata evidência exatamente quando
as gerações mais moças com tanto empenho dedicam-se ao estudo de línguas
estrangeiras e não só ignoram como, principalmente, impiedosamente mutilam
a de seus antepassados.
Tais locuções, familiares e populares, eram e continuam vigentes na região
meridional do nosso estado.
Muitas delas são peculiares, com variadas conotações, a toda região
meridional do território nacional.
E, se tais expressões, não raro inteligentes e pitorescas, forem analisadas
com prudência e um salutar critério, revelarão a presença de vocábulos
arcaicos, de significado diverso e muito amplo, ainda circulando tanto no
recesso dos antigos povoados e vilas, como no relacionamento cotidiano dos
lendários tropeiros e agregados, presentes nas mais antigas fazendas da
pecuária paranaense.
Se nos lembrarmos que conhecer e falar bem a língua de nossa terra, as
expressões tradicionais de nossos antepassados, constituem relevante
característica de um cidadão bem educado, aqui, neste precioso volume, está
preservado um material, o linguajar de nosso antepassados, realmente digno de
ser estudado e difundido, para a satisfação de nossos linguistas, lexicógrafos e,
em geral, dos mestres que têm por sagrada missão a educação das gerações que
lhe são confiadas (OLIVEIRA, 1990, p. 04-05).

Já de saída cumpre-nos salientar que, neste gesto de apresentação do vocabulário,


Antonio Lustosa de Oliveira trata da língua que ali é descrita e também de outras coisas
que com ela se articulam, notadamente o tempo-espaço em que essa língua circula e os
sujeitos que a falam. Ao lado disso, destacamos que há uma tentativa de decifrar o
funcionamento concreto da língua, a partir da descrição desses diferentes aspectos,
embora estes deslizem em alguns momentos. Vejamos como isso se dá.
No recorte, a língua é construída discursivamente a partir das seguintes
referências: “gíria usual entre os antigos habitantes do sul e sudoeste paranaense”,
“singelo porém tão expressivo e tão autêntico linguajar dos nossos antepassados”, “velhas

15 Pelas informações que dispomos, Antonio Lustosa de Oliveira foi jornalista, agropecuarista e político
brasileiro. Como político, ocupou os cargos de prefeito de Guarapuava (1944), deputado estadual (1947) e
deputado federal (1958).

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formas do antigo português”, “a [língua] de seus antepassados”, “tais locuções, familiares


e populares, eram e continuam vigentes na região meridional de nosso estado”, “tais
expressões”, “vocábulos arcaicos”, “a língua de nossa terra”, “as expressões de nossos
antepassados” e “o linguajar de nossos antepassados” . Assim, observamos que nas
próprias referências que se fazem à língua, aparecem referências ao espaço-tempo e aos
sujeitos que a falam. Isso acontece a nosso ver por conta de uma necessidade prática da
descrição, uma vez que as línguas existem materialmente, isto é, são faladas por sujeitos
e em um espaço-tempo determinado. Porém, não se trata apenas de uma simples descrição
da língua, a especificação dos sujeitos e do espaço-tempo traz consigo alguns efeitos de
sentidos como pretendemos mostrar.
O tempo dessa língua é primordialmente o passado, como pode ser observado por
meio da presença de palavras e expressões, como é o caso de “antepassados”, “velhas
formas”, “antigo português”, “vocábulos arcaicos”, além da utilização de verbos no
pretérito imperfeito, como “eram” . No caso do espaço, este é delimitado como o “sul e
sudoeste paranaense” e como a “região meridional do nosso estado” .
Sobre os sujeitos que falam essa língua, esses são caracterizados como pessoas do
passado moradoras do interior, como se marca em “antigos habitantes do sul e sudoeste
paranaense”, “relacionamento cotidiano dos lendários tropeiros e agregados” ou mesmo
“antepassados” e “familiares e populares” .
A menção aos sujeitos e ao espaço-tempo que se faz presente no texto do prefácio
que aqui analisamos é central em argumentações do direito ao território16, e isso não foi
diferente no caso da questão de limites. À época do processo no STF, o estado do Paraná
se utilizou do argumento uti possidetis, isto é, que os paranaenses foram os primeiros a
chegar e a estabelecer um domínio nesse espaço. Aliás, a ligação dos ancestrais a um
território e a uma língua é uma questão própria da ideologia dos estados nacionais, que é
frequentemente mobilizada como uma tentativa de legitimar a ocupação e a delimitação
de um território. No caso em análise, são os antepassados, que falavam essa língua
específica, nessa região. É isso que justifica que a região seja delimitada como o Sul e
Sudoeste paranaense, e não como o Oeste e Planalto Norte catarinense.
E se os “nossos antepassados” que garantiram que parte desse espaço em disputa
fosse demarcado como parte do Paraná falavam essa (variedade de) língua, essa

16 Para um melhor entendimento do funcionamento das argumentações em políticas de direito à língua e


consenso etnocultural, remetemos à Rodríguez-Alcalá (2010).

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(variedade de) língua, depois de um tempo decorrido desde a questão dos limites, passa a
significar como uma tradição que merece ser preservada justamente pela ligação com o
espaço disputado e com os “nossos antepassados” . E aqui cabe perguntar: antepassados
de quem?
O prefácio não responde a essas questões. Ele apenas trata da preservação do
“linguajar dos nossos antepassados”, como se todos os paranaenses fossem descendentes
dos tropeiros, dos moradores dos antigos povoados e vilas ou das antigas fazendas da
pecuária paranaense. Há uma tentativa de fixar imaginariamente os sujeitos, o espaço e a
(variedade de) língua.
No entanto, se em uma rápida leitura identificamos uma língua que
imaginariamente se caracterizaria por ser falada no passado, nas regiões sul e sudoeste do
Paraná, por sujeitos ligados à pecuária, nem tudo se passa tão bem assim. Há problemas
que aparecem lateralmente no prefácio que apontam para a língua que está sempre em
movimento e recusa categorizações: a língua fluida.
Nesse sentido, vale retomar a distinção entre língua imaginária e língua fluida
estabelecida por Orlandi (2009). Do lado da língua imaginária, temos a língua
normatizada, presa em regras, fórmulas e esquemas que são artefatos produzidos pelos
estudiosos da linguagem ao longo da história e que permitem ter um imaginário de língua.
Do lado da língua fluida, temos a língua que não aceita limites, recusa sistematizações,
em suma, uma língua sempre em movimento. Essa mesma distinção é válida para pensar
o espaço-tempo. O que há no mundo é um espaço-tempo fluido, continuum, mas a partir
do Renascimento e das tecnologias que possuíam, “os europeus vão segmentar e
categorizar o espaço e o tempo fluidos do planeta (estabelecer os pontos cardeais, a
divisão dos hemisférios, a contagem do tempo...), produzindo o que chamamos de
espaço-tempo imaginário, cartográfico” (RODRIGUEZ-ALCALÁ, 2018, p. 77, grifos
da autora).
Essa distinção nos permite compreender melhor as referências feitas no corpo do
prefácio. Uma obra linguística tem a necessidade de descrever a unidade de uma língua
(ou de uma variedade linguística), mas, paradoxalmente, essa tentativa de delimitar a
unidade defronta-se com problemas.
Ao tentar delimitar o tempo da Gíria cabocla do sul do Paraná, aponta-se que
algo dela também é falado no presente, como pode ser observado em: “velhas formas de
expressão do antigo português, ainda hoje, aqui e acolá, vivas e atuantes”, “Tais
locuções, familiares e populares, eram e continuam vigentes na região meridional do

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nosso estado” e “a presença de vocábulos arcaicos [...] ainda circulando no recesso de


antigos povoados e vilas” .
Com relação ao espaço, este por vezes é ampliado. Em certos momentos fica posto
que parte da Gíria cabocla do sul do Paraná é ampla e comum a toda a região sul do
Brasil, como é dito em: “Muitas delas são peculiares, com variadas conotações, a toda
região meridional do território nacional".
Além disso, quando a descrição passa para o presente, os sujeitos que a falam são
caracterizados indiretamente por uma região geográfica, como é visível em “continuam
vigentes na região meridional do nosso estado”, ou por relação à profissões vinculadas à
educação e/ou à língua, como se observa em “característica de um cidadão bem educado""
e “nossos linguistas, lexicógrafos e, em geral, dos mestres que têm por sagrada missão a
educação das gerações que lhe são confiadas” .
Feito esse movimento de análise sobre o prefácio, passemos à análise dos verbetes.

3.2. Os verbetes
Em seu texto intitulado Lexicografia discursiva, Eni Orlandi (2013) propõe ler os
dicionários como discursos17, isto é, como textos produzidos em determinadas condições
de produção e atravessados pelo funcionamento da memória discursiva. Nesse mesmo
texto, a autora assinala que um processo ideológico próprio do dicionário é forjar o
imaginário de completude da língua, a partir de dois procedimentos: a intertextualidade e
a interdiscursividade. A intertextualidade se materializa na remissão de um verbete a
outros verbetes, em uma espécie de circuito fechado, e a interdiscursividade se apresenta
por meio da maneira pela qual a memória discursiva intervém na definição do verbete.
José Horta Nunes (1996), em sua tese de doutorado, expõe procedimentos
analíticos que nos permitem ver mais de perto o atravessamento da memória discursiva
em verbetes de dicionários. Para ele, inicialmente, é preciso montar inicialmente séries
heterogêneas do ponto de vista lexicográfico, mas homogêneas do ponto de vista
sintático. Depois, em uma segunda etapa, faz-se necessário observar as variações
sintáticas mais recorrentes, para, por fim, em uma terceira e última etapa, realizar
interpretações discursivas das regularidades sintáticas.
Ao analisarmos os verbetes de Gíria cabocla do sul do Paraná, levamos em conta
que este é um vocabulário organizado pelo critério alfabético. De tal modo, com vistas a

17Ainda sobre a leitura do dicionário como discurso, remetemos a Collinot e Mazière (1997).

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melhor compreender a especificidade deste vocabulário, delimitamos nosso movimento


de análise aos verbetes da letra M. Tal escolha buscou contemplar uma letra intermediária,
em que haja uma quantidade razoável de verbetes. Precisamos que o vocabulário
apresenta 106 entradas na letra M, as quais se caracterizam por serem palavras próprias
do léxico regional. Ademais, não há indicação de classe gramatical das palavras ali
reunidas e os poucos exemplos existentes parecem ser recolhidos do uso oral e/ou
formulados pelo próprio autor18. Inicialmente, realizamos a leitura de todos os verbetes
dessa letra e na sequência delimitamos duas séries de verbetes, a partir de regularidades
sintáticas nas definições, que apresentamos a seguir:

Quadro 1. Regularidades sintáticas nas definições.


Regularidade 1: Definição sinonímica Regularidade 2: Intertextualidade
MACANA - Velhaco; trampolineiro; espertalhão; MACHETINHO - Viola pequena. O mesmo que
patife; pirata. pinho.
MAGlNAR - Imaginar. MAMADO - Ebrio; bêbado. O mesmo que borracho,
MALECHO - Ruim; mal. chumbeado, caixa dágua, funil, garganta, porrista,
MALEVA - Malvado; perigoso; bandido; criminoso; torrado, trepado.
malfeitor. MARTELO - Trago de cachaça. O mesmo que
MALUCO - Desequilibrado; atordoado. codório, golpe, liso.
MANDINGA - Feitiçaria; malefício. MATA-BICHO - Cachaça; aperitivo. O mesmo que
MANDINGUEIRO - Feiticeiro. braba, milagrosa, parati, pinga, teimosa
MANINGÜERA - Franzino; raquítico; enfezado. MEXERICA - Laranja; mimosa. O mesmo que
MARTELO DA BRABA - Trago de cachaça. V. mixirica.
braba. MICO - Embriaguez; bebedeira. O mesmo que
MECÊ - Você, Vossa senhoria. borracheira, camoeca, carraspana, ganso, mona,
MEIADINHO -M eio; metade. pileque, porre, quatiara. “Pegar o m ico” significa
MELÃOZINHO - Dinheiro. embriagar-se.
MEMÓRIA - Anel; aliança. MILAGROSA - Aguardente; cachaça. O mesmo que
MIGUE - Regras; menstruação. braba, matabicho, parati, pinga, teimosa.
MILICO - Soldado; militar. MONA - Bebedeira; embriaguez. O mesmo que
MOCA - Café. borracheira, camoeca, carraspana, ganso, mico,
MOLAMBENTO - Sujo; seboso; porcalhão. pileque, porre, quatiara.
MOLOIDE - Fraco; covarde; preguiçoso; vadio. MULHERIO - O mesmo que mulherada.
MUQUE - Força.
Fonte: Adaptação minha a partir de Silva (1990, p. 38-40).

Na primeira regularidade, chamamos a atenção para a definição sinonímica. Ao


lado da entrada, são colocados sinônimos, por meio dos quais se realiza a definição. Esse
modo de definir é bastante comum no vocabulário e é utilizado para definir palavras de
diferentes categorias gramaticais e de diferentes temáticas. Assim, é possível observar
que palavras diversas que se referem desde qualidades dos seres humanos até objetos,
passando por profissões e ações são definidas de uma mesma maneira.

18 MOITA - Estar quieto esperando a caça; calado, à espreita; estar na espera; na surdina; estar escondido:
“O caboclo estava na m o ita e de im p r o v iso deu o golpe certo”; MORANGUINHO - Bicho de pé: “O
compadre estava cheio de m o r a n g u in h o s ” (SILVA, 1990, p. 40).

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Sinalizamos também que os sinônimos19 utilizados na definição das entradas são


palavras mais “neutras”, isto é, mais conhecidas e faladas por uma parcela maior da
população brasileira (MALECHO - Ruim; mal. MANDINGUEIRO - Feiticeiro.
MARTELO DA BRABA - Trago de cachaça. V. braba. MELÃOZINHO - Dinheiro.
MILICO - Soldado; militar. MOCA - Café. MUQUE - Força.). São palavras que não se
fazem presentes como entradas no vocabulário, o que nos leva a concluir que seus
sentidos não precisam ser explicitados, são conhecidos, óbvios, evidentes. Voltaremos a
isso.
Na segunda regularidade, que por vezes acompanha a primeira, apresentam-se
inicialmente sinônimos de fora da gíria cabocla e, na sequência, aponta-se para outras
entradas no vocabulário que tem o mesmo significado, o que se dá após a expressão “o
mesmo que” . Assim, apresentam-se sinônimos de dentro da gíria cabocla, isto é,
diferentes maneiras de dizer o mesmo dentro da gíria cabocla. Temos aí o funcionamento
da intertextualidade no interior do vocabulário.
Esse modo de definir que à primeira vista parece bastante simples deixa entrever
uma certa diferença linguística. Assinalamos que a definição sinonímia é um mecanismo
frequentemente utilizado em listas de palavras, glossários, vocabulários e dicionários
bilíngues. Todavia, se no caso dos instrumentos linguísticos bilíngues temos a inserção
de sinônimos de uma segunda língua que são o modo de definir um termo de uma primeira
língua, no caso do vocabulário da Gíria cabocla do sul do Paraná os sinônimos são
termos da língua nacional que não precisam ser definidos para o sujeito leitor, na medida
em que há a evidência que a língua nacional é compartilhada por todos. Assumindo essa
hipótese, teríamos então um funcionamento semelhante a uma espécie de tradução, que
poderíamos descrever como: “na gíria cabocla se fala assim, enquanto na língua nacional
se fala assado” . E ainda dessa mesma hipótese, o autor se colocaria como uma espécie de
tradutor, um sujeito que circula entre o sul do Paraná e a capital, que entende a gíria
cabocla e a língua nacional. Em suma, podemos dizer que as marcas da definição apontam
para uma “língua partida” (PETRI; MEDEIROS, 2013).
Sobre isso, vale esboçar algumas considerações. No Brasil do século XIX, a
questão da unidade da língua nacional se colocou em conjunto com a questão da

19 Ainda que lateralmente, precisamos que à medida que se coloca mais sinônimos para definir a entrada se
realiza um deslocamento de sentidos. É o caso por exemplo de “MOLAMBENTO - Sujo; seboso;
porcalhão” e “MOLOIDE - Fraco; covarde; preguiçoso; vadio”, em que temos, inicialmente, uma
característica física (sujo/fraco) que se desloca para uma característica moral (porcalhão/vadio).

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identidade nacional, justamente no momento da independência do Brasil em relação a


Portugal. E essa questão se materializou em uma série de dicionários monolíngues
produzidos no Brasil à época, que são analisados por Nunes (1996): dicionários de
regionalismos (Coleção de vocábulos e frases usados na Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul (1852), de Antonio Coruja), de complementos aos dicionários de língua
portuguesa ( Vocabulário brasileiro para servir de complemento aos dicionários da
língua portuguesa (1853), de Braz da Costa Rubim), de obras literárias (Vocabulário pós-
escrito de Diva (1865), de José de Alencar), de termos técnicos (Vocabulário dos termos
técnicos de construção naval (1888), de Antônio Alves Câmara) e de brasileirismos
(Dicionário brasileiro da língua portuguesa (1888), de Antônio Joaquim de Macedo
Soares e Dicionário de vocábulos brasileiros (1889), de Visconde Beaurepaire-Rohan).
E estando garantida a unidade da língua nacional, no começo do século XX,
desenvolve-se um processo de investigação sobre o regional, com vistas a complementar
a língua nacional e afirmar a identidade brasileira. Nesse período, observa-se “uma forte
partição sobre a língua” (PETRI; MEDEIROS, 2013, p. 45), isto é, uma tentativa de
distinção entre aquilo que seria próprio da unidade nacional e/ou da especificidade
regional. Esse processo de investigação sobre o regional se materializa na publicação de
diversas obras, tais como o Glossário Paraense, ou Coleção de vocábulos peculiares à
Amazónia e especialmente à Ilha de Marajó (1905), de Vicente Chermont de Miranda; o
Vocabulário pernambucano (1916/1937)20, de Pereira da Costa; O dialeto caipira (1920),
de Amadeu Amaral; O linguajar carioca, de Antenor Nascentes (1922); e o Vocabulário
gaúcho (1926), de Roque Callage. Acreditamos, portanto, que as marcas sintáticas de
sinonímia dos verbetes da Gíria cabocla do sul do Paraná devem ser compreendidas
dentro desse movimento entre o regional e o nacional.

Considerações Finais
Neste trabalho, buscamos dar a conhecer o vocabulário regionalista Gíria cabocla
do sul do Paraná, produzido por José Júlio Cleto da Silva. Para tanto, realizamos alguns
gestos analíticos iniciais, sempre perseguindo a tese discursiva de que sujeitos, sentidos
[linguagem] e espaço se constituem em um mesmo processo histórico. Agora, ressaltamos
algumas compreensões que nos parecem as mais interessantes.

20 De acordo com Nunes (2006), o Vocabulário pernambucano foi parcialmente publicado (até a letra B)
em 1916, pela Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco. Ainda de acordo
com Nunes (2006), o autor faleceu em 1923 e a primeira edição completa da obra deu-se somente em 1937.

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A primeira delas diz respeito ao gesto de nomeação do vocabulário. Nomeá-lo


como Gíria cabocla do sul do Paraná é tomar uma posição diante da questão dos limites
que se desenrolava entre Paraná e Santa Catarina. Usar o ajunto adverbial de lugar é dizer
que as terras em disputa eram parte do sul do Paraná, para não dizer que eram terras do
planalto norte de Santa Catarina.
Outra tem a ver com o prefácio do vocabulário. Nele, os sentidos do que é
nomeado como Gíria cabocla do sul do Paraná vão sendo construídos por meio de
diversas referências. Para falar da língua, também se fala do espaço-tempo e dos sujeitos.
E mesmo que se tente definir a unidade desses elementos, há algo que resiste à
categorização. Trata-se da relação contraditória entre a língua imaginária e língua fluida,
entre o tempo-espaço imaginário e o tempo-espaço fluido.
Uma última compreensão relaciona-se com os verbetes analisados. Esses são
definidos por meio da definição sinonímica, o que nos evoca uma memória de dicionários
bilíngues. Assim, o vocabulário analisado teria um funcionamento próximo a uma
tradução da gíria cabocla para a língua nacional, e o autor assumiria uma posição de um
tradutor que conhece a gíria cabocla e a língua nacional, que circula entre o sul do Paraná
e a capital.
Finalmente, se insistimos que, do ponto de vista das áreas de Análise de Discurso
e de Saber Urbano e Linguagem, sujeitos espaços e sentidos se constituem num mesmo
movimento histórico e político, a análise que aqui realizamos tenta mostrar como essa
tese pode ser produtiva para pensar a relação constitutiva do saber sobre a língua e sobre
o espaço, tendo em vista também a identificação dos sujeitos com a língua e com o espaço.
Assim, se desde as primeiras pesquisas em História das Ideias Linguísticas desenvolvidas
se abordou a constituição dos sujeitos e dos sentidos nacionais, a ideia de incluir também
o espaço introduz a constituição do espaço territorial nacional, bem como da identificação
com ele. Isto é, se há sentidos para sujeitos e para línguas, o que dizemos é que há sentidos
para sujeitos, para línguas e para espaços nacionais e, em nosso caso específico, regionais.

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C O RPO S E SENTIDOS EM DISPUTA: OS V ERBETES “M U L H ER ” E


“H O M E M ” NO DICCIONARIO DE LA LENGUA ESPANOLA

BODIES AND SENSES IN D ISPU TE: TH E EN TRIES “W O M A N ” AND “M AN”


IN TH E DICCIONARIO DE LA LENGUA ESPANOLA

Joyce Palha Colaça 1


Universidade Federal de Sergipe

Maria Caroline dos Santos Fonseca 12


Universidade Federal de Sergipe

Resumo: O modo como o feminino é enunciado repousa sobre uma memória da condição de
“ser mulher”, em nossa sociedade, em contraposição com o “ser homem”. Os dizeres sobre os
corpos perpassam, portanto, as diversas textualidades que nos cercam e significam na forma de
paráfrases de um mesmo repetível. Neste artigo, temos como objetivo analisar os discursos
reproduzidos nos verbetes “mulher” e “homem” em seis edições distintas do Diccionario de
laLenguaEspanola (DLE) da Real Academia Espanola. Com base no corpus explicitado,
propomos observar os sentidos que se repetem na memória sobre o feminino e o masculino,
bem como a forma como se dão as mudanças na ordem da enunciação, a partir dos recortes
produzidos sobre as definições relacionadas aos dois lemas selecionados para este estudo. Nossa
análise está fundamentada nos estudos do campo da Análise de Discurso materialista e da
História das Ideias Linguísticas. Após a organização do corpus e pela análise empreendida,
pudemos compreender, na história e de modo comparativo, como os verbetes analisados
reproduzem lugares para os corpos femininos que os delimitam ao espaço doméstico,
contrariamente aos corpos masculinos, que podem ocupar, de forma legítima, o espaço público.
Palavras-chave: História das Ideias Linguísticas; Dicionário da Língua Espanhola; Mulher;
Homem.

Abstract: The way in which the feminine is enunciated rests on a memory of the condition of
“being a woman”, in our society, as opposed to “being a man”. Therefore, the sayings about
bodies permeate the various textualities surrounding us and signify in the form of paraphrases of
the same repeatable. In this article, we aim to analyze the speeches reproduced in the entries
“woman” and “man” in six different editions of the Diccionario de la Lengua Espanola (DLE)
of the Real Academia Espanola. Based on the explicit corpus, we propose to observe the
meanings that are repeated in the memory about the feminine and the masculine, as well as the
way in which changes occur in the order of enunciation, based on the clippings produced on the
definitions related to the two mottos selected for this study. Our Analysis is based on studies in
the field of Materialist Discourse Analysis and the History of Linguistic Ideas. After organizing
the corpus and through the analysis carried out, we were able to understand, in history and in a
comparative way, how the analyzed entries reproduce places for female bodies that delimit them
to the domestic space, contrary to male bodies, which can legitimately occupy the public space.
Keywords: History of Linguistic Ideas; Spanish Language Dictionary; Woman; Man.

1 Doutorado em Estudos de Linguagem, Professora Associada de Língua Espanhola na Universidade


Federal de Sergipe. Email: ioy.palha@gmail.com.
2Mestranda em Letras, Universidade Federal de Sergipe. Email: carolinefonseca5h@gmail.com.

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Instrumentos Linguísticos
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Subm etido em 15 de agosto de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introdução

Por volta dos anos 1830, o sistema fabril absorveu muitas das atividades
econômicas tradicionais das mulheres. Claro, elas foram libertadas de
algumas de suas velhas tarefas opressivas. Ao mesmo tempo, porém, a
incipiente industrialização da economia minou o prestígio que as mulheres
tinham no lar - um prestígio baseado no caráter produtivo e absolutamente
essencial de seu trabalho doméstico até então. Por causa disso, a condição
social das mulheres começou a se deteriorar. Uma conseqüência ideológica
do capitalismo industrial foi o desenvolvimento de uma ideia mais rigorosa
de inferioridade feminina. De fato, parecia que quanto mais as tarefas
domésticas das mulheres eram reduzidas, devido ao impacto da
industrialização, mais intransigente se tomava a afirmação de que “o lugar da
mulher é em casa”.
Na verdade, o lugar da mulher sempre tinha sido em casa, mas durante a era
pré-industrial a própria economia centrava-se na casa e nas terras cultiváveis
ao seu redor. (...) O lugar das mulheres era mesmo em casa - mas não apenas
porque elas pariam e criavam as crianças ou porque atendiam às necessidades
do marido. Elas eram trabalhadoras produtivas no contexto da economia
doméstica, e seu trabalho não era menos respeitado do que dos seus
companheiros (DAVIS, 2016, p. 44-45. Grifos da autora).

Os discursos sobre a mulher se reproduzem nas mais diversas materialidades e


são muitos os caminhos que podemos trilhar para compreender os sentidos que se
constroem/construíram sobre os corpos femininos, suas formas de agir, ser e se
comportar. Neste artigo, temos como objetivo analisar os discursos reproduzidos nos
verbetes “mulher” e “homem” em seis edições distintas do Diccionario de
laLenguaEspanola (DLE) da Real Academia Espanola. Com base no corpus
explicitado, se busca observar os sentidos que se repetem na memória sobre um suposto
lugar para o feminino e para o masculino, bem como a forma como se dão as mudanças
na ordem da enunciação, quais sejam, as definições dos dois lemas selecionados para
este estudo.
O pressuposto teórico-metodológico que embasa este trabalho está
fundamentado na Análise de Discurso (AD) materialista, considerando principalmente
seu encontro com a História das Ideias Linguísticas em estudos no espaço de
enunciação brasileiro. Partindo dessa perspectiva, objetivamos desenvolver uma análise
que considere o entrelaçamento das questões de terminologia e de discurso, tendo em
conta os verbetes em sua historicidade, na sua relação com o interdiscurso, organizando-

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os em redes de sentidos que trabalham pela memória dos discursos sobre a mulher nas
definições do DLE nas edições analisadas.

1. Diccionario de la Lengua Espanola: instrum entos linguísticos e m em ória


Ao tomar as reflexões sobre os dicionários como instrumentos linguísticos, é
necessário reforçar a proposição de que as definições e os verbetes de um dicionário não
são transcrições de sentidos naturais e não estabelecem uma relação direta com algo que
existe no mundo. Os dicionários não mantêm organizado um conjunto de sentidos
denotativos, mas são construções históricas, que mostram, em sua materialidade, o
funcionamento da ideologia. Com isso, é importante compreender que as obras
lexicográficas não são somente livros com conjuntos de palavras e acepções, mas
resultado de um processo de retomada da memória e do trabalho do ideológico,
reproduzindo os sentidos que circula(va)m no tempo histórico e no espaço de
enunciação em que são/foram produzidos. Além disso, por sua função social (LARA,
1990, p.31) se colocam, imaginariamente, como mantenedores de verdade, apresentando
como da ordem da evidência aquilo que está dicionarizado.
Como nos ensina Horta Nunes (2021, p. 326)

A leitura do dicionário disponibiliza assim ao leitor/falante um modo de dizer


e pensar, a ser disseminado aos leitores. Deslocando de uma perspectiva
referencialista, a análise discursiva descreve a materialidade linguística da
definição lexicográfica, remetendo-a às condições históricas de produção dos
discursos. Com tendência a elidir o locutor, a definição funciona como um
dispositivo a ser apropriado por qualquer sujeito. Diante disso, a leitura que
realizamos procura relacionar os enunciados definidores aos discursos em
circulação em determinadas conjunturas.

É, portanto, por essa perspectiva discursiva da leitura dos dicionários, que


tomando a materialidade linguística em sua relação com as condições históricas de
produção e de circulação dos discursos, que nos debruçaremos sobre os verbetes
selecionados.

2. De A a Z , olhamos o M e retornam os p a ra o H
Em AD, o trabalho com corpus direciona nosso olhar e é nesse trabalho que
construímos nosso dispositivo teórico-metodológico. É na construção do objeto, no
procedimento de recortar (ORLANDI, 1984) e de de-superficializar o texto para
organizar as sequências discursivas que nós como analistas nos voltamos para a teoria

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para questionar nosso objeto. Aguilar et al (2014) defende que o exercício de escolha do
corpus já é parte constitutiva da pesquisa, pelo que podemos entender que os gestos de
leitura e de seleção do corpus já fazem parte do procedimento analítico em AD. Com
base nesse pressuposto, seguimos os seguintes passos para a delimitação do corpus: (i)
seleção do corpus a ser trabalhado; (ii) escolha dos dois lemas na versão online do
Diccionario Histórico de la Lengua Espanola (DHLE) e, também na versão online do
Diccionario de la Lengua Espanola (DLE)3; (iii) seleção das edições a serem
trabalhadas: 1780, 1817, 1884, 1992, 2001 e 20204; (iv) nos dicionários, selecionamos
as definições referentes aos verbetes “mujer” e “hombre”; (v) e, por fim, a partir desse
gesto de organização, selecionamos as definições que mostraram regularidades, pelas
quais pudemos organizar o material em redes de sentidos identificadas em nossas
análises.

3. Folheando dicionários, equivocando verbetes


Em seu trabalho sobre enciclopédias, tomando as reflexões de Horta Nunes
(2007), Esteves (2014) afirma que

há entre dicionários e enciclopédias diferentes imaginários daquilo que está


sendo tratado: os dicionários abordam a língua; as enciclopédias, os fatos, as
ciências, as técnicas. Ambos são instrumentos extremamente atrelados a uma
produção imaginária de conhecimento, mas cada um com um repertório de
objetos a serem construídos discursivamente na organização dos
instrumentos. Ademais, a presença de informação metalinguística na
discursivização dos referentes é determinante no funcionamento de
dicionários e enciclopédias. (ESTEVES, 2014, p. 67)

Com o objetivo de tratar sobre o funcionamento das enciclopédias, ora


comparando-as, ora distanciando-as dos dicionários, o autor nos aponta algumas
questões sobre nosso objeto de análise. Para Esteves, os dicionários tratam da língua e
apresentam, assim como as enciclopédias, um funcionamento metalinguístico na
discursivização dos referentes. A construção dos referentes no dicionário é então
histórica, mas produz sobre si um efeito de evidência que tenta se mostrar como

3O Diccionario Histórico de la Lengua Espanola (DHLE) é um acervo online que agrupa algumas
edições anteriores do Diccionario de la Real Academia Espanola. As versões presentes no site do DHLE
- que é de domínio da Real Academia Espanhola - apresenta as obras dos seguintes séculos e períodos:
1780, 1817, 1884, 1925, 1992 e 2001.
4O DLE atualmente está em sua 23a edição, datada de 2014, entretanto, sua versão digital é
constantemente atualizada. Considerando esta questão, utilizaremos a data de 2020 e não de 2014 em
nossa análise, pois tomamos como corpus a versão online atualizada no ano de 2020.

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atemporal, a-histórico, natural. Dicionários e enciclopédias têm, portanto, objeto e


organização distintos, mas podemos afirmar que compartilham similitudes no que se
refere ao seu funcionamento como discurso.
Nesta direção, o trabalho do analista do discurso é, portanto, compreender esse
funcionamento, visto que “os sentidos são, pois, históricos porque têm memória, porque
nela se inscrevem para significar, cabendo ao analista buscar compreender o processo
de naturalização de determinados sentidos em detrimento de outros.” (COSTA, 2017, p.
15). Tomando emprestadas as palavras de Pereira, Pacífico e Romão, podemos afirmar
que

(...) o sujeito, ao produzir determinados sentidos, silencia outros já que,


constituído pela ideologia, acredita que controla os sentidos que faz circular e
que ele não poderia significar de outra maneira. O discurso, dessa forma,
pode possibilitar tanto uma transformação na ordem vigente quanto a sua
manutenção, o que vem ocorrendo nas questões que abrangem os sentidos
sobre o feminino. Muitos dos sentidos produzidos sobre a mulher há séculos,
ainda se apresentam nos dias de hoje; porém, apontam um deslizamento, um
movimento de tensão entre o mesmo e a ruptura. (PEREIRA;
PACÍFICO; ROMÃO, 2009, s/p.)

Para proceder a nossa análise, organizamos os verbetes em quadros, com as


seguintes divisões: denominação; sequência discursiva; ano de publicação (do DLE).
Com essa organização, pretendemos dar visibilidade ao modo como se enlaçam os
sentidos que ultrapassam uma edição, para que seja possível dar a ver as paráfrases que
se constituem nos eixos da enunciação/formulação.
Nossa organização para análise, portanto, não está feita por edição do DLE, mas
é já resultado de nosso gesto sobre a materialidade a partir de direções de sentidos que
organizamos em redes. Também nos importa frisar que não nos interessa tratar das
materialidades de maneira exaustiva e não pretendemos dar conta de uma suposta
completude do que seria a representação sobre “mulher” e “homem” nas edições
analisadas, pois não é esse um objetivo deste campo de estudo.
Uma das questões que nos levou a selecionar os dois verbetes em tela foi a
relação direta que se estabelece, no fio discursivo, entre “mulher” e “homem”, ou seja,
nas próprias definições das acepções do verbete “mulher” o masculino comparece.
Assim, ainda que nosso objetivo inicial fosse compreender os sentidos sobre o
feminino, foi quando nos debruçamos sobre a materialidade que o dito (imposto) se fez
presente, direcionando nosso olhar para o seu Outro. Podemos considerar, portanto, que,

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Instrumentos Linguísticos
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nessas condições, os dicionários funcionam como observatório da subjetividade


(HORTA NUNES, 2021) pela forma como significam determinados sujeitos. Por este
movimento, buscamos compreender como a mulher é significada em relação ao homem
por sua união, pois a noção de casamento é uma constante nas definições encontradas.

Q u a d r o 1 - M u lh e r c a s a d a co m u m h o m e m
D efin içã o S e q u ê n c ia d isc u r s iv a (S D ) A n o d e p u b lic a ç ã o
casada; Muger DLE (1780) SD1
marido; Se entiende regularmente por la que está c a s a d a , con relación al
m a r id o . Uxor.5
casada; Muger DLE (1817) SD 2
marido; Se entiende regularmente por la que está c a s a d a , con relación al
m a r id o . Uxor.
casada; Mujer DLE (1884) SD 3
marido; La c a s a d a , con relación al m a r id o .
casada; Mujer DLE (1992) SD 4
marido; La c a s a d a , con relación al m a r id o .
casada; Mujer DLE (2001) SD 5
marido; Mujer c a s a d a , con relación al m a r id o .
F o n te: Elaboração autoral.

Parece-nos interessante começar essa análise com a rede de sentidos que vincula
a mulher automaticamente a um casamento, pois este é um papel constantemente
imposto à mulher.

O espaço destinado à mulher, historicamente, na sociedade, foi a casa e as


questões familiares. Sendo assim, já há muitos anos as mulheres ocupam-se
do lar, dos afazeres domésticos e da educação dos filhos. Diferentemente do
homem, a quem era permitido transitar tanto pelo espaço familiar quanto pelo
espaço público, o lugar da mulher era apenas o interior da casa, o que a
impossibilitava, quase invariavelmente, de manter-se em um emprego de
qualquer natureza, obrigando-a a depender financeiramente do marido.
(PEREIRA; PACÍFICO; ROMÃO, 2009, s/p),

Seguindo essa linha, encontramos marcas na língua que não somente


mencionam que a mulher possui um casamento, mas que especificam o mesmo: “es
casada com relación al marido ”. Em todas as entradas do quadro anterior, da SD1 à
SD5, a figura feminina está vinculada ao marido. Ao tê-lo em conta, podemos
compreender uma vinculação direta, que coloca a mulher como patrimônio do marido.
“Mulher”, nessas condições de produção, passa a ser enunciada diretamente como
“mulher casada”, em uma relação de dependência. A repetição que se apresenta nas
diferentes versões do DLE mostra o repetível na história, a estabilização de

5A palavra Uxor tem origem latina e, segundo se lê no Dicionário Glosbe significa: mulher casada,
esposa. Disponível em: https://pt.glosbe.com/la/pt/luxor. Acesso em: 10 jul. 2023.

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determinados sentidos, a cristalização de um lugar em dicionários de 1780 a 2001,


memória institucionalizada.

Q u a d r o 2 - H o m e m q u e é ca sa d o
D efin içã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
mí; Hombre DLE (1780) SD 6.
hombre; Marido, hablando la muger; y así se dice: m i H O M B R E hizo
esto, mi HOMBRE dixo lo otro. Vir.
marido; Hombre DLE (1817) SD 7.
. Entre el vulgo lo mismo que M A R ID O .
marido; Hombre DLE (1884) SD 8.
Entre el vulgo, m a rid o .
marido; Hombre DLE (1992) SD 9.
m. Entre el vulgo, m a rid o .
marido; Hombre DLE (2001) SD 10.
m. coloq. M a r id o .
F o n te: Elaboração autoral.

Nesse quadro, são apresentadas as sequências discursivas referentes a uma rede


que nomeamos como “Homem que é casado”, ou seja, as acepções que direcionavam
para essa vinculação. N a SD 6 se lê sobre a mulher que chama a “seu marido” de
homem, “mi hombre”, e, na SD 7, há apenas a menção de que o homem está em um
casamento. Ainda que na SD 6 haja a presença do possessivo, o que se lê não é o
homem como propriedade da mulher, mas uma construção que enuncia certo orgulho,
uma forma de se referir que exalta o homem que fez algo.
Quando tomamos a SD 7 de maneira comparativa com as SD 1, 2, 3, 4 e 5, se
nota una grande discrepância. Nessas, a mulher está sempre enunciada em sua relação
com o casamento, com o marido, enquanto o homem é somente marido e não marido
com uma esposa. O que não comparece, neste lugar, é relação de propriedade, não é um
marido de sua esposa, como pudemos ler nas sequências que tratam do verbete
“mulher” . Ainda que o nome “marido” se refira a um homem casado com outra pessoa,
nas definições que tratam do “homem”, nos dicionários, a vinculação não está
enunciada. No quadro 3, ainda se trata da relação conjugal, colocam-se, ainda, as
relações “esposa” e “marido”, como se lê:

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Instrumentos Linguísticos
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Q u a d r o 3 - O u tr o m em b r o
D efin iç ã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
esposa f. E sp o sa o p a r e ja fe m e n in a habitual, con relación al o tro DLE (2020) SD 11
parejafemenina; m ie m b r o de la pareja.
otromiembro
marido; m. coloq. M a r id o o p a r e ja m a sc u lin a habitual, con DLE (2020) SD 12
pareja relación al o tro m ie m b r o de la pareja.
masculina;
otro miembro;
F o n te: Elaboração autoral.

Apesar de tratar dos referentes “mulher” e “homem” pelas relações amorosas,


este grupo de enunciados estende as relações para um espaço fora da
heteronormatividade. Na edição de 2020 do DLE, outra interpretação das relações
familiares se apresenta e há uma ruptura na forma como se “pode” definir um vínculo
conjugal entre duas pessoas pela inserção de “outro miembro de la pareja”6, forma que
coloca em jogo a polissemia (ORLANDI, 2009, p. 36) e a possibilidade do mesmo e do
diferente, do que se vincula ao já repetível na memória, ao tempo que instaura direções
outras de dizer, atualizados pelas condições de produção atuais que nos permitem
compreender a dicionarização de sentidos que não compareciam em outros momentos
históricos.
Além das relações amorosas, um espaço comumente à mulher é o lar, sendo a
casa um cenário recorrente e persistente na associação com a denominação “mulher” .

Q u a d r o 4 - D o n a d e c a sa
D efin iç ã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
cuida de su Muger DLE (1780) SD 13
hacienda y MUGER DE SU CASA
familia con . La que tiene gobierno y disposición para mandar y executar
mucha las cosas que la pertenecen, y c u id a d e su h a c ie n d a y
exacción; fa m ilia co n m u c h a e x â c c io n y diligencia. Mulier domi
sollicita.
Mujer en la Hombre DLE (1884) SD 14.
casa; El hombre en la plaza, y la m u je r e n la c a s a .
ref. que ensena que así como el hombre tiene, por lo regular,
que ganar para la vida fuera de su casa, la mujer debe cuidar
en ella de su hacienda.
cuida de su Mujer DLE (1817) SD 15
hacienda y MUGER DE SU CASA
familia con . La que tiene gobierno y disposición para mandar y
mucha ejecutarlas cosas que le pertenecen, y c u id a d e su h a c ie n d a
exactitud; y fa m ilia co n m u c h a e x a c titu d y diligencia. Mulier domi
sollicita.
cuida de su Mujer de su casa. DLE (1884) SD 16
hacienda y La que tiene gobierno y disposición para mandar y
familia con ejecutarlas cosas que le pertenecen, y c u id a d e su h a c ie n d a

6 “Outro membro do casal”. (Tradução nossa)

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mucha exactitud y diligencia.


y fa m ilia co n m u c h a e x a c titu d
cuida de su mujer de su casa. DLE (1992) SD 17.
hacienda y La que tiene gobierno y disposición para mandar y ejecutar
familia con los quehaceres domésticos, y c u id a d e su h a c ie n d a y
exactitud; fa m ilia co n e x a c titu d y diligencia
Con diligencia mujer de su casa. DLE (2001) SD 18
se ocupa de 1. f. La que co n d ilig e n c ia se o c u p a d e lo s q u e h a c e r e s
losquehaceres d o m é stic o s y cuida de su hacienda y familia.
domésticos;
F o n te: Elaboração autoral.

Nesse quadro, estão descritas as sequências discursivas que fazem referência às tarefas
domésticas e ao cuidado com o lar. Comparecem tais dizeres em cinco das seis entradas
analisadas. No lema referente à versão atual do DLE, também foi encontrada essa
definição, mas com a marca de uso desus. Ou seja, que a mesma está em desuso, o que
podemos associar às transformações das relações históricas delineadas por outras
formas de dizer sobre a mulher, resultado das disputas históricas protagonizadas pelo
movimento feminista. Nesse embate de outras formas de dizer, é preciso destacar as
discussões que levantam autoras do feminismo negro, como Angela Davis (2016) e
Carla Akotirene (2020), referente às relações entre mulheres e trabalho. Enquanto havia
uma discussão propagada pelo feminismo sobre os direitos trabalhistas da mulher, tais
autoras destacam que esta não era uma questão para as mulheres negras, que sempre
ocuparam espaços fora dos seus lares, trabalhando no cuidado de outras famílias,
deixando, muitas vezes, o cuidado de seus filhos.

O pensamento feminista se deu mediante a construção a ferro e águas


atlânticas, e a interseccionalidade veio até nós como ferramenta ancestral.
Não por acaso, Soujourner Truth, nascida acorrentada ao escravismo, vendida
em leilão aos nove anos de idade, junto ao gado, tornou-se pioneira do
feminismo negro. Em discurso de improviso Eu não sou uma
mulher?, proferido em 1851, durante a Convenção dos Direitos das Mulheres
em Ohio, em Akron, ela denunciou que “ninguém nunca me ajudou a subir
nas carruagens, nem pular poças de lama [...], eu tive treze filhos e vi a
maioria ser vendida pra escravização”. Nestes fragmentos, a intelectual
pioneiramente articula raça, classe e gênero, questionando a categoria mulher
universal, mostrando que se a maternagem obrigatória revela um destino para
todas as mulheres, seria apropriado ressaltar que os filhos e as filhas das
africanas eram vendidos escravizados (AKOTIRENE, 2020, p. 25. Aspas e
grifos da autora).

Outra questão que se deve ressaltar é que a reivindicação para o trabalho se


fazia, portanto, por parte de mulheres brancas que tinham como ocupação a casa e
outras poucas profissões que se dedicavam ao cuidado, como professoras e enfermeiras,
por exemplo. As definições que mostram a mulher como dona de casa, do lar, dos

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Instrumentos Linguísticos
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afazeres domésticos apagam as questões de raça e silenciam os corpos que, desde o


período escravagista, já ocupavam outros espaços de trabalho.
No que se refere ao lugar da mulher branca, cujo espaço de atuação estava
restrito ao doméstico, é possível perceber uma mudança na direção de sentidos, visto
que em todos se reproduz o imaginário da mulher comprometida que cuida da sua casa e
sua família sem a marca de uso desus., sendo este o papel imposto à mulher, que vem se
perpetuando por muitos séculos. No eixo da formulação, o que se lê é o funcionamento
dos lugares de memória, instituindo paráfrases na produção do discurso.

Q u a d r o 5 - T o r n a r -se m u lh e r
D efin iç ã o /D e n o m in a ç ã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
menstruar; Muger DLE (1780) SD 19
SER MUGER
. f. con que se explica haber llegado una moza á
estado de m e n s tr u a r . Viripo tentem ese mulicrem.
menstruar; Muger DLE (1817) SD 20
SER MUGER
. f. con que se explica haber llegado una moza á
estado de m e n str u a r. Viro matura.
Mujer DLE (1884) SD 21
pubertad; La que ha llegado a la edad de la p u b e r ta d .
Mujer DLE (1884) SD 22
menstruar; Ser mujer.
fr. Haber llegado una moza á estado de m e n str u a r
pubertad; Mujer DLE (1992) SD 23
f. La que ha llegado a la edad de la p u b e r ta d .
menstruar; Mujer DLE (1992) SD 24
ser mujer.
fr. Haber llegado una moza a estado de m e n str u a r .
pubertad; Mujer DLE (2001) SD 25
edad adulta; 2. f. mujer que ha llegado a la p u b e r ta d o a la
e d a d a d u lta .
menstruación; Mujer DLE (2001) SD 26
ser una nina o adolescente.
1. loc. verb. Haber tenido la m e n str u a c ió n por
primera vez.
edad adulta; 2. f. mujer que ha llegado a la e d a d a d u lta . DLE (2020) SD 27.
menstruación; ser mujer una nina o adolescente DLE (2020) SD 28
1. loc. verb. Haber tenido la m e n str u a c ió n por
primera vez.
F o n te: Elaboração autoral.

No quadro “Tornar-se mulher”, nosso gesto de interpretação se centrou em


organizar os lemas que apresentavam uma relação direta entre menstruar e tornar-se
mulher, pelo que se depreende que a figura feminina adulta é aquela que menstrua e que
está pronta para a reprodução sexual. É também, pela paráfrase que se diz “menstruar” e
“chegar à puberdade” . Ser mulher significa sair do período da infância, delimitando os

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Instrumentos Linguísticos
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sentidos sobre a transformação a um aspecto do corpo feminino, a uma questão


biológica. Ser mulher é menstruar, é entrar na puberdade e reproduzir. São silenciadas,
neste gesto, as mulheres que não menstruam, seja por questões biológicas, seja por sua
transgeneridade.

Q u a d r o 6 - T o r n a r se h o m e m
D efin içã o S e q u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
entrar a la Hombre DLE (1780) SD 29.
polla; HACERSE HOMBRE
. f. En el juego del hombre es lo mismo que e n tr a r a la p o lla .
In ludo chartarum pictarum pracipuas partes agere.
edad viril ó Hombre DLE (1817) SD 30.
adulta; . El que ha llegado a la ed a d v ir il o a d u lta .
edad viril ó Hombre DLE (1884) SD 31.
adulta; El que ha llegado á la e d a d v ir il o a d u lta .
edad viril o Hombre DLE (1992) SD 32.
adulta; m. El que ha llegado a la e d a d v ir il o a d u lta .
edad adulta; Hombre DLE (2001) SD 33.
3. m. Varón que ha llegado a la e d a d a d u lta .
edad adulta; 3. m. Varón que ha llegado a la e d a d a d u lta . DLE (2020) SD 34.
F o n te: Elaboração autoral.

Neste grupo de sequências, é possível notar a diferença do que é tornar-se


homem. Enquanto na tabela 6 tornar-se mulher estava automaticamente ligado com o
fato de menstruar, virar homem está relacionado ao menino - que em breve se tornará
homem - em jogar e praticar atividades de aposta, como apresentado na SD 10, em que
“entrar a lapolla” tem relação com jogos praticados por homem relacionados a aposta.
Ao realizar a busca da entrada “polla”, encontramos as seguintes acepções: jogo
de homens em que há aposta, o animal galinha, e uma mulher jovem, além de uma
maneira vulgar de chamar o órgão sexual/ biológico masculino. O discurso machista se
materializa nas referências que são colocadas pelo trabalho da memória (PÊCHEUX,
2007) do que é tornar-se homem. Tornar-se mulher se põe como uma questão biológica,
ao passo que para o homem é uma entrada na vida social.
No quadro seguinte, estão postas as sequências discursivas cujos dizeres
remontam à “mulher da vida airada” .

Q u a d r o 7 - M u lh e r d a v id a a ir a d a
D e fin iç ã o S e q u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
ramera; Muger DLE (1817) SD 35
MUGER DEL PARTIDO
Lo mismo que R A M E R A . Mulier libera, velim
pudicae vitae.
prostituta; Muger DLE (1817) SD 36
ramera; MUGER PERDIDA

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Instrumentos Linguísticos
383

La r a m e r a , viciosa, p r o stitu ta y de mal vivir.


Meretrix, scortum.
vida airada; mujer del arte, de la v id a a ir a d a , del partido, de DLE (1884) SD 37
mala vida; mala vida, ó de m a l v iv ir .
ramera; R am era.
pública; mujer mundana, perdida, o p ú b lic a . DLE (1992) SD 38
perdida; ra m e ra .
ramera;
arte; mujer del a r te . DLE (2001) SD 39
prostituta; 1. f. p ro stitu ta .

punto; Mujer del partido, o dep u n to . DLE (2001) SD 40


prostituta; 1. f. p r o stitu ta

calle; mujer de la c a lle DLE (2020) SD 41


prostituta; 1. f. mujer normal y corriente.
2. f. P r o stitu ta que busca a sus clientes en la
calle.
F o n te: Elaboração autoral.

A análise feita nesta rede de sentidos está relacionada às acepções que


denominam a mulher em referência à determinada forma de vida, vida airada, leviana,
prostituta, mulher da arte. Tais denominações se vinculavam a formas de dizer para
todas as mulheres que não eram do lar, pela contraposição que se estabelece nas
definições do verbete “mulher” explicitadas no Quadro 1. Com exceção da entrada de
1780, todos os demais lemas das edições do DLE apresentam alguma definição que
relaciona a mulher à prostituição, como nos substantivos “ramera” e “prostituta”. Tais
definições não se referem somente às mulheres que são profissionais do sexo, mas
também fazem referência às mulheres que vivem uma vida sem casamento.
Na leitura destes recortes, nos chama a atenção a edição de 2001, em que se lê:
“mulher da arte; prostituta”, definição que não aparece relacionada ao verbete
“homem” . Mais à frente, na rede de sentidos “conhecimento masculino”, veremos que,
quando relacionado à arte, discursiviza-se um homem inteligente e não um prostituto,
ou um homem de má vida.

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Q uadro 8 - H o m e m d a v id a a ir a d a
D e fin iç ã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
Hombre; Hombre DLE (1817) SD 42.
gente; H O M B R E , G E N T E , MUGER Ó PERSONA
libre; DE LA VIDA AIRADA
guapo; . loc. fam. que se dice del que vive lib r e y
licenciosamente, y también del que se precia de
g u a p o y valenton. Perditus, balatro.
Hombre ó muger; H O M B R E Ó M U G E R DE MALA VIDA DLE (1817) SD 43.
. El vicioso y entregado a la vida licenciosa.
Luxuriosae vitae homo.
guapo; hombre de la vida airada. DLE (1884) SD 44.
valentón; El que se precia de g u a p o y v a le n tó n .
licenciosamente; hombre de la vida airada. DLE (1884) SD 45.
El que vive lic e n c io sa m e n te .
guapo; hombre de la vida airada. DLE (1992) SD 46.
valentón; El que se precia de g u a p o y v a le n tó n .
licenciosamente; hombre de la vida airada. DLE (1992) SD 47.
El que vive lic e n c io sa m e n te .
F o n te: Elaboração autoral.

O Quadro 8 foi organizado a partir das sequências que partem do imaginário do


“homem da vida airada” . Em uma primeira leitura, o que nos chama a atenção é que
apresentam enunciados sobre tal acepção as edições até o ano de 1992, diferente do
quadro anterior, que se mantém até o ano de 2020. Também não comparecem, dentre as
definições para este grupo, marcas na língua que indiquem que este homem da vida
airada seja um profissional do sexo ou que viva de maneira “errada” ou “equivocada” .
Ao contrário, se encontra o imaginário de um homem livre, que vive licenciosamente.
O que se materializa, neste caso, são sentidos que se vinculam à imagem de um homem
rebelde, valentão e até mesmo bonito, como marcado nas edições de 1817, 1884 e 1992.
O quadro que se segue é o menor de nossa análise, em virtude das definições
encontradas nas edições visitadas e tal questão, nos parece, está diretamente relacionada
ao tema de nosso recorte: o conhecimento feminino.

Q u a d r o 9 - C o n h e c im e n to fe m in in o
D e fin iç ã o S e q u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
ciencias humanas; mujer de letras. DLE (2001) SD 48.
f. La que cultiva la literatura o las c ie n c ia s
h u m an as.
F o n te: Elaboração autoral.

Como se lê no Quadro 9, encontramos apenas uma definição que relaciona a


mulher ao campo do conhecimento. Para a AD, o não dizer significa, aquilo que é
ausente significa também em sua falta e a ausência de acepções que relacionem a

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Instrumentos Linguísticos
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mulher a conhecimentos acadêmicos e científicos traz à baila a projeção para os lugares


e os espaços que ela não pode/ não deve ocupar ou que, imaginariamente, não se espera
que ocupe.

O silên cio in dica que o sentido pode sem pre ser outro e, m uitas v e z e s, o m ais
im portante é aquilo que não se d iz (O R L A N D I, 1997). A m aterialidade
sign ificante do silên cio caracteriza-se co m o sendo diferente da m aterialidade
sign ificante da lin gu agem e é esse o principal fator que in flu en cia na m aneira
p ela qual se produz sentido. (PER EIR A , p A c ÍFICO e R O M Ã O , 2 0 0 9 )

Enquanto há uma profusão de definições que relacionavam a mulher ao espaço


de tarefas domésticas no Quadro 4, o que não se lê, aqui, é sintoma da repetição do
mesmo. A não representação da mulher em áreas do saber reflete a interdição ao espaço
público e aos nichos intelectuais formados por uma elite branca masculina em
incontáveis séculos.
Como em AD, os sentidos estão em relação a (PÊCHEUX, 1988 [1975]),
trazemos para nossa análise um último quadro que trata das definições que tocam em
questões acerca do conhecimento masculino, ou, dito de outro modo, da relação
estabelecida entre o homem e os espaços de saber de produção de conhecimento.

Q u a d r o lO - C o n h e c im e n to m a sc u lin o
D e fin iç ã o S e q u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
H om bre D L E (1 8 1 7 ) SD 49.
LITERATO ; HO M BRE D E LETRAS
. L o m ism o que L IT E R A T O .
sabio; H om bre D L E (1 8 1 7 ) SD 50.
artes; H O M B R E D E A M B A S Ó D E T O D A S SILLA S
facultades; . met. E l que es sa b io e n varias a rte s ó fa c u lta d e s.
Homo diversis scientiis doctus, peritus.
H om bre D L E (1 8 1 7 ) SD 51.
m ucho; H O M BR E LLENO
sabe; . m et. E l que sa b e m u c h o . Valdè sapiens
H om bre D L E (1 8 1 7 ) SD 52.
HOM BRE D E B U E N A S L E TR A S
B U E N A S LE TR A S; . E l versad o en letras hum anas. Litteratus, litteris
humanioribus politus.
H O M BR E; H O M B R E , SU G E T O , P E R S O N A , G E N T E D E D L E (1 8 1 7 ) SD 53.
P E R SO N A ; LETRAS
. E l d octo é instruido. Litteratus, eruditus.
instruído; hom bre hecho. D L E (1 8 8 4 ) SD 54.
facultad; fig. E l in str u íd o ó versad o en una fa cu lta d .
sabio; hom bre de am bas sillas. D L E (1 8 8 4 ) SD 55.
artes; fig . E l que e s sa b io en varias a rte s ó fa cu lta d es.
facultades;
buenas letras; hom bre de b u e n a s letra s. D L E (1 8 8 4 ) SD 56.
E l versad o e n letras hum anas.
Literato; H om bre de letras D L E (1 8 8 4 ) SD 57.
L ite ra to .

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mucho; Hombre lleno. DLE (1884) SD 58.


sabe; fig. El que sa b e m u c h o .
derecho; Hombre hecho o hecho y d e r e c h o . DLE (1992) SD 59.
instruido; (Del lat. homo, -ínis.)
facultad; fig. El in str u id o o versado en una fa c u lta d .
sabio; hombre de ambas sillas. DLE (1992) SD 60.
artes; (Del lat. homo, -ínis.)
facultades. fig. El que es sa b io en varias a rte s o fa c u lta d e s .
sabe; Hombre lleno. DLE (1992) SD 61.
mucho; (Del lat. homo, -ínis.)
fig. El que sa b e m u c h o .
buenas letras; hombre de b u e n a s le tr a s . DLE (1992) SD 62.
(Del lat. homo, -ínis.)
El versado en letras humanas.
Literato; hombre de letras. DLE (1992) SD 63.
lite r a to .
dedica; hombre de ciencia. DLE (1992) SD 64.
científicas; El que se d e d ic a a actividades cien tífic a s.
ciencias humanas; Hombre de letras. DLE (2001) SD 65.
1. m. El que cultiva la literatura o las cie n c ia s
h u m an as.
F o n te: Elaboração autoral.

De uma maneira contrária ao quadro anterior, lê-se nesse último quadro um


grande número de sequências discursivas que definem o homem como possuidor de
conhecimentos humanos, científicos, literários e artísticos desde o século XVIII. O
lugar do homem das boas letras, das ciências humanas, aquele que sabe muito,
conhecedor das artes e faculdades ocupa, no dicionário analisado, um espaço
significativo com cinco definições tanto na edição de 1817, como na de 1884, seis
definições na edição de 1992 e uma na edição de 2001. Evidencia-se, nesse ponto, o
privilégio da representação masculina em diversos âmbitos da vida pública, incluindo-se
aí o campo intelectual.

Considerações finais
Nesse artigo, tentamos percorrer um caminho de análise a partir das relações que
se sobrepunham nas textualidades, tomando como ponto de partida os verbetes
“mulher” e “homem” nas diferentes edições do DLE. Com essa forma de organização,
buscamos dar a ver as materialidades de forma sequencial, evidenciando as relações que
se estabeleciam na forma de paráfrases quando se tratava do lugar da mulher
imaginariamente projetado nas definições em tela. Na esteira dessa discussão, buscamos
mostrar como, de certo modo, o DLE repete lugares de memória do que é ser mulher e
institui um lugar diferente para o modo de ser homem. A esse modo de dizer é possível
sublinhar o funcionamento de formações discursivas que, por um lado, se apoiam no

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Instrumentos Linguísticos
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patriarcado e, por outro, o reproduzem na forma de evidências sobre o masculino e o


feminino ao longo das seis edições do DLE.
Ainda que em nosso gesto de organização do corpus tenhamos catalogado as
sequências em dez redes de sentidos, é importante ressaltar que todas nos fizeram visitar
os mesmos espaços de dizer: o privilégio do homem branco e a produção de uma
imagem de mulher universal, branca, pecadora, impura, imaginariamente posse de
outrem, silenciada em sua diversidade. Tal como afirma Lara (1990, p. 39) o dicionário
é uma memória da sociedade, e, em uma perspectiva materialista, podemos dizer que as
relações de força e as disputas se colocam na linearidade do que se lê.
Considerar os dicionários como instrumentos linguísticos é tomar o que
formulou Auroux ao tratar sobre o processo de gramatização das línguas. Para o autor,

A gramática não é uma simples descrição da linguagem natural; é preciso


concebê-la também como um instrumento linguístico: do mesmo modo que
um martelo prolonga o gesto da mão, transformando-o, uma gramática
prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de formas que não
figuram juntas na competência de um mesmo locutor. Isso é ainda mais
verdadeiro acerca dos dicionários: qualquer que seja minha competência
lingüística, não domino certamente a grande quantidade de palavras que
figuram nos grandes dicionários monolíngües que serão produzidos a partir
do final do Renascimento (o contrário tornaria esses dicionários inúteis a
qualquer outro fim que não fosse a aprendizagem de línguas estrangeiras).
Isso significa que o aparecimento dos instrumentos lingüísticos não deixa
intactas as práticas lingüísticas humanas. (AUROUX, 2009, p. 70. Itálicos do
autor).

Os dicionários, assim como as gramáticas, dão conta de uma mostra de língua


que supera o conhecido de qualquer sujeito, funcionando como ferramentas que
trabalham na relação tensa entre o expandir/delimitar/instituir saberes sobre as línguas.
Em nosso corpus de análise, foi possível trilhar um caminho de compreensão do
Diccionario de la Real Academia na sua relação com a história e compreender como,
nas textualidades que nele se discursivizam, ser mulher está sempre determinado por
algo que está à revelia da própria mulher, seja por sua relação com o marido, pelo
espaço que ocupa, ou por uma transformação biológica em seu corpo. Nos discursos que
se reproduzem no DLE, a mulher é domínio do outro, sem saber e sem desejo.

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Instrumentos Linguísticos
390

A GRAMÁTICA ANNOBONESA, DE N ATÁLIO BARRENA: UMA G RA M Á TICA


M ISSIO NÁ RIA DE UMA LÍNGUA CRIO U LA

TH E GRAMATICA ANNOBONESA BY N ATÁLIO BARRENA: A M ISSIONARY


G RA M M A R O F A C R E O L E LANGUAGE

Cássio Daniel Siqueira1


Universidade Federal de Santa Catarina

Ana Lívia Agostinho12


Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo: O escopo desta pesquisa consiste na análise de descrições gramaticais do fa d’Ambô na obra
Gramatica Annobonesa (1957), escrita pelo missionário católico Natalio Barrena, no período colonial.
O fa d’Ambô é uma língua crioula falada maioritariamente em Ano Bom - ilha que compõe o território
da República da Guiné Equatorial, no Golfo da Guiné. É uma das quatro línguas que constituem a
família de línguas do Golfo da Guiné, junto às línguas santome, angolar (Ilha de São Tomé), e lung’Ie
(Ilha do Príncipe). Buscaremos, à luz da historiografia linguística (SCHUCHARDT, 1979; GRANDA,
1986; BATISTA, 2005; ALTMAN, 2011; POST, 2013; FERNANDES, 2015):(i) situar a Gramatica
Annobonesa (1957) entre obras de tradição gramatical missionária como uma das últimas publicações
(e talvez a última) deste tipo, marcada pela transposição do protótipo gramatical renascentista, em
conformidade à posição paradigmática do modelo greco-latino (cf. AGOSTINHO 2021); (ii) atentar
para as peculiaridades da obra ante a gama de trabalhos produzidos por missionários considerando que
não há um modelo greco-latino único (ALTMAN, 2011); e (iii) compreender de que forma os
fenômenos linguísticos do fa d’Ambô são classificados, a fim de fornecer hipóteses acerca do olhar do
autor sobre a língua, ou seja, a concepção de língua implícita nas descrições.
Palavras-chave: fa d’Ambô; línguas crioulas; linguística missionária; historiografia linguística; Golfo
da Guiné.

Abstract: The scope of this research consists of analyzing grammatical descriptions of fa d’Ambô in
the book Gramatica Annobonesa (1957) written by Catholic missionary Natalio Barrena during the
colonial period. Fa d'Ambô is a creole language mainly spoken on the island of Ano Bom, which is part
of the territory of the Republic of Equatorial Guinea in the Gulf of Guinea. It is one of the four languages
that make up the Gulf of Guinea language family, along with Santome, Angolar (São Tomé Island), and
Lung’Ie (Príncipe Island). In light of linguistic historiography (SCHUCHARDT, 1979; GRANDA,
1986; BATISTA, 2005; ALTMAN, 2011; POST, 2013; FERNANDES, 2015), we will: (i) position the
Gramatica Annobonesa(1957) among missionary grammatical works as one of the last publications

1 Graduando do curso de Letras-Português da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail:


sq.cassiodaniel@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0009-9257-6237. Este artigo é resultado da pesquisa
“Análise da obra Gramática Annobonesa, de Natálio Barrena”, desenvolvida pelo autor sob orientação da Prof.
Dra. Ana Lívia Agostinho no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica (PIBIC e
PIBITI, CNPq e UFSC), ago. 2018 / ago. 2019, Processo #2017072510000551), ao qual expressamos nossos
agradecimentos. Esta pesquisa faz parte do projeto “Fonologia das Línguas do Golfo da Guiné, coordenado pela
Prof. Dra. Ana Lívia Agostinho.
2 Doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), professora do Departamento
de Língua e Literatura Vernácula e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). E-mail: a.agostinho@ufsc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2395-4961.

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Instrumentos Linguísticos
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(and perhaps the last) of this kind, marked by the transposition of the Renaissance grammatical
prototype, following the paradigmatic position of the Greco-Latin model (cf. AUTHOR, 2021); (ii) pay
attention to the peculiarities of the work in relation to the range of works produced by missionaries,
considering that there is no single Greco-Latin model (ALTMAN, 2011); and (iii) understand how
linguistic phenomena of Fa d’Ambô are classified in order to provide hypotheses about the author’s
perspective on the language, in other words, the implicit conception of language in the descriptions.
Keywords: Fa d’Ambô; creole languages; missionary linguistics; linguistic historiography; Gulf of
Guinea.

Subm etido em 03 de julho de 2023.


A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introdução

No que concerne à história das ideias linguísticas, as primeiras descrições gramaticais


de línguas nas Américas e em África foram realizadas no século XVI (FERNANDES, 2015, p.
45). Seus autores eram missionários a serviço da coroa, sobretudo portugueses e espanhóis, e à
primeira vista, arrogavam-se do ofício de descrever línguas, com o objetivo de estabelecer um
contato mínimo com os grupos etnolinguísticos distintos e lhes transmitir a fé católica -
condição fundamental prescrita a Portugal pela Igreja Católica no século XV3.
Entre os autores que se dedicam a escrever a história da linguística, há aqueles que
argumentam que o trabalho de descrição linguística empreendido por missionários, além-
mares, dizia somente da disputa de interesses políticos e religiosos, e que teria assumido um
caráter “utilitário” (ALTMAN, 2011), destituído de desejo ou curiosidade científica. Um
exemplo disso é a crítica de Mattoso Câmara Jr., em sua Introdução às línguas indígenas
brasileiras (1965). O autor defende que interessava menos aos autores a descrição das línguas
indígenas, de fato, faladas, que o estabelecimento de uma língua franca - simplificada - para
facilitar o contato com os povos nativos e, consequentemente, a transmissão do catecismo
(MATTOSO CÂMARA JR., 1965). Entretanto, outras propostas de análise historiográfica
consideram tais circunstâncias discutíveis, e defendem que não se deve reduzir as inúmeras
experiências de linguagem de gramáticas de tradição missionária a um traço único, de modo
que o seu exame ainda nos possa fornecer olhares outros sobre a linguística e suas matrizes
históricas.

3 Silviano Santiago aborda, em sua análise da carta de Pero Vaz de Caminha (1500), os fatores de “dívida e posse”,
que permeavam as relações entre a coroa portuguesa e a Igreja Católica durante as grandes navegações. A bula
Inter Caetera de 1456, assinada pelo papa Calisto III, “doava” ao rei Dom Manuel I de Portugal as terras
descobertas pelos navegadores. Desse modo, a apropriação de novos territórios por Portugal correspondia também
ao alargamento dos domínios da Igreja Católica, uma vez que tal prescrição pressupunha a conversão dos
habitantes das novas terras ao Catolicismo. Cf. SANTIAGO, Silviano. Destinos de uma carta. In: Ora (direis)
puxar conversa! - 1a. edição. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2006, p. 229 - 245.

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Instrumentos Linguísticos
392

Nesse sentido, Altman (2011) assinala que a historiografia linguística canônica teria
relativizado a contribuição da tradição missionária até pelo menos metade do século XX. No
século XVI, há registros de 212 trabalhos realizados por missionários no continente americano,
número que cresce ainda mais se incluirmos descrições de línguas africanas e asiáticas
(ALTMAN, 2011), atribuindo, assim, contribuição relevante aos estudos gramaticais por parte
da tradição de linguística missionária. A autora assevera que

‘[...] as missões cristãs, principalmente as católicas, se tomaram bastante sofisticadas


na tarefa de elaborar instrumentos pedagógicos para o estudo das línguas dos
territórios a serem colonizados, sobretudo gramáticas, vocabulários, dicionários,
catecismos. Em muitos casos, essa documentação é o único testemunho que temos da
existência de centenas de línguas, muitas delas hoje extintas’. (ALTMAN, 2011, p.
209)

No tocante ao fa d’Ambô - língua crioula que permanece sendo plenamente falada pelos
habitantes da Ilha de Ano Bom, no Golfo da Guiné - duas gramáticas foram escritas no final
do século XIX, após a chegada de missionários espanhóis na Guiné Equatorial, na época
colônia da Espanha (chamada de Guinea Espanola), a saber: Elementos de La Gramatica Ambú
o de Annobón, escrita pelo Padre Isidro Vila, e publicada em 1891, em Madrid; e a Gramatica
Annobonesa, de Padre Natalio Barrena Merino, publicada postumamente em 1957 também em
Madrid. Ambos os autores supracitados eram congregados à ordem dos Missionários Filhos do
Imaculado Coração de Maria (em espanhol: Congregación de los Misioneros Hijos Del
Inmaculado Corazón de María). Não obstante, não há trabalhos de historiografia linguística
anteriores empenhados na análise dessas obras. Quando citadas, o são em trabalhos de
linguística histórica e de linguística formal que têm como foco o estudo da própria língua. Neste
ponto, a invisibilidade dessas obras por parte da historiografia linguística se atenua ao fato do
fa d’Ambô ser pouquíssimo estudado. As gramáticas de Vila e de Barrena, bem como os
trabalhos da Congregação Claretiana, não aparecem citados em obras dedicadas à historiografia
da linguística missionária.
As gramáticas missionárias do fa d’Ambô são importantes documentos da história da
linguística. O estudo dessas obras permite revisitarmos constantemente a história da disciplina,
revisar a sua historiografia e, consequentemente, repensar as metodologias científicas e a
concepção que delineamos sobre o objeto, seja a história da linguística ou a língua propriamente
dita, ontem e hoje. Um estudo sincrônico implica sempre em diacronia. Hovdhaugen argumenta
que não há razão para presumir que a estrutura e a importância das gramáticas missionárias foi
sempre a mesma durante séculos (1996, p. 19).

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Instrumentos Linguísticos
393

Dos trabalhos precursores do estudo do fa d’Ambô, citamos Schuchardt (1888) e Post


(1992, 1997), tendo essa última se dedicado a analisar aspectos linguísticos da referida língua.
Entre os trabalhos mais recentes que se dedicaram ao estudo do fa d’Ambô - direta ou
indiretamente - se destacam os de Segorbe (2010), que desenvolveu a primeira gramática
descritiva do fa d’Ambô, e trabalhos de fonologia de Agostinho (2021), Agostinho e Araujo
(2014), Agostinho e Araujo (2021), Agostinho, Araujo e Santos (2019), Agostinho e Hyman
(2021), Araujo et al. (2013), Bandeira (2017), além do corpus de Hagemeijer et al. (2014).
Este trabalho se propõe a analisar traços da obra Gramatica Annobonesa, escrita pelo
missionário católico Natálio Barrena na virada do século XIX para o XX, e publicada
postumamente em 1957, a saber: a definição de gramática e fenômenos linguísticos como a
ausência de sistema de casos e o paradigma verbal. À luz da historiografia linguística
(AUROUX, 1992; ALTMAN, 2011; ZWARTJES, 2008, 2011, 2012; ROSA, 2013; ROCHA,
2015; TEODORO, ALMEIDA, 2016; SWIGGERS, 2012), pretendemos demonstrar que a obra
supracitada situa-se entre obras de tradição gramatical missionária, marcada pela transposição
do protótipo gramatical renascentista, em conformidade à posição paradigmática do modelo
greco-latino e, tendo em vista que a tradição greco-latina não se trata de um único modelo
(ALTMAN, 2011, p. 216), sugerir interpretações acerca do olhar do autor sobre a língua (qual
é a concepção de língua implícita nas descrições linguísticas do autor) bem como os propósitos
implicados na descrição da língua, uma vez que é objetivo da historiografia linguística elucidar
as diferentes posturas e motivações dos autores missionários por trás das descrições linguísticas
e da composição de gramáticas escritas (HOVDHAUGEN, 1996, p. 17).
Este artigo está organizado da seguinte forma: na seção (1) discorreremos acerca dos
materiais e métodos empregados nesta pesquisa; em (2), discutiremos o surgimento do fa
d’Ambô e a família de línguas crioulas do Golfo da Guiné; e em (3), apresentaremos a análise
da Gramatica Annobonesa, seguida das considerações finais.

1. M ateriais e métodos
Utilizamos, para a análise aqui empreendida, a segunda edição da Gramatica
Annobonesa, publicada em 1957, em Madrid4. Não tivemos acesso à primeira edição. Madeira
(2008) informa que a primeira edição é mencionada por Streit & Dindinger, no Almanaque
(1923), sem mais detalhes (apud REINECKE et al. 1975, p. 94). Consideramos parâmetros

4 Sendo uma cópia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Faculdade de Letras. Ficha: BARRENA,
RVDO. P. Natalio. Gramatica Annobonesa. 69-38.778. 496 B271g. Ver anexo A

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Instrumentos Linguísticos
394

internos e externos de análise5 (BATISTA, 2013), sendo que, em relação aos parâmetros
externos, analisamos uma série de documentos missionários da Ordem Claretiana, à qual
pertencia Barrena, em especial a Revista La Guinea Espanola (contemporânea da produção da
Gramatica Annobonesa) publicada entre 1903 e 1969. A importância da investigação desses
documentos se faz a partir das considerações de Hovdhaugen, que argumenta que é na área da
linguística missionária é necessário investigar e reunir todas as fontes disponíveis, tais como
manuscritos, cartas, diários, entre outros (HOVDHAUGEN, 1996, p. 19).
Sem pretender esgotar o trabalho investigativo, a análise historiográfica recorta eventos
históricos para que possa então interpretá-los (BATISTA, 2013). Tais eventos podem ser de
natureza científica, religiosa ou mitológica, uma vez que o adjetivo “linguística” não se
restringe à Ciência Linguística moderna, podendo abarcar os mais variados saberes acerca da
linguagem desenvolvidos ao longo da história (BATISTA, 2013). O objeto da historiografia
linguística não é a língua, mas sim a forma como a língua foi apreendida, estudada, e explicada
pelas comunidades de saber (BATISTA, 2013).
O fazer-narrativo da história da linguística requer, na medida em que figuramos o
conhecimento como uma “realidade histórica”, da ordem de uma “ [...] temporalidade
ramificada da constituição cotidiana do saber” (AUROUX, 1992, p. 11), a proposição de
correspondências entre parâmetros internos e externos de análise (BATISTA, 2013, p. 74), e,
portanto, intenta olhar para as circunstâncias de tempo e de lugar do narrado. As tradições
linguísticas devem ser analisadas a partir do seu próprio recorte sócio-histórico e cultural, sem
fixá-las dentro de uma linha de tempo progressiva, onde as ideias linguísticas de lugares,
tempos e recursos diferentes se anulam, ou são pensadas como mais ou menos nobres de acordo
com as posições que ocupam na linha cronológica. Estamos tratando do efeito de um recorte,
“o historiógrafo recorta, seleciona e hierarquiza fatos da corrente histórica” (BATISTA, 2013,
p. 47). Assim, buscamos trechos que evidenciassem a visão de língua e de gramática de
Barrena, bem como exemplos linguísticos específicos do fa d’Ambô, a fim de observar a
maneira como o autor descreve a língua.

1.1. Linguística m issionária e gram ática m issionária


Primeiramente, é necessário apresentaras concepções de gramática na tradição greco-
latina, e delimitar o que a literatura historiográfica conceitualiza como ‘linguística missionária’

5 Os parâmetros externos de análise dizem respeito ao contexto sócio-histórico, cultural, político e econômico no
qual a obra foi construída, enquanto os parâmetros internos de análise tratam do conteúdo da obra, tais como as
descrições gramaticais.

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Instrumentos Linguísticos
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- Missionary linguistics - e como ‘gramática missionária’ - Missionary Grammar


(HOVDHAU GEN, 1996).
Hovdhaugen define gramática como “uma coleção de informações sobre alguns
componentes de uma língua, sistematizados para fins normativos e pedagógicos”
(HOVDHAUGEN, 1996, p. 10, tradução nossa), e que privilegiam, geralmente, uma norma
(variedade) linguística, contemplando os níveis fonológico, morfológico e/ou sintático.
Hovdhaugen também menciona ‘gramáticas descritivo-científicas’, e as classifica como
“geralmente inconsistentes”, pois, na visão do autor, toda gramática estabelece uma norma para
a língua descrita, uma vez que elege um corpus baseado em uma determinada variedade
linguística, e seleciona um banco de dados limitado (HOVDHAUGEN, 1996, p. 10).
A “Gramática normativa da língua portuguesa” (1944), de Francisco da Silveira
Bueno6, apresenta a seguinte definição: “Gramática, é, pois, a ciência que codifica e sistematiza
as regras do idioma, baseando-se na observação dos fatos da linguagem viva do país” (BUENO,
1944, p. 11). É interessante notar que, para Bueno, ainda que a gramática seja uma ciência
conservadora, deve empenhar-se em estar a par das mudanças da língua, “organismo vivo e em
perenes transformações” (1944, p. 11). Ainda assim, verifica-se, na mesma introdução geral da
gramática de Bueno, a influência gramatical clássica latina. Citando Leite de Vasconcelos (das
Lições de filologia portuguesa - 3), o autor define a frase como “a mais perfeita expressão de
um idioma” (1944, p. 10). A ideia de que a frase apresenta uma totalidade semântica e é
autônoma em relação ao texto foi herdada da interpretação latina do termo grego autotelos
(WEEDWOOD, 2002, p. 34). Para os gramáticos gregos Apolônio Díscolo e Dionísio Trácio,
a frase era uma “expressão autossustentada” (autotelos logos) em consequência de sua
subordinação ao contexto de um texto, e não independente dele (BUENO, 1944, p. 34). De fato,
a tradição latina ainda repercute em diversas gramáticas do último século, e alcança ainda as
mais contemporâneas.
Na literatura da historiografia linguística, Linguística missionária é a nomenclatura
usada para definir uma gama de trabalhos linguísticos empreendidos por missionários -
especialmente cristãos e budistas - tal como alfabetização, tradução de textos religiosos, e
estudos de semântica e etimologia (HOVDHAUGEN, 1996, p. 10). Gramática missionária seria
menos abrangente, e denomina os trabalhos de descrições de línguas realizadas durante as
missões cristãs no ocidente (HOVDHAUGEN, 1996, p. 15). Hovdhaugen lembra que essa

6 Professor catedrático de filologia portuguesa da Universidade de São Paulo. BUENO, Francisco da Silveira.
Gramática normativa da língua portuguesa. Livraria Acadêmica, Saraiva & Cia. São Paulo, 1944.

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Instrumentos Linguísticos
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nomenclatura não representa um conjunto homogêneo de trabalhos, contudo, diz ser possível
estabelecer alguns parâmetros prototípicos de uma gramática missionária (1996, p. 15), a saber:
as línguas descritas não são línguas nativas dos missionários, e a gramática se caracteriza por
ser sincrônica e pedagógica, e abrange os níveis fonológico, morfológico e sintático baseado
em dados coletados de um corpus oral, e em alguns casos de textos religiosos traduzidos.

1.2. Linguística m issionária e línguas crioulas


Estudos sobre pidgins e línguas crioulas iniciaram no final do século XIX, sobretudo
com os trabalhos de Hugo Schuchardt e Derk Christiaan Hesseling (MUYSKEN, MEIJER,
1977). Contudo, inicialmente, línguas crioulas tinham o status de línguas corruptas - em
relação às línguas lexificadoras - línguas europeias que fornecem a maior parte do léxico no
processo de formação de um pidgin ou crioulo. A ideia de continuum7, ainda presente entre os
estudiosos da área, era ligada ao pensamento ideológico de que existiria um grau maior ou
menor de corrupção na língua. Essa ideia de corrupção, por sua vez, estava ligada a questões
raciais; uma generalização comum era a de que as populações negras, inferiores em comparação
à Europa caucasiana, não seria suficientemente civilizada e desenvolvida intelectualmente para
adquirir línguas complexas como as europeias (MUYSKEN; MEIJER, 1977).
O primeiro trabalho sobre uma língua crioula foi uma gramática e dicionário do malaio-
português, publicado em 1780 por neerlandeses (HOLM, 2004). No tocante ao fa d’Ambô, duas
gramáticas foram escritas no final do século XIX, após a chegada de missionários espanhóis na
Guiné Equatorial, na época colônia da Espanha (chamada de Guinea Espahola).
A primeira, Elementos de La Gramática Ambú o de Annobón, foi escrita pelo Padre
Isidro Vila e publicada em 1891, em Madrid. Já a Gramatica Annobonesa foi escrita pelo Padre
Natalio Barrena Merino e publicada em 1957, em Madrid. Ambos os autores supracitados eram
congregados à ordem dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (em espanhol:
Congregación de los Misioneros Hijos Del Inmaculado Corazón de María), de Madrid.

2. O fa d ’Ambô
O fa d’Ambô é uma língua crioula falada majoritariamente em Ano Bom - ilha que
compõe o território da República da Guiné Equatorial, no Golfo da Guiné. É uma das quatro 7

7 Atualmente, o termo continuum é usado para descrever níveis de crioulização que variam entre o que seria a
língua crioula, formas intermediárias (mesolectal varieties) e a língua lexificadora, uma vez que, muitas vezes,
línguas crioulas são faladas dentre as mesmas extensões geográficas que as línguas lexificadoras (MUYSKEN,
SMITH, 1994).

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Instrumentos Linguísticos
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línguas que constituem a família de línguas crioulas do Golfo da Guiné, junto às línguas
santome (ou forro), angolar (Ilha de São Tomé) e lung’Ie (Ilha do Príncipe) (ARAUJO et al.,
2013).
O processo de colonização do Golfo da Guiné iniciou no final do século XV, mais
precisamente em São Tomé, onde se atribui também o desenvolvimento do protocrioulo do
Golfo da Guiné, que, posteriormente, deu origem às quatro línguas que compõe o tronco
linguístico do Golfo da Guiné: santome (ou forro), angolar, lung’Ie e fa d’Ambô (BANDEIRA,
2017).
Há divergências teóricas em relação ao processo de crioulização no Golfo da Guiné.
Cosme (2014) defende que o santome seria a continuação do protocrioulo, e que o processo de
especiação das outras três línguas teria ocorrido a partir do santome. Por sua vez, Bandeira
(2017) defende, em seu trabalho de reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo
da Guiné, que as quatro línguas crioulas foram originadas diretamente do protocrioulo do Golfo
da Guiné:

‘[...] apresentamos as 536 protoformas reconstruídas com base no levantamento de


2000 formas contemporâneas do santome, fa d’ambô, lung’ie e angolar e de suas
fonologias [...] Com efeito, os itens reconstruídos comprovam que o protocrioulo do
Golfo da Guiné é distinto do português e também não pode ser descrito como uma
variedade da referida língua, posto que apresenta processos, estruturas fonológicas e
características lexicais não encontradas em nenhuma variedade vernacular da língua
portuguesa [...] Até o momento, os estudos que se encarregavam de analisar
comparativamente as línguas crioulas de base portuguesa do Golfo da Guiné o faziam
tomando o português, como o seu ancestral (cf. o dicionário de ROUGÉ, 2004; e os
glossários de MAURER, 1995; 2009) [...] Do ponto de vista fonológico e lexical, os
itens reconstruídos do PGG, em conjunto com a análise dos processos, tornaram
evidentes que as quatro são línguas-filhas do protocrioulo’. (BANDEIRA, 2017, p.
419 - 420)

Essa protolíngua emergiu da necessidade de se estabelecer um código de comunicação


entre escravizados falantes de línguas dos grupos Edóide e Bantu, a partir do contato com a
língua portuguesa na Ilha de São Tomé (cf. BANDEIRA, 2017, p. 21). Hagemeijer (2009, p. 2
- 6) menciona dois momentos de ocupação da Ilha de São Tomé, até então inabitada: (i) 1493
- 1520, fase de habitação ; (ii) 1520 - final do século XVI, fase de plantação. Em tese, o
protocrioulo do Golfo da Guiné teria se consolidado como uma nova língua doravante ao
surgimento de uma comunidade de escravizados alforriados no século XVI - “mulheres
africanas e os filhos que nasciam dos casamentos e concubinatos com europeus”
(HAAGEMEIJER, 2009, p. 4). Essa comunidade configuraria, então, novas posições

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socioeconômicas na sociedade santomense, incluindo a língua como dispositivo de


aproximação linguística entre os colonizadores e os novos escravizados já na fase de plantação8.
As fazendas (sistema de plantation) constituem um fator determinante para a diacronia
linguística no Golfo da Guiné. A Ilha de São Tomé apresentava condições geográficas e
climáticas muito favoráveis para o desenvolvimento da agricultura. O cultivo da cana-de-
açúcar, através de mão-de-obra raptada e integralmente escravizada, predominou em larga
escala, fazendo de São Tomé, “ [...] a maior produtora de açúcar no mundo por cerca de seis
anos na metade do século XVI” (GARFIELD, 2015, p. 53). Além disso, dada a sua localização,
São Tomé funcionava como porto comercial de escravizados que estavam a caminho das
Américas, sobretudo do Brasil (HEGEMEIJER, 1999, p. 76).
Entre julho e agosto de 1909, Barrena publicou, na mesma revista, uma série de artigos
intitulados La Isla de Annobón - Un paso para suconocimiento (ver anexo B, C e D), onde o
autor discorre, sobretudo, acerca da geografia da Ilha de Ano Bom, bem como sobre o número,
a origem, a religião, e a língua de seus habitantes. No pequeno parágrafo dedicado ao fa
d’Ambô, de 25 de agosto de 1909 - número 16, Barrena o descreve como uma língua
“particular” da Ilha de Ano Bom, desconhecida fora dela e muito parecida com a língua de São
Tomé (p. 131). O autor observa que:

‘La lengua de estas gentes parece derivada del idioma de Sto. Tomé; pues he tenido
ocasión de oir hablar á los naturales de la referida Isla con los de Annobón, cada uno
em su lengua, y se entendian bastante bien em casi todo á no ser em algunas palabras
que eran diferentes. Lo cual no es nada de extranar, supuesto que esta Isla de Annobón
hubiera sido poblada con los habitantes de aquèlla.’

Outra menção sobre a similaridade entre as línguas crioulas do Golfo da Guiné data do
século XVIII. Hagemeijer (2009, p. 5) cita que:

‘Matos (1842) foi o primeiro a identificar formalmente o parentesco entre três das
quatro línguas crioulas, afirmando que o lung’Ie é “quasi o mesmo, que o de S.
Thomé, ajuntando-lhe maior numero de termos africanos”, ao passo que “o dialecto
da Ilha de Anno Bom é o mesmo que o de S. Thomé, mas com uma pronunciação
gutural semelhante à dos Arabes”’ 9

8Muito embora só tenhamos dados históricos a respeito de uma nova língua em São Tomé a partir do século XVII.
Cf. SANDOVAL, Alonso de. 1987 [1627]. De instauranda aethiopum salute. Un tratado sobre la esclavitud.
Introdução e transcrição de Enriqueta Vila Vilar. Madrid: Alianza Editorial. Apud HAGEMEIJER, Tjerk. As
Línguas de S. Tomé e Príncipe. Revista de Crioulos de Base Lexical Portuguesa e Espanhola 1:1 (2009), 1-27
ISSN 1646-7000.
9 A “pronunciação gutural” a que Matos se refere é a fricativa velar [x], que não ocorre nas línguas-irmãs do fa
d’Ambô.

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Por serem geneticamente relacionadas, as línguas fa d’Ambô, santome (ou forro) e


angolar, faladas na Ilha de São Tomé, e o lung’Ie, falado na Ilha do Príncipe, apresentam
semelhanças lexicais e gramaticais. Todavia, diferentemente do que descreveu Barrena, essas
línguas não são inteligíveis entre si, não sendo suas particularidades apenas variações fonéticas.
As descrições de Barrena e de Matos nos fornecem pistas sobre a gramática do fa
d’Ambô (e das demais línguas crioulas do Golfo da Guiné), ao que diz respeito às
possibilidades de fluxo de desenvolvimento interno e independente do sistema linguístico de
cada língua, em um momento posterior à gênese do protocrioulo do Golfo da Guiné e ao
processo de especiação das quatro línguas-filhas.

3. Discussão: A Gramatica Annobonesa (1957)


A Gramatica Annobonesa foi escrita pelo missionário espanhol Padre Natalio Barrena
Merino, (1867 - Santa Isabel de Fernando Póo, 13 de abril de 1925). A segunda edição foi
publicada postumamente em 1957, em Madrid, pelo Instituto de Estudios Africanos, em
associação ao Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC)10. Madeira (2008)
informa que a primeira edição é mencionada por Streit & Dindinger no Almanaque (1923)
(apud Reinecke et al. 1975, p. 94), sem mais detalhes. É possível estimar o período de produção
das obras de Barrena, entre elas a Gramatica Annobonesa, entre 1892 e 1925, ano da chegada
do missionário na Guiné Equatorial11, e de seu falecimento10112, respectivamente. Barrena teria
chegado na Guiné Equatorial em 19 de julho de 1892 (ver anexo E), mais especificamente na
comunidade missionária de Banapá, em Santa Isabel de Fernando Póo, hoje, cidade de Malabo
(capital da Guiné Equatorial, localizada na Ilha de Bioko, antes nomeada de Ilha de Fernando
Póo). O missionário Antonio Jimenez cita, no prólogo da gramática, que Barrena passou
“muitos anos” em Ano Bom e que e que aprendeu a falar “corretamente” o fa d ’Ambô
(BARRENA, 1957, p. 7).

10 Órgão público espanhol responsável pelo fomento de ciência e tecnologia, fundado em 1939. Informações
disponíveis em www.csic.es.
11 O site Fondo Claretiano disponibiliza um acervo de fotografias digitalizadas do período colonial da Guiné
Equatorial. Uma das fotografias do acervo indica a presença de Natalio Barrena a partir da seguinte legenda: “La
Comunidad misionera de Banapá y representantes de la comunidad de Santa Isabel celebrando los 30 anos de
estancia seguida em lãs misiones del P. NATALIO BARRENA, llegado el 19-7-1892. También estuvieron
presentes los empleados de la finca "La Vigatana" y el Sr. Vizoso”. Disponível em
http://bioko.net/claret/displayimage.php?album=1&pos=12.
12 As datas de nascimento e falecimento do autor são informadas no seu (também póstumo) Catecismo de la
doctrina Cristiana del V. P. Antonio María Claret; traducido al fa d'ambô. Editorial Del Corazón de María.
Madrid: 1928.

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Instrumentos Linguísticos
400

Encontramos quatro exemplares da obra de Barrena (listados abaixo), da mesma edição


(1957), localizados em bibliotecas de diferentes instituições e que podem ser consultados em
catálogos disponíveis on-line.

1. África do Sul - University of South Africa. Localização: Pretoria Open Collection.


Número de chamada: 469.79966996 BAR;
2. Estados Unidos da América - The University of North Carolina at Chapel Hill.
Localização: Library Service Center. Número de chamada: 467.966996 B271g;
3. Estados Unidos da América - Columbia University. Localização: Butler Stacks.
Número de chamada: PM7849.A5 B3;
4. Estados Unidos da América - Library of Congress. Número de chamada: PM7849.A5
B3 1957 LANDOVR / 4PL 236 FT MEADE.

As seções da edição de 1957 estão dispostas da seguinte forma:

i. Prólogo, escrito por Antonino Jimenez, seguido das Breves notas da Ilha de Ano Bom
e suas coisas, de Epifanio Doce;
ii. Preliminares: Apresenta a definição de ‘gramática’;
iii. As descrições linguísticas estão divididas em 45 lições, e cada uma delas contém
exercícios para tradução;
iv. Ortologia: alfabeto, pronúncia das vogais e das consoantes, ditongos e consoantes
duplas;
v. Analogia : partes da oração, o artigo, regras para o uso de artigo indeterminado “a”, “ua”
e “zugua”;
vi. Apêndices; catecismos em fa d’Ambô para exercícios de tradução em espanhol.

3.1. A tradição gram atical e a definição de gramática


Barrena conceitualiza a gramática como “a arte de falar e escrever corretamente”
(BARRENA, 1957, p. 17), conforme podemos observar na abertura da Gramatica:

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Instrumentos Linguísticos
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F igura 1 : D efinição de gram ática

. GRAMATICA ANNOBONESA
. i

PRELIMINARES
D EE IbT IC IO N .—G ram ática annobcnesa es d arte de hablar y escribir co­
rrectamente la leiigua de Anrtobón, o sea el fa d' Ambô, com o elk>s dicen.

D IV 1 S IO N .— L a gramática s e divid e en cuatro partes, que son.: O rtología,


A nalogia, Sintaxis y Ortografia.

o r t o l o g í a

D E F I N I C I O N .— O rtología e s Ia parte de la gram ática que ensefia la recta


p ronundadón de las palabras. •.

'• A L F A B E T O
E l alfabeto annobonés consta d e vcin tisiete letras, que son las m ism as dei
espanol, a excepción de Ia ü y rr.

D IV IS IO N .— L as letras dcl alfabeto son, com o en espanol, vocales y con-


sonantes. . •
N. B.—En fa d" Anybô se pronuncia todo lo que se escribe y viceversa; a no ser las
vocales Boates no agudas, que son casi mudas; pero no todos los sonidos ti er.en la claridad
que en espanei.
; * • ' . *

L E C C IO N I ■ j

DE LA PRONUNCIACION DE LAS VOCALES |

V O C A L E S .'— a. S e pueden distinguir cuatro d a se s: -

i.m E s la más frecucnte y general y suena com o en espanol; v. g r.: Suli,


Boiar; Com, bueno. _ . . . . •• • .

’' ■ ; ' * - 1 7 ' ‘


F onte: Barrena (1 9 5 7 , p. 17)

Essa noção também está presente na obra de Vila (1891), na qual define gramática como
“a arte de falar e escrever uma língua com propriedade e correção” (VILA, 1891, p. 05). As
noções de “certo” e “errado” na língua são observáveis desde a antiga civilização védica, ao
que diz respeito às relações entre estudos gramaticais e religiosidade. O sânscrito clássico,
sistematizado gramaticalmente por Pânini (circa 520 a.C - circa 460 a.C), foi fixado como
“língua perfeita” 13 - samskrta, “acabado”, “perfeito” - e opunha-se às prakritas, línguas indo-

13 O conceito de “língua perfeita” é, na verdade, equivocado, pois cada língua possui suas idiossincrasias, e os
juízos de valor que lhe atribuímos são, na verdade, de caráter social.

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Instrumentos Linguísticos
402

arianas, faladas no subcontinente indiano. Stella (1960, p. 147) informa que a ideia de uma

língua perfeita é primeiramente mencionada no Ramayana (do sânscrito: -

Rãmãyana) epopeia literário-religiosa atribuída a Valmik entre os séculos 500 e 100 a.C. A
gramática, concebida como um sistema de regras, visava conservar a sacralidade das escrituras
sânscritas e configurava a posição literária da língua. Aqui, uma língua universal e pura
(sublime) orienta-se no sentido de prescrever o uso correto da língua (o sânscrito) em oposição
às formas “incorretas” :

‘In India the foUowers of the Vedic tradition have always kept Sanskrit, the language
of the Veda, in high regard. Sanskrit is the only correct language, other languages
being incorrect. Patanjali's Vyãkarana-Mahãbhãsya (ca. 150 B.C.E.), in its first
chapter called Paspasãhnika, distinguishes clearly between correct and incorrect
words, pointing out that many incorrect words correspond to each correct word;
besides correct gauh there are many incorrect synonyms: gãvi, goni, gotã, gopotalikã,
etc. There are various [397] reasons for using correct words only, the most important
being that this produces virtue (dharma) and benefit (abhyudaya). Correct words are
in fact used in many texts and regions; Patanjali mentions the earth with its seven
continents and the three worlds, which shows that for him Sanskrit is the language of
the universe. Sanskrit is also eternal. The reasons adduced to prove this may seem
primitive to us, but they leave no doubt as to Patanjali's convictions’.
(BRONKHORST, 1993, p. 01)

No entanto, as definições de Vila (1891) e Barrena (1957) nos fazem regressar à


formação das primeiras gramáticas das línguas vernáculas europeias a partir do século XIII.
Nesse momento, a noção de diversidade linguística, na Europa, ligou-se a ideais de
nacionalidade uma vez que, no contexto de formação do Estado-nação, prescrever a forma
correta de se falar a “língua nacional” era exponente do desejo de elevá-la à qualidade de língua
de prestígio, em correlação e oposição ao latim, que ocupava uma posição paradigmática
enquanto língua “superior”, língua culta, (língua dos sábios, junto ao grego e o hebraico)
(WEEDWOOD, 2003, p. 60). Destarte, as descrições desses vernáculos, subordinadas ao olhar
do sujeito renascentista, estavam circunscritas a tratados técnicos de tradição greco-latina,
“dominante do pensamento linguístico medieval” (WEEDWOOD, p. 60). Um exemplo disso
pode ser ilustrado em Batista (2010, p. 348), sobre o processo de gramatização do português:

Fernão de Oliveira, em 1536, na sua Grammatica da lingoagem portuguesa, atuou


como paladino da língua que iniciava seu processo de gramatização. Nas suas
colocações, destacou-se a necessidade de firmar o português como superior, uma vez
que seus falantes são superiores. Em busca da execução desse objetivo, até o latim,
reconhecido como língua-mãe, teve seu papel relativizado, já que o uso da língua
portuguesa deveria ser privilegiado, num contexto histórico e político que ampliava
sobremaneira a urgência do reconhecimento de uma nação independente: “... porque

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Instrumentos Linguísticos
403

melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma, ainda que ela
agora tivera sua valia epreço’"(Oliveira, 1975 [1536], p. 42).

Nada obstante Vila e Barrena utilizem o mesmo conceito de gramática utilizado no


medievo europeu, o contexto histórico, social e político da Guiné Equatorial no início do século
XX diverge absolutamente. A ideia de nacionalidade na colônia é homocêntrica à da Metrópole,
uma vez que, como já deixa a ver o nome, o território denominado de Guinea Espanola trata-
se de Espanha. Logo, não há objetivos de fazer do fa d ’Ambô uma língua de prestígio, ou de
reconhecê-la como língua nacional. Vários fragmentos de documentos distintos possibilitam
tal interpretação. Epifanio Doce na seção Breves notas de la Isla de Annobon y de sus cosas,
da Gramatica Annobonesa (1957, p. 13), diz que “a Ilha de Ano Bom é espanhola pelos quatro
lados”, onde “não há annobones que não saiba o espanhol e os meninos demonstram muito
interesse em aprendê-lo” 14, resultado obtido através de cinquenta anos de trabalhos de
escolarização empreendidos pela missão. Doce ainda informa de que no ano de 1933, um
professor pago pelo governo lecionava espanhol para trezentos alunos e alunas.
Outra ilustração da questão linguística na colônia pode ser encontrada na edição
inaugural da revista La Guinea Espanola, de 1903, fundada pelos missionários claretianos, logo
após a chegada da prensa, trazida de Barcelona, destinada ao trabalho missionário15. Com
periodicidade quinzenal, interessava à La Guinea Espanola trabalhar em favor da “glória de
Deus”, do Catolicismo, e pela “prosperidade material e moral” da madre Espana, levando
notícias da colônia e da empresa missionária à península, denominada de “Espanha verdadeira”
(Ano I, edição inaugural de 01 de abril de 1903 - ver anexo F). E ainda, no mesmo fragmento:

Vamos, pues, espanoles, blancos y de color, aunemos nuestras fuerza, juntemonos


todos em compacto escuadrón, todos unidos trabajemos com ardor y a medida de
nuestras fuerzas y haberes em pro de la RELIGION y de la PATRIA (grifo nosso).

3.2. Fenômenos linguísticos


Nesta seção, analisaremos as lições que discorrem sobre declinação, paradigma verbal
e alguns aspectos fonético-fonológicos. A gramática de Barrena está inserida no que Auroux

14 No mesmo parágrafo, diz o autor que, no caso das meninas, houve resistência por parte dos mais velhos em
deixá-las aprender espanhol, resultando que, após muitos anos de missão, encontram-se poucas mulheres falantes
de espanhol. E ainda: “Como no han de salir de la Isla no les interessa el calentar de sus cabezas, com lengua
que no han de usar ”.
15Segundo Echegaray (1999, p.10), a comunidade de Santa Isabel recebeu a primeira prensa em 1901, ano de
fundação da revista El Eco de Fernando Póo, publicada somente até a sétima edição devido à quebra do
equipamento de impressão. O Fondo Claretiano informa que a primeira prensa chegou em Fernando Póo em 1899,
trazida pelo Governador D. José Rodriguez de Vera, para a impressão do folheto comemorativo da colocação da
primeira pedra da catedral. Disponível em: www.bioko.net/guineaespanola/laguies.htm.

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Instrumentos Linguísticos
404

(1992, p. 35) chama de gramatização massiva , processo de gramatização a partir de uma mesma
tradição linguística, o modelo greco-latino. Ainda que a maior parte do léxico do fa d’Ambô
seja de origem portuguesa, trata-se de uma língua de tipologia gramatical diferente das línguas
indo-europeias. Assim, o fa d’Ambô não se encaixa no modelo pré-definido.
As referências aos casos latinos presentes no texto, como na lição VII, que trata de
declinação, são exemplos de influência gramatical greco-latina. Ainda que o fa d’Ambô não
tenha declinação, como o próprio autor comenta ao escrever que “para conhecer os casos do
nome em fa d’Ambô, há que olhar ao lugar que ocupa na frase”, o autor faz uso dessas
nomenclaturas para se referir à sintaxe, o que é comum na maioria das gramáticas escritas até
o início do século XX. Essa referência aos casos latinos marca a influência da tradição
gramatical renascentista, que procurava transpor o modelo greco-latino, mesmo em gramáticas
de línguas de tipologia diferente. É como se o autor usasse uma estrutura gramatical pronta, um
paradigma, e o trabalho de descrição do fa d’Ambô fosse subordinado à essa estrutura. Dito de
outro modo, Barrena parece encaixar os fenômenos linguísticos “inéditos” que observa em
outra estrutura - de outra língua, como podemos observar na Lição XVII que trata da
declinação:

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Instrumentos Linguísticos
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F igu ra 2 : L ição V II

L E C C I O N V I I

DECLINACION , .
" V -*■ ‘ * • ; . - - ' . ' -
’ ' D E F IN IC IO N .— Dedinación es la serie ordenada de los casos.— Para cono-
cer d caso dei nombre en fa d' Ambô, hay que mirar el lugar que ocupa en !a fra­
se, por ei poco uso que hacen de preposiciones, que lo indiquén.
’ E l nominativo, acusativo y vocativa.pocas dificutóades ofrecen. v

C O LO CA C lO N D E LO S CASOS.— E l nominativo debe ocupar el primer


lugar en la oraciónj el genitivo sigue inmediatainente al sujeto que to rige; e! da­
tivo se coloca luego, después d d verbo; «sigue después el ocvsatiifo; y por fin vie-
ne el ablativo, por m is que no tiene lugar.tan fijo. _
EJEMPIX3S: • * ‘
, , C e nominativo y acusativo -
Cios crió al hombre ; .................... .... Naxiólo minji nápay.
Si se invierte el orden, se cambia d sentido; y así no puede decirse como en
espanol; v. g r .: al lwrrJbre crió Dios, Napay minji Nasiôlo, pues significa: El
hbrnbre crió a Dios.—El acusativo-nunca va regido de preposición en fa d'Ambô.
A pesar de ser esta lengua poco amiga dd uso de preposiciones, no obstante, para
los casos de posesión o pertenepcia usa a veces de las preposiciones de geniti­
vo de d1, ji (de); así como tteneí la preposicidn die dativo da (paia) y varias de abla-
tivo; v. gr.‘: eu, jo (co n ); sen, r .n (sin.); suufu (por, a causa de); fo, pafó (desde);
dencld («pfrente, delante de). • . . ■ . . .
T: p ' *f~i ‘
, . D e genitivo ' >
La casa de Pedro , . "........................ Jaji Pédulu.
EU .barco de hierro N iv í onfélu.
Reunión de gente Zuntá zenchi o ji zci chi. . ’* -■ -

■ Sámes de los annoboiteses Yarai ji nangue' d'Ambò.


La cisa dei rev . , . Jajl alé o d’aM. ^
La galiina de la mujer Gania aámay o ji námay.
La casa de piedra . V -. jaji búdu. T-- .
La escopeta dei caztdór . Pingada jasadôlo.
Puede deciree también . . Pingada ji jasadõlo. , .
Como puede observarse por estos pocos ejemiplos, puede usarse el genitivo sin
preposición o con las preposiciones de., tf, ji, para el uuo de las cuaks parece que
miran m is a ia suavidad del sonido o pronunciamóo que otras regias: aunque la
preposidco ji se usa m is cuando el nombre que Ie sigue comienza por consonante
y la príposiaón de, tf , si la palabra que le sigue comienza por vocal; pero no deja
ésta de tener excepciones, sobre todo cuando hay eaeofonía; v. gr.: El bastón de-
Andrés.—Budá Andelé o budán ji Andelé (por no decir budán d’Andelé). ”
El bastón del rey.—Budá alé. •■
El pueblq «del Rey,—Paté alé, o d'ai« • .• ' ■ ■

. , De d a t i v o i * .
El dativo en espaüol, en fa d’ Ambô &e traduoc tm a s veces coa la preposición
da (para) y otras con las preposiciones de genitivo; v. gr., y otras sia preposición:
Te vendo este tabaco para tu pàdre . M'vende tabacu say da pebo. .
Toma este libro para tu hermano . . Ma livulu say da narnen bt>. - "
La caTabaza para çl hombre.............. Ojó nápay, o ji nápay. ... •
Los perros para los criados".’- . . . Jasólo nan tusu, o ji nan túsu. «■
Yo doy a ti yuca (pan de yuca) . . M’da ba paxiója.

• ■ . , De a b l a t i v o ;
Este caro, pocás di-fieultades ofrece; pucs basta saJbcr emplear las preposiciones
que suek.i tisarse. 7
La prepcéición con se traduce por cu, jo, ji; v. g r . : Juegas con cl gato. BtTfugá
cu gátu.
. Paseas con tu amigo. Bo pasiá cu jamada bc. ■" •
Tú vas con él.— Bo ba joT.

F o n te : Barrena (1957, p. 26 - 27)

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Instrumentos Linguísticos
406

Essa tentativa de adequação ao modelo é interessante também pelo fato de o próprio


espanhol não ser uma língua com declinação, o que demonstra um comprometimento com uma
tradição gramatical que se inicia muito anteriormente, uma vez que o espanhol também tinha
passado por uma gramatização a partir do latim.
Já na lição XXII, em que Barrena trata dos verbos, ele escreve que “há de se advertir
que em fa d’Ambô o infinitivo e o imperativo somente têm tempo presente” . Aqui, o autor
alude novamente ao infinitivo no latim, que apresentava desinência modo-temporal de passado,
presente e futuro. Como será discutido, os verbos em fa d ’Ambô não apresentam flexão como
ocorre nas línguas românicas. É curioso que Barrena reserve uma seção intitulada
“conjugação”, definida como “o conjunto de variantes do verbo, ou seja a série ordenada de
suas flexões” (BARRENA, 1957, p. 44), e logo abaixo escreva que o fa d’Ambô não apresenta
conjugação com morfemas flexionais e os verbos irregulares são poucos. Isso demonstra que,
por mais que o fa d’Ambô não se enquadre nos mesmos parâmetros estruturais de uma
gramática românica, o autor ainda mantém cada categoria, ainda que para apontar a sua não
ocorrência na língua:

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F igu ra 3 : L ição X X II

L E C C I O N X X I I ' *

DEL VERBO EN GENERAL


■ ' D E F I N I C I O N . V erbo es Ia p arte d e - la oración que sign ifica la esencia,
existência, acción, pasión o estado d e Ias personas y cosas. *

D IV T S IO N . P or su conjugación s e dividen los verbos en ■ regulares, irre-


, guiares y d efectivos. •
'Por su significación puede ser el verbo isustantivo y atributivo.

..O B S E R V A Q O ÍN E S . i . a.— Se ha d e advertir que en fa d’ Ambô el in fi­


n itiv o .y e l im perativo sólo tienen el tíem po presente.

2 . * E n esta lengua no hay verbos auxiliares propiamente dichos.

3 1 Todas las personas de cada tiem po so n iguales, y tom adas dei in fin iti­
vo, sin otra d iferencia que Ia dei pronombre o sujeto.
■ „ ■' . ' í
i C o n j u g a c i ó n • -

D E JF IN IC IO N .— Conjugación f s e l conjunto de las variantes dei verbo, o


sêa la-serie ordenada de sus inflexiones. *

A D V E R T Ê N C I A S i.*.— E n fa d' Amb° son m uy fáciles lo s verbos, pues


so lo hay una conjugación y lo s verbos irregulares son m uy pocos.

V erdad es que un m ism o tiem po admite' varias form as, pero siempre
son las m ism as, y n o son d ificiles.

3 . * L o s verbos de esta lengua no tienen pasiva. .

4 * Propiam ente n o tien e sino infinitivo, presente, pretérito y futuro. L os


otros tiem pos se form an con alguno d e éstos y , con algunos rodeos y partículas.

, Modo de formar los tiempo»


R E G L A S i.*.— E l presente se form a con él in finitivo precedido dei p ro­
nombre o su jeto. ■ •_ .

D el verbo sa, ser, o estar, y de la partícula ja; <v. g r . : y o lloro, tú Horas, etc.,
etcétera. M’ sa ja svl&; bo sa ja svlá; él sa ja sidá; non sa ja sulá; nameseji sa
ja súlá; ineni sa ja sulá. ' ' . ■ ' ' . -

2 ." E l pretérito p erfecto lo form an dei in fin itivo precedido dei pronombre
, o su jeto y seguido d e la s partículas r a o eza; o beza; y. g r . : y o lloré o h e llorado,
M ’ sula za o eza; o beza. . . „

■44

F on te: Barrena (1 957, p. 4 4)

De fato, o fa d’Ambô - assim como as suas línguas irmãs santome, lung’Ie e angolar -
não apresenta morfologia flexional nos verbos. Em fa d’Ambô, as noções de tempo, modo e
aspecto são dadas a partir de partículas pré-verbais. Nos verbos de ação, por exemplo, a
ausência de marcação denota tempo passado e aspecto perfectivo:

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Instrumentos Linguísticos
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(1) Bo bê pixokho.
2SG ver pixokho 16
‘Você viu o p i x o k h o (AGOSTINHO et a l 2019, p. 7, modificado)

Há também a possiblidade de uso da serialização verbal (HAGEMEIJER, 2009),


fenômeno comum em línguas não indo-europeias em que dois ou mais verbos ocorrem juntos
em uma única sentença sem um marcador de coordenação ou subordinação para indicar um
único evento, como no exemplo abaixo:

(2) Ê sê ku navi ba piska.


3SG sair com barco ir pescar
‘Ele saiu de barco para pescar’. (POST, 1992, p. 6, modificado)

Todavia, ao apresentar os verbos em fa d’Ambô e suas respectivas traduções em


espanhol, Barrena repete todo o paradigma verbal, ainda que o verbo não sofra qualquer flexão.
A seguir podemos observar o tratamento da cópula sa, que também funciona como um
marcador de aspecto progressivo em fa d ’Ambô:

16 Um tipo de pão tradicional. O grafema <kh> representa [x].

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Instrumentos Linguísticos
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F igura 4 : L ição X X III

L E C C T O N X X I I I
Verbo SER o ESTAR sa (jim ).

Infinitivo.............. ser 0 C3tar


ParKàfiio........... Sid0 0 estaá<> sa
MODO INDICATIVO
Prestxit
íUnfea fcrmu.)
Y o so y o e s to y ................. .
T ú eres o e s tá s ........ , ...........
tn sa,
EI es o e stá ............................. bo sa.
ti sa.
N o so tr o s so m o s o e sta m o s
V o so tr o s so is o e s tá is ........
noa sa. ■
E llo s son o estàn ' ........
lum eséji sa,
ineõi sa.
P retérito im perfecto (r).
(Primera forma.)
Y o era o e sta b a .......................... . .

N o so tr o s é r a m o s o e s t i b a m * n o í « “ « “ U á ^ b e ia
V o so tr o s e r a is o ftstáh ak sa ?a ’ eza’ b e?a*
e i 1m s & s 2 .M r

Pretérito perfecto.
, (Primera forma.)
Y o fu i o e s tu v e ........i,...................... .
ursa.
T u fu js w o e s tu v iste ....................
bo sa.
E l fu é o e s ta v ' 0 ........... .. ............................. ..
í l sa.
N o s o tr o s fu im o s o estuvim oB non sa.
V o so tr o s fui&teis o e s tu v is te i 3 .........
E llo s fuercwi o e stu v ier o n ........
nameséji sa
ineni sa.
(SeR-Jixia: forma.)
Tú hC/ Íd?, 0 hÇ,«tado-.i m'ia za, ezá, beza.
*^ f^4* ^ h-as sido o ha-s
gltí ô«^»;h;7MiVhr«üo':::
Nosotros fuuuos o estuvimos, hemos
à° ” 2’ S ' t s
Sido O Iremos estado .......................... non sa zlj <zâj beza .

i5 ® Unaí vcoes sc ^ ^ presente y otras dd pretérito perfecto.

46

F on te: Barrena (1 957, p. 4 6)

Tal redundância se deve ao objetivo pedagógico da gramática - uma vez que todo o
contexto que a rodeia aponta que o público-alvo era o grupo de missionários - , mas
principalmente para a tentativa de gramatização do fa d’Ambô a partir da tipologia linguística
greco-latina.
Em relação ao que denomina verbos regulares, Barrena apresenta mais de uma forma
para cada categoria de tempo do indicativo da gramática tradicional. Há, por exemplo, três

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Instrumentos Linguísticos
410

formas para o presente e três para o pretérito imperfeito, conforme pode ser observado na
imagem a seguir:
F igura 5: Lição XXVIII
i . L E C C I O N X X V I I I

•' i : . VERBOS REGULARES ' ' .

Como va queda indicado todos los verbos regulares de esta lengua, cualquie»
ra sea su terminación se reducen a u na sola conjugación. '

Ponem as a continuación el modelo d e la conjugación de los verbos regulares


sulá, llorar. - . - J . • ••
Modelo para conjugar todos ias verbos .regulares en fa d’Ambô. -

. . Infinitivo..... ....... suti (llorar).


Participio....... . suládu <Plcrando).

MODO IN D IC A T IV O >1 :

(Segunda forma)
Yiói ÜOrO ‘.......... ........... tifja s u lá . ,
Tu Horas ..... . ....... ” . . . b o j a s u lá .
El IJora. .............. ................ é! j a s u tá .
N osertros lloramo s .......... n o n jm s u lá .
Vosotro-s llorái-s ... ............... n a m e s é ji j a s c lá .
Eli os Otírau. ........... ............ . ' i n e n i j á s u lá .

(Tercera forma)
Y o Uoro.................. ................ n p s u lfe . •.
T t i Jlo.ras ................... . ■ ■ ■ - ....... b o s u lá .
EI Hora ................. ......... éí sujá.
Nosotrds lloramo-s ■■■■■■■* .■ non sulá.
Vosotros Itoráis .... .......... n a m e s é ji s u lá .
Ellos Ikvram ......... ~ ~ ..... ’ ineííi sulá.
Pretérito imperfecto .........
t P r i m c a ferm a) .. 1
Yo Jloraiba .............. .............. n ^ s u lá . .
T ú llorabas ........ ............. b o s u lá , ■
El Horaba. ....... ........ é l s u lá ,
N osotros lloTábamos ......... n c u fs u lá .
Vosotros dlorábais . .......... nameséiji sulá.
Ellos lloraban ....... .............. i n e ã i S u lá :

(Segunda, forma.)
-Yo Iloraba m ’s a j a s u lá .
Tú llo ra b a s ............ ■............ . b o sa j a s u lá .
El Iloraiba .............. ............ ' é l sa, j a s u lá .
Nosotras llorabamos ........ non sa ja sulá.
Vosotros llorábais ., ............. . n a m e s é ji s a j a s u lá .
EJlos lloraban ..... . . . . . . . . . . .. i n e n i s a j a s u lá .

(Tierccra fgnna.)
Yo Jloraba ............... ............ m ' j a s u lá .
j Tu llorabas .......... ............ b o j a s u lá .
El Ilovaba ....... ......... él ja sulá. ! .
Nosotros llorábaimos ......... . lon ja sulá.
Vosotros llorábais ,, ....... nameséji sulá.
Ellos lloraban ......... ineni ja sulá.

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Instrumentos Linguísticos
411

F o n te : Barrena (1957, p. 61-62)

É possível verificar uma sobreposição entre a primeira forma do presente e a segunda


forma do pretérito imperfeito; entre a segunda forma do presente e a terceira forma do pretérito
imperfeito e entre a terceira forma do presente e a primeira forma do pretérito imperfeito, o que
demonstra que as categorias utilizadas não funcionam na gramática do fa d’Ambô. Ao mesmo,
isso evidencia que o autor compreende que o fa d’Ambô não se encaixa nesse modelo.
Na lição sobre concordância, Barrena apresenta uma reflexão sobre as diferenças
gramaticais entre o espanhol e o fa d’Ambô. Em relação ao paradigma verbal em fa d’Ambô,
o autor coloca que “el verbo es em todas las personas de cada tempo lo mismo, cambiando solo
El sujeto o pronombre17” (BARRENA, 1957, p. 85).

F ig u ra 6: Lição II

L E C C I d tf X L -
1
CONCORDÂNCIA
fU K C U K U A M U A E • W -£ f
-r ■ . •". -tjr. • :
‘ DEiFINICION.—Concordância es la conformidad de accidentes que an
entre sí las -partes variables de la oradón. - ' : x '
f . . . . . :
DIVrSION.—Hay en espaúol tres clasés de concordância a saber , 5*
, ' • ■'. ' . ' • ' , •'h’■?
j « Dg nombre y adjetivo o artículo O pronombre o partidpio. ' i >£jj
2.* Dc sujeto y verbo.
.3.* De relativo y antecedente . ~. 4
En fa d’A m b ô poca cosa bay‘que decir de cada una de ellas, -pües, como se'-* .
dijo en la Analogia los nombres, excepto los de personas, careceu de plural; el-í ^
adjetivo; excepto el demostrativo que tiene plural, también carece de gqnèro j:A -%
núfneío, y el caso no crea dificidtad: d verbo es en todas iás personas de cadá
ti(Mnpo lo mismo, cambiando só!o'el:\ u jéto 0 pronombre ; y así ba^tarán/algunas >"/
observaciones para mayor claridad y facilitar con algunos ejemplos^àrcomposb
cióu y traducción de esta léngua. -<• ' : ’ - , T ,,

F o n te : Barrena (1957, p. 85)

Nesse sentido, o trabalho de Barrena não se limita apenas a uma replicação de um


modelo gramatical, mas demonstra também o conhecimento linguístico do autor na forma como
trata alguns fenômenos. Por exemplo, na lição XXIV, sobre adjetivos numerais, Barrena
emprega duas grafias diferentes para o mesmo morfema: ambudu (‘uma pedra’) e andéixibudu
(‘dez pedras’) (BARRENA 1957, p. 36). A escolha por diferenciar a ortografia nesse caso tem
como motivação um processo de assimilação do ponto de articulação da consoante precedente,
em que a consoante nasal é produzida como [m] diante de uma consoante bilabial e [n] diante

17 “O verbo é o mesmo em todas as pessoas de cada tempo, mudando apenas o sujeito ou pronome” (tradução
nossa).

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Instrumentos Linguísticos
412

de uma consoante alveolar. Assim, a diferença ortográfica entre am e an na escrita de Barrena


parece apontar para o conhecimento fonético-fonológico do autor.
Outro exemplo que demonstra esse conhecimento é a descrição sobre sequências de
consoante nasal + consoante oclusiva em início de palavra, que não ocorrem em línguas
românicas. Barrena descreve, inclusive, o movimento articulatório para a produção dessas
sequências, como é possível observar no trecho abaixo:

F ig u ra 7: Lição II

C Q N SO N A.NTRS D Q B LES.—Ti ene el fa d’ Ambô, aunque no son muahas,


algurtas palabras que comienzan por m o por n seguidas de otra consonante \ v. g r .:
mba, encorbar, o encorbarse; mbasá, costilla; mma, caro (precio muy subido);
ndesax A ndresa; ntela, estrella, etc. * •• --
ipara pronunciar bien estas letras !hay que figurarse que les predede e, la que
intentando pronunciar con los lábios cerrados no se percibe, sino la consonante.

F o n te : Barrena (1957, p. 20)

Em suma, é possível observar na gramática de Barrena, de uma maneira geral, uma


tentativa de adequação ao modelo gramatical greco-latino. Porém, ao mesmo tempo, o autor
apresenta diversos comentários e descrições que demonstram uma reflexão mais aprofundada
da língua e que evidenciam a limitação do modelo utilizado.

3.3. Público-alvo
Em Barrena (1957), o teor pedagógico da obra - destinada à própria comunidade
missionária - é evidente. Além da redundância presente nas descrições linguísticas da língua,
como no já comentado caso do paradigma verbal, as comparações ao espanhol são constantes
na obra, como nos fragmentos expostos abaixo:
a) Alfabeto: “O alfabeto annobonés consta de vinte e sete letras, que são as mesmas
do espanhol, com exceção do ll e rr” (p. 17).
b) Consoantes simples: “Pode-se afirmar que, com exceção de quatro consoantes: j, v,
x, z, todas soam ou se pronunciam como em espanhol” (p. 19).
c) Partes da oração: “As partes da oração em fa d’Ambô são dez, como no espanhol, a
saber: artigo, nome substantivo, nome adjetivo, pronome, verbo, particípio,
advérbio, preposição, conjunção e interjeição” (p. 20).

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Instrumentos Linguísticos
413

Na realidade, usar a própria língua nativa como referência servia como maneira de
facilitar o aprendizado da língua estrangeira alvo. Somado a isso, há vários exercícios de
tradução espanhol - fa d ’Ambô ao longo da gramática:

F igura 8: Exercícios práticos

• . EJERCICIOS PRACTICOS
I. iQ u ié n h a h e c h o esto ? r. jQ u e n g u e fe jo sa y ?
2; Y o h e .h e c h o e s t a c a s a y M a n u e l 2 . M ’f e j a j i s a y s e M e n é f e is a lá .
a q u é lla . # 3 . F a j a ta is a y s a g a v i m a i x c u is a y
3. E s te p a p el es m ejo r q u e é s e q u e sa cu b ó , m a n ji © pá sq u e v é sa y
t ú t je n e s , p e r o e s a p lu m a v a m e - sa g a v i m a ix c u is a y .
jo r q u e é s ta . " 4 . N a m i n a d o s n e n s a y sa g a v i m u it u ,
4. E s t o s d o s n in o s sem m u y b u e n o s , is a y s a la v a m a . isai á s a c h ig u e s u .
é s t e e s e s p a ü o l, a q u é l p o r t u g u ê s . 5 . J o x i b o f a lá s e s a i x i q u e m ’m a s n i .
5. L o q u e d ic e s e s lo q u e y o p e n s a b a . 6 . i B o jo n s é n a n g u e n e n sa y sa ja bi
5. í C o n o c e u s te d a l o s q u e v i e n e n ? ■ yay?
7 . S i, s e n o r , s o n l o s q u e e s t u v i e r o n 7 . X u é , se s a n a n g u in e n x l s ta ja ji
a y e r en- n u e s t r a c a s a . n o o n te .
8 . E se q u e ves e s m i h erm a n o , y el 8 . I s a y c u b o sa ja b e sa n a m é m u se
• • q u e l e a c o m p a n a es el d e J u a n . n g u i x i j o ’l s a j a b a y s a ji Z u á .
9 É l q u e e s t u d ia a p r e n d e r á , y e l q u e 9 . N g u i x i sa ja le , q u e x i n á m u it u , s e
es p e r e z o s o s e r á s ie m p r e u n tontcn. n g u ix i sa p is c ü z u q u e s a d a n a -
10. E s o s q u e t a n t o h a b la n , s o n lo s d u t u jía .
m á s ig n o r a n t e s . 10 . N a n g u é n e n sa y sa ja fa m u n ta y i
11. N o o lv id e s esto- p o r a q u e llo . s e s a d á n a jd u m a ix c u t u d u .
12. 'E s te s o m b r e r o e s e l d e m i h e r m a ­ 11 . B o n a q u e s é j o s e f d i'p 4 a f .
n o y a q u é l el d e P e d r o ; e l d e J u a n 12 . fB é te s a y s a ji n a m é m u , s e is a lá
lha d e s a p a r e c id o . sa ji F é d u lu ; ji Z u á p en d é.

F o n te : Barrena (1957, p. 40)

Há ainda outros elementos que caracterizam o caráter prático e pedagógico da obra


destinada à comunidade missionária, tais como o trecho sobre como se cumprimentar em fa
d’Ambô (p. 91-92), e a inclusão do Gozo a San Antonio de Padua em fa d’Ambô no apêndice

(p. 93).
A gramática de Vila (1891) também evidencia a comunidade claretiana como o público-
alvo do trabalho missionário. Vila inicia o prólogo apresentando o fa d’Ambô como uma língua
que oferece pouca dificuldade de aprendizagem, não sendo necessária a elaboração de um
“tratado extenso sobre este idioma”. E segue dizendo que:

Las reglas sensillas y breves, que con el nombre de Elementos tenemos el gusto de
ofrecer á nuestros Hermanos, y la ayuda de un pequeno diccionario que tenemos ya
comenzado, y con el favor de Dios no tardaremos mucho en concluir, serán, á nuestro
parecer, suficientes para que, el dia que a obediencia los envíe á esta Isla, entiendan a
los indígenas, y no tengan necesidad más que de perfeccionarse la pronunciación con
su trato para hacerse entender de ellos. La facilidad de este idioma proviene de su
mucha semejanza con el português, del cual ha tomado muchas palabras, pudiendo en

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Instrumentos Linguísticos
414

verdad decirse que el ambú actual no es más que una amalgama del primitivo con el
português’18 (VILA, 1891, p. 05)

Algumas considerações podem ser feitas a partir desse fragmento. Primeiramente, a


respeito das intenções implicadas na descrição do fa d’Ambô: Elementos teria fins pedagógicos,
escrita em forma de manual, e destinada para a comunidade de missionários exclusivamente
para o exercício de catequização na colônia19. Esses dados correspondem às informações
apontadas por Hovdhaugen (1996), de que, na maioria das vezes, gramáticas missionárias eram
produzidas para os próprios colegas da congregação, sendo que muitas não eram sequer
imprimidas, mas sim copiadas à mão.
A suposta facilidade em aprender a língua descartaria a necessidade de um
aprofundamento de sua gramática. Em outras palavras, o objetivo motor da descrição da língua
seria comunicar-se com os falantes, e não o estudo da língua. Por outro lado, a afirmação de
que o fa d’Ambô seria uma fusão entre o português com o “primitivo” demonstra que Vila
reconhece as fronteiras entre os idiomas, já que não trata o fa d’Ambô como uma variedade do
português. Cabe aqui o questionamento do que há por trás da noção de primitividade . Tal
significante poderia estar apontando, de maneira implícita, para as línguas africanas que
compõem o substrato do fa d’Ambô.

3.4. A Gramatica Annobonesa como um a gram ática m issionária de um a língua crioula


Como mencionado anteriormente, a gramática de Barrena não é citada em obras
dedicadas à historiografia da linguística missionária. Um dos trabalhos mais recentes e
importantes que trata de gramáticas missionárias da Ásia, África e Brasil é o de Zwartjes
(2011), em que o autor opera um recorte que circunscreve o período entre os anos de 1500 e
1800, e afirma que

‘It is significant that Portuguese and Spanish missionaries never compiled grammars
or dictionaries of the varieties such as pidgins and creoles that resulted from contact
with European languages: they were interested in independent “natural languages”
which had not been corrupted by linguistic contact’. (ZWARTJES, 2011, p. 13)

18 Sobre o “pequeno dicionário” citado por Vila, referências apontam para a existência de um dicionário “espanhol
- fa d’Ambô e fa d’Ambô - espanhol”, de autoria de Natalio Barrena, datado de 1928 (STREIT & DINDINGER,
Almanaque 1923, in: REINECKE et al., 1975, p. 94 apud MADEIRA, 2008, p. 07, 126). Como não há quaisquer
outras informações a respeito de possíveis exemplares, não é possível precisar que se trata do mesmo dicionário
que Vila menciona, senão estimar com base nas datas de chegada do autor em Ano Bom e de seu falecimento, já
mencionadas.
19A Arte da Língua de Angola (1697), escrita pelo jesuíta Pedro Dias, também tinha como público-alvo à própria
comunidade da Companhia de Jesus (ROSA, 2013).

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415

Muito embora as primeiras descrições gramaticais do fa d’Ambô tenham sido


elaboradas somente no final do século XIX e no século XX, Zwartjes não dedica qualquer
menção às obras de Vila e Barrena, como faz ao abrir uma nota para informar sobre descrições
linguísticas de línguas crioulas empreendidas por protestantes morávios, e de um vocabulário
francês - crioulo, do Haiti, publicado em 1802 (ZWARTJES, 2011).
Apesar de não ser citada na literatura sobre gramáticas missionárias, a gramática de
Barrena está de acordo com a definição de Zwarttjes, que considera que gramáticas
missionárias:

(i) Funcionam como material pedagógico: “were mainly written as pedagogical


tools for language teaching and learning in a missionary-colonial setting” (2018,

p. 1).
(ii) Utilizam o modelo greco-latino: (t)hese grammars are modeled according to the
traditional Greco-Latin framework (...) In the New World, Asia, and elsewhere,
missionaries had to find an adequate methodology in order to describe
typological features they had never seen before” (2018, p. 1).

O teor pedagógico e o público-alvo descritos nesta seção são indicativos de que a obra
corresponde às características de gramáticas de tradição missionária descritas por Hovdhaugen
(1996).
Assim, corroboramos Agostinho (2021), e consideramos a gramática de Barrena como
um raro exemplo (e talvez o único) de uma gramática missionária de uma língua crioula.
Ademais, sugerimos que essa obra seja uma das últimas gramáticas missionárias, ou talvez a
última.

Considerações finais
A forma como Barrena (1957) conceitualiza o termo gramática, como “arte de falar e
escrever”, nos indica, logo no início de sua obra, a influência da tradição gramatical greco-
latina do renascimento, que buscava padronizar a língua nacional em busca de promover a
unidade linguística da nação, em oposição ao latim, que vigorava como língua oficial, política
e literária. No caso do fa d’Ambô, a influência gramatical caracteriza-se somente no que diz
respeito à descrição linguística, e não ao contexto da elaboração da gramática. Em outras
palavras, a missão claretiana trabalhava a serviço do governo espanhol, empenhada tanto em

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transmitir a fé católica (vigorante em Espanha) aos habitantes de Ano Bom, quanto em ensinar-
lhes o espanhol. Os exemplos e comparações do fa d’Ambô com o espanhol demonstram o teor
pedagógico da obra, que por sua vez, não eram voltados para a fins de alfabetização da própria
população nativa, mas para servir como um manual à comunidade missionária que vivia na
colônia e precisava aprender a língua nativa para transmitir a fé e traduzir catecismos do
espanhol para o fa d’Ambô. Além da definição de gramática empregada pelo autor, as
constantes comparações com o espanhol e referências ao latim, indicam uma tentativa
eurocêntrica de enquadrar o fa d’Ambô nas categorias gramaticais de uma língua de tipologia
românica, a partir de um modelo greco-latino de gramática. Ao mesmo tempo, Barrena
apresenta reflexões sobre as diferenças gramaticais entre o fa d’Ambô e o espanhol em diversos
trechos, o que demonstra uma compreensão acerca da incompatibilidade do modelo utilizado.
Ademais, o fato de se escrever uma gramática do fa d’Ambô coloca esta língua como diferente
do espanhol e do português, ou seja, em um lugar de “singularidade” (cf. Orlandi 2000, p. 27).
É válido lembrar que não temos conhecimento de outras gramáticas missionárias sobre línguas
de contato, além das gramáticas de Barrena e Vila (cf. ZWARTJES, 2011, p. 13).
A motivação da escrita da gramática de Barrena é ligada à tentativa de catequização da
população de Ano Bom, sendo destinada para a comunidade de missionários e não para os
falantes da língua. Nesse sentido, prevalece o teor pedagógico voltado para o ensino de uma
língua estrangeira, escrita por um não-nativo.
Concluímos que o uso do (i) modelo greco-latino, o (ii) teor pedagógico e (iii) o público-
alvo são indicativos de que a obra corresponde às características de gramáticas missionárias a
partir de Hovdhaugen (1996) e Zwartjes (2018: 1), sendo uma das últimas publicações (e talvez
a última) deste tipo, conforme sugerido por Agostinho (2021). Assim, a gramática de Barrena
se apresenta como um raro exemplar de gramática missionária de uma língua crioula.

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Instrumentos Linguísticos
417

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A N E X O A - C ó p ia d e Gramatica annobonesa (B A R R E N A , 1957)

INSTITUTO DE ESTÚDIOS A F R I C A N O S

GRAM ATICA A N N O B O N E SA \

RVD O. P. N A T ALIO BARRENA

U *AX *

COHSEJO SUPEHIOE DE BfVESTIGACIONES CIENTIFICAS

MADEID, 19S7

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Instrumentos Linguísticos
424

ANEXO B - Revista La Guinea Espanola, 1909

F o n te : Raimonland.net, 2006. Disponível em: http://www.bioko.net/guineaespanola/1909/190908_25.pdf.


Acesso em: 19 jun. 2023.

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ANEXO C - Revista La Guinea Espanola, 1909

LA GUINEA ESPANOLA

masas de varias clascs más ò ntenos consistentes.


La ls!a de Annobón La capa de humus que se extiende sobre la esté­
ril roca es demasiado tênue para que la isla sea fér­
til corno !a de Fernando Poo, yporlo general tnez-
UN PASO PARA G U C O N O C IM IE N T O clada con abuudancia dc piedrasque la liaccn más
difícil al cultivo. No obstame dc ser el mantillotan
4. E xtonsión d e l a i d a y calidad d e l t a rr e . cscaso, sc íulla la isla poblada de vegetación.á ne>
no. —Difícil is apreciar Ia extemión dc Ia isla, ;cr oi algunas partes dei N. Lo que prueba que
sin aparatos propios para medirios por razón de scr ia pcca tictra vegetal existente es de muy buena
tan ircatroja, cspccialmcntc per tl E.y O. puesto calidad.
que apenas puede darse un paso por Ia partelo.lera Hay sin embargo algunas docenas de hcctárcas
dc Ia misma. Sin embargo aproximadamente vendrá dc tierra buena y no tan pedregosa cn la parte
á tener de unos cuatro á seis kilometros de latitod liana dei N. O. que, si la lluvia fucra más copiosa
tde E. á O ) por diez á doce de longitud. ó sea de y la seca no tan pertinaz. prdria aprovccharse para
N. á S. plamacioncs de cacao.
I.os indígenas, paiticulamcnlc los hombres, de or­ I as palmcras. plátanos y la yuca se dan muy
dinário van por mar ui unis pequenos y (rágiles bien. Tambicn al S. dc !a laguna sc encuenlran
cayucos, que maneian á maravilla. Con eras pcquífiat. algunos kiióinctros de tierra buena y fértil que
imbarcacioncs, que se deslizan suavi mente eu cl se puede aprovcchar para cacao y otros prodin tos
agua mediante una pola que sir ve de remo pueden propios dc e; ia zona. Va algutios indígenas han
dar vuclta á Ia Islaen pocas horas. comcnzado a probarlo y parece que han haliado
Kn una de Ias ocasiones que cn el ano ç)5 di- rctultado satisíjctorio.
mos Ia \ue!ta d !a isla ecn nutstra piqucía balle- 5. Rf3 jn lo a y picos p rln cip alo s. Los montes
nera con solo tres remos y sin contar Ias paradas priicipales. h cumbrc de casi todos los cuales
tu S. Pedro v eu S. Antenio, pucblccülos dei K. y lerminj en pio. son los siguientes: cl monte
dei S. respeeli va mente. nos costõ :ó!o q horas y «Quiovco» que sc Italla casi cn cl centro de !a mis­
22 minutos. ma algún tinto al S. O., cs cl más alto dc todos:
El terreno de la isla cs muy ac< ideittado. pedre­ v por no tenir barômetro ni otros aparatos no pu.
goso y, según todas Ias nuestras, de origen volcó- dimos medir su altura.
nieo; Io eual se ccha de vez examinando Ias rocas IXsdc el pucblo dc St." Cruz que ;c Italla cnclava lo
y Ias varias capas de lava petrificada cntretnczcladas al O. en los cstribaciones de este monte nos costò
de cantos rodados v otras ntaterias formando arga- subir á su cumbrc dos horas; subiendo la tnavor

F o n te : Raimonland.net, 2006. Disponível em: http://www.bioko.net/guineaespanola/1909/190907_25.pdf.


Acesso em: 19 jun. 2023.

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Instrumentos Linguísticos
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ANEXO D - Revista La Guinea Espanola, 1909

LA GUINEA ESPANOLA.

impedia ni ponia ordcn; habia muchas riflas v no alguna otra cosa ya cn latln. ya cn português corrom­
hab a quicn pusicse paz. Hn una palabra tcniamos pidos, á mancra dc salmos que t-imbicn los repetia
aqui un pucblo ó más bien una Isla eritera dc más cl pueblo.
de mil cuatrocicntos habitantes sin autoridad y siri Fambien hacían ntras ccrcmonias, aun estando Ia
ninguna elase dc gobierno. Misión hspaftoLa, aunque pedia n artes permiso al
Asi continuaron Ias cosas hasta cl ano irjoa cn Padre Superior. como he tenido ocasión dc ver
que sc crcó Ia Dclegación dc Annoo^n i cirgo dc muchas vcces. como los cânticos dc las cuatro nochts
un empleado europeu con un practícante y un puesto qu« prcccdcn al dia dc Navidad y cuando hacíare
dc policia colonial Los resultados dc íejncjnntc rogativas cn tiempo dc tequia nara pedir agua. los
medida no se han hecho esperar. sictc pasris dc la pasión dc Cristo ó Ia «Pntesa». que
1 2 . C u á la s s ? n eu id io m r y su ro lrg io n : cllos llaman y adernas aún contlnuaban bautizandn.
C a le n d á rio .— Kl idi>ma dc lo» armoboncscs cs etc-, etc.
particular dc esta Isla y no sc Cono*;c lucra dc cila, Para enterar meior á los que esto lean sobre Ias
aunque cs muv parecido al dc fcto. Thomé. como fun.ioncs que lu ilin estas gentes, pondremes alguno*
vamos á dcor luego. de los cânticos que cn cilas empleaban sacados de
La lengua dc estas gentes parece derivada d d un catecismo português impreso cn l.isboa el aflo
idioma dc Sto. rome; pues hc tenido ocasión dc 1K24, que tengo á Ia vista, ordenado ò mancra dc
oir hablar á los natural» de In reterida Isla con los dialogo porei P. Marcos J , Doctor cn Teologia, y
de Annobôn. cada une* en su Icngja, y sc cntcnduin acrcccntado por el P. Igoacio Martins Doctor Teólogo.
bastante bien cn casi todo, à no *cr cn algunas pn- E i un libro que apenas .»« puede Iccr de comido
labrav que cran diferentes. Lo cual no cs nada de que está por los ratones y dc quemado; y sin embargo
estradar, supvcsto que esta isla dc Annotón hubicra lo guardan y conscrvan como una joya, cspcciaJmcmc
*iJo pobloda con los habitantes dc aquclla. cl «M.iCitrc FrenL» que cs como «] cucargado dc
S u r<sligion.—La rcli,;iõn dc estos habitantes cs enseflaresías coras y cl que mc ha dejado cl libro
Ia católica, ia cual, implantada poralgunos Mixioncros por algunos dias.
portugueses j tines dei algto diccincho» sc ha con­ Csnticnc el referido libro, primeramente una de-
servado al traves dei posado siglo hasta d presente, voción i S. Antooio para encontrar las cotas perdidas;
aunque á su mancra, pues casi iodas Ias ccrcmonias luego potie Ias indulgências que ganan Ins que cnsolan
católicas habíaii degenerado cn supcrstkiones ridículos y .1prenden la docirina crlstiana; desputs posa á
à i lo menos cn va nas imitacioncs y sõlo tenian c.vplicir la doctrina crisiiana cn dcec capitulos.
alguna idea vaga dcl cristianismo, dei que no sabian Ln el capitulo trcce trac cuatro mancras de avudar
sino unas cuuntas oracioncs cn portuguc; y cn latín. mira que son: scgún cl rito Romano, scgún «1 rito
pero u n corrompidj* y mol diehas, que apenas sc de la Crdcn Crrmelluna, conforme al r.to dc Ja
parcccn ã la; originalcs, lo cual sc iba trasm tienrfo Orden dc S. Bernardo, y conforme al rito dc la
de padres á hij< s, Yodavii hay vários ancianos dc Ordcn de Slo. Domingo. Er» <] capítula latorcc trac
ambos k *cos bautuidos por cllos, lo* cualcs son I s unas oraciorcs cn latln que son, «Pater noster»,
que mc;or siben csas orocioncs cn português y cn « \vc Maria», cl «Credo*, y «Sabe Regina». Luego
latln, como son d «Miscrerc», d «Benedictus*. itc.. siguc.i ê mancra dc Apcrdice slgunos tratados muy
en latin muy corrompido, y cn português Ias ora- devotos y provcchosos erdenados por cl P. Ignacio
ciones d d catecismo como son; cl «Yo ftendor». Mnrtim, que comprcnden lo que ha de haccr c|
«Scftor mio Jesucristo». «Salvo, «Pjdrc nu estro*. cristiano para rccibir los sacramentos dc Cnnlcriòn
«Ave Ataria*i «Pecados Capital cs», «Obras dç mi- y Comunidn. Luego siguen las Icianiss de los santos
scrico rd « S acram en to s» , etc.; pero lo; que sepan y u ra s cosss que parece sc Ias han dejado perder.
todo esto son muy poços. Siguc despues cl modo dc rezar cl rosarij y final-
Abando u d i esta Isla por Ias .Misioncros portugue­ mente vienen Ias «Cantigas Devotas».
ses, suplicron á «dos, cn lo que pudicron, algunos (Continuará) A á l a i i t f M a r r e t a CJ, M. F.
sncrisiancü. cada uno dc los cualcs estaba «ncargado
dc su iglçsia ó ermita, pues cs dc saber que Ias hay
cn grau número. (19 entre todos Ias dc Ia Isla». De Ia
Iglisia «grande* ó «guesa gany», que cllos diccn, La K o la
Cstaba encargado d primeroy principal, quien bacia
ciai tidas bs íundonc; que acosiutnbran los católicos K ntre tsa hcrmrra vaikdcd dc á ih ks frutalca que
como«bauíbar», «enterrar*, «casar», «cantar Icuniai», pueblan los rronns y los v-illes c*c nuestra (iuinca,
«bendeeu agua», «bcndccir al pueblo», «haver ro. sobrcsalc el llamado irbol dc la Knla, conocido. ts
gativai para pedir agua», etc., ele. l'na de estas cicrto. cn nu estro CoIonla pero poco aprovcehado;
funciones Ia liacínn los domingos y di s de (iesta. to euul n de sentir, atendida su e.vcvpcion I impor­
Ia cual consistiam que cl referido racrisi; n (Sanguistá) tância. Nos f ermitirán. pues, nuestros lectorcsque
vestido cnn una baia azul s tla dc Ia íaciixia con diganiascuiiro jolabras siqukra, sobre dichnproduc-
dos acólitos uno dc La cualcs sacata un litro que to; el cual,si bien cs útil en tedas partes al hombre, lo
bacia de «ritual» y, colocados cn frente dei alur, «s aun más aqui rrisiro 1 nr.de I > tc temos lan á
entonaban Ja Ictania dc lòs rantos. haciendo como mareo.
que leia pero $in raber Jicr, y llegando al «Saneia Kl áriot dc li Kola pcrtcnecc á Ias malváccas. y
Marii» y al Santo dei dia, ii ira dc los que entran llcga á adquirir li altura dc diez y hasta de veinte
cn las letanias, tocata Ia campa ni lia. Luego canuban metros. Los l.emos vist) en I is montes y en |<s

F o n te : Raimonland.net, 2006. Disponível em: http://www.bioko.net/guineaespanola/1909/190908_25.pdf.


Acesso em: 19 jun. 2023.

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Instrumentos Linguísticos
427

A N E X O E - C o m u n id a d e m issio n á r ia d e B a n a p á

*1

F o n te : Fondo Claretiano. Disponível em: http://bioko.net/claret/displayimage.php?album=1&pos=12. Acesso


em: 19 jun. 2023.

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Instrumentos Linguísticos
428

ANEXO F - Prim eira edição da revista La Guinea Espanola, 1903

q u e h o y e m p ro n d e m o s o o n h n n s, p e ru n o
i m p o r t a ; a t J « la n t e * i, q u e a l i a d o n d e u o l l c -
g u c u n u e s ir a s í u e r z u s y m e d id a » , J le y u r á
l a i n d u l g e i i c i u d e . Au e s t r o » e s t i m a d o s c o m ­
p a t r io t a s , o n e u y u p r o v e r b i a l g e u e io s id u d
9 1p r i > por i i u e l d i a i n n f> ti* p tr u d o ; m u c h . s im o c o n í lu m o ? . V a m o s , pnes, cs-
g L . le u e m o ã lu d u lc e s u lis f u c c ió u de p u u o le * , b h m c o s y d c c o l o r , m in e m o s n u c s -
s a lu d u r a l p u b lic o d e s d e Ia s e o lu in - t r a s f iiG iz u , ju n t o m o n n s io d o s e u c o m p a c ­
iu » & d c u o t t n u e v t n p u b l i c a c i d n q n i n c c n n l t o e s c u a d r ô n , io d o s u n i d o s I r a b u j n m o s c o u
q u e , u u u q u c h u m i l d e y s e n c i lJ a y » i n p r e - a i- d o r y â m c d id e d c n u e s t r a s fttc rz n s y
le u H i u n c H d e i i i u g ú a g õ n e n r , a s i y t o d o , h r tb c r c s c n p r o d c la B E L IC S IO .N y d c lu
n o ilu d a m o s q u e d o w d e lo » a p a r t a d a » r e - P A T R I A , im it e m o s lo a e je m p lu s d c u u e s .
g iu u c s e n q u e v iv im o s lia d© c o n t r ib u ir t r o s g l o r i o s o s u n t e p a s a d o » , y c o r n o e l lo s ,
n o p o o u u I a g l o r i u d e D í - m í, a l l u v l i c v m e re c e re m o s o c u ir Q u e s tim s it u e s c o u
c t » p le u d o r d e i C a t o l ic i s m o y a lu p r o a p e - d iu d e m a d e g lo r ia y d e in n r io i ta lid a d .
r id o d m a t e r ia l y m o iu l d e n u e s t ia m a ­
d re K s p fm . Y d e p r o p õ M to lie m o s d ic h o Y Iclicísimas Pascuas para todos.
d i.» s u s p i r a d o , p u e s , rt Jú v e r d o d , ô » t c b a
s id o n u w t r o s u s p i r o d e s d e lia o e m u c h o f t
O fio h , s u s p i r o q u n s n l i u d e n u e s t i u s p e -
c l i u ü a í o e r d c c a t ^ l ic o c * . d o m i s i o n o i - o H y
du e s p a ü o le » . E s t o in is m o m is p ir u b n n
PARTE
lu u c h u - s y b e n e m é r it a » p e i* * o r u iw d ç n u e s -
t m C o l o n i a d c ? 'Q o ^ r o d e .- l i l i i n e a , y e s te
INSTRUUTIVA.
c o n s U i i i l c s u s p i r o s e * * c t le jM ü u c í i í u s m i l y
\ u m c u r U i. s < ( tio a I a c o n l i u u u r c c i b i a r n o s SECCKIN OFICIAL.
d c lu l» e iu u s u lt i. e u la s q u e , c o m o y a o p u n ^
L u i u o s c n n u e M n » P l l O S P E C T O , s o 1109 BASES i Ias q«í liin dc sjjetjrst Ias «iitralus i)íc se IIc-.íq
c o n u tu ic u b u lu ih e r o u E s ita n a v e r tlu t lc r a
h a r n b r c d c n o t ic ia s d e s u s P o s c s io n c s y
à cfccto talfü loa palroios j «bm w . pari Feriaido Too'ca
p e d i u s e n o » c o u i n s i » l c * n c i u lle v a s e m o s s a BA. (t)
e i t b u U i 11 c o d è c i a d a e m p r e é u . 1* L o s q u e d c s c c n c o n t r a t a r b r a c e r o s se d i r i g i n i n
U m u d i s in u is d iílc u lL a d c s d c Io d a s u o r - « l S u b - G iib e m a J o r d c B « ta e l q u e a v is a r á A
t c li e m o s Ú m id o q u o v e n c e r p a r a J u . c o n - l o s jc f e s t l e lo s p u c b to s I n n ie d ia to s p a r a q u e d i-
s c c u c i ó u d o i i u e s t r ú d o c o , d o Uit i i j u i i c - {p i c l n ú m e r o d c lio m b r c s c o n q j c s e p u e d e c o n ­
r a r ju o im is d c u u u v e z p o u s a m o s eu ta r.
a b a n d o n a r n u e s tr o in te n to . M a y o re s (u l
U l Con kus-.o lo tc ru m o i aq u i Lu w ^uirnir* B a se a , cujr* -aprcuO * r.o»
vez s e u u s p r c s e tiu m iu c u la u rd u a ta re a ha 1W0 cns->-v.i4 * p o r «I Sr. S u b - G e b c r u ilo r dc B A T A ,

F o n te : Raimonland.net, 2006. Disponível em: http://www.bioko.net/guineaespanola/A1903.htm. Acesso em: 19


jun. 2023.

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Instrumentos Linguísticos
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A C O LO C A Ç Ã O PR O N O M IN A L EM LO C U Ç Õ ES VERBAIS: EN TRE A
NORMA PREDICADA E A PRATICADA

PR O N O M IN A L PLA C EM EN T IN VERBAL GROUPS: B ETW EEN TH E


PRED IC ATEN O RM AND TH E PRACTICED ONE

Ana Teixeira
Universidade Federal do Piauí

Marcelo Alessandro Limeira dos Anjos


Universidade Federal do Piauí

Resumo: O presente artigo apresenta bases teóricas da História das Ideias Linguísticas em diálogo
com algumas noções da Sociolinguística Variacionista. O objetivo geral é o de comparar regras
predicadas sobre colocação pronominal em locuções verbais em gramáticas normativas com os
usos efetivamente praticados em textos escritos cultos dos primeiros quinze anos do século XXI.
No âmbito do predicado, compulsa-se as gramáticas normativas de Rocha Lima (2012 [1957]),
Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]), Melo (1978 [1967]) e
Said Ali (1969 [1924]). No âmbito do praticado, trabalha-se com textos jornalísticos, literários,
científicos, religiosos e jurídicos, publicados nos quinze primeiros anos do século XXI. No cotejo
entre o predicado e o praticado, de modo geral, há concordância entre as prescrições gramaticais
e os usos dos brasileiros na escrita monitorada. Todavia, é notório comentar que os instrumentos
linguísticos analisados, à exceção de Luft (2002 [1976]), podem repensar e trazer como regras
básicas, e não como notas de rodapé ou observações ou em tópico à parte, as formas efetivamente
realizadas pelos brasileiros, como é o caso da colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2). Com a
realização do presente artigo, verifica-se a necessidade de o assunto de colocação pronominal em
locuções verbais ser repensado e atualizado nas gramáticas normativas, no sentido de abarcar
como regras básicas as realizações efetivamente em uso pelos brasileiros, particularmente em
contextos monitorados.
Palavras-chave: Colocação pronominal; Locuções verbais; Norma predicada; Norma praticada;
História das Ideias Linguísticas; Sociolinguística Variacionista.

Abstract: This article presents theoretical bases of the History of Linguistic Ideas in dialogue
with some notions of Vaciationist Sociolinguistics. The general objective is to compare predicate
rules about pronominal placement in verbal groups in normative grammars with the uses
effectively practiced in cult written texts of the first fifteen years of the 21st century. Within the
scope of the predicate, the normative grammars of Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009
[1961]), Cunha and Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]), Melo (1978 [1967]) and Said Ali
(1969 [1924]) are perused. In the field of the practiced, journalistic, literary, scientific, religious
and legal texts, published in the first fifteen years of the 21st century are worked on. In the
collation between the predicate and the practiced, in general, there is agreement between the
grammatical prescriptions and the uses of Brazilians in monitored writing. However, it is
notorious to comment that the analyzed linguistic instruments, with the exception of Luft (2002
[1976]), can be rethought and bring as basic rules, and not as footnotes or observations or in a
separate topic, the forms effectively performed by Brazilians, as is the case of intra-LVC
placement without a hyphen (V1clV2). With the completion of the present article, it is verified
the need for the subject of pronominal placement in verbal groups to be rethought and updated in

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Instrumentos Linguísticos
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normative grammars, in the sense of embracing as basic rules the realizations effectively in use
by Brazilians, particularly in monitored contexts.
Keywords: Pronominal placement; Verbal groups; Predicate norm; Practiced norm; History of
Linguistic Ideas; Vaciationist Sociolinguistics.

Subm etido em 17 de julho de 2023.


A provado em 04 de setem bro de 2023.

Considerações iniciais
Em História das Ideias Linguísticas (HIL), a gramática, assim como o dicionário,
segundo Auroux (2014 [1992]), fazem parte do processo de gramatização, o qual
descreve e instrumentaliza uma língua e, diante disso, constituem-se pilares do saber
metalinguístico. A gramática “não é uma simples descrição da linguagem natural; é
preciso concebê-la também como um instrumento lingüístico1” (Auroux, 2014 [1992], p.
70), porque “uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de
formas que não figuram juntas na competência de um mesmo locutor” (Auroux, 2014
[1992], p. 70). A gramática, pelo viés da HIL, é um artefato tecnológico que
instrumentaliza uma língua a partir de referências e normas, sendo passível de análise e
discussão de seus aspectos técnicos e seus efeitos para a produção do conhecimento
linguístico.
Segundo Orlandi e Guimarães (2001), a partir da análise dos instrumentos
linguísticos, é possível compreender também a construção da sociedade brasileira e ter
consciência da história do PB. Tais instrumentos, enquanto objetos históricos, podem ser
“um excelente observatório da constituição dos sujeitos, da sociedade e da história”
(Orlandi, 2001, p. 9); em outros termos, “a produção tecnológica relacionada com a
linguagem é, não há dúvida, lugar privilegiado de observação do modo como uma
sociedade produz seu conhecimento relativamente à sua realidade” (Guimarães; Orlandi,
1996, p. 9). Diante disso, ancorando-se na perspectiva da HIL, pretende-se, com o
presente artigo, realizar uma reflexão sobre a instrumentação linguística quanto ao
estatuto da colocação pronominal em locuções verbais, em diálogo com algumas noções

1A noção de instrumento linguístico, a partir da articulação da HIL com a análise do discurso, pode abarcar
a produção de saber linguístico que engloba não só a gramática e o dicionário, como também “outros objetos
históricos, tais como relatos de viajantes e de missionários, manuais, cartilhas, glossários, enciclopédias,
programas, parâmetros curriculares, museus, nomenclaturas, manifestos, etc.” (Ferreira, 2018, p. 25).

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Instrumentos Linguísticos
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da Sociolinguística Variacionista (SV)2, buscando relacionar o saber linguístico e a


constituição do PB.
A colocação pronominal, tanto em tempo verbal simples quanto em locuções
verbais, tem sido alvo de muitas pesquisas científicas nas últimas décadas. Em diversas
perspectivas teóricas e enfocando os estudos da colocação pronominal em locuções
verbais destacam-se, por exemplo, as pesquisas de Pagotto (1992, 1998); Schei (2002,
2003, 2010); Vieira (2002, 2003); Duarte e Pagotto (2005); Martins (2009, 2010); Nunes
(2009, 2014); Biazolli (2010, 2012); Cavalcante, Duarte e Pagotto (2011); Peterson e
Vieira (2012); Costa (2014); Santos e Vieira (2011) e Santos (2015).
Assim sendo, trabalhando com os domínios do predicado e do praticado
(Barbosa, 2015)3, este texto tem como objetivo geral comparar regras4 predicadas sobre
colocação pronominal em locuções verbais em gramáticas normativas com os usos
efetivamente praticados em textos escritos cultos dos primeiros quinze anos do século
XXI.
É oportuno esclarecer que as locuções verbais, também chamadas de complexos
verbais ou lexias verbais complexas (LVC) são estruturas formadas por duas ou mais
formas verbais que se relacionam, com integração sintático-semântica (Santos; Vieira,
2011; Costa, 2014). Nessas estruturas, há mobilidade do pronome oblíquo átono (clítico)
que pode se encontrar em quatro posições: pré-LVC (cl-V1V2) - próclise ao verbo
auxiliar (ex. Aqui se pode pesquisar); intra-LVC com hífen (V1-clV2) - ênclise ao verbo
auxiliar (ex. pode-se pesquisar); intra-LVC sem hífen (V1clV2) - próclise ao verbo
principal (ex. pode se pesquisar) e pós-LVC (V1V2-cl) - ênclise ao verbo principal (ex.
pode pesquisar-se).
Partindo-se das noções de variável e variante do arcabouço teórico da SV se
efetivam as análises no âmbito do predicado e do praticado. Calvet (2002, p. 90),
apresentando os termos variável e variante, assim, nomeou-os: “variável o conjunto
constituído pelos diferentes modos de realizar a mesma coisa (um fonema, um signo...) e

2Os primeiros projetos de HIL em âmbito brasileiro foram produzidos sobremaneira a partir da articulação
com a análise de discurso e, no desenrolar do tempo, as pesquisas também se estenderam para diferentes
áreas, tais como: “sintaxe, semântica, análise de discurso, semiótica, pragmática, sociolinguística,
linguística indígena, lexicologia, filosofia da linguagem, história, estudos clássicos, ciências da informação
e da cognição e literatura” (Ferreira, 2018, p. 20).
3 Segundo Barbosa (2015), o predicado refere-se à norma padrão dos manuais prescritivos; o praticado,
por sua vez, à norma culta.
4 Para Dias (2007), as regras de concordância, de colocação de pronomes, regência etc. são dispositivos
normativos.

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Instrumentos Linguísticos
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por variante cada uma das formas de realizar a mesma coisa” . Para Tarallo (1994, p. 8),
o conceito de variante linguística remete às “diversas maneiras de se dizer a mesma coisa
em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade”; já o conceito de variável
linguística se reporta ao “conjunto de variantes” .
A partir dessas conceituações de Calvet (2002) e Tarallo (1994), as variáveis se
referem, neste texto, aos tipos de locuções verbais: Auxiliar + Infinitivo, Auxiliar +
Gerúndio ou Auxiliar + Particípio, enquanto que o fenômeno da colocação pronominal
nesses tipos de locuções verbais dizem respeito às variantes. Desta forma, trabalham-se
com as seguintes variáveis e variantes linguísticas:
- Para a variável Auxiliar + Infinitivo, têm-se as variantes: 1. Colocação pré-LVC
(cl-V1V2): próclise ao verbo auxiliar; 2. Colocação intra-LVC com hífen (V1-clV2):
ênclise ao verbo auxiliar; 3. Colocação intra- LVC sem hífen (V1clV2): próclise ao verbo
principal; 4. Colocação pós-LVC (V1V2-cl): ênclise ao verbo principal;
- Para a variável Auxiliar + Gerúndio, têm-se as variantes: 1. Colocação pré-LVC
(cl-V1V2): próclise ao verbo auxiliar; 2. Colocação intra-LVC com hífen (V1-clV2):
ênclise ao verbo auxiliar; 3. Colocação intra- LVC sem hífen (V1clV2): próclise ao verbo
principal; 4. Colocação pós-LVC (V1V2-cl): ênclise ao verbo principal; e,
- Para a variável Auxiliar + Particípio, têm-se as variantes: 1. Colocação pré-
LVC (cl-V1V2): próclise ao verbo auxiliar; 2. Colocação intra-LVC com hífen (V1-
clV2): ênclise ao verbo auxiliar; 3. Colocação intra- LVC sem hífen (V1clV2): próclise
ao verbo principal; 4. Colocação pós-LVC (V1V2-cl): ênclise ao verbo principal.
O estudo da posição dos clíticos, dependendo do corpus a ser utilizado na
investigação, pode apresentar resultados diferentes. Em Vieira (2003), por exemplo, que
se propôs a trabalhar com textos orais nas variedades do Português Europeu (PE), do
Português Brasileiro (PB) e do Português Moçambicano (PM), pôde ser constatado que a
colocação intra-LVC é a mais encontrada nessas variedades. Já, nas pesquisas de Nunes
(2009), Martins (2010) e Costa (2014), que se propuseram a trabalhar com textos escritos,
os resultados foram discrepantes. Nunes (2009) constatou que no século XIX há
preferência pelo uso da colocação pré-LVC nas variedades do PB e PE; no século XX,
por sua vez, no PE a colocação preferida é a pré-LVC, enquanto que no PB há equilíbrio
no uso das colocações pré-LVC e pós-LVC, além de aumentar o uso da colocação intra-
LVC sem hífen. Martins (2010) constatou que há uma diminuição constante no uso das
colocações pré-LVC e intra-LVC com hífen, além de se encontrar, diferentemente dos
escritos lisboetas, colocações pré-LVC e intra-LVC sem hífen, nos escritos catarinenses

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dos séculos XIX e XX. Costa (2014) apresentou a colocação pós-LVC como a
predominante nas missivas mineiras novecentistas. Diante disso, analisando-se as
ocorrências dos clíticos em LCV nos textos contemporâneos, o presente texto almeja
responder ao seguinte questionamento: qual é a ordem pronominal em LCV recorrente
nos textos produzidos nos primeiros quinze anos do século XXI? A hipótese é a de que a
posição intra-LVC sem hífen é a efetivamente praticada nos textos contemporâneos
monitorados, tendo em vista que essa posição é considerada por muitos pesquisadores
como marca brasileira (Teyssier, 2001; Vieira, 2002; Bagno, 2009; Schei, 2010).
Metodologicamente, no âmbito do predicado, seleciona-se seis gramáticas
normativas a fim de verificar as prescrições sobre colocação pronominal em locuções
verbais: a Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Rocha Lima5 (2012 [1957]);
a Moderna Gramática Portuguesa, de Bechara6 (2009 [1961]); a Nova Gramática do
Português Contemporâneo, de Cunha7 e Cintra8 (2008 [1985]); a Moderna Gramática
Brasileira, de Luft9 (2002 [1976]); a Gramática Fundamental da Língua Portuguesa, de

5 Carlos Henrique da Rocha Lima nasceu em 1915 no Rio de Janeiro e faleceu em 1991, na mesma cidade
natal. Diplomou-se Bacharel em Ciências e Letras e se graduou Doutor em Letras. Foi gramático, filólogo,
crítico literário, professor de português, latim e literatura. Ocupou diversos cargos administrativos em
escolas, universidades e órgãos colegiados federais. Membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia;
da Academia Brasileira da Língua Portuguesa; da Sociedade Brasileira de Língua e Literatura, entre outras.
Autor de inúmeras obras na vertente da Filologia, da Literatura e dos Livros didáticos, além de trabalhos
de direção e consultoria (Rocha Lima, 2012 [1957], p. 15-21).
6Evanildo Cavalcante Bechara nasceu em 1928 no Recife (PE). É filólogo, gramático e professor, atuando
em cursos de pós-graduação e de aperfeiçoamento para professores universitários e de ensino fundamental
e médio. Bacharelou-se em 1948 e licenciou-se em 1949 em Letras, modalidade Neolatinas. Doutorou-se
em Letras no ano de 1964. Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. É representante brasileiro
do novo Acordo Ortográfico e membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Brasileira de
Filologia, da Sociedade Brasileira de Romanistas, do Círculo Linguístico do Rio de Janeiro, entre outros.
Tem uma vasta produção contando com vários livros, capítulos de livros, artigos, verbetes em dicionários,
teses de concursos, traduções, resenhas, prefácios, introduções e apresentações (Academia Brasileira de
Letras, 2016a; Bechara, 2009 [1961]).
7 Celso Ferreira da Cunha nasceu em Teófilo Otoni (MG) em 1917 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em
1989. Foi professor, filólogo e ensaísta. Bacharelou-se em Direito (1938), licenciou-se em Letras (1940),
formou-se Doutor em Letras e Livre-Docente em Literatura Portuguesa (1947). Ocupou importantes
funções públicas. Pertencia à Academia Brasileira de Letras, à Academia das Ciências de Lisboa, à
Academia Mineira de Letras, à Academia Brasileira de Filologia, ao Círculo Linguístico do Rio de Janeiro,
entre outros. Contribuiu mormente em três vertentes: nos estudos dos cancioneiros, fundamentais para o
conhecimento da origem e evolução da língua; nos estudos gramaticais com a publicação de inúmeros
compêndios; e em ensaios com reflexões sobre a língua (Academia Brasileira de Letras, 2016b).
8 Luís Filipe Lindley Cintra nasceu em Espariz, Tábua, Portugal no ano de 1925 e veio a óbito em 1991 na
capital de Portugal, Lisboa. Licenciou-se e doutorou-se em Filologia Românica, respectivamente em 1946
e 1952. Foi professor e linguista. Pertencia à Academia Espanhola de História, à Academia de Buenas
Letras de Barcelona, à Academia Portuguesa de História e à Academia das Ciências de Lisboa. Integrou
equipes que trabalharam para a concretização do Atlas Linguístico da Península Ibérica. Distinguiu-se,
principalmente, como pesquisador nas áreas da literatura medieval, da linguística românica, da dialetologia
e da geografia atual da Língua Portuguesa (Castro, c2016).
9 Celso Pedro Luft nasceu em Poço das Antas (RS) no ano de 1921 e seu falecimento se deu em 1995 na
cidade de Porto Alegre. Foi gramático, filólogo, dicionarista e professor de Língua Portuguesa (Filologia e

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M elo*101(1978 [1967]); e a Gramática Secundária da Língua Portuguesa, de Said Ali11


(1969 [192412]). A escolha das obras se deve pelo fato de serem de referência e os autores,
em geral, serem gramáticos, filólogos ou linguistas com reconhecimento nacional e com
acurado saber sobre fatos linguísticos. Com a análise do conteúdo de cada artefato
tecnológico, pretende-se apresentar uma síntese dos dispositivos normativos de colocação
pronominal em locuções verbais e fazer uma exposição acerca dessa síntese.
No âmbito do praticado, trabalha-se com textos jornalísticos (editoriais da Folha
de S. Paulo e do O Estado de S. Paulo), textos literários (contos e crônicas), textos
científicos (capítulos de livros e artigos publicados em periódicos), textos religiosos
(livros e artigos em meio digital ou em folhetos litúrgicos católicos) e textos jurídicos

gramática) em faculdades e universidades. Formou-se em Letras Clássicas e Vernáculas, especializou-se


em Filologia portuguesa. Publicou diversas obras relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa: Dicionário
prático verbal, Dicionário prático de regência nominal, Gramática resumida, Grande Manual Globo de
Ortografia, Língua e liberdade, Luft - Regência nominal/regência verbal, Minidicionário Luft, Novo Guia
Ortográfico, Novo Manual de Português, A palavras é sua, O romance das palavras, A vírgula, além da
Moderna Gramática Brasileira (Luft, 2002 [1976]; Clemente, 2005).
10 Gladstone Chaves de Melo nasceu em Campanha, Minas Gerais, no ano de 1917 e foi a óbito em 2001,
no Rio de Janeiro. Foi filólogo, linguista e professor de Linguística e Filologia Românica em universidades
nacionais e internacionais. Bacharelou-se em Direto, mas foi no estudo da língua que se consagrou,
recebendo em 1946 o título de Doutor e Livre-Docente em Língua Portuguesa na Universidade do Brasil
(UB), atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro da Academia Brasileira de Filologia,
Círculo Linguístico do Rio de Janeiro, Sociedade de Língua Portuguesa (Lisboa), entre outros. Publicou
muitas obras, as quais se destacam: A Língua do Brasil (1946); Iracema, de José de Alencar (1948); A
Língua e o Estilo de Rui Barbosa (1950); Conceito e Método da Filologia (1951); e, Iniciação à Filologia
Portuguesa (1951) (Penha, 2003).
11Manuel Said Ali Ida nasceu em Petrópolis (RJ) no ano de 1861 e faleceu no Rio de Janeiro em 1953. Foi
professor de alemão, geografia, francês e inglês. Considerado o maior sintaticista da Língua Portuguesa.
Sua vida foi dedicada ao trabalho e à pesquisa, traduzidos em várias obras e artigos publicados em revistas
e jornais. Dentre suas obras se podem mencionar: Compêndio de Geografia Elementar; Vocabulário
Ortográfico; Dificuldades da Língua Portuguesa; Lexeologia do Português Histórico; Gramática Elementar
da Língua Portuguesa; Gramática Secundária da Língua Portuguesa; Meios de Expressão e Alterações
Semânticas; Gramática Histórica; Versificação Portuguesa; e, Acentuação e Versificação Latina (Bechara,
1962; Silva, 1993).
12 Há pesquisadores que mencionam que a primeira edição é do ano de 1923 (Silva, 1993; Mendes, 2010;
Hackerott, 2011) e outros, do ano de 1924 (Guimarães, 2004). A partir de dados coletados na Hemeroteca
Digital Brasileira, da Fundação Biblioteca Nacional, em consulta efetivada em 27 de junho de 2023, pelos
termos de pesquisa “grammatica secundaria” e no período de 1920-1929, foi possível encontrar dois
periódicos que mencionam o ano de 1924: o Correio Paulistano, em nota divulgada em 24 de maio de
2024, e o Brasiliana, em artigo publicado em seu primeiro volume de 1925, disponíveis em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972 07&pesq=%22grammatica%20secundari
a%22&pasta=ano%20192&hf=memoria.bn.br&pagfis=14833 e
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=403920&Pesa=%22grammatica%20secundaria%
22&pagfis=112, respectivamente. Além disso, em consulta em 29 de junho de 2023, por e-mail, à
Professora Marcia de Paula Gregorio Razzin, que já fez uma pesquisa de pós-doutorado em relação à
produção de livros escolares da Editora Melhoramentos, ela pôde confirmar que a referida gramática teve
sua primeira edição em maio de 1924, com uma tiragem de 15000 exemplares. Paralelo ao contato com a
citada professora, também tinha sido feito contato com o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC),
da Editora Melhoramentos, e em 11 de julho de 2023, por e-mail (sac@melhoramentos.com.br), foi
repassada a informação que o referido compêndio gramatical foi publicado pela primeira vez em maio de
1924.

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Instrumentos Linguísticos
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(códigos e leis), publicados nos quinze primeiros anos do século XXI, a fim de se ter uma
amostra da realidade linguística atual na modalidade escrita monitorada. Desta maneira,
catalogam-se 500 ocorrências13 de colocação pronominal em contextos de locuções
verbais, sendo 100 ocorrências de cada uma das categorias de textos, quais sejam:
jornalística, literária, científica, religiosa e jurídica. Posteriormente, por categoria,
organiza-se de acordo com a variável de locução verbal: Auxiliar + Infinitivo, Auxiliar +
Gerúndio ou Auxiliar + Particípio, tendo em vista esta distinção em relação às regras das
gramáticas selecionadas e a particularidade de cada construção. Cumpre esclarecer que
as locuções formadas por mais de duas formas verbais, bem como as estruturas com
mesóclise no verbo auxiliar, assim como os contextos com ordenamento de clíticos em
locuções verbais com a presença de elemento interveniente (preposição, por exemplo),
não compõem o corpus deste texto. Com isso, em seguida, procede-se com a análise
segundo a posição do pronome oblíquo átono: pré-LVC (cl-VIV2): próclise ao verbo
auxiliar; intra-LVC com hífen (V1-clV2): ênclise ao verbo auxiliar; intra-LVC sem hífen
(V1clV2): próclise ao verbo principal; e pós-LVC (V1V2-cl): ênclise ao verbo principal,
a fim de verificar a mais frequente. E, por fim, realiza-se o comparativo entre o que dispõe
as gramáticas (norma predicada ) e o que efetivamente os brasileiros realizam na escrita
monitorada (norma praticada ).
O trabalho, de natureza comparativa, quantitativa e qualitativa, com bases teóricas
da HIL em diálogo com a SV, está estruturado com o seguinte percurso textual: inicia-se
por uma discussão sobre a constituição da norma no Brasil, adentrando no estatuto da
colocação pronominal; em seguida, pormenorizam-se sinteticamente as informações
sobre colocação pronominal em locuções verbais nas gramáticas normativas pesquisadas;
posteriormente, expõe-se a análise das ocorrências de colocação pronominal nos
contextos de locuções verbais a partir de textos contemporâneos; logo depois, retrata-se
o cotejo entre o predicado e o praticado ; e, por fim, apresentam-se as considerações
finais.*(i)

13 Os dados catalogados foram identificados por meio da seguinte codificação: (i) abreviatura da autoria;
(ii) ano de publicação (entre 2000 e 2015); (iii) gênero textual (editorial [E], conto [CO], crônica [CR],
capítulo de livro [CDL], artigo científico [AC], livro [L], artigo religioso em folheto litúrgico [ARFL],
artigo religioso em meio digital [ARMD], código civil [CC]; código florestal [CF] e código de processo
civil [CPC]; (iv) categoria (texto jornalístico [TJO], texto literário [TL], texto científico [TC], texto
religioso [TR] e texto jurídico [TJU]); e (v) número da ocorrência dentro da categoria. A título de
exemplificação, leia-se o código “(EDLC-2013-L-TR-301)” como a identificação de um dado produzido
por Edmundo de Lima Calvo, no ano de 2013, num livro de categoria textual religiosa, sob o número 301
na ordem do corpus.

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1. A constituição da norm a no Brasil: a questão da colocação pronom inal


Nos fins do século XIX e nas décadas iniciais do século XX, principalmente nas
de 30 e 40, grandes polêmicas foram travadas no que se refere às especificidades da língua
no Brasil. Neste período, conforme Dias (2007, p. 184), “ganham vulto, nas discussões
em torno da língua, as diferenças descritivas e analíticas relativas a pormenores de uso do
português” .
Podem ser mencionadas as seguintes polêmicas em torno da língua nacional do
Brasil, consoante Pfeiffer (2001):

em 1870, o escritor brasileiro José de Alencar, em seu pós-escrito à segunda


edição de Iracema, responde às críticas feitas pelo filólogo português Pinheiro
Chagas sobre o modo como escreve seu livro. Em 1879 e 1880, o jornalista e
político brasileiro Carlos de Laet inicia uma polêmica com o escritor português
Camilo Castelo Branco, opondo-se ao seu artigo “Fagundes Varela” em que a
poesia e os poetas brasileiros são altamente criticados. A partir de seu artigo
“Papelinhos”, o gramático e historiador brasileiro João Ribeiro iniciou, em
1913, uma polêmica com o brasileiro Carlos de Laet em torno de discussões
gramaticais sobre a língua nacional. Esta polêmica durou três meses, ocupando
o espaço de mais de trinta artigos, o que nos permite ver a dimensão que teve
para os escritores. Finalmente, entre 1902 e 1907, travou-se a polêmica em
torno da escrita do Código Civil entre o revisor do primeiro texto do código, o
professor e filósofo brasileiro Carneiro Ribeiro, e seu antigo aluno, o Senador
Rui Barbosa, responsável pela redação final do Código brasileiro (Pfeiffer,
2001, p. 167-168).

Tais polêmicas delineiam a coexistência de quatro eixos enunciativos que


construíram sentidos diversos para a língua nacional do Brasil. O primeiro eixo
enunciativo se construiu a partir da diferenciação entre a(s) língua(s) falada(s) no Brasil
e a língua falada em Portugal, em um lugar discursivo de nacionalização; o segundo, a
partir do delineamento de duas línguas, uma pertencente ao território português, a Língua
Portuguesa, e a outra de ambos os territórios, a língua do povo, em uma posição
enunciativa de um sujeito português que fala sobre a língua do Brasil; o terceiro, a partir
da reivindicação de uma língua portuguesa de Portugal como sua língua, em uma posição
enunciativa de um sujeito brasileiro; o quarto, a partir de um processo de constituição de
uma identidade própria para a língua nacional brasileira, em que seu funcionamento não
mais precisa de uma referência à língua de Portugal para a garantia de unidade (Pfeiffer,
2001).
Para Orlandi (2005), as contendas apresentavam dois lados e oscilavam entre uma

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língua imaginária, a Língua Portuguesa, e uma língua fluída14, uma língua do dia a dia,
a Língua Brasileira:

De um lado, o Visconde de Pedra Branca, Varnhagen, Paranhos da Silva e os


românticos como Gonçalves Dias, José de Alencar alinhavam-se entre os que
defendiam nossa autonomia propugnando por uma língua nossa, a língua
brasileira. De outro, os gramáticos e eruditos consideravam que só podíamos
falar uma língua, a língua portuguesa, sendo o resto apenas brasileirismos,
tupinismos, escolhos ao lado da língua verdadeira. Temos assim, em termos de
uma língua imaginária, uma língua padrão, apagando-se, silenciando-se o que
era mais nosso e que não seguia os padrões: nossa língua brasileira (Orlandi,
2005, p. 29).

Desta forma, existiam aqueles que defendiam uma autonomia linguística e aqueles
que defendiam a língua pura, a Língua Portuguesa, legada de Portugal. Para Faraco (2008,
p. 110) havia dois grupos: “um conservador, purista; e outro, defensor da absorção, na
escrita, de características próprias do modo brasileiro culto de falar a língua” . Segundo
Teyssier (2001), muitos brasileiros, com a Independência, acreditavam que, para ter uma
nação original, com cultura e literatura próprias, era preciso ter uma língua original. Com
isso, além dos gramáticos, os escritores e os filólogos também tiveram espaços nessas
querelas em relação à questão da língua no Brasil, considerada um “problema nacional
da mais alta importância” (Teyssier, 2001, p. 111).
Faraco (2015), retratando sobre os ideários dos escritores românticos em defesa
da língua nacional, fez os seguintes comentários:

A questão normativa emergiu com força no Brasil na segunda metade do


século XIX. Surgiu como uma reação ao ideário de nossos autores românticos.
Defendiam eles um projeto que desse forma literária às nossas paisagens e às
nossas realidades socioculturais. Em outros termos, eles batalhavam por uma
independência literária e cultural como desdobramento da independência
política (Faraco, 2015, p. 21-22).

Os escritores principiam as controvérsias em relação à língua a partir do


Romantismo. Quando publicou o romance Iracema em 1865, José de Alencar foi
duramente criticado e acusado de escrever numa língua incorreta. As críticas foram
intensas principalmente em relação à colocação dos pronomes átonos e Pinheiro Chagas
era um dos “rigoristas acerbos” (Teyssier, 2001, p. 111). Sobre essas críticas, Faraco
(2015) apresenta as seguintes considerações:

14 “À diferença da ‘língua imaginária’ construída como objeto fixado pela gramática, a ‘língua fluida’ está
em constante mudança, eminentemente tomada na historicidade e no movimento” (Orlandi; Guimarães,
2001, p. 34).

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As críticas negativas a esse ideário e a essa produção literária não se fizeram


esperar. Intelectuais portugueses - alguns inclusive vivendo aqui e recebendo
o patrocínio do imperador Pedro II - começaram a dizer que os autores
brasileiros escreviam mal, desconheciam a língua e cometiam erros de
gramática (Faraco, 2015, p. 22).

Mas Alencar teve uma defesa célebre contra o “purismo mesquinho e estéril”
(Teyssier, 2001, p. 111), justificando suas escolhas como expressão de originalidade e
autenticidade. Assim, após um momento de calmaria, outra polêmica ocorre entre os
escritores. Rui Barbosa, numa atitude de purismo e tradicionalismo, busca modelo nos
escritores portugueses do passado para criticar a redação do primeiro Código Civil
Brasileiro (Teyssier, 2001). No que concerne a essa polêmica, é interessante observar o
que disse Faraco (2015):

Rui Barbosa, nessa polêmica, não se concentrava propriamente em questões de


natureza jurídica, mas, cheio de ressentimentos por não ter sido escolhido para
redigir o Código, desclassificava o autor do texto (Clóvis Beviláqua),
apontando inúmeros pretensos erros de português na redação do texto.
Penso que nada foi mais nocivo para nossa cultura linguística do que esta
famigerada polêmica, que se sustentou na cultura do erro elaborada no século
XIX pela geração intelectual de Rui Barbosa e contribuiu para consolidar esta
mesma cultura. Nem sequer as justas respostas de Ernesto Carneiro Ribeiro -
o gramático que tinha revisado o texto do projeto -, fundamentadas nos usos
dos autores clássicos da língua, conseguiram reverter o mal que Rui Barbosa
fez ao imaginário nacional sobre a língua portuguesa do Brasil e nossas
relações com ela (Faraco, 2015, p. 23).

Conforme Leite (2013, p. 132), “os defensores da norma brasileira apegavam-se


à diferença das variedades portuguesa e brasileira, e os defensores da norma portuguesa
se ocupavam de mostrar os erros de sintaxe da fala e da escrita dos brasileiros” . Ademais,
Ilari e Basso (2014) pontuam que os vários debates em relação à noção de norma no Brasil
giraram em torno de três sentidos diferentes que os litigiosos deram à questão, conforme
se apresenta abaixo:

• da definição de uma norma lite r á r ia , um problema que surgiu durante o


período do romantismo, ligado à preocupação de dotar a literatura brasileira
de uma linguagem literária própria;
• da elaboração de uma norma para o p o r tu g u ê s e sc r ito c u lto , que teve um
momento importante na polêmica sobre o texto do Código Civil da
Primeira República;
• da questão de estabelecer uma norma fo n é tic a p a r a o p o r tu g u ê s
b r a sile ir o , que foi debatida a propósito da pronúncia a ser usada no canto
e no teatro, em dois congressos, realizados, respectivamente, em 1936 e
1957 (Ilari; Basso, 2014, p. 214).

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E, assim, foi se constituindo querelas e mais querelas no estatuto da norma no


Brasil. Nos termos de Faraco (2016):

o processo de normatização que se conduziu, com denodo e fúria, nas últimas


décadas do século XIX, instituiu entre nós um conflito entre a norma
gramatical e a norma culta, entre a norma predicada e a norma praticada (para
aproveitar as expressões de Barbosa, 2015: 266) - conflito este que ainda nos
persegue impiedosa e dolorosamente (cf. Faraco, 2008) (Faraco, 2016, p. 155).

Assim sendo, a partir de estudos descritivos do português do Brasil, constata-se o


fosso existente entre as formas usuais do português falado, do português escrito e das
gramáticas prescritivas. Pagotto (1998), por exemplo, confrontando o texto da
constituição do Império (1824) e da primeira constituição da república (1892) verifica
que a escritura dos dois textos é diferenciada. O autor advoga que a primeira foi escrita
com uma gramática fundamentada no português clássico e a segunda, por outro lado,
escrita com uma gramática embasada na atual norma padrão do português. Uma das
marcas gramaticais mais acentuadas entre as constituições analisadas é em relação à
colocação dos pronomes átonos: a primeira essencialmente proclítica e a segunda,
enclítica. Nas palavras do autor:

No caso dos clíticos, foi feito um pequeno estudo quantitativo sobre todos os
casos constantes nos dois textos. A diferença é gritante. A constituição do
império chega a apresentar casos severamente condenados pela atual norma
culta, como começar a sentença pelo clítico (Pagotto, 1998, p. 52).

Assim, percebem-se mudanças significativas nos escritos no decorrer do século


XIX e, com isso, constata-se que o estabelecimento da norma padrão no Brasil foi um
feito pautado num padrão lusitano, destoante com o que efetivamente brasileiros letrados
utilizavam na fala monitora. No que se refere ao que seja norma culta (normapraticada)
e norma padrão (norma predicada), Santos (2015) faz a seguinte distinção:

O predicado (norma padrão) corresponde à instância em que regras são


formuladas no âmbito das postulações dos compêndios gramaticais; o
praticado (norma culta), por seu turno, diz respeito à natureza efetivamente
realizada da língua por indivíduos altamente escolarizados, que a testemunham
em suas práticas linguísticas (Santos, 2015, p. 26).

Para Faraco (2008, p. 71) a norma culta, também, denominada por ele de comum
e standard, é empregada para designar “o conjunto de fenômenos linguísticos que
ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de

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fala e escrita” . E, ainda com o mesmo autor, a norma padrão, por sua vez, não é uma
variedade da língua, como a norma culta, mas “um construto sócio-histórico que serve de
referência para estimular um processo de uniformização” (Faraco, 2008, p. 73). O mesmo
autor, também, faz comentários distintivos dessas duas normas, conforme se vê abaixo:

Enquanto a norma culta/comum/standard é a expressão viva de certos


segmentos sociais em determinadas situações, a norma-padrão é uma
codificação relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir
de referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos
políticos de uniformização linguística (Faraco, 2008, p. 73).

No que se refere ao padrão como baliza e referência, Faraco (2016, p. 214)


acrescenta que esse padrão “tem sua importância e utilidade como força centrípeta no
interior do vasto universo centrífugo que caracteriza as línguas, em especial nas situações
em que se busca alcançar certa uniformidade que atenue uma intensa dialetação” .
Lucchesi e Lobo (1988), trabalhando no cotejo entre a norma culta e da norma
padrão , apresentam esses termos da seguinte forma:

a norma culta compreenderia os modelos comuns à fala das pessoas


possuidoras da cultura do tipo formalizado, isto é, a cultura sistematizada e
difundida pelo sistema de educação formal.
Por outro lado, a norma padrão compreenderia os modelos apresentados e
prescritos pelas gramáticas normativas (Lucchesi; Lobo, 1988, p. 74).

Bagno (2015), diferentemente dos autores mencionados acima, se utiliza do termo


variedades prestigiadas para se referir à norma culta, que engloba o conjunto de
variedades faladas não apenas pelos cidadãos de maior nível de escolarização, mas ainda
as variedades faladas pelos cidadãos de maior poder aquisitivo e de maior prestígio
sociocultural. Já convergente com os autores mencionados, para Bagno (2015), a norma
padrão, refere-se ao “modelo idealizado de língua ‘certa’ descrito e prescrito pela tradição
gramatical normativa - e que de fato não corresponde a nenhuma variedade falada
autêntica e, em grande medida, tampouco à escrita mais monitorada” (Bagno, 2015, p.
14-15).
É interessante, além dessa breve discussão sobre a constituição da norma no Brasil
e distinções entre a norma predicada (norma padrão ) e norma praticada (norma culta ou
norma comum ou norma standard ou variedades prestigiadas), apresentar-se algumas
considerações sobre a colocação pronominal no Brasil.
A colocação pronominal é o tópico gramatical em que mais o PB se distingue do

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português de Portugal. Para Bagno (2009, p. 95), “a colocação pronominal constitui


decerto o melhor exemplo do esforço insano dos puristas para impedir o reconhecimento
de uma língua caracteristicamente brasileira” .

Enquanto o português do Brasil manteve a colocação comum nos séculos XV


e XVI, com a predominância da próclise - e isso em razão de termos mantido
o vocalismo típico daquele período -, o português europeu derivou para a
ênclise como a colocação predominante em razão das profundas alterações do
vocalismo que ocorreram em Portugal a partir de meados do século XVII.
As alterações do vocalismo (com a redução bastante drástica das vogais átonas
no português europeu) afetaram o ritmo da fala lusitana, desencadeando
alterações na colocação das palavras átonas como os pronomes oblíquos.
No século XIX, eram já bem distintos o português europeu e o português
brasileiro, seja na pronúncia, seja na sintaxe, seja ainda no vocabulário. E as
nossas características, quando transpostas para a língua escrita, foram, então -
ao cabo de um conjunto de pesadas polêmicas -, inadequadamente
classificadas como erro (Faraco, 2015, p. 22).

Teyssier (2001), retratando acerca das principais características sintáticas do PB,


no que se refere aos seus aspectos conservadores e inovadores, apresenta duas categorias,
quais sejam, as pertencentes à língua normal, vistas como brasileiras, mas “corretas”, e
as pertencentes ao registro vulgar, vistas como brasileiras, mas “incorretas” . Segundo o
autor, a colocação dos pronomes pessoais átonos é um dos assuntos em que mais o PB se
distancia do PE. As construções com pronome átono em próclise, como em João se
levantou, que foram correntes no português clássico, mas atualmente em desuso no PE,
são um exemplo de conservadorismo do PB e tida como um brasileirismo pertencente à
língua normal. Já as construções com pronome átono em início absoluto (ex. M eparece
que) e as construções em que o pronome vem proclítico ao principal numa locução verbal,
“ex.: Pode me dizer? e não pode-me dizer?, ia pouco a pouco se afastando e não ia-se
pouco a pouco afastando, não tinha ainda se afastado em lugar de não se tinha ainda
afastado” (Teyssier, 2001, p. 106), são exemplos de inovações do PB, tidas como
brasileirismos normais.
Após a apresentação da revisão de literatura, que abarcou uma breve constituição
da norma no Brasil e sucintas considerações sobre a colocação pronominal no Brasil,
passa-se à apresentação dos resultados das análises em relação à norma predicada e
praticada.

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2. A colocação pronom inal em locuções verbais no âm bito do predicado


A partir das considerações apresentadas em cada artefato tecnológico compulsado,
apresenta-se, a seguir, um apanhado geral da posição dos clíticos pronominais em relação
aos contextos das formas do verbo principal no infinitivo, no gerúndio e no particípio:

Q u a d r o 1. Síntese dos dispositivos normativos de colocação pronominal em locuções verbais,


_________________ segundo os artefatos tecnológicos pesquisados._________________
Posição pronominal Lexias Verbais Complexas
Contexto clV IV 2 V 1 -c lV 2 V 1 c lV 2 V 1 V 2 -c l
Compêndios de Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008
[1985]) e Luft (2002 [1976])
A u x ilia r + In fin itiv o x x x x
A u x ilia r + G e rú n d io x x x x
A u x ilia r + P a r tic íp io x x x
Compêndio de Melo (1978 [1967])
A u x ilia r + In fin itiv o x x x x
A u x ilia r + G e rú n d io x x x x
A u x ilia r + P a r tic íp io - - - -
Compêndio de Said Ali (1968 [1924])
A u x ilia r + In fin itiv o x x
A u x ilia r + G e rú n d io x x
A u x ilia r + P a r tic íp io x x
F o n te : Elaborado pelos pesquisadores.

Verifica-se que há uma coincidência, decerto, aos preceitos expressos nos


compêndios de Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008
[1985]) e Luft (2002 [1976]) quanto à mobilidade dos clíticos pronominais nos contextos
de locuções com auxiliar + infinitivo, auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio.
Apresentando-se, ainda, a inexistência da colocação pós-LVC (V1V2-cl), de forma
majoritária, para os contextos de locuções com auxiliar + particípio.
O compêndio gramatical de Melo (1978 [1967]), por seu turno, coincide em
relação às regras dos compêndios de Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]),
Cunha e Cintra (2008 [1985]) e Luft (2002 [1976]) quanto aos contextos de locuções com
auxiliar + infinitivo e auxiliar + gerúndio. No entanto, não apresenta considerações sobre
os contextos de locuções com auxiliar + particípio.
Já, no compêndio gramatical de Said Ali (1968 [1924]), vê-se uma discrepância
em relação à mobilidade dos clíticos e os contextos a serem utilizados. Neste compêndio,
a colocação pré-LVC (clV1V2) pode ser usada nos contextos de locuções com auxiliar +
infinitivo; a colocação intra-LVC com hífen (V1-clV2) pode ser usada nos contextos de
locuções com auxiliar + infinitivo, auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio; e, a
colocação pós-LVC (V1V2-cl) pode ser aplicada em contextos com auxiliar + infinitivo

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Instrumentos Linguísticos
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e auxiliar + gerúndio. Uma das possibilidades para justificar essa ausência seria pelo
autor, pelo menos na apresentação do tópico Colocação do pronome átono nas
conjugações compostas e perifrásticas, não fazer referência a regras de colocação em
tempo simples ou por não trazer notas explicativas para usos diferenciados entre o PB e
o PE, conforme realizado pelos demais autores das obras pesquisadas.
A fim de contribuir com a análise no âmbito do praticado, sumarizam-se alguns
casos convergentes de regras na maioria dos compêndios pesquisados e alguns casos
particulares:
1. Antepõe-se o pronome oblíquo átono quando a locução verbal vem precedida
de palavra negativa sem pausa, consoante Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008
[1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]);
2. Antepõe-se o pronome oblíquo átono quando a locução verbal vem precedida
de palavras com partículas QU - pronomes relativo, interrogativo e exclamativo, bem
como conjunções subordinativas, de acordo com Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra
(2008 [1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]);
3. Não se faz ênclise ao futuro do presente e do pretérito, nem a particípio passado,
concordante com Bechara (2009 [1961]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]);
4. Antepõe-se o pronome oblíquo átono com o gerúndio precedido da preposição
em, conforme Bechara (2009 [1961]) e Melo (1978 [1967]);
5. As construções com o pronome o (a, os, as) não são usadas na colocação intra-
LVC sem hífen (V1clV2) em contextos de auxiliar + particípio, segundo Rocha Lima
(2012 [1957]); e,
6. A próclise ao verbo principal nas locuções verbais é marcadamente utilizada no
Brasil, conforme Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra
(2008 [1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]).
Sobre o item 6, é interessante comentar que a gramática de Luft (2002 [1976]) é a
única que traz esta regra com o mesmo peso e importância em relação às demais
colocações de pronomes átonos e, assim, a traz no curso do capítulo/tópico como uma
das possibilidades de utilização. Ademais, no tópico referente às regras de colocação dos
pronomes oblíquos, esse autor ainda traz uma nota advogando que não faz sentido as
gramáticas brasileiras condenarem as colocações brasileiras dos pronomes. As gramáticas
de Rocha Lima (2012 [1957]) e Cunha e Cintra (2008 [1985]) trazem essa regra em um
tópico posterior, à parte, não compondo, desta forma, as regras gerais de colocação do
pronome átono: Rocha Lima (2012 [1957]) num tópico intitulado Interposição do

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Instrumentos Linguísticos
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pronome átono ; Cunha e Cintra (2008 [1985]), por sua vez, num tópico intitulado A
colocação dos pronomes átonos no Brasil. A gramática de Bechara (2009 [1961]) traz
essa regra em uma nota de observação e, ainda, num tópico posterior intitulado
Explicação da colocação dos pronomes átonos no Brasil, comentando que é uma
colocação frequente entre os brasileiros, mas ainda não acolhida pela Gramática clássica
como digna de imitação. Melo (1978 [1967]) traz comentários sobre essa colocação numa
nota de observação, comentando que é uma prática comum na linguagem coloquial
brasileira, que já repercute na língua literária.
Feitos estes comentários, passa-se ao exame da colocação pronominal em
locuções verbais efetivamente utilizada pelos brasileiros na escrita monitorada.

3. A colocação pronom inal em locuções verbais no âm bito do praticado


De modo geral, contemplando as categorias pesquisadas, quais sejam, jornalística,
literária, científica, religiosa e jurídica, a seguir, tem-se um quadro no qual se apresentam
o número e a porcentagem de ocorrências por posição dos clíticos pronominais de cada
categoria:

Q u a d r o 2. Número de ocorrências e percentuais da colocação dos pronomes átonos em locuções verbais,


___________ ___________ segundo os textos pesquisados._____ __________ ___________
Corpora T e x to s
T e x to s T e x to s T e x to s T e x to s
Posições jo r n a lístic o TOTAL
lite r á r io s cie n tífic o s re lig io so s ju r íd ic o s
s

clV 1 V 2 38 7,6% 37 7,4% 35 7% 41 8,2 55 11% 20 4 1 ,2

% 6 %

V 1 -c lV 2 13 2,6% 09 1,8% 18 3,6 09 1,8 13 2,6 62 12,4

% % % %

V 1 clV 2 21 4,2% 40 8% 25 5% 24 4,8 - - 11 2 2 %

% 0

V 1 V 2 -c l 28 5,6% 14 2,8% 22 4,4 26 5,2 32 6,4 12 2 4 ,4

% % % 2 %

TOTAL 100 2 0 % 10 2 0 % 10 2 0 % 10 2 0 % 10 2 0 % 50 1 0 0 %

0 0 0 0 0

F o n te: Elaborado pelos pesquisadores.

A partir deste quadro, constata-se que, de modo geral, a colocação pré-LVC


(clV1V2) é a mais preponderante com 41,2% das ocorrências, seguida, em segundo lugar,
da colocação pós-LVC (V1V2-cl) com 24,4%, em terceiro lugar, da colocação intra-LVC

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sem hífen (V1clV2) com 22% e, em quarto lugar, da colocação intra-LVC com hífen (V1-
clV2) com 12,4% das ocorrências. É interessante indicar que nos textos jurídicos inexiste
a colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2), demonstrando o conservadorismo dos textos
desse gênero em relação às marcas inovadoras do PB. Nos textos literários, por sua vez,
a colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2) é a com maior percentual entre as demais
colocações, demonstrando uma propensão pelas marcas inovadoras do PB.
Em geral, também, serão detalhados o número de ocorrências e os percentuais
relacionados aos contextos das formas do verbo principal no infinitivo, no gerúndio e no
particípio:

Q u a d r o 3. Número de ocorrências e percentuais da colocação dos pronomes átonos em locuções verbais,


________________ segundo a forma do verbo principal nos textos averiguados.________________
Posição pronominal Lexias Verbais Complexas
Contexto clV 1 V 2 V 1 -c lV 2 V 1 c lV 2 V 1 V 2 -c l TOTAL

T e x to s J o r n a lístic o s

A u x ilia r + In fin itiv o 30 6% 0 1,8% 09 1,8% 28 5,6% 76 15,2


9 %
A u x ilia r + G e rú n d io 02 0,4% - - 05 1% - - 07 1,4%
A u x ilia r + P a r tic íp io 06 1,2% 0 0,8% 07 1,4% 17 3,4%
4
T e x to s L ite r á r io s

A u x ilia r + In fin itiv o 20 4% 0 1,2% 23 4,6% 14 2,8% 63 12,6


6 %
A u x ilia r + G e rú n d io 05 1% 0 0,2% 07 1,4% 13 2,6%
1
A u x ilia r + P a r tic íp io 12 2,4% 0 0,4% 10 2% 24 4,8%
2
T e x to s C ien tífico s

A u x ilia r + In fin itiv o 24 4,8% 1 2,4% 14 2,8% 22 4,4% 72 14,4


2 %
A u x ilia r + G e rú n d io 02 0,4% - - 06 1,2% - - 08 1,6%
A u x ilia r + P a r tic íp io 09 1,8% 0 1,2% 05 1% 20 4%
6
T e x to s R e lig io so s

A u x ilia r + In fin itiv o 23 4,6% 0 1,4% 16 3,2% 26 5,2% 72 14,4


7 %
A u x ilia r + G e rú n d io 08 1,6% - - 04 0,8% - - 12 2,4%

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A u x ilia r + P a r tic íp io 10 2% 0 0,4% 04 0,8% 16 3,2%


2
T e x to s J u r íd ic o s

A u x ilia r + In fin itiv o 26 5,2% 0 1% 32 6,4% 63 12,6


5 %
A u x ilia r + G e r ú n d io 02 0,4% 0 0,2% 03 0,6%
1
A u x ilia r + P a r tic íp io 27 5,4% 0 1,4% 34 6,8%
7
T e x to s J o r n a lístic o s, L ite r á r io s, C ie n tífic o s, R e lig io so s e J u r íd ic o s

A u x ilia r + In fin itiv o 12 24,6 3 7,8% 62 12,4 12 24,4 34 69,2


3 % 9 % 2 % 6 %
A u x ilia r + G e r ú n d io 19 3,8% 0 0,4% 22 4,4% 43 8,6%
2
A u x ilia r + P a r tic íp io 64 12,8 2 4,2% 26 5,2% 11 22,2
% 1 1 %
TOTAL GERAL 20 41,2 6 12,4 11 22% 12 24,4 50 100 %
6 % 2 % 0 2 % 0

F o n te: Elaborado pelos pesquisadores.

Com base no quadro acima, verifica-se que, de modo geral, a forma do verbo
principal no infinitivo com o percentual de 69,2% das ocorrências é o contexto de maior
domínio, seguido, em segundo lugar, da forma do verbo principal no particípio com
22,2% e, em terceiro lugar, da forma do verbo principal no gerúndio com apenas 8,6%
das ocorrências averiguadas. Nota-se, de modo geral, a inexistência da colocação pós-
LVC (V1V2-cl) em contextos de locuções com auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio.
Assim sendo, adiante, apresenta-se o comparativo entre as regras dos compêndios
gramaticais (norma predicada) e a realidade aplicada pelos brasileiros na modalidade
escrita monitorada (norma praticada).

4. Cotejo entre o predicado e o praticado quanto ao fenômeno da colocação


pronom inal em locuções verbais
A partir da norma predicada, neste estudo, representada pelas prescrições dos
compêndios gramaticais no que se refere à colocação pronominal em locuções verbais e
da norma praticada , neste estudo, representada pelos escritos dos brasileiros nas
categorias jornalística, literária, científica, religiosa e jurídica, adiante, será apresentada a
sistematização comparativa do predicado e do praticado em voga.

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Para promover a comparação almejada, são válidos alguns esclarecimentos em


relação ao quadro a ser apresentado. Neste quadro, no âmbito do predicado, representado
pela abreviatura PRE, há três casos particulares: o C1 (caso 1) representa as prescrições
dos compêndios de Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra
(2008 [1985]) e Luft (2002 [1976]), por serem similares no resultado; o C2 (caso 2)
representa as prescrições do compêndio de Melo (1978 [1967]); e, o C3 (caso 3)
representa as prescrições do compêndio de Said Ali (1968 [1924]). Estas prescrições
dizem respeito às possibilidades de mobilidade dos clíticos pronominais em locuções
verbais, de acordo com os compêndios pesquisados. Já o âmbito do praticado,
representado pela abreviatura PRA, apresenta-se às possibilidades de mobilidade dos
clíticos pronominais encontradas, de modo geral, nos corpora averiguados.

Q u a d r o 4. Comparação predicado versus praticado.


Posição pronominal Lexias Verbais Complexas
clV 1 V 2 V 1 -c lV 2 V 1 c lV 2 V 1 V 2 -c l

Contexto PR PR PR PR
PRE PRE PRE PRE
A A A A

C x x C x x C x x C x x
1 1 1 1
C x x C x x C x x C x x
A u x ilia r + In fin itiv o
2 2 2 2
C - x C x x C - x C x x
3 3 3 3

C x x C x x C x x C x -
1 1 1 1
C x x C x x C x x C x -
A u x ilia r + G e rú n d io
2 2 2 2
C - x C x x C - x C x -
3 3 3 3

C x x C x x C x x C - -
1 1 1 1
A u x ilia r + C - x C - x C - x C - -
P a r tic íp io 2 2 2 2
C x x C x x C - x C - -
3 3 3 3

F o n te: Elaborado pelos pesquisadores.

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Assim, constata-se que a colocação pré-LVC (clV1V2) têm, de modo geral, tanto
prescrições gramaticais quanto os usos pelos brasileiros na escrita monitorada. Para esta
colocação, não houve prescrições no compêndio de Said Ali (1968 [1924]) em contextos
de locuções com auxiliar + infinitivo e auxiliar + gerúndio, nem prescrições no
compêndio de Melo (1978 [1967]) em contextos de locuções com auxiliar + particípio,
apesar de ter prescrições nos demais compêndios examinados e ainda ser praticada entre
os brasileiros na escrita monitorada.
A colocação intra-LVC com hífen (V1-clV2), por sua vez, de modo geral,
também, contempla tanto as prescrições gramaticais quanto os usos pelos brasileiros na
escrita monitorada. Para esta colocação, apenas o compêndio de Melo (1978 [1967]) não
apresenta prescrições em contextos de locuções com auxiliar + particípio, mesmo
prescrita por outros compêndios e utilizada na escrita monitorada pelos brasileiros.
Já a colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2), de modo geral, também, abarca
tanto as prescrições gramaticais quanto os usos pelos brasileiros na escrita monitorada.
Esta colocação não teve prescrições no compêndio de Said Ali (1968 [1924]) em
contextos de locuções com auxiliar + infinitivo, auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio,
assim como não teve prescrições no compêndio de Melo (1978 [1967]) em contextos de
locuções com auxiliar + particípio, embora existam prescrições nos demais compêndios
averiguados e ainda ser produtiva entre os brasileiros na escrita monitorada. Vale
rememorar, ainda, conforme exposto por Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009
[1961]), Cunha e Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]), que a
colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2) nas locuções verbais é nitidamente utilizada
entre os brasileiros. Contudo, é oportuno relembrar, também, que nos textos jurídicos não
foram visualizadas ocorrências dessa colocação, trazendo, assim, à baila o
conservadorismo nesses escritos e a não propensão para o uso de marcas inovadoras do
PB.
A colocação pós-LVC (V1V2-cl), no que lhe concerne, apresenta tanto
prescrições gramaticais quanto os usos pelos brasileiros na escrita monitora, em contextos
de locuções com auxiliar + infinitivo. Há prescrições gramaticais, porém não há usos
entre os brasileiros na escrita monitora, em contextos de locuções com auxiliar +
gerúndio. Nos contextos de locuções com auxiliar + particípio, não há mobilidade de
pronome átono pós-LVC (V1V2-cl), nem usos entre os brasileiros. É interessante frisar,
segundo Bechara (2009 [1961]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]), que não se faz

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Instrumentos Linguísticos
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ênclise a particípio passado, com isso, explicar-se a não mobilidade dos clíticos
pronominais nesses contextos.
Para a comparação da norma predicada e da norma praticada, é notório reiterar
as informações sobre o número de ocorrências e percentuais da colocação dos pronomes
átonos em locuções verbais, segundo a forma do verbo principal em textos analisados.
Assim sendo, apresenta-se parte do Quadro 3 para contribuir com a sistematização
comparativa em curso.

Número de ocorrências e percentuais da colocação dos pronomes átonos em locuções verbais,


Q u a d r o 5.
________________ segundo a forma do verbo principal nos textos analisados._________________
Posição pronominal Lexias Verbais Complexas
Contexto clV 1 V 2 V 1 -c lV 2 V 1 c lV 2 V 1 V 2 -c l TOTAL

T e x to s J o r n a lístic o s, L ite r á r io s, C ie n tífic o s, R e lig io so s e J u r íd ic o s

A u x ilia r + In fin itiv o 12 24,6 3 7,8% 62 12,4 12 24,4 34 69,2


3 % 9 % 2 % 6 %
A u x ilia r + G e r ú n d io 19 3,8% 0 0,4% 22 4,4% 43 8,6%
2
A u x ilia r + P a r tic íp io 64 12,8 2 4,2% 26 5,2% - - 11 22,2
% 1 1 %
TOTAL GERAL 20 41,2 6 12,4 11 22% 12 24,4 50 100 %
6 % 2 % 0 2 % 0

F o n te: Elaborado pelos pesquisadores.

Assim, a posição pré-LVC (clV1V2) é a mais frequente das colocações,


correspondendo a 41,2% das ocorrências averiguadas. Tal percentual se deve
principalmente pela presença de elementos proclisadores, tais como palavras negativas
sem pausa, palavras com partículas QU - pronomes relativo, interrogativo e exclamativo,
bem como conjunções subordinativas, consoante preceituam Bechara (2009 [1961]),
Cunha e Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]). Fazendo-se um
apanhado desses contextos com palavras negativas sem pausa, palavras com partículas
QU e conjunções subordinativas, têm-se 118 ocorrências, sendo que 24 em textos
jornalísticos, 16 em textos literários, 21 em textos científicos, 19 em textos religiosos e
38 em textos jurídicos.
A segunda colocação com maior produtividade é posição pós-LVC (V1V2-cl),
correspondendo a 24,4% das ocorrências averiguadas. Vale destacar que todas as
ocorrências averiguadas estão elencadas em contextos de locuções com auxiliar +
infinitivo. No que se refere às prescrições que podem favorecer tal colocação é que a

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Instrumentos Linguísticos
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ênclise, conforme Luft (2002 [1976]), é a colocação pronominal básica e normal, na


norma culta. Além disso, é interessante frisar que mesmo tendo regras para o uso da
próclise ao auxiliar quando a locução vem precedida de palavras negativas sem pausa,
palavras com partículas QU e conjunções subordinativas, há 10 ocorrências no praticado
com ênclise ao verbo principal.
A terceira colocação com representatividade é a posição intra-LVC sem hífen
(V1clV2), que corresponde a 22% das ocorrências registradas. Tal representatividade se
deve sobretudo porque a próclise ao verbo principal nas locuções verbais é marcadamente
utilizada no Brasil, segundo atestam Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009), Cunha
e Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]), e um brasileirismo
normal, conforme Teyssier (2001). Vale destacar que não foram encontradas construções
intra-LVC sem hífen (V1clV2) com o pronome o (a, os, as) em contextos de auxiliar +
particípio, indo, assim, em concordância com o que diz Rocha Lima (2012 [1957]).
Ademais, é válido mencionar que mesmo tendo regras para o uso da próclise ao verbo
auxiliar quando a locução vem precedida de palavras negativas sem pausa, palavras com
partículas QU e conjunções subordinativas, há 15 ocorrências nos corpora pesquisados
com próclise ao verbo principal.
A quarta colocação e a considerada a menos frequente é a posição intra-LVC com
hífen (V1-clV2), que corresponde a 12,4% das ocorrências investigadas. O uso dessa
colocação se deve pelo fato da ênclise, na norma culta, ser a colocação pronominal básica
e normal, conforme Luft (2002 [1976]). Além disso, deve-se em parte pelo fato de não
poder começar período por pronome oblíquo átono, em concordância com o que
preceituam Bechara (2009 [1961]), Luft (2012 [1976]) e Melo (1978 [1967]). É notório
mencionar que nos dados enquadrados não há ocorrências de pronome oblíquo átono
iniciando período e vale destacar, ainda, que das 62 ocorrências na posição intra-LVC
com hífen (V1-clV2), 15 delas estão iniciando período. Diante disso, percebe-se que a
regra geral de ênclise para o período simples é aplicada para esses casos de locuções.
Assim sendo, a partir dessa sistematização comparativa entre o predicado e o
praticado, passam-se as considerações finais.

Considerações finais
O presente estudo investigativo acerca da instrumentação linguística quanto ao
estatuto da colocação pronominal em locuções verbais, a partir da comparação dos
dispositivos normativos expostas nos artefatos tecnológicos de Rocha Lima (2012

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[1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]), Melo
(1978 [1967]) e Said Ali (1969 [1924]) com o que efetivamente os brasileiros realizam
em textos jornalísticos, literários, científicos, religiosos e jurídicos nos quinze primeiros
anos do século XXI, mostrou-se promissor no sentido de constatar a mobilidade por que
passam os pronomes oblíquos átonos e também demonstrou como os artefatos
tecnológicos ainda precisam abarcar os usos efetivados pelos brasileiros em contextos
monitorados, intentando representar, de fato, o PB.
Os compêndios gramaticais apresentam-se em sua maioria regras prescritivas
convergentes quanto à mobilidade desses clíticos pronominais em locuções verbais.
Constatou-se, assim, a concordância dos preceitos gramaticais contemplados nos
compêndios de Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008
[1985]) e Luft (2002 [1976]) quanto à mobilidade dos clíticos pronominais nos contextos
de locuções com auxiliar + infinitivo, auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio. O
compêndio gramatical de Melo (1978 [1967]), por sua vez, mesmo sendo convergente
com os compêndios acima no que se refere aos contextos de locuções com auxiliar +
infinitivo e auxiliar + gerúndio, é divergente no sentindo de não considerar como locuções
verbais as construções com auxiliar + particípio, com isso, inexistindo mobilidade da
colocação dos pronomes átonos nesses contextos. O compêndio de Said Ali (1968 [1924])
é o mais discrepante dos compêndios em relação à mobilidade dos clíticos e os contextos
a serem utilizados. Neste compêndio, a colocação pré-LVC (clV1V2) pode ser aplicada
nos contextos de locuções com auxiliar + infinitivo. A colocação intra-LVC com hífen
(V1-clV2), por sua vez, é utilizada nos contextos de locuções com auxiliar + infinitivo,
auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio. Já a colocação pós-LVC (V1V2-cl) é
convergente com dos demais compêndios à medida que pode ser aplicada em contextos
com auxiliar + infinitivo e auxiliar + gerúndio. Conforme já mencionado anteriormente,
uma das possibilidades para justificar a ausência de regras seja pelo fato de o autor não
fazer referência a regras de colocação em tempo simples ou por não trazer notas
explicativas para usos diferenciados entre o PB e o PE.
Ademais, ainda fazendo considerações sobre a norma predicada, é interessante
comentar que as regras para a utilização da posição intra-LVC sem hífen (V1clV2) nos
compêndios gramaticais não são tratadas de forma unívoca. Luft (2002 [1976]) traz a
possibilidade de uso dessa posição elencada com as demais colocações, enquanto, que
Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008 [1985]) e Melo
(1978 [1967]) trazem essa possibilidade em tópico à parte ou em notas de observação,

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não compondo, deste modo, as regras gerais de colocação do pronome átono elencadas
nos compêndios. Diferentemente dos demais compêndios, Said Ali (1968 [1924]), pelo
menos no tópico que aborda sobre a colocação pronominal em locuções verbais, não
apresenta a possibilidade de uso dessa variante de colocação.
Nos textos contemporâneos nas categorias jornalística, literária, científica,
religiosa e jurídica, verifica-se que, de modo geral, a colocação pré-LVC (clV1V2) é a de
maior representatividade, seguida, em segundo lugar, da colocação pós-LVC (V1V2-cl),
em terceiro lugar, da colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2) e, em quarto lugar, da
colocação intra-LVC com hífen (V1-clV2). Com isso, vê-se que a questão norteadora da
investigativa que consistia em saber qual a colocação pronominal em locuções verbais
mais recorrente nos textos dos primeiros quinze anos do século XXI é respondida: a
colocação pré-LVC (clV1V2) é a mais produtiva entre os textos contemporâneos. Nesse
contexto, a hipótese levantada de que a posição intra-LVC sem hífen (V1clV2) fosse a
mais recorrente foi refutada. Ademais, vale sobrelevar que, mesmo o percentual sendo
menor, a colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2), considerada marca brasileira por
muitos pesquisadores, é a terceira mais aplicada, tendo aceitabilidade à medida que há
um significativo número de ocorrências.
Ainda no que se refere ao uso da colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2),
verifica-se que o número maior de ocorrências foi catalogado na categoria de textos
literários. Aventa-se que essa preponderância se deve sobremaneira pela liberdade de
criação que os escritores têm em relação às demais categorias de textos monitorados.
Sobreleva-se, ainda, que nos textos jurídicos não foram encontradas ocorrências de
colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2), tal fato pode se dever pelo conservadorismo e
total obediência aos preceitos tradicionais da gramática normativa.
No cotejo entre o predicado e o praticado, certifica-se que, de modo geral, há
concordância entre as prescrições gramaticais e os usos dos brasileiros na escrita
monitorada. Desta forma, apreende-se que a norma predicada e a norma praticada, no
que se refere à colocação pronominal em locuções verbais, apresentam-se convergentes.
Contudo, é notório comentar que os instrumentos linguísticos analisados, à exceção de
Luft (2002 [1976]), podem repensar e trazer como regras básicas, e não como notas de
rodapé ou observações ou em tópico à parte, as formas efetivamente realizadas pelos
brasileiros, como é o caso da colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2).
Com a realização do presente artigo, verifica-se a necessidade de o assunto de
colocação pronominal em locuções verbais ser repensado e atualizado nas gramáticas

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Instrumentos Linguísticos
453

normativas, no sentido de abarcar como regras básicas as realizações efetivamente em


uso pelos brasileiros, particularmente em contextos monitorados.

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NORM A PADRÃO E NORM A DITA CULTA: CONFUSÃO SISTÊM ICA


EN TRE IN STRU M EN TO L IN G U ÍSTIC O E A M O STRA DE V A RIA ÇÃ O 1

STANDARD NORM S AND CULTURAL N ORM S: SYSTEM IC CONFUSION


B ETW EEN LIN G U ISTIC IN STRU M EN T AND V A RIA TIO N SAM PLE

Fernanda de Oliveira Cerqueira12


UFBA

Fazendo a sua cabeça com a cultura do arrastão


Pra cê poder sobreviver, tem que ter boa educação
Educação que eu tô falando, não são boas maneiras
É saber distinguir o pó da poeira
(Fazendo a cabeça - Planet Hemp)

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo problematizar a aparente aproximação entre os
conceitos de norma padrão e da norma estabelecida como culta, haja vista que o primeiro, a nosso
ver, atua, como um instrumento linguístico, ao regular a gramática normativo-prescritiva,
enquanto o segundo se configura, em princípio, como uma amostra de usos da língua recorrentes
entre sujeitos historicamente considerados cultos. No entanto, não é raro que, tanto na grande
mídia, quanto em salas de aula da rede básica de ensino, os termos se confundam, de modo a
corroborar com a manutenção sistemática de poder inerente ao uso da língua portuguesa no Brasil.
Para tanto, recorremos ao referencial teórico da Linguística Aplicada, devido a seu caráter
indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), dado que mobilizamos aqui conceitos da tradição
normativa (a saber, norma padrão) e da sociolinguística (a saber, norma culta), sob o prisma da
História das Ideias Linguísticas (AUROUX, 1992, 1998). Para realizar a discussão proposta,
adotamos a metodologia explanatória de base qualitativa. Por fim, verificamos que a confusão
entre tais noções de norma afeta as práticas sociais da língua em uso (LUCCHESI, 1994, 2015;
FARACO, 2008; BAGNO, 2003, 2012), bem como das relações de poder inerentes a ela
(MATTOS E SILVA, 1995; CHARITY-HUDLEY, 2013; CERQUEIRA, 2020, 2022; FREITAG,
2023).
Palavras-chave: Norma padrão; Norma dita culta; Gramática normativo-prescritiva;
Instrumentos Linguísticos

1 Dedicamos este trabalho à Professora Viviane Gomes de Deus Deiró, nossa professora de LETA13 -
Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa, responsável por nos apresentar ao universo da variação
linguística, bem como de suscitar em nós o interesse por tais estudos. Do ponto de vista político, ser
ensinada por outra mulher negra, na primeira década dos anos 2000, foi um processo emancipatório que
merece destaque. Ademais, o Movimento Estudantil também é responsável por esse debate, ao passo que
atuou como agência de letramento político em nossa formação.
2 Professora Adjunta do Setor de Língua Portuguesa, do Instituto de Letras, da Universidade Federal da
Bahia. Mestra e Doutora em Língua e Cultura (UFBA). Pós-Doutora em Linguística (UFAL). E-mail:
f.cerqueira@ufba.br.

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Abstract: The present work aims to problematize the apparent approximation between the
concepts of standard norm and established norm as cultured, given that the first acts, in our view,
as a linguistic instrument, by regulating normative-prescriptive grammar, while the second is
configured, in principle, as a sample of recurrent uses of language among subjects historically
considered cultured. However, it is not rare that, both in the mainstream media and in classrooms
of the basic education network, the terms are confused, in order to corroborate the systematic
maintenance of power inherent to the use of the Portuguese language in Brazil. To do so, we resort
to the theoretical framework of Applied Linguistics, due to its interdisciplinary nature (MOITA
LOPES, 2006), given that we mobilize here concepts from the normative tradition (namely,
standard norm) and sociolinguistics (namely, learned norm), under the prism of the History of
Linguistic Ideas (AUROUX, 1992, 1998). To carry out the proposed discussion, we adopted an
explanatory methodology based on a qualitative basis. Finally, we verified that the confusion
between such notions of norm affects the social practices of the language in use (LUCCHESI,
1994, 2015; FARACO, 2008; BAGNO, 2003, 2012), as well as the power relations inherent to it
(MATTOS E SILVA, 1995; CHARITY-HUDLEY, 2013; CERQUEIRA, 2020, 2022; FREITAG,
2023).
Key words: Standard Norm; So-called Cultured Norm; Normative-prescriptive grammar;
Linguistic Instruments

Subm etido em 18 de ju n h o de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introdução
O presente texto é fruto de uma série de reflexões que nos acompanham desde o
início da graduação, se estendendo a contextos diversos de prática docente, nas quais
fomos interpeladas por estudantes, bem como por problematizações no campo da leitura
e da produção de estudos linguísticos.
Imaginamos que, de repente, a problemática tenha se iniciado ainda na escola
básica: afinal, para que vamos à escola aprender português se essa é a nossa língua
materna? No entanto, foi, ao longo da formação e da prática docente, que a resposta veio:
não é o português que falamos, como língua materna, a modalidade linguística que vamos
aprender e/ou ensinar nas escolas. Em verdade, a questão nem sequer se restringe à fala,
pois o modo como nossos estudantes escrevem em redes sociais não é o modo como
esperamos que escrevam nas redações, com destaque, para os gêneros em que prevalece
a tipologia dissertativa.
Por conta desses ruídos, buscamos realizar um levantamento de alguns aspectos
envolvidos no processo de instrumentalização da língua portuguesa no Brasil,
especialmente, no que concerne às relações de poder atreladas a certos usos, o que parece
ter forte relação, não só com rótulos sociais, mas, principalmente, com a identidade dos

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sujeitos produtores de determinadas formas de uso, conforme pretendemos ilustrar com


dados nas próximas seções.
Desse modo, este trabalho visa realizar uma breve problematização a respeito da
aparente aproximação entre os conceitos de norma padrão e de norma culta. A escolha
por esse objeto de estudo se deu em virtude de que a norma padrão, sob a perspectiva aqui
defendida, atua, efetivamente, como um instrumento linguístico, ainda que sob o prisma
de uma abstração, uma vez que regula as formas de uso estabelecidas como “acerto” na
gramática normativo-prescritiva, quando se materializa. Em oposição, a(s) norma(s)
dita(s) culta(s) se configura(m), em primeira instância, como uma amostra de variação,
isto é, casos recorrentes de variantes produtivas entre sujeitos historicamente
considerados (ou estabelecidos) como cultos. Todavia, é frequente que ambas normas
sejam tratadas como sinônimos, no âmbito da grande mídia, em materiais didáticos e,
ainda, no discurso de muitos/as/es professores/as. Sendo assim, esses conceitos acabam
por se confundir, de modo a corroborar com a manutenção sistemática de poder inerente
ao uso da língua portuguesa no Brasil, à proporção que a falsa sinonímia entre ambos faz
parecer que certos sujeitos “falam certo” e outros “falam errado” . Não obstante,
entendemos que a norma padrão seja um instrumento linguístico em virtude de sua
veiculação tanto estabilizar usos canônicos para as línguas, quanto de textualizá-los em
gramáticas e/ou dicionários.
Considerando que tal confusão tem impactos significativos nas relações sociais e,
com efeito, nas práticas linguísticas, recorremos ao arcabouço teórico oferecido pela
Linguística Aplicada, por conta de seu caráter indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), dado
que foi preciso transbordar as barreiras existentes entre diferentes abordagens
linguísticas. Assim, mobilizamos debates atinentes à tradição normativa (a saber, norma
padrão) e à sociolinguística (a saber, norma culta), embora sob o prisma da História das
Ideias Linguísticas (AUROUX, 1992, 1998), pois intentamos estabelecer limites entre a
instrumentalização da língua3 (materializada através da gramática normativo-prescritiva)
e as normas linguísticas de uso corrente (quer as consideradas cultas, quer as consideradas
populares). Consequentemente, optamos por uma metodologia exploratória, de base

3 Sabemos que, tradicionalmente, os instrumentos linguísticos são ferramentas cujo intuito é de materializar
os sentidos atribuídos à norma padrão. Contudo, é nosso interesse destacar que a noção de norma n o s
instrumentos linguísticos, não raras vezes, escamoteia a compreensão de norma co m o instrumento
linguístico, visto que sua função prescritiva parece não se manifestar apenas em produtos escritos, mas em
outras vias, tais como discursos midiáticos, conforme discutiremos nas seções seguintes.

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Instrumentos Linguísticos
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qualitativa, o que nos permitiu realizar um breve panorama dos debates já realizados
acerca da questão, dialogando com esses estudos, em direção ao objetivo proposto.
Para tanto, o trabalho divide-se em quatro seções, a saber: a. Norma padrão como
instrumento linguístico; b. Problemas em torno da confusão entre norma culta e norma
padrão; c. Como lidar com a confusão: qual o limite entre instrumento e variação
linguística; e a conclusão, seguida pelas referências.

1. N orm a padrão como instrum ento linguístico


De acordo com Auroux (1992, 1998), do ponto de vista tecnológico, advindo da
manifestação escrita das línguas humanas, a gramatização incorre a partir de processos
conduzidos tanto por descrição, quanto por instrumentação de uma dada língua, “ [...] na
base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a
gramática e o dicionário” (AUROUX, 1992, p. 65). Nesse sentido, sob a égide da História
das Ideias Linguísticas (HIL), há duas principais tecnologias capazes de instrumentalizar
eventos da língua, como já dito, a gramática e o dicionário. Logo, nessa seção,
discutiremos de que modo a norma padrão, materializada nas gramáticas normativo-
prescritivas, figura como instrumento linguístico, desempenhando papel de instância
reguladora.
Mediante à perspectiva apresentada pela HIL, para Aquino (2020a), a gramática
normativo-prescritiva realiza, simultaneamente, papel de instrumento técnico e de
ferramenta político-histórica, dado que representa “ [...] a necessidade social de
unificação, padronização, em face da realidade heterogênea” (MATTOS E SILVA, 1995,
p. 11). Por meio da gramática, tanto é possível verificar o funcionamento da norma
linguística estabelecida como padrão, quanto o estabelecimento de valor das formas
idealizadas de uso presentes ou ausentes nesse instrumento. Desse modo, se imagina que
haja formas de uso “certas” contra aquelas consideradas “erradas” . Com efeito,
estabelecem-se diferentes relações de poder frente a tais usos, bem como frente a quem
os faz.
Desde a circulação da possível primeira gramática amplamente conhecida no
mundo - cujo propósito principal foi normatizar a transição do sânscrito védico para o
sânscrito clássico, Astadhyayi, da autoria de Panini, no século IV a.C. - até os dias atuais,
o objetivo primordial da Gramática Tradicional, ou Gramática Normativo-Prescritiva, é
assegurar uma descrição linguística com fito de correção, ao passo que “nasce”

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[...] do sentimento de unidade apesar de sua diversidade e de uma certa


consciência de sua regularidade, desenvolveu-se um esforço pedagógico [na
confecção das gramáticas] para fixar a língua em um certo estado de pureza e
para permitir o uso dos escritores [...] (CASEVITZ; CARDIN, 1983, p. 52
apud MATTOS E SILVA, 1995, p. 15).

Apenas no século XX, com o advento da Linguística como campo científico,


surgem gramáticas com intuito primordial de descrição de formas de uso da língua,
deslocando-se da função normativa que lhe é tradicional e, nesse sentido, reconhecendo
a existência da variação linguística. Contudo, a chamada Gramática Descritiva, aquela
designada à sistematização de usos da língua, ganha projeção quase que estritamente no
âmbito acadêmico, de modo que entre os demais setores da sociedade o termo gramática
é praticamente sinônimo de Gramática Normativo-Prescritiva (BAGNO, 2000).
De modo semelhantes, Antunes (2007) defende que gramática é um termo que, à
luz da linguística, corresponde ao conjunto das regras que definem o funcionamento de
uma língua, embora o termo Gramática Tradicional ou Normativo-Prescritiva
corresponda ao conjunto das regras que “devem” ser seguidas, ou seja, textualiza o que
se concebe por norma padrão, em âmbito abstrato. Por outro lado, as Gramáticas
Descritivas, cuja relação é mais íntima com a concepção de gramática comum às
linguísticas, apresenta e discute o conjunto das regras que são efetivamente seguidas nas
situações comunicativas, de modo condizente com a variação linguística.
Portanto, a divergência de objetivos inerentes às descrições de formas presentes
nessas gramáticas revela o que se reconhece como ideal de formas de uso, apresentadas
pela Gramática Normativo-Prescritiva, contra o que se reconhece como formas
normais/naturais/comuns de uso, descritas pela Gramática Descritiva. Enquanto a
primeira se inscreve no campo da tradição tipológica purista de língua, com vistas a
delimitar “o idioma” do Estado-nação, bem como de suas instituições (ORLANDI;
GUIMARÃES, 2002), a segunda é fruto de uma vasta gama de estudos empíricos sobre
a variação inerente a compreensão da língua em uso (BAGNO, 2023).
Do mesmo modo que gramática, norma é um conceito ambíguo, haja vista que
abre precedente para duas interpretações, a saber: norma como objeto normativo, em
termos de prescrição; ou norma como objeto comum, em termos de natural, convencional
ou até recorrente. Consoante a proposta de Coseriu (1952), a norma linguística é uma
abstração intermediária4 entre a dicotomia saussuriana langue (língua) - parole (fala).

4 “[...] o siste m a é um conjunto de opções funcionais; a n o r m a é a realização coletiva do sistema, que


contém o sistema e os elementos não-pertinentes do sistema, mas normais na fala de uma comunidade; a

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Dito de outro modo, norma, em termos coserianos, seria aquilo que é considerado normal,
comum, recorrente entre o sistema (a língua: autônomo, social-coletivo, abstrato e
invariável) e o uso (a fala: individual, particular, concreta e variável).
Tendo em vista as associações possíveis entre os conceitos de gramática e de
norma, Mattos e Silva (1995, p. 14, grifo da autora) os define da seguinte maneira

n o r m a n o r m a tiv o -p r e sc r itiv a , n o r m a p r e s c r itiv a


ou n o r m a p a d r ã o ,
conceito tradicional, idealizado pelos gramáticos [...], diretriz até certo ponto
para o controle da representação escrita da língua, sendo qualificado de erro o
que não segue esse modelo. [...] Distancia-se da realidade dos usos, embora
com alguns deles se interseccione [...];
n o r m a s n o r m a is ou so c ia is , [...] são normas que definem grupos sociais que
constituem a[s] rede[s] socia[is] de uma determinada sociedade. Distinguem-
se, em geral: normas “sem prestígio social” ou estigmatizadas; normas de
“prestígio social”, e q u iv a le n te s ao q u e se d e n o m in a n o r m a c u lta , q u a n d o o
g ru p o d e p r e stíg io q u e as u tiliz a é d a c la sse d o m in a n te e, n a s so c ie d a d e s
le tr a d a s, a q u e les d e n ív e l a lto d e e s c o la r id a d e .

Sob essa ótica, não é equivocado associar a noção de gramática normativo-


prescritiva com a noção de norma padrão, pois a norma padrão, enquanto abstração, é
materializada através desse instrumento linguístico, cuja função primordial é orientar a
escrita de gêneros textuais escritos formais, tais como documentos notariais, legislação,
peças judiciais, etc. Assim, a norma padrão, textualizada, na maioria dos casos, pela
gramática normativo-prescritiva, desempenha o papel de instrumentalizar usos
linguísticos em contextos muito específicos, embora, não raras vezes, seja acionada como
manual de “como falar certo” . Desse modo,

[...] o conceito de erro varia conforme consideramos a gramática normativa,


para qual são erros todos os desvios à norma padrão, ou a gramática descritiva,
que vetaria apenas “construções que não se enquadram em qualquer variedade
da língua” (POSSENTI, 1996, p. 80), como [...] “a meninas” (POSSENTI,
1998, p. 270).

Apesar de a norma padrão ser textualizada em gramáticas normativas, há outras


instituições em que essa ferramenta se materializa, tais como a valoração de usos que dela
divergem, sobretudo, entre os discursos da grande mídia. Nesse sentido, entendemos que
há possibilidade de compreensão da norma padrão como o instrumento linguístico em si,
dado que a tecnologia da gramatização visa atender à finalidade de estabilizar a norma
padrão. Isto é, consideramos, no presente trabalho, que a norma padrão seja o instrumento

fa laou falar, a realização individual-concreta da norma somada à originalidade expressiva do indivíduo


falante” (MATTOS E SILVA, 1995, p. 22, grifo da autora).

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linguístico abstrato, ao passo que a gramática normativa seja a versão concreta ou


materializada desse instrumento. Sob esse olhar, há aí uma relação dicotômica entre duas
vias de gramatização, a saber, a norma padrão, como instância abstrata; e a gramática
normativo-prescritiva, como a instância concreta.
Em oposição, para a linguística, a noção de erro incide sobre formas linguísticas
impossíveis5 na gramática de dada língua natural. Porém, fora do âmbito linguístico a
noção de erro está diretamente associada ao prestígio social, a qual, muitas vezes sequer
está amparada na norma padrão. Em termos de ilustração, sabe-se que os dados em (1)
representam possibilidades de uso da língua portuguesa falada (e/ou escrita) no Brasil. É
comum que, para a maioria das pessoas, apenas a sentença (1c) seja considerada erro, já
que “mim não conjuga verbo”, como se veicula no senso comum.

(1) a. Me dê um copo d’água.


b. Dê-me um copo d’água.
c. Mim dê um copo d’água.

No entanto, para a norma padrão, conforme registrado (estabelecido ou


materializado) na gramática normativo-prescritiva, há uma regra segundo a qual não se
inicia oração com pronome pessoal do caso oblíquo (BECHARA, 1999). Por isso, em
acordo com esse instrumento linguístico, nem a sentença (1a), nem a sentença (1c)
estariam “corretas”, pois nem “me”, nem “mim” conjugam verbos6. Porém, se ambas
representam desvios da tradição gramatical, por que apenas (1c) acarreta estigma? A
resposta parece estar associada a quem produz sentenças como (1a) e quem produz
sentenças como (1c). No âmbito da sociolinguística, tais variantes correspondem a usos
esperados pelos falantes/informantes/sujeitos de norma culta (em 1a) e pelos
falantes/informantes/sujeitos norma popular (em 1c).
Tendo em vista a história do acesso à educação no Brasil, em que sempre se
beneficiaram pessoas brancas dos mais altos estratos econômicos da sociedade
(OLIVEIRA, 2006; FERREIRA JR., 2010; LUCCHESI, 2015; GOMES, 2019), a norma

5 Inform alm ente, d izem os, em Teoria(s) da Literatura que “a obra é aberta, m as não escancarada” . D e m odo
sem elhante, d izem o s, inform alm ente, em T eorias L ingu ísticas que “as língu as variam , m as que a variação
não é d esvin cu lad a do sistem a gram atical da língu a” . Isto é, em português p o d e-se d izer “o s m en in os” ou
“o s m en in o _ ”, m as não “ * o _ m en in os” , haja v ista que, em português, o determ inante é o regulador de
concordância.
6 In clu sive a distribuição d os p ronom es p esso a is quer do caso reto, quer do caso o b líq u o, em português
brasileiro, sequer “o b ed ece” aos padrões de con cordân cia/flexão verbal can ôn icos. Para um debate m ais
am plo, v er Carvalho (2 0 0 8 , 2 0 17).

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culta, sendo aquela que remete à prestígio social, é o uso linguístico esperado por aqueles
que frequentaram por mais tempo a escolarização formal. Em oposição, a norma popular,
é o uso linguístico esperado por aqueles que frequentaram por menos tempo a
escolarização.
Não por acaso, apesar de (1a) e (1c) divergirem da norma padrão, prescrita na
gramática, apenas a variante em (1c) acarreta estigma aos falantes que dela fazem uso. A
mesma reflexão é possível com o dado em (2), produzida em reportagem veiculada pelo
jornal Folha de São Paulo.

(2) H aviam quatro cães no bairro carioca de Santa Cruz.


(Folha de São Paulo - Notícia veiculada em 23 de maio de 2023)

De acordo com a norma padrão, representada pela gramática normativo-


prescritiva, o verbo haver, como verbo principal da oração, é impessoal, por isso não
flexiona em gênero, nem em número, cuja marca é sempre de terceira pessoa singular
(BECHARA, 1999). Todavia, o uso verificado em (2) registra o oposto do previsto pela
norma padrão, mas, ainda assim, essa variante corresponde a um uso recorrente em
manifestações de falantes da norma culta, haja vista sua produtividade entre os segmentos
sociais que frequentaram por mais tempo a escolarização (PRETTI, 1997). Cabe
considerar que

[a] relação entre raça, classe social e escolarização é, pois, complexa e está
interligada, e escolaridade, medida em anos na escola ou nível de estudo, é a
categoria de estratificação cuja métrica é objetiva. Daí que as explicações ou
interpretações de resultados de estudos sociolinguísticos que adotam a métrica
da escolaridade costumam extrapolar para a relação entre raça e classe social
que o constructo subsume (FREITAG, 2023, no prelo).

Logo, o problema não está, de fato, em divergir da norma padrão, o instrumento


abstrato de base da gramática normativo-prescritivo e, portanto, um instrumento
linguístico (PETRI, 2012). O problema parece estar em quem produz tais usos, em quem
são esses falantes/informantes/sujeitos de maneira mais ampla, isto é, o quão
escolarizados são, qual sua origem regional, qual sua estratificação socioeconômica, qual
sua identidade racial, qual sua identidade de gênero, qual sua orientação sexual, dentre
outros fatores. Destarte, nosso intuito nesse trabalho é de problematizar a aparente
aproximação entre os conceitos de norma padrão e de norma culta, já que o primeiro atua,
de fato, como um instrumento linguístico (uma vez que sua manifestação abstrata orienta

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a sua materialização através da gramática normativo-prescritiva), mas o segundo reflete


amostras de casos recorrentes de variação entre sujeitos historicamente considerados
cultos.

2. Problem as em torno da confusão entre n o rm a culta e n o rm a padrão


Em direção ao já previsto por Coseriu (1952), Lagares e Bagno (2011) reforçam
que norma é um construto teórico que emerge em decorrência da verificação das relações
sociais, de modo que impactam tanto em dinâmicas de uso sociolinguístico, quanto na
tradição pedagógica de ensino de língua materna. Dito de outro modo,

[e]xistem diferentes normas numa língua e certas diferenças linguísticas estão


relacionadas, muitas vezes, com determinados estratos sociais, pelo menos até
que se generalizem e venham a se tornar de fato uma língua e não apenas
peculiaridades de uma das normas dessa mesma língua (CARDOSO, 1994, p.
233).

Por conta disso, faz-se necessário compreender os tipos de norma existentes,


como são associados aos usos linguísticos dos diversos segmentos sociais e quais as
implicações de seus usos em gêneros discursivos/textuais diversos, haja vista que,
conforme discutido na seção anterior, a norma padrão, para nós, é um instrumento
linguístico abstrato, regulador de sua manifestação concreta, a gramática normativo-
prescritiva. Portanto, tais associações parecem ser balizadoras de relações de poder, no
que tange aos usos da língua, bem como às situações comunicativas em que ocorrem e
aos tipos de sujeito que produzem tais usos.
Para Bagno (2000, 2012, 2023), enquanto a norma padrão caracteriza-se a partir
de preceitos, do ideal e do purismo linguístico e do juízo de valor; as normas efetivamente
produtivas, no sentido de normal/comum, representam o uso real da língua, em situações
comunicativas concretas, por sua vez, são verificados por meio de observações objetivas,
a fim de mapear a frequência e o comportamento, com base em medição estatística. Desse
modo, com base em uma tendência habitual de uso, as normas comuns são consideradas
cultas ou populares.
Ainda acerca dos tipos de normas, Lucchesi (1994, 2015) afirma que norma
linguística é fruto: a. tanto de um produto empírico decorrente da diferença de
comportamento no uso da língua pelas classes sociais que a falam; b. quanto da maneira
como os membros de cada segmento social avaliam esses usos. Desse modo, há “ [...] uma
divisão axial entre uma norma culta, das classes mais altas, e uma norma popular, das

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classes mais baixas [...]” (LUCCHESI, 2015, p. 34). Isto é, não só estudos linguísticos
afetam a compreensão de norma, mas também as atitudes e percepções de seus falantes,
enquanto membros de comunidades de fala da língua e/ou de prática em questão.
No entanto, na direção do debate proposto por Milroy (1980), Faraco (2008, p.
44) destaca que não existe “norma pura”, uma vez que são sempre híbridas, pois as
normas absorvem características umas das outras, “ [p]or isso não é possível estabelecer
com absoluta nitidez e precisão os limites de cada uma das normas - haverá
sobreposições, desbordamentos, entrecruzamentos” . Ou seja, variantes produtivas entre
os falantes da norma popular podem passar a ser produtivas entre os falantes da norma
considerada culta, assim como o inverso, dado que a variação vertical (ou diastrática)
ocorre tanto de modo ascendente, quanto descendente (WEINEREICH; LABOV;
HERZOG, 2006).
Nesse sentido, há um conflito de ordem social e ideológica no que concerne à
compreensão do conceito de norma culta, pois

[o] que as pesquisas científicas feitas no Brasil nos últimos trinta anos têm
revelado é que existe uma diferença muito grande entre o que as pessoas em
geral chamam de norma culta, inspiradas na longa tradição gramatical
normativo-prescritiva, e o que os pesquisadores profissionais chamam de
norma culta, um termo técnico para designar formas linguísticas que existem
na realidade social (BAGNO, 2012, p. 24).

Não raramente, livros didáticos, notícias veiculadas pela grande mídia e até
mesmo textos acadêmicos tratam norma padrão e norma culta como sinônimos, o que
gera a falsa sensação de que há pessoas capazes de dominar a norma padrão. Há décadas,
os estudos sociolinguísticos informam que não há falantes de norma padrão, mas que a
função dessa norma é o de orientação de escrita em gêneros textuais mais formais. Porém,
é recorrente, no imaginário coletivo, a crença de que as pessoas, que falam
“corretamente”, dominam a norma padrão, cujo discurso seria, sob essa ótica, legitimado
pela gramática normativo-prescritiva. A grande questão é: o que significa falar
corretamente? Assumir todas as formas, quase sempre idealizadas, previstas pela norma
padrão, o que os estudos linguísticos confirmam ser impossível, dado ao caráter
heterogêneo das línguas humanas? Ou falar corretamente corresponde seguir o padrão
dos usos da norma culta, isto é, a falar de modo semelhantes às pessoas consideradas
cultas?
Quanto a isso, Araújo (2008) aponta que

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[...] a norma padrão brasileira é pautada no português de Portugal, quando, na


verdade, o correto seria explicitar que a referida norma foi pautada nos usos de
literatos portugueses dos séculos XVI ao XIX e de brasileiros cultos do século
XIX e início do século XX, dentro de um projeto de branqueamento da
população brasileira, negando-se a miscigenação típica em um país com
múltiplas culturas, [raças] e etnias; estando, assim, a escolha da norma padrão
de acordo com um projeto da elite brasileira do início daquele século
(ARAÚJO, 2008, p. 3).

Isto é, a ação do racismo como elemento estruturante da sociedade brasileira


impõe limites e valores no uso do português brasileiro (NASCIMENTO, 2019;
CERQUEIRA, 2020, 2022; MODESTO, 2022). Não obstante, difunde-se o imaginário
de pessoas consideradas cultas “falam corretamente”, reforçando a ambiguidade presente
no termo “culto”, bem como na sua confusão sistemática entre norma culta e norma
padrão.

Pessoalmente, temos preferido simplesmente descartar a expressão norma


culta, justamente por suas ambiguidades e, sobretudo, por já conter implícito
um forte preconceito social: afinal, designar determinado modo de falar como
“culto” significa, automaticamente, lançar no porão do “inculto” todas as
demais variedades sociolinguísticas. Ora, a cada variedade linguística
corresponde uma comunidade de falantes, e não existe comunidade de falantes
- isto é, não existe grupo social - desprovido de uma cultura. Ao designar um
conjunto de variedades como “cultas”, fica óbvio que o conceito de “cultura”
suposto no rótulo se refere a um tipo específico de cultura: a cultura das classes
socioeconômicas privilegiadas, urbanas e mais letradas (BAGNO, 2012, p.
25).

Portanto, cabe questionar quais setores da sociedade correspondem ao que se


concebeu como “pessoas cultas” e quais tipos de cultura são legitimadas nesse processo,
haja vista seu impacto na instrumentalização da língua, assim como nas relações de poder
que se estabelecem a partir desse processo.
Consoante o pensamento de Mintz (1982), cultura7, em sua diversidade, pode ser
compreendida por propriedade social exclusivamente humana, de ordem simbólica,
fortemente associada ao tempo, à vida social, aos sistemas de comunicação e de interação,
viabilizando agregação de esquemas de ideias no interior de grupos humanos. Sob esse
prisma, não há margem para hierarquização de tipos de culturas ou de sujeitos produtores

7 Conforme estudos antropológicos, o termo cultura é publicado pela primeira vez em 1877, por Edward
Burnett Tylor, cuja função foi de referir todos os produtos da vida social humana. Porém, o termo passa
por intensas mudanças, dentre as quais, algumas o restringem às culturas hegemônicas. Em virtude disso,
optamos por adotar o conceito de cultura apresentado por Mintz (1982), dado a seu caráter mais abrangente.

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de cultura, de modo que haja a leitura de que alguns dispõem de mais cultura do que
outros.
Com efeito, o conceito de norma popular também mostra-se problemático, uma
vez que

[p]or exemplo, se a cultura popular é a cultura “do povo”, quem é o povo? São
todos: o pobre, as “classes subalternas”, como costumava chamá-las o
intelectual marxista Antonio Gramsci? São os analfabetos ou os incultos? Não
podemos presumir que as divisões econômicas, políticas e culturais em uma
determinada sociedade necessariamente coincidam. E o que é educação?
Apenas o treinamento transmitido em algumas instituições oficiais como
escolas ou universidades? As pessoas comuns são ignorantes ou simplesmente
têm uma educação diferente, uma cultura diferente das elites? (BURKE, 1992,
p. 14)

Nesse sentido, há prejuízos também na adoção da terminologia norma popular,


uma vez que seu uso escamoteia e naturaliza desigualdades sociais (raciais, de gênero e
de classe), as quais não são confluentes em todo modelo de sociedade, como apontado
por Burke (1992). Por outro lado, para Bhabha (1998), culturas puras, autênticas ou
originais são inexistentes, de modo que

[...] [a]s culturas vem a ser representadas em virtude dos processos de interação
e tradução através dos quais seus significados são endereçados [...] apaga[ndo]
qualquer reivindicação essencialista de uma autenticidade ou pureza inerente
de culturas que, quando inscritas no signo naturalístico da consciência
simbólica, frequentemente se tornam argumentos políticos a favor da
hierarquia e ascendência de culturas poderosas (BHABHA, 1998, p. 14).

Ou seja, de acordo com Bhabha (1998), o imaginário de pureza tende a privilegiar


as conformações culturais do segmento social de prestígio, à medida que esse é
vislumbrado como universal. Portanto, não há cultura pura, universal ou autêntica; ainda
que o paradigma culto X popular precise ser repensado. Logo, não há aqui intuito de
propor o abandono de tais terminologias, mas de demarcar a necessidade de reflexão
acerca delas.
Nesse sentido, é problemática a assunção acrítica dos termos norma culta e norma
popular, sem os devidos questionamentos acerca de suas bases, uma vez que a confusão
entre norma padrão e norma culta apresenta grande relevância para a manutenção de um
modelo de sociedade na qual a hierarquização de sujeitos é basilar. A exemplo, citamos
dois casos de “desvio” da norma padrão cujas repercussões midiáticas foram totalmente
distintas, a saber:

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(3) Durante discurso que proferiu na CCJ, o ministro da Justiça, Sérgio Moro explicava
sobre a interpretação que se deve fazer quando uma mulher reage à violência
doméstica. Nesse instante, o ministro falou “conje” quando se referia a “cônjuge” .
V irou meme na internet.
(UOL Notícias - Notícia veiculada em 03 de abril de 2019, grifo nosso)

(4) Maria Júlia Coutinho, a Maju: muita da informalidade do “Jornal Nacional” se deve
às qualidades da jornalista, que deixou de ser um a m era “moça do tempo” para
ser uma estrela do jornalismo.
(Jornal Opção - R7 - Notícia veiculada em 17 de outubro de 2021, grifo nosso)

Considerando os dados em (3) e (4) com base na discussão supracitada, o que valida
que um homem branco e juiz ao produzir expressões como “conja”, variante que concorre
com “cônjuge”, seja afetado pelo mero riso; enquanto uma mulher negra jornalista tem
sua capacidade intelectual e profissional questionadas ao produzir algo como “os
menino”8. Não obstante, fica claro que o preconceito9 não é sobre a variação na língua
pura e simplesmente, mas, principalmente, sobre quem produz certas formas de uso.
Logo, cabe questionar por que o juiz branco que fala “conja”, não tem sua capacidade
intelectual e profissional questionada, como ocorreu com a jornalista negra10, embora o
suposto erro normativo dele seja uma variante raramente produtiva (ou nunca) entre
falantes da norma dita culta?
Destarte, é preciso destacar

[...] um gravíssimo problema ontológico estabelecido na relação errônea entre


escolarização formal e cultura, tendo em vista que essa associação produz a
interpretação de que cultura é sinônimo exclusivamente de cultura
eurocentrada e de que, por sua vez, falantes menos escolarizados não possuem
cultura (CERQUEIRA, 2022, p. 23).

Por essa razão, deve-se problematizar a aparente aproximação entre os conceitos


de norma padrão e de norma culta, visto que o primeiro atua, efetivamente, como um
instrumento linguístico (uma vez que nos parece ser o aspecto abstrato da materialização
da gramática normativo-prescritiva), ao passo que o segundo se configura como uma

8 Para uma discussão acerca do preconceito linguístico com base na hipervalorização da morfologia
flexional, ver Silva (2023).
9 Para melhor compreensão de como o racismo atua sobre a língua, bem como é veiculado por ela, evento
que extrapola o preconceito linguístico, ver Racismo Linguístico, de Nascimento (2019).
10Para melhor compreensão da intersecção de racismo com sexismo no Brasil, ver Gonzalez (1983).

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amostra de casos recorrentes de variação entre sujeitos historicamente eleitos como


cultos, ainda que todos os segmentos sociais disponham de cultura.

3. Como lidar com a confusão: qual o limite entre instrum ento e variação
linguística?
Sabemos que, a depender do enquadramento teórico, língua pode vir a assumir
diferentes concepções. No presente trabalho, compreendemos que língua seja tanto um
sistema heterogêneo passivo de variação e de mudança, conforme as situações concretas
de uso (CERQUEIRA, 2020), quanto um instrumento de poder manifesto nas práticas
sociais (AQUINO, 2020b). Tendo isso em vista, parece estratégico discutir a associação
de acerto e de erro, respectivamente, com as normas ditas culta(s) e popular(es).
Conforme discutido nas seções anteriores, acreditamos que essa associação seja
decorrente da ausência de limites claros entre norma padrão - para nós, instrumento
linguístico em esfera abstrata, cuja contraparte concreta é a gramática normativo-
prescritiva - e as normas linguísticas, como manifestações concretas de uso, nas quais se
verifica a heterogeneidade do sistema linguístico, ou seja, em que a variação incide. À
medida que os setores hegemônicos da sociedade produzem determinado “desvio” da
norma padrão, não há a compreensão de erro. Por outro lado, quando segmentos sociais
minoritários o fazem, rapidamente, surge alguma entidade no âmbito da grande mídia
denunciando o suposto erro. A grosso modo, escolarização e estratificação social
(econômica, racial, de identidade gênero e de orientação sexual) têm sido “confundidas” .
A escolaridade dos falantes é uma variável muito recorrente nos estudos
sociolinguísticos, pois sua escolha busca confirmar uma das hipóteses centrais do campo:
a de que informantes com níveis mais elevados de escolarização tendem a empregar as
variantes mais próximas do padrão normativo, bem como da norma estabelecida como
culta, enquanto os informantes menos escolarizados tendem a apresentar em sua fala mais
variantes estigmatizadas (RODRIGUES, 2009). Assim, essa variável tem sido
selecionada para aferir, em uma dinâmica subsequente, a estratificação social desses
falantes, pois se pressupõem que, quanto mais alto o indivíduo estiver na pirâmide
socioeconômica, mais acesso a escolarização ele teve e, por conseguinte, quanto menos
escolarização o indivíduo possuir, mais baixo ele se encontra na pirâmide
socioeconômica.
Contudo, quando se considera a atual conjuntura social brasileira, percebe-se que
o panorama não é estável, pois

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[...] mudanças nas políticas públicas de educação nas últimas décadas, como a
Progressão Continuada e a ampliação do acesso aos cursos universitários
através do ProUni, permitem um sério questionamento dessa [aparente]
equivalência na década de 2010 [...] (MENDES; OUSHIRO, 2012, p. 981).

É sabido que, desde o início da gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), no


governo federal, muitos programas viabilizaram o acesso de segmentos sociais
minoritários ao ensino superior, tais como Programa de Cotas Raciais e Socioeconômicas
(Lei 12. 711/2012), Programa Universidade para Todos (ProUni) e Fundo de
Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), os quais são alguns exemplos de
propostas governamentais que culminaram no maior acesso da classe trabalhadora, como
também de outros segmentos sociais minoritários (pessoas negras, pessoas indígenas,
pessoas quilombolas, pessoas com deficiência e pessoas LGBTQIAP+) ao ensino
superior. Aliado a isso, o grande surgimento de instituições particulares de ensino, de
cursos tecnológicos e de cursos de graduação à distância favoreceu ainda mais esse
cenário de reposicionamento de setores não hegemônicos nas academias.
Com isso, não apenas o juiz branco é considerado falante de norma dita culta, mas
também a jornalista negra o é. O grande problema é que, no imaginário social, resultante
de uma vasta série de ações da grande mídia, a norma considerada culta ainda é uma
especificidade da produção linguística de corpos hegemônicos e setores de elite da
sociedade brasileira. Com efeito,

a normatização linguística no Brasil padece dessa sorte de esquizofrenia, co m


g r a v e s c o n se q u ê n c ia s p a r a o e n sin o d e lín g u a m a te r n a . O que faz o
professor de português diante da dubiedade do discurso [..]? Segue as regras
lusitanas que estão no corpo do texto ou admite os usos brasileiros que são
reconhecidos como legítimos, em letra miúda, em numa nota final?
(LUCCHESI, 2015, p. 187, grifo nosso).

Diante dessas convenções de acerto e de erro no uso da língua, mediadas pela


confusão entre os conceitos de norma padrão e norma considerada culta, bem como da
identidade dos sujeitos produtores das variantes de prestígio e de estigma, é alimentado o
estigma vicioso de que nosso estudante não sabe falar português por não ter cultura e,
com efeito, de que não tem cultura por não saber falar português, assegurando, assim, o
papel da língua como regulador social.
Tal pressuposto racista e elitista demarca como a confusão sistêmica entre norma
padrão e norma dita culta atua como ferramenta de controle social (BUENO, 2020;

Revista Porto das Letras, Vol. 9, N° 2. 2023


Instrumentos Linguísticos
473

MOURA, 2021), consequentemente, culminando em grandes índices de evasão escolar,


de desemprego, de precarização de trabalho (também chamado de uberização) e
aliciamento de jovens para a criminalidade. Assim,

[c]ontinuamos uma sociedade perdida em confusão em matéria de língua:


temos dificuldades para reconhecer nossa cara linguística, para delimitar
nossa(s) norma(s) culta(s) efetiva(s) e, por consequência, para dar referências
consistentes e seguras aos falantes em geral e ao ensino de português em
particular (FARACO, 2008, p. 29).

Portanto, é papel da instituição escolar, sobretudo na rede pública de ensino básico,


apresentar aos estudantes tanto a(s) norma(s) dita(s) culta(s) (as quais tendem a ser
utilizadas em gêneros textuais/discursivos com certa formalidade), quanto a norma
padrão (como possibilidade de orientação de escrita em gêneros textuais mais formais),
já que é com base nessa mandinga linguística11 (MUNIZ, 2021), oscilando entre as
diferentes normas, que nossos estudantes estarão aptos a acessar o ensino superior, a
permanecer nele, a inserir-se com qualidade no mercado de trabalho ou, “simplesmente”,
sobreviver a uma abordagem policial. Como já proposto por Soares (1997), é preciso
fomentar o bidialetalismo com fins transformacionais, com vistas a garantir a
sobrevivência e a qualidade de vida.
Logo, deve-se reforçar os limites entre a norma padrão, enquanto um instrumento
linguístico, e a(s) norma(s) dita(s) culta(s), enquanto amostras de variação de grupos
sociais específicos, a fim de tensionar as estruturas sociais, de modo a conduzir o ensino
de língua portuguesa como língua materna a uma instância de valorização das
diversidades sociais e linguísticas.

Conclusão
Considerando a recorrente confusão entre o uso dos termos norma padrão e norma
culta, tanto na grande mídia, quanto em salas de aula da rede básica de ensino,
contribuindo, desse modo, com a manutenção sistemática de poder inerente ao uso da
língua portuguesa no Brasil, realizamos no presente trabalho a problematização da
aparente aproximação entre esses conceitos. Para chegarmos aos resultados apresentados
a seguir, discutimos a noção de norma padrão, a fim de destacar sua ação como

11 De acordo com Muniz (2021, p. 281), a mandinga, uma técnica da arte da capoeira, é “[...] a própria
linguagem corporificada nas reexistências da população negra. [É] [a] engenhosidade como usamos a
linguagem de forma estratégica para sobreviver enquanto população constantemente aniquilada”.

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Instrumentos Linguísticos
474

instrumento linguístico, ainda que abstrato em processos de gramatização; destacamos os


problemas subjacentes à confusão entre a norma padrão e a(s) norma(s) dita(s) culta(s), o
que parece ocorrer em virtude de uma noção hierarquizada e hegemônica de cultura; e,
por fim, apresentamos alguns caminhos para “lidar com a confusão”, por meio da
demarcação de limites mais precisos entre instrumento e uso linguísticos.
Nesse sentido, verificamos que apesar de o primeiro conceito de norma atuar como
um instrumento linguístico, à medida que sua abstração é reguladora de sua
materialização, a saber, a gramática normativo-prescritiva, muitas vezes é tratado, como
sinônimo de norma culta, embora esse conceito se configure, como uma amostra de usos
da língua recorrentes entre sujeitos historicamente eleitos como cultos. Também
verificamos que essa “confusão sistemática” apresenta relação direta não só com o nível
de escolarização de quem produz suposto erro/desvio normativo, mas, especialmente,
com a identidade desse sujeito, isto é, se essa identidade é comportada ou não entre os
segmentos hegemônicos da sociedade, podendo, assim, ser designado como “culto” .
Com efeito, o impacto desse erro/desvio normativo é minimizado ou maximizado
a depender de quem o produza, reforçando, assim, as relações de poder inerentes às
práticas linguísticas. Isto é, “ [...] elas podem se transformar em instrumentos de
hegemonia ou, pelo contrário, refletir a riqueza e a diversidade cultural. Podem se
configurar como armas de opressão ou como ferramentas de liberdade” (SILVA, 2023,
p. 25). Logo, esperamos que a discussão aqui apresentada possa colaborar na delimitação
de limites entre os dois conceitos, quer nos estudos linguísticos, quer nas práticas docentes
de ensino de português como língua materna, uma vez que dialoga com a História das
Ideias Linguísticas, no que tange ao confronto às dinâmicas de opressão social.

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O EX E M PLO NAS GRAM Á TICA S JESU ÍT IC A S DE GUA RA N I1


TH E EX E M PLE IN JE SU IT GRAM M ARS O F GUARANI

Carolina Rodríguez-Alcalá
Unicamp

Resumo: Este artigo analisa o funcionamento dos exemplos nas primeiras gramáticas de guarani,
escritas por missionários jesuítas nos séculos XVII e XVIII para atender aos interesses coloniais
espanhóis na então região do Paraguai. A finalidade imediata de tais gramáticas era a aprendizagem
da língua pelos missionários, a fim de permitir a comunicação cotidiana com os falantes da língua
e sua instrução religiosa. As primeiras descrições basearam-se na observação da língua em
situações de uso, uma vez que se tratava de uma língua não documentada e desconhecida pelos
gramáticos. Interessa-nos neste artigo definir como a finalidade e as condições iniciais desse
trabalho de gramatização determinaram a constituição do corpus de exemplos, no que diz respeito
ao estatuto dos mesmos e aos critérios de validação, bem como à sua relação com a oralidade. A
partir disso, visamos compreender se o trabalho linguístico inicial permitiu a estabilização do
corpus ao longo do tempo, afetou o tratamento dos exemplos e deu lugar à emergência de uma
tradição escrita assumida pelos locutores da língua.
Palavras-chave: exemplos; gramáticas; guarani; jesuítas; Paraguai.

Abstract: This article analyzes the functioning of examples in Guarani grammars written by Jesuit
missionaries in the 17th and 18th centuries to serve the Spanish colonial interests in the then
Paraguayan region. Their immediate purpose was for foreign missionaries to learn the language in
order to enable everyday communication with speakers of the language and their religious
instruction. The first descriptions were based on the observation of the language in situations of
use, since it was an undocumented language and unknown to grammarians. The aim of this article
is to define how the initial purpose and conditions of this grammatization work determined the
constitution of the corpus of examples, with regard to their status and validation criteria, as well as
their particular relationship with orality. From this, I seek to understand whether and to what extent
this initial linguistic work allowed the stabilization of the corpus over time, affected the treatment
of the examples and gave rise to the emergence of a written tradition assumed by the speakers of
the language.
Key words: examples; grammars; guarani language; Jesuits; Paraguay.

Subm etido em 07 de agosto de 2023.


A provado em 04 de setem bro de 2023.

1Este artigo foi publicado originalmente em francês, na revista L ’exemple dans les traditions grammaticales. Langages
166, organizada por J.-M. Fournier. Paris: Larousse/Armand Colin, junho de 2007/2, p. 112-126. Disponivel em :
L'exemple dans les grammaires jésuitiques du guarani | Cairn.info. Acesso em 28/07/2023.

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A presentação
As primeiras gramáticas de guarani foram escritas por missionários jesuítas nos
séculos XVII e XVIII para atender aos interesses coloniais de evangelização dos índios nos
então domínios espanhóis do Paraguai, visando seu controle político. Foram elaboradas a
partir da adaptação de categorias gramaticais greco-latinas a uma língua muito diferente
em termos de tipologia (o guarani é uma língua aglutinante) e de funcionamento social (o
guarani era uma língua oral, de sociedades semi-nômades). A tensão entre esses
condicionamentos técnicos e sócio-políticos determinará as características das descrições
gramaticais e as particularidades do corpus de exemplos, em particular sua constituição,
estabilidade e mudança ao longo do tempo. É a análise de algumas dessas particularidades,
tendo em vista as condições da gramatização (AUROUX, 1992), o objeto deste artigo.
Tomamos a gramática como instrumento linguístico (ibidem) e como objeto
histórico, considerando que ela intervém no processo de constituição das relações entre os
sujeitos e da forma das instituições de uma sociedade (ORLANDI, 1997; 2001). As
gramáticas de guarani, além de sua relevância para a história das ideias linguísticas, no que
diz respeito ao desenvolvimento de teorias e métodos operado pelos missionários-
gramáticos, são por isso, ao mesmo tempo, um observatório da sociedade instituída a partir
dessa experiência singular que constituíram as reduções jesuíticas do Paraguai.
Analisaremos a Breve introducciónpara aprender la lengua guaraní, de Alonso de
Aragona, a primeira gramática conhecida de guarani, que permaneceria inédita até 1979 (o
manuscrito data de 1629ca); a Arte de la lengua guarani, de Antonio Ruiz de Montoya, a
primeira gramática publicada dessa língua (Madrid, 1640), que é contemporânea, em sua
elaboração, da gramática de Aragona; e a Arte de la lengua guarani por el P. Antonio Ruiz
de Montoya de la Companía de Jesús con los escolios, anotaciones y apêndices del P.
Paulo Restivo de la misma Companía, sacados de los papeles del P. Simón Bandini y de
otros, de Paulo Restivo, a última das gramáticas do período das reduções (1609-1768), que
foi publicada em 1724 no povoado jesuítico de Santa María la Mayor e que, como lemos
no título, se apresenta como uma reedição da gramática de Montoya2.

2 A s edições analisadas neste artigo constam na bibliografia; as citações serão feitas com o nome do autor seguido do
número de página.

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Esse conjunto permitirá avaliar a evolução do processo de gramatização do guarani3


ao longo do tempo, no que diz respeito aos efeitos que a criação de uma escrita e uma
norma teve sobre a estrutura e as técnicas descritivas dos instrumentos linguísticos
elaborados. Aragona e Ruiz de Montoya, de um lado, representam o momento inaugural
da constituição do corpus e das primeiras descrições, apoiados no trabalho pioneiro dos
missionários franciscanos4, momento que coincide com o início de organização das
reduções. Já a língua que Restivo registra é resultado das transformações operadas ao longo
de várias décadas de trabalho missionário, quando as reduções se encontram mais
estruturadas, no auge de sua conhecida produção musical, artística e literária. Restivo conta
com o trabalho gramatical de seus antecessores e um corpus considerável de traduções. Um
evento significativo é a instalação, no início do século XVIII, de uma imprensa, na qual
foram editadas diversas obras em guarani, entre elas a referida Arte de Restivo. Interessa-
nos determinar como esses fatos se refletem na gramática, notadamente no que diz respeito
à principal inovação em Restivo, a saber, o aparecimento da citação de autores, entre eles
um índio. Isso levará a questionar-nos sobre o estatuto da escrita e da autoria no contexto
da sociedade das reduções, permitindo-nos estabelecer algumas importantes diferenças em
relação a outras tradições literárias.

1. A C onstituição do C orpus
A finalidade imediata das gramáticas de guarani era a aprendizagem da língua pelos
missionários, de forma a possibilitar a comunicação cotidiana e a instrução religiosa,
incluindo a administração dos sacramentos. Os missionários não contavam com registros
escritos nem com seu conhecimento da língua enquanto locutores, uma vez que estamos
frente a um caso de exogramatização (AUROUX, 1992) de uma língua não documentada
e desconhecida para os gramáticos. Frente a essa impossibilidade de recuo filológico, eles
fundamentaram suas descrições na observação da língua em situações de uso, produzindo

3 Estamos referindo-nos aqui ao guarani jesuítico, cujo desenvolvimento histórico não deve ser confundido com aquele
do guarani falado pela sociedade colonial e pós-colonial, atual língua oficial no Paraguai (junto ao espanhol), nem com
o do guarani dos índios que permaneceram como grupo diferenciado, os quais representam hoje aproximadamente 1 %
da sociedade nacional (cf. MELIÀ, 1992; RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2002).
4 Os primeiros trabalhos gramaticais sobre o guarani foram realizados pelo frei franciscano Luis de Bolanos, que chegou
a Assunção no último quartel do século XVII, acompanhado do frei Alonso de San Buenaventura, autor de uma gramática
de quechua.

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um conhecimento sincrônico. Era preciso, ao mesmo tempo, registrar a língua, formular as


regras, determinar a significação das palavras e traduzir textos religiosos, num trabalho de
campo realizado desde os primeiros contatos com os índios e a várias mãos, com a
colaboração de intérpretes bilíngues.
Nosso objetivo neste artigo é definir de que modo essa finalidade e as condições
iniciais de gramatização determinaram a constituição dos exemplos, no que diz respeito a
seu estatuto, sua representatividade e sua relação com a oralidade. Em seguida, interessa-
nos determinar, a partir da análise da citação de autores em Restivo, em que medida esse
trabalho inicial de gramatização sentou as bases para a estabilização do corpus, afetando o
tratamento dos exemplos e dando lugar a uma abordagem histórica dos mesmos.

1.1. A dupla tradução: estatuto e legitim idade dos exemplos


A constituição do corpus envolveu um complexo trabalho de tradução, operado em
dois sentidos e a partir de uma cuidadosa seleção: era necessário, ao mesmo tempo, traduzir
elementos da língua dos índios para que os missionários pudessem aprendê-la, evitando o
que dizia respeito às crenças religiosas e a outros elementos culturais indígenas conflitantes
com as instituições europeias, para traduzir para essa língua os elementos da doutrina e da
moral cristãs considerados convenientes de serem transmitidos aos índios. As
particularidades dessa tradução têm consequências sobre a representatividade dos
exemplos, estabelecendo critérios diferenciados, embora superpostos, de validação dos
mesmos.

1.1.1. O registro da língua


O método dos missionários corresponde, em certo sentido, ao que hoje
chamaríamos de observação participante nas pesquisas de campo. A questão da atestação
é fundamental na estratégia descritiva do gramático estrangeiro: os exemplos são
apresentados como “registros fiéis” do uso da língua pelos locutores nativos, indicados
como fonte enunciativa (os índios usam, a índia diz...):

La negacion ordinaria es, ani, como ta si del varon la India dice heê, Por decir
no se, dicen he o herugua. (Aragona 52) (sublinhado nosso)

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El imperatiuo se vsa al modo puesto arriba en la conjugación, y la negación es


la que alli està. Algunas vezes dicen ímé por emé [...]. (Ruiz de Montoya 89)
(sublinhado nosso)

A frequência funciona à maneira de jurisprudência, que legitima as escolhas


realizadas (lo ordinário esponer, a veces dicen, es mas usado, usan muchíssimo los Indios,
nuncaponen...). Notamos sobretudo em Restivo um modo de enunciar que põe em relevo
essa prática da observação e o valor do testemunho pessoal do gramático (lo hallo usado,
noto quepueden admitir, un solo exemplo hallo..). Uma grande quantidade de exemplos é
apresentada a partir de um procedimento que articula a descrição do funcionamento da
língua e a narração das circunstâncias em que tal funcionamento foi observado,
procedimento no qual o locutor é individualizado (um índio, uma criança, um índio
principal ...):

Pi es particula de pregunta, ut: marâpiquie qué ay aquí? Mbae pi aú rae qué es


esso? lo usó un Indio con unos ninos que estaban hablando en la Iglesia.
(Restivo 110) (sublinhado nosso)

Restivo chega a identificar o locutor, como vemos na apresentação do seguinte


exemplo, atribuído a Nicolás Yapuguay, discípulo do missionário e autor de textos citados
em outras passagens da gramática:

Siendo el verbo néutro ó absoluto siempre se haze con el nombre y su relativo


antepuesto al participio bae, E. G. [...] hablando Nic. de una muger, que estubo
siete dias sin poder parir, dice: cunâymembíá haguâcatu eybae. (Restivo 188)
(sublinhado nosso)

Isso confere um estatuto muito particular a esses exemplos quando confrontados à


distinção entre os exemplos inventados pelo gramático e a citação de autores. Não sendo
citações literárias, esses exemplos têm, à maneira dessas, o caráter de enunciados atestados
e referências às circunstâncias das quais foram retirados. Quanto à indicação da fonte
enunciativa, esta varia da remissão a um locutor genérico (os índios usam ), a um locutor

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individualizado, mas “anônimo”5 (um índio usou), até um locutor que é “citado” (o índio
“x ” usou). Se temos presente o sentido originário de citatio como “aquilo que é chamado,
invocado”, como nos lembra A. Rey (1995), temos que o gramático, que não é locutor da
língua nem conta com registros escritos, invoca a autoridade índio através da “citação” de
exemplos extraídos da oralidade, acompanhados de referências, de precisão variável, para
eximir-se de sua responsabilidade.

1.1.2. O trab alh o de transform ação


Mas esse método de observação tem características particulares, uma vez que o
objetivo último do registro da língua não era fixá-la, mas transformá-la, para permitir a
tradução de um discurso alheio à língua, traduzido fundamentalmente a partir de um corpus
de textos religiosos. A questão da invenção dos exemplos (FOURNIER, 2007) adquire um
sentido radical: estes ilustram e fixam um uso que não é atestado nem atestável na língua
dos índios, mas criado pelo missionário no próprio ato da gramatização; o efeito de retorno
da elaboração do instrumento linguístico sobre a língua é aqui direto e imediato. Os
exemplos são inventados a partir de analogias que se afastam do uso originário na língua
dos índios:

[che r]ecobe mi vida. Nderecobe, Hecobe su vida del Guecobe su vida propria,
como diciendo, Jesu Christo dio su vida derramo su sangre [...]. (Aragona 29)
(sublinhado nosso)

Yê, es reciproco in se ipso, y sirue a verbos actiuos, simples, y compuestos, vt.


Amõmbeú, yo digo, anembõmbeú, yo me descubro, ò confieso [...]. (Ruiz de
Montoya 80) (sublinhado nosso)

Essa tradução envolve o conhecimento do funcionamento gramatical da língua e


um trabalho considerável de transformação do léxico, operado através de diferentes
mecanismos. Algumas vezes a significação originária de certos termos é substituída, como

5 É interessante estabelecer um paralelo entre o estatuto desses exemplos extraídos da oralidade e aquele da citação
anônima no Dictionaire Critique de la languefrançaise, de Jean-François Féraud, analisado por F. Martin-Berthet (1995,
p. 59), como categoria intermediária entre o exemplo inventado e a citação literária.

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em tupã, nome de uma divindade indígena utilizado para traduzir o deus cristão6, ou são
criados neologismos, como tupâci, “mãe de Deus” (ci = “mãe”), atupãpici “comungar”
(apící = “eu tomo”) 7, etc. Quanto aos mecanismos morfossintáticos, temos na seguinte
passagem de Restivo um exemplo desse procedimento de tradução, que parte do uso do
índio para traduzir dogmas da doutrina cristã:

[...] en el primer sentido impersonal usa mas el Indio del habi l. hai que del cabi
y en el otro sentido personal mas usa del cabi l. cai que del habi y assí para
decir el Indio: no se ha tocado que es romance impersonal dice ndapocohai sin
relacion y para el otro romance personal: no tiene que tocar ó en que estribar
dice ndipocoai con la relativa. Para decir pues: la Virgen no fué tocada, fué
intacta, no ha de ser con relacion ndipococai l. ndipocohai Tupâci, sino
ndapocohai Tupâcirehe [...]. V. G. La Virgen no fué tocada del pecado, se haga
desta manera que es mucho mejor: na ângaypapocoharuguaí nânga Tupâci la
Vírgen no es á quien tocó el pecado. (Restivo 164-5) (sublinhado nosso)

A natureza dessa tradução estabelece critérios diferenciados de validação dos


exemplos: estes devem mostrar-se adequados, ao mesmo tempo, à língua dos índios e à
doutrina cristã. Alguns exemplos foram assim questionados não por questões estéticas,
retóricas ou de registro, mas por serem heréticos, como foi o caso das críticas ao corpus de
Ruiz de Montoya, numa conhecida disputa ocorrida em meados do século XVII sobre o
Catecismo publicado junto com sua gramática, em que se acusava o missionário estrangeiro
de ter utilizado, por desconhecimento da língua dos índios, termos de conotação sexual
para traduzir os nomes de Deus e da Virgem Maria. Além da autoridade linguística do
gramático, o que estava em jogo, em termos individuais, era sua autoridade moral: Ruiz
de Montoya atribui as traduções questionadas ao frei Luis de Bolanos, “de tão conhecida
virtude, opinião e santidade”, para legitimá-las8. Do ponto de vista institucional, o corpus
era avalizado pela Igreja, que aprovava as traduções9 e autorizava a publicação das
gramáticas, sempre com base no duplo critério de terem sido analisadas por bons

6 Essa tradução, ao que tudo indica, é herdada da tradição gramatical tupi.


7 Neste caso, é usada uma locução verbal, com o acusativo (tupã) incorporado entre a flexão de pessoa (a) e o verbo
(pici), para traduzir o conceito cristão, mas devemos considerar que as fronteiras entre léxico e gramática não são claras
em se tratando de uma língua aglutinante como o guarani.
8 Para uma exposição detalhada dessa disputa, confrontar Melià (1969 I, p. 130-173).
9 O primeiro catecismo em guarani foi feito por Bolanos a partir da tradução do catecismo aprovado pelo III Concílio
Limense (1583); a tradução de Bolanos foi por sua vez aprovada pelos Sínodos de Assunção de 1603 e 1631.

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conhecedores da língua dos índios e por não conterem elementos contrários à Santa Fé e
bons costumes, como lemos nas aprovações das gramáticas de Ruiz de Montoya e de
Restivo.

2. Os exemplos como suportes da oralidade


A oralidade, nessas gramáticas, não é apenas o ponto de partida necessário, em se
tratando da descrição de uma língua não documentada, mas também o ponto de chegada: a
finalidade expressa é não errar falando, entender e ser entendidos. A exposição da
explicação gramatical e a seleção dos exemplos respondem às necessidades de
comunicação oral em diferentes situações de uso, que encenam diálogos, com as fórmulas
linguísticas e os personagens correspondentes: cenas da vida cotidiana das missões,
relacionadas à prática da catequese, à confissão, aos castigos aplicados aos índios, às
conversas entre índios, entre índios e missionários, etc. Mesmo quando se trata da tradução
de textos religiosos, esses textos estavam marcados pela oralidade e não estavam
destinados a serem lidos pelos índios, mas transmitidos oralmente a eles. A base da
instrução religiosa nas missões foi, até sua dissolução, o catecismo101, apresentado na forma
de perguntas e respostas, que devia ser escutado, repetido em voz alta e memorizado pelos
índios; outros textos religiosos que constituíam o corpus nas missões, como sermões e
conferências espirituais, eram também objeto de repetição (cf. MELIÀ, 1992).
Os exemplos são tratados através de uma metalinguagem da enunciação, isto é, da
descrição do modo de dizer na situação de uso; eles põem em evidência fatos considerados
para além do domínio gramatical, trazendo à tona a relação da língua com a exterioridade,
algo incomum nos instrumentos linguísticos da época11. São indicados elementos do
contexto semântico-pragmático, incluindo explicações referidas ao locutor:

Pucui quando viendo algo de lexos, preguntamos que es aquello? Mbaè


pucui, Aba pucui, quien es aquel? mostrando como si no lo vieramos,
sino oyeramos solamente, como es un estruendo, o otra cosa? entonces
se pregunta con aipo diciendo mbaèpaipo que es esto. (Aragona 57-8)
(sublinhado nosso)

10O catecismo utilizado com os índios era o mesmo destinado na Europa às crianças e aos iletrados.
11Retomamos aqui as afirmações de Nunes (1996, p. 93) em relação ao método lingüístico dos jesuítas na gramatização
do tupi, no século XVI.

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[Advérbios particulares]
Tií, no, con desden.
[...]
Ahe. ola, llamando.
Rei.
Enei. ea tu, animando.
(Ruiz de Montoya 146-7) (sublinhado nosso)

Las partículas pe, pãnga, piã, paco, pico, pugui [...] son partículas que sirven
para conciliar la atencion antes de narrar alguna cosa [...].
Lo mesmo hazen las partículas afirmativas como naco, nero, nico, ro, nugui
&c., ut:
chanero miradlo pues, como quien ve la cosa [...].
Charo l. chairo mirad aquello, sin que se aya hablado de la cosa.
Chaterô mirad, atended, como mostrandole algo. (Restivo 112) (sublinhado
nosso)

3. A citação de autores em Restivo


Resta-nos determinar, a partir do que foi exposto, como deve ser entendida a citação
de autores em Restivo, isto é, em que medida o fato aponta para o surgimento de uma
tradição escrita e como isso afeta o estatuto e tratamento dos exemplos, notadamente no
que diz respeito à sua relação com a oralidade. Analisaremos a seguir a natureza e a forma
dessas citações, pondo-as em relação com os exemplos extraídos da oralidade, de modo a
determinar qual é o funcionamento da escrita e da autoria nessa gramática.

3.1. As referências
Restivo cita autores estrangeiros — religiosos e leigos — e um índio, Nicolás
Yapuguay, os quais menciona em sua apresentação ao leitor:

Los autores, que se citan, son: Ruiz, Bandini, Mendoza, Pompeyo, Insaurralde,
Martinez y Nicolas Yapuguay, todos son de primera classe. (Restivo 6)

São omitidos nessa apresentação Aragona, Mendieta e Ignacio, também citados,


além de Gomez e Altamirano, que aparecem no tratado de partículas que se segue à
gramática. Restivo não fornece maiores referências desses autores, apresentando-os como
sendo conhecidos pelos leitores. Quanto às fontes textuais, as referências, quando
indicadas, não são mais precisas. Trata-se, em todos os casos, de anotações linguísticas e

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de traduções: Restivo menciona sermões, doutrinas, composições, anotações, papeis, tal


como anunciado no título de sua gramática.
Restivo oscila entre os seguintes procedimentos na apresentação das citações:

— exemplo + autor

Este é o procedimento mais frequente. Restivo limita-se a citar o autor, sem


indicações sobre o texto do qual foi extraído o exemplo:

Con esta particula rire y negacion se haze el romance »si no ubiera« [...]. Item
á vezes da este romance »por no aver«: penamoi yeta ocarai eymbire, oho
anaretame rae por no aver sido vuestros abuelos Christianos, se fueron al
infierno (Mend.) [...]. (Restivo 120-1) (sublinhado nosso)

— exemplo + autor + texto

Algumas vezes, a fonte textual é mencionada, com um grau de precisão variável.


Ela pode ser identificada como um/o sermão (uma/a doutrina...) X ’:

Nota que muchas vezes usan del rüguay sin la partícula na, ut: anebê teçaori
catu pipe hece omaêmo (Band. sermon de la Purific.) por esso le mira no con
ojos alegres. (Restivo 47) (sublinhado nosso)

ou simplesmente como um/o sermão (uma/a doutrina) :

Preguntando en una doctrina Nic. porqué las obras buenas de los que estan en
pecado mortal no tendrán premio en la otra vida responde: Tupâ gracia
hembiapo mbocatupiri harangue porey ramboé por falta de la gracia de Diós
que avia de aver hecho buenas sus obras [...]. (Restivo 67) (sublinhado nosso)

Essa imprecisão pode ser explicada pela natureza dos textos citados. Estes não são,
como em outras tradições gramaticais, obras literárias (religiosas ou não) escritas por
autores, enquanto “usuários” privilegiados da língua a serem tidos como modelos, mas
registros do uso corrente da língua e traduções feitas por locutores capazes, no caso de
Yapuguay, ou por estrangeiros lenguarazes, isto é, bons conhecedores da língua, nos
demais casos. Mais do que a autores, Restivo recorre assim a autoridades na língua, cuja

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simples menção basta para avalizar suas descrições, mesmo em certas passagens em que
os exemplos são inventados pelo gramático e legitimados por analogia: “todos se hallan tal
qual vez usados de Martinez que fue gran lenguaraz y del Padre Simon Bandini, príncipe
de esta lengua”; “son modos muy usados en las composiciones de Indios y Padres
lenguaraces” (Restivo 163, 194).
As citações textuais funcionam de modo a atestar o uso corrente dos índios, como
vemos explicitado em diversas passagens pelo modo de apresentar os exemplos (os índios
usam/dizem... + citação). Na maioria dos casos essa atestação é feita por estrangeiros, o
que produz uma discrepância entre a fonte enunciativa que introduz o exemplo (o índio) e
a citação de autor estrangeiro para legitimá-la:

Ma l. mabae, qual es, ut: ma pãnga qual es? Ma nabepãnga como es, de que
tamano? A vezes dicen: quien, ut: mabae upe guarâ para quien? y se le puede
anadir ace, ut: mabae acepíri pânga ereyu raé (Band.) para quien has venido?
(Restivo 27) (sublinhado nosso)

É na qualidade de conhecedores do uso corrente da língua do índio, enquanto


tradutores ou, ainda, como enunciadores das regras gramaticais (“es observación del padre
Bandini”, “las reglas generales que da el P. Antonio Ruiz...” [Restivo 116, 145]), que esses
autores são invocados pelo gramático para caucionar suas próprias observações.
Assistimos sempre a um trabalho de campo, de observação e transformação da língua, que
neste momento do processo de gramatização se encontra mais amplamente registrado pela
escrita. Restivo explicita através da citação de textos o caráter coletivo da autoria que desde
o início caracterizou esse trabalho gramatical, o que é expresso já no próprio título de sua
Arte.

3.2. A oralidade e a escrita no tratam en to dos exemplos


Não existe assim oposição, mas um continuum, no tratamento dos exemplos
extraídos do uso corrente da língua e as citações de textos escritos, uma vez que a referência
é em todos os casos esse uso, como observamos nos seguintes exemplos, o primeiro
extraído de um texto escrito, o segundo da observação da oralidade:

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Animando á los dichos gerundios algun pronombre paciente quando se pudiere,


aun con néutros y absolutos se puede usar; assí lo usó Nic. en un sermon de la
concepcion explicando aquellas palabras: tu insidiaberis calcaneo eius, ipsa
conteret caput tuum, desta suerte: erehaâ haâ au tey yepe tenânga haebae cuna
pita rehe ymombebo mburu ndererecobo, el pronombre paciente es el nde.
(Restivo 151) (sublinhado nosso)

El pronombre relativo es haé [...].El Ablat. haze haépipe l. ypipe; haépipe ayu
en ella vine, assí lo usó un Indio hablando de una canoa [...]. (Restivo 25)
(sublinhado nosso)

A identificação das fontes escritas tem, muitas vezes, a função de situar o objeto do
discurso citado e contextualizar semanticamente os exemplos, num procedimento similar
ao adotado em relação aos exemplos extraídos a oralidade, como vemos nos seguintes
exemplos, um extraído de um sermão de Bandini, outro observado por Restivo numa
confissão (que é citado no tratado de partículas):

Despues de aver hablado en un sermon de la pureza de María SS. el P. Band.


acaba el período desta manera: ma eyteytamo pae Tupâ ybitiruçu Libano ya
recoari catu hecomboyoyabo aracae pues de balde avia Diós de comparar? [...].
(Restivo 194)

 narigal l. âng sombra, sospecha, representacion: quarahiâme á la sombra del


sol [...]; confessandose un Indio de dos pecados ciertos, no se acordaba bien del
terzero y lo explicó de essa manera: ymomboapiyâyâ chebe [...]. (Restivo 216)

É preciso ter presente a própria natureza dos textos citados, que como foi assinalado
estavam marcados pela oralidade e destinados a serem transmitidos oralmente aos índios.
As citações textuais são frequentemente introduzidas por verbos locutivos e apresentadas
de acordo com uma estrutura dialogai (“hablando el padre Pompeyo de... dice...”;
“preguntando Nicolás... responde...” etc.). Isso produz uma indistinção em muitos desses
exemplos, uma vez que essas citações não têm, a rigor, marcas formais que as distingam e
que a identificação da fonte enunciativa, como havíamos visto, pode também caracterizar
exemplos extraídos da oralidade:

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hablando Nic. de una muger. que estubo siete dias sin poder parir, dice: cunâ ymembí á
haguâcatu eybae. (Restivo 188) (sublinhado nosso)

hablando el P. Aragona de aquella estrella que guió los magos y se paró encima de
Belen. dice: henonde rupi oata ohobo, mitâ Jesus áhague á ramo guendí catupírí
reropítabo coíte: cone hini raé penembieca oyabo berami andubo caminando por
delante dellos y se paró con sus hermosíssimos resplandores encima del lugar donde
avia nacido el nino Jesus. como si dixera: aquí está á quien buscais [...]. (Restivo127-
8) (sublinhado nosso)

Concluímos muitas vezes que se trata de citações de textos escritos e não


observados pelo gramático no uso oral pelo objeto do discurso citado (traduções religiosas
versus temas da vida cotidiana. como nos exemplos de Aragona e Yapuguay supra) ou por
nosso conhecimento histórico de que os autores citados não são contemporâneos de Restivo
(como Aragona). o que indica que se trata de registros escritos. Mas alguns textos citados
registram exemplos não religiosos extraídos da comunicação cotidiana. como o seguinte
exemplo de Martínez. contemporâneo do gramático:

Aviendo segundo verbo aunque se dexe la partícula tamo l. amo con los tiempos
de subjuntivo y gerundios. tambien dará el romance de »como si« E.G.
marânderecoeyramo pae, Pay ndenupâuca eymi rae (Mart.) como si no faeras
vellaco. avia el Padre de dexar el mandar açotarte [...]. (Restivo 193)
(sublinhado nosso)

3.3. O que é um au to r (índio)?


Esses procedimentos indicam que a escrita não representa nessas gramáticas um
registro à parte. separado da oralidade. mas um subsídio para a comunicação oral com os
índios. Os autores citados não são escritores de obras em guarani. mas tradutores. cuja
autoridade remete sempre. em última instância. àquela do locutor da língua. Quanto ao
autor índio. sua função é a de tradutor-intérprete nativo já alfabetizado ao qual recorre o
missionário estrangeiro para confirmar suas descrições ou (re)escrever suas traduções de
modo mais adequado à língua descrita.
O caso de Yapuguay. o mais célebre escritor em guarani. é um bom exemplo para
avaliar o estatuto da autoria indígena. Ele assina dois livros impressos nas reduções: o
primeiro. publicado no mesmo ano que a gramática de Restivo (1724). é a Explicacion de

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el catechismo en lengua guarani por Nicolas Yapuguai con direccion del P. Paulo Restivo
de la Companía de Jesús; o segundo, Sermones y exemplos en lengua guarani, por Nicolás
Yapuguay. Con direction de un religioso de la Companía de Jesus. En el pueblo de S.
Francisco Xavier, é publicado três anos mais tarde, em 1727.
O Prefácio de Explicacion de el catechismo..., escrito por Restivo, é muito
elucidativo. Ele mostra que a autoria do índio não corresponde à concepção moderna de
autor na tradição ocidental. Para Foucault, o autor de uma obra é, no sentido moderno, o
princípio de unidade do texto, o lugar originário da escrita, a quem se pode atribuir o poder
criador, o projeto, a responsabilidade (FOUCAULT /1969/ 2002, p. 50). Todos os discursos
que comportam a função autor comportam uma pluralidade de “eus”, que asseguram essa
função: o eu do prefácio, das conclusões, o que fala do significado do trabalho, dos
obstáculos encontrados, dos resultados obtidos, dos problemas que ainda se põem (ibidem ,
p. 55-56). Vejamos como isso se coloca no Prefácio do livro assinado por Yapuguay:

Muy conocida, y Superior, á lo que puede caber en un Indio, es la capacidad


desse Nicolas Yapuguay Casique y Musico de S. MARIA [...]. De esse me he
querido valer yo, para hacer estas Doctrinas que te ofrezco. [...] La frase para
Doctrinas há de ser buena si, pero llana, para que aun los ninos la entiendan, y
assi he puesto particular cuydado de que las Compusiesse con estilo no muy
levantado, pero bueno; la frase es Suya, yo no hize mas que darle la materia que
hè sacado del Thesoro de la Doctrina Christiana del Cardenal Roberto
Bellarmino, del S. D. Nicolas Turlot, del P. Fr. Bernardino Mercader de la
Orden de S. Francisco en una obrita que intitula Nucleus Catecheticus y del
Catechismo Theologico del P. Francisco Pomey de Nuestra Compania. [...].
Algunas Doctrinas han salido algo largas, pero esso no es falta, porque podras
mi Lector dexar lo que te pareciere. Al breve ira un breve compendio del
Catechismo Limense. Te ruego, las recibas con el mismo animo con que yo te
las ofrezco [...]. (cf. Melia 1969, I: 212)

O lugar originário da escrita representado no Prefácio é Restivo: todos os “eus”


remetem a ele (me he querido valer yo, la materia que he sacado, estas doctrinas que te
ofrezco, mi Lector). Restivo atribui-se o projeto da obra, explicando os cuidados com o
estilo (no muy levantado pero bueno), a seleção dos textos traduzidos (uma compilação de
catecismos), os resultados (algunas Doctrinas han salido unpoco largas) e a continuidade
do trabalho (Al breve ira un breve compendio del Cathecismo Limense). Yapuguay

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representa o falante nativo capaz que interpreta e rescreve em sua língua a obra de seu
mestre (la frase es Suya / yo no hize mas que darle la materia).
É preciso considerar o controle sobre a prática da escrita exercido pelos jesuítas em
relação aos índios. A alfabetização limitava-se a uma pequena elite constituída, em sua
maioria, pelos filhos de caciques e outras autoridades indígenas e ainda essa elite
alfabetizada tinha um domínio limitado da escrita e da leitura. Mais do que escritores,
formava-se copistas, inclusive em castelhano e em latim, que desenvolvessem a arte da
caligrafia e fossem capazes de fazer leituras em voz alta, sem que isso indicasse um
domínio dessas línguas. Quanto à escrita em guarani, ela esteve dirigida ao missionário
estrangeiro (os títulos, os prefácios e as notas explicativas das obras de Yapuguay estão
escritas em espanhol), como subsídio para seu trabalho catequético, e foi sempre exercida
sob estreita tutela, como indicam o Prefácio e os títulos das referidas obras de Yapuguay
(que assinalam a direção do missionário), ou algumas passagens na gramática de Restivo
quando cita seu discípulo (Nic. en una doctrina que le hize hazer... [Restivo 213]).

4. A instabilidade do corpus
O fato de a finalidade imediata das gramáticas - a comunicação oral com os índios
- ter permanecido estável representou um critério de instabilidade do corpus constituído.
Uma vez que se tratava de entender e ser entendidos, o que não era entendido em um
espaço/tempo determinado devia ser excluído. Não há lugar para arcaísmos nessas
gramáticas. Ao mesmo tempo, o fato de esse trabalho de gramatização não ter sido
centralizado por um Estado nacional, a extensão geográfica considerável e as dificuldades
de comunicação entre as reduções, são outros fatores que atentaram contra uma maior
fixação do corpus.
A tarefa gramatical empreendida nesse segundo momento da gramatização
representado por Restivo apresenta-se, assim, como uma atualização dos primeiros
trabalhos gramaticais. Martínez, autor citado por Restivo, faz uma nova tradução do
catecismo de Ripalda, base da tradução do Catecismo de Ruiz de Montoya, que poucas
décadas depois era considerada arcaica e de difícil compreensão. O mesmo acontece com
o Tesoro de la lengua guarani, dicionário publicado por Ruiz de Montoya em 1639, que
Restivo atualiza em Phrases selectas y modos de hablar escogidos y usados en la lengua

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guaraní, sacados del Thesoro escondido que compuso el Padre Antonio Ruiz de nuestra
Companía de Jesús para consuelo y alivio de los fervorosos misioneros, principiantes en
dicha lengua12. O Prefácio de Phrases selectas expõe a situação apontada. O texto atesta,
em primeiro lugar, a grande variabilidade da língua, que ainda em tempos de Restivo
produzia problemas de incompreensão mesmo em povoados próximos entre si. Restivo
expõe também as críticas que circulavam em relação a Ruiz de Montoya, pelo fato de que
a língua registrada por ele já não se entendia, o que tornava sua leitura uma “perda de
tempo” :

.. .algunos vocablos, y modos de hablar, que aunque en la realidad son vocablos


y terminos proprios de los naturales, pero Ya per non vsum, se han antiquado y
hecho casi inteligibles [sc]. [...]. Y no por esso [...] hemos de condenar ni tachar
el tesoro [...]. Confiesso hauer sido Yo uno de los que al principio, no hazian
caso del dicho Tesoro; Y no niego tambien reconocer la falta, no en el, sino en
mi; Ya por no penetrar bien los terminos, Ya por auer oydo, que era tiempo
perdido leerle, Ya tambien porque leyendo algunos parrafos a los naturales no
me entendian [...]. (cf. MELIÀ, 1969, I, p. 62-3)

O valor instrumental da língua, como se depreende dessas críticas, continuou a


orientar o trabalho realizado neste segundo período da gramatização, fazendo com que a
abordagem sincrônica do corpus prevalecesse, tal como indica Restivo ao justificar seu
trabalho de atualização do Tesoro:

Mas con dezeo de que no se ocultasse mas, a los ojos de tanto feruoroso
missionero, y aconsejado de algunos P.es, que me lo pidieron, me determine
sacarlo en limpio escogiendo los terminos mas vsados, y dexando los vocablos,
que por no tales, no se entienden: tomando este pequeno trabajo, con dezeo de
ayudar, y dar algun aliuio a los Missioneros princiantes [sic], desde los
principios de sus feruorosos trabajos en el estudio deste Idioma guãrãni.
(ibidem, p. 63)

Considerações finais
A análise realizada permitiu apontar algumas características do corpus de exemplos
nas gramáticas de guarani e sua relação com as condições históricas de elaboração dessas12

12 O manuscrito é de 1687, data anterior à chegada de Restivo às missões (1691), mas Melià (1969, II, p. IV-V) atribui o
fato a um erro do copista e atribui a autoria ao missionário siciliano.

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gramáticas, o que inclui sua finalidade política, a imagem da língua e do locutor e o tipo
de sociedade instituída. A gramatização do guarani não surgiu de um projeto de construção
de uma unidade nacional, apoiado na ideia de excelência da língua, mas da necessidade de
controle político de seus locutores, os quais foram mantidos, ao que tudo indica, à margem
desse processo, que permaneceu orientado ao missionário estrangeiro. A língua não
representou um patrimônio cultural a ser conservado e cultivado, mas manteve um valor
instrumental, o que continuou a afetar as estratégias de constituição dos exemplos, sua
permanência e sua relativa instabilidade. Esses fatores estabelecem algumas diferenças
importantes em relação à gramatização de outras línguas, como os vernáculos europeus ou
mesmo certas línguas no contexto colonial americano, como o português no B rasil13,
diferenças essas que devem ser consideradas para compreender a especificidade do
trabalho gramatical dos jesuítas em relação às línguas ameríndias 14. O modelo de
subjetivação promovido pelos exemplos nas gramáticas de guarani não é o sujeito burguês
dos Estados liberais europeus, mas o discípulo obediente, sob a estrita tutela do mestre, o
que responde ao projeto político da sociedade das missões. Se essas condições se
modificaram e os índios se apropriaram desse trabalho de gramatização é algo a ser
analisado com cuidado, mas nas gramáticas analisadas, pelo que concluímos do
funcionamento dos exemplos, não há indícios de que isso tenha acontecido.

Referências
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AUROUX, S. ORLANDI, E. P. e MAZIERE, F. (Orgs.). L ’hyperlangue brésilienne.


Langages, 130. Paris: Larousse, 1998.

13 Ver, a esse respeito, os artigos sobre a gramatização do português brasileiro em Auroux, Orlandi e Mazière (1998) e
em Orlandi (org.) (2001).
14 É interessante confrontar, à maneira de comparação, o artigo de Chantal Girardin (1995) sobre o exemplo no dicionário
Dictionnaire Royal Augmenté, de François-Antoine Pomey, elaborado de acordo com a doutrina pedagógica dos jesuítas
junto à elite europeia; e, de outro lado, o trabalho de Nunes (1996) sobre as descrições lexicográficas do tupi realizadas
pelos jesuítas do Brasil.

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RUIZ DE MONTOYA, A. /1640/ 1993. Arte de la lengva gvaraní. Asunción : CEPAG


(edição fac-similar; apresentação e notas de B. Melià).

RESTIVO, P. /1724/ 1892. Linguae guarani grammatica hispanica a R P. jesuita Paulo


Restivo, secundum libros Antonii Ruiz de Montoya, Simonis Bandini aliorumque, adjecto
particularum lexico anno MDCCXXIV in civitate Sanctae Mariae Majoris, edita et "Arte
de la lengua Guaraní" inscripta, sub auspiciis et impensis illustrissimi Domini Petri,
principis Saxo-Coburgensis Gothensis, ex unico quod in Europa noscitur ejusdem
serenissimi principis exemplari redimpressa, necnon praefatione notisque instructa opera
et studiis Christiani Frederici Seybold. Stuttgart: G. Kohlhammer.

Revista Porto das Letras, Vol. 9, N° 2. 2023


Instrumentos Linguísticos
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IN STRUM EN TO S LIN G U ÍSTIC O S E LÍNGUA NACIONAL:

UM A C O N TEC IM EN TO NO BRA SIL DO SÉCULO X IX 1

LIN G U ISTIC IN STRUM ENTS AND NATIONAL LANGUAGE:

AN EV EN T IN BRA ZIL IN TH E 19TH CENTURY

Eduardo Guimarães

DL-IEL/Laberub

Unicamp

Resumo: Este texto se dedica a analisar um acontecimento decisivo no processo brasileiro de


gramatização. Trata-se do estabelecimento do novo Programa de Português para os Exames
Preparatórios no Brasil, estabelecido em 1887. Meu objetivo específico é procurar responder a
duas perguntas: 1. Este acontecimento, ou aquilo que ele estabelece pode ser tomado como um
instrumento linguístico? 2. O papel deste acontecimento na constituição da Língua Nacional do
Brasil está ligado a seu caráter de instrumento linguístico? Um aspecto fundamental aqui é o
relacionado com a questão da língua nacional e oficial de um Estado-nação. O acontecimento do
Programa significa assim um passado específico, e também projeta todo um novo futuro ao
catalisar os estudos sobre a língua portuguesa naquele momento. Nesta medida e em virtude de
sua performatividade, sustentada pelo Estado e pela Autoridade do Colégio Pedro II (já que o
Programa é estabelecido por Fausto Barreto) consideramos que o Programa é um instrumento
gramatical, mas ele não é um instrumento da ordem da normatização da língua, mas da
normatização do que se deve ensinar sobre a língua e como. Nesta medida consideramos que se
trata de um meta-instrumento linguístico.
Palavras-chave: instrumento gramatical, acontecimento, língua nacional, história das ideias
linguísticas, exames preparatórios de 1887.

Abstract: This text aims at analyzing a decisive event in the Brazilian grammatization process.
This is the establishment of the new Portuguese Program for Preparatory Exams in Brazil,
established in 1887. My specific objective is to seek to answer two questions: 1. Can this event,
or what it establishes, be taken as a linguistic instrument? 2. Is the role of this event in the
constitution of the National Language of Brazil linked to its character as a linguistic instrument?
A fundamental aspect here is related to the issue of the national and official language of a nation-
state. The event of the Program thus signifies a specific past, as well as projects a whole new
future by catalyzing studies on the Portuguese language at that time. To this extent and due to its
performativity, supported by the State and the Authority of Colégio Pedro II (since the Program
is established by Fausto Barreto), we consider that the Program is a grammatical instrument, but
it is not an instrument of the order of standardization of language, but the standardization of what

1 Uma primeira versão deste texto foi publicada em francês sob o título “Instruments linguistiques et langue
nationale: un événement au Brésil au XIXe siècle”, no livro Penser l ’histoire des savoirs linguistiques:
hommage à Sylvain Auroux, de organização de Sylvie Archaimbault, Jean-Marie Fournier e Valérie Raby
(ENS Éditions, 2014).

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Instrumentos Linguísticos
499

and how should be taught about the language. To this extent, we consider it to be a linguistic
meta-instrument.
Key-words: Grammatical instrument; Event; National Language; History of Linguistic Ideas;
Preparatory Exams of 1887.

Subm etido em 28 de julho de 2023.


A provado em 04 de setem bro de 2023.

Introdução
Vou me dedicar aqui a analisar um acontecimento que julgo decisivo no processo
brasileiro de gramatização. Trata-se do estabelecimento do novo Programa de Português
para os Exames Preparatórios no Brasil, estabelecido em 18872.
Este acontecimento traz uma regulação didático-pedagógica a respeito da língua
nacional para acesso à universidade. Vou neste texto tratar deste acontecimento a partir
da análise do texto em que se apresenta. Tomo este acontecimento, então, como um
acontecimento enunciativo. Meu objetivo específico é procurar responder a duas
perguntas: 1. Este acontecimento, ou aquilo que ele estabelece (o novo Programa para os
Exames Preparatórios) pode ser tomado como um instrumento linguístico? 2. O papel
deste acontecimento na constituição da Língua Nacional do Brasil está ligado a seu caráter
de instrumento linguístico?

1.Prelim inares
Acompanhando os estudos sobre a gramatização (Auroux, 1992), sabemos como
ela pode se dar como endogramatização ou exogramatização. Ou seja, temos uma
distinção que leva em conta no processo de gramatização a relação do gramático enquanto
participante, ou não, do grupo social de falantes da língua que se gramatiza. Em outras
palavras, vê-se uma diferença no processo na base da consideração da língua e suas
condições de enunciação. No primeiro caso trata-se da produção de instrumentos
gramaticais (gramáticas, dicionários, etc) da língua de que se é falante enquanto
participante de um “grupo social” específico caracterizado por esta língua; no segundo

2 Tendo em vista os objetivos do projeto “História das Idéias Linguísticas: Construção de um Saber
Metalingüístico e a Construção da Língua Nacional” (coordenado por Eni Orlandi entre os anos 1992­
1995), fiz (Guimarães, 1997a) uma primeira análise deste documento com o objetivo de observar, no final
do século XIX, como funcionavam as ciências da linguagem como parte do corpo social em que se
formulam, com o objetivo de compreender, não suas funções, mas como elas funcionam na sociedade.

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Instrumentos Linguísticos
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trata-se da produção de instrumentos gramaticais de uma língua feita por quem não é do
grupo social por ela caracterizado.
O que essa diferença coloca, já na própria distinção, é que o interesse pelo
conhecimento sobre as línguas não se apresenta como historicamente neutro. Ou seja, esta
caracterização de dois processos considera que a busca por um objeto de conhecimento
como a linguagem, e mais especificamente as línguas, tem sentidos diferentes,
dependendo da relação política na qual ela se dá.
O movimento da gramatização massiva das línguas, como nos mostra Auroux
(1992), se deu ligada num processo de endogramatização relativo ao que chamamos hoje
línguas nacionais. E este processo se dá concomitante ao da ampliação de domínios
territoriais e políticos (fim do século XV, início do XVI). E esta ampliação de domínios
motivou, com freqüência, processos de exogramatização. No processo de colonização do
Brasil isso se deu, por exemplo, com o tupi.
Por outro lado, o processo de colonização iniciado por volta do século XVI acabou
por criar condições muito particulares no que diz respeito à relação entre línguas e entre
línguas e seus falantes, que são por elas determinados3. Um aspecto fundamental aqui é
o relacionado com a questão da língua nacional e oficial de um Estado-nação.
Os trabalhos que vimos realizando no Brasil, desde o início de nossa participação
no projeto História das Idéias Lingüísticas4, levaram em conta este aspecto particular.
Trata-se do estabelecimento de uma língua nacional que se apresenta como a adoção de
uma língua da qual de certo modo se separa, condição envolvida no processo de
colonização. É neste sentido que desde o início de nossas pesquisas em história das ideias
linguísticas consideramos para a língua portuguesa o que chamamos “gramatização
brasileira do português” (Orlandi, 1997; Guimarães, 1994). Não se tratava naquele
momento, o século XIX, de inaugurar a gramática do português. Isto fora feito no século
XVI por Fernão de Oliveira (1536), a partir do qual tantas outras gramáticas foram
publicadas. Exatamente como parte de um processo histórico ligado às grandes
navegações, a partir do que Portugal tomou posse do que é hoje o Brasil, passando a
explorar e a expandir este espaço e a colonizá-lo.

3 A este respeito ver, por exemplo, as colocações que faço sobre o que chamo (Guimarães, 2002) espaço
de enunciação e a categoria do falante enquanto categoria enunciativa e não psico-fisiológica.
4 Do final dos anos 1980 em diante.

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Para os brasileiros, no século XIX, tratava-se, logo após a independência em 1822,


de constituir a gramática brasileira da sua língua nacional. Este gesto traz consigo uma
contradição incontornável: esta língua nacional é a língua de um outro povo do qual o
Brasil se separava (situação similar a tantas outras no processo de colonização).
Este processo brasileiro de gramatização, tal como Orlandi (1997, 2002, 2009),
Guimarães (1994, 2004) e Orlandi e Guimarães (1998 e 2007) já mostraram, apresenta
algumas características:
- a descrição da língua portuguesa tal como praticada no Brasil com atenção
específica sobre características da língua no Brasil, com atenção mais específica sobre o
léxico;
- a autoria brasileira de gramática5;
- o argumento do novo e a contestação de um tradição (a gramática filosófica na
sua versão portuguesa - Jerônimo Soares Barbosa, entre outros);
Assim o que caracteriza esta gramatização envolve fortemente, além da descrição
da língua, aspectos enunciativo-discursivos relevantes. E este processo estabelece muito
rapidamente uma história brasileira da gramática. Já em 1907, Eduardo Carlos Pereira
(1855-1923), no início do Prólogo à Gramatica Expositiva nos diz: “Desde que Júlio
Ribeiro imprimiu uma nova direção aos estudos gramaticais, os velhos moldes foram
rompidos, e um amplo conflito se estabeleceu entre a escola tradicional e a nova
corrente.” (Pereira, 1907)
Ou seja, Pereira, ao falar da história da gramática, considera-se no horizonte
brasileiro6.

2.O Novo program a p a ra os exames p rep arató rio s


Como disse no início, pretendo apresentar aqui a análise de um acontecimento
decisivo para a história dos estudos sobre o português do Brasil e a constituição da Língua
Nacional: o estabelecimento, em 1887, do novo Programa de Português para os Exames
Preparatórios. Como disse antes espero dar uma resposta a duas perguntas que julgo
importantes: este acontecimento pode ser tomado como instrumento linguístico? O papel
deste acontecimento na constituição da Língua Nacional do Brasil está ligado a seu caráter
de instrumento linguístico?

5 Este aspecto é, segundo Orlandi, central neste processo. Sobre isso ver Orlandi (1997, 2002).
6 Sobre esta questão ver Guimarães (1997b, 2004, 2007).

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Os exames preparatórios eram, no século XIX, no Brasil, os exames que davam


acesso à universidade. Em 1887, a pedido do Diretor Geral da Instrução Pública, Emídio
Vitório, Fausto Barreto (1852-1908), Professor do Colégio Imperial de Pedro II,
estabelece o novo Programa para os exames preparatórios de língua portuguesa. Trata-se,
portanto, de um programa oficial, estabelecido por ordem do diretor geral da Instrução
Pública, Emídio Vitório, e organizado por um professor do Colégio Imperial de Pedro II,
instituição que teve um papel modelar em todo o século XIX e boa parte do século XX
no Brasil. Este seu caráter mudou depois da criação dos cursos superiores de Letras que
começaram a ser criados na década de 1930 - 1934 na USP e 1939 na Universidade do
Brasil no Rio de Janeiro. Como fundamento para a análise apresento a seguir uma
descrição sintética do Programa.

2.1. A presentação do P ro g ram a


O Programa7 estabelece duas provas para os exames preparatórios: uma escrita e
outra oral. A escrita era “composição” sobre assunto a ser sorteado no momento da prova
a partir de uma lista de pontos organizada diariamente pela comissão julgadora. A prova
oral consistia de uma análise “fonética, etimológica e sintáxica” a ser feita sobre um
trecho escolhido pela comissão a partir de um livro de uma lista que constava do programa
em questão; e de uma exposição de um dos pontos apresentados pelo programa, sendo a
escolha do ponto também feita por sorteio.
Tal como estabelece o Programa “O exame de português precederá a qualquer
outro” (Programa, p. 85).
Os pontos orais constavam de 46 itens. Ressaltemos alguns aspectos. Comecemos
pelo primeiro item: “Observações gerais sobre o que se entende por gramática geral,
gramática histórica ou comparativa e por gramática descritiva ou expositiva. Objeto da
gramática portuguesa e divisão do seu estudo. Fonologia: os sons e as letras; classificação
dos sons e das letras; vogais; grupos vocálicos; consoantes; grupos consonantais; sílaba;
grupos silábicos; vocábulos; notações léxicas”8.

7 Vou utilizar a publicação do Programa para os Exames Preparatórios feita em Procellarias, de Julio
Ribeiro (1887). As páginas citadas quando localizo elementos do Programa se referem a esta edição.
8 Programa p. 87-88.

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Item 6: “Morfologia: estrutura da palavra; raiz; tema; terminação; afixos; Do


sentido das palavras deduzido dos elementos mórficos que as constituem;
desenvolvimento de sentidos novos nas palavras”9.
Os itens de 7 a 11 tratam das classes de palavras. As classes que aparecem
diretamente nomeadas são substantivo, adjetivo, pronome, verbo, palavras invariáveis101.
Item 12: “Agrupamento de palavras por famílias e por associação de idéias. Dos
sinônimos, homônimos e parônimos” 11.
Os itens de 17 a 20 são sobre formação de palavras. Nestes itens encontra-se, por
exemplo, “Das palavras variáveis (e invariáveis) formadas no próprio seio da língua
portuguesa” 12.
Os itens de 21 a 28 são sobre etimologia portuguesa13.
Os itens de 29 a 41 são sobre sintaxe. O item 29 é “Da sintaxe em geral. Breves
noções sobre a estrutura oracional, do Latim popular e do Latim culto. Tipos sintáxicos
divergentes na língua portuguesa” 14. O item 40 é “da colocação de pronomes pessoais” 15.
Os itens de 42 a 46 reúnem aspectos diversos como figuras de sintaxe, vícios de
linguagem, brasileirismos, dialeto, etc.16
Pela descrição que acabamos de fazer, no presente da sua enunciação, o Programa
formula uma mudança de posição. Esta mudança se caracteriza pela adoção da lingüística
histórica, afastando-se da gramática filosófica, e por aspectos muito particulares como o
lugar dado à morfologia, separado da etimologia, e à fonologia. Outro aspecto é que o
programa coloca como um dos seus itens a questão da colocação dos pronomes pessoais
átonos, problema “símbolo” de disputas entre a posição de gramáticos portugueses e
brasileiros, e a questão dos brasileirismos e do dialeto, elementos também decisivos na
caracterização das diferenças do português do Brasil naquele momento. As mudanças que
o Programa formula receberam a atenção de alguns comentadores da época, tal como
veremos a seguir.

9 Idem, p. 88
10 Idem, p. 88-89.
11 Idem, p. 89.
12 Idem, p. 89.
13 Idem, p. 90.
14 Idem, p. 90.
15 Idem, p. 91.
16 Idem p. 92.

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2.2.O P ro g ram a e os gram áticos brasileiros nos anos 1880


Na época do aparecimento do Programa, Júlio Ribeiro (1845-1890), que já
publicara sua Grammatica Portugueza em 1881, apresenta-o, como disse acima, em
Procellarias17 e faz sobre ele alguns comentários. Um deles é que o programa
apresentado se formulava em bases científicas. Segundo as suas próprias palavras: “Não
há o que negar; é este programa organizado cientificamente, sobre as bases largas, sólidas,
da ciência da linguagem” (Ribeiro, 1887, 92). E para sustentar esta sua afirmação ele diz
que o programa distingue como parte da gramática a lexicografia e a sintaxe (idem). Deste
modo, segundo ele, a ortografia não é mais considerada uma parte autônoma da
gramática, como constava na gramática geral. Ao lado disso, ressalta que o Programa
pede conhecimento em morfologia, de modo a que esta não está submetida à etimologia.
Por isso se pode pedir o estudo do grupamento das palavras por famílias e por associações
de idéias (idem, 93).
De outra parte, podemos observar o que um outro gramático da época diz do
programa. Maximino Maciel (1866-1923), que em 1887 publicou sua Grammatica
Analytica, no seu texto “Breve Retrospecto sobre o Ensino da Língua Portugueza” faz,
sobre o Programa, um conjunto de observações. Neste texto, incluído como apêndice à
sua Grammatica Descriptiva18 em 1910, Maciel diz logo de início que por volta do ano
de 1887 “a ciência da linguagem atravessava uma época de transição” (Maciel, 1926,
499). Para ele, como para muitos desta época, inclusive Júlio Ribeiro, o método histórico
comparativo passava a ocupar o lugar dos “antigos gramáticos portugueses Soares
Barbosa, Bento de Oliveira, Lage e outros” (idem).
Segundo Maximino Maciel, “muitos professores que se norteavam pelos filólogos
estrangeiros, iam evangelizando, quer na docência particular, quer em publicações
esparsas, as novas doutrinas, desbravando-lhes o terreno onde se tinham de arquitetar os
novos estudos” (idem, 501). Para Maciel este grupo, no qual cita Fausto Barreto171819 (1852­
1908), Hemetério dos Santos (1858-1939), Alfredo Gomes, João Ribeiro (1860-1934),
Pacheco da Silva (1842-1899), Lameira de Andrade ( ? - 1897), Said Ali (1861-1953) e
outros, tinha em Fausto Barreto um “centro de onde se irradiam os delineamentos gerais”
(idem). Fausto Barreto era catedrático do Colégio Pedro II e isto, segundo Maximino

17 “A Procellaria” em Procellarias (Ribeiro, 1887, p. 85-91).


18 A Grammatica Descriptiva publicada em 1894 é uma modificação da Grammatica Analytica de 1887.
19 Como vimos foi o encarregado de formular o novo Programa dos Exames Preparatórios.

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Maciel, lhe permitia difundir e firmar novas doutrinas. Ou seja, Maciel reconhece a força
da instituição como lugar de enunciação do Programa.
Ainda segundo Maciel, este programa “Assinalou nova época na docência das
línguas e, quanto à vernácula, a emancipava das retrogradas doutrinas dos autores
portugueses que esposávamos” (Maciel, 1926, 502). Ao mesmo tempo, ele diz que a partir
do programa várias gramáticas se fizeram, como as de João Ribeiro, Alfredo Gomes e a
de Pacheco Silva e Lameira Andrade. Para ele, as duas primeiras foram mais usadas para
o ensino, para os alunos, e a terceira, mais para consulta. Assim, “Houve pois com a
publicação do programa em 1887, uma como Renascença dos estudos da língua
vernácula: na imprensa, na docência particular se aclarava, se discutiam os fatos da língua
à luz das novas doutrinas” (idem, 504). As gramáticas acima referidas por Maciel foram
publicadas em 1887, depois do estabelecimento do novo Programa, e diziam atender ao
que ele estabelecia.

3. O P ro g ram a como um C atalisador da G ram atização


Tanto as posições de Júlio Ribeiro quanto de Maximino Maciel consideram que
o Programa de Fausto Barreto muda o ensino de língua naquele momento, criando,
inclusive, pressão sobre o conjunto de estabelecimentos de ensino da época, tendo aberto
o lugar para o aparecimento de novas gramáticas. Ou seja, o estabelecimento do novo
Programa dos Exames Preparatório dá andamento ao que chamamos gramatização
brasileira do português20. Há que se ressaltar ainda que, neste momento, aparecerão
análises fundamentais sobre o funcionamento do Português, como os de Said Ali (1908)
em Dificuldades da Língua Portuguesa, e, a partir de então, continuam a aparecer
gramáticas novas e dicionários. Lembremos aqui de 1888 o Dicionário Brasileiro da
Língua Portuguesa de Macedo Soares21 e a Gramática da Língua Portuguesa do Pe.
Massa; de 1894 a Gramática Descritiva de Maximino Maciel; e de 1907 a Gramática
Expositiva de Eduardo Carlos Pereira. Este último reivindica, como já registramos antes,
para si a filiação ao caminho aberto, segundo ele, por Júlio Ribeiro com sua Gramática
de 1881. Deste modo vemos algo interessante, ao falar de dentro da história brasileira da
Gramática, E. C. Pereira, no início do século XX, formula sua participação nesta história

20 Tal como já referimos, sobre esta questão ver Orlandi (1997, 2002, 2009), Guimarães (1994, 2004) e
Orlandi e Guimarães (1998 e 2007).
21 Antonio Joaquim de Macedo Soares (1838-1905).

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como se ela fosse independente do acontecimento do novo Programa. Pereira não se


reporta ao Programa. Como marco inicial da história da gramática no Brasil, ele se reporta
à Gramática Portuguesa de Júlio Ribeiro de 1881, portanto anterior ao Programa.
Mas ao tomar o acontecimento do Programa vimos, tal como dissemos acima, que
Júlio Ribeiro reconhece o Programa, o acontecimento que o estabelece, e afirma que sua
gramática está em acordo com ele. Nesta medida podemos considerar que o
acontecimento do Programa significa como seu passado, entre outros aspectos, as
condições institucionais e de conhecimento sobre a língua já estabelecidos. E aí se inclui,
por exemplo, a gramática de Júlio Ribeiro (1881) e a Gramática História da Língua
Portuguesa de Pacheco Silva de 1879. Um vem em apoio ao Programa, o outro publica
com Lameira de Andrade sua Gramática da Língua Portuguesa em 1887 para atender
aos ditames do Programa.
O acontecimento do Programa significa assim um passado específico, que
acabamos de referir, e também projeta todo um novo futuro ao catalisar os estudos sobre
a língua portuguesa naquele momento. Esse futuro já começa a se configurar tanto pela
publicação de novas gramáticas como por análises do Programa e seu peso na história do
estudo sobre o português. Ou seja, de um lado o acontecimento mobiliza como um
passado seu as circunstâncias institucionais e o conhecimento que nelas se produzia. Mas
o acontecimento que aqui analisamos catalisa o processo e movimenta, junto com outros
acontecimentos, uma história específica (impulsionando sua separação da história
portuguesa).
Um aspecto que me parece fundamental nesta análise é que ela, ao tomar este
acontecimento e observar o passado que ele significa e o futuro que ele desdobra, sustenta
de um modo muito particular a afirmação de que a gramatização brasileira do português
se movimenta a partir da década de 1880. Sabemos que antes deste momento já havia
estudos sobre o português no Brasil que procuravam se fazer independentemente dos
estudos do português de Portugal. Temos, só para dar dois exemplos, o caso do Visconde
de Pedra Branca (1780-1855), nos anos 1824-25, que publicou estudo22 mostrando
diferenças do português do Brasil relativamente ao de Portugal e os estudos gramaticais
de Antonio Alves Pereira Coruja (1806-1889), que em 1835 publicara, em Porto Alegre,
Compêndio de Gramática da Língua Nacional, dedicado à mocidade rio-grandense,

22 Esse estudo foi publicado em francês no Atlas Etnográfico do Globo de Adrien Balbi.

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reeditado em 1849, 1862 e 1872. O que se deve observar nestes casos é que estes estudos
não se desdobram num movimento intelectual com suas consequências, tal como, pela
observação do acontecimento do Programa, se pode considerar a partir dos anos 1880. A
análise do Programa permite encontrar um momento decisivo na formação de um
movimento de ideias que muda o curso da relação com a produção de instrumentos
linguísticos no Brasil.

4. O p ro g ram a como Instru m en to Linguístico e a Língua Nacional do Brasil


Além dos aspectos ligados aos itens listados como constituindo os conteúdos a
serem avaliados (tal como apresentei em 2.1), há no Programa (baixado pelo aviso 974
de 17 de março de 1887, segundo decreto 9649 de 2 de outubro de 1886) um aspecto
muito particular a ser considerado, a constituição da sua performatividade. O
acontecimento da enunciação do Programa tem uma complexidade particular: por um
lado ele é enunciado do lugar do Estado, por outro é reconhecido como enunciado do
lugar do Colégio de Pedro II, por autoria de Fausto Barreto. Deste modo, a
performatividade diretiva do Programa é da responsabilidade do Estado e está sustentada
na enunciação reconhecida de um professor de uma instituição tomada como referência.
Não se trata, pois, simplesmente de se perguntar se um programa de ensino ou de um
exame qualquer é um instrumento lingüístico. No caso há que se perguntar se um
Programa cuja normatização é sustentada pelo Estado, e garantida pelo prestígio do
conhecimento de uma instituição específica, é um instrumento gramatical.
A descrição do programa, incluindo seu funcionamento performativo, sua
finalidade e o que os comentários sobre ele nos fazem ver, é que ele, ao regular o
procedimento de como se avaliar a possibilidade de ingresso na universidade, vai
funcionar como um novo estabelecimento do que seja o conhecimento sobre a língua.
Nesta medida ele “transforma” a língua para os encarregados em ensiná-la, e assim
transforma a língua portuguesa para os brasileiros em geral.
Para avançar, vamos distinguir os diversos instrumentos de gestão política que
afetam a questão da língua. De um lado temos algo como o Diretório dos índios de 1757,
estabelecido por iniciativa do Marquês de Pombal, que proibiu o ensino de língua
indígena e em língua indígena no Brasil; de outro temos algo como o estabelecimento do
Programa que apresentamos acima. No primeiro caso temos um instrumento de ação que
intervém na política das línguas, no segundo caso o instrumento estabelece a forma do

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conhecimento sobre a língua. Ou seja, no caso do diretório dos índios, o que o Estado
português faz é regular diretamente o processo de relação das línguas, no caso do Novo
Programa dos Exames Preparatórios o Estado brasileiro faz uma intervenção que
estabelece o que ensinar sobre a língua, que conhecimentos são os que distinguem quem
sabe a língua, ou seja, os conhecimentos que caracterizam qual é a língua. Sabemos, já
nos referimos a isso há pouco, que podemos encontrar artefatos aparentemente
assemelhados, como os programas de ensino de qualquer estabelecimento escolar. Mas
interessa notar que estes últimos não funcionam e não significam do mesmo modo que o
Programa em análise. A performatividade do Programa tem características que os
programas de disciplinas nas escolas não têm. E isto o distingue.
Se nos reportamos à nossa pergunta de se o Programa é um instrumento
gramatical, vemos que ele não é um instrumento da ordem da normatização da língua,
mas da normatização do que se deve ensinar sobre a língua e como. E este aspecto é
diretamente resultado da performatividade do Programa. E é nessa medida que o novo
programa foi um instrumento decisivo, entre outros, no processo de gramatização
brasileira do português.
O momento histórico aqui analisado é vital na vida brasileira, pois nele está se
dando todo um trabalho de reflexão sobre as condições da nacionalidade brasileira. E
neste embate a questão da língua é uma questão crucial23. Há toda uma discussão que se
instala sobre se o português do Brasil é o mesmo que o de Portugal ou não. São conhecidas
as disputas como a de José de Alencar (escritor brasileiro) e Pinheiro Chagas (escritor
português)24.
No campo de conhecimento sobre a língua, como já dissemos, há o
desenvolvimento de estudos a respeito, por exemplo, da especificidade do léxico do
português no Brasil, questão que já se pusera através do Marquês da Pedra Branca no
início do século XIX, logo após a independência do Brasil, e chega ao trabalho de Pacheco
Silva Jr, um dos personagens da década de 1880. Importante a se ressaltar aqui que a
Gramática Histórica de Pacheco Silva traz na sua parte final todo um estudo sobre os
Brasileirismos e Provincialismos, como uma forma de caracterizar as mudanças da língua
no Brasil.

23Sobre a questão da língua e a nacionalidade ver Língua e Cidadania (Guimarães e Orlandi, 1996).
24 Não deixa de ter interesse acompanhar como esta discussão se projeta pelo início do século XX, passando
por um momento agudo nos anos 1930 e chegando à Constituinte brasileira de 1946. Sobre as discussões
destes momentos ver o livro de Dias (1996).

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Naquele momento há toda uma mudança que se faz no ensino do português no


Brasil que se baseia numa mudança de paradigma de conhecimento. Mas, no caso do
Programa, o que sustenta e projeta a mudança foi que este novo conhecimento é
formulado pela voz oficial do Estado garantida pela autoridade intelectual e institucional
de Fausto Barreto. Ou seja, uma certa posição científica é formulada como posição
institucional e isto a partir de uma pessoa destacada (Fausto Barreto), vista, inclusive,
como liderança intelectual.
Por outro lado, lembremos que Maximino nos relata que havia um grupo de
estudiosos desenvolvendo trabalhos sobre a língua dentro do comparativismo quando em
1887, o Inspetor Geral da Instrução Pública solicita o Programa a Fausto Barreto. Ou seja,
a solicitação do programa se dá em virtude de se ter um tipo de conhecimento lingüístico
claramente estabelecido no Brasil naquele momento.
Mas o novo Programa é decisivo no processo de instalação e propagação de um
novo conhecimento sobre a língua. Ele funciona como uma memória prévia (o que é
preciso saber) para todos os que queiram se dedicar ao ensino da língua, exatamente pelo
fato de sua enunciação ser feita do lugar da instituição escolar e do Estado. Como
dissemos em “Identidade Lingmstica” (Guimarães e Orlandi, 1996, 13): “A Língua, a
Ciência e a Política estabelecem entre si relações profundas e definidoras na constituição
dos sujeitos e da forma da sociedade.” Assim este conhecimento sobre a língua funciona,
de sua parte, como constituindo esta língua como língua nacional sobre a qual se produz
um conhecimento25.

Conclusão
Retomando a distinção feita acima, o acontecimento do Programa produz um
instrumento que estabelece a forma do conhecimento sobre a língua. E dado que se trata
de um Programa estabelecido pelo Estado, através da autoridade de um Professor de uma
Instituição modelar do Brasil naquele momento, sua propagação tem uma extensão
correspondente ao peso da instituição que o formula e alcança todo o Brasil. E isto abre

25 A relação da construção de um conhecimento sobre a língua e sua constituição como língua nacional foi
fortemente trabalhado pelo projeto “História das Idéias Linguísticas: Construção de um Saber
Metalingüístico e a Constituição da Língua Nacional”, coordenado por Eni Orlandi e tem muitos de seus
resultados publicados, entre outros textos, na revista Langages 130 (Auroux, Orlandi, Mazière 1998), em
História das Idéias Linguísticas (Orlandi (org.), 2001)e em Um Dialogue Atlantique (Orlandi e Guimarães
(org.), 2007).

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uma nova história, um novo movimento de autoria da gramática e um novo caminho para
a intensificação dos conhecimentos sobre a especificidade do português do Brasil. O
Programa tem, segundo esta análise, participação naquilo que produz um movimento que
Eni Orlandi (2009) tem tratado de modo muito relevante como um processo de
descolonização lingüística. O Novo Programa naquele momento é um catalisador deste
processo de descolonização, tal como outros que vieram posteriormente. E isto está
diretamente ligado ao fato de que se trata de um processo de endogramatização. O
processo brasileiro de gramatização do português (enquanto um processo de
endogramatização) significa a língua portuguesa como Língua Nacional do Brasil, o que
é muito diretamente significado pelo estabelecimento do Programa enquanto gesto do
Estado brasileiro.
E na medida em que este instrumento regula a forma do conhecimento sobre a
língua, e assim regula a própria caracterização da língua, é um meta-instrumento
lingüístico, ou seja, é uma extensão de memória sobre o que é necessário conhecer sobre
a língua. E enquanto meta-instrumento ele catalisa a produção de instrumentos
lingüísticos como gramáticas e dicionários naquele momento. Enquanto meta-
instrumento lingüístico ele não só nos diz o que é a língua, mas ele produz uma política
de língua. Neste sentido, ele faz parte do que é decisivo para a constituição da língua
nacional no final do século XIX. E isto responde à nossa segunda pergunta: o papel deste
acontecimento na constituição da Língua Nacional está ligado a seu caráter de
instrumento lingüístico.
Nem todo programa de ensino de língua é um meta-instrumento, ele pode ser
simplesmente a especificação do que se deve ensinar na medida em que se tem o que é a
língua normatizada. Um programa de ensino comum é resultado da gramatização. No
caso do Programa aqui em estudo, a questão é absolutamente de outra ordem, ele
estabelece condições no processo de gramatização. Está em questão uma regulação do
Estado e das instituições sobre o conhecimento sobre a língua. Em virtude disso o
Programa estabelece como deve ser uma gramática da língua. É isso que faz desse
Programa um instrumento, ou melhor, um meta-instrumento gramatical.

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Referências

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Unicamp, 1992

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Projeto História das Idéias Linguísticas: Construção de um Saber Metalinguístico e a

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MACIEL, M. Grammatica Descriptiva . Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1926.

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Ciências de Lisboa, (1536] 2000.

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ORLANDI, E. Língua e Conhecimento Linguístico. São Paulo: Cortez, 2002.

ORLANDI, E. Língua Brasileira e Outras Histórias. Discurso sobre a língua e ensino

no Brasil. Campinas: Editora RG, 2009.

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linguistique. La grammaire au Brésil” . Langages, 130. Paris, Larousse, 1998.

ORLANDI, E. P.; GUIMARÃES, E. Un dialogue atlantique. Production des sciences

Du langage au Brésil. Lyon, ENS Éditons, 2007.

PEREIRA, E. C. Gramática Expositiva. São Paulo, Nacional, 1940.

RIBEIRO, J. Grammatica Portugueza. São Paulo, Jorge Seckler, 1881.

RIBEIRO, J. Procellarias. São Paulo, Cultura Brasileira, 1887.

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JO S E PH , John. Saussure, O xford U niversity Press, 2012. T radução p a ra o francês


de N athalie V incent-A rnaud, L am bert-L ucas, 2021. T radução p a ra o português
brasileiro de B runo T u rra , E d ito ra da U nicam p, no prelo.

JO S E PH , John. Saussure, O xford U niversity Press, 2012. French tran slatio n by


N athalie V incent-A rnaud, L am bert-L ucas, 2021. B razilian Portuguese translation
by B runo T u rra , E d ito ra da U nicam p, no prelo.

Bruno Turra

Subm etido em 24 de julho de 2023.

A provado em 04 de setem bro de 2023.

O ano de 2002, com a publicação dos Escritos de Linguística Geral, edição de


Rudolf Engler e Simon Bouquet que compila manuscritos já conhecidos dos estudiosos
saussurianos e publica o inédito Essência dupla da linguagem, descoberto em 1996,
marca uma renovação nos estudos saussurianos. A versão brasileira da obra surge apenas
dois anos depois da edição francesa. Se levarmos em conta o período de mais de meio
século entre a publicação, em 1916, do Cours de Linguistique Générale e sua versão
brasileira em 1970, os dois anos da publicação dos Escritos é significativa.
É significativo também o número de eventos e congressos no Brasil quando do
centenário de publicação do CLG. Os dois fatos, quando aproximados, dão indícios de
um cenário acadêmico ativo e interessado no que o dito pai da linguística moderna teria
ainda a dizer ou, antes, o que seus manuscritos nos convocariam a dizer.
Se elementos de uma recepção da teoria saussuriana podem ser observados no
Brasil já em Said Ali (ALTMAN, 2016; BECHARA, 1993; COSTA, 2020; 2021) e, de
forma mais sistemática, com Silva Neto e Mattoso Câmara (ALTMAN, 2016), o primeiro
gesto editorial nacional acerca da obra saussuriana ocorre em 1970 com a publicação da
tradução brasileira do CLG pela editora Cultrix.
Quando ganhamos uma edição em nossa língua, a França vivia o canto do cisne do
estruturalismo, para retomar a expressão de Dosse (1992[2007]). É dessa época também
a grande influência que passa a exercer a linguística estadunidense no Brasil (KATO,
RAMOS, 1999). Ao mesmo tempo que a obra se faz necessária, ela já se coloca de
maneira deslocada “não uma ‘bíblia’, mas um ponto de partida” . Uma obra que já em

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1970 se destacava mais como um marco na história da linguística do que propriamente


como uma teoria da linguagem a ser aplicada.
Um Saussure dépassé, ultrapassado, o linguista das dicotomias, que havia excluído
a fala, o sujeito e a história de sua pesquisa para construir um objeto científico, a língua.
Foi contra este Saussure que se levantaram as novas teorias linguísticas, como a
sociolinguística e as teorias do discurso.
Com a publicação dos Escritos em 2002, essa imagem começou a ruir. Lemos nos
manuscritos um Saussure mais dialógico que dicotômico, que tem o sujeito e a fala como
ponto de partida de toda sua pesquisa. Cria-se então uma outra miragem. O verdadeiro
Saussure está nos Escritos, queimem o CLG!
As pesquisas na área que vêm sendo realizadas nestas passadas duas décadas do
novo milênio, inclusive (ou sobretudo) no Brasil, visam a compreender a construção dos
conceitos por Saussure e os processos que os levaram a se cristalizar a partir da segunda
metade do último século. Estas parecem apontar também para a compreensão de que o
verdadeiro Saussure está, desde a enunciação de suas aulas, perdido, e o que se recupera
desse dizer se faz no batimento entre o CLG, seus manuscritos, e as anotações de seus
alunos.
Apesar da crescente e significativa produção acadêmica brasileira no campo dos
estudos saussurianos, são poucos, ainda, os textos de autoria de Ferdinand de Saussure -
sejam eles manuscritos, cartas ou textos publicados em vida - em língua portuguesa. É
escassa também a tradução em nosso idioma das obras incontornáveis que estabeleceram
o que hoje chamamos de filologia saussuriana. Diante desse ponto se constrói a
relevância da publicação, em português brasileiro, prevista para o início de 2024, da obra
Saussure, de John Joseph, lançada inicialmente em 2012, pela Oxford University Press,
e com recente tradução para o francês de Nathalie Vincent-Arnaud, pela Lamber-Lucas,
em 2022.
A biografia atenderá, acredito, a uma demanda de leitores e pesquisadores que
passaram a se interessar pelo biografado a partir das recentes comemorações do CLG e
pela nova e crescente produção acadêmica a seu respeito. Tal publicação se insere numa
(possível) nova leitura do saussurianismo no Brasil em que a paternidade do
estruturalismo que lhe foi atribuída passa a ser relativizada, e suas obras passam a ser
lidas não mais do ponto de vista das “dicotomias estanques”, da “exclusão do sujeito e da
fala” .
A obra Saussure, de John Joseph, dividida em cinco partes, estabelece como fio

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condutor a elaboração teórica de Ferdinand de Saussure para fornecer ao leitor uma


análise rigorosa das reflexões sobre a linguagem no século XIX e início do século XX. A
obra fornece um material fundamental para os estudiosos não apenas do campo
linguístico, mas também das áreas conexas nas quais o estruturalismo erigido sob seu
nome estabeleceu profundos diálogos. Trata-se, portanto, de uma obra essencial, não
apenas para os estudos da linguagem, mas para as ciências humanas de um modo geral,
que pode fomentar ainda mais as pesquisas desenvolvidas no Brasil.
Saussure apresenta-nos de forma bem documentada um intelectual inquieto da
virada do século XIX para o século XX sem recorrer a interpretações fáceis e
psicologizantes. Mas o livro Saussure vai muito além do romance individual desse grande
linguista. O trabalho do professor Joseph tece um pano de fundo detalhado de como a
proeminente família de Saussure se instala em Genebra e ganha importância política e
cultural ao longo dos séculos e de como Ferdinand se inscreve nessa história. Destaca-se
ainda o denso trabalho teórico presente no livro que fornece as condições de produção
que permitiram ao linguista desenvolver os avanços na disciplina pelos quais ficou
conhecido. A obra recupera e contextualiza as interlocuções do genebrino desde seus
primeiros ensaios juvenis até seus últimos dias, tornando compreensíveis ao público não
especializado seus trabalhos mais herméticos como o Mémoire sobre o sistema primitivo
de vogais nas línguas indo-europeias e sua tese sobre o genitivo absoluto em sânscrito.
A primeira parte é dedicada ao estabelecimento da família em Genebra. O primeiro
capítulo narra a fuga dos primeiros membros da família de Saulxures-lès-Nancy da região
de Lorraine, onde possuíam terras e títulos, para a cidade onde vieram a se estabelecer e
se destacar em diversas áreas. Após ter sido preso em 1550, o huguenote Antoine de
Saussure (o primeiro a grafar o nome como conhecemos hoje) foge com sua família para
Genebra devido à perseguição religiosa. Após o estabelecimento na região, o livro nos
relata como a família foi ocupando espaços na sociedade genebrina. No segundo capítulo,
dedicado já a seus pais e avós, o autor se dedica a elencar os eventos que, mais adiante,
nos serão úteis para compreender a formação intelectual do biografado, como a presença
dos familiares nos corredores da Universidade de Genebra e as conquistas acadêmicas de
seus predecessores. O terceiro e último capítulo traça um breve panorama do legado dos
estudos sobre a linguagem desde o Crátilo, de Platão, até os estudos comparatistas do
século XIX, com o objetivo de inscrever Ferdinand em uma história dos estudos da
linguagem.
A segunda parte trata da formação intelectual do pequeno Ferdinand, desde seus

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anos de ginásio até a publicação do Mémoire e sua experiência na Universidade de


Leipzig. Ao longo de quatro capítulos, o autor traz elementos da vida privada do
biografado - relatos da infância, primeiros amores e problemas financeiros da família -
de sua vida acadêmica e de sua aproximação de Adolphe de Pictet, a quem, ainda jovem,
envia um ensaio sobre a redução das palavras do grego, do latim e do alemão a poucas
raízes, seu primeiro exercício comparatista. Destaca-se o capítulo 7, último desta parte,
em que temos uma detalhada apresentação das principais teses defendidas no Mémoire , a
relação com os neogramáticos em Leipzig e a recepção desta sua obra inaugural.
A terceira parte cobre o período em que o genebrino escreve sua tese de
doutoramento sobre o genitivo absoluto em sânscrito, sua breve passagem pela
universidade de Berlim e o contato com a obra do estadunidense William D. Whitney, a
viagem de campo para a Lituânia e seu estabelecimento em Paris, onde ficará até 1891.
Ao longo de quatro capítulos, o autor da biografia, além de fornecer ao leitor detalhes dos
primeiros anos da vida adulta de Ferdinand, as crises familiares, o início do
relacionamento com sua futura esposa e as disputas nos corredores universitários, também
descreve as atividades desenvolvidas por Saussure nos anos parisienses, das primeiras
experiências como conferencista na École des Hautes Études até sua última participação
nas reuniões da Societé de Linguistique de Paris e sua nomeação como Chevalier da
Légion d’Honeur francesa.
Na quarta parte, dedicada ao período genebrino, lemos através de um minucioso
trabalho com os arquivos, os movimentos teóricos que culminaram nas principais
contribuições do linguista à linguística geral e, posteriormente, às humanidades de um
modo geral. Trata-se dos anos genebrinos que precederam os famosos cursos de
linguística geral. Destacam-se, nos cinco capítulos desta parte, o posicionamento do
biografado sobre o trabalho de Whitney, as aulas sobre versificação francesa e sobre a
sílaba, sua incursão nas temáticas do psicólogo Théodore Flournoy (a língua marciana e
a glossolalia espírita), além do extenso trabalho sobre as lendas germânicas. Vale
destacar, mais uma vez, que não se trata apenas de um relato histórico dos eventos da vida
do biografado. A cada ponto teórico, Joseph se aprofunda nas temáticas discutidas pelo
genebrino, tornando-as mais compreensíveis ao público menos especializado.
A quinta e última parte nos apresenta de forma contextualizada as disputas políticas
em cena na Genebra do novo século e os anos finais de docência e vida de Ferdinand de
Saussure. Os quatro capítulos finais tratam das reformas universitárias ocorridas em
Genebra e de como o nome de Saussure foi utilizado pelos jornais da época. É nesta parte

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também que acompanhamos o biografado em seus anos de curso de linguística geral. Ao


longo dos capítulos, encontramos reflexões contextualizadas sobre os diversos conceitos
saussurianos que depois foram consagrados em sua obra póstuma (sincronia e diacronia,
língua, fala, arbitrariedade, a questão das unidades, entidades e identidades da língua). O
último capítulo é dedicado à publicação do livro editado por Bally e Sechehaye, sob o
título de Curso de linguística geral, o destino dado ao espólio do biografado, bem como
a expansão que sua teoria percebeu sob o nome de estruturalismo.
O leitor tem ainda à sua disposição uma Seleção bibliográfica sobre Saussure e um
Índice remissivo.
A obra a ser lançada em breve pela Editora da Unicamp permitirá ao leitor brasileiro
novas reflexões sobre esse pensador fascinante que tendo escrito muito, mas publicado
pouquíssimo, transmitiu um ensino marcante a seus alunos que inscreveram seu nome na
história do pensamento ocidental.

Referências
ALTMAN, C. Saussure e o (des)encontro de duas gerações acadêmicas no Brasil. Signo
y Sena. n. 30, 2016. p. 3-21

BECHARA, E. [1993] Primeiros ecos de F. de Saussure na gramaticografia de língua


portuguesa. Revista Confluência, n. 48, 1.° semestre de 2015, pp. 9-16.

COSTA, T.A. Grammatica historica da lingua portugueza de Said Ali cem anos depois:
considerações acerca do movimento de (res)significação de uma obra. Líng. e Instrum.
Linguíst., Campinas, SP, v. 24, n. 48, p. 61-109, jul./dez., 2021.

KATO, M. RAMOS, J. Trinta anos de sintaxe gerativa no Brasil, D.E.L.T.A., v. 15, no.
especial, 1999 (105-146).

SALUM, I. N. Prefácio à edição brasileira. In: SAUSSURE, F. Curso De Linguística


Geral. Trad. de A. Chelini; J. P. Paes e I. Blikstein. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

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