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INSTRUMENTOS LINGUÍSTICOS
Universidade Federal do Tocantins - UFT
Câmpus de Porto Nacional
Programa de Pós-Graduação em Letras
Mestrado em Letras
Instrumentos Linguísticos
Organização:
Thaís de Araujo da Costa (UERJ)
Rogério Modesto (UESC)
José Edicarlos de Aquino (UFT)
EXPEDIENTE
Reitor
Prof. Dr. Luis Eduardo Bovolato
Vice-Reitora
Prof. Dr. Marcelo Leineker Costa
Editoração
Carlos Roberto Ludwig
Trimestral.
Modo de Acesso: http://revista.uft.edu.br/index.php/portodasletras/index
Editoração: Carlos Roberto Ludwig
Organização: Thaís de Araujo da Costa, Rogério Modesto e José Edicarlos de
Aquino
ISSN: 2448-0819
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Editoração
Carlos Roberto Ludwig, UFT
Instrumentos Linguísticos
Estado, estando sua utilização, portanto, à serviço dos controles que o aparelho jurídico-
policial do Estado brasileiro desenvolveu ao longo de sua história.
Em Dicionários filosóficos e glossários em filosofia: artefatos culturais
filosóficos e instrumentos de saturação da referência, Gleiton Matheus Bonfante investe
no cruzamento entre Filosofia e História das Ideias Linguísticas, defendendo um
entrelaçamento entre os instrumentos e saberes linguísticos e a prática de filosofar e
colocando em relação de analogia e concorrência os conceitos de instrumento linguístico,
artefatos culturais filosóficos e de instrumentos de saturação de referência. O
conhecimento metalinguístico e conceitual é o ponto de costura apontado entre os
dicionários e glossários filosóficos e os instrumentos linguísticos como gramáticas e
dicionários. Já a marcação da diferença diria respeito fundamentalmente à saturação da
referência, uma função estabilizadora do sentido presente principalmente nos artefatos
filosóficos. As (des)semelhanças levantadas nas formas analisadas de instrumentação
linguística tocam em questões como a relação dos instrumentos linguísticos com a
(in)completude da língua e a materialidade linguística e discursiva, a idealização de um
leitor e a incidência sobre a (não) neutralidade e universalidade dos conceitos e sentidos.
No artigo Caminhar entre listas: bibliotecas como espaços de instrumentação
linguística, Phellipe Marcel da Silva Esteves e Gustavo José Pinheiro, ancorados na
Análise de Discurso Materialista, na sua relação com a História das Ideias Linguísticas,
refletem sobre as bibliotecas não apenas como instituições, mas como espaços em que
potencialmente se dá instrumentação linguística. Nessa visada, propondo a construção
colaborativa do que formulam como História Discursiva do Livro, aproximam-nas de
artefatos linguísticos, tais como gramáticas, dicionários, livros didáticos de língua(s), a
fim de contribuir para uma reflexão mais ampla a respeito das formas de materialização
de instrumentos linguísticos, considerando-os na relação que estabelecem com a divisão
do espaço institucional e com o próprio corpo.
Gabriel Leopoldino dos Santos e David Guadalupe Toledo Sarracino tomam a
gestão escolar como um “instrumento de políticas de línguas”, com efeitos sobre o modo
como as línguas e seus falantes são significados na escola, essa concebida, na perspectiva
da Semântica do Acontecimento, como um “espaço de enunciação” . No texto A gestão
escolar como um instrumento de política de línguas, a partir da análise das práticas
político-linguísticas observadas no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de São Paulo (IFSP), os autores avaliam que os atos administrativo-normativos da gestão
escolar organizam a forma como cada língua funcionará em seu espaço de enunciação,
exercendo poder no jogo de forças entre línguas e falantes no espaço da escola, colocando,
por exemplo, no caso analisado, o inglês em lugar de primazia com relação às demais
línguas e dando menos valor aos falantes de espanhol e da língua brasileira de sinais e
mesmo de português. É por organizar, dividir, distribuir, redistribuir e determinar
politicamente as línguas que a gestão escolar é compreendida como um instrumento de
política de línguas, sempre indissociável do funcionamento do Estado.
Filiadas à Análise de Discurso materialista e à História das Ideias Linguísticas,
Jael Sanera Sigales Gonçalves, Vitória Eugênia Oliveira Pereira e Monica Graciela Zoppi
Fontana assinam o texto Instrumento jurídico-linguístico: direito, universidade e
nacionalidade na produção de saberes sobre a língua. Nele, as autoras analisam o
funcionamento discursivo de dois documentos que compõem um arquivo jurídico voltado
à investigação de políticas linguísticas, a saber: o Termo de Referência que vincula a
Cátedra Sérgio Vieira de Mello às Instituições de Educação Superior a ela relacionadas e
o Projeto de Lei N° 489/2019. Assim, o texto debruça-se sobre um outro tipo de
instrumento linguístico que regula a língua não pela prescrição gramatical ou
dicionarística, mas pela prescrição jurídica. As análises relacionam de modo contundente
direito, língua, sujeito e Estado no modo de produção capitalista e, a partir delas, se chega
à formulação do conceito de instrumento linguístico-jurídico através do qual as autoras
analisam os processos de subjetivação que tocam as línguas e a divisão desigual das
línguas nos espaços de enunciação que se dão pelo atravessamento entre Estado e Direito.
Marcus Menezes assina o texto Saberes metalinguísticos em uma cartilha de
pedagogização antirracista. O instrumento linguístico em foco é uma cartilha temática,
entendida pelo autor como um instrumento regulatório da vida em sociedade, tal como
sua sustentação na Análise de Discurso materialista e na História das Ideias Linguísticas
permite afirmar. A análise mostra que a produção da cartilha em foco não se ampara em
saberes técnicos externos, permanecendo ausente, então, a discussão linguística
especializada em torno das expressões e formulações que são apontadas como racistas na
cartilha. Assim, Menezes defende que a língua funciona como um objeto do debate racial
em que o que sobressai é a discussão em torno da racialidade desacompanhada da
produção intelectual e científica da linguística. Finaliza o autor mostrando que, apesar da
ausência de um saber linguístico especializado, as cartilhas do tipo analisado parecem
ditar formas de usos linguísticos, especialmente no que concerne ao debate racial, o que
mostra a força desse instrumento para o sujeito do conhecimento e para a vida social.
Em Um instrumento linguístico eventual: a "dicionarização antirracista de
Instagram”, à luz da Análise de Discurso Materialista, Matheus Oliveira Souza toma
como objeto de análise discursos racializados sobre a língua, em circulação no Instagram,
notadamente em perfis que, como afirma, simulam o funcionamento de instrumentos
linguísticos, como dicionários e cartilhas, dizendo combater termos e expressões que, de
acordo com certa interpretação linguística vinculada à militância negra, teriam se
constituído historicamente a partir de uma formação discursiva colonialista/racista. Em
sua análise, observa uma regularidade em tais perfis que, como assevera, denunciam
palavras e expressões consideradas racistas e prescrevem outras opções com sentidos
similares, produzindo, assim, uma abordagem normativa. Paralelamente, Souza tece
ainda uma reflexão a respeito do modo como tais perfis simulam a função de instrumentos
linguísticos tradicionais, propondo a noção de instrumento linguístico eventual.
Em Criação do CODIC - Corpus Oral de Divulgação Científica: considerações
linguísticas e metodológicas, Jackson Wilke da Cruz Souza, numa reflexão sobre
divulgação científica e linguística de corpus, analisa o Corpus Oral de Divulgação
Científica (CODiC), composto pelas respostas de professores, técnicos e alunos da
Universidade Federal de Alfenas às perguntas enviadas pela comunidade numa rádio
local, qualificando-o como um instrumento linguístico que possibilita a popularização de
conceitos e metodologias científicas. O autor descreve as possibilidades que esse
instrumento permite para a observação do modo como os especialistas acadêmicos
desenvolvem atividades comunicativas de acessibilidade do conhecimento científico para
o grande público, chamando também atenção para as questões histórico-ideológicas que
fomentam esse tipo de artefato na sociedade atual, como o combate à desinformação, às
notícias falsas e aos pensamentos anti e pseudocientíficos.
Juciele Pereira Dias analisa os dizeres sobre educação elementar publicados no
jornal Correio Braziliense no início do século XIX para compreender a maneira como os
“instrumentos linguístico-midiáticos” definem e põem em circulação o ensino da leitura
e da escrita e também a identificação “das gentes do Brasil”, conforme expressão do
próprio periódico. Em Ensino da leitura e da escrita de/em classes do periódico Correio
Braziliense: gestos de análise discursiva, a autora, no entremeio da Análise de Discurso,
História das Ideias Linguísticas e História da Educação, mostra as formas que a divisão
textos cultos dos primeiros quinze anos do século XXI. As gramáticas analisadas datam
do século XX e percorrem um curso temporal de pelo menos sessenta anos. Os textos da
prática escrita compõem um arquivo múltiplo constituído de diferentes formas materiais:
textos jurídicos, religiosos, jornalísticos, literários entre outros. O resultado da reflexão
dos autores mostra de modo contundente o papel dos instrumentos linguísticos na
manutenção de uma realidade linguística que se desencontra da fluidez da língua.
No artigo Norma padrão e norma dita culta: confusão sistêmica entre instrumento
linguístico e amostra de variação, Fernanda de Oliveira Cerqueira problematiza, a partir
de um tripé teórico que entremeia o caráter indisciplinar da Linguística Aplicada, a
Sociolinguística e a História das Ideias Linguísticas, a aproximação dos conceitos de
norma padrão e de “norma estabelecida como culta” . Defende a autora que o conceito de
norma padrão, por regular a gramática normativo-prescritiva, funciona como instrumento
linguístico que não se pode confundir com os usos linguísticos recorrentes de sujeitos
socialmente considerados cultos, usos esses reconhecidos como a “norma culta” . Na
conclusão de seu texto, Cerqueira aponta que a confusão entre os conceitos produz efeitos
sobre as práticas sociais de uso da língua e a própria relação da língua com o poder social.
Destacamos a sensível dedicatória que a autora faz a sua professora que a introduziu na
temática do texto, a professora Viviane Gomes de Deus Deiró, que materializa a potência
da trajetória e do encontro de duas mulheres negras no campo da linguagem.
O exemplo nas gramáticas jesuíticas de guarani, de Carolina Rodriguez-Alcalá,
é uma tradução de “L'exemple dans les grammaires jésuitiques du guarani”, artigo
publicado em 2007 no número 166 da revista Langages, organizada por Jean-Marie
Fournier. Nele, a autora descreve o funcionamento dos exemplos nas primeiras
gramáticas de guarani, escritas por missionários jesuítas nos séculos XVII e XVIII com
vistas a atender interesses coloniais espanhóis na então região do Paraguai. A partir disso,
tece uma importante reflexão sobre o funcionamento do exemplário em instrumentos
linguísticos, demonstrando como a finalidade e as condições iniciais desse trabalho de
gramatização determinaram a constituição do corpus de exemplos, no que diz respeito ao
estatuto dos mesmos e aos critérios de validação, bem como à sua relação com a
oralidade.
Instrumentos linguísticos e língua nacional: um acontecimento no Brasil do
século XIX, de Eduardo Guimarães, é uma tradução de “Instruments linguistiques et
langue nationale: un événement au Brésil au XIXe siècle”, o qual fora publicado
Referências
ARNOUX, Elvira Narvaj a de. Los discursos sobre la nacióny el lenguaje en laformación
del Estado (Chile, 1842-1862): estudio glotopolítico. Buenos Aires: Santiago Arcos
editor, 2008.
MODESTO, Rogério. Mulatos nos dicionários de português ou sobre o que uma palavra
pode contar da mestiçagem no Brasil. Interfaces. v. 13, n. 3, p. 1- 15, 2022.
ZOPPI FONTANA, Mónica. O português do Brasil como língua transnacional. In: ZOPPI
FONTANA, Mônica (Org.). O português do Brasil como língua transnacional.
Campinas: RG, 2009, p. 12-41.
Resumen: El estudio analiza el recurso a las tablas, y en menor medida a las listas, para el
tratamiento de los participios dobles en una serie textual representativa de gramáticas de espanol
en algo más de un siglo (MARTÍNEZ GÓMEZ GAYOSO, 1743 - RAE, 1854). Listas y tablas
son aprehendidas desde la perspectiva de la historia de las ideas lingüísticas como herramientas
lingüísticas que extienden el conocimiento del hablante. Estas permiten organizar, formalizar,
manipular y aprender datos lingüísticos. El estudio se divide en dos partes principales. En la
primera parte se presenta la gramatización de los participios irregulares, y más particularmente la
cuestión de los participios dobles, uno regular y otro irregular, de algunos verbos. Se muestra allí
el papel que desempenan las tablas en el tratamiento de este fenómeno lingüístico y su dimensión
histórica, en la medida en que el modelo de las gramáticas de la Real Academia Espanola influye
en la gramaticografía espanola. En la segunda parte, se analizan las características de listas y
tablas, el funcionamiento en la serie textual seleccionada y la manera en que moldean el modo de
concebir el fenómeno estudiado.
Palabras clave: participio; gramática espanola; lista; tabla; herramienta lingüística.
Resumo: O estudo analisa o uso de tabelas e, em menor medida, de listas, para o tratamento dos
participios duplos numa série textual representativa das gramáticas espanholas ao longo de mais
de um século (MARTÍNEZ GÓMEZ GAYOSO, 1743 - RAE, 1854). As listas e tabelas são
apreendidas na perspetiva da história das ideias linguísticas como instrumentos linguísticos que
ampliam o conhecimento do falante. Permitem organizar, formalizar, manipular e aprender dados
linguísticos. O estudo divide-se em duas partes principais. A primeira parte apresenta a
gramatização dos participios irregulares e, mais particularmente, a questão dos participios duplos,
um regular e outro irregular, de alguns verbos. Mostra-se o papel desempenhado pelas tabelas no
tratamento deste fenómeno linguístico e a sua dimensão histórica, na medida em que o modelo
das gramáticas da Real Academia Espanola influencia a gramaticografia espanhola. Na segunda
parte, analisam-se as características das listas e das tabelas, o seu funcionamento nas séries
textuais seleccionadas e a forma como configuram o modo de conceber o fenómeno estudado.
Palavras-chave: particípio; gramática espanhola; lista; tabela; ferramenta linguística.
Abstract: This paper examines the use of tables, and to a lesser extent lists, for the treatment of
double participles in a representative textual series of Spanish grammars over more than a century
(MARTÍNEZ GÓMEZ GAYOSO, 1743 - RAE 1854). Lists and tables are regarded from the
perspective of the history of linguistic ideas as linguistic tools that extend the speaker's
1 D octor en C ien cias d el L enguaje por la U n iversité Sorbonne N o u v e lle y doctor en L engu a E span ola por
la U niversidad de Salam anca. M aitre de con féren ces en la U n iversité Sorbonne N o u v elle. Email:
alejandro.d iazvillalba@ sorbon ne-nou velle.fr.
knowledge. They allow organizing, formalizing, manipulating, and leaming linguistic data. The
study is divided into two main parts. The first part presents the grammatization of irregular
participles, and more particularly the question of double participles, one regular and the other
irregular, of some verbs. It shows the role played by the tables in the treatment of this linguistic
phenomenon and its historical dimension, insofar as the grammars of the Real Academia Espanola
create a model that influences Spanish grammar. In the second part, the characteristics of lists and
tables, their functioning in the selected textual series and the way they shape the way of
conceiving the studied phenomenon are analyzed.
Keywords: participle; Spanish grammar; list; table; linguistic tool.
Consideraciones iniciales
Desde los orígenes de la historia del saber metalingüístico, la lista es una práctica
científica que se entrelaza con otros objetos en la genealogia del estudio de la lengua
(GOODY, 1977; AUROUX, 2012, p. 6): las listas enciclopédicas son los testimonios
escritos más antiguos de manejo del lenguaje. Solo más tarde aparecen entre los
babilonios y los egipcios los paradigmas como complemento a las listas; en un principio,
comentarios de estas (AUROUX et al., 2004, p. 67). A su vez, los paradigmas conducen,
por la necesidad de reglas explicativas, al desarrollo de gramáticas. En época más
reciente, las listas produjeron también diccionarios monolingües, dando lugar a una doble
posibilidad de tratar el léxico.
El presente estudio se sitúa en el campo historiográfico y epistemológico de
análisis de textos gramaticales y atiende especialmente a la elaboración del objeto
llamado gramática. Esto quiere decir que el foco se pone en la materialidad del
dispositivo. Hoy parece imprescindible interesarse por diversos aspectos de la dimensión
material para obtener un conocimiento cabal de la construcción del saber acerca de las
lenguas y el lenguaje. En las gramáticas se pueden encontrar diferentes entidades que
contribuyen a armar el andamiaje teórico y descriptivo. Pertenecen a este ámbito las tablas
y las listas, pero no son estas las únicas piezas que interesan al historiador. También
desempenan un papel crucial en el discurso gramatical los ejemplos y las reglas, que
Fournier y Raby (2008, p. 959) denominan “formes du discours grammairien”2. En la
misma línea, Auroux (2012, p. 31-32) propone una definición empírica de la gramática a
partir de sus elementos constitutivos: conceptos, reglas y ejemplos. Cabe destacar que la
lista de ej emplos es mencionada por este autor como un elemento típico de la presentación
de conceptos (cf. CHEVILLARD et al., 2007; ESCUDERO PANIAGUA, 2023).
Así pues, la lista es considerada en los trabajos históricos como un instrumento
complementado de otros dispositivos. Además del eje conceptual mencionado, se ha
senalado en las gramáticas una conexión entre la lista y el estudio del léxico
(DELESALLE y MAZIÈRE, 2002; DELESALLE, 2006), lo cual apunta a una
complementariedad -se podría anadir, sin duda, porosidad- entre gramática y
diccionarios (AUROUX y MAZIÈRE, 2002).
Ahora bien, cabe preguntarse cuál es el estatus de la lista y de la tabla en las
gramáticas, su función y su tipologia. Si bien en la historia remota del manejo del lenguaje
la lista fue un instrumento lingüístico per se, el objeto que nos interesa aqui es la lista
integrada en la gramática, así como la tabla, i.e. la asociación de listas, tal como la definiré
más abajo. Con seguridad, podemos concebir los libros de gramática como artefactos
discursivos compositivos o aglomerados de estrategias. Entonces, ^la lista es un mero
componente de un engranaje complejo? Para Delesalle y Mazière “ [d]ans les grammaires,
la liste est donc une technique incontournable de recensement et d’élaboration”3
(DELESALLE y MAZIÈRE, 2002, p. 86). Pero unas líneas más abajo, concluyen que “la
liste témoigne de Pimpossibilité d’un traitement empirique total. C’est un des outils d’une
technique métalangagière à visée globalisante, tenue en échec par l’impureté constitutive
de son objet”4 (ibid.). Objeto imprescindible y complementado del discurso gramatical,
la lista se presenta como una técnica al servicio de la explicación gramatical. El enfoque
de estas autoras debe entenderse dentro del estudio de las gramáticas francesas del siglo
XVII, donde se instala una oposición entre reglas y listas en el tratamiento de la
morfología, a la par que se oponen, a nivel general, los tratamientos de la unidad léxica
en gramáticas y diccionarios. En esta óptica, la lista aparece seguidamente de una regla,
para ejemplificarla o para acoger lo que no tiene cabida en ella. Obviamente, la diversidad
del objeto lista no puede reducirse a dicho empleo5. La construcción de una clasificación
de listas -basada sobre un corpus- excede el propósito del presente estudio, pero una
tipología mínima debería incluir al menos la subdivisión lista cerrada / lista abierta, con
3 Traducción: “ [ ...] en las gram áticas la lista es en ton ces una técn ica im prescindible de inventario y de
elaboración” .
4 Traducción: “ [ ...] la lista pon e de m anifiesto la im posibilid ad de u n tratamiento em pírico total. E s u n una
de las herram ientas de una técn ica m etalin güística co n in tencion es globalizadoras, desbaratadas por la
im pureza constitutiva de su ob jeto” .
5 D elesa lle y M azière (2 0 0 2 , p. 80, 86) se proponen extraer de sus textos algu n os tip os de utilización .
los problemas de delimitación que esta plantea, como se pone de manifiesto en algunos
textos analizados aquí.
La interrelación entre regla y lista o tabla es un punto esencial, pues no sería
pertinente, a nuestro parecer, disociar la naturaleza de la lista sin examinar con qué otra
técnica gramatical se combina (clasificación, regla, excepción, ejemplificación, entre
otros objetos discursivos) y el dispositivo explicativo general que permite crear para tratar
un punto de gramática. Si por herramienta lingüística se entiende un objeto que refleja
conocimientos metalingüísticos (a la manera de la gramática, el diccionario, manuales de
sinónimos, etc.) y que permite la comprensión, el control y el aprendizaje de dichos
conocimientos, la lista y la tabla satisfacen por sí solas esta definición. Como
herramientas lingüísticas integradas en una armazón técnica de alto nivel como es la
gramática, la indagación no puede obviar la cuestión de su posible autonomía dentro de
esa construcción. ^Pueden desgajarse del dispositivo y funcionar como instrumentos
independientes? Quien haya pasado por la escolarización tiene ya la respuesta: con toda
probabilidad, en sus anos de infancia hubo de memorizar verbos irregulares ingleses o la
serie de las preposiciones (simples) del espanol.
Desde el punto de vista metodológico, las listas, así como las tablas y los
paradigmas morfológicos constituyen elementos constructivos intrínsecos del género
discursivo gramática y deberían, por tanto, recibir un tratamiento cuidado en los estudios
historiográficos. La historia de las gramáticas se ha esmerado en trazar líneas de
continuidad o de ruptura a partir de objetos como definiciones, reglas, ejemplos, y
mediante paralelismos textuales y teóricos. La lista, en tanto material básico de
elaboración del discurso gramatical, es un elemento idóneo, si no indispensable, para
describir el devenir del tratamiento de una cuestión gramatical y para establecer líneas de
influencia a partir de la (re)utilización de inventarios (MARTIN GALLEGO, 2023). Sin
duda, la creación y la remodelación (anadidos, sustracción, reestructuración) de estos
objetos gráficos, pero también de tablas y paradigmas, es una de las tareas del gramático;
en algunos casos incluso, el tratamiento de una categoría consiste principalmente en la
gestión de la lista. A título de ejemplo, en las clasificaciones de conjunciones subyace un
elemento estable en la tradición hispánica: la reproducción de listas de subclases (art. cit.,
p. 258). Este hecho empírico convierte a las listas también en candidatas ideales para
establecer influencias directas sobre la base del empleo efectivo de material gramatical,
más allá de los nombres reclamados por los propios autores de gramáticas.
Tabla 1. Corpus*.
fecha autor fecha autor fecha autor
Me referiré a las obras mencionando solo el primer apellido de los autores salvo
ocurrencia que hemos podido constatar procede del foco inglés: “Despierto awaked, from
despertar to awake, whic hath also despertado, regular” (SANFORD, 1611, p. 42). La
cuestión de las parejas formales de participios se caracteriza por un tratamiento
discontinuo y una disparidad de los ítems gramatizados en la tradición preacadémica
(DÍAZ VILLALBA, 2019). Sin embargo, ambas temáticas, i.e. irregularidad y formas
dobles, están estrechamente conectadas. Concretamente, hay que senalar la importancia
de la elección del lugar de la obra donde se aborda la cuestión de la irregularidad: o bien
se consagra una sección específica al tratamiento de los PI, o bien se opta por un
tratamiento diseminado en las irregularidades de cada verbo o cada conjugación. La
primera opción es determinante, pues hace poner el foco en el participio y favorece la
aparición de cuestiones ligadas a la irregularidad como esta de las formas dobles (ibid.).
En cuanto a la posible diferencia entre los elementos de cada par, Correas ([1627]
1984, p. 184) se refiere al empleo en los tiempos compuestos de desdezido, soltado,
dixerido, rronpido, confundido, despertado6. Más cercano en el tiempo, Torre y Ocón
(1728, p. 276) explicita claramente la distinción categorial, oponiendo formas regulares
para conjugar al verbo frente a formas irregulares que funcionan como adjetivos.
En el segundo grupo, Salvador Puig (1770) prefiere enumerar por orden alfabético
todos los PI y los infinitivos correspondientes (“De Abrir, Abierto ”, p. 128), e incluye en
la serie los dobletes preso/prendido, resuelto/resolvido, suelto/soltado (ibid.), sin precisar
diferencias de uso entre ellos. También presenta RAE (1771, p. 173-174) los PI por orden
alfabético (29 ítems) y adopta además la forma de la lista, i.e. una columna, aunque agrupa
los prefijados de la misma raíz en una única línea (p. ejemplo, “hecho, contrahecho,
deshecho &c.” (p. 174). La lista viene completada por una observación:
Entre e llo s hay algu nos que p iden la term inacion regular quando se u san co n e l verbo
auxiliar, y así se dice: has confundido los papeles: han despertado del sueno: se han
hartado de fruta: he incluido tus cartas; pero quando se u san c o n otros verbos, p iden
com unm ente esto s participios la term inacion irregular, y así se d ice: m e v e o confuso:
estoy despierto, harto, haito: v a la carta inclusa. (R A E 1771, p. 174)
P a r t ic ip io s d e l o s v e r b o s .
ab ierto....................... abrir. (R A E , 1772, p. 177)
participios referidos nunca tienen terminacion regular” (RAE, 1772, p. 179). Esta
afirmación parece tener un carácter restrictivo al delimitar las únicas formas posibles. De
hecho, algunas de las “inexistentes” ya habían sido recogidas en obras anteriores como
PD 8, otras serán gramatizadas más tarde 9 .
Por otro lado, la tabla de los PD está organizada en tres columnas (ver Anexo I).
Se muestra a continuación la primera de las 35 líneas:
Tanto en el caso de los PI como de los PD, es plausible concebir que la disposición
en tabla procede de la articulación de varias listas. Concretamente, el origen parece estar
en la lista de PI, a la que se yuxtaponen una lista (infinitivos) o dos listas más (infinitivos
y PR). El resultado es una organización en forma de matriz constituida por dos entradas.
A título de ejemplo, para los PD es posible recorrer la información en dos direcciones: la
lectura vertical da acceso a las formas de una misma categoría (infinitivo, PR, PI), las
líneas horizontales ordenan formas de la misma base verbal según dichas categorias, es
decir permiten aprender o verificar las formas participiales a partir del conocimiento
del infinitivo.
El texto de RAE no describe la formación de los PI, como tampoco la tabla
introduce una clasificación de estos. Sin embargo, podemos establecer dos tipos
morfológicos. Por un lado, se incluyen numerosas formas cultas, que en latín eran
participios, tales como compulso, concluso, confuso, etc. Por otro lado, ciertas formas
podrían proceder de un participio también en latín, pero han sufrido evoluciones fonéticas
en el camino al romance (ahito, bendito, despierto, fijo, etc.). La relación etimológica de
estos últimos PI con los infinitivos correspondientes no es homogénea, pues en algunos
casos, es el infinitivo el que se ha formado a partir de un participio existente (por ejemplo,
ahitar, despertar, fja r, juntar).
10 D eb e entenderse absoluto e n el sentido de u n adjetivo sin com p lem en to, e s d ecir que no rige a otro
elem ento. E sto lo d iferencia de lo s verdaderos participios que p o see n e l régim en d el verbo.
en el detalle11. Los autores que expresan la regla II indican también la excepción (salvo
Bello), de los 4 ítems que proporciona RAE (1772), con escasas variaciones1112.
Fernández Monje
Martínez López
N
§>
Jovellanos
Avendano
Pelegrín
Calleja
Noboa
Ballot
Salvá
Bello
RAE
RAE
RAE
RAE
autores N
O
I
ca 1795
00
1847
1772
1796
1796
1826
1830
1839
1849
1854
1854
1793
1781
1841
fecha 00
número
35 35 34 35 27 35 35 34 135 16 5 5 35 35 62
de líneas
Las líneas contienen, como ya se ha indicado más arriba, tres tipos de elementos:
infinitivos, PI y PR. Resulta evidente que la tabla de RAE (1772) -que puede se puede
consultar en el Anexo I - constituye el modelo para 8 gramáticas posteriores. En otros 4
autores el número de líneas se reduce con respecto al modelo académico de manera más
sustancial, mientras que en 2 textos se produce un aumento considerable. Pasemos revista
a esta diversidad de opciones.
11 Tres autores, Jovellan os, C alleja y Fernández, in dican que se u tilizan lo s P R co n haber o para lo s tiem pos
com puestos, m ientras que lo s PI fu n cion an com o adjetivos. M u n oz Á lvarez op one el u so c o n haber y las
“dem ás oca sio n e s” . P elegrín presenta esta dicotom ía: por un lado, P R co n haber; por otro lado, PI com o
adjetivos y junto a lo s verb os ser, estar, tener. Salvá contrapone em p leo c o n haber y em p leo co m o absoluto
y co n lo s verb os ser, quedar, estar. R A E (1 8 5 4 ) con serva la d istin ció n que y a v im o s aparecer e n R A E
(1 7 9 6 ) entre com b in a ció n co n haber y em p leo co m o adjetivo o em p leo absoluto d el participio. Por últim o,
en B e llo se puede leer una regla form ulada de m anera laxa: “ Cuando hai d os form as para lo s participios, la
una regular i la otra anóm ala, p ued en no em plearse indistintam ente” (B E L L O , 1847, p. 141) y ofrece el
ejem plo de freído / frito (co n haber o ser se p ued en usar indistintam ente, co n lo s otros verb os se prefiere
el PI). S in em bargo, este autor no lo propone com o regla absoluta y opta por dar cuenta d el u so concreto de
cada uno de lo s 5 pares de P D que registra en su lista. E sta propuesta se halla, p o r su orien tación y por la
m anera de presentar la cu estión , m uy lejos de la sistem atización que se ob serva en la tradición acadêm ica.
12 P elegrín anade el PI ingerto, m ientras S alvá aum enta co n otros 4 PI lo s resenados por la RAE: frito,
impreso, inscrito y proscrito.
N o hai m as participios d uplicados que estos, porque otros m uchos que su elen ponerse
por tales, co m o electo, convicto, despierto, & c., se d eb en mirar com o m eros adjetivos.
C on clu irem os advirtiendo que e n caso de duda de si u n verbo es regular ó irregular,
por hallarse usado de lo s d os m od os i no estar decidido cual se ha de seguir, nosotros
preferirem os siem pre el m odo regular, tanto para el verbo co m o para todas las e sp e cie s
de palabras. (N O B O A , 1839, p. 1 5 8 -1 5 9 )
Se puede constatar que la limitación del número de líneas con respecto a autores
que siguen el modelo acadêmico se explica por dos razones: a) por no considerarse como
participios las formas que solo tienen un empleo adjetival; b) por la preferencia por no
conservar más que los PI en caso de duda ante el uso del PI o del PR. En cuanto al descarte
de formas puramente adjetivales, el autor no indica en el pasaje en quê criterio basa la
distinción. La gramática de Bello va en la misma dirección que Noboa, pero ilustra la
diferencia entre adjetivos y participios:
con verso a la fe cristiana," o que "los m ision eros le habian converso," sino expelido ,
confundidas, convertido. L o que no quita que lo s p oetas por una esp e cie de arcaism o
o latinism o u sen a v e c e s co m o participios a expreso, opreso, excluso, i otros. (BEL LO ,
1847, p. 142)
Figura 1. Tipos de enumeraciones, listas y tablas para la morfología irregular del participio
• PI 1) de PI 2) de PD
• PI
in finitivo PI in finitivo PI PR
• PI
• PI in finitivo PI in finitivo PI PR
• PI PI PI PR
in finitivo in finitivo
Cabe destacar que el tratamiento de los PI puede entrar en cualquiera de los tres
moldes, mientras que los participios dobles se incorporan raramente en las enumeraciones
y reciben frecuentemente una formalización en una estructura tabular.
podrían ser tres, etc.- lo que hace prefigurar la necesidad de un formato tabular, más
adaptado para este cometido.
Asimismo, la enumeración es susceptible de dar cabida a PD:
Otros hay que tien en una term inación regular, y otra irregular, tales son: prendido ó
preso , de prender; proscribido ó proscrito , de proscribir; proveido ó provisto , de
proveer; rompido ó roto, de romper, & c. (A L E M A N Y , 1829, p. 69)
autores consideran importante suministrar otro valor relevante, el infinitivo del verbo
correspondiente, convirtiendo la lista en tabla, como lo ilustra este pasaje:
Se esceptúan algu nos, que por lo m ism o se llam an irregulares, por ejem plo:
es un in finitivo es un PR e s un PI
1 1 1
forma de infinitivo ^ de ^ forma de PR ^ de ^ forma de PR
í í í
com o com o com o
1 1 1
forma de infinitivo ^ de ^ forma de PR ^ de ^ forma de PR
de adjetivos de raíz diferente a la del verbo pero que se relacionan por proximidad
semântica (enjuto frente a enjugado).
En segundo lugar, el paralelismo entre las dos listas induce a buscar una pauta de
uso. La tabla no nos informa en absoluto sobre el funcionamiento de las formas en la
lengua. Este desempeno corresponde al discurso metalingüístico, bajo la forma de la regla
de empleo II (véase tabla 2). No obstante, cabe preguntarse si esta regla casa bien con
todos los usos observables. La misma RAE enuncia desde el inicio la excepción a la regla
II para cuatro parejas de PD. Por otra parte, solo se dan ejemplos de unos pocos participios
(ver por ejemplo el anexo I). Algunos autores critican la existencia misma de ciertos PD.
Por último, habría que tener en cuenta el impacto de la actividad gramatizadora
sobre la representación del fenómeno. La elaboración y la persistencia de tablas en un
periodo relativamente dilatado dan una consistencia material a la cuestión y confieren una
imagen espacial característica que reproduce un juego de oposiciones y relaciones
estables. Por consiguiente, estas son susceptibles de ser descritas con pautas generales.
La imagen que se crea del fenómeno es importante debido a su eventual influencia
sobre los usos de la lengua. Si tomamos en serio la potencialidad de la tabla como
herramienta para manejar la lengua, también debemos hacernos cargo de las
repercusiones de su utilización en la conciencia y la conducta lingüística del hablante. De
manera general, las gramáticas en cuanto fâbricas de la lengua común (AUROUX y
MAZIÈRE, 2006), son susceptibles de introducir cambios en el ecosistema de esta última.
Sin duda, un examen atento de la relación entre gramatización de los PD y funcionamiento
de la lengua debería estudiar conjuntamente todo el dispositivo: tablas más reglas y
excepciones, ademâs de herramientas como los diccionarios. El aspecto que merece la
pena resaltar es que una herramienta lingüística funciona también como agente regulador,
en la medida en que la codificación llevada a cabo por la gramática influye y dirige
- ^hasta qué punto? ^en qué registros? - la actividad de los hablantes.
C onsideraciones finales
La cuestión de los participios dobles emerge como una continuación de la
descripción de los participios irregulares en la tradición hispânica, para cuyo tratamiento
ya se utilizaban las enumeraciones y en menor medida las tablas. Si bien el estudio de los
participios dobles puede aparecer en la tradición de manera discursiva (sin técnicas
Referencias
Fuentes secundarias
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H ay algunos verb os que tien en d os participios p a siv o s, el uno regular, y el otro irregular, y so n lo s
siguientes.
[180]
Verbos que tienen P a r t ic ip io s .
_________ i________
dos participios. i \
regulares. irregulares.
ahitar ahitado ahito.
b en decir bendecido bendito.
com p eler compelido com pulso.
con cluir concluido con cluso.
confundir. confundido con fuso.
con ven cer convencido con victo.
convertir convertido converso.
despertar despertado despierto.
eleg ir elegido electo.
enxugar enxugado enxuto.
exclu ir excluido exclu so.
exp eler expelido exp u lso.
expresar expresado expreso.
extinguir extinguido extinto.
fixar fixado fixo.
hartar hartado harto.
incluir incluido incluso.
incurrir incurrido incurso.
insertar insertado inserto.
invertir invertido inverso.
inxerir inxerido inxerto.
juntar juntado junto.
m aldecir maldecido m aldito.
[181]
m anifestar manifestado m anifiesto.
marchitar marchitado marchito.
om itir omitido om iso.
oprim ir oprimido opreso.
p erfeccionar perfeccionado perfecto.
prender prendido preso.
prescribir prescribido prescripto.
proveer proveido provisto.
recluir recluido recluso.
rom per rompido roto.
soltar soltado suelto.
suprimir suprimido supreso.
L os participios p a siv o s regulares de la segunda colum na se u san siem pre co n el verbo auxiliar haber para
form ar lo s tiem p os com p uestos, y así se d ice, has confundido lo s p ap eles : han despertado d el sueno : se
han hartado de fruta : he incluido las cartas. L o s irregulares de la tercera colum na se u san com unm ente
com o adjetivos verbales, y no p u ed en form ar tiem p os com p u estos co n e l verbo auxiliar, á e x c ep cio n de los
quatro siguientes: preso, prescripto, provisto, roto, pues [182] igualm en te se puede decir:
ha prendido ha preso.
ha prescribido ha presripto.
ha proveido ha provisto.
ha rompido ha roto.
Y aun es de m as u so roto que rom pido. Inxerto, opreso, y supreso su elen tam bien usarse c o n el verbo
auxiliar.
Daniela Lauria
Universidad de Buenos Aires, UBA, Argentina
Andrés Buisán
Instituto de Lingüística, FFyL, UBA, Argentina
Abstract: On March 24, 1976, the last civil-military coup d'état took place in Argentina. The
military junta that took over the government established State terrorism through torture,
disappearance of people, repression and censorship. The self-styled process of "National
Reorganization" began to be questioned a few years later, both by the denunciations of exiles to
international organizations and by a few local and foreign print media. In 1982, the dictatorial
government promoted the Malvinas War, with which it obtained, at the beginning and during
the war, a great social consensus. During the war, pressured by the de facto government, the
journalism gave a triumphalist version that favored the support of society. This interpretation
dissolved once the conflict was over, when the true and regrettable results came to light. The
consequence of this disillusionment was, on the one hand, the lack of credibility in journalism;
and on the other, the acceleration of the end of the military "process" and the advent of the
democratic opening. In this context, two months before the presidential elections were held, in
August 1983, the official news agency Télam published the Manual de normas elementales de
estilo aplicables a la redacción periodística de la Agencia Télam. Based on the historical
framework outlined above, we analyze, from the perspective of glotopolitics, the linguistic
ideologies circulating in that style manual in order to identify the agency's position in that
complex scenario.
Key-Words: Spanish language, linguistic and discourse regulation, Argentine, linguistic
instruments, journalistic practice
1 V. V arela (2 005).
2 V . sobre este tem a B etten d orff y C hiavarino (2 0 2 1 ) y V itale (2 0 2 2 ).
3 V arela (2 0 0 5 ) sostiene que la censura se ap licó de m anera diferente en distintos m ed ios. E n el caso de la
televisión , las diversas fuerzas se distribuyeron lo s can ales y crearon la figura d el “asesor literario” , que
controlaba lo s gu iones. E n cine y radio la censura fue m ás directa.
4 E sta editorial tam bién ju g ó un papel central en la v ersió n triunfalista de la Guerra de M alvinas
im pulsada por e l Estado M ayor. Cabe recordar el trucaje de fotografías realizado por la revista Gente y la
actualidad, de la m ism a em presa. E s recordada su tapa d el 2 7 de m ayo de 1982 en la que aparece una
fotografía que sim ulaba el hundim iento de u n buque y que estaba acom panada por el título “ jS egu im os
ganando!”.
5 E l diario La Opinión tuvo una postura crítica que derivó en su clausura. A dem ás, su director, el
periodista Jacobo Tim erm an, fue secuestrado y estuvo d etenido clandestinam ente entre 1976 y 1980. Otro
caso representativo de esta situ ación fu e el e x ilio forzado que d ebió em prender R obert C ox, director del
periódico Buenos Aires Herald.
A rtículo 1. Todas las in form acion es y las n oticias proven ientes d el exterior,
cualquiera sea su origen, u tilizadas por lo s m ed ios, y toda in form ación difundida por
lo s m ed ios orales, escritos o tele v isiv o s, relacionadas de algú n m odo a las
6 L as protestas no sólo ocurrieron en B u en o s A ires. H ubo tam b ién marchas y reclam os en Rosario,
N euquén, M ar d el Plata y M endoza. E n esta últim a ciudad, hubo u n muerto com o co n secu en cia de los
enfrentam ientos.
T élam ( .. .) exp resó una línea de continuidad c o n relativa estabilidad, claro que
atravesada por las fer o ce s ten sion es editoriales que sig n ificó co n v iv ir entre
dictaduras, guerras y dem ocracias de cuno conservador y popular, e n form a
alternada. Su rol tradicional de a gen cia para diarios y radios, im aginado en lo s '40,
se expandió tam bién a un servicio publicitario e n lo s 6 0 y se d iversificó c o n lo s
serv icio s m ultiplataform a pasados lo s 2 0 0 0 . C on las ventajas y dificu ltades que
con stituye depender e n buena m edida d el im pu lso estatal, T élam tam bién
experim entó la transform ación de ser u n m ed io m ayorista e n u n universo c o n p o co s
actores a las dem andas periodísticas renovadas que irrumpieron c o n la cultura digital
(2 0 1 9 , p. 59).
poco que se publicaba en la prensa gráfica o lo también poco que se transmitia por
televisión o por radio a través de los medios públicos debia pasar indefectiblemente por
el filtro de las FF.AA.
Durante gran parte de la guerra, enterarse de lo que realmente estaba ocurriendo
resultaba muy dificil dado que la información era encubierta, falseada y tergiversada.
Sobre este punto, Bargach y Suárez afirman: “Télam participó de la comunicación
oficial militar sin expresar matiz alguno. Y fue un eslabón importante en la campana de
distorsión de la información durante la guerra de Malvinas” (2019, p. 211).
Concretamente, la agencia oficial no podia dar a conocer los resultados negativos de los
combates ni mucho menos difundir la existencia de bajas del lado argentino8. Sin
embargo, unas lineas más adelante, explican que, si bien en la redacción central todos
los datos y detalles que se proporcionaban eran cuidadosamente supervisados, los
periodistas que alli trabajaban sabian con precisión cuál era la situación en las islas
porque recibian los cables de las agencias internacionales (2019, p. 212)9.
En los últimos cuarenta anos, Télam continuó funcionando ininterrumpidamente,
aunque con varias idas y vueltas por motivos politicos y económicos. En la actualidad,
la agencia de noticias oficial es una sociedad del Estado, dependiente de la Secretaria de
Medios, tiene 28 oficinas de corresponsalia distribuidas en todo el territorio nacional;
provee información a más de 2500 abonados, entre los que se incluyen medios de
prensa tanto nacionales como internacionales; y renueva la actualidad de las noticias en
tiempo real a través de su portal digital www.telam.com.ar, que cuenta con una versión
en portugués.
8 E l 8 de septiem bre de 2 0 2 2 se estrenó el docu m ental “L o s m ed ios de la guerra” coproducido por T élam
y R adio y T e le v isió n A rgentina (R T A ) que aborda la participación que tuvieron lo s m ed ios n acion ales y
extranjeros e n e l escenario b élico.
9 E n su investigación , Escudero C hauvel (1 9 9 6 ) sostien e que Clarín y La Nación no u tilizaron a T élam
com o fuente de inform ación durante el con flicto, sino que recurrieron a agen cias de noticias extranjeras.
Agencia de noticias EFE101, y el escritor y periodista del grupo Prisa (propietario, entre
otros medios, del diario espanol E l País) Álex Grijelmo presentaron un esbozo del
“Proyecto Zacatecas”, que consistia en la realización de un manual de estilo común para
todo el mundo hispanohablante11 que buscara unificar la variación (sobre todo, aunque
no sólo, en el nivel léxico) que circulaba por los medios masivos de comunicación a
ambas orillas del Océano Atlântico. En esa presentación, Gómez Font mencionó una
larga lista de manuales y guías de todo el continente americano, en la que figuraban
algunos textos argentinos publicados en esos anos, como, por ejemplo, el del diario
Clarín (1997)12, pero también se refirió a unos “Apuntes” de la Agencia informativa
Télam sin fecha, que muy posiblemente se trate del texto que analizaremos unas líneas
mâs abajo.
Esa presentación se hallaba en fina sintonia con la preocupación de la Real
Academia Espanola (en adelante, RAE) y del por entonces recientemente creado
Instituto Cervantes (1991) en torno a hacer frente y, de algún modo, controlar la
diversidad lingüística. Esta idea se concretaría, como sabemos, a comienzos del siglo
XXI con la presentación y puesta en ejecución de un nueva política lingüística
denominada panhispánica13 que vino de la mano de una renovación de los instrumentos
lingüísticos canónicos de la lengua espanola (gramática, diccionario y ortografía14) y
que, luego, se extendió a la regulación discursiva con, por ejemplo, la publicación de El
libro de estilo de la lengua espanola, según la norma panhispánica (2018), que se
ocupa, ademâs de cuestiones lingüísticas (gramaticales, léxicas y ortográficas) de
aspectos vinculados con cómo leer, como escribir, cómo hablar) en los medios escritos,
orales, audiovisuales y digitales. La iniciativa mâs reciente de la política panhispánica
es el Proyecto Lengua Espanola e Inteligencia Artificial (LEIA) que tiene como foco
velar por el buen uso de la lengua espanola en las máquinas y aprovechar la inteligencia
10 L a A g en cia E FE e s la prim era a gen cia de n oticias internacional en espanol. Fue fundada en 1939,
cuando el franquism o ascien de al p oder co m o co n secu en cia de su victoria en la Guerra C iv il Espanola. Su
sede está ubicada en Madrid.
11 E l nom bre o ficia l de la in iciativa era “P royecto de U n ific a ció n G rafem ática de la Prensa en L engua
E spanola” .
12 Se trata d el Manual de estilo. B u en o s Aires: C larín-A guilar, 1997.
13 E l docum ento program ático d el nuevo plan de a cc ió n lin gü ística llevad o adelante por la red de
academ ias de la len gu a espan ola se presen tó en e l m arco d el III C ongreso Internacional de la L engu a
E spanola e n R osario, A rgentina en 2 0 0 4 . V. Lauria (2019).
14A lgu n os de lo s n u evos instrum entos lin g ü ístico s so n e l Diccionario panhispánico de dudas (2 0 0 5 ), la
Nueva gramática de la lengua espanola (2 0 0 9 ), la Ortografia de la lengua espanola (2 0 1 0 ) y el
Diccionario de la lengua espanola (2 3 a ed ición , 2 0 1 4 ). M uchas de estas obras tien en v ersio n es escolares
y básicas. M ás in form ación en h ttp s://w w w .rae.es/obras-academ icas.
artificial para crear herramientas que fomenten el uso correcto del espanol en los seres
humanos15.
Volviendo al “Proyecto Zacatecas”, lo que mostraba la lista resenada por Gómez
Font era la gran proliferación de guías de estilo que circulaban por entonces, cuya
emergencia se podría situar hacia comienzos o mediados de los ochenta cuando se
reeditaron, por ejemplo, las versiones del Manual de estilo del periódico E l País de
Espana y se extiende la distribución del Manual del espanol urgente de la Agencia
EFE16. Estos manuales, según senala el mismo autor en un artículo actualizado (2019),
tuvieron amplio alcance en el mundo hispânico y sirvieron como modelo para la
mayoría de las pautas producidas por distintos medios de comunicación espanoles e
hispanoamericanos a partir de ese momento.
Esta propagación de materiales tuvo como consecuencia, siguiendo la
argumentación de Gómez Font (2019), la necesidad de plantear un proyecto común que
“limitara” la multiplicidad de instructivos y patrones estilísticos para la prensa en
espanol con la finalidad de homogeneizar la redacción de noticias (fundamentalmente
en lo que tiene que ver con ciertas voces como son los topónimos, los etnónimos, los
gentilicios y, muy especialmente, los extranjerismos (y sus opciones de realización
como son los préstamos crudos o adaptados y los calcos)) en los servicios informativos
de todo el mundo hispanohablante. El “Proyecto Zacatecas” se puso en marcha en 1997,
gracias al apoyo del Instituto Cervantes y fue interrumpido, unos anos después, desde la
RAE cuando se publicó, juntamente con la Asociación de Academias de la Lengua
Espanola (ASALE) y con el asesoramiento de Grijelmo y Gómez Font, el Diccionario
panhispánico de dudas (2005) puesto que un grupo numeroso de periódicos tanto de
Espana como de América ratificaron su adhesión a las normas y reglas allí consignadas.
Unos anos antes, en 1997, los dos diarios de mayor tirada de la Argentina,
Clarín y La Nación, habían publicado sus propios manuales de estilo17. Sobre la
18 Se trata d el m anual denom inado Perfil: Cómo leer el diario. B u en o s Aires: Editorial P erfil, 1998.
19 L a “crítica” que realizan las autoras, por ejem p lo, al libro de estilo de Clarín p on e el fo c o e n las
contradiccion es entre la norm a enunciada y la escritura asum ida en el propio texto que, a v ec es, no se
corresponde: e s decir, el m anual no cum ple las pautas que en él se proponen. Otro ejem plo es la
reprobación en el caso de Perfil a aceptar e l u so de ciertos extranjerism os y préstam os (sobre todo del
in glés) en la m edida en que ex iste n eq u ivalentes en esp an ol (baby sitter-ninera).
que dio lugar a un nuevo objeto de estudio. Por ejemplo, Arnoux (2015) examina una
serie de manuales de estilo para versiones on line de ciertos medios de comunicación.
Específicamente, indaga en ellos las indicaciones lingüísticas y discursivas que se
proporcionan y las representaciones del lector que se configuran a partir de las
ideologías lingüísticas que sostienen. La autora afirma que las normas tienden a
simplificar la redacción ya que exigen brevedad, claridad y literalidad. Estas
recomendaciones se basan en una concepción homogênea y neutral del espanol llamado
“internacional”, que se articula con la representación de un lector global que se resiste al
empleo de las marcas locales (2015, p. 142). A su vez, se detiene en las normas de
netiqueta que buscan regular, a travês de los usos lingüísticos, la vida social.
Por otra parte, Nogueira (2016) explora el manual Escribir en internet de la
Fundéu20. La autora explora las tensiones que se producen entre la apelación a fuentes
normativas tradicionales (como las que provienen de los instrumentos lingüísticos de las
academias de la lengua) y la necesidad de adaptarse a las nuevas circunstancias, o sea,
al dispositivo digital. En esta dirección, sostiene que la regla de estilo insoslayable es la
de la brevedad y que, a pesar de las recomendaciones de la Fundéu a la RAE en función
de las nuevas exigencias y demandas, esta última institución idiomática continúa
dictando la norma legítima, que la autora caracteriza como “global” (2016, p. 280).
Estas desavenencias entre normas rígidas, puristas y casticistas, y la adaptación a las
nuevas plataformas digitales se producen en una coyuntura en la que los medios han
consolidado su versión on line, la cual les ha permitido proyectarse globalmente.
Desde la perspectiva glotopolítica que estudia las intervenciones en el espacio
público del lenguaje asociándolas con posiciones sociales y espacios institucionales e
indagando en los modos en que aquellas, sostenidas por ideologías lingüísticas,
participan en la instauración, reproducción, transformación o subversión de entidades
políticas, relaciones sociales y estructuras de poder tanto en el ámbito local o nacional
como regional o planetario, Arnoux (2016) retoma y amplía el concepto de instrumento
21Para A uroux (1 9 9 2 ), lo s pilares d el saber m etalin güístico son la gram ática y el d iccionario m onolingü e,
tecn ologías am bas que dan cuenta d el proceso de gramatización, e s decir, d ela rev o lu ció n tecn o -
lingü ística que con d uce a describir e instrumentar una lengua. A propósito, el autor senala: “L a gram ática
no es una sim ple d escrip ción d el lenguaje natural, e s preciso con cebirla tam bién com o u n instrumento
linguístico: d el m ism o m odo que un m artillo p rolonga e l g esto de la m ano, transform ándolo, una
gram ática p rolonga e l habla natural y da acceso a u n cuerpo de reglas y de form as que no figuran jun tos
en la com p eten cia de u n m ism o locutor. E sto es in cluso m ás verdadero acerca de lo s diccionarios:
cualquiera que sea m i com p eten cia lingü ística, no d om ino ciertam ente la gran cantidad de palabras que
figuran en lo s grandes diccion arios m on olin gü es que serán p roducidos a partir d el fin al d el R enacim iento
(...). E sto sig n ifica que la aparición de lo s instrum entos lin g ü ístico s no deja intactas las prácticas
lingü ísticas hum anas” (1992: 70. L a traducción e s nuestra). L o s trabajos de la in vestigadora brasilena Eni
Orlandi y de su equipo de la U n iversidad E stadual de Cam pinas (U N IC A M P ) tam bién han reflexionad o
m ucho sobre lo s instrum entos lin g ü ístico s enm arcados en p ro ceso s de gram atización de lenguas
im puestas por la co lon ización . V ., entre otros libros, Orlandi (2001).
22 L as autoras se refieren al sentido que portaba ese sintagm a para cierto sector de la intelectualidad a
fin es del sig lo X IX y hasta entrado lo s anos v ein te d el sig lo X X .
Esta mirada sobre el idioma nacional, además de estar sostenida por el aparato
de censura de la dictadura, se plasmó, por ejemplo, en el decreto reglamentario de la
Ley 22285 de Radiodifusión de 1980 que, en lo que concierne al uso del idioma,
establece:
Art. 1: L as em isio n e s de radiodifusión deberán ajustarse a las sigu ien tes norm as: a)
D ar a lo s program as y a lo s m en sajes sentido de interés general; b ) R espetar lo s
sím b olos, lo s próceres y las in stitu ciones n acion ales o extranjeras, las personas, los
h ech o s y las ideas que sean objeto de com entario o de crítica; c) D estacar lo s lazos
de la unidad fam iliar y la trascendencia de ella co m o célu la b á sica de la sociedad
cristiana; d) U tilizar e l id iom a castellan o respetando sus ordenam ientos sem ántico y
gramatical;
Art. 2: E n particular, la transm isión de inform acion es, n oticias, com entários y notas
periodísticas se ajustará a las sigu ien tes normas: a) L as in form acion es deberán
brindarse co n anuncio de sus fu entes de origen; b ) Preferentem ente se difundirán las
de carácter nacion al y local; lu eg o las extranjeras; c) su con ten ido, form a y
oportunidad no deberán causar p ánico esp ecialm en te las correspondientes al ám bito
p o licia l, a estados de em ergencia o a desastres producidos por accid en tes, even tos
naturales o circunstancias de orden b élica que com petan a la D efen sa C ivil; d) El
tratamiento in form ativo o periodístico de tem as relacionad os c o n v ic io s o co n
p erversiones de la conducta hum ana, será efectuado co n toda m esura y brindará
elem en to s aleccionad ores o de p revención; e) L a inform ación sobre actos
su b versivos deberá ser em itid a e n cuanto a im agen , relato, interpretación o
referencia, afirm ando el carácter d elictiv o de lo s h ech o s a efe cto s de negar la a cció n
o propósito de lo s d elincuentes.
Por otro lado, Zaccari (2010) examina la Ley 21795 del ano 1978, que establece
que para que un extranjero se nacionalice, debe residir dos anos en el país y debe
acreditar “saber leer, escribir y expresarse en forma inteligible en el idioma nacional”
(2010, p. 375). De esta manera, la lengua se presenta como uno de los atributos
esenciales de lo nacional. Al respecto, la autora asevera:
24 E s abundante la b ib liografia sobre id eo lo g ía s lingü ísticas puesto que proviene de distintas disciplinas
de la lingü ística, segú n se resena e n Lauria (2 0 2 0 ). R esp ecto d el an álisis crítico de las id eo lo g ía s
lingü ísticas en la prensa, V . el libro co lectiv o com pilado por M arim ón L lorca y Santamaría P érez (2 0 1 9 )
así com o lo s artículos p u b licados en la revista cien tífica Circula
(https://circula.recherche.usherbrooke.ca/index-esp/) . L a prensa es, jun to co n la escu ela y e l propio
dom inio de la lin gü ística (el saber “experto”), uno de lo s m ed ios p rivilegiad os de irrupción, propagación
y d iscu sión de representaciones e id eo lo g ía s sobre el lenguaje y las len gu as debido a su am plia llegad a y a
la in fluencia que ejerce sobre la socied ad a la que se dirige. L a prensa e n tanto canal de transm isión
instaura, co m o se sabe, uno de lo s esp a cio s centrales de con stitu ción de la esfera p ú b lica donde se genera,
justam ente, la o p in ió n com ún, la m anera de pensar y de v er la realidad com partida por las m ayorías.
permite tratar los distintos temas, sean nacionales o internacionales, con la más absoluta
libertad, aunque sí, con prudência” (p. 7), es necesario e imprescindible que “tenga un
estilo propio y homogêneo, estableciendo ciertos parâmetros a los cuales habrá que
ajustarse para instalarse en el orden nacional e internacional con un estilo periodístico
definido” (p. 5).
El instrumento objeto de estudio está dividido en dos grandes partes: la primera,
destinada a aspectos textuales de la elaboración del género discursivo noticia, así como
a cuestiones generales vinculadas con la labor periodística, con foco en su dimensión
ética, tiene seis secciones: 1) Introducción, 2) Las actividades de una agencia noticiosa
(donde se explica la dinámica operativa: existencia de corresponsalías y tipos de piezas
informativas (flashes, primicias, despachos) con las que se trabaja); 3) La información
(donde se explica que la transmisión debe ser instantánea, precisa, objetiva (se debe
responder a las cinco preguntas centrales qué, quién, cuándo, cómo y dónde y tambiên
por qué o para qué), exacta (no se debe usar el condicional, se deben identificar las
fuentes y si se trata de un rumor, explicitarlo) y exhaustiva (no se deben dejar lagunas ni
vacíos de sentido); 4) El manejo de la noticia (se explica, a partir de modelos y
antimodelos, la progresión de la información mediante lo que se conoce como estructura
de pirámide invertida: copete fuerte, breve y conciso, y desarrollo desplegado); 5)
Extensión (se explica la cantidad máxima de palabras que deben tener las distintas
piezas de información con el fin de racionalizar la trasmisión por teletipo: los flashes no
debían tener más de cinco palabras; el boletín no más de 50; la crónica no más de 300;
la nota no más de 500 y la información urgente no más de 30 palabras); 6 ) Carillas (se
establecen las pautas de espacio máximo por página). La segunda parte, centrada en
cuestiones ortográficas, gramaticales y léxicas, está conformada por cinco apartados: 7)
Algunos aspectos gramaticales (la sección más extensa de todo el texto); 8 ) Normas
para noticias de policía; 9) Normas para noticias de deportes; 10) Etimologia de
palabras vinculadas al periodismo; y 11) Correspondencia entre los grados militares y
los de las fuerzas de seguridad.
Análisis
P rim er eje: regulación de la conducta y la ética periodísticas
Para alcanzar tales objetivos, se debe tener en cuenta, además, una serie de
obligaciones como son la obtención de la noticia por medios honorables, es decir, sin la
apelación a ninguna clase de subterfugios; guardar secreto de las confidencias que se
obtengan; no comprometerse con regalos ni favores ni recibir dádivas; no violar la
propiedad privada de las personas involucradas; identificar a quienes figuren en las
noticias; respetar la dignidad del tema y limitar el componente sensacionalista.
(p. 17).
• “El presidente Viola d e c l a r ó .” (p. 18).
• “El Teniente General Videla es el primer Presidente latinoamericano que visita
China” (p. 36).
• “El presidente de la Nación, general de división Reynaldo B ig n o n e .” (p. 56).
(p. 36).
Referencias
ANZORENA, O. Tiempo de violencia y utopía (1966-1976). Buenos Aires: Ediciones
del pensamiento nacional, 1998.
ARNOUX, E. N. de “Los manuales de estilo periodísticos para las versiones on line: las
representaciones del lector y su incidencia en la regulación de discursos y prácticas” .
Circula, 2, p. 138-160, 2015.
GLOZMAN, Mara y LAURIA, D. Voces y ecos. Una antología de los debates sobre la
lengua nacional (Argentina, 1900-2000). Buenos Aires: Cabiria, 2012.
LAURIA, D. “De «el espanol da batalla» a «la batalla por el espanol». Ideologías
lingüísticas en la prensa cultural argentina contemporânea: el caso de la Revista N ”. La
Rivada, 14, p. 37-62, 2020.
NIGRO, P. y GRILLO, M. del C. “Los manuales de estilo de los diarios argentinos” . In:
Sextas jornadas nacionales sobre normativa del idioma espanol. Buenos Aires:
Universidad Austral y Fundación Litterae, 1998, p. 1-9.
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar glossários produzidos pelas forças de
segurança no Brasil, mostrando que eles selecionam e definem palavras e expressões como
próprias de organizações criminosas, gozando de valor jurídico na medida em que são utilizados
como ferramentas de investigação e de produção de provas pelas polícias, Ministério Público,
advogados e juízes. Assim, num primeiro momento, detalhamos a produção e o emprego dos
glossários das forças de segurança, apontando os sujeitos envolvidos. Em seguida, demonstramos
que esses instrumentos giram em torno dos mesmos campos semânticos, com a definição dos
vocábulos significando as mesmas pessoas, ações e objetos como fora da lei, geralmente os jovens
pobres, o comércio e consumo de drogas e o porte de armas de fogo. Por fim, logo depois de
discutir a questão do sentido e da relação entre língua e direito, argumentamos que é preciso
recusar qualquer objetividade ou neutralidade na fabricação e aplicação dos instrumentos
linguísticos, pois, atravessando o debate linguístico, há a atuação de sujeitos afetados pela história
e pela ideologia, no nosso caso, os agentes de segurança que constroem o artefato em prol do
aparelho repressivo do Estado.
Palavras-chave: Glossários; Instrumentos Linguísticos; Forças de Segurança; Direito; Estado.
Résumé : Cet article vise à analyser les glossaires produits par les forces de sécurité au Brésil,
montrant qu'ils sélectionnent et définissent des mots et des expressions comme typiques des
organisations criminelles, jouissant d'une valeur juridique dans la mesure oú ils sont utilisés
comme outils d'enquête et de production de preuves par la police, les procureurs, les avocats et
les juges. Ainsi, dans un premier temps, nous détaillons la production et l'utilisation des glossaires
par et pour les forces de sécurité. Ensuite, nous démontrons que ces outils tournent autour des
mêmes champs sémantiques, avec la définition des mots signifiant les mêmes personnes, actions
et objets en tant que hors-la-loi, généralement les jeunes pauvres, le commerce et la
consommation de drogue et le port d'armes à feu. Enfin, après avoir évoqué la question du sens
et du rapport entre langue et droit, nous soutenons qu'il faut refuser toute objectivité ou neutralité
1 M estre em lin gu ística (PPG Letras/U FT). C orregedor-geral da Segurança P úb lica do Tocantins. E-m ail:
w and erson .q u eiroz@ gm ail.com .
2 M estre e doutor em lin gu ística (IE L /U N IC A M P , S O R B O N N E N O U V E L L E - P A R IS 3). P rofessor no
curso de Letras e no Program a de Pós-G raduação em Letras da U niversidad e Federal do Tocantins (UFT ).
Em ail: ed icarlos_aqu ino@ yah oo.com .br.
dans la fabrication et l'application des outils linguistiques, car, traversant le débat linguistique, il
y a l'action d’acteurs touchés par Fhistoire et l'idéologie, dans notre cas, les agents de sécurité qui
construisent l'artefact en faveur de l'appareil répressif de l'État.
Mots-clés : Glossaires ; Outils linguistiques ; Forces de sécurité ; Droit ; État.
Introdução
Os glossários têm figurado entre os componentes da atividade investigativa das
forças de segurança. Como instrumentos linguísticos produzidos por agentes públicos
para atender o trabalho das polícias e do poder judiciário, sua produção e emprego
colocam questões sobre o direito e o funcionamento do Estado. Como ferramentas de
investigação, eles instruem enquetes policiais que visam a busca pela “verdade dos fatos” .
Eles contribuem, portanto, para a principal peça de consolidação de provas e/ou indícios
de um crime, o Inquérito Policial, normatizado através do Código de Processo Penal.
Dessa forma, a criação de glossários pelas forças de segurança coloca os agentes frente a
dilemas linguísticos e jurídicos, na medida em que a definição dos significados registrada
nos verbetes converte o artefato em documento capaz de influenciar no direito à liberdade.
Para o funcionamento do sistema de Justiça criminal, no qual atuam polícias,
Ministério Público, advogados e juízes, são importantes os conceitos de crime, de prova
e de verdade. O Código Penal vigente não apresenta um conceito legal de crime, deixando
sua definição para os juristas, de forma que, entre os doutrinadores, a posição mais aceita
concebe o crime como fato típico (descrito em lei), antijurídico (conduta não socialmente
aceita) e culpável (característica psicológica de conhecimento ou possibilidade de
conhecimento de que a conduta é ilegal ou socialmente inaceitável) (MIRABETE, 2003).
Já a compreensão do que se entende por verdade tem estreita relação com o
conceito de prova em um processo ou procedimento de investigação. A prova é o
instrumento que o juiz utiliza para ter convicção da ocorrência ou não de um fato alegado
em um processo (GRINOVER, 2001). Ela é “a existência da verdade”, “os meios pelos
quais se procura estabelecê-la”, “os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio
juiz, visando estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos” (TOURINHO
FILHO, 2003, p. 215). O Código de Processo Penal apresenta uma série de normas a
respeito da produção de provas, considerando suas várias modalidades, a exemplo das
3
A lgu m as das p eças apresentadas aqui se encontram em sig ilo de ju stiça e sua utilização para esta p esq uisa
fo i autorizada através de d ecisão ju d icial. E m todo caso, o s n om es d os in vestigad os foram suprim idos para
preservação de sua im agem . M a n tev e-se sem pre a redação original.
Em uma t r a n s a ç ã o de t r a n s p o r t e e d i s t r i b u i ç ã o de e n t o r p e c e n t e s , P a p a lé g u a s ( t r a f i c a n t e do PCC)
c o n firm a que arrum ou o c a r r o e n c a r re g a d o de t r a n s p o r t a r a d ro g a que d i s t r i b u i r á o BOB
( d i s t r i b u i ç ã o de p o rç õ e s d e e n to r p e c e n t e s f e i t a s a o s f a c c io n a d o s p a r a que obtenham r e c u r s o s
Ressoando sua origem na Idade Média, com as glosas saindo das margens dos
textos para ocupar produções independentes das obras originais, os glossários das forças
de segurança também vão sendo compostos a partir do trabalho, frequentemente coletivo,
e às vezes não assinado, de inserção e reunião de glosas e comentários nos relatórios de
investigação (QUEIROZ, AQUINO, 2022).
Uma vez produzido, são vários os sujeitos que podem manusear um glossário
dentro de um procedimento de investigação: os próprios policiais, os membros do
Ministério Público, as autoridades judiciárias em diferentes graus de jurisdição, a defesa
dos investigados, os indiciados e os réus. Como a interpretação é sempre um gesto, cada
um deles poderá manipular a ferramenta de uma determinada maneira, de forma a chegar
a conclusões diferentes.
No exemplo da Figura 4, o delegado de polícia mobiliza o glossário através de um
relatório de investigação policial para definir as palavras “quadrada” e “caroços” como,
respectivamente, “pistola” e “munições”, identificando, assim, a posse de apetrechos
ilegais. No alto do documento, o delegado comenta o conteúdo da conversa que vem
r t t k u n v n d o e s t a d o d o r o r a v t iv s
D U iG A U A I %Pf U A II/A D A VA M P M S li O A N A U A T IT O t
Q letetonaparauber M o»tubcrdnado» haeam u peOocatjoparapegaratnunçAet que
at» aOquera para o grupo Ourarao a ootMtu. Vila onenca GO a PT H trt ránoa astutos
procurar novos mambro» para babamos and» armado ma» ev<ar a g a ljio Via afrma qua r»
ptomdaooara un rauChar a uma patota iquaoadal Via im a u qua at mjnçcm (I auto
•aparadas ió pracaam a buact-laa
D ------------------------ • « L _ _ 1------------------
l í n i u d i v t l ) • • • n í q u c l i h o rã a linhA IA
caiu m u p a d rin h o , d t s l i g o u o t t l A f o n t do
Q
CnttndAu p o r r a , ccoo A q-« t a po r ã i ?
T* auava nau p a d r in h o , taiao a l na l u t a a l
a
DEU CERTO DE IR LA nAo PEGAR OS CAROÇOS
(MUNIÇÕES) LA MÃO'1
a
Dau c a c to DO PT IR LA BUSCAR OS CAROÇOS
5□= S i l v t m ü p a d r in h o , # t u o PT ha v o s »
£ nôs PT.
F s lê « in h á v l d â , o t r a n s p o r t a a q u i q u t t u
t l s b â t ^ u i d i s p o n i v t l a q u i, o u s t t s ? TA
O liQ ê d o , o t s á n o i IA, tA 1iç a d o , d l s s t q u t
n u s h o 't r.Ao dá va * t i t o p r á d á i t s s t r o l é
r,á City IA nAo, tA I tq â d o v t í n ?
P ic o u C á b rtr o axr.o.
produzido por inquérito policial a definição da expressão “Geral dos Estados”, que é
associado ao nome de um dos investigados em mensagens de WhatsApp: “Também
chamada de TORRES. É um conselho formado por 5 (cinco) pessoas, sendo 1 (uma) delas
superior as outras 4 (quatro). Estas pessoas exercem posições de liderança entre os
membros da facção e estabelecem contatos com as demais ‘GERAIS’ existentes em
outros presídios e na rua (...).”
M IN IS T É R IO PU BLIC O
ESTADO DO TOCANTINS
Os denunciados Milionário, {
v. 357, e ' "w . "Vila", compõem o
Av FiUddfa. n. 2855. Jantai AmciK*. AnguaiiiaTO. CFP 77813-120. Telefone |6J) 3411*7400
PA LA VR A S E EXPRESSÕES
A
GLOSSÁRI O >- • APOIO DAS CASAS OU APOIO EXTER! IO n s p c n s M cm fornecer suporte a nem bccc da OfiCRIM
que estão nas ruas ou enclausurados.
DE P A L A V R A S E E X P R E S S Õ E S
■ • APOIO DO RESUMO função dentro do ORCJUM que opina na: deasoe: de ineeresee da faoçao
U T I L I Z A D A S PELO
inchando assuncos ausentes a *pum:6es cacimbes" de seus membros, iko é, ratifica as deosbes de instâncias
PRIMEIRO C O M A N D O DA C A P I T A L m ie m .
.• ATO DE ESPERTEZA ato de indivíduo que usa àt cai & ou abusa da tcofianca depositada. Zc pastee
cocn a rodagem, coneudo, a diferença C que o are-jd-tade confia e anua rendo lesado. Punição: exdusac sem
retorno. cobrança a ser analisada. Discriminado em Cerriüu át COndura?
• . ATO DE TAIARJCO: aro de indivíduo que tenta in d id r eeatalmence mulher de ouso e aao t
cccrrtponcidc uso de elogios, gestos e tenrasva de concatos aao apropriados. Ver Carrüta dr Condução.
■ • , ATO DE MALA? IDRISMO: ato de indivíduo que usa de pretsao patologia oa força f la a para subtrair
algo de terceiros, bem como agredí Los. Punível com eaduaão e cobrança a ser rewlie-v*» pela Svtronic.
Discri minado em Gcraifc dr C ontçO s.
• --ALTO: gíria utdisada para identificar indivíduo çue esta aob fcctt e fieito de eneoepeceate. Tulano esta
n
_
AVIAO indivíduo que fas a intermediação da tom pa e veada do entorpecente, levaado ao usuário
Reponsa; Regional 34; Restrita; Sintonia Final Geral; Sintonia dos Cigarros; Sintonia do
Trabalho; Salveiro; Setor do Embrulho; Vapor/Vaporzinho.
A tentativa de esgotar o vocabulário do universo dos criminosos pode ser notada
no emprego de elementos gramaticais e sinais de pontuação como conectivos, barras e
parênteses, para mostrar a variação de alguns verbetes, como “Apoio das casas ou Apoio
Externo”, “vapor/vaporzinho” e “Geral da Financeira (Geral Financeiro)”, bem como na
declinação de muitas palavras, para dar conta de descrever toda estrutura da organização
criminosa, como “Apoio”, “Disciplina”, “Final”; “Geral” ; “Guarda-Roupa”; “Livro” e
“ Sintonia” . Para o termo “Geral do”, por exemplo, são apresentadas nada menos que 30
derivações, cada uma descrevendo lideranças e responsabilidades específicas na dinâmica
das atividades criminosas.
Vejamos alguns exemplos da forma como as palavras e expressões que se referem
à estrutura hierárquica das organizações criminosas são definidas no glossário:
ju ízo; interm edia o contato entre integrantes da facção crim inosa (“irm ãos”), b em
co m o de sim patizantes (“com panheiros”) co m ad vogados contratados p elo grupo
crim inoso. O trabalho d essa frente, em síntese, é arregimentar assistên cia jurídica. O
indivíduo con h ecid o co m o “G R A V A T A ” p rom ove atividades cotidianas, co m o a
participação em “con ferên cias telem áticas” , entre outros. P erceb e-se que se subdivide
em d ois grupos: aqueles que são efetivam ente v in cu la d o s tão som ente ao P C C e;
aq ueles que exercem atividades terceirizadas em ocorrências pontuais.
G E R A L D O P A IO L : setor resp onsável em arrecadar d oações, no intuito de
fortalecer a estrutura b élica do “ C om ando”, b em com o subsidiar o s integrantes que
não p ossu em recursos. A s d o a çõ es são diversas, dentre elas: celulares, m ed icações,
substâncias entorpecentes, a lém de material bélico (“ferram enta” , “brinquedo” ,
“b ang”) e seu s insum os, co m o apresentado. A inda, v er ific a -se que tal arrecadação se
fa z por interm édio do com ércio de drogas, para fin s de aquisição, salvaguarda,
com ercialização e/o u em préstim o de armas, m u n ições e e x p lo siv o s aos m em bros, para
a prática de crim es diversos.
G U A R D A -R O U P A : cod in om e usado para se referir a p esso a resp onsável e /o u local
destinado ao acon d icionam ento de drogas em grande quantidade.
L IV R O B R A N C O : resp onsável p elo registro e salvaguarda de in form ações
referentes a “b atism os”, ou seja, a inclusão de n o v o s m em bros na ORCRIM .
P o ssiv elm en te, é localizad a hierarquicam ente na estrutura do PCC, abaixo da
“GERAL D O S C A D A ST R O S” .
Q U A D R O D I S C IP L IN A R 14: resp on sável por m anter a ordem de acordo co m o
Estatuto e Código de D iscip lin a da ORCIM . A tua dentro das U nidad es Prisionais
(“D IS C IP L IN A D O SIST E M A ) e nas ruas (“D IS C IP L IN A D A R U A ). C uriosam ente,
dentro das U n id ad es P en ais, o s integrantes lig a d o s à “D ISC IP L IN A ” seriam
auxiliares do “JET” no P avilh ão/A la/R aio.
R E S T R IT A : F accion ad os que, por exem p lo, não falam co m qualquer outro m em bro,
e sim c o m setores esp e cífic o s. E m 2 0 1 7 fo i identificada co m o u m a célu la de
in teligên cia do crim e resp onsável por m issõ e s crim inosas esp ecíficas. V er
“ G U A R D A R O U P A D A R E S T R IT A ” .
S A L V E IR O : incu m b id os da d ivu lgação e propagação d os “ S A L V E S ” exarados p ela
“ S IN T O N IA F IN A L ” . A lém d isso, são corresp onsáveis em m anter o planilhamento
d os contatos d os integrantes da ORCRIM . O indivídu o co m status de “ SA L V E IR O ” ,
e que esteja preso, é responsável p elas relações públicas intra cárcere. P ossivelm en te,
é considerada hierarquicam ente na estrutura do PC C co m o sendo um a p o siçã o de
staff.
estão presentes para indicar fatos como a origem estrangeira de uma palavra, como staff
na definição de “ Salveiro” e branding na de “Geral do Estado” . As definições também
focalizam duplos sentidos, sinônimos e mesmo a datação dos termos, como se pode ver
nos verbetes “Geral do Estado”, “Guarda-Roupa” e “Restrita” . Além disso, a nota de
rodapé aparece como um recurso para abarcar toda a significação possível das formas
linguísticas. A definição do verbete “Geral do Estado” é completada pela seguinte nota
de rodapé:
Inicialm ente, era cham ada de “T O R R E S” . É u m con selh o, sendo 1 (um a) d elas
superior. E stas p esso a s ex ercem p o siçã o de liderança entre o s m em bros da facção e
esta b elecem contacto co m as dem ais “ G E R A IS” ex isten tes em outros presídios e na
rua. D entre suas fu n çõ e s está a transm issão de inform ação e criação de norm ativas e
diretrizes de p roced im en tos, b em co m o o controle e a d iscip lin a d os m em bros que se
encontram p resos e o s que se encontram em liberdade.
Também são incluídas marcas metalinguísticas ou, para ser mais preciso, rubricas
nas definições dos verbetes, como na palavra “Guarda-Roupa”, caracterizada como um
“codinome” . Podemos encontrar uma outra ilustração de classificação das formas
linguísticas no glossário da Secretaria de Administração Prisional de Minas Gerais na
definição do verbete “Alto” : “gíria utilizada para identificar indivíduo que está sob forte
efeito de entorpecente. ‘Fulano está alto’” . Esse é um dos vários registros de palavras do
cotidiano tomadas equivocadamente como expressões codificadas da fala de criminosos,
algumas com sentidos semelhantes aos encontrados nos dicionários e outras
simplesmente mais comuns entre jovens das periferias. Vejamos alguns outros:
ju lgam en to de determ inada situação ou con flito entre o s integrantes do grupo ou até
m esm o de “com p anheiros” . P rocedim ento inerente ao setor disciplinar, on de serão
ex p o sto s o s m otivos, aleg a çõ es e d efesa da p esso a inquirida. E m term os gerais,
tam bém é a form a adotada para lidar co m situ ações esp ecífica s e rotineiras no
universo da ORCRIM .
E X C L U S Ã O D A O R C R IM : v ia de regra, con tem pla o s in divídu os que serão
ex p u lso s da organização crim inosa p or descum prim ento de regras e norm as previstas
em Estatuto próprio. Tam bém , poderá ocorrer por op ção/m an ifestação/in iciativa do
próprio integrante, por m o tiv o s pré-determ inados. N o caso de o in divídu o “entregar a
peita” , isto é, pedir a sua exclu são da O RCRIM , o indivíduo N Ã O poderá em hipótese
algum a d edicar-se a prática de atividade crim inosa extra.
R E M A N E JA M E N T O : m udança de responsabilidade/setor con form e co n v en iên cia ou
n ecessid ad e da O RCRIM . P erceb e-se que alguns in divídu os se sob ressaem m elh or
nas tarefas quando rem anejados.
R E T IR A D A S : o s entorpecentes que estão arm azenados no “G U A R D A -R O U P A ”
são retirados do lo c a l para com p or o estoq ue das “L O JA S D A F M ” - varejo. N outro
prism a, p od er-se-á tratar-se de saques bancários.
T A B U L E IR O : reunião de m em bros-líderes co m responsabilidades. Esta, pode ser
v ia con ferên cia telefô n ica ou p essoalm ente. T odo con flito, sejam eles de dívid as de
drogas, p essoais, d enúncia de m em bros para autoridades, fica r em débito co m o
recolhim ento da “C E B O L A ” ou débito da “R F” , dentre outras transgressões, é
oportunidade de se m ontar o dito “T A B U L E IR O ”, sendo que o aval para a eventual
punição será deliberado p ela “ S IN T O N IA F IN A L ” , personificado através da figura
do “ G E R A L D O E S T A D O ” de cada Estado da Federação. Outra d efinição para
“T A B U L E IR O ”, com u m ente u tilizada nas relações entre faccion ad os, é o ato de
rem anejar in divídu os para quadros estratégicos da O RCRIM , o s quais estejam
d eficitários, co m o p or exem p lo, no caso de um integrante ser preso ou falecer.
T I R A R A C A M IS A O U R A S G A R A P E IT A : pedir para ser d esligado da O R C RIM
(é p o ssív e l, entretanto, d eve ter um a ju stificativa p lau sível e se com prom eter a não
prejudicar o grupo).
g l o s s Ar io - geral
GLOSSÁRIO - ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
15.3.3: Estes números significam "PCC". Para cakaiar os números, basta somá-los.
0 número 15, é a 151 letra òc Alfabeto brasileiro, o "P". 0 numero 3 è a 3a letra òo
AÇÚCAR: Cocaína.
Alfabeto brasileiro, o "c", então 15.3,3 decodificando. Os números significam "PCC".
ADIANTO: Fuga ou plano de fuga. Ex.: Vai ter um kadianto* hoje; Melhorar algo ou
alguma coisa (alcançar benefício). Bl/JK
alfabética, ele trabalha a sinonímia, a polissemia e a origem das palavras na definição dos
verbetes, fazendo uso de exemplos:
Pelas definições de “Interno” e “Irmão” acima, vemos que há pelo menos duas
vozes escutadas na construção da significação das palavras e expressões selecionadas
pelo glossário do Sistema Penitenciário do Mato Grosso do Sul, a dos agentes
penitenciários e a dos internos do sistema prisional, o que reforça a compreensão de que
os glossários podem ser constituídos através de posições discursivas diferentes, cada uma
assumindo um “lugar de língua” (cf. MEDEIROS, 2016). De qualquer modo, mais uma
vez, muitas palavras do cotidiano e/ou empregadas por jovens (pobres) são tomadas
equivocadamente como expressões linguísticas típicas de criminosos:
B A R R A C O : Cela, confusão.
B A G U L H O : Term o u tilizado para D roga, ou ainda pode ser entendido, em
determ inado con texto co m o “a situação ou um local que, esta ficando fora do
controle” . Ex.: “E aí, irmãos? Seguinte, o bagulho da loco aqui... ”
F E C H A C O M N Ó IS : Fazer u m pacto entre am bas as partes.
L A R A N J A S : preso que assu m e algo que não praticou. Testa-de-Ferro.
M O C Ó : E sconderijo (buraco) feito p elo s internos para escon d er m aterial licito.
P A S S A R U M P A N O : D e ix a pra lá, esquecer, perdoar.
Q U E N T IN H A : M arm itex do alm oço ou janta.
S A N G U E B O M -G E N T E : B o a pessoa.
A banar sinais criadas pelas presas para se comunicar com os detentos da penitenciária masculina
A ju d a/in h a
alcagüetar Dedurar. passar informação ou acusar alguém
alcagüete Aquele que alcagüeta delata
At ã Simular, dar cobertura
A rreg açar o mesmo que "botar pra quebrar", espancar, se dar bem Ex vamos arregaçar a fita.
vamos arregaçar o Cilha
Avifto indivíduo que repassa drogas, pratica a venda de drogas, ou apenas transporta para
alguém Ex fazer um avião, aviàozinho. etc (Ver também mula)
Bagulho Maconha, também sâo assim chamadas as m ercadorias resultantes de furtos c roubos
B alançar a cadeia Revolta gritaria
Balinha Porçào destinada a fazer c igano de maconha
Barca viatura policial que realiza escoltas, significa apenas as viaturas maiores, tipo Blascr ou
F-1000, evcntualmcntc rcfcrc-sc a ROTAM
B arulho ou fazer um barulho, rcvclar-se. promover gritarias
B erro revólver
Bicuda Estoque faca
Boi Buraco dentro do coletivo, destinado á satisfação das necessidades fisiológicas
Boiar ser preso, transitar, nào ficar escondido. "Dar trela"
Boiola Homossexual
Bomba aparelho celular habilitado c utilizado pelos presos no interior de presídios ou
estabelecimentos penais diversos, como cadeias públicas, colônias penais, etc
Bonde transferência de uma cadeia (ou presidio| para outro: também utilizado como evasáo
fuga (fazer um bonde) O bs em minas o termo nâo tem a mesma significação que no Rio
de Janeiro, onde é empregado como grupo armado que participa de várias operações,
mormente contra a policia
B otar ferro p ra o mesmo que passar o cano
d entro
Bota - fora advogado
botinha C igano com filtro
B raço (ou shock) Pessoa de confiança, pode ser homem, mulher ou criança
B ranco (a | cocaína
B rinca dem ais expressão exageradamente empregada c que significa facilitar muito, dar muita bobeira.
dar muita trela
B rinquedo arma ou armas em geral
Brizola Cocaína
Bronca assalto
C abrito veiculo adulterado, rouhado ou furtado: detento homossexual ou que é obrigado a ter
relações sexuais com outros presos
( abuloso incerto, am scado. pengoso. ameaçador Ex fita é cabulosa: Dim é um cara Cabuloso
A Ç Ú C A R : Cocaína.
B E R R O : A rm a ou revólver.
B O B E S P O N J A : M aconha.
C H U T E IR A S : A rm as de fo g o (revólver ou pistola).
G A IT O R A D E : B eb id a preparada para matar o indivíduo, p orém tem o ob jetivo de
sim ular su icídio ou dar fa lsa im pressão de o v er dose. Tal b eb id a é u m preparado, onde
seu s ingredientes são basicam en te água e cocaína. Inicialm en te era preparado co m
água, cocaín a e viagra.
G O L IA S : E sp écie de fa ca feita a partir de ferros arrancados das grades.
P E Ç A : Arma
P E D R A : Crack ou cam a. O u ainda situação que, o preso não tem nada (pertences).
Q U A D R A D A : P istola.
Q U ÍM IC A : pasta b ase de cocaína.
R E L Ó G IO : Fuzil.
V A S S O U R A : Fuzil.
Se voltamos ao glossário do Ceará, são os mesmos objetos que são mirados nas
definições dos verbetes, com várias palavras e expressão para indicar arma de fogo
(“Brinquedo”, “Cano”, “Draga”, “Dragão”, “Ferro”, “G ou G 3”, “Macaca (ou
macaquinha)”, “Máquina”, “Metranca”, “Oitão”, “Quarenta”, “Três oitão”), maconha
(“bagulho”, “coisa”, “Dar um tapa na cara”, “Fino”, “Preto”, “Tijolo”) e cocaína
(“Branco(a))”, “Brizola”, “cimento”, “Corneta”, “Farinha”, “Narizinho”, “Papel”,
“Poeira”, “Talquinho”).
A recorrência dos mesmos elementos nos diversos glossários das forças de
segurança nos permite entrever certas ausências: drogas mais caras que a maconha e o
crack, jóias e artigos de luxo e tantos outros produtos reservados a pessoas de grande
poder aquisitivo e, não raro, político. Essas ausências deixam sem nomeação e definição
crimes como corrupção, sonegação de impostos, tráfico de influência, fraude processual,
entre muitos outros delitos cometidos por gente que mora bem longe da periferia e que
torce o nariz para a forma como falam aqueles que foram jogados para fora do centro.
Eis, portanto, a definição de crime que se encontra na prática lexicográfica dos glossários
das forças de segurança: crime é o ato cometido por pobres e pretos4!
4 D ev e m o s a form ulação a P hellipe M arcel da S ilv a E stev es, a q u em registram os n o sso agradecim ento.
estariam empregando outros sentidos que não aqueles do senso comum para algumas
formas linguísticas. O entendimento de que certas palavras colocarão dificuldade de
compreensão pelos agentes da lei revela a questão da alteridade e da tradução: a língua
atribuída ao criminoso precisaria ser traduzida. Ignora-se, no entanto, a possibilidade de
que as palavras assinaladas não correspondam necessariamente a uma forma codificada
de uma linguagem do crime, mas, sim, que sejam de utilização costumeira no espaço
geográfico e social do falante investigado, embora desconhecida no universo linguístico
do investigador.
Os equívocos de interpretação dos sentidos das formas linguísticas ditas de
criminosos não se explicam pela ausência de critérios técnicos normativos ou legais para
a produção de glossários pelas forças de segurança, pois não há técnica capaz de resolver
o problema da significação, isto porque o equívoco é “constitutivo da relação do sujeito
com simbólico, qual seja, sua relação com a ideologia e com o inconsciente”
(ORLANDI, 2020a, p.150). A questão do sentido ou da significação é o encontro do
sistema linguístico com fatores históricos, sociais e ideológicos (HAROCHE, 1992).
Num movimento que não ocorre de forma consciente, quando se põe a construir um
glossário com palavras e expressões próprias de criminosos, o investigador é afetado
pela história e pelos processos políticos que lhe pesam, pois, “para significar, insistimos,
a língua se inscreve na história” (ORLANDI, 2012, p. 27). No entanto, há modos de
interpretar, havendo limites para a interpretação, além de intérpretes autorizados
(ORLANDI, 2020a). Para alguns, por exemplo, a existência de critérios normativos e
uma formação em Letras e Linguística (Forense) seria garantia da validade de uma
ferramenta como um glossário de termos do crime.
A identificação, seleção e definição de palavras para compor um glossário é um
processo complexo, pois a interpretação lida com variáveis como a incompletude da
linguagem, a possibilidade de equívoco, a historicidade, a politicidade, a relação entre
pensamento/linguagem/mundo, a memória, a classe social, a ideologia, a heterogeneidade
do que é dito/escrito, etc. (ORLANDI, 2020b). Seria fácil dizer o que uma palavra
significa se o sentido fosse natural, mas, em resumo, esse último se define histórica e
politicamente, estando, portanto, sempre em disputa: “os sentidos não se fecham, não são
evidentes, embora pareçam ser” (ORLANDI, 2020b, p. 09). É dessa forma que a
interpretação de sentidos é uma atividade subjetiva, de modo que a análise de uma
palavra, frase, expressão, ainda que sobre um mesmo objeto, possibilita várias
interpretações.
lexicais com as mesmas definições que constam nos dicionários, mas, em todos os casos,
sem qualquer relação direta com atividades criminosas. No entanto, como as balas
perdidas, os equívocos nas definições dos glossários das forças de segurança no Brasil
atingem sempre os mesmos corpos, aqueles dos jovens, pobres e pretos, cujas falas são
interpretadas, com o amparo de instrumentos linguísticos, ferramentas sempre
imperfeitas, como signos de adesão à criminalidade.
Referências
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Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Université Sorbonne Nouvelle-Paris
III, Paris, 2016.
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xeque. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2013.
GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 7. ed. São Pulo: Revista
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HAROCHE, Claudine. Fazer dizer, querer dizer. São Paulo: Hucitec, 1992.
MANSOLDO, Mary. Verdade real versus verdade formal. Site: Conteúdo Jurídico.
Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/open-
pdf/cj028870.pdf/consult/cj028870.pdf. Acesso em 03 jul. 2023.
MEDEIROS, Vanise. Cartografia das línguas: glossário para livros de literatura. Revista
Alfa , São Paulo, n. 60 (01), p. 79-93, 2016.
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ROSA, Alexandre Morais. Para você que acredita em verdade real, um abraço. Site
Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-16/limite-penal-voce-
acredita-verdade-real-abraco. Acesso em 03 jul. 2023.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 5. ed. São Paulo:
Atlas, 2003.
Resumo: Este artigo celebra as ideias de Sylvain Auroux estressando seu viés filosófico. O texto
aproxima, por diferentes vias, a Filosofia da Linguagem da História das Ideias Linguísticas
(também HIL), perturbando suas margens tranquilas e borrando seus limites assinaláveis. Como
questão central, o texto discute dois possíveis interesses de investigação para a HIL, apreendidos
pelo seu caráter de instrumento linguístico e de artefato cultural filosófico. Os objetos de reflexão
propostos são os dicionários filosóficos e os glossários integrantes de obras filosóficas. Ao engajá-
los, a tessitura descreve dois deslocamentos: um conceitual e um epistêmico. Em relação ao
campo dos conceitos, se propõe pensar a produtividade do termo artefatos culturais filosóficos,
como análogo e concorrente do termo instrumentos linguísticos. Referente ao conhecimento
epistêmico, a proposta é ressaltar na HIL sua proximidade com a filosofia. Entre as conclusões,
pode-se ressaltar a caracterização dos dicionários filosóficos e os glossários que compõem textos
filosóficos como instrumentos de saturação referencial e de estabilização conceitual.
Palavras-chave: Dicionários filosóficos; Glossários em filosofia; Artefatos culturais filosóficos;
História das Ideias Linguísticas; Filosofia da Linguagem
Abstract: This paper celebrates Auroux's ideas by stressing their philosophical facet. The text
brings the Philosophy of Language and the History of Linguistic Ideas (also HIL) closer by
different ways, disturbing their quiet margins and blurring their unmistakable limits. As a central
question, the text discusses two possible research interests for HIL, apprehended by their
characterization as linguistic instrument and as philosophical cultural artifacts. The proposed
objects of reflection are philosophical dictionaries and glossaries that are part of philosophical
works. By engaging them, the paper describes two displacements: a conceptual and an epistemic
one. Regarding the field of concepts, it is proposed to think about the productivity of the term
philosophical cultural artifacts, as an analog and competitor of the term linguistic instrument.
Regarding epistemic knowledge, the proposal is to stress HIL as a philosophical enterprise.
Among the conclusions, one can highlight the characterization of philosophical dictionaries and
the glossaries that compose philosophical texts as instruments of referential saturation and
conceptual stabilization.
Keywords: Philosophical dictionaries; Glossaries in philosophy; Cultural-philosophical artifacts;
History of Linguistic Ideas; Philosophy of Language
1 D outor em Interdisciplinar L ingu ística A p licad a p ela UFRJ; P esquisador visitan te na U niversidade
Federal F lu m inense (U F F ) c o m financiam ento FA PE R J/ Program a P ós-doutorado nota 10, P rocesso SEI-
2 6 0 0 0 3 /0 1 9 7 0 5 /2 0 2 2 , a quem m anifesto m eu s agradecim entos por p ossib ilitar a escrita d esse artigo. Em ail:
supergleiton @ gm ail.com .
Introdução
Embora a filosofia seja uma das mais antigas formas de reflexão linguística e
metalinguística, ela não é considerada uma ciência linguística, uma prática que sustenta
nos ombros o peso do positivismo. De fato, seria difícil convencer de que a
indomabilidade do pensamento filosófico pudesse docilmente se constranger a uma
circunscrição nos limites disciplinares de uma ciência. E a razão para tal argumento é o
paradoxo entre se disciplinar e se lançar sem limites às querelas do pensamento. Como
assertivamente explica Foucault: “no interior de seus limites, cada disciplina reconhece
proposições verdadeiras e falsas, mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma
teratologia do saber” (FOUCAULT, 2014[1970], p. 31). É justamente dessa teratologia
do saber que a filosofia não pode abdicar, resistindo, portanto, à disciplinarização do
pensamento sobre a língua. Explicado de outra forma, uma “ciência organiza sua
autonomia em troca de um certo número de ignorâncias e recalques.” (GADET;
PÊCHEUX, 2004, p. 20). E com a linguística não foi diferente: a hoje multifacetada
ciência linguística se fundou necessariamente a partir do recalque filosófico, e é
considerada positivamente por muitos, a pioneira entre as ciências humanas a se recalcar,
a endurecer, a se formalizar, sendo fetichizada como a “vedete das ciências humanas”
(ORLANDI, 1986). Assim também acontece com o saber linguístico sobre a língua, ou o
saber metalinguístico, alicerce para constituição de uma ciência. Nas palavras de Auroux:
“O saber linguístico abstrato - aquele que se reflete sobre si mesmo como o que
chamamos uma ciência - vai ter de se definir em uma relação de delimitação / oposição
em relação à lógica e à filosofia” (AUROUX, 1992, p. 30). Curiosamente, a constituição
de um saber metalinguístico contido por barreiras disciplinares parece ser justamente um
ponto de encontro entre filosofia e linguística. Não se pode negar que haja algo em
comum entre uma disciplina e a escrita filosófica: ambas requerem uma metalinguagem;
exercem um processo de seleção conceitual e precisam construir textos complexos
saturados referencialmente. Toda malha metalinguística contextualizada pode ser
organizada sob a forma tecnológica dos glossários como modo de aprimorar o
conhecimento e promover o saber linguístico e conceitual. E este é o cruzamento mais
2 A gradeço a V an ise M edeiros por essa inform ação sobre as diferenças entre a ed ição brasileira,
consultada para e sse texto e a versão original.
da HIL. No entanto, uma dúvida permanece: ao nos interessar por este tipo de artefatos,
estaremos fazendo filosofia ou história das ideias linguísticas? Essa é uma das questões
que esse artigo se propõe a responder, enquanto estende ao leitor o convite de Auroux
para pensar a história das ideias linguísticas considerando seus aspectos histórico,
epistêmico e, principalmente filosófico. A partir de Auroux é possível elencar uma
motivação conceitual relevante para esse trabalho: afastarmo-nos de um ideal científico,
aproximando nossos inquéritos da filosofia. Ora, não foi essa a motivação de Auroux em
substituir “teorias3” por “ideias” na constituição do campo de saber, celebrado nessa
coletânea?
Assim, ao propor pensar glossários filosóficos como formas de saber lexical e
inversamente pensar os saberes glossários como forma de filosofar, esse artigo sugere
como contribuição dois movimentos: um conceitual e um epistêmico. No campo dos
conceitos, proponho pensar a produtividade do termos artefatos culturais filosóficos, e
instrumentos de saturação de referência como análogos e concorrentes do termo
instrumentos linguísticos. No que se refere ao conhecimento epistêmico, a proposta é
realçar na HIL seu parentesco com a filosofia, sua afeição pelo filosofar. Esses
movimentos serão promovidos através do seguinte percurso: no âmbito da empreitada
conceitual, serão ressaltadas dos glossários filosóficos sua função instrumental na
saturação da referência (seção 3) e seu papel de artefato cultural (seção 4). Quanto ao
movimento epistêmico proposto, que dramatiza o laço da HIL com a filosofia, ele se
coloca mais evidentemente nas seções 1 e 2. N a primeira seção, proponho uma
aproximação teórica entre filosofia (da/na linguagem) e história das ideias linguísticas,
que continua na segunda seção através de uma apresentação das peculiaridades dos
dicionários filosóficos e de um mapeamento muito preliminar do campo.
não seja um ponto temporal definido, mas uma marcha histórica: por “origem, não se trata
evidentemente de um acontecimento, mas de um processo que podemos delimitar num
intervalo temporal aberto, às vezes consideravelmente longo.” (AUROUX, 1992, p. 21).
Em paralelismo inesperado com o parágrafo anterior, Althusser leva a reflexão filosófica
na mesma direção: “não há um começo obrigatório para a filosofia” (ALTHUSSER,
2005[1982], p. 25). No texto supracitado, a nota XXXVII do tradutor da versão italiana,
Vittorio Morfino, explica que a imagem do pensador que entra no vagão em movimento
é central para a filosofia de Althusser, sendo documentada em, pelo menos, dois
momentos: no breve texto Portrait do filósofo materialista (ALTHUSSER, 1994) e na
sua biografia, onde se lê: “O materialista, ao contrário, é um homem que pega o trem
andando, sem saber de onde ele vem nem para onde ele vai” (ALTHUSSER, 2005[1982],
p. 46).
Além de não ter um começo assinalável, a produção de saberes sobre a linguagem,
ou a filosofia da linguagem também não tem uma definição pacífica. Embora seja muito
frequentemente sinonimizada com filosofia analítica da linguagem, elejo aqui uma
perspectiva pluralista (MARTINS, 1999; CABRERA, 2009[2003]; AUROUX, 2009)
sobre a filosofia da linguagem, considerando que ela não se restringe à filosofia analítica,
mas que “diferentes opções teóricas, metodologias de acesso e sensibilidades perante o
mundo darão origem a muitas e variadas filosofias da linguagem.” (CABRERA,
2009[2003], p. 16). Vejamos como Auroux, em consonância, define filosofia da
linguagem logo no primeiro parágrafo de seu livro Filosofia da Linguagem:
(...) quando a e x ig ên cia de um a autonom ia do saber lin gu ístico apareceu4 - por razões
tanto institucionais quanto teóricas - , o s linguistas inventaram o pecad o do lo g icism o ,
falta que co n siste em im portar da ló g ic a para a lin gu ística. (...) Para a filo so fia - da
qual a ló g ic a fa z parte - o p rocesso é m ais co m p lica d o . S e a lin g u a g em é m atéria de
filo so fa r (cf. H acking, 1975), é por razões de essên cia. A filo so fia ocu p a o terreno das
esp ecu la çõ es m íticas: porque ex iste lin gu agem ao in v és do nada (M ilner, 1978:36)?
O dom ín io tradicional da filo so fia é o das relações da lin gu agem c o m o pensam ento,
co m o verdadeiro e co m o real (...). A separação em relação à filo so fia não tem outro
recurso senão a n egação da filo so fia , a recusa das q u estões de essên cia, de origem e
de universalidade. E la se realiza por ex c lu sõ e s na n ã o -ciên cia e no fantástico (...).
(A U R O U X , 1992, p. 31)
4 O d esejo por autonom ia é u m a das causas diversas que exercem pressão na form a com o saberes se
d esen volvem , no entanto, “as causas que a g em sobre o d esen v o lv im en to d os saberes lin gu ísticos são
extrem am ente co m p lex a s” (A U R O U X , 1992, p. 28). A lé m do desejo d isciplinar p ela autonom ia, p o d em o s
elencar a “adm inistração d os grandes E stados, a literarização d os idiom as e sua relação co m a identidade
nacional, a expansão colon ial, o p roselitism o relig io so , as v ia g e n s, o com ércio, o s contatos entre línguas,
ou o d esen volvim en to d os co n h ecim en tos co n e x o s com o a m edicina, a anatom ia ou a p sico lo g ia ”
(A U R O U X , 1992, p. 28).
filosofia na forma de pensar ocidental tenha sido mais que propositiva: quase
determinística, ele defende que “a palavra philosophia está, de certa maneira, na certidão
de nascimento de nossa própria história (...)” (HEIDEGGER, 2021[1956], p. 13), como
ocidentais. O segundo argumento se refere filosoficamente à insistência persistente das
exclusões de se fazerem presentes na linguagem. A presença viva na linguagem de tudo
aquilo de que o linguista teima em abdicar é ironizada pelo autor duplo: “Entre o amor
pela língua materna e o desejo da língua ideal, a linguística científica revela estranhos
parentescos com aquilo que ela vive de excluir.” (GADET PÊCHEUX, 2004, p. 48).
Último ponto que desejo ressaltar pela proximidade da HIL com a filosofia remete
ao século XX, quando se operou na filosofia uma virada linguística: a partir de uma
renovação do interesse epistêmico filosófico. Passa-se, neste momento, a aceitar que os
problemas filosóficos, éticos e estéticos são questões linguísticas. Além disso, a partir do
século XX, a maioria dos filósofos não interessados especificamente em linguagem - e
talvez sobretudo eles, já que os contemporâneos focados em linguagem apresentavam
uma atitude mentalista-realista - passam a considerar a linguagem como preocupação
filosófica legítima (CABRERA, 2009[2003]): “É um fato evidente que uma grande
atenção para com a linguagem é atualmente característica de todas as correntes principais
da filosofia ocidental” (HACKING, 1999, p. 19, apud CABRERA, 2009[2003], p. 16). A
partir dessa argumentação pelo imbricamento de saberes da HIL e saberes filosóficos,
proponho um entrelaçamento também entre os instrumentos linguísticos e a prática de
filosofar. Assim, penso as primeiras produções dicionarísticas e gramáticas e as primeiras
reflexões filosóficas sobre linguagem como co-originárias. Uma origem comum - não
pontual, mas processual - não é apenas uma forma de negar atribuir anterioridade a uma
das duas, mas de embaraçar suas histórias e embaralhar seus começos e limites. O ponto
de costura entre a produção de instrumentos linguísticos e o filosofar sobre linguagem é,
em minha perspectiva, o conhecimento metalinguístico e conceitual, pois dicionários e
gramáticas são uma forma muito primordial de saber filosófico. Assim, invisto na
circularidade de dois elementos: por um lado, a filosofia como a gramática do
pensamento ocidental e, por outro, a gramática como um dos primeiros tipos de filosofia.
A segunda parte da expressão 5 circular que proponho pode ser exemplificada pela forma
5 Q uestões filo só fic a s que g o sto de m e colo ca r são: a escrita teria perm itido a gram ática ou a filo so fia
p ossib ilitou a gram ática e a escrita? Seria p o ssív e l gram atizar a lin gu agem falada? Seria o filo so fa r
como gramáticas e estudos de retórica são considerados por Helena Martins: “estudos de
teor mais empírico e propedêutico, os quais ocupam sem dúvida um lugar relevante e
fundador na história das teorias linguísticas” (1996, p. 449). Em contrapartida, a filosofia,
se mostra como fenômeno basal para a produção e desenvolvimento de saberes
metalinguísticos, e dos próprios instrumentos linguísticos, pois é “a especulação sobre as
relações do logos no Ser (filosofia)” (AUROUX, 1992, p. 27) que se conjuga à retórica,
poética, lógica e pragmática para produzir uma “teoria das partes do discurso”
(AUROUX, 1992, p. 27).
Notem que essa aproximação epistêmica já foi aludida por outros autores como
Martins (1999) e Auroux (1992) acima. Dicionários de filosofia surgem historicamente
depois dos dicionários bilíngues e dos monolíngues, no entanto listas de palavras e
glossários em textos de filosofia remontam às primeiras manifestações filosóficas. Nesse
texto proponho tratar como objeto de estudo da HIL dicionários de filosofia e glossários
dentro de obras filosóficas, artefatos que considero semelhantes porém diferentes e que
serão tratados como artefatos filosóficos culturais. Embora, o leitor seja mantido em
suspense até a seção 4 para a discussão em pormenores da razão para tal substituição, já
se pode ter uma ideia da sugestão de veicular os textos produzidos em contexto filosófico
com artefatos culturalmente localizados de saberes metalinguísticos e antropológicos.
O que permite aproximar HIL e filosofia, como já mencionado, seria a
preocupação conceitual, que interessa não apenas ao discurso dicionarístico, mas as
questões de significação postas pela filosofia. Assim explica Cabrera tal relação:
“Conceitos e significação vão juntos. Essa significatividade será entendida de maneiras
muito diversas pelas diferentes filosofias da linguagem e, consequentemente, a
constituição dos conceitos também será diversamente entendida.” (CABRERA,
2009[2003], p. 17). Defendo que grande parte do que é a filosofia seja sua
metalinguagem, as palavras específicas que designam os conceitos e que apresentam com
fina distinção semântica a menor minúcia significativa. O conjunto de relações
significantes fixadas para específico contexto, frequentemente expressas em glossários
são o primeiro passo da reflexão filosófica. Antes de qualquer conhecimento sobre a
coisa, supõe-se conhecer a essência da coisa, no sentido de poder denominá-la a partir de
m etalinguístico o esto p im da gram atização? C om o seria um a gram ática fora d os m old es helenistas de
conhecim ento m etalinguístico?
2. Os dicionários e a filosofia
A escrita desse artigo foi motivada pela dificuldade em encontrar pesquisas que
tenham se interessado por saberes linguísticos e metalinguísticos em sua interface com a
produção dicionarística em filosofia. Pensei, portanto, em seguir esse caminho-motivação
de escrita sobre o saber conceitual no campo da filosofia, refletindo sobre os
funcionamentos dos dicionários filosóficos e dos glossários em obras filosóficas. Receio,
no entanto, que por falta de literatura de apoio, esse texto só poderia ter um caráter
tentativo: tateia, procura entender, procura sentir como esse campo pode se abrir a novas
e velhas questões.
Dicionários e glossários são objetos políticos (ORLANDI, 2002), instrumentos
linguísticos (AUROUX, 1992), artefatos (FERREIRA, 2020) tradicionalmente
conceitualizados na HIL do Brasil por suas relações com a sociedade, com a história e
com a descolonização do conhecimento linguístico. Ver Nunes (2008) e Costa (2019)
para uma discussão sobre o panorama da HIL no Brasil. As discussões empreendidas acá
do Atlântico, expandem e complexificam a proposta de Auroux (1992) de pensar os
instrumentos linguísticos como tecnologias de língua e como formas de intervenções
políticas. Aquino (2020), por exemplo, ao situar “gramática” historicamente ressalta seu
papel determinante na produção de saber metalinguístico. Ele problematiza a concepção
dos instrumentos linguísticos como sendo a própria língua e sua implicação em uma
unidade nacional e linguística. Ele postula os instrumentos linguísticos como políticos,
técnicos, históricos, e responsáveis por espelhar nos falantes uma imagem de unidade
linguístico-identitária “promovida pelo Estado nacional” (AQUINO, 2020, p. 122), o que,
por sua vez, estabelece hierarquias entre tipos de falantes. Modesto (2022), por outro lado,
E videntem en te, o que n os con fun de é a uniform idade de sua aparência quando
as palavras nos são faladas ou n os aparecem na form a escrita ou im pressa. P o is
seu em prego não se p õ e tão claram ente diante de nós. Principalm ente quando
filo so fa m o s! (W IT T G E N ST E IN , 2 0 2 2 [1 9 5 3 ], aforism o 11).
7 A gradeço a V an ise M edeiros, por essa id eia da incidência: enquanto o d icionário in cide sobre a língua, o
dicionário filo só fic o in cid e sobre a filo so fia ou teoria, são o discurso teórico e filo só fic o que ele toca.
8 Trata-se de u m lapso. A o contrário do pretendido cunho, produzi punho e abracei a m etáfora do encontro
entre m eu s d edos, as teclas e o que eu não sei.
que “as ideias claras não somente não são o único critério de verdade, mas talvez sequer
sejam o critério mais importante” (SMITH, 2019, p. 382). Gosto de pensar que Bayle
escancara o fato de que “a produção de um saber metalinguístico está materialmente
ligada à produção de efeitos imaginários” (ZOPPI-FONTANA; DINIZ, 2008, p.91), a
verdade entre eles. Ao desconfiar da verdade como produto filosófico, Bayle prescreve
nenhuma verdade à filosofia.
variada, que faz parte de uma reflexão” (2020, p.22). No mesmo volume, Nunes (2020)
foca nos artefatos de análise, diferenciando nossos instrumentos teórico-analíticos de
artefatos artísticos e culturais propriamente ditos. O gesto de Nunes é relevante para
denotar outros sentidos de artefato que são feitos ausência quando o tomamos como
sinônimos de tecnologia e quando o tomamos como instrumentos de produção científica.
Miller (2012) também se interessa em discutir a diferença entre tecnologia e
artefato, mas por uma perspectiva antropológica: “Nas atividades dos nossos “atores”
humanos no seu palco, visando a um fim, o artefato é um mediador na relação entre o
homem (ou homens) em ação e o objeto ou fenômeno tratado, podendo ser este a natureza
ou mesmo outro ser humano.” (MILLER, 2012, p. 93). Ou até a língua, detalhe que escapa
a alguns antropólogos. Ele também sugere que há artefatos reconhecidos
transculturalmente (martelo, faca) enquanto outros não são (distintivo policial ou um
mouse de computador). Embora questões linguísticas possam se fazer ausência para
pesquisas que pensam artefatos antropológicos, estas são relevantes para tocar uma aura
mágica e mística que os artefatos podem sustentar culturalmente, e, assim, extrapolar sua
funcionalidade técnica para se inflar de significado social, histórico e conativo, que os
fazem ocupar espaço especial nos lugares da memória. Afinal de contas, eles compõem
um patrimônio cultural e afetivo. Assim, os artefatos rompem a efemeridade do tempo e
tornam-se representações de algo que está ausente como uma cultura, um afeto, uma
prática social, uma lembrança. Ao se abrigar no próprio tempo, eles consistem em um
testemunho material de uma determinada sociedade ao retratar modos de vida e revelar
múltiplas expressões culturais (VELTHEM, 1998). Assim penso os dicionários de
filosofia. Para Ferreira, todo artefato é lido culturalmente, portanto, “qualquer 9 construção
humana é passível de se tornar objeto de estudo enquanto um artefato” (FERREIRA,
2020, p. 85).
Tendo em vista a discussão proposta, entendo os dicionários filosóficos e
glossários em filosofia como artefatos culturais filosóficos, tomados simultaneamente
como instrumentos linguísticos e de produção de saber e que possuem para determinada
cultura valor técnico, simbólico e mítico. Um artefato possui laços afetivos e de memória
9 Para Ferreira a “p ágina em branco é n o sso artefato fundador” (2 0 2 0 , p. 100) num m ovim ento sim b ólico
que produz artefatos ao infinito. E m seu gesto de dramatizar o artefato co m o m anifestação sim b ólica, o
artefato se dilui em seu texto. A o ser considerado toda tec n o lo g ia que produz efe ito s sim b ólicos, ela
em preende u m m ovim ento filo só fic o que rem ete à É tica de S p in o za na indiferenciação da substância.
Considerações Finais
O interesse conceitual é a encruzilhada onde filosofia da linguagem e história das
ideias linguísticas podem se cruzar. Essa intersecção foi explorada aqui para sugerir mais
um caminho de produzir conhecimento em HIL ou apenas de se manter filosoficamente
confortável com o ato de questionar, mesmo que ele não vislumbre uma verdade. Uma
das questões que me propus a responder é se ao nos interessar por este tipo de artefatos -
os dicionários de filosofia e os glossários em obras filosóficas - estaríamos fazendo
filosofia ou história das ideias linguísticas? Penso que os dois! Estaríamos, ademais,
aceitando o convite de Auroux de pensar a história das ideias linguísticas sobretudo por
seus aspectos filosóficos.
Como sugerido aqui, dicionários de filosofia e glossários filosóficos são artefatos
culturais, que, apesar da mais aparente função explicativa como compêndio da filosofia,
são eles mesmos a filosofia a ser feita em forma de artefatos glossáricos. Também foram
sugeridos alguns pontos de contraste entre os dicionários de língua e dicionários
filosóficos, como a pretendida completude da língua vs a incompletude típica do sentido
filosófico e como a incidência performativa dos dicionários: os de língua produzem
linguagem, os filosóficos produzem filosofia. Ademais, dicionários de filosofia e
glossários filosóficos também possuem uma função de saturação referencial de textos
complexos e atuam como estabilizadores conceituais durante a prática de filosofar. Aos
dicionários de filosofia e glossários em textos filosóficos falta uma comunicação com a
dimensão gramática da língua, nomeadamente uma microestrutura; neles, as entradas são
normalmente substantivos e sem informação gramatical alguma. Isso pode indicar que a
filosofia assume que seu leitor possua algum - com algum, quero dizer elevado -
conhecimento metalinguístico, ou ainda que o ensino da língua não é seu objetivo como
artefato cultural filosófico. Pois a filosofia pressupõe a linguagem. Porque então, não
pressupor à linguagem algum “philein tó sóphon” (HEIDEGGER, 2018[1956], p. 22),
uma aspiração pelo sóphon, um desejo de conhecer, alguma filosofia própria?
Referências
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Tradução de Rosa Freire d’Aguiar.
BARBERO, G. “Credo sit Papias integer” : la ricezione del Liber glossarum in Italia
presso gli Umanisti. Dossiers d ’HEL. Le Liber glossarum (s. VII-VIII): Composition,
sources, réception, 10, pp.321-356, 2016.
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São Paulo: Contexto, 2017[2010]. Tradução de Jacqueline Léon e Marli Quadros Leite.
HACKING, I. Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp/
Cambridge University Press, 1999.
ORLANDI, E. P. Ler a cidade: o arquivo e a memória. In: ORLANDI, Eni P. (Org.), Para
uma enciclopédia da cidade. Campinas, SP: Pontes Editores, 2003.
RUSSELL, B. Logic andKnowledge . 5. ed. New York: The Macmilliam Company, 1971.
SILVA SOBRINHO, J. S. “A língua é o que nos une ”: língua, sujeito e Estado no Museu
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SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2009 [1677]. Tradução de Tomaz
Tadeu.
STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed.
rev. e ampl. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
Resumo: Neste artigo, atravessados pela Análise do Discurso materialista e pela História das
Ideias Linguísticas - com o propósito da construção colaborativa do projeto de pesquisa que
temos chamado de História Discursiva dos Livros -, pretendemos refletir sobre as bibliotecas não
apenas como instituições, mas como espaços em que potencialmente se dá instrumentação
linguística, aproximando-as a artefatos como gramáticas, dicionários, livros didáticos de
língua(s). Para isso, recorremos a análises (a) do discurso enciclopédico sobre a categorização do
conhecimento humano; (b) da Classificação Decimal de Dewey (CDD) como um dos principais
métodos (obrigatórios, em certos casos) para a catalogação de livros, levando a uma codificação
numérica na ficha catalográfica das publicações e a uma organização específica no espaço das
bibliotecas; (c) do lugar físico e concreto de bibliotecas variadas, com registro fotográfico mas
também da memória. Com isso, o estudo em tela se coloca como uma tentativa de contribuir para
se pensar de modo mais amplo em formas de materialização de instrumentos linguísticos, na
relação que estabelecem com a divisão do espaço institucional (urbano?) e, por que não, com o
próprio corpo.
Palavras-chave: bibliotecas; instrumentos linguísticos; instituições; discurso
Abstract: In this article, crossed by materialistic Discourse Analysis and by History of Linguistic
Ideias - intending to collaboratively build a research project known as Discursive History of
Books -, we intend to reflect upon libraries not only as institutions but as spaces of potential
linguistic instrumentation, bringing them closer to artefacts such as grammar books, dictionaries,
language(s) textbooks. To do so, we analyse (a) the encyclopedic discourse over human
knowledge categorization; (b) Dewey Decimal Classification as one of the main (sometimes
mandatory) methods of book cataloguing, which leads to a numeric codification at the
catalographic card of publishing objects and to a specific organization of libraries; (c) the concrete
physical place of a variety of libraries, with photo registers and also remarks of memory. Thus,
this investigation organizes itself as an attempt to contribute to think beyond the types of
materializing linguistic instruments, in the relation stablished with the division of institutional
(urban?) space and, why not, with body itself.
Keywords: libraries; linguistic instruments; institutions; discourse
1 A gradecem os ao am igo José E dicarlos de A quino p ela leitura generosa, apaixonada, ácida e enriquecedora
deste artigo. S em o d iá lo g o que nutrim os ao lo n g o d os anos, este texto não existiria.
O esp aço é a m atéria trabalhada por excelên cia . N en h u m dos ob jetos so cia is tem um a
tam anha im p osição sobre o h om em , nenhum está tão presente no cotidiano dos
indivíduos. A casa, o lugar de trabalho, o s p ontos de encontro, o s cam in hos que u nem
e sse s p ontos são igualm ente elem en to s p a ssiv o s que con d icion am a atividade dos
h om ens e com andam a prática social. A práxis, ingrediente fundam ental da
transform ação da natureza hum ana, é um dado so c io ec o n ô m ic o , m as é tam bém
tributária d os im perativos espaciais. (S A N T O S , 2 0 1 4 [1977], p. 34)
O erro de catalogação se traduzia, de fato, num a arrumação errônea do rolo num a
estante on de não tinha seu lugar. (JA C O B , 2 0 0 9 [2000], p. 59)
Introdução
Trafegando de um lugar a outro, os sujeitos se dividem, se reproduzem, se
transformam no espaço. Sendo as línguas as bases materiais dos processos discursivos,
elas também se desenrolam no espaço: de modo especializado, recortado, repleto de
injunções e determinantes. Embora não seja uma constante em Análise do Discurso e em
História das Ideias Linguísticas - a não ser numa leitura por vezes fenomenológica das
condições sócio-históricas de produção - , reconhecemos neste artigo a necessidade de
discutir as bibliotecas como componente do espaço urbano, uma vez que, segundo Santos
(2 0 1 4 ), esses lugares são partícipes da divisão de trabalho - nacional e internacional. Mais
do que parte do espaço urbano, as pensamos propriamente como um dos espaços da
cidade, na forma de uma instituição que, em sua prática discursiva, contribui para a
divisão, sobretudo internacional, do trabalho. Como os exemplos citados pelo eminente
geógrafo - casa e local de trabalho - , as bibliotecas também cumprem e operam uma
função na formação social capitalista e no asseguramento de seu modo de produção.
Nosso ponto de discordância do autor é quando ele qualifica tais “pontos” como
“elementos passivos” das atividades do homem. Ora, se, em suas palavras, eles
“comandam a prática social”, nada têm de passivos: são materialidades que, como outras,
registram em seus cantos, suas bordas, suas retas, suas curvas, seus buracos, suas
elevações - em tudo que compõe forma-substância de tais “pontos” - modos de fazer,
formas de ser, ordens, instruções e pedidos2. Se há, e há, atos de fala do ponto de vista
pragmático e sociointeracional (BRONCKART, 2008) - em diversas perspectivas que
2 Sobre essa questão, p roblem atizam os essa id eia de “p assivid ad e”, a qual n egam os, e p en sam os se tratar
m ais de sutileza, de funcion am en to velad o. N o s aproxim am os de Orlandi (2 0 0 2 , p. 95) ao d efender que há
“p rocessos institu cionais m en os ev id en tes” ao tratar de p o lítica linguística. C om isso , n os aproxim am os do
entendim ento de u m a prática, seja ela lin gu ística ou não, que existe, m as é m en os evid en te, e que nada tem
de passiva. C om o d efen d em os, se com an dam a prática social, então é atividade.
consideram os gestos linguageiros desde substitutos dos atos não linguísticos até aquelas
que fundem as práticas - , não deixa de haver também atos nos objetos, pontos e lugares
e espaços, uma vez que neles se inscrevem discursos que se efetivam dos e nos sujeitos.
E é justamente a partir da característica das bibliotecas enquanto instituições plenas de
discurso que prosseguimos, sem necessidade de dar respostas, mas formulando caminhos
para pensá-las como espaços de instrumentação linguística.
3 N o original: L a vraie q u estion - aujourd’hui - ce n ’est pas l ’op p osition abstraite entre littérature et scien ce,
m ais quelque ch o se com m e : « com m en t les institutions esthétiques so n t-elles ain si con stitu ées q u ’elles
p uissen t accom plir d es fo n ctio n s différen tes de c e lle s que rem plisssen t le s institutions scien tifiq u es ? », ou
encore « com m en t l ’activité in tellectu elle des h om m es a -t-elle pu se répartir entre la biblioth èq ue du lettré
et le laboratoire du savant ? ». (A U R O U X , 1990, p. 110)
(...) aos “literatos” : v o c ê s acreditam p oder ficar a ssim à distância da adversidade que
am eaça historicam ente a m em ória e o pensam ento? (...) aos “cien tistas” : v o c ê s, a
quem cham am de fabricantes-utilizadores de instrum entos, v o c ê s acreditam poder
ainda por m uito tem po escapar à questão de saber para que v o c ê s servem e quem os
utiliza? (PÊ C H E U X , 1994 [1 982], p. 56)
4 E sse co m p lex o de ancoragem pretérita e p otencialidade futura do d izer cien tífico e letrado.
histórico). § O instrum ento está “à d isp o siçã o ” do corpo: ele não é o corpo, ele não é,
sobretudo, o meu corpo. (...) ele é u m a mediação à d isp osição de todo corpo
estruturado com o o m eu, entre o m undo “tal com o ele é” e o corpo “qualquer” . (...)
elas não d eixam de ser as próteses da expertise hum ana que transformam esta últim a
ao menos enquanto elas a refletem .” (C O L O M B A T , F O U R N IE R , P U E C H , 2 0 1 7
[2 010], p. 5 8-59; 6 0 -6 1 )
Não é possível tratarmos, então, de outro modo. É necessário abordar como nossos
corpos se relacionam com os instrumentos, uma vez que, como propõem os autores, uma
coisa é se valer do próprio corpo como instrumento, outra coisa é manipular um
instrumento que está disponível ao corpo. Por isso, no título deste artigo, recorremos ao
verbo “caminhar”, refletindo sobre como um espaço onde se pisa pode entrar em relação
com os corpos de forma a instrumentar um saber linguístico. Enquanto guiamos nossos
passos por portas, estantes, prateleiras, etiquetas e fichas com palavras que peneiram e
afunilam nossa busca por conhecimento, esses significantes que se presentificam
prolongam nossos saberes sobre a língua? Para a discussão aqui ensejada, iniciaremos
nossas análises com o gesto de entrada numa biblioteca: um objeto apreensível pelo corpo
e/ou um espaço preenchido pelo corpo?
Bibliotecas
Gostaríamos de propor inicialmente uma reflexão sobre as categorias de objeto
(técnico), instituição, espaço, aparelho (ideológico) e instrumento, sempre tendo em vista
a metáfora da máquina. Se as instituições representam, no sentido althusseriano, os
aparelhos ideológicos de Estado em nível empírico, podemos pensar que cabe a elas
mobilizar as ideias práticas e as práticas de ideias. Assim, elas não se distanciam muito
do que consideramos ser um instrumento no sentido de que elas prolongam a inteligência
e as ideias, de modo a se retroalimentarem das demais práticas: uma instituição produz
sentidos sobre as práticas humanas prescindindo da presença dos corpos humanos em
interação, e as práticas humanas alteram as instituições com a presença de seus corpos.
O que distancia, então, uma instituição de um instrumento? Parece-nos que a
resposta não pode ser outra que não a própria relação com o corpo humano. À medida
que um instrumento se põe objeto acessível aos sentidos e às pseudopercepções - algo
como um martelo, uma furadeira, um dicionário, uma gramática, um automóvel, uma
cadeira de rodas, um carrinho de bebê -; uma instituição se apresenta como um espaço
que não se move ante a manipulação de um órgão do corpo ou do esforço sinergético,
F ig u r a 1 : S D 1 - P la c a e m b ib lio t e c a m u n ic ip a l d a c id a d e d o R io d e J a n e ir o . F o n te : a u t o r ia p r ó p r ia .
Na Figura 1, nossa sequência discursiva 1, vemos uma placa de porta que ressoa
discursivamente o tipo de placa utilizado em portas de hotel, que materializa os mesmos
5 V ale apontarm os que essa ev id ên cia do silên cio não aparecerá de m odo u niversal em b ib liotecas (assim
com o em esco la s e hospitais), m as é universalizada: é sentido dom inante, im aginário construído sobre o
esp aço. Q uando lidam os co m b ib liotecas m en ores, co m o m unicipais ou de bairros, o silên cio n em sem pre
será m antido, ou seja, são outros sentidos em circulação sobre e nas b ib liotecas, co m o (n)as salas infantis
e salas de leitura de escolas. A in d a assim , há u m “m odo de fazer” em circulação n esses espaços: cab e aos
sujeitos profission ais de b ib liotecas solicitar o silên cio ou autorizar a fala.
F o n te : a u t o r ia p r ó p r ia .
F ig u r a 3 : S D 3 -L o m b a d a s d e liv r o s e m b ib lio t e c a m u n ic ip a l. F o n t e : a u t o r ia p r ó p r ia .
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Figuras 6 e 7: SD5 - Ficha catalográfica e etiqueta de localização do livro O Brasil das placas
numa biblioteca municipal da cidade do Rio de Janeiro. Fonte: autoria própria.
6 E m outras teorias lin gu ísticas, p od er-se-ia falar de encapsulam ento sem ântico (LO PE S, 2 0 1 1 ), um a
categoria interessante do ponto de v ista d iscursivo. Entretanto, não estam os buscando um a tip o lo g ia aqui,
m as nos dedicando a mostrar a diversidade de rela çõ es sem ânticas p o ssív e is num a b iblioteca.
Hugtisillon/Corbis/ Litmstock
Revisão
Canncn I. S. da Cosia
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Cada liomcin 6 uma taça: contos / Mia
Pu i; Companhia das letras, 201^.
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Figuras 8 e 9: SD6 - Ficha catalográfica e etiqueta de localização do livro Cada homem é uma
raça numa biblioteca municipal da cidade do Rio de Janeiro. Fonte: autoria própria.
Nas bibliotecas que trabalham com esse tipo de codificação nas etiquetas, há
diversas formas de organização. Em coleções particulares (as “bibliotecas pessoais”),
existem classificações que vão de cor de capa de livro a ano de publicação a editora
publicadora, passando também por prenome, sobrenome e nacionalidade de autor. Na
maioria das bibliotecas públicas mundo afora, essa não é a “ordem” . Se nas estantes e
prateleiras há etiquetas temáticas, que levam a hiperônimos e holônimos, dentro delas há
um vasto território que sujeito profissional de biblioteca ou sujeito consulente precisam
desbravar, e que remonta a métodos de classificação cuja autoria não é - e também é,
paradoxalmente - de quem organiza a biblioteca no dia a dia. Ou seja: os códigos são
preexistentes. Observemos as Figuras 4, 6 e 8 , das SDs 4, 5 e 6 . Nelas, há pelo menos um
código numérico antecedido pela sigla CDD (Figuras 4, 6 e 8 ), mas também pelo CDU
(Figuras 4 e 6 ). Esse código, se bem observado, pode se sobrepor ao da etiqueta do livro.
Nesse sentido, SD4 e SD 6 “respeitam” e “obedecem”, total ou parcialmente, a CDD em
sua localização na biblioteca. A CDD da SD4 é 869.93, e sua etiqueta é J B869.3 TAH H
ex. 3. Obediência parcial. Apenas para tentar tornar essas relações numéricas um pouco
menos opacas, na Classificação Decimal de Dewey (CDD), de que falamos à frente, o
número 869 corresponde a L ite ra tu ra portuguesa. Já B869, a L ite ra tu ra brasileira (ou
seja: de um código numérico, deriva-se um alfanumérico que lhe dá uma especificidade),
e B869.93 significaria R om ance (L iteratu ra b rasileira - Rom ance) / C rônica, conto,
novela, cartas. Por outro lado, 869.3, sem letra que anteceda os números, quer dizer
Rom ance, dentro ainda de L ite ra tu ra portuguesa. Já a CDD da SD 6 é 869.3, e a etiqueta
do livro é M869.3 COU C. Obediência “total”, visto que a sequência numérica se manteve
igual, ainda que na catalogação a biblioteca transforme um código meramente numérico
em um alfanumérico e, com isso, lhe registre a especificidade da nacionalidade
moçambicana (atestada pela letra B). Entretanto, a CDD da SD5 é 398.969 (398 leva a
Folclore / A divinhações / Lendas), e a etiqueta leva a outro lugar (do conhecimento): R
302.230981 CAM B (302 correspondendo a In teração social). Não coincidências há.
Descompasso entre etiqueta e ficha. Um pé numa estante, outro noutra.
CDD, como dissemos, significa Classificação Decimal de Dewey, e CDU é
Classificação Decimal Universal. Trataremos delas nas seções a seguir, mas cabe
informar que, em suas fichas catalográficas (que devem obrigatoriamente ser feitas por
(...) produzem discu rsos através de procedim entos de controle e delim itação dos
registros. Trata-se dos cham ados “ serviços téc n ic o s” ou “p rocedim entos internos”
q u e, por m eio de su cessivas op erações de cla ssifica çã o , arranjo, descrição,
catalogação, in d exação, distribuição e m uitas outras, selecio n a m o m aterial d igno de
ser guardado. (C O ST A , 2 0 2 1 , p. 190)
Assentimos tais palavras, sobretudo por aceitarmos que é justamente sob a rubrica
de “serviços técnicos” que a naturalização dos sentidos se dá de modo a mais apagar os
processos autorais e ideológicos. Prescindindo então de teorizar nesse direção, tentamos
questionar uma certa evidência de sentido que, ao tratar as bibliotecas como instituições
- e o são, mas tal rótulo homogeneíza seu funcionamento - , apaga-se um possível
funcionamento seu: o de instrumentos linguísticos... e instrumentos linguísticos que vão
1°) Vocabulário e glossário quase não se aplicam a não ser aos puros dicionários de
palavras, ao passo que dicionário em geral com preende não som ente o s d icionários
de línguas co m o tam bém o s d icionários históricos, e o s de ciên cia s e artes; 2°) num
vocabulário, as palavras não p od em deixar de ser distribuídas por ordem alfabética, e
p od em m esm o não ser explicadas. Por ex em p lo , se se q u ise sse fa z e r u m a o b r a q u e
c o n tiv e ss e to d o s o s te r m o s d e u m a c iê n c ia ou a r te , r e la c io n a d o s a d ife r e n te s
títu lo s g e r a is, n u m a o rd em d ife r e n te d a a lfa b é tic a , p a r a m o s tr a r so m e n te a
e n u m e r a ç ã o d esse s te r m o s sem e x p lic á -lo s, e la se r ia u m vocabulário. Tam bém
seria u m vocabulário , propriam ente falando, se estiv e sse em ordem alfabética e
trou xesse a exp licação d os term os, d esde que curta, quase sem pre u m a ú nica palavra,
não razoada; 3°) quanto à palavra glossário, não se ap lica senão a dicionários de
palavras p ou co con h ecidas, bárbaras ou ob soletas. ( D ’A L E M B E R T , 2 0 1 5 [1 7 5 4 ], p.
131; negrito n osso)
dessa lista de todos os termos do conhecimento. A diferença é que, numa folha de papel,
as palavras são tateadas com os dedos. Numa biblioteca, com os pés. Como temos
defendido, um valor distintivo de um espaço em relação a um objeto ou artefato, se é que
há.
A forma de essa lista se configurar já ganhou diversos contornos ao longo da
história, muitas vezes prefigurando entidades como árvores do conhecimento
taxonômicas. Nas bibliotecas, tem vigorado, desde o final do século XIX, e cada vez mais,
a Classificação Decimal Dewey. Algumas palavras sobre isso. Melvil Dewey foi um
bibliotecário estadunidense que viveu entre meados do século XIX e as primeiras décadas
do século XX. Ele desenvolveu em 1876 um sistema de classificação que hoje é um dos
meios de catalogação de livros, o CDD (Classificação Decimal de Dewey), um código
que é incluído hoje na catalogação de cada livro do mundo: uma forma também de
imperialismo de saber em nome de um efeito técnico, um efeito de praticidade no
encontrar livros numa biblioteca. Esse sistema já foi modificado, revisado e ampliado,
com alterações que remontam até a última década. Entretanto, a base continua a mesma:
uma classificação baseada em dez ordens distintas. Não há arbitrariedade alguma nisso.
O conhecimento precisa caber na palma das duas mãos. É o próprio funcionamento dos
números naturais, do sistema decimal.
Mas tal prática referente à catalogação e à separação do conhecimento não é uma
atividade relativamente recente. É o que nos mostra Christian Jacob ao apontar que tal
prática já acontecia na Antiguidade. Ao tratar da questão quantitativa dos rolos, o autor
nos informa que
O poeta C alím aco, ligado à b ib lio teca sem ser d ela o responsável efetiv o , em preendeu
a tarefa de r e c e n se a r -lh e as riquezas. Suas Tábuas dos autores que se ilustraram em
todos os aspectos da cultura e de seus escritos, em 120 rolos, se prendem a u m duplo
projeto. (JA C O B , 2 0 0 8 [2000], p. 57; itálico do autor).
Ou seja, tal prática já era pensada e atribuída a sujeitos que ainda não eram denominados
bibliotecários, mas por terem experiência com as informações e os materiais da biblioteca,
sabiam minimamente como lidar com elas. Esse dado histórico corrobora nossa
designação de sujeito profissional de biblioteca. Continua o autor:
Vale apontar que aqui entra em funcionamento, e Jacob traz em seu texto, a
memória. A escrita como uma ferramenta de eternização do conhecimento, pensemos,
possibilita e possibilitou inúmeras realizações na história da humanidade. Tamanha
importância já encontramos em Auroux (1992) com a defesa da primeira revolução
tecnológica, permitindo o nascimento das ciências da linguagem. Não é possível
desconsiderar/esquecer que há saberes que são transmitidos nas sociedades ágrafas entre
as gerações, mas que circulam diferentemente de como ocorreria com o suporte, a
discursividade própria, da escrita.
A tradição metalinguística de produção de listas temáticas se inscreve num
funcionamento de, “espontaneamente”, fazer paráfrases com ligeiros deslocamentos e de
encontrar, como temos visto, hiperônimos, hipônimos, holônimos e merônimos. É como
funciona a Classificação Decimal de Dewey. Trata-se, entretanto, de representações
espontâneas e não abrangentes. Centradas:
Vejamos duas versões da CDD, sem atentar às datas, porque não nos importam
neste momento:
(...) o aparecim ento dos instrum entos lin gu ísticos não d eixa intactas as práticas
lin gu ísticas hum anas. C om a gram atização - lo g o a escrita, d ep ois a im prensa - e em
grande parte graças a ela, constituíram -se espaços/tempos de comunicação cujas
d im en sõ es e h om ogen eid ad e são sem m edida com u m co m o que pode existir em um a
socied ad e oral, isto é, num a socied ade sem gram áticas. (A U R O U X , 1992, p. 70)
Referências
AUROUX, Sylvain. Barbarie et Philosophie . Paris Cedex 14, France: Presses
Universitaires de France, 1990.
JACOB, Christian. Ler para escrever: navegações alexandrinas. In: BARATIN, Marc;
JACOB, Christian. O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Trad.:
Marcela Mortara. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009 [2000].
PÊCHEUX, Michel. “Ler o arquivo hoje” . Trad.: Maria das Graças Lopes Morin do
Amaral. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (org.). Gestos de leitura. Campinas: Editora da
Unicamp, 1994 [1982].
SANTOS, Milton. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e como método
[1977]. I n : _____ . Da totalidade ao lugar. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2014.
Resumo: Este artigo analisa a gestão escolar como um instrumento de política de línguas. Para
isso, far-se-á, primeiramente, uma discussão de natureza teórica, estabelecendo as condições em
que a gestão de uma escola pode ser concebida enquanto um instrumento de política de línguas,
com efeitos políticos sobre o modo como as línguas em funcionamento em seu espaço são
significadas e significam seus falantes. A escola será concebida como um espaço de enunciação.
Num segundo momento, será feita uma discussão analítica, na qual serão analisados dois textos
que funcionam como documentos de política de línguas no Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
A discussão teórico-analítica será conduzida sob a perspectiva da semântica do acontecimento,
num diálogo profícuo com a análise de discurso de orientação francesa. A partir da discussão
empreendida, observar-se-á que a administração escolar exerce poder no jogo de forças entre as
línguas e seus falantes no espaço da escola, uma vez que, por meio de seus atos administrativo-
normativos, ela organiza o modo como cada língua funcionará em seu espaço de enunciação.
Palavras-chave: gestão escolar; administração escolar; política linguística; instrumento de
política de línguas; espaço de enunciação.
Abstract: This article analyzes school management as an instrument of language policy. To this
end, a discussion of a theoretical nature will first be made, establishing the conditions under which
the management of a school can be conceived as an instrument of language policy, with political
effects on the way in which the languages in operation in its space are signified and signify its
speakers. The school will be conceived as a space of enunciation. In a second moment, an
analytical discussion will be made, in which two texts that function as language policy documents
at the Federal Institute of São Paulo (IFSP) will be analyzed. The theoretical-analytical discussion
will be conducted from the perspective of the semantics of the event, in a fruitful dialog with the
French discourse analysis. From the discussion undertaken, it will be observed that the school
administration exercises power in the interplay of forces between languages and their speakers in
the school space, since, through its administrative-normative acts, it organizes the way each
language will function in its space of enunciation.
Keywords: school management; language policy; language policy instrument; space of
enunciation.
1 D outor em L in gu ística p ela U niversidad e E stadual de C am pinas (U n icam p ), p rofessor da área de Letras
do Instituto F ederal de E ducação, C iên cia e T ecn o lo g ia de São Paulo (IFSP), campus H ortolândia. Em ail:
gabriel.leop old in o@ ifsp .ed u .b r.
2 D outor em L in gu ística p ela U niversidad A utónom a de Querétaro (M éx ico ), p rofessor da F aculdade de
Idiom as da U n iversidad A utónom a de Baja C alifornia (U A B C ). Em ail: d toled o@ u ab c.ed u .m x.
Resumen: Este artículo analiza la gestión escolar como instrumento de política de lenguas. Para
ello, se llevará a cabo una discusión teórica en la que se establecerán las condiciones en las que
la gestión de una escuela puede concebirse como un instrumento de política de lenguas, con
efectos políticos sobre el modo en que las lenguas que operan en su espacio son significadas y
significan a sus hablantes. La escuela será concebida como un espacio de enunciación. En un
segundo momento, se realizará una discusión analítica, en la que se analizarán dos textos que
funcionan como documentos de política de lenguas en el Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
La discusión teórico-analítica se realizará desde la perspectiva de la semántica del acontecimiento,
en un diálogo fructífero con el análisis del discurso francés. A partir de la discusión emprendida,
se observará que la administración escolar ejerce poder en el juego de fuerzas entre las lenguas y
sus hablantes en el espacio escolar, ya que, a través de sus actos administrativo-normativos,
organiza la forma en que cada lengua funcionará en su espacio de enunciación.
Palabras-clave: gestión escolar; administración escolar; política lingüística; política de lenguas;
instrumento de política de lenguas; espacio de enunciación.
1. Introdução
Este texto estabelece uma relação entre duas áreas do conhecimento usualmente
pouco explorada em suas literaturas: de um lado, a semântica do acontecimento — com
seu diálogo produtivo e constante com a análise de discurso — ; de outro, a gestão escolar,
com seu diálogo contínuo com outras áreas da pedagogia/formação de professores. Dessa
relação decorre nosso objetivo de compreender em que sentido a gestão escolar pode ser
considerada um instrumento de política de línguas, isto é, um instrumento que afeta as
relações entre línguas num determinado espaço (de enunciação) escolar. Para levar a cabo
tal objetivo, estabeleceremos uma reflexão teórico-analítica a partir de algumas práticas
político-linguísticas 3 que se observam no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo (IFSP).
Antes de adentrarmos nas questões que o presente trabalho propõe-se discutir,
colocaremos em cena alguns aspectos do cenário teórico no qual ele se insere e com o
qual dialoga de alguma maneira. Iniciamos dizendo que há inúmeros trabalhos nas
ciências da linguagem que tiveram por objeto a análise da relação entre linguagem e
política. Localizaremos tais trabalhos no que comumente denomina-se política
3 O adjetivo “p olítica-lin gu ística” que se articula co m “práticas” d ev e ser lido com o um a reescrituração
sin oním ica de “p o lítica de línguas” . C om o se v erá m ais adiante, a d iferença con ceitu al entre política
linguística e política de línguas é im portante para o d isp ositivo teó rico -m eto d o ló g ico que m ob ilizam os
neste trabalho.
linguística, sem ainda apresentarmos uma diferença conceituai importante que marca a
reflexão analítica que fazemos aqui. No que concerne, então, à literatura produzida na
área de política linguística, inúmeros trabalhos já foram publicados colocando em cena
análises de materiais que circulam nos espaços escolares na condição de materiais
didáticos — como as gramáticas, os dicionários e os livros (didáticos e paradidáticos) —
ou na condição de orientadores da produção e do uso desses materiais didáticos — como
os programas de ensino, os parâmetros e orientações nacionais curriculares (cf. ARNOUX
(2008); NUNES (2006); LAURIA (2022); ORLANDI (2001, 2007, 2009); SANTOS
(2017); DINIZ (2010); STURZA et al. (2023); MAFRA, VENTURA (2023), apenas para
citar alguns).
Relativamente à questão específica da relação entre gestão escolar e política
linguística, ainda para permanecermos no âmbito mais geral dos estudos que relacionam
linguagem e política, poucos trabalhos que explicitam essa articulação foram
desenvolvidos na literatura especializada em políticas linguísticas. Uma autora que
destacamos é Berger (2017, 2021), a qual desenvolve sistematicamente pesquisas em
multilinguismo, gestão e ensino de línguas no Brasil. Apesar da relevância dos trabalhos
dessa autora, nota-se uma escassez de estudos que tomam a gestão escolar, propriamente
dita, como um instrumento de política linguística, ou, como propomos dizer, como um
instrumento de política de línguas.
Na área de pedagogia, e em específico na de gestão escolar, constata-se uma
reflexão lacunar em torno da problemática levantada neste artigo. Uma das razões para
isso pode ser localizada no fato de a linguística e a linguística aplicada apresentarem-se,
com relativa força político-teórico-institucional no Brasil — assim como no contexto
internacional — , como disciplinas especializadas em objetos de estudo bem delimitados
e definidos: a língua ou a linguagem, no caso da linguística, e o ensino de línguas, no caso
da linguística aplicada4. Associado a isso que se acabou de afirmar, outro fator que
poderia explicar essa reflexão lacunar tem que ver com a não formação de professores
“especialistas” nos estudos da linguagem pelos cursos de pedagogia, já que sua proposta5,
como sabemos, é formar professores generalistas para atuarem na educação infantil,
4 R econ h ecem o s que a lin gu ística aplicada p o ssu i outros objetos de estudo que não apenas o en sin o de
línguas. É preciso reconhecer, todavia, que o s estudos con cernentes ao ensino de línguas d om inam a
produção de con h ecim en to na lin g u ística aplicada.
5 R econ h ecem o s, tam bém , que o s cursos de p ed agogia não p o ssu em co m o seu único esco p o a form ação de
professores. A gestão escolar, por ex em p lo, tam bém fa z parte de seu rol form ativo.
6 N a próxim a seção, exp licitarem os m elh or o que é u m espaço de enunciação. Por ora, p od em os
com preender essa id eia com o u m espaço em que as línguas relacionam -se p oliticam en te entre si.
7 E sta form ulação fa z rem em orar propositalm ente um a outra, aquela da célebre d efin ição, dada por M ich el
P êch eu x (2 0 0 9 [1 9 7 5 ]), para o interdiscurso, que é “o todo co m p lex o co m dom inante das form ações
discursivas” . Para n ós, não há funcion am en to p olítico, e o lin gu ístico aí está com preendido, que não seja
tom ado nessa relação im bricada do “todo co m p lex o c o m dom inante” .
8 E sta é a pergunta que se fa z E ni Orlandi em vários de seu s trabalhos, m as, principalm ente, na obra Língua
brasileira e outras histórias: discurso sobre a língua e ensino no Brasil (O R L A N D I, 2 0 0 9 ). D ada à força
de sua teorização no cam po d os estu dos do discurso, esta pergunta não se c o lo c a co m o um a pergunta
retórica, m as co m o u m a pergunta propositiva, digam os, um a v e z que aponta para d eslocam en tos d iscu rsivos
im portantes. U m d esses d eslocam en tos d iz respeito ao fato de língua brasileira (e não “português
brasileiro”) ser um a form ulação que aponta para um a d escolon ização lingu ística, haja v ista que o p rocesso
de historicização da língu a se dá diferentem ente daquela de Portugal ou de qualquer outro país colonizad o
p elo s portugu eses.
9 Im aginária porque historicam ente “fabricada” para funcionar num sim ulacro de realidade, co m o se essa
língua im aginária correspondesse à realidade lin gu ística real.
[...] o esp aço de enunciação é o esp aço de línguas no qual elas fu n cion am na sua
relação co m falantes. A ssim , não há língu as sem outras línguas, e não há línguas sem
falantes e v ic e-v er sa . U m aspecto im portante na configuração do esp aço de
en u nciação é que as língu as do esp aço de en u nciação são distribuídas de m odo
d esigu al, não se é falante das línguas d este espaço da m esm a m aneira. O espaço de
en u nciação é, então, u m espaço p o lítico do funcion am en to das língu as.
10 N o sentido dado por Françoise G adet e M ich el P êch eu x (1 9 7 7 ) em Há uma via para a linguística fora
do logicismo e do sociologismo?
Q ue língu as estão p resentes n os currículos escolares? Q uais d elas são usadas com o
línguas de instrução d os con teúdos? O que (e em quais línguas) d izem o s d ocum entos
norteadores acerca das práticas d idático-p ed agógicas e das le is que regulam entam as
línguas a serem u sadas, aprendidas e m antidas p elo s alunos? E ssas questões
circundam o que p od em os cham ar de p olíticas lin g u ístico -ed u ca cio n a is, ou seja, o
conjunto de d ecisõ es sobre quais línguas (e variedades) d ev em estar p resentes nos
currículos e nas práticas p ed agógicas, de que form a e quais “lugares” elas d ev em
ocupar no d om ín io da e sc o la , nas várias fa ses da v id a escolar, ao lo n g o do processo
de escolarização.
como acontecimentos enunciativos, o que nos leva para análises daquilo está dito nesses
textos, mas também daquilo que não está dito, porém aí significando.
Diante do que expusemos até aqui, podemos afirmar, juntamente com Auroux
(2009), que os textos mencionados acima — entre outros — funcionam, na formação
social brasileira, como instrumentos linguísticos, uma vez que eles não são simplesmente
objetos politicamente desinteressados, que buscam “apenas” descrever, analisar e ensinar
uma ou algumas línguas (em detrimento de outras). São, ao contrário, instrumentos
linguísticos porque afetam tanto o modo como as línguas funcionam ao longo de sua
história quanto a forma como elas significam os (seus) falantes num espaço de enunciação
dado. Muitas vezes, esses instrumentos linguísticos são um suporte material privilegiado
da ideologia do monolinguismo imaginário, produzindo, então, a organização das
relações entre línguas de uma maneira normativa e desigual. A escola, então, sendo um
espaço de enunciação, apresenta-se como um dos lugares privilegiados de circulação
desses instrumentos linguísticos, os quais serão nomeados neste trabalho de instrumentos
de política de línguas, uma vez que eles organizam, dividem, distribuem, redistribuem
politicamente as línguas. Em outras palavras, eles determinam as línguas.
Nosso trabalho coloca em primeiro plano a gestão escolar como um instrumento
de política de línguas. Isso se deve porque ela não administra o espaço da escola de um
modo desinteressado e independente do social, da história e do político. Ao contrário de
ser uma prática desinteressada, constitui-se num conjunto de práticas que levam a cabo
as ideias do Estado — principalmente no caso das escolas públicas, mas não apenas delas
— , ou do Mercado — principalmente no caso das escolas privadas, mas não apenas delas.
Na condição de representante do Estado ou do Mercado, a gestão escolar tem, como uma
de suas incumbências, garantir a colocação em prática da política linguístico-educacional
nacional, o que corresponde, conforme já sabemos, a administrar a relação entre as
línguas (e entre os seus falantes), assim como entre as línguas e os saberes que se
produzem sobre elas. É por meio dessa política que se garante, por exemplo, que as
chamadas “normas urbanas de prestígio” continuem sendo “de prestígio” e que, portanto,
certas práticas linguísticas sejam significadas como “regionalismos”, “dialetos”, sendo,
muitas vezes, “museificadas” . É por meio dessa política, também, que o multilinguismo
real é contido pelo monolinguismo imaginário; que o fracasso escolar das massas no que
concerne à aprendizagem de línguas (tanto da língua nacional quanto das línguas
estrangeiras) é localizado enquanto um fracasso individual do estudante e não como uma
que faz com que o passado recortado pelo presente da enunciação não seja uma mera
repetição de sentidos.
Outro conceito importante é o de reescrituração, o qual descreve os diversos
mo(vi)mentos de reescrituração da linguagem em um acontecimento enunciativo. Dito
diferentemente, a reescrituração é o processo pelo qual a linguagem se rediz num
determinado acontecimento de enunciação. Trata-se de um fenômeno linguístico
importante de ser observado, pois efeitos semânticos são produzidos nesse gesto de se
redizer o já dito. O linguista brasileiro Eduardo Guimarães (2007) identifica, pelo menos,
seis modos de reescrituração da linguagem num acontecimento: reescrituração por
repetição, por substituição, por elipse, por expansão, por condensação e por definição.
Cada uma desses modos de reescrituração pode produzir efeitos semânticos particulares
em dado acontecimento enunciativo.
Finalmente, uma última consideração antes de passarmos às análises propriamente
ditas diz respeito à questão de que faz parte do estudo das condições de produção dos
sentidos no acontecimento enunciativo as análises da cena enunciativa. Assim, ao lado
daquilo que a temporalidade constituída pelo acontecimento mostra-nos, a cena
enunciativa também é um elemento importante para uma análise em semântica do
acontecimento, uma vez que ela é formada por lugares de enunciação, e esses lugares são
decisivos nos contornos semânticos da designação13 uma palavra ou de uma expressão
linguística. Consoante o que afirma Guimarães (2017, p. 52), “ [o] processo enunciativo
da designação significa, então, na medida em que se dá como um confronto de lugares
enunciativos pela própria temporalidade do acontecimento” . E conclui o autor: “ Se se
mudam os lugares enunciativos em confronto recorta-se um outro memorável, um outro
campo de ‘objetos’ relativos a um dizer.”
Integram uma cena enunciativa os seguintes lugares de enunciação: o Locutor
(com L maiúsculo), que é aquele que o acontecimento enunciativo representa como sendo
o responsável pelo dizer; o alocutor-x, que é o lugar social do dizer; e o enunciador, que
é um lugar de dizer atravessado pelo esquecimento, isto é, por um tipo de esquecimento
que é aquele de que só se enuncia a partir de um lugar social dado. O enunciador é, então,
a configuração de um modo de dizer, que pode ser individual, genérico, coletivo ou
13 Por designação de um a palavra ou de u m a expressão lin gu ística en ten d e-se com o sendo o sentido d essa
palavra ou d essa exp ressão lin gu ística tal co m o produzido em co n d içõ es enunciativas esp ecíficas. D essa
form a, a d esign ação é o sentido produzido no acon tecim ento enunciativo.
Recorte 1:
CONSIDERANDO que a internacionalização de conhecimentos está no centro das
intensões das IES atualmente, pois poderá contribuir para um posicionamento estratégico
internacional do país mais perfilado com um cenário global de inovação tecnológica [...];
Recorte 2:
II. a) oferecer disciplinas em inglês (e em outra língua estrangeira se for o caso) na
graduação e na pós-graduação através das coordenações de cursos para permitir que
alunos estrangeiros não falantes de português estudem no IFSP e, dessa forma, contribuir
para a criação de um ambiente internacional e intercultural nos próprios campi (conhecido
como internacionalização em casa). (inciso II)
IV. b) Oferecer cursos de qualificação para docentes ministrarem disciplinas em inglês.
(inciso IV)
ressalva de que isso pode ser feito em outras línguas também (“desenvolver e manter um
sítio eletrônico e material de divulgação em inglês (se possível em outras línguas também)
para auxiliar na atração de parceiros internacionais” . Diante dessas constatações,
podemos dizer que a ideologia da globalização, ou melhor, do capitalismo globalizado
atravessa a materialidade desse acontecimento enunciativo e corrobora a sustentação do
lugar, para o inglês, de língua que deve ser ensinada e aprendida preponderantemente no
espaço de enunciação do IFSP. Apesar das duas ressalvas apontadas, chama-nos a atenção
o silenciamento de outras línguas, cujos nomes não aparecem no texto da Portaria.
Retornando à análise do objetivo 11 presente no Art. 2°, que trata dos quinze
objetivos da internacionalização para o IFSP, o português para estrangeiros também é
mencionado, ao lado do inglês. Com relação à língua portuguesa, precisamos levar em
consideração que a língua que deve ser ensinada aos estrangeiros é a língua nacional,
aquela gramatizada, objeto de ensino nas escolas e em outras instituições brasileiras. É o
português uno, indiviso, “museificado”, distante, muitas vezes, das línguas maternas de
inúmeros falantes, possuidor de “variações”, que é o objeto de ensino regulamentado pela
Portaria em questão. Considerando que o português não é “língua da tecnologia” nem da
“globalização capitalista”, o português deve ser ensinado aos estrangeiros que se
encontram no Brasil porque é, precisamente, a “língua da Nação” . Dessa forma, pode-se
pensar que a ideologia do monolinguismo imaginário é o que faz eco nessa enunciação.
A Resolução n° 61/2017, de 04 de julho de 2017, aprova o regulamento dos
centros de línguas (CeLin) no IFSP. Assina o documento o presidente do Conselho
Superior (Consup) da instituição, que é sempre o reitor (no caso, o reitor em exercício no
ato de assinatura do documento). Temos, aqui, uma cena enunciativa relativamente
semelhante àquela configurada pelo acontecimento enunciativo da Portaria ora
considerada, com um elemento novo, o fato de o alocutor-reitor enunciar também como
alocutor-presidente do Consup. Sendo o Conselho Superior a instância deliberativa
máxima da Instituição, enunciar enquanto alocutor-presidente do Consup produz efeitos
imediatos na política de línguas institucional. Nesse caso em específico, institui o Centro
de Línguas.
Logo no início, em seu artigo 2°, lemos:
Recorte 3:
Art. 2° O Centro de Línguas, vinculado à Assessoria de Relações Internacionais —
ARINTER/Reitoria — , visa a regulamentar e incentivar ações educativas e culturais tais
5. Considerações finais
Quando se aborda a gestão escolar na literatura pedagógica, fala-se
predominantemente em teorias da administração. É frequente, assim, tratar de abordagens
prescritivas e normativas — teoria da administração científica, teoria clássica das
organizações, escola de relações humanas etc. — e em abordagens descritivas e
“língua da internacionalização” . Nesse sentido, ser falante de inglês não tem o mesmo
valor, para utilizarmos uma metáfora mercantil, que as outras línguas, como o português,
ou o espanhol, ou a língua brasileira de sinais.
Deslocando o olhar para outras unidades escolares diferentes do IFSP, é possível
afirmar, igualmente, que a gestão é sempre um instrumento de política de línguas, na
medida em que a opção pela abertura (ou não) de um centro de línguas, a orientação de
adoção de determinados livros didáticos (em detrimento de outros), a compra de certos
livros para a biblioteca (em detrimento de outros), o investimento (ou não) em ações de
escrita e leitura, a inclusão de uma política de línguas explícita em seu projeto político-
pedagógico (PPP), entre outras ações, é sempre dela.
Referências
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (Notas para uma
investigação). In: ZIZEK, Slavoj (Org.). Um m apa da ideologia. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996. p. 105-142.
ARNOUX, Elvira Narvaja. Los discursos sobre la nación y el lenguaje en la form ación
del Estado (Chile, 1842-1862). Estudio glotopolítico. Buenos Aires: Santiago Arcos
editor, 2008.
LAURIA, Daniela. Lengua y política: historia crítica de los diccionarios del espanol de
la Argentina. Buenos Aires: Eudeba, 2022.
NUNES, José Horta. Dicionários no Brasil: análise e história do século XVI ao XIX.
Campinas: Pontes; São Paulo: Fapesp; São José do Rio Preto: Faperp, 2006.
ORLANDI, Eni. Língua brasileira e outras histórias: discurso sobre a língua e ensino
no Brasil. Campinas: Editora RG, 2009.
PÊCHEUX, Michel. Sem ântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
Resumo: Com filiação à articulação entre a Análise materialista de Discurso e a História das
Ideias Linguísticas no Brasil, neste trabalho, mobilizamos o conceito de instrumento linguístico-
jurídico para analisar o funcionamento de dois documentos que compõem arquivo jurídico
montado em pesquisa ocupada de investigar as ações de políticas linguísticas realizadas pelas
Instituições de Educação Superior conveniadas à Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM): o
Termo de Referência que pauta o vínculo das IES com a CSVM; e o Projeto de Lei n° 489/2019.
Para tanto, retoma-se o modo como o conceito de instrumento linguístico comparece em Sylvain
Auroux (1992) e, então, o modo como o conceito de instrumento linguístico-jurídico foi proposto
a partir do trabalho teórico e analítico da regulação jurídica da língua (Sigales-Gonçalves; Zoppi-
Fontana, 2021). Então, tomando o Termo de Referência entre IES e CSVM e o Projeto de Lei n°
489/2019 como instrumentos linguísticos-jurídicos, a análise permite compreender como os
processos de subjetivação em relação a uma ou várias línguas supõem a divisão desigual das
línguas em espaços de enunciação constituídos na imbricação entre forma política (Estado) e
forma jurídica (direito). O trabalho traz, ainda, elementos para avançar na discussão sobre a
relação indissociável entre direito, língua, sujeito e Estado no modo de produção capitalista e para
o avanço teórico e analítico sobre o conceito de instrumento linguístico-jurídico, principalmente
articulando a compreensão materialista do discurso à compreensão materialista do direito.
Palavras-chave: direitos linguísticos; instrumento linguístico; instrumento linguístico-jurídico;
políticas linguísticas; universidade.
Abstract: With affiliation to the articulation between the Materialist Analysis of Discourse and
the History of Linguistic Ideas in Brazil, this study mobilizes the concept of linguistic-juridical
instrument to analyze the functioning of two documents within a legal archive assembled for
research focused on investigating the language policy actions carried out by Higher Education
Institutions affiliated with the Sérgio Vieira de Mello Chair (CSVM): the Reference Document
that governs the relationship between HEIs and CSVM, and Bill No. 489/2019. To do so, we
revisit how the concept of a linguistic instrument is presented in Sylvain Auroux (1992) and then
how the concept of a linguistic-juridical instrument was proposed based on the theoretical and
analytical work on the legal regulation of language (Sigales-Gonçalves; Zoppi-Fontana, 2021).
Thus, by considering the Reference Document between HEIs and CSVM and Bill No. 489/2019
as linguistic-juridical instruments, the analysis allows us to comprehend how processes of
subjectivization concerning one or more languages presuppose the unequal division of languages
in spaces of enunciation constituted in the interplay between political form (State) and legal form
(law). The study also provides elements to advance the discussion on the inseparable relationship
between law, language, subject, and the state in the capitalist mode of production and for the
theoretical and analytical development of the concept of a linguistic-juridical instrument,
primarily through the articulation between a materialist understanding of discourse and a
materialist understanding of law.
Keywords: linguistic rights; linguistic instrument; linguistic-juridical instrument; language
policies; university.
Introdução
A História das Ideias Linguísticas (HIL) institucionaliza-se no Brasil como um
campo de conhecimento que se propõe, a partir de uma posição epistemológica
materialista, pensar a história da língua e da produção de conhecimentos linguísticos na
relação com a constituição do Estado nacional. A filiação à Análise materialista de
Discurso (AD) é que constitui para a HIL essa tomada de posição face à história das
ciências (ORLANDI, 2001), ao permitir trabalhar a relação indissociável entre língua,
sujeito, Estado e Nação (ORLANDI, 2001, p. 7). Ao fazer variar suas questões a partir
da filiação à AD, a HIL produz demanda por instrumentos científicos que a realizem
enquanto teoria.
O conceito de instrumento linguístico-jurídico (SIGALES-GONÇALVES;
ZOPPI-FONTANA, 2021a) é formulado nesse espaço de jogo aberto pela HIL, como
movimento de ajuste do seu discurso teórico a si mesma (HENRY, 2011). Tendo como
ponto da reflexão os processos de produção de sentido em torno dos direitos linguísticos
e dos deveres linguísticos, estes situados no campo do Direito Linguístico1, o conceito se
apresenta como um dispositivo analítico da relação indissociável entre língua, sujeito,
Estado e Nação a partir da consideração de que o direito atravessa constitutivamente essas
relações, produzindo efeitos materiais sobre os sujeitos e as línguas e na produção de
saberes sobre estas.
Neste artigo, temos o objetivo de apresentar como a mobilização do conceito de
instrumento linguístico-jurídico nos conduz, teórica e analiticamente, à compreensão de
uma relação indissociável entre o direito e a universidade na produção da regulação
jurídica da língua. É com base nesse objetivo que organizamos a exposição do presente
texto. Então, na seção que segue, a seção 2, analisamos dois documentos que passaram a
compor nosso arquivo através do projeto O lugar da extensão universitária na promoção
de direitos linguísticos e políticas linguísticas para migrantes forçados: mapeamento e
reflexões em torno das práticas extensionistas das instituições conveniadas à Cátedra
Sérgio Vieira de Mello (CSVM), doravante PROEC-PEX 2020, desenvolvido por nós no
Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas
(IEL/Unicamp) e contemplado com recursos do 1° Edital ProEC de Financiamento à
Pesquisa sobre Extensão Universitária (ProEC/Unicamp). São eles: o Termo de
Referência da Cátedra e o Projeto de Lei n° 489, de 05 de fevereiro de 2019, que “dispõe
sobre os direitos linguísticos dos brasileiros” . Através do efeito de evidência produzido
pelo funcionamento jurídico das textualidades, esses dois documentos comprometem a
universidade como garantidora da efetivação de direitos linguísticos - de pessoas
migrantes, no Termo, e dos brasileiros, no PL.
A suspensão dessa evidência pelo trabalho analítico nos leva, na seção 3, a
retornar ao conceito de instrumento linguístico como proposto por Sylvain Auroux,
buscando dar consequência teórica à indissociabilidade entre a universidade e o direito,
indiciada pelo trabalho analítico, na relação entre instrumento, língua e saber. A partir de
dessa leitura, propomos compreender o processo de gramatização como um processo de
juridização da língua. N a seção 4, apresentamos, por fim, como esse avanço teórico-
analítico põe novas questões para a continuidade do trabalho de arquivo.
Assim como em Sigales-Gonçalves; Zoppi-Fontana (2021a), a posição
materialista assumida diante do discurso é articulada a uma posição materialista também
diante do direito. Buscamos, com este trabalho, avançar em uma questão fundamental:
como e sob que organização das condições de produção determinadas relações e não
outras - entre as línguas e entre os sujeitos e as línguas - adquirem formajurídica 2? Então,
se entre os estudos discursivos nos filiamos à articulação da Análise materialista de
Discurso à História das Ideias Linguísticas, entre os caminhos da filosofia do direito
contemporânea, nos situamos no que Mascaro (2015) nomeia “filosofias do direito
2 E ssa pergunta é form ulada a partir de Pachukanis, cuja intervenção é, com o se verá na seção 4, d ecisiv a
em n osso trabalho: “ [...] a crítica pachukaniana do direito, ao se fundar no método que M arx d esen v o lv e
em O capital, perm ite superar - no interior do m arxism o - as representações vulgares que apresentam o
direito com o u m ‘instrum ento’ de classe, privilegiand o o conteúdo norm ativo em v e z de atender à ex ig ên cia
m etod ológ ica de M arx e dar conta das razões por que u m a certa relação social adquire, sob determ inadas
con d ições - e não outras -, precisam ente u m a forma jurídica.” (N A V E S , 2 0 0 0 , p. 20).
3 N o sso s agradecim entos às contrib uições do parecer à versão prim eira d este texto, que n os ch am ou a
atenção para a n ecessid ad e de explicitar as referências ao m arxism o ju rídico e a d im ensão con ceitu al das
palavras e ex p ressões d este trabalho enquanto d iscurso teórico.
4 D isp o n ív e l em: https://w w w .acnu r.org/p ortu gues/catedra-sergio-vieira-d e-m ello/. A c e sso em: 15 jun.
2023.
5 “O ‘pré-constru íd o’ corresponde ao ‘sem p re-já-aí’ da interpelação id eo ló g ica que forn ece-im p õe a
‘realidade’ e seu ‘sen tid o ’ sob a form a da u niversalidade (o ‘m undo das c o isa s’)” (PÊ C H E U X , 2 0 0 9 , p.
164).
Para que a rica diversidade lin gu ística brasileira seja divulgada e protegida,
e s tu d io so s, g e sto r e s do p a tr im ô n io c u ltu r a l e g r u p o s d e fa la n te s d e lín g u a s
m in o r itá r ia s v ê m exigin d o do P o d e r P ú b lic o u m a p o lítica con sistente de
con solid ação d os direitos lin gu ísticos d os brasileiros.
Art. 3°, § 1° Todas as com u nid ades lin gu ísticas brasileiras são igu ais em direito,
d ev en d o o P o d e r P ú b lic o , em suas m últiplas instâncias, tom ar as m edidas
in d isp en sáveis para que tal igualdade seja efetiva.
[...]
Art. 4° Por solicitação das com unidades falantes de línguas m inoritárias com o língua
materna, fic a o P o d e r P ú b lic o o b r ig a d o a prom over, na form a do regulam ento:
[ .]
Art. 5° C a b e ao P o d e r P ú b lic o inventariar as línguas m inoritárias u tilizadas no B rasil
e zelar por sua d ivulgação e salvaguarda, no âm bito da responsabilidade p ela proteção
e p rom oção do patrim ônio cultural brasileiro.
6 Q u estões in iciais para análise do PL n° 4 8 9 /2 0 1 9 foram apresentadas no trabalho “D ireitos lin gu ísticos
d os brasileiros: u m a análise discu rsiva do PL n° 4 8 9 /2 0 1 9 ” de autoria de S ig a les-G o n ça lv es e Z op pi-
Fontana e apresentado em com u nicação oral no II Encuentro Internacional: d erechos lin g ü ístico s com o
derechos hum anos en L atinoam érica/L a furia de la lengua.
[...]
Art. 6° É r e sp o n sa b ilid a d e do P o d e r P ú b lic o estim ular as u niversidades a:
7 “Art. 2° Para fin s do d isposto nesta lei, são: I - línguas minoritárias: as línguas, autóctones e alócton es,
diferentes da lín gu a portuguesa, utilizadas tradicionalm ente em território nacional, co m o lín gu a materna,
por grupos num ericam ente inferiores ao resto da popu lação do País; II - língu a materna: a prim eira língu a
que o indivíduo aprende; III - com unidade de acolhim ento: o conjunto d os falantes da língu a portuguesa,
id iom a o ficia l da R ep ú b lica Federativa do Brasil, co m o língua m aterna” .
Para que a rica diversidade lin gu ística brasileira seja divulgada e protegida,
e s tu d io so s, g e sto r e s do p a tr im ô n io c u ltu r a l e g r u p o s d e fa la n te s d e lín g u a s
m in o r itá r ia s v ê m exigin d o do P o d e r P ú b lic o u m a p o lítica con sistente de
con solid ação d os direitos lin gu ísticos d os brasileiros. O prim eiro passo n esse sentido
fo i dado co m a e d iç ã o do D ec re to n° 7 .3 8 7 , d e 9 d e d e z e m b r o d e 2 0 1 0 , que instituiu
o In v e n tá r io N a c io n a l d a D iv e r sid a d e L in g u ístic a (IN D L ) co m o instrumento
o ficia l de identificação, docum entação, recon hecim ento e valorização das línguas
faladas p elo s diferentes grupos form adores da socied ad e brasileira.
9 A lém d isso, cham a a atenção o fato de que, na seq u ên cia ló g ico -fo rm a l da técn ica leg isla tiv a que organiza
a parte norm ativa de um texto legal, tal co m o é u m projeto de lei, m esm o que seu caráter seja ainda
propositivo (R O D R IG U E S, 2 0 12; Z O P P I-F O N T A N A , 2 0 1 0 ), “o s assuntos gerais d ev em v ir antes dos
especiais; o s essen cia is, d os acidentais; o s perm anentes, d os transitórios”, segundo d ocum ento orientador
do Senado Federal (“Técnica Legislativa - Orientação para a Padronização de Trabalhos” , de 2 0 0 2 ). O
art. 6° é o últim o artigo do Projeto de L e i em questão, só anterior ao art. 7°, que d isp õe sobre a vig ên cia .
A gram ática não é u m a sim p les descrição da lin gu agem natural; é preciso co n ceb ê-la
tam bém co m o instrumento linguístico', do m esm o m odo que u m m artelo p rolonga o
g esto da m ão, transform ando-o, um a gram ática p rolonga a fala natural e dá a cesso a
u m corpo de regras e de form as que não figuram juntas na com p etên cia de um m esm o
locutor. Isso ainda é m ais verdadeiro acerca d os dicionários: qualquer que seja m inha
com p etên cia lingu ística, não d om ino certam ente a grande quantidade de palavras que
figuram n os grandes d icionários m on olín gu es que serão produzidos a partir do
R en ascim ento (o contrário tornaria e sse s d icionários inúteis a qualquer outro fim que
não fo sse a aprendizagem de línguas estrangeiras). Isso sig n ifica que o aparecim ento
d os instrum entos lin gu ísticos não d eix a intactas as práticas lin gu ísticas humanas.
(A U R O U X , 1992, p. 7 0 , grifos do autor).
10 R epara-se, aqui, nas paráfrases entre “n ascim ento das ciên cias da lin gu agem ” (defin ição da tese 1 no
prefácio), “n ascim ento das m etalin guagens” (nom e do C apítulo 1) e “con sid erações reflexivas sobre a
lingu agem hum ana” (exp licação à tese 1 no P refácio). E ssa s paráfrases serão retom adas para d iscussão.
O saber lin gu ístico é m últiplo e principia naturalm ente na co n sc iên cia do hom em
falante. E le é epilinguístico, não co locad o por si na representação antes de ser
m etalin guístico, isto é, representado, construído e m anipulado enquanto tal co m a
ajuda de u m a m etalin guagem (elem en tos au ton ím icos e n om es para sign os, cf. R ey
D eb o v e, 1978; A uroux, 1919). (A U R O U X , 1992, p. 16, grifos do autor)
Nessa definição deixada à margem, Auroux nos mostra que está tratando não
apenas de tipos de saber linguístico, mas de tipos de saber metalinguístico. Parece-nos,
dessa forma, que sua tese sobre o nascimento das metalinguagens, à qual se dedica no
Capítulo 1, está tratando particularmente desse saber ao qual ele impõe critérios: ser
transmitido de forma específica, ser ligado às artes da linguagem (Lógica, Gramática e
Retórica), e de alguma forma estabelecer relação com normas e protocolos. A nota é
M as ainda aí o saber m etalin guístico m ítico não se con ecta à prática e o saber fazer
ep ilin gu ístico não se transform a em um a técn ica verbalizada. Ora, é esta
transform ação que m arca o nascim ento que estam os habituados a considerar com o um
verdadeiro saber (m eta)lin guístico, quando a m etalin guagem tom a a cargo as
m anip ulações efetu á v eis sobre a lin gu agem n ela m esm a (ver nota 4). Tudo parece
mostrar que não ex iste v e r d a d e ir o sa b e r g r a m a tic a l o ra l, sendo que o s fatos
ju stifica m a posteriori a etim o lo g ia da palavra gramática (do grego gramma, letra)
p ela qual o O cidente d esig n o u a parte essen cia l de seu saber lin g u ístico ” (A U R O U X ,
1992, p. 19)
A expansão das nações acarreta indiscutivelmente uma situação de luta entre elas, o
que se traduz, ao final, por uma concorrência, reforçada porque institucionalizada,
entre as línguas. A velha correspondência uma língua, uma nação, tomando valor não
mais pelo passado mas pelo futuro, adquire um novo sentido: as nações transformadas,
quando puderam, em Estados, estes vão fazer da aprendizagem do uso de uma língua
oficial u m a o b r ig a ç ã o para os cidadãos (AUROUX, 1992, p. 49, grifos em negritos
nossos).
Essa obrigação dos cidadãos a uma língua oficial pelos Estados não é a realização
espontânea da história, mas realização do direito - especificamente do direito burguês
como Aparelho Repressivo e Ideológico do Estado burguês (ALTHUSSER, 1999), forma
histórica do modo de produção capitalista. O fato de que o Renascimento organize uma
política linguística, configurando uma revolução tecnológica que “transformará para
sempre a ecologia da comunicação humana”, está fundamentalmente relacionado ao
direito.
A falta do sujeito e da luta de classes no corpo teórico mobilizado por Auroux
(BALDINI; RIBEIRO, T; RIBEIRO, K, 2019) não lhe dá instrumentos científicos para
trabalhar aquilo que funda a HIL no Brasil: a relação indissociável entre língua, sujeito,
Estado, Nação. Sem as noções de assujeitamento e ideologia (DINIZ; ZOPPI-
FONTANA, 2008), Auroux toma o desenvolvimento dos estados nacionais como pano
de fundo da história da língua; para a HIL/AD, diferentemente, a língua é o lugar de
constituição da nacionalidade.
Esta cultura corresponde a uma verdadeira p o lític a lin g u ístic a realizada pelo
absolutismo centralizador na França e na Espanha, encontrando dificuldade em
resolver la questione della língua na Itália, evoluindo com as discussões dos
gramáticos alemães sobre a natureza do hoschdeutsch.
Compreende-se mal esta entrada em cena dos vernáculos, se não a colocamos em
perspectiva com três elementos fundamentais: a renovação da gramática latina, a
imprensa e as grandes descobertas. (AUROUX, 1992, p. 50, grifos em negritos
n o sso s)
são formas específicas erigidas no processo de reprodução social capitalista; são formas
sociais necessárias à engrenagem do modo de produção. A forma jurídica abstrata tem
como elemento fundamental o sujeito de direito (KASHIURA JR., 2014),
determinantemente vinculado ao processo de troca mercantil: o sujeito de direito é um
“possuidor de mercadorias abstrato e ascendido aos céus” (PACHUKANIS, 2017, p.
158). A forma política de Estado também é uma especificidade do modo de produção
capitalista, que, ao mesmo tempo, se apresenta como aparato social terceiro das relações
econômicas e jurídicas e como garantidor da reprodução dessas relações.
Conforme anunciamos na introdução deste texto, sujeito de direito, forma política
e forma jurídica têm no nosso trabalho teórico-analítico estatuto conceitual sustentado na
articulação entre uma perspectiva materialista do discurso e uma perspectiva materialista
do direito. Tal articulação já é presente nos textos inaugurais da Análise materialista de
Discurso pelo próprio Michel Pêcheux - como em Semântica e Discurso: uma crítica à
afirmação do óbvio (1975/1990) - , em momentos nos quais o filósofo convoca Louis
Althusser e Bernard Edelman sobretudo para o desenvolvimento teórico do conceito de
forma-sujeito do discurso, no qual intervém decisivamente - ainda que de forma menos
explícita do que poderia - a leitura de O direito captado pela fotografia (EDELMAN,
1976)11.
A sequência desse trabalho teórico-analítico aponta, dessa forma, para a
necessidade de investir na relação entre ideologia e assujeitamento como lugar de trabalho
da relação entre língua e direito, especialmente a partir do diálogo entre a Análise
materialista de Discurso e a crítica marxista do direito. Esse investimento segue o
percurso aberto por Claudine Haroche, em Fazer Dizer, Querer Dizer (1992) no trabalho
da relação entre língua, direito, Estado e constituição da subjetividade, relação que, como
vimos, se mostra incontornável em nosso processo de trabalho com o conceito de
instrumento linguístico-jurídico:
Considerações finais
Referências
ABREU, R. N. Direito Linguístico: olhares sobre as suas fontes. A cor das Letras
(UEFS), v. 21, p. 172-184, 2020. Disponível em:
https://periodicos.uefs.br/index.php/acordasletras/article/view/5230 Acesso em: 29 set.
2023.
EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista
do direito. Tradução de Soveral Martins e Pires de Carvalho. Coimbra: Centelha, 1976.
HAROCHE, C. Fazer dizer, querer dizer. Tradução de Eni Orlandi. São Paulo:
HUCITEC, 1992.
HERBERT, T. [Michel Pêcheux]. Observações para uma teoria geral das ideologias.
RUA, Campinas, v. 1, n. 1, p. 63-89, 2015. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ois/index.php/rua/article/view/8638926. Acesso em:
29 set. 2023.
Marcus M enezes 1
Universidade Estadual de Santa Cruz
Resumo: Neste texto, a partir da articulação entre a Análise de Discurso (AD) materialista e a
História das Ideias Linguísticas (HIL), objetivo compreender como o saber metalinguístico
funciona na cartilha temática Direitos humanos e o combate ao racismo, da Escola do Legislativo
de Patos de Minas (2021). Entendo a cartilha temática como um instrumento regulatório da vida
em sociedade (SILVA, 2014), que tematiza diversos temas, como saúde, raça e gênero. Além
disso, é um objeto deslocado do espaço escolar a partir da cartilha de alfabetização (SILVA e
PFEIFFER, 2014), esse compreendido como um instrumento linguístico (AUROUX, 2014). Em
nível de descrição, o objeto analisado apresenta diversos saberes metalinguísticos, como sentidos
de raça e cor, mas também apresenta expressões consideradas racistas, como denegrir e inveja
branca. Os gestos analíticos indicam que a mobilização de alguns dos saberes textualizados não
é sustentada por uma fundamentação técnica externa. Nessa discursividade, é possível dizer que
atravessam o objeto analisado discursos de e sobre raça (MODESTO, 2021) que permitem pensar
como a língua é significada. Há um jogo entre língua imaginária e língua fluida (ORLANDI,
2013) em que tais saberes são produzidos ora por um efeito de completude, funcionando como
um dicionário; ora por efeito de incompletude, em que a língua é passível de jogo (PÊCHEUX,
2014a). Por fim, compreendo que, apesar do deslizamento, a cartilha temática, assim como a
cartilha de alfabetização, constitui pelo linguístico os sujeitos como sujeito do conhecimento e
para uma vida social (ORLANDI, 2013).
Palavras-chave: Cartilha; Racismo; Instrumento Linguístico; Análise de Discurso; História das
Ideias Linguísticas.
Abstract: In this text, based on the articulation between materialistic Discourse Analysis (AD)
and the History of Linguistic Ideas (HIL), the objective is to understand how metalinguistic
knowledge works in the thematic booklet Direitos humanos e o combate ao racismo, da Escola
do Legislativo de Patos de Minas (2021). I understand the thematic booklet as a regulatory
instrument of life in society (SILVA, 2014), which addresses various topics, such as health, race
and gender. In addition, it is an object displaced from the school space based on the literacy
booklet (SILVA and PFEIFFER, 2014), understood as a linguistic instrument (AUROUX, 2014).
At the level of description, the analyzed object presents various metalinguistic knowledge, such
as race and color, but also presents expressions considered racist, such as denigration and white
envy. Analytical gestures indicate that the mobilization of some of the textualized knowledge is
1 M estrando p elo Program a de Pós-graduação em Letras: L in gu agen s e R ep resen tações p ela U niversidad e
Estadual de Santa Cruz, graduado em Letras p ela U niversidad e E stadual do Sudoeste da Bahia, m em bro do
Grupo de P esq u isa D iscu rso e T e n sõ es R aciais (U E S C /C N P q ) e b olsista da Fundação de A m paro à P esquisa
do Estado da B ah ia. E-m ail: m arcu svam en ezes@ gm ail.com .
not supported by an externai technical foundation. In this discursivity, it is possible to say that
discourses o f and about race (MODESTO, 2021) cross the analyzed object that allow us to think
about how language is signified. There is a game between imaginary language and fluid language
(ORLANDI, 2013) in which such knowledge is produced sometimes by an effect of completeness,
functioning as a dictionary; sometimes due to the effect of incompleteness, in which the language
is subject to play (PÊCHEUX, 2014a). Finally, I understand that, despite the slippage, the
thematic booklet, as well as the literacy booklet, constitutes, through linguistics, subjects as
subjects of knowledge and for a social life (ORLANDI, 2013).
Keywords: Booklet; Racism; Linguistic Instrument; Discourse Analysis; History of Linguistic
Ideas.
Considerações iniciais
Em A revolução tecnológica da gramatização, Sylvain Auroux assevera que “o
saber linguístico é múltiplo e principia naturalmente na consciência do homem falante”
(AUROUX, 2014, p. 17). A partir disso, o saber linguístico é apresentado como
epilinguístico antes de ser metalinguístico. Enquanto epilinguístico, tal saber é
inconsciente, não-representado. É o saber que todo locutor sabe, mas não sabe que sabe.
Ao passo que o saber metalinguístico é aquele representado, construído e manipulado a
partir de uma metalinguagem (elementos autonômicos e nomes para os signos). Auroux
(2014) divide o saber metalinguístico em natureza especulativa (a representação abstrata)
e natureza prática, esse dividido em três domínios: 1) o domínio da enunciação: a
capacidade de um sujeito adequar sua fala em vista de uma finalidade; 2 ) o domínio das
línguas: falar e/ou compreender uma língua e 3 ) o domínio da escrita.
Ainda na referida obra, Auroux (2014) conceitua gramatização como processo
que conduz a descrição e a instrumentalização de uma língua a partir da gramática e do
dicionário, duas tecnologias que, conforme o autor, são pilares do nosso saber
metalinguístico. Tais tecnologias são conceituadas como instrumentos linguísticos que
dão acesso a regras e formas que não figuram na competência de um locutor. Apesar de
citar apenas duas tecnologias, o conceito de instrumento linguístico pode ser ampliado
para outros objetos que tratam do linguístico, como os livros didáticos e as cartilhas de
alfabetização, uma vez que essas, assim como a gramática e o dicionário, também
descrevem e instrumentalizam uma língua, constituindo sujeitos em relação a regras que
devem ser seguidas.
No âmbito da Análise de Discurso (AD) materialista e História das Ideias
2 C onform e B arbosa F ilh o (2 0 2 2 ), o arquivo na A n álise de D iscu rso não é entendido por um a p erspectiva
historiográfica co m o apenas um repositório de dados e d ocum entos, p ois, em um a perspectiva discursiva,
“quando tom am os o documento como feixe de um arquivo ou o arquivo como campo de documentos,
consideram os este(s) d ocu m ento(s) com o u m espaço de m últiplas d eterm in ações. O d ocum ento é um
suporte m aterial, ou seja, h istórico, que supõe um a ex istên cia form al. É essa com preensão que fa z d ele m ais
que u m v e íc u lo . N e le fu n cion am form u lações que, irrem ediavelm ente, apontam para outras form u lações
que ele silencia, nega, parodia, parafraseia etc. N e le fun cion am , tam bém , relações de sentido que só p od em
ser descritas quando da consideração da m aterialidade da língu a. É por isso que este documento singular
pode ser considerado u m arquivo: justam ente porque ele não é singular, m as o resultado de p rocessos. E le
tem esse efeito de unidade garantido por um a ex istên cia form al. M as essa ex istên cia form al não é h om ó lo g a
à sua m aterialidade” (B A R B O S A FILH O , 2 0 2 2 , p. 11, grifos do autor).
3 P esq u isa de título p rovisório Ler cartilhas hoje: a pedagogização da saúde de sujeitos LGBT+ em
sociedade, orientada p elo prof. Dr. R ogério M od esto, na U niversidad e E stadual de Santa Cruz, co m
financiam ento da Fundação de A m paro à P esq u isa do Estado da B ah ia.
que tais saberes são mobilizados. No primeiro, o texto apresenta o que chama de conceitos
importantes para o aprendizado das relações étnico-raciais, noções como raça, etnia,
gênero, ancestralidade e outras, e, no segundo momento, um glossário com os verbetes
discriminação racial, homofobia, intolerância, racismo etc. Na temática do racismo, o
que é constituído como excesso (ERNST-PEREIRA, 2009) no arquivo são cartilhas que
parecem funcionar como dicionários e glossários, orientando o uso de palavras em
detrimento de outras palavras consideradas racistas. É o caso, por exemplo, de O racismo
sutil por trás das palavras (2 0 2 0 ) e Expressões racistas: como evitá-las (2 0 2 2 ).
No presente trabalho, entretanto, tomo como objeto de análise a cartilha Direitos
humanos e o combate ao racismo (2 0 2 1 ) por, além de tematizar o racismo, abordar, como
apresentarei nos gestos analíticos, saberes metalinguísticos de modo diverso, permitindo
compreender como a língua é significada nessa discursividade. Nesse sentido de
considerar um discurso em relação à língua, levo em conta a noção teórica de Rogério
Modesto (2021) de discursos racializados, esses entendidos como discursos não apenas
temáticos (discursos de e sobre raça), mas também como outros discursos atravessados
pela racialidade, pois, conforme o autor, a racialidade atravessa qualquer produção
discursiva relacionada à formação social brasileira por essa ser constituída pela tensão
racial. Neste texto, estou interessado, então, nos discursos temáticos de e sobre raça em
relação à língua.1
vez que o material aparenta estar referindo-se ao paradigma em que uma raça animal pode
ser superior a outra. Nesse sentido, há a produção do efeito de sentido de que o conceito
de raça tem sua origem no pressuposto da ideia da biologia de que, no mundo animal, há
uma hierarquia de raças. Entretanto, se a língua é um “sistema sintático intrinsecamente
passível de jogo” (PÊCHEUX, 2014a), em outras condições de produção, as elipses
podem ser preenchidas por humana, produzindo o efeito de sentido de que raça tem
origem em uma falsa fundamentação oriunda da biologia que entende que há uma raça
humana superior a outra.
Ainda na SD 1, diante da discussão empreendida em relação à origem da noção
de raça , a cartilha marca que trata do termo não na posição de entender como uma
distinção biológica, mas de um modo político e histórico. Isso porque, segundo o material,
“a importância de falarmos sobre raça se dá no sentido de reconstituir a identidade da
população negra no país, que é marcada pela desvalorização de seus traços físicos e de
sua cultura” (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS, 2021, p. 5). Tais
afirmações indicam que os saberes metalinguísticos mobilizados na SD 1 do que é raça
permitem compreender a língua como um espaço de incompletude, corroborando para a
ideia de “a falta, como temos dito, em abundância, é também o lugar do possível na
linguagem” (ORLANDI, 2022, p. 24). Em outras palavras, quando a cartilha traz à baila
dois possíveis sentidos (biológico ou político-histórico), é possível pensar que os sentidos
das palavras não são literais, pois não há apenas um sentido único. O sentido não se fecha.
Como exposto anteriormente, na seção Por onde começar a entender o assunto?,
há a abordagem dos conceitos de raça e cor. Após a exposição de raça, conforme a SD
1, a cartilha trata de cor, consoante à SD abaixo:
identidade da população negra no Brasil. O material assevera que a noção biológica 6 não
pode ser aplicada à espécie humana, marcando que toma o segundo sentido. São dois
sentidos, duas posições. Já na SD 2, o sentido de cor parece ser o mesmo tanto para quem
formula a cartilha quanto para as pessoas que discriminam. A diferença é que essas
últimas tomam o sentido para inferiorizar as pessoas em detrimento do tom da pele. Por
fim, vale notar que tais sentidos são construídos sem mobilizar outros saberes externos
que poderiam servir de fundamentação técnica. A cartilha indica sentidos de raça e cor
sem mencionar textos especializados para legitimar a discussão.
Em seguida, há a textualização da seção O racismo é um fenômeno social e não
biológico!, ideia sustentada por duas citações do Supremo Tribunal Federal (STF). A
primeira trata-se do voto do relator Ministro Moreira Alves no habeas corpus 82,424/RS
julgado em 2004 pela plenária do STF que articula a noção de racismo como uma
definição jurídico-constitucional que considera os fatores e circunstâncias históricas,
políticas e sociais que permitem sua formação e aplicação no jurídico. A citação também
aborda que o racismo é um atentado contra os princípios da responsabilidade, dignidade
e convivência do ser humano. A segunda citação, o voto do relator Ministro Celso de
Mello na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26/DF julgado em 2019 pela
plenária do STF, trata que o conceito de racismo vai além de aspectos estritamente
biológicos ou fenotípicos, pois, em sua dimensão social, é resultado de uma construção
histórico-cultural motivada por controle ideológico, dominação política, subjugação
social e negação da alteridade (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE PATOS DE MINAS,
2 0 2 1 , p. 6 ).
7 N o aparato teórico da A n á lise de D iscu rso m aterialista, Orlandi (2 0 0 7 ) estuda as form as do silên cio . Para
a autora, o silên cio é o princípio da sign ificação e não o va zio , o nada, p o is “quanto m ais falta, m ais silên cio
se instala, m ais p ossib ilid ad es de sentid os se apresentam ” (O R L A N D I, 2 0 0 7 , p. 47). N o s estu dos da autora,
é com preendido que há u m silên cio constitutivo. E m outras palavras, um apagam ento necessário, um a v e z
que se d iz x para não d izer y e que, assim , u m sentido de um a outra form ação discu rsiva é evitada.
8 V ale pensar tam bém que há um a relação de sentidos entre raça e etnia. N as d iscursividades, um a é
definida contrapondo a outra. T eoricam ente, isso retom a a id eia de que “u m d izer tem relação c o m outros
dizeres realizados, im agin ados e p o ssív e is” (O R L A N D I, 2 0 1 5 , p. 37) e que “quando se d iz ‘x ’, o não -dito
‘y ’ perm anece co m o um a relação de sentido que inform a o d izer de ‘x ’. Isto é, um a form ação d iscursiva
pressupõe u m a outra: ‘terra’ sig n ifica p ela sua diferença co m ‘Terra’, ‘co m co ra g em ’ sig n ifica p ela sua
relação co m ‘sem m e d o ’ etc.” (O R L A N D I, 2 0 1 5 , p. 81). D e ssa form a, raça e etnia se d efin em em suas
diferenças conform e as diferentes form ações d iscursivas (um a que entende a p ossib ilid ad e de d izer raça
negra e outra que entende que o adequado é etnia negra).
9 A lém da situação hipotética, é p o ssív e l tam bém com preender o funcion am en to da exp ressão A coisa está
preta diante p esq u isa de Pereira e V in has (2 0 2 1 ), intitulada "Se a coisa tá preta, a coisa tá boa": a
resistência do sujeito negro frente a expressões racistas. N o texto, as autoras m ob ilizam para análise a
m úsica Meu caro amigo, de C hico Buarque, em que, con form e o s g esto s analíticos das autoras, A coisa tá
preta rem ete, assim co m o posto p ela cartilha em análise, algo ruim, d ifícil, fe io . Por outro lado, há um
m ovim ento entre as p esso a s negras para ressign ificar sentidos n egativos de exp ressõ es co m o essa . A ssim ,
a pesquisa analisa a música A coisa tá preta, de Rincon Sapiência, em que há Se eu tefalar que a coisa tá
preta / A coisa tá boa, pode acreditar. Nesse contexto, a expressão toma um sentido diferente da música
de Chico Buarque, apontando um sentido positivo, e, dessa forma, as autoras concluem que há
desindentificação e resistência.
também em você está tornando negra minha reputação ou você está obscurecendo minha
reputação sustenta a argumentação do racismo da palavra.
Entretanto, se denegrir funciona como obscurecer, em O dia denegriu-se de
repente, há um sentido racista? Dessa forma, mesmo apontando mais de um sentido para
denegrir (difamar, tornar negro e obscurecer), aparenta ter aqui novamente uma
concepção de língua que rejeita a relação entre língua e exterioridade na produção de
sentidos. Nesse caso, apenas um sentido é considerado. Isso constitui a semelhança da
mobilização do saber metalinguístico da cartilha temática em questão com o instrumento
linguístico dicionário, pois ambos, conforme a SD 7, não apresentam “como os sentidos
das palavras estão em processo, ou de como elas se distribuem, significando
diferentemente, de acordo com as diferentes formações discursivas, que correspondem a
diferentes posições do sujeito em face da ideologia” (ORLANDI, 2013, p. 120).
pessoa branca de cabelos pretos, usado para afastar a negritude de uma pessoa.
Palavra utilizada para evitar a caracterização de uma pessoa como “negra”,
acreditando que isso seria ofensivo (ESCOLA DO LEGISLATIVO DE
PATOS DE MINAS, 2021, p. 10, grifos do autor).
As duas últimas palavras tratadas são mulata e morena. Sobre a primeira, o texto
afirma que é derivada de mula e usada para designar mulheres negras de pele clara.
Quando adjetivada por tipo exportação, a palavra seria ainda mais pejorativa por reforçar
o corpo da mulher negra como mercadoria. Apesar de citar a derivação da formulação, a
cartilha não discute a relação de sentidos entre mula e mulata, o que permite compreender
que a relação é dada como evidente. Ademais, a abordagem restringe à mulher negra de
pele clara e sua sexualização. Silencia o fato de que circula também a palavra mulato, por
exemplo. Em relação a esse verbete, Modesto (2022) analisa discursivamente suas
entradas em dicionários de língua portuguesa, produzidos entre os séculos XIX e XX. As
entradas de mulato apontam uma relação da ideia do cruzamento entre cavalo e jumento
com o cruzamento entre branco e preto, em que é preciso da prevalência das
características, seja do cavalo ou do branco. É nesse sentido que os dicionários produzem
uma discursividade que, na ordem da implicitude, promovem um apagamento ou
aniquilação do negro ou mestiço. Dessa forma, ao mobilizar um saber metalinguístico de
mulata, a cartilha em análise silencia toda a discussão em relação à mestiçagem no Brasil,
atentando-se apenas à sexualização das mulheres negras.
Finalizando a seção, a argumentação do racismo de morena é iniciada por uma
suposta origem da palavra: caracteriza uma pessoa branca de cabelos pretos . Entretanto,
a cartilha marca que o termo é usado também em detrimento de negra, dado que essa
circula por um sentido negativo. Assim, a indicação de uma origem e de um outro uso
apontam que a palavra é utilizada em dois sentidos distintos, um que designa uma pessoa
branca e outro que designa uma pessoa negra. É devido a esse último sentido (negativo)
que a palavra morena é significada como racista. Além disso, pela abordagem de um
possível sentido não racista, há uma contradição, dado que, diante da análise de outros
verbos, o modo como a cartilha mobiliza saberes metalinguísticos direciona para um
sentido de literalidade, mas, aqui, em morena, há dois sentidos expostos, apontando que
a palavra funciona além de um sentido racista.
Vale notar, como já expus em alguns casos, que os gestos de análise das SDs 5 a
10 constatam uma falta de fundamentação técnica externa que sustente a ideia de que as
expressões são racistas. Não há menção de textos especializados. A legitimação parte, em
Considerações finais
O presente texto surgiu motivado pela identificação de saberes metalinguísticos
em um arquivo composto por cartilhas que tratam de temas diversos. Nesta ocasião,
discuti como a cartilha temática Direitos humanos e o combate ao racismo mobiliza e
sustenta saberes metalinguísticos com o objetivo de combater o racismo em nossa
formação social. Tais saberes apresentam-se como importantes para uma erradicação do
racismo enquanto problema social. Dessa forma, o questionamento Por onde começar a
entender o assunto?, que dá título à primeira seção do material, mas também outros títulos
de seções como O que o racismo quer dizer? e Expressões populares que refletem o
Referências
AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gram atização. 3a ed. Campinas:
Editora da Unicamp, 2014.
ESTEVES, Phellipe Marcel da Silva. O que se pode e se deve com er: uma leitura
discursiva sobre sujeito e alimentação nas enciclopédias brasileiras (1863 1973). 2014.
Tese (Doutorado) - Curso de Estudos de Linguagem, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2014.
MODESTO, Rogério. Mulato nos dicionários de português ou sobre o que uma palavra
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leitura: da história no discurso. 4 a ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014, p. 57-68.
PÊCHEUX, Michel. Sem ântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5 a ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 2014b.
Resumo: Este trabalho objetiva investigar, à luz da teoria da Análise de Discurso de orientação
materialista, a atuação de perfis da rede social Instagram que, atravessada pela discursividade
racial, simulam o funcionamento de instrumentos linguísticos como dicionários e cartilhas, em
alguma medida. Tais perfis combatem os usos de termos e expressões que, de acordo com certa
interpretação linguística vinculada à militância negra, foram constituídas por meio de uma origem
colonialista/racista, isto é, tentam trabalhar com o que se imagina ser a explicação
etimológica/histórica dessas expressões e propõem outras alternativas. Desse modo, este estudo
pretende não só analisar os discursos racializados sobre a língua, em circulação no Instagram,
mas também, observar a maneira como perfis do Instagram simulam a função de instrumentos
linguísticos tradicionais, chegando a ser classificado como um instrumento linguístico eventual.
No processo de montagem do arquivo, do qual extraímos nosso corpus de análise, depara-me com
uma regularidade que se substancia pela relação entre denúncia e sugestão. Isto é, os perfis
denunciam palavras e expressões consideradas racistas e prescrevem outras opções com sentidos
similares. Sendo assim, busco tensionar os discursos ali postos em circulação dissimulados pelo
efeito de evidência, produzindo, assim, uma abordagem normativa.
Palavras-chave: Análise de Discurso; Instrumentos linguísticos; Discursos racializados;
Dicionário; Instagram.
Abstract: This study aims to investigate, in light of the materialist-oriented Discourse Analysis
theory, the performance of Instagram social media profiles that, influenced by racial discursivity,
simulate the functioning of linguistic instruments such as dictionaries and manuals, to some
extent. These profiles combat the use of terms and expressions that, according to a certain
linguistic interpretation associated with black activism, were constituted through a
colonialist/racist origin. In other words, they try to work with what is imagined to be the
etymological/historical explanation of these expressions and propose other alternatives. Thus, this
study aims not only to analyze racialized discourses about language circulating on Instagram but
also to observe how Instagram profiles simulate the function of traditional linguistic instruments,
even coming to be classified as an eventual linguistic instrument. In the process of assembling the
archive, from which we extracted our corpus for analysis, I encountered a pattern that is
substantiated by the relationship between denunciation and suggestion. That is to say, the profiles
denounce words and expressions considered racist and prescribe alternative options with similar
meanings. Therefore, I seek to tension the discourses circulating there, disguised by the effect of
evidence, thereby producing a normative approach.
Keywords: Discourse Analysis; Linguistic Instruments; Racialized Discourses; Dictionary;
Instagram.
1 E sta pesq u isa é fruto do m eu Trabalho de C onclusão de Curso (TCC) a partir do qual pude recortar as
reflexões para d esen v o lv er este artigo.
2 T his research is the result o f m y Course C om p letion W ork from w h ich I w a s able to cut out the reflections
to d evelop this article.
Introdução
Neste estudo, empreendo uma discussão que se refere a dispositivos tecnológicos
que, eventualmente, descrevem e instrumentalizam a língua por meio de publicações de
perfis da rede social Instagram que fazem um atravessamento entre a discursividades
linguística e racial a partir de publicações, que dicionarizam alguns termos e expressões
compreendidas como racistas.
Com o propósito de investigar o funcionamento de tais perfis, traço aqui os
seguintes objetivos: identificar os perfis da rede social Instagram que simulam o ofício
dos dicionários e seus respectivos funcionamentos; caracterizar a ferramenta estudada
como um material que simula o funcionamento de um instrumento linguístico, a fim de
compreender como nele opera a descrição e a instrumentalização dos discursos
racializados3; produzir uma reflexão crítica que, no campo da linguagem, contribua com
a discussão sobre a relação entre a problemática racial e o ensino dos usos lexicais na
esfera digital.
À vista disso, mobilizo um dispositivo teórico-analítico formado por meio do
cruzamento entre a Análise de Discurso de orientação materialista, através dos estudos de
Orlandi (2007) e Lagazzi (1988) que nos permitirão analisar o funcionamento discursivo
conforme as demandas materiais em voga; a História das Ideias Linguísticas, a partir de
Auroux (2009); Zoppi-Fontana (2009); Ferreira (2020) pondo em questão a constituição
de um instrumental que nos permita fazer uma análise metalinguística; e os Estudos de
Raça, ensino e linguagem, por intermédio de Gonzalez (1984), Modesto (2021) e
Nascimento (2021), dada a necessidade de compreensão das tensões raciais nos limites
da língua.
Dessa maneira, explorar a possibilidade de perfis do Instagram funcionarem como
uma ferramenta que orienta os usos linguísticos com um caráter antirracista, além de ser
uma proposta contemporânea, isto é, mais próximo da realidade das gerações recentes,
aponta para uma direção que diz respeito às materialidades de caráter didáticos presentes
em suportes tecnológicos não tradicionais, possibilitando o desenvolvimento de
3 M od esto (2021).
discussões e reflexões críticas em torno da língua e seus usos por intermédio de uma rede
social.
Acredito que seja de grande importância estudar a respeito da relação entre língua
e raça nesse suporte tecnológico, tendo em vista a sua grande popularidade e relevância
dentro do contexto digital. Nessa perspectiva, entendo que tal proposta venha a contribuir
com a reflexão crítica acerca da relação entre língua e racismo, questionando o que tem
circulado nas redes sociais, as quais, por sua vez, ao se portarem como instrumento
linguístico, podem tanto produzir uma educação linguística antirracista, quanto tornar-se
um meio de circulação de ideias com grande influência do senso comum.
Portanto, este estudo está organizado do seguinte modo: em primeiro lugar, na
fundamentação teórica, exploraremos o processo conhecido como gramatização e a noção
de instrumentos linguísticos (AUROUX, 2009) com o intuito de situar nosso objeto de
análise como tal. Além disso, discutiremos em torno da maneira como nosso objeto de
estudo materializa um discurso sobre a língua, que aponta também para a discussão racial.
Na sequência, mobilizo uma noção de instrumentos linguísticos eventuais em
consonância com uma análise a partir de sequências discursivas, as quais envolvem
postagens em torno da palavra denegrir, a fim de compreender os efeitos de sentido
produzidos e suas ressonâncias no político (ORLANDI, 2007).
Considero que esta pesquisa é muito cara para o avanço dos estudos no seio da
AD e da HIL, uma vez que temos como propósito desenvolver um trabalho crítico que
possa contribuir, sobretudo, para os estudos linguísticos que inscrevem, na discussão, o
caráter incontornável das questões raciais.
2010), o qual seleciona e decide produzir sentido, fazendo ressoar a posição da qual o
discurso se constitui, por exemplo:
O controle sobre a língua é parcial, haja vista que em diversas situações somos
surpreendidos por episódios ambíguos, pelos equívocos e mal-entendidos próprios da
língua. Dito de outro modo, a língua demonstra um caráter de incompletude, o qual
permite ser passível de ocorrências equívocas, as quais estão a ser suprimidas nos
instrumentos linguísticos tradicionais.
Por longos anos, o saber metalinguístico que tínhamos aqui no Brasil não foi
resultado de uma produção autônoma, tendo em vista que se importava esses
conhecimentos de Portugal. Só a partir da segunda metade do século XIX que são
desenvolvidos estudos sobre a língua no território brasileiro. A produção de saberes
linguísticos/metalinguísticos no Brasil tem uma relação direta com a desvinculação de
sua antiga colônia Portugal (GUIMARÃES, 1994). Isto fortaleceu a imagem de um
português diferente do que é falado na Europa, desenvolvendo uma autonomia em relação
aos estudos linguísticos sobre uma língua particular e a construção identitária dos sujeitos
brasileiros.
Nesse processo, surge a vertente brasileira da História das Ideias Linguísticas
(doravante HIL). Conforme a HIL brasileira, considera-se como instrumento linguístico
todo material que, de algum modo, descreve e instrumentaliza a língua a fim de
documentá-la para diversos usos, ampliando a especificação abordada por Auroux (2009).
Nesse sentido, a língua portuguesa brasileira é constituída por um valor simbólico
validado pelas instituições que impulsionam e afirmam seu caráter singular. Em Zoppi-
Fontana (2009), lemos o seguinte:
entanto, a relação dos sujeitos com a língua está em constante transformação, e por esse
motivo, surgem novas tecnologias que assumem papel similar aos primeiros
instrumentos. Dessa maneira, é possível estender tal denominação a outras tecnologias,
uma vez que muitas outras surgiram a partir dos princípios das primeiras.
Para tanto, instrumentos linguísticos como manuais didáticos, e exames
nacionais, por exemplo, têm em sua composição elementos léxico-gramaticais,
organizados conforme a configuração do próprio material. Declaro que no Instagram, por
sua vez, está presente o que Adorno (2018), chama de ferramentas lexicográficas digitais,
que consistem em mecanismos que não existiam em dicionários impressos, mas que
surgiram com a circulação digital, como é o caso das hashtags, recurso que possibilita a
busca de temas, questões, matérias a partir de palavra-chave.
A rede social em si, não propõe orientações acerca dos usos lexicais, mas é um
terreno propício a modificações, adaptações e inovações na forma como os sujeitos se
relacionam no interior desta tecnologia. Entendo esta situação como um aspecto
desenvolvido conforme a mudança nas formas de utilização dessa rede social, como
ferramenta profícua para modos diversos de exploração, inclusive em perfis com uma
abordagem antirracista na discursividade da língua.
Não é uma tipologia a priori, nem um tema. Pelo contrário, diz respeito a um
funcionamento discursivo que pode ser constituído em diferentes processos de
identificação e posições sujeito. Nesse sentido, uma série de discursividade podem
aparecer engendradas ou agenciadas por tensões raciais, o que nos permite falar em
discursos racializados “de” e discursos racializados “sobre” (MODESTO, 2021, p. 9).
modo frequente na sociedade. A seleção dos materiais foi realizada através de consultas
a perfis que fizeram/fazem postagens, as quais se enquadram ao nosso interesse de
investigação, ou seja, que divulgam palavras, frases, expressões com raízes ditas racistas
e tensionam sua utilização.
Nessa perspectiva, a seleção desses perfis não aconteceu de maneira aleatória,
minha estratégia de localização de publicações que apresentam essas características se
estabelece através de buscas por hashtags (que seriam equivalentes às palavras-chaves
das redes sociais, isto é, direcionam as pesquisas a determinadas discussões e assuntos).
Desse modo, para fim de localização, utilizei as seguintes hashtags: palavras racistas,
expressões racistas, negro, racismo.
A similaridade com o dicionário se mostra presente nesta ferramenta lexicográfica
digital (ADORNO, 2018), através da busca pela palavra, como acontece em dicionários
eletrônicos e digitais. É um mecanismo de consultas próprio ao digital, apesar de ser
diferente do modo tradicional, uma vez que no dicionário físico, essa busca ocorre por
ordem alfabética e quem consulta precisa percorrer as folhas até a palavra desejada. Na
sequência, serão apresentados, por meio de descrições, três perfis selecionados para este
estudo.
O perfil oficial da Defensoria Pública da Bahia, caracteriza esse órgão como uma
organização sem fins lucrativos, a qual fornece orientações jurídicas e proporciona a
defesa judicial e extraconjugal, integral e gratuita dos direitos individuais e coletivos. A
página serve de porta-voz entre a própria defensoria e a população baiana, viabilizando
contato, informações, modo de atuação etc. Ao longo do feed, encontra-se publicações
que demonstram, por meio de vídeos e fotos, o engajamento da defensoria na busca de
promover justiça social para diversos grupos sociais: indígenas, crianças, negros,
comunidades carentes e mulheres. Ou seja, o perfil não se compromete exclusivamente
com uma única questão social, mas com diversas, dado o seu caráter jurídico de
intervenção.
q u e b ra n d o o t
Seguir Enviar mensagem +A
ab u
Quebrando o Tabu
Por um mundo mais informado e menos careta.
quebrandootabu.com.br/newsletter + 1
A escuta de um psicólogo e
tndispensavel. Ex: um amigo ele vai dar
dicas do que se fazer, coisa e tal. Mas as
geral sabem que tem que
Fonte: https://www.instagram.com/quebrandootabu/
(2 IDENTIFICAÇÕES
*
RESTAMSOMENTE
2 VAGAS
PARA0 PROGRAMADE
MENTORIAEMDAI
□
Caso de racismo em
consulta médica: 'A
negra tem um cheiro
mais forte', diz
ginecologista durante
1a audiência com juiz
Ginecologista d isse à paciente, u m a
jo v e m d e 19 anos, q u e a m a ioria das
m ulh e re s negras te m ch e iro fo rte nas
pa rtes íntim as. A m éd ica viro u r é e está
Diante disso, nas páginas mapeadas, o saber sobre a língua é apenas mais um
dentre outros, os quais fazem parte do cotidiano dos sujeitos de maneira
espontânea/orgânica, sem a necessidade de se desenvolverem como um conhecimento
especializado em um espaço legitimado. São saberes que na maioria das vezes estão
distantes do conhecimento técnico, mas que apesar disso, circulam e
produzem/reproduzem sentidos legitimados e não legitimados (pelas instituições
oficiais). Nessa direção, compreendo que os saberes linguísticos cotidianos podem ser
produzidos em qualquer lugar, inclusive no Instagram.
Parece-me que se trata de um fazer próprio das mídias digitais, onde o que
prevalece é o processo de retroalimentação do sujeito-seguidor, afetada pela política de
algoritmo, em que a constância na interação com os seguidores impacta no alcance dos
conteúdos ali colocados. Ou seja, quanto menos você interage com seus seguidores,
menor será o alcance que suas publicações poderão chegar ao seu público através de posts
futuros.
Entendo que tal fato influencie na ausência do saber de um especialista, uma vez
que a elaboração de um saber especializado pode demandar muito tempo, porém de
acordo com o serviço do algoritmo, quanto mais tempo sem publicar, maior será o
prejuízo para o perfil. Sendo assim, a saída para ocasiões desse tipo seria publicar sem
respaldo técnico. Nesses termos, o saber especializado, sobretudo o linguístico fica em
segundo plano para legitimar o conhecimento ali compartilhado. Isto é, “no espaço digital,
parece haver outro modo de legitimidade” (PETRI; GUASSO, 2020, p. 281). O
funcionamento dos perfis, desse modo, é marcado pela falta de uma periodicidade regular,
no que concerne aos saberes linguísticos, sendo capaz de colocar a língua em evidência
de determinada questão uma única vez e não mais fazer da língua objeto de discussão, a
partir de então
Este estudo, dessa forma, não está comprometido em revelar a verdade ou até
mesmo empregar juízo de valor (certo ou errado; verdadeiro ou falso), porém busco:
tensionar a regularidade do material de análise e os sentidos mobilizados; entender a
reprodução do efeito normativo dos dicionários; bem como, refletir, criticamente, sobre
como a ideologia se materializa nos discursos e como lidamos com isso na esfera
linguística.
No que concerne à montagem do arquivo, deparo-me com uma regularidade, a
qual diz respeito ao modo de organização das publicações. As páginas seguem um padrão
de publicações, que consistem em denúncia e sugestão. Isto é, os posts operam a partir da
seguinte estrutura: pare de usar X, em vez disso, fale Y. Ou seja, neste contexto, há uma
relação estreita entre a denúncia (de uma palavra ou expressão compreendida como
racista) e a sugestão (de uma palavra ou expressão compreendida como não racista).
Partindo deste ponto, declaro que a regularidade presente na estrutura de formulação das
sequências discursivas (não fale X e use Y), direciona a uma consciência linguística, a
qual faz com que os sujeitos optem em escolher, conscientemente, quais expressões irão
utilizar. Essa fórmula constitui, portanto, um discurso metalinguístico, ou melhor, um
discurso sobre a palavra (NUNES, 2010).
Entendendo que, a fim de combater o racismo nos limites da língua, as páginas
investigadas determinam um recorte aceitável da língua e o colocam como único possível.
Na tentativa de conter possíveis sentidos racistas, os movimentos sociais buscam colocar
em desuso termos que ofereceriam algum prejuízo à comunidade negra. Nesse aspecto,
as páginas do Instagram reproduzem o funcionamento de outros instrumentos
linguísticos, uma vez que prescreve como dicionários, gramáticas e cartilhas, com
propósito de estabilizar os sentidos, conjugada com uma proposta pedagógica e assumem
uma posição normativa, a qual direciona a maneira que os sujeitos vão se relacionar com
o mundo pelo simbólico, sendo o lugar da “completude dos sentidos, da certeza, da
exaustividade, do dizível” (SILVA, 1996, p. 203).
Desse modo, o material de análise tenta constituir seus sentidos univocamente,
tendo em vista a repercussão desse instrumento linguístico como um discurso de verdade.
Isto é, “um discurso que se estabelece ilusoriamente como um lugar de completude dos
sentidos” (GRIGOLETTO, 2010, p. 67), a ponto de ser considerada referência para o
estabelecimento de um dizer compreendido como antirracista. O Instagram criou um
ambiente virtual, a partir do qual o saber pode ser dito e construído por qualquer sujeito
que se proponha a divulgar determinado assunto, em áreas diversas. Vejo tal ocorrência,
por exemplo, em perfis que trabalham com biologia, em que biólogos comentam acerca
de dadas espécies de seres vivos e seus respectivos comportamentos na natureza.
Nesse sentido, um profissional coloca em circulação um conhecimento técnico,
que não é de domínio da maioria das pessoas, devido a sua especificidade. Dessa maneira,
determinados sujeitos, se diferenciam através do entendimento de determinada área, mas
também no âmbito linguístico, pois as formulações ocorrem a partir de uma língua do
domínio científico específico (GUIMARÃES, 2009). Isto é, há uma linguagem técnica, a
qual se diferencia da linguagem comum.
Na esfera linguística, é possível encontrar também, perfis que se dedicam a
promover assuntos nos quais a língua é tematizada, tanto por aqueles que assumem a
roupagem de compartilhar somente conteúdos linguísticos, quanto por aqueles que,
pontualmente, tecem opiniões de acordo com a relevância do assunto em determinado
momento da história. É nesta última categoria, que caracterizamos os perfis aqui
estudados, uma vez que, em geral, as páginas que denunciam e sugerem (como apontamos
anteriormente), colocam como centro de suas discussões outras pautas, as quais podem
ou não ter a língua no núcleo do debate: racialidade, gênero, saúde etc.
À vista disso, julgo que em perfis do Instagram pode-se identificar um
deslocamento de funcionamento, semelhante ao que Ferreira (2012) explora em seu
trabalho acerca de enciclopédias virtuais (Wikipédia e na Desciclopédia). Embora as
publicações dos perfis no Instagram não tragam as mesmas demarcações (especialista,
todos e qualquer um ), entendo que, na prática, o saber sobre a língua/palavra parece ter
passado por um processo de amplificação de sujeitos lexicográficos. Nesse aspecto, o
especialista não será o único a elaborar saberes metalinguísticos.
Em algum momento da história, os lexicógrafos ou gramáticos puderam ser as
únicas figuras que tivessem a responsabilidade de produzir um saber metalinguístico
sobre palavras por meio de gramáticos, dicionários e vocabulários, por exemplo. No
entanto, em conformidade com as ferramentas tecnológicas disponíveis hoje, posso dizer
que todos e/ou qualquer um podem exercer tal função. Ou seja, não existem mecanismos
censores que impeçam todos e qualquer de produzirem/reproduzirem também um saber
linguístico, de maneira semelhante ao especialista, principalmente por perfis do
Instagram, os quais operam com ampla autonomia.
Sequência discursiva 1
Difamar/caluniar <0 Q V
Gostos: e outras pessoas
Defensorta SETEMBRO28, 2020
Publica
BAHIA
Sequência discursiva 2
Por meio do olhar de um hipotético de uma terceira pessoa, farei aqui algumas
reflexões acerca das situações envolvendo A e B. Na tentativa de se deparar com
deslocamentos de sentidos, irei produzir uma linha de raciocínio supositório. Tendo como
ponto de partida a compreensão do que seria denegrir, a partir de uma relação sinonímica,
considero substituir em algum momento este significante por difamar a fim de saber até
onde as paráfrases podem nos levar no limite do intradiscurso.
Pensemos que em dada situação um sujeito (A) tenha proferido falas que viessem
a ofender a reputação de alguém (B). O sentimento do sujeito ofendido é de ser visto
como inferior. O sujeito C (terceira pessoa), que está fora da situação, pode seguir ao
menos dois caminhos, vejamos: primeiro, pode-se concluir que A foi racista, porque B se
ofendeu ao ser chamado de negro ; outra abordagem possível seria a de que ao ser
interpelado como negro, B rejeitou a atribuição, pois conforme seus processos de
identificação, não se reconhece como tal e, portanto, julga não merecer ser tratado dessa
forma.
Chamo a atenção, dessa maneira, para o radical negr, visto em negro e denegrir.
Não é do meu interesse aqui, apontar a origem dos termos ou discuti-las, mas pretendo
compreender o que pode ter levado ao surgimento de sentidos postos em circulação que
relacionam a palavra denegrir a práticas racistas. Considero que por um efeito de
memória, o qual orbita a cadeia de sentidos do radical negr, em que o negro em diversos
casos é relacionado a algo maléfico, faz com que haja um esvaziamento do saber técnico-
linguístico-etimológico, ocasionando em uma construção de sentidos por associações de
palavras com o radical comum. Ou seja, a direção do dizer depende do interdiscurso que
determina o lugar do sujeito negro como sinônimo de desqualificação.
Essa ideia é ratificada na SD 3, na qual podemos ver uma articulação que traceja
o radical negr em outras construções sintáticas, em virtude de eliminar arbitrariamente a
possibilidade de sentidos pejorativos em formulações semelhantes. Nessa perspectiva, o
Assim sendo, é pelo efeito de memória que perfis do Instagram, influenciados por
uma interpretação de militância negra, podem dizer que determinadas expressões são
racistas. Embora o funcionamento da língua não dependa exclusivamente do recorte
normativos de certos sentidos apresentados nos perfis.
Nos deparamos com o discurso de resistência que, a sua maneira, tenta comedir
uma memória discursiva, em práticas materiais, no seio da língua, preenchendo a lacuna
proporcionada pela falha da ideologia a partir de uma demanda social, a qual irá confluir
no batimento entre a discursividade linguística e o elemento racial, resultando em um
discurso racializado sobre a língua (MODESTO, 2021).
Portanto, o funcionamento remete ao êxito do fazer sentido, assim como um livro
que foi pensado, produzido e publicado com o propósito de ser lido, mas funciona muitas
vezes como uma indumentária doméstica em uma prateleira, os sentidos poderão ser
outros, uma vez que não há como regulamentá-los, embora não se deixe nunca de tentá-
lo (ORLANDI, 2007), principalmente, pelos instrumentos linguísticos, sejam eles
tradicionais ou eventuais.
É possível concluir que os posts do Instagram não atingem a profundidade do
racismo linguístico, ficando apenas na superficialidade do politicamente correto,
consoante já sinalizava Nascimento (2021), mas também que, ao fazê-lo, promovem uma
intervenção na língua, cujos resultados são aqui apresentados.
Considerações Finais
Neste trabalho tínhamos como objetivo investigar a maneira como o Instagram
funciona, reproduzindo/assumindo o ofício de instrumentos linguísticos, sobretudo, do
dicionário, tendo em vista as discussões propostas pelos perfis em torno de palavras que,
em alguma medida, manifestam potenciais sentidos racistas. Isto é, que colocam em
circulação saberes sobre a língua, nos quais se incluía à discursividade racial.
Em primeiro lugar, concernente à dicionarização dos perfis do Instagram,
empreendi uma discussão, na qual a partir do corpus, foi identificada uma regularidade
nas publicações, as quais são compostas por denúncia (de racismo), bem como sugestão
de alternativas (de opções não racistas), o que nos permitiu caracterizar o Instagram como
Referências
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SOUZA, Matheus Oliveira. Arquivo das nomeações raciais: “crioulo” e “pardo” nos
dicionários de língua portuguesa. Relatório de pesquisa: Iniciação científica.
Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, 2022.
Abstract: Given the scarcity of works that provide resources for linguistic research on Scientific
Dissemination (SD) in the oral modality, the objective of this work is to present the Corpus Oral
de Divulgação Científica (CODiC). CODiC is made up of transcripts of responses from experts
(teachers, technicians, and students) from the Federal University of Alfenas to questions sent by
the external community to the “A Voz da Ciência” extension project, which were broadcast during
local radio programming. Based on the theoretical principles of Corpus Linguistics, CODiC
consists of transcriptions of the first five thematic seasons of the project, covering the period from
the second half of 2019 to the second half of 2021, totaling a little more than 4 hours of recording,
32,094 tokens and 7,685 types. Linguistic and metadata characterizations are presented on the
way in which technical-scientific knowledge circulates in media spaces open to SD. Furthermore,
reflections are made on the discursive mobilizations carried out by the interlocutors in each
historical, ideological, and cultural moment, which help to understand CODiC as a linguistic
instrument.
Keywords: Oral corpus; Corpus linguistics; Scientific dissemination.
1 D outor em L in gu ística p ela U niversidad e Federal de São Carlos A tua co m o docen te na U niversidade
Federal da B ah ia no Instituto de C iência, T ecn o lo g ia e In ovação e no Program a de P ós-G raduação em
L íngua e Cultura. E-m ail: jack cru zso u za @ g m a il.co m .
Introdução
Devido a acontecimentos sociais, políticos e econômicos dos últimos anos,
acompanhamos uma profusão de atividades de Divulgação Científica (DC) que
contribuem para a construção de imaginários sobre o fazer científico e quem o faz. Nesse
esteio, percebe-se que a DC pode ser considerada como importante e poderosa ferramenta
de combate e resistência à Fake News (DANTAS; DECCACHE-MAIA, 2020), à
desinformação (FREIRE, 2021) e ao negacionismo (CORREIA; MARTINS, 2022) que
se espalham notoriamente na sociedade. Isso se deve ao fato de a DC acessar, em certa
medida, esferas subjetivas da sociedade, permitindo com que haja deslocamentos de
significados e concepções sobre ciência, cientistas/pesquisadores e das instituições de
ensino e pesquisa envolvidas nesse processo (SOUZA, 2021).
Desde que centros de pesquisas e, em especial, universidades perceberam a
importância de dialogar com a comunidade não especializada e externa acerca de suas
atividades de pesquisa, tecnologia e inovação, bem como explanar conceitos e aspectos
científicos a fim de torná-los inteligíveis por esse público, a DC tem ganhado notoriedade.
A universidade, compreendida como um dos agentes de promoção da DC como prática
(LIMA; GIORDAN, 2021), tem construído pontes de interlocução com esse público,
mobilizando meios e estratégias de comunicação que tendem ir ao encontro do público-
alvo em diferentes práticas de divulgação.
Essas estratégias comunicativas podem se dar em registros linguísticos escrito,
oral e multimodal. Em cada um deles adotam-se estratégias específicas para promover
explicações, exemplificações, demonstrações e definições de metodologias e conceitos
científicos, por exemplo, que sejam funcionais do ponto de vista linguístico-cognitivo,
em determinados veículos de comunicação, como revistas, podcasts e vídeos curtos.
Apesar da vasta utilização das redes sociais, que implicam a utilização de recursos
e estratégias que demandam aspectos multimodais, uma das formas ainda democráticas e
das mais antigas de promover a DC é o rádio. Esse aspecto mais democrático ocorre pelo
alcance que se pode obter quando comparado aos meios e veículos de comunicação que
são promovidos pela escrita, especialmente em programações que atinjam comunidades
bem específicas.
Com relação aos estudos e pesquisas sobre produção e circulação de textos de DC,
há uma vasta literatura que investiga as operações linguísticas utilizadas por divulgadores
em textos escritos para promover a interlocução com a comunidade não especializada.
Cataldi (2008), ao analisar a mídia impressa, considerou três grandes grupos de operações
linguísticas que ocorrem em textos escritos de DC, a saber: (i) Expansão, que se trata de
inclusão de informações, com o propósito de disponibilizar significados conceituais para
efetuar participação cognitiva e comunicativa do leitor; (ii) Redução, que se trata de
estratégias de condensação ou de eliminação de informações científicas, mas mantendo-
se conceitos relevantes; e (iii) Variação, que são procedimentos que se baseiam nos níveis
lexical, semântico para promover a reformulação discursiva do texto.
Salienta-se que o registro escrito, ao ser utilizado em determinados veículos de
comunicação, possibilita a utilização de certos recursos estruturais para promover maior
compreensão do conteúdo, como notas de rodapé e/ou explicativas, imagens e
infográficos, por exemplo. Essas possibilidades se enquadram na proposta de Cataldi
(2008), ao conceber que uma nota de rodapé pode promover Expansão sobre o que está
sendo dito, ou mesmo indicar um material suplementar de maneira a não comprometer
ou interromper a narrativa científica.
Entretanto, quanto ao registro oral, percebe-se que há poucos estudos que
investigam como o texto e o discurso de DC se estruturam e se realizam, e como eles
mobilizam seus interlocutores no processo de letramento científico e inserção de um
público não especializado na cultura científica. Esses estudos podem partir da
caracterização de usos, operações e construções linguísticas específicas, que passam a ter
funções determinadas na produção de sentido em um conjunto de dados linguísticos
concebido especialmente para essa finalidade, como propõe a Linguística de Corpus
(LC).
Nesse sentido, tem-se um instrumento linguístico que pode ficar limitado à
descrição ou representação da atividade linguística de determinados grupos de falantes
que o corpus representa. Entretanto, sabendo-se que (i) a construção de um corpus
linguístico não é a simples organização de textos (orais, escritos e/ou multimodais), mas
que evidencia certo objetivo de pesquisa, e (ii) é possível acessar dimensões políticas e
históricas, demonstrando que não há neutralidade nos enunciados que compõem os textos,
pode-se afirmar o Corpus Oral de Divulgação Científica (CODiC) pode ser considerado
um instrumento linguístico.
Assim, objetiva-se neste trabalho destacar os processos metodológicos de criação
do CODiC, entendendo-o como um instrumento linguístico que possibilita investigação
e caracterização de usos técnicos e estratégias linguísticas para a popularização de
conceitos e metodologias científicas. Para tanto, são descritas características linguísticas
Apesar de Berber Sardinha (2004) salientar que não existam critérios objetivos
para determinar a representatividade do corpus, ele destaca que a amostra deve ter uma
dada extensão. Esse procedimento tenta garantir que o corpus represente nele fenômenos
linguísticos ou aspectos outros que estejam no horizonte da pesquisa. Para tanto, o autor
destaca que determinar a população-alvo e os fenômenos linguísticos a serem estudados
são estratégias relevantes para contornar a difícil tarefa de definir a extensão do corpus,
sempre norteando-se pelas perguntas “ representativo do quê” e “representativo para
quem”.
Para que o corpus represente a variedade linguística de determinada construção
fonética-fonológica, por exemplo, é importante que ele contenha diferentes variantes e
que tenham sido produzidas naturalmente (em contraposição a uma criação artificial dos
sons neste caso). Assim, é possível dizer que quanto mais raro é um fenômeno, maior
deverá ser o corpus para poder representá-lo; ao passo que, quanto mais comum o
fenômeno em observação, menor será o corpus. Nesse sentido, há uma relação direta entre
a representatividade e o tamanho do corpus, considerando os objetivos de pesquisa que
conduziram a construção daquela coletânea de textos.
Ainda, Biber (1993), na mesma perspectiva, contrasta a extensão do corpus (em
quantidade de textos e de palavras, por exemplo) à definição de uma população-alvo, com
relação às decisões sobre os métodos de amostragem. Levar em conta apenas
características estatísticas pode conduzir à seleção de textos que conduzem análises
equivocadas, como deixar de catalogar determinados fenômenos porque ocorrem em
baixa frequência ou não ocorrem naquele conjunto de textos compilados.
Diante disso, Berber Sardinha (2004) propõe três pontos que o corpus precisa
atender para responder essas duas últimas questões: (i) Tipologia, em que se detalham
aspectos do design do corpus e as formas como ele foi coletado; (ii) Representatividade
e (iii) Extensão, que juntos apontam para o tamanho do conjunto de dados, partindo do
princípio que a língua é um sistema probabilístico (HALLIDAY, 1991) e, portanto,
quanto maior o corpus, maior é a chance de descrever e encontrar fenômenos linguísticos
que estão sob foco dos estudos.
Biber, Conrad e Reppen (1998, p.4) caracterizam os estudos realizados em LC
como (i) empíricos, que permitem análise de padrões reais de uso em textos naturais; (ii)
extensos, que é uma coleção grande de textos coletados criteriosamente; (iii) apresentar
análises metodológicas, com utilização de abordagens automáticas, semiautomáticas e/ou
manuais, além de análises qualitativas e quantitativas.
Por fim, cabe destacar que um corpus linguístico não representa apenas
fenômenos linguísticos isolados de seus falantes, já que a naturalidade é um aspecto
imprescindível em LC. Os corpora linguísticos, antes de mais nada, representam decisões
baseadas em objetivos de pesquisa, o que justifica o tamanho esforço para que haja
representatividade sobre a língua ou alguma de suas modalidades. Pontua-se, então, que
quaisquer que sejam os métodos de compilação, os textos não são escolhidos ao acaso,
pois há, ainda que pouco, enviesamento sobre essas escolhas. Mesmo em sua dimensão
técnica, é possível que os corpora linguísticos reflitam uma dimensão político-histórica,
no sentido de não haver neutralidade e não haver razão de ser feito, conforme Aquino
(2020) aponta sobre a caracterização dos instrumentos linguísticos.
Além disso, os textos que são compilados que fazem parte do corpus são
recuperados a partir de determinadas fontes, em dado recorte temporal e produzidos
naturalmente por certos falantes. Assim, os corpora auxiliam não apenas sobre o
conhecimento da língua e dos usos linguísticos dos falantes, mas também permite acessar
ideologias e pensamentos dominantes e marginais, percepções sobre o mundo em dado
momento histórico e cultural. Por conta disso, é possível considerar que o corpus
contribui aos estudos linguísticos sendo também um objeto cultural e técnico-histórico,
com pontua Medeiros (2020) ao analisar glossários.
2. M etodologia
A priori, a criação do CODiC está alinhada à investigação de fenômenos inerentes
à Sintaxe, à Semântica e à Enunciação. Nesse sentido, as decisões metodológicas de
transcrição dos áudios, anotação de certos fenômenos linguísticos e formatos de
armazenamento dos arquivos estão subjacentes a esses níveis de análise linguística.
Quanto à transcrição, foi utilizada a ferramenta on-line e gratuita Dictation2. Essa
ferramenta possui extensão para diversos idiomas, além de permitir que qualquer formato
de áudio possa ser processado e que a transcrição seja exportada para diferentes
plataformas (como redes sociais e E-mail), como demonstrado na Figura 1.
2
Disponível em: https ://dictation.io/
(1)
a) Olá meu nome é Luciene Marques Eu Sou professora do curso de farmácia e eu vou
responder a sua pergunta em relação se a depressão tem alguma relação com a idade
são com a idade observamos que crianças podem ter depressão adolescentes pessoas
adultas idosos então não existe uma relação da depressão com a idade se manifestar
fase da nossa vida em qualquer faixa etária.
b) Olá, meu nome é Luciene Marques._ Eu Sou professora do curso de farmácia e eu vou
responder a sua pergunta em relação se a depressão tem alguma relação com a idade._
Não, não há uma relação com a idade. Nós observamos que crianças podem ter
depressão, adolescentes, pessoas adultas, idosos tá? Então, não existe uma relação
da depressão com a idade. Ela pode se manifestar em qualquer fase da nossa vida, em
qualquer faixa etária.
3. Resultados e Discussão
Nesta seção estão detalhados resultados desta pesquisa, organizados em
Caracterização do corpus, Organização das informações, Considerações sobre o perfil
dos respondentes e Considerações sobre a oralidade no corpus.
3
Disponível em: https://github.com/iackcruzsouza/CODiC.
suas dúvidas por meio de redes sociais4. Em seguida, as perguntas são encaminhadas a
possíveis especialistas e/ou divulgadores científicos da universidade (professores,
técnicos e/ou alunos) que atuarão como respondentes. Eles são instruídos a produzirem
respostas curtas com linguagem acessível pelo público não especializado (aspecto que
será retomado na subseção 3.3).
Para elaboração do CODiC, foram consideradas as cinco primeiras temporadas do
projeto com as seguintes temáticas “Covid-19”, “Atemático”, “ Saúde mental”, “Uso
Racional de medicamentos” e “LGBTQIAP+” . De acordo com a Tabela 1, a quantidade
de áudios transcritos referentes a cada uma das temporadas decaiu ao longo das
temporadas. As transcrições foram realizadas a partir dos áudios disponíveis na
plataforma streaming do projeto, e não constam todos os áudios que foram veiculados na
programação da Rádio Federal de Alfenas, especialmente para as temporadas 4 e 5.
T a b e la 1: Caracterização do C O D iC .
T em p orad a/ Q n t. de Q n t. d e Q n t. de D u r a ç ã o m é d ia D u r a ç ã o to ta l
A ssu n to á u d io s tokens types d a s re sp o sta s d a s re sp o sta s
Com relação à Temporada 1, destaca-se que essa temporada foi marcada por estar
sendo produzida concomitante à pandemia de Covid-19. Nesse sentido, as respostas
elaboradas refletem certas preocupações técnicas, informativas e científicas que se tinham
à época da temporada, como, por exemplo, a caracterização de sintomas, material de
máscaras e material de assepsia, como demonstrado em (2). Ainda que a informação em
si não seja mais adequada, dado que a instrução de utilizar máscaras de tecido não sejam
mais indicadas por órgãos fiscalizadores de saúde, a resposta foi mantida no corpus por
possibilitar o mapeamento da preocupação tanto da comunidade externa (no sentido de
levantar pontos de questionamento) quanto da universidade (no sentido de tornar
acessível a informação fidedigna à realidade) criarem interlocução sobre esse ponto.
(2)
Pergunta: Como devo higienizar a minha máscara de tecido?
Resposta: Olá, meu nome é Leonardo Almeida, sou professor da UNIFAL. As máscaras
de pano, elas podem ser lavadas com água e sabão, assim como elas também podem
ser deixadas de molho em água sanitária por aproximadamente meia hora. Depois
disso, essas máscaras devem ser lavadas com água e sabão e também podem ser
penduradas para secarem naturalmente. Quando elas estiverem secas, as máscaras
devem ser passadas a ferro quente antes de serem utilizadas novamente. é importante
lembrar que as máscaras são de uso pessoal, não podendo ser compartilhada com
outras pessoas, e somente as máscaras de pano são reutilizáveis, são laváveis. As
máscaras descartáveis só são utilizadas uma única vez.
A Temporada 2 foi tida como atemática pois foi a única em que o projeto se abriu
à comunidade externa para responder quaisquer perguntas enviadas, e não a partir da
decisão de um tema específico. Aqui estão contempladas respostas com relação à atuação
e disponibilidade de serviços da universidade no município mineiro de Alfenas,
importância de certos animais aos seres humanos (como abelhas e peixes), uso de
medicamentos e como lidar com casos de suicídio.
Na Temporada 3 contemplou-se a discussão sobre saúde mental, tendo como
respondentes profissionais da área da saúde. Nessa temporada, percebe-se que há duas
naturezas de respostas, a depender da formação acadêmica dos respondentes: se eram de
áreas que propiciavam maior discussão com a temática e seus subtemas (como as áreas
de Psicologia, Medicina e Enfermagem), as respostas apresentam maior detalhamento
informativo; se os respondentes eram de áreas afins, (como Odontologia), as respostas
foram precisas, apesar de concisas, destacando-se o aspecto de interlocução com o
público ouvinte (como “Não desista dapsicoterapia ”).
A Temporada 4 também foi executada durante a pandemia de Covid-19,
concomitante à polêmica em torno do uso de medicamentos que não tinham eficácia
comprovada cientificamente para combater a doença. Na tentativa de produzir mais
adesão do público ouvinte, decidiu-se não nomear a temporada com os medicamentos
questionados à época, mas tornar a discussão mais abrangente. Como resultado, as
perguntas enviadas contemplaram tais medicamentos, mas também outros mais comuns
(como dipirona e anti-inflamatório, por exemplo), bem como o uso devido de cada um
deles (quanto à dosagem e ao vencimento, por exemplo).
Por fim, na Temporada 5 discutiram-se temas relacionados à comunidade
LGBTQIAP+. Ainda que o foco deste estudo esteja nas respostas elaboradas, é
interessante perceber que a maioria das perguntas enviadas ao projeto foram anônimas,
diferentemente das temporadas 1, 2 e 4, em que, possivelmente, explica-se devido à
própria temática da temporada. Essa é a única temporada que escapa à área da saúde no
CODiC, possibilitando verificar construções frasais e estratégias linguísticas que advêm
de formações e experiências acadêmico-profissionais distintas. Ademais, é possível
detectar menor interlocução nas respostas, ao passo que há maior indicação de materiais
complementares e fontes de mais informações (como sites institucionais e organizações
civis municipais).
Quanto à duração das respostas, os respondentes eram instruídos a produzirem
textos com duração máxima de 2 minutos, já que a grade de programação da rádio
disponibilizou 3 minutos de inserção midiática. Assim, as respostas elaboradas tiveram
duração média total de 00:01:25, indicando capacidade de síntese dos respondentes em
relação ao conteúdo elaborado em formato de DC.
Quanto à análise estatística do CODiC, utilizou-se a ferramenta AntConc
(ANTHONY, 2005), a qual possibilitou a contabilização de sequência de caracteres
separados por espaços em branco (tokens) e a quantidade dessas sequências sem repetição
(types). A diferença entre tokens e types permite inferir certa novidade linguística que os
respondentes empregam em seus textos. Observou-se que a variabilidade linguística das
respostas é bastante pequena devido à relação numérica entre tokens e types (no caso,
24.409), sendo possivelmente explicado por usos linguísticos mais simplificados em
função da intenção discursiva e argumentativa, do público-alvo e do suporte de
comunicação.
b) Tag “Resposta”
Na tag “Resposta”, armazenam-se duas macro-categorias, a saber: “resposta” e
“áudio” . Em “resposta”, dividiu-se em “apresentação” e “conteúdo”, que foram
elaborados pelos respondentes. Essa divisão se deu por observar a roteirização no trecho
compreendido em “apresentação”, já que os respondentes eram instruídos a dizerem seus
nomes, formação acadêmica e unidade acadêmica que atuavam na UNIFAL-MG. Em
“conteúdo” consta a resposta elaborada, em que a tag foi inserida não seguindo padrões
sintáticos, mas onde, de fato, ocorreram, como demonstrado na Figura 3.
que houvesse certa espontaneidade na resposta elaborada, para que fenômenos ligados à
oralidade pudessem ser observados, além de ser possível manipular e/ou recuperar trechos
específicos: do “conteúdo”, da “apresentação” do respondente, ou do “texto” da pergunta.
Ainda sobre a resposta, na tag “Áudio” compreende-se a caracterização numérica
dos dados sobre a resposta e o áudio completo (com introdução, pergunta, resposta e
agradecimentos), além do endereço eletrônico do áudio completo na plataforma de
streaming do projeto.
c) Tag “Respondente ”
Nesta tag estão compreendidas as informações sobre os respondentes, a saber:
Nome, Sexo, Curso de graduação, Área de conhecimento, Titulação, Atuação na
UNIFAL-MG e Unidade acadêmica. Todas essas informações foram extraídas a partir do
Portal de Dados Abertos da UNIFAL-MG5 (que armazena informações acerca de seus
servidores) e da Plataforma Lattes (a respeito das informações acadêmicas).
(3)
Olá, meu nome é Ana Carolina Padovan, sou professora de microbiologia da UNIFAL.
Para você desinfetar suas roupas e sapatos pense o seguinte: sabão e água são os nossos
maiores aliados. Então a sua roupa você pode lavar da forma como você tá acostumada:
pode colocar na máquina, pode colocar no tanquinho, pode lavar à mão. O importante
é esfregar bem com sabão e água. Se você estiver usando uma máscara de pano, é
importante que você deixa essa máscara de molho pelo menos por 30 minutos com sabão
e água antes de lavar normalmente. Já o seu sapato dê preferênciapra desinstalá-lo fora
da sua casa. Você pode manter uma vasilha com uma solução de água 9 partes de água,
uma parte de água sanitária pra você passar na solas do seus sapatos. Se o seu sapato é
delicado, você pode usar também água e sabão, sempre nas solas e de preferência manter
o seu sapatos, mesmo que higienizados, fora da sua casa.
(4)
a) Olá, eu sou Larissa Bueno. Médica de Família e professora do curso de Medicina
da Universidade Federal de Alfenas. Muitas pessoas podem achar que as relações
sexuais com o mesmo gênero são mais tranquilas em relação às doenças, mas a relação
sexual homoafetiva transmite sim as DSTS, que nada mais são do que as doenças
sexualmente transmissíveis, e as doenças transmitidas elas podem ser desde o HPV, até
mesmo o HIV que é uma doença crônica, grave. Portanto o cuidado e a prevenção eles
devem sempre existir.
reduza um pouco os alimentos pra tentar reduzir essa glicemia, e retornar no médico pra
reavaliar se tem necessidade de aumentar as doses ou não dos medicamentos.
(5)
a) Pergunta: Sou gay, posso doar sangue?
Considerações Finais
O objetivo deste trabalho foi pautar as etapas de criação do CODiC, como recurso
linguístico que possibilita investigação e caracterização linguísticas de especialistas na
popularização de conhecimento científico. Como resultado, mais que apresentar o corpus,
foi destacada uma metodologia de coleta e análises iniciais de aspectos relevantes para a
LC.
Ao longo deste artigo, apresentaram-se fragmentos do que os consulentes ao
corpus poderão encontrar ao acessá-lo e baixá-lo. Antes, será necessário partir do
princípio que os respondentes representados ao longo do corpus mantêm interlocução
contínua e rotineira com seus pares especialistas, que valorizam e entendem o processo
requer que o texto fuja aos jargões científicos e que, ao mesmo tempo,
não caia no engano de ser um texto simples; requer que o autor ao
explicar e pontuar fatos, teorias e pesquisas científicas não as
simplifique a ponto de torná-las vulgar, simples ou inexistente; requer
entendimento de como os sentidos circulam, se produzem e se
(re)significam em uma sociedade hiper conectada; por fim, requer que
o autor fuja à proposição de um leitor médio e parta do princípio que o
óbvio nunca é tão óbvio (SOUZA et al., 2022, p.6).
Nesse sentido, o consulente não terá à sua disposição apenas um recurso para
analisar textualmente as construções frasais e mobilização de conceitos científicos em
disputa, mas também a possibilidade de observar como interlocutores acadêmicos se
deslocam discursivamente para se inserem em atividades comunicativas novas de
mobilização de sentidos a fim de tornar mais acessível o conhecimento.
Vale ressaltar que, ao analisar as respostas produzidas pelos respondentes, o
CODiC reflete um recorte histórico-ideológico peculiar e, infelizmente, expressivo na
sociedade atual: desinformação generalizada, aumento de notícias falsas, pensamentos
anti e pseudocientíficos. É necessário partir do princípio que a DC produz intersecções
entre esferas de criação ideológicas, em que as atividades pleiteiam motivos, objetivos,
diretrizes, agentes e ferramentas culturais (LIMA; GIORDAN, 2021), importantes no
processo de resistência da Ciência. As respostas, nesse sentido, não foram produzidas ao
acaso: elas foram provocadas a partir de perguntas que se ancoram em temáticas
escolhidas pelo projeto de extensão “A voz da Ciência” . É possível dizer que as respostas
fazem parte de um projeto discursivo do grupo extensionista, na tentativa de mobilizar
sentidos e fomentar o conhecimento. Tais pontos também poderão ser explorados no
corpus, pois ele foi tido na concepção de que a DC “se apresenta como uma ferramenta
fundamental para repensar os caminhos que a ciência faz atualmente [...] que podem se
afastar de uma classe elitizada e se aproximar de um leitor não especialista” (SOUZA et
al. 2022 p.6).
Como alguns dos trabalhos futuros que serão desenvolvidos a partir do CODiC
destacam-se: (i) acréscimo de meta informação sobre (não) espontaneidade nos textos;
(ii) inserção de campos semânticos em cada uma das temporadas; (iii) anotação
enunciativa, com vistas a identificar quando os respondentes alteram ou alternam seus
alvos interlocucionais. Ademais, há outros trabalhos que servirão de ampliação da
A gradecim entos
Agradeço a todos alunos, professores e comunidade externa que estiveram envolvidos no
projeto de extensão “A Voz da Ciência”, especialmente ao idealizador do projeto,
Professor Dr. Lucas Lopardi Franco.
Referências
AQUINO, José Edicarlos de. Gramática: instrumento técnico/ferramenta político-
histórica. In: MEDEIROS, Vanise; Esteves, Phellipe Marcel da. S. et al. (Org.).
A lm anaque de Fragm entos: ecos do século XIX. Campinas: Pontes, 2020, p. 113-118.
BERBER SARDINHA, T. Linguística de corpus. Editora Manole Ltda: São Paulo, 2004.
FREIRE, N.P. Divulgação científica imuniza contra desinformação. Ciência & Saúde
Coletiva, [5./.], v. 26, p. 4810-4810, 2021.
SOUZA, J.W.C.; ARAUJO, M.P.; PEREIRA, L.N.; PEREIRA, G.A. Editorial: Sobre
revitalizações e recomeços: Um processo em movimento. C aderno de Estudos
Interdisciplinares, [5./.], v. 4, n. 1, p. 5-10, 21 nov. 2022.
Abstract: Inserted in the midst of Discourse Analysis (Pêcheux, 1997; Orlandi, 2001), the History
of Linguistic Ideas (AUROUX, 1992) and the History of Education (Gondra & Limeira, 2022),
this work aims to understand how the teaching of reading and writing is defined in relation to the
complex material of the divisions of senses and with dominance in the discourse of the mutual
teaching method in circulation by linguistic-media instruments in the processes of independence
in Brazil at the beginning 19th century. For this, the corpus of analysis consists of excerpts from
texts on Elementary Education published in the periodical Correio Braziliense in 1816, which
disseminate the Lancaster method for readers in Portuguese. A newspaper clipping, published in
1822, on the definition of the people of Brazil is also analyzed, put in correlation with excerpts
from the text of the Political Constitution of the Empire of 1824 that determines the law of October
15, 1827 on the creation of schools of first letters. We seek, therefore, to understand how the
social division of reading, work and the very name “Brazilian” take shape in the midst of tense
power relations and the constitution of an imaginary of language-nation-state unity in the political
emancipation of Brazil in relation to Portugal.
Introdução
Os processos de ensino da leitura e da escrita a meninos, e meninas2, pela língua,
tomaram outras formas ao se denominar e classificar as gentes do Brasil em meio aos
processos de independência do século XIX, quando se buscava construir um efeito de
unidade imaginária de língua-estado-nação (Orlandi, 2007) separada de Portugal e, por
conseguinte, a própria questão da educação nacional nessa língua. Nas circunstâncias
sócio-históricas da Revolução Industrial, na Inglaterra, por Hipólito José da Costa Pereira
Furtado de Mendonça, para circulação em Portugal e no Brasil, foi editado o periódico
C orreio Braziliense em que por dois anos se divulgou o systema/método de ensino de
Joseph Lancaster: sete ensaios intitulados Educação Elementar publicados em 18163.
Estes envolvem tanto o processo de unificação do Brasil a Reino Unido de Portugal,
Brazil e Algarves (1816), sob o reinado de Dom João VI, quanto são constitutivos das
condições de produção de sentidos de separação do Brasil (1822), sob o império de Dom
Pedro I, ao mesmo tempo que demanda uma administração do Estado-nação brasileira
independente.
Até o século XIX, segundo Bastos (1997), os professores de primeiras letras
adotavam o ensino individual, principalmente no predominante espaço rural do país. Este
“consiste em fazer ler, escrever, calcular, cada aluno separadamente, um após o outro, de
maneira que quando um recita a lição, os demais trabalham em silêncio e sozinhos”
(BASTOS, 1997, p. 116). O ensino individual, com alunos trabalhando em separado ou
em silêncio e sozinhos, contrasta com a proposta de ensino mútuo, dos alunos (meninos,
principalmente) alocados em longas classes no método de Lancaster e implementado
principalmente em áreas urbanas. Apesar de chegar a ser considerado como um sistema
que não vigorou no Brasil, as referências ao método de ensino mútuo foram divulgadas
2Destacamos a inclusão das meninas no ensino mútuo, ainda que representando um número bem menor do
que de meninos e com instruções mais voltadas às tarefas domésticas.
3 C O R R E IO B R A Z I L I E N S E . Disponível em:
http://obidigital.bn.br/acervo digital/div periodicos/correio braziliense/correio braziliense.htm. Acesso
em 19 jul. 2022.
em países sul-americanos no início do século XIX, incluindo o Brasil. Tal método foi
legitimado após a Constituição do Império de 1824, na lei nacional de 15 de outubro 1827
e a seguir em leis de certas províncias para a criação das escolas das primeiras letras.
As condições materiais de vida das gentes trabalhadoras do Brasil incluíam as
crianças com idade considerada para o trabalho (7 anos, advindas ou não da situação de
expostas/enjeitas) que deveriam ter um espaço de instrução disciplinar, de uma instrução
que serviria tanto para as primeiras letras, escrita, quanto para a subordinação e
obediência aos “brazilienses” ou a seguir ao Imperador, soberano dos “cidadãos
brasileiros” . Essas e outras formas de denominar as gentes do Brasil se inscrevem pelo
funcionamento de um jogo de forças materializadas na/pela língua, todavia esta é “capaz
de falha, [e] o ‘impossível’ acontece, isto é, sufixos não previstos para gentílicos, como é
o caso de -eiro, fazem furo e se instalam formando gentílico” (FERRARI; MEDEIROS,
2012, p. 86). Temos, assim, neste estudo as formas de denominação dos brasileiros
produzindo diferentes efeitos de sentido na história do Brasil e no ensino de leitura e da
escrita, na/pela língua, práticas que significam a cidadania. Segundo Orlandi (2001, p. 8),
“a forma política dessa cidadania é a Independência”, a qual inicialmente é forjada por
instrumentos linguístico-midiáticos que fazem circular determinados sentidos para que
sejam não somente legitimados, mas também (re)conhecidos.
Para o gesto de leitura empreendido neste estudo, o corpus de análise é constituído
por cinco recortes sobre o ensino da leitura e da escrita presentes em ensaios (textos) de
divulgação do sistema de ensino mútuo, intitulados Educação Elementar e publicados no
C orreio Braziliense de 1816. Também é analisado um recorte do mesmo periódico,
publicado em 1822, sobre a definição das gentes do Brasil, colocado em relação com
recorte do texto da Constituição Política do Império de 1824 que determina a lei de 15 de
outubro de 1827 sobre a criação de escolas de primeiras letras.
A partir da perspectiva teórico-metodológica da Análise de Discurso, produzimos
uma análise discursiva desses recortes correlacionados e remetidos às suas condições de
produção de sentidos. De acordo com Orlandi (1984), os recortes são fragmentos de
unidade e situação, de modo que um significa em relação ao outro, ou seja, um texto em
análise é significado não como uma unidade fechada em si mesma, mas em relação a
outros recortes, a outros textos correlacionados.
Este procedimento de análise produzido no entremeio de diferentes áreas das
ciências da linguagem e das ciências da educação está sustentado teoricamente em
Pêcheux (2006, p. 44) ao propor “as relações entre o que é dito aqui (em tal lugar), e o
dito assim e não de outro jeito, com o que é dito em outro lugar e de outro modo, a fim
de se colocar em posição de ‘entender’ a presença de não ditos no interior do que é dito” .
Desse modo, o gesto de leitura sobre formas de denominação dos leitores e dos
trabalhadores, não leitores, do Brasil é um ponto fundamental para nossa presente
pesquisa que, de maneira mais ampla, busca compreender como se dá a divisão social do
trabalho do ensino da leitura e da escrita, bem como da própria formação e denominação
da língua nacional, das gentes do Brasil, em seus processos de independência no início
do século XIX.
8 N a gram atização, essa id eia de revolução, segundo A uroux (1 9 9 2 ), não segu e o m esm o m od elo das
revolu ções cien tíficas proposto por Thom as K uhn em relação às ciên cia s da natureza ou exatas, no qual há
u m rom pim ento co m u m estado de “ciên cia norm al”, passando a constituir outro estado de “ciên cia
norm al”. A proposta de A uroux (1 9 9 2 ) sobre a gram atização assenta-se na id eia de revolução a partir de
T ocq u eville, na qual a revolução representa u m m ovim ento que afeta a v id a so cia l a lon go term o, sem o
apagam ento da co-p resen ça de con h ecim en to, ou seja, sem u m efeito de “tábua rasa” do passado.
9 E ni Orlandi (2 0 0 5 ), em seu texto L íngu a Brasileira, retom a p esq uisas do program a H istória das Ideias
L inguísticas no B rasil e analisa a com p osição de sentidos inscritos na m em ória da língu a do Brasil.
10 H á um a có p ia púb lica digitalizada na B ib lio te ca N acion al de Portugal. D isp o n ív e l em: https://purl.pt/196.
A ce sso em: 16 ju l. 20 2 3 .
foi pelo próprio sistema ensinado por este manual que os conjurados se significaram nos
fins do século XVIII. Já no século XIX, com a vinda da corte para o Brasil e os processos
de independência, tem-se os debates sobre a educação e a instrução na Assembléia
Constituinte de 1823, a Constituição de 1824 e a lei de 15 de outubro de 1827 que
determinou a criação de escolas de primeiras letras para meninos e meninas em cidades e
vilas.
11 Educação elem entar ano 1816: n. 1 v. 16, p. 346; n. 2 v . 16, p. 460; n. 3, v . 16, p. 591; n. 4 v . 17, p. 58;
n. 5 v. 17, p. 205; n. 6, v . 17, p. 317; n. 7 v . 17, p. 468.
Apesar de o primeiro ensaio não ter dia e mês de publicação, ele é seguido pela
notícia de uma sessão de 8 de abril de 1816, da Câmara dos Deputados da França, e está
Passamos, a seguir, à análise dos recortes 2.113 e 2.2, em que são apresentadas as
vantagens do novo sistema para a “toda a sociedade” na Inglaterra, o que nos leva a
antecipar outra pergunta: quem eram os membros da sociedade?
13 A num eração d os recortes parte de u m a sequ ên cia ló gico-m atem ática 1, 2, 3 4, 5 e 6 e constitui um a
lógica-m aterial quando a m aterialidade do texto, em análise, tem sua im a g em dividida o que lev a a
apresentação de u m recorte co m duas partes. L ogo, a num eração é esp ecifica d a em partes, por exem p lo,
2.1, 2.2 ou 4 .1 , .4.2.
centos ou mil discipulos” (p. 349). Essas “vantagens” também são consideradas no
segundo texto, de 1816, sobre a origem do novo sistema na Inglaterra, que começa com
breve menção à irrelevância de se atribuir a autoria ao “Dr. Bell” 14 ou a “Jozé Lancaster”,
porém enfatiza o segundo por sua ampla disseminação na Inglaterra, Canadá, Estados
Unidos, Escócia, Irlanda, França e em Sierra Leona na África. No ensaio é ainda
destacada a exposição histórica como importante para se tomar conhecimento do que foi
feito pelos ingleses e assim se estabelecer o sistema em Portugal.
No terceiro texto, a seguir, são apresentados os “Princípios em que se funda este
Systema” já introduzindo a denominação “novo methodo de educaçaõ”, sustentado em
três grandes vantagens, conforme podemos ler no recorte 3.
MISCELLANEA.
tBUCAÇAÜ ELEHÉÍTTAR,
N'. 3.
Principio* cm que sefunda este Systema.
15 Conferir frontispício da gramática de João de Barros, de 1539, para o ensino da leitura aos meninos (nota
4). Também a obra “Le Maitre d'école", de 1662, de Adriaen Van Ostade. Disponível em:
https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010062479.
16 Fonte: SANTANA, C. Educação pública se iniciou durante processos de independência na América do
Sul. Disponível em:
https://iornal.usp.br/universidade/educacao-publica-iniciou-durante-processos-de-independencia-na-
america-do-sul/. Acesso em: 20 set. 2023.
. H ü ís c e líâ n r á . 6%
itluaTmóiiíb eií bçtiAvcin j' assim as clsawsde escrever sç
afháffl dividi dai da mesma, furmn que as ciasses da let*
classe nas de quatro letras; a quinta classe na de muitas letras; e a partir da sexta classe
seria possível ler um livro, preferencialmente a Bíblia. Neste ensaio também é observado
que, para as meninas, é preferível o ensino da costura.
Já os dois últimos ensaios são voltados para a disciplina nas escolas, sendo o texto
6 centrado nos prêmios e o texto 7 nos castigos, considerados essenciais para a
manutenção da subordinação e da obediência daquelas classes trabalhadoras que
passariam a ser instruídas na língua portuguesa. Em meio ao processo de deixar de ser
colônia de Portugal e passar a fazer parte de um reino, o Brasil enquanto estado tem um
nome, mas a nação ainda é dominada pela portuguesa e classificada tendo por base as
suas condições de vida nas relações sociais.
No C orreio Braziliense os nomes dos países colonizadores, Portugal e Inglaterra,
colocam em evidência as relações de força (de poder), de sentidos, que se fazem
representar ao mesmo tempo em que silenciam o nome do Brasil, fazendo-o significar
pela ausência. Nesse sentido, cabe salientar o próprio título “Correio Braziliense”, visto
que, segundo Lustosa (2003, p. 14), “brazilienses eram os portugueses nascidos ou
estabelecidos no Brasil e que se sentiam vinculados ao país como a sua verdadeira pátria” .
Estes seriam os leitores do jornal e eram denominados de forma diferente dos
“brasilianos”, ou seja, os indígenas17.
Nessas condições de produção de sentidos, “brasileiros” eram chamados os
comerciantes que negociavam com o Brasil (Lustosa, 2003), o que nos leva a estabelecer
uma relação com a denominação “classes trabalhadoras” presente no jornal, considerando
que o ano de 1822, da publicação das duas últimas edições de C orreio Braziliense, é
também considerado o ano em que se comemora oficialmente a Independência
(separação) do Brasil.
No penúltimo volume da publicação em 1822, intitulado “Reflexões deste mês.
Reyno Unido de Portugal Brazil e Algarves. Uniaõ de Portugal com o Brazil”, é colocado
que as posições contrárias à continuação da união provinham de algumas pessoas
inconsideradas no Brasil, que não seriam os Brazilienses a quem o periódico se dirigia,
mas sim que há entre os Portugueses e os Brasileiros alguns que adotam medidas
favoráveis à separação, enquanto o editor esperava que alguns portugueses europeus
fossem desfavoráveis a essa cisão. Dito de outro modo, Braziliense está para o Brasil na
17 Sobre o s p ro cesso s de ressign ificação de b rasilien ses e brasilianos no sécu lo X X , conferir Ferrari e
M edeiros (2 0 1 2 ).
No jornal, os sufixos -ense e -ano são os que significam aqueles que são naturais
do Brasil: os Brazilienses e os Brazilianos (indígenas), assim como os Pernambucanos,
os Bahienses etc. Nesse sentido, as denominações funcionam como uma forma de definir
uma nação em meio aos processos de independência, de modo que possibilita a leitura de
uma “denúncia” do editor ao considerar que o Brasil está na condição de propriedade dos
Brasileiros, ou seja, dos “estrangeiros e seus descendentes ali nascidos ou estabelecidos” .
Há uma problematização de base em certa tradição gramatical para sustentar que
a “Brazileiro” são atribuídos sentidos de “Portuguez Europeo ou o estrangeiro, que la vai
negociar ou estabelecer-se”, ressaltando-se, pela língua portuguesa, o sufixo “-eiro”
enquanto determinado por “occupação” . Poderia esta ocupação ser daquele que “negocia
em brazia ou generos do Brasil”? Ou seria daquelas ocupações das classes trabalhadoras
que deveriam ser subordinadas às classes superiores no Brasil?
A denominação “Brazileiro” é significada por oposição a Braziliense, sendo este
um cidadão nascido no Brasil, quando o outro está em movimento, disperso, vai negociar
ou vai se estabelecer no país. É interessante a designação “Europeu” em “Portuguez
Europeo”, pois abre para a questão: e o príncipe regente Dom Pedro I do Brasil, de abril
Considerações Finais
Os processos de independência do Brasil, nas primeiras décadas do século XIX,
são determinados pelo complexo material das diferentes condições da vida das gentes do
Brasil e suas históricas relações desiguais, de força, que se fazem representar enquanto
relações de sentidos, bem como por silenciamentos quando há tentativas de se interditar
o nome de língua brasileira, base do ensino da leitura e da escrita da nação. Neste estudo,
produzimos gestos de leitura sobre a maneira como o systema/método de Lancaster é
divulgado por um instrumento linguístico-midiático denominado “Correio Braziliense”,
em que são divulgadas as possibilidades de se “generalizar uma boa educação elementar”
que serviria especialmente para disciplinar, desde a infância, a classe trabalhadora (os
brasileiros), meninos e meninas, para se subordinarem e obedecerem àqueles membros
da “sociedade” (os brasilienzes).
Além do pouco investimento de tempo e de dinheiro no systema de ensino mútuo,
são salientadas as suas vantagens em alcançar a subordinação e obediência, considerando
seu método de instrução de/em classes, que introduzem ao mesmo tempo o aprendizado
das letras atrelada a uma subordinação. Com a legitimação do método de instrução pela
lei de 1827, destacamos dois fatos: a denominação língua nacional e o objeto da leitura
ser preferencialmente a Constituição do Império e a História do Brasil, o que produz um
efeito de unidade pela concentração do próprio Imperador (português europeu/brasileiro)
enquanto simulação de poder soberano ao mesmo tempo que se produz um efeito de tábua
rasa do passado da nação brasileira, do cidadão brasileiro em formação e sua história.
Referências
ASSUNÇÃO, Carlos. As primeiras gramáticas escolares vernáculas oficiais de Espanha
e Portugal. In: DIOS, M. A. de. (Org.). Aula Ibérica. Salamanca, Espanha: Imprenta
Kadmo, 2007.
AUROUX, Sylvain. Filosofia da linguagem. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 1998.
BASTOS, Maria Helena Câmara. A instrução pública e o ensino mútuo no Brasil: uma
história pouco conhecida: 1808-1827. História da educação. Pelotas, RS. Vol. 1, n. 1
(abr. 1997), p. 115-133.
Herbertt Neves12
Universidade Federal de Campina Grande
Universidade Federal de Pernambuco
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar como o estudo do léxico foi descrito na
Grammatica expositiva: curso superior (1907), de Eduardo Carlos Pereira, a partir de fenômenos
lexicais referentes ao som, à formação, ao sentido e à organização das palavras. Para isso, tecemos
comentários sobre a gramatização (AUROUX, 2014), mais especificamente sobre a gramatização
de língua portuguesa no Brasil, bem como sobre o estudo do léxico (ANTUNES, 2012;
VILLALVA; SILVESTRE, 2014) em gramáticas. Nesse intuito, analisamos como os fenômenos
lexicais estiveram presentes na Grammatica expositiva, verificando os impactos que a atmosfera
intelectual da época teve na descrição do conhecimento lexical, expondo como tais fenômenos
foram descritos. Como resultados, podemos inferir que a gramática em questão seguiu o padrão
da gramática advinda do século XIX, sem maiores inovações para o momento de sua primeira
edição, embora tenha sido um compêndio utilizado em larga escala por colégios à época e bastante
conhecido até os dias atuais.
Palavras-chave: Gramatização; gramaticografia brasileira; descrição lexical.
Abstract: This article aims to analyze how the study of the lexicon was described in Grammatica
expositiva: curso superior (1907), by Eduardo Carlos Pereira, based on lexical phenomena related
to the sound, formation, meaning and organization of words. For this, we make comments on
grammatization (AUROUX, 2014), more specifically on the grammatization of the Portuguese
language in Brazil, as well as on the study of the lexicon (ANTUNES, 2012; VILLALVA;
SILVESTRE, 2014) in grammars. To this end, we analyze how lexical phenomena were present
in Grammatica expositiva, verifying the impacts that the intellectual atmosphere of the time had
on the description of lexical knowledge, and exposing how such phenomena were described. As
a result, we can infer that the grammar in question followed the pattern of grammar from the 19th
century, without major innovations for the time of its first edition, although it was a compendium
used on a large scale by colleges at the time and well known until the present day current.
Key-words: Grammatization; brazilian grammar; lexical description.
Introdução
A elaboração de gramáticas ao longo da história, segundo Auroux (2014), criou
uma tecnologia intelectual cuja força e importância transcendem o próprio campo de
estudos da linguagem. Conforme o autor, a gramatização pode ser entendida como um
processo de transferência cultural entre povos que consiste na descrição e
instrumentalização de uma língua com base na gramática e no dicionário, duas
tecnologias que sustentam o saber metalinguístico. Mais do que um compêndio que
instrumentaliza uma língua, a gramática se insere no cenário linguístico de uma nação
contando a história de seus falantes.
Nesse contexto, a produção dos instrumentos linguísticos, em uma dada
conjuntura social, histórica e política, conduz, como mostra, por exemplo, a
Historiografia da Linguística (HL), nos termos de Swiggers (2012), à gramatização,
entendida por Auroux (2014) como um modo de se conceber as práticas linguísticas e a
história de um saber sobre a língua. Ademais, segundo Aquino (2016), a gramatização é
um processo de instrumentalização das línguas que altera os espaços de comunicação,
permitindo uma maior estabilidade linguística. Isso ocorre, ainda segundo o autor, porque
seus produtos - a gramática, o dicionário e outras publicações sobre a língua - “ampliam
e alteram a capacidade linguística dos falantes, construindo normas e referências, quer
dizer, uma imagem de língua, de unidade linguística” (AQUINO, 2016, p. 39), o que
apresenta implicações para a descrição do léxico de uma dada língua.
Em termos de descrição linguística, as gramáticas, no geral, pretendem descrever
a língua em sua completude, e isso envolve múltiplos aspectos - gramaticais e lexicais,
por exemplo - além do momento em que ela foi publicada, e por qual teoria o autor
escolhe seguir. Como a descrição linguística presente nas gramáticas envolve aspectos
gramaticais e lexicais, é importante, de início, destacar a diferença entre léxico e
gramática.
Sobre essa distinção, Perini (2016) afirma que, enquanto o significado lexical
evoca esquemas mentais específicos, permitidos, de acordo com Neves (2020), pela
interação verbal, o significado gramatical é possibilitado pelas construções e associações
que se desenvolvem no interior do texto, oportunizando diferentes possibilidades de
1. G ram atização e gram áticas como instrum ento de descrição linguística na língua
portuguesa
O propósito dos gramáticos nesse momento inicial era de dar à “nova língua” um
status de privilégio. A tentativa de criar uma identidade lusitana agregada a uma
gramática consistente era também para levar a língua supostamente de prestígio aos novos
territórios conquistados. No entanto, como afirma Leite (2007), havia, aliada a esse
desejo, a preocupação de uma constituição de uma norma, embora a diversidade regional
não fosse tão acentuada como a de outras línguas, como o espanhol e o italiano.
Com isso, compreendemos que o processo de gramatização legitima uma língua
a partir do momento em que o instrumento linguístico em questão - as gramáticas -
repercute no processo de constituição das nações. Não obstante, ocorre uma profunda
transformação das relações sociais (nascimento do capital mercantil, urbanização,
mobilidade social, extensão das relações sociais, entre outros) inerentes ao processo de
formação das nações europeias (AUROUX, 2014), construindo, inclusive, tensões a partir
do momento em que são geradas disputas entre elas.
Para Cavaliere (2012), o percurso historiográfico da gramaticografia de língua
portuguesa no Brasil inicia com a publicação do Epítome de gramática portuguesa
(1806), do carioca Antônio de Morais Silva (1755-1824). Antes disso, a produção
linguística atestada em solo brasileiro era escassa, e, ao longo dos três primeiros séculos
da colonização, podemos citar apenas alguns poucos textos linguísticos escritos em terra
brasileira.
O período conhecido como científico, no século XIX, inicia-se com uma geração
de professores que passaram a trabalhar teses histórico-comparativistas. Esse período
conta com uma fase inicial de gramáticos que escreveram seus textos inspirados na escola
comparativista alemã e nos volumes de língua vernácula francesa e inglesa. Cavaliere
(2012) aponta como um dos nomes mais destacados do período Eduardo Carlos Pereira
(1855-1923), autor da gramática analisada neste artigo.
Segundo Orlandi (2000), os estudos empreendidos sobre a linguagem no Brasil
passaram a caracterizar-se como uma questão brasileira apenas a partir do século XIX,
quando o português do Brasil passou a ser considerado, diante das variações existentes
do português europeu. Foi somente neste momento que começaram a ser produzidas as
gramáticas brasileiras da língua portuguesa, iniciando o que se chama de gramatização
brasileira do português. Entre o final do século XIX e o início do século XX, momento
em que algumas instituições escolares já estavam consolidadas no país, surgiram também
as primeiras gramáticas de professores de colégios situados no Rio de Janeiro e em São
Paulo.
A partir dessa separação proposta pelos autores, compreendemos que o léxico tem
valor dúbio: ao mesmo tempo em que está presente em toda a gramática, se distingue das
partes que a compõem. Além disso, a descrição do léxico empreendida por gramáticas
deve poder refletir propriedades de cada manifestação linguística particular, embora
nenhuma manifestação particular possa determinar propriedades gerais dessa
representação do léxico.
Podemos delimitar um pouco mais a definição de léxico, indo além da percepção
de uma lista de palavras à disposição dos falantes e um repertório de unidades. O léxico
é, conforme observa Antunes (2007, p. 42), “um depositário dos recortes com que cada
comunidade vê o mundo, as coisas que a cercam, o sentido de tudo”, transpassado pela
história de uma língua, expressando a função da língua como elemento que confere aos
seus falantes uma identidade.
Na interação verbal, mais precisamente nos textos que elaboramos, o léxico
admite diferentes funções. É como unidades de sentido que as palavras constituem as
peças com que se vai tecendo a rede de significados do texto, e são elas que vão
materializando, mediando as intenções do falante, funcionando como elos de subpartes
do texto (ANTUNES, 2007). Logo, a associação entre léxico e gramática permite a
atividade significativa de nossas atuações verbais, uma vez que utilizamos o léxico de
uma língua em textos, combinações, cadeias e sequências, a partir de regras reveladas
pela gramática.
Pelo fato de a língua poder ser estudada sob diferentes perspectivas (descritiva,
social, cognitiva, etc.), geralmente, o estudo descritivo da linguagem, ou seja, o estudo da
língua a partir da descrição linguística, é dividido em vários níveis, como o nível fonético-
fonológico, o nível morfológico e o nível sintático, que constituem, estes últimos, a
gramática de uma língua. O estudo dos significados das palavras e das frases (ou dos
enunciados) é objeto da semântica e da pragmática, dependendo do foco dado no estudo
do significado puramente linguístico ou da língua inserida em seu uso concreto
(CANÇADO, 2012). Todos esses níveis ficam relacionados, em geral, ao sistema
gramatical, sem que se dê destaque às suas relações com o sistema lexical.
Desse modo, é importante compreender como o estudo do léxico está presente nas
gramáticas, enquanto instrumento linguístico, e como tem sido feita a sua descrição,
associando-o aos níveis de análise já presentes na descrição gramatical. Defendemos,
portanto, o léxico como um macronível de análise linguística, ao lado do macronível
gramatical.
Ginásio Oficial da cidade de São Paulo nos levou ao presente trabalho” (PEREIRA,
Prólogo da 1a edição, 1907, p. I).
Eduardo Carlos Pereira (1855-1923) nasceu em Caldas, Minas Gerais, e por lá
vivenciou a sua infância. Em São Paulo, cursou o Colégio Ipiranga, de Araraquara,
seguindo os estudos superiores na Academia de Direito de São Paulo. Durante sua carreira
no magistério, lecionou Latim e Português no Colégio Culto à Ciência, em Campinas, na
Escola Americana (Mackenzie) e no Ginásio Oficial de São Paulo, ambos localizados na
capital paulista (MOLINA, 2004; FACCINA; CASAGRANDE, 2006). Eduardo, que
também foi ministro evangélico, presbiteriano e um dos mais importantes líderes do
movimento protestante brasileiro do final do século XIX, fez parte de uma geração de
autores de livros escolares que também exerciam a docência.
No final do século XIX, momento em que começa a surgir a concepção de
gramática do século XX, havia uma confluência de dois modelos em vigência, em que o
modelo mais antigo, denominado racionalista - ou de gramática racionalista - passava a
ser substituído, paulatinamente, por um modelo cientificista. A chegada dos estudos
comparativistas ao Brasil, sobretudo com a chegada da Linguística Naturalista, a
revolução científica da Química, da Biologia e da História Natural e da concepção de
língua como um ser, foi penetrando a gramática brasileira de língua portuguesa a ponto
de transformar não só a figura da gramática como a figura do próprio gramático.
Um traço característico da gramática brasileira no início do século XX é um
texto descritivo-prescritivo destinado tanto a um leitor consulente quanto a um leitor
pesquisador (CAVALIERE, 2012). Essa é uma perspectiva necessária para lermos
adequadamente um texto produzido nesse momento. Para isso, precisamos de levar em
consideração que o propósito da gramática era o de prescrever, mas também era
descrever: com o propósito de atender ao leitor consulente, a gramática teria que ter
necessariamente caráter prescritivo, uma vez que, no imaginário popular leigo, uma
gramática se presta a estabelecer normas prescritivas; já assumindo o propósito de
descrever, a gramática buscava atender aos anseios do leitor pesquisador.
O professor e gramático Eduardo Carlos Pereira, com a sua Gramática expositiva
(1907), desponta como um importante nome do século XX que conseguiu congregar tanto
o antigo modelo racionalista como o novo modelo cientificista, amplamente influenciado
pelas contribuições advindas de Julio Ribeiro e sua Grammaticaportugueza (1881). Logo
nas primeiras páginas, Pereira (1907) expressa o fato de os dois modelos coexistirem nas
gramáticas quando afirma buscar a resultante entre eles: “o da corrente moderna, que dá
p. I).
Esse é o início da gramaticografia brasileira no século XX, em que ainda se
buscava um rumo mais adequado, tendo em vista a força do novo modelo, baseado na
pesquisa histórica e na investigação do fato linguístico com uma metodologia própria, e
a presença do antigo modelo, que se pautava no estudo da língua como arquitetura da
razão humana.
A natureza do corpus utilizado por Pereira (1907) é restrita à língua literária
escrita, como era comum à época. Havia uma exigência de que os fatos linguísticos
descritos tivessem amparo na literatura de língua vernácula, mais especificamente
retirados de obras literárias do século XVI (Gil Vicente e Camões, por exemplo) até o
século XIX (Alexandre Herculano, Antônio Feliciano de Castilho são outros exemplos).
Como já era de se esperar, poucos autores brasileiros figuravam na gramática de Pereira
(1907), sendo os poucos nomes Gonçalves Dias, Odorico Mendes e João Francisco
Lisboa.
No entanto, o próprio autor sinaliza, no Prólogo de sua gramática, uma
preocupação com a seleção de um corpus mais atualizado: “Dada a evolução da língua,
não se póde provar, em boa lógica, a vernaculidade actual de uma expressão qualquer
com a autoridade de um clássico antigo” (PEREIRA, 1907, p. VIII). Ademais, por
considerar a língua literária como a expressão mais correta dos fatos linguísticos, toma-
se por autorizada a construção que tenha conquistado presença nas páginas das obras
clássicas.
Ademais, por considerarmos a gramática de Pereira (1907) como a que inicia o século
XX, é compreensível que ela tenha como norte as gramáticas do século anterior.
Por considerar a palavra como o objeto de estudo de uma gramática, o autor a
define como “a combinação de sons oraes indicando uma cousa ‘qualquer [sic], ou
exprimindo uma ideia” (PEREIRA, 1907, p. 1), e faz a distinção entre forma material e
ideia, indicando que a form a é a combinação de sons, ou das letras que os representam,
enquanto a ideia é a significação ou o sentido da palavra. Com isso, podemos observar
que o autor concebe a palavra pelos critérios morfológico e semântico, se pensarmos na
tríade tradicional de critérios classificatórios, deixando o sintático para trás.
Pereira (1907) segue sua explanação sobre palavra ao dizer que a chamamos de
vocábulo ou dicção quando nos referimos à sua forma e termo quando nos referimos à
sua ideia. Mais adiante, compreende como vocabulário ou léxico de uma língua a lista de
seus vocábulos ou dicções, sendo esta lista denominada dicionário ou lexicon, “quando
cada palavra ou dicção, disposta em ordem alfabética, vem acompanhada da explicação
de seu sentido” (PEREIRA, 1907, p. 2). A partir dessa divisão, observamos a ideia antiga
de léxico exclusivamente como uma lista de palavras de uma língua, que hoje já
compreendemos de outra maneira.
A primeira parte da gramática, denominada Lexeologia, é subdivida em
Phonologia e Morphologia, sendo a primeira compreendida como o “estudo dos
elementos materiaes da palavra, isto é, dos sons elementares” (PEREIRA, 1907, p. 4). A
Phonologia, por sua vez, é subdividida por Pereira (1907) em Phonetica, Prosodia e
Orthografia. Já a Morphologia, segundo o autor, “é a parte da Lexeologia que estuda a
palavra em seu elemento immaterial, isto é, em sua idéa ou significação” (PEREIRA,
1907, p. 47), e é subdividida em Taxeonomia e Etymologia.
Com a divisão de sua gramática dessa maneira, admitindo a palavra como objeto
principal de estudo e dissecando-a de maneira isolada e combinada, o autor reproduz o
ideário da época de divisão gramatical simples em Lexeologia e Syntaxe, também
reproduzida por Ribeiro (1881), que marcou o início do que foi considerada a gramática
científica. Ademais, tal divisão aponta mais do que uma adequação ao clima de opinião
da época, mas também um cuidado ao simplificar o estudo da língua, visto que muitas
das gramáticas tidas como referência eram também utilizadas em escolas, cujos usuários
não podiam contar com um texto complexo e denso.
Um quadro-síntese das partes da Lexeologia é apresentado pelo autor e
reproduzido a seguir:
gramática, uma vez que o que nos interessa unicamente é a compreensão de como o
estudo específico dos conceitos relativos ao léxico foi contemplado nela.
1.° O conhecimento exacto dos valores phoneticos das vogais e consoantes que entram
na formação do vocabulo; 2.° A enunciação ou prolação discriminada dos fonemas ou
grupo de fonemas, chamado syllabas, de que se compõe o vocabulo; 3.° O
conhecimento da syllaba predominante, chamada tonica (PEREIRA, 1907, p. 21-22).
A partir dessa lista de condições para que o falante de língua portuguesa no Brasil
saiba pronunciar “corretamente” os vocábulos que a compõem, vemos a preocupação do
autor em fazer parte de uma comunidade de professores e autores de gramáticas que
visavam ao “escrever e falar bem” como objetivo principal para o ensino de língua, além
da intenção de melhorar a conduta desse falante brasileiro em detrimento ao falante do
português europeu. Não à toa, eram muito comuns à época comparações de palavras
pronunciadas “incorretamente” frente ao português de Portugal, denominando-as
“brasileirismos” .
Pereira (1907), ainda, tece definições e exemplos acerca da syllaba, conceituando-
a como “um phonema ou grupo de fonemas pronunciados em uma só emissão de voz na
enunciação de vocabulo” (PEREIRA, 1907, p. 22). Após a conceituação, há uma nota do
autor que diz:
A quantidade das syllabas não tem em nossa lingua, bem como nas outras linguas
derivadas do latim, chamadas novo-latinas, a importancia que teve no periodo classico
do latim e do grego. Nesse periodo o acento tonico era subordinado à quantidade, a
qual era, na expressão de Guardia, a alma do aecento latino. Nas linguas novo-latinas
dá-se phonomeno inverso: a quantidade subordina-se à tonicidade, a tonica é o centro
de gravidade do vocabulo.
Todavia não desapareceu inteiramente a quantidade proso-dier em portuguer, e o
importante conhecer-so o valor quantitativo das syllabas para tuna boa pronuncin dos
vocabulos. Una das principaes difterenças entre i prosodia lusitana e a brasileira está
na quantidade syllabica.
No portuguez europeu é bem sensivel a quantidado das syllabas breves, que são
brevissima em relação ao portuguez no Brazil, exs.: p'ssoa, pltão, pu'rer, d'''gado,
sbrulo, pra. p'rigo. (PEREIRA, 1907, p. 22)
Notas como essa são bem comuns ao longo da Grammatica de Pereira (1907) e
corroboram para o fato de que ela estava inserida num momento da gramatização
brasileira em que comentários sobre a evolução das línguas eram comuns, herdados da
gramática histórica. Além disso, a razão de o autor comparar a língua portuguesa com o
latim e o grego reside no fato de que tais línguas clássicas ainda eram ensinadas nas
escolas da época.
Em relação ao número de sílabas, o gramático vai considerar a mesma divisão que
hodiernamente conhecemos (monossílabos, dissílabos, trissílabos e polissílabos), sem
nenhuma informação extra. Já na subseção “quantidade”, Pereira (1907) apresenta:
“chama-se quantidade de syllabas o maior ou menor espaço de tempo gasto na prolação
de umas syllabas em relação a outras do vocabulo. Esta proporção é expressa por um
tempo na prolação da syllaba breve, e por dois tempos na prolação da syllaba longa”
(PEREIRA, 1907, p. 23). A partir dessa definição, o autor compreende que as sílabas
podem ser iniciais, medial ou finais, “confome occupa o principio, o meio ou o fim do
vocabulo” (PEREIRA, 1907, p. 23). Sobre tal divisão, acreditamos que essa discussão
empreendida por Pereira (1907) antecede a discussão sobre a tonicidade, preparando o
leitor para a compreensão dessa característica dos vocábulos.
Sobre o que o autor chama de quantidade prosodica, comenta que “a syllaba so
diz longo ou breve, conforme a sua vogal ou voz é longa ou breve. Como não ha syllaba
sem vogal, a quantidade da syllaba é a quantidade de sua vogal” (PEREIRA, 1907, p. 23).
Ele complementa:
São por natureza longas: 1.° As syllabas diphthongaes e triphthongaes, por exigirem
as duas ou tres vozes dobrado tempo para sua prolação: esperoidal, fluidez, quaesquer.
2.° As syllabas contractas, por encerrarem latentemente duas vozes - ás, áquelle. 3.°
As syllabas nasaes, por exigirem as vogaes nasaes maior esforço na prolação que as
puras - tentação, lançar. 4.° A syllaba seguida de duas consoantes, quando uma dellas
lhe pertença, por exigir a consoante prolongação do som vogal - alteza, tortura:
textual. 5.° As syllabas tonicas, por exigir a intensidade predominante da vogal
dobrado tempo na prolação - verdade, tortura, petala, avó (PEREIRA, 1907, p. 23
24).
e curtas, acreditamos que essa ideia posta por Pereira (1907) advenha da influência das
descrições do latim.
Enfim, sobre a tonicidade, o autor a conceitua como “o tom forte da voz na
pronunciação de uma syllaba do vocabulo. Esta syllaba em que a voz se eleva, e adquire
maior força ou intensidade do que a necessaria para a sua simples prolação, denomina-se
syllaba tonica, exs.: justiça, numero, numero” (PEREIRA, 1907, p. 24, grifos do autor).
A partir disso, Pereira (1907) elabora sua teorização sobre o acento tônico ou prosódico
afirmando constituir-se de uma entonação mais forte ou acentuação mais intensa da voz,
tornando saliente a sílaba sobre que recai, classificando as sílabas como tônicas e átonas,
assim como sobre palavras oxítonas ou agudas, paroxítonas ou graves e proparoxítonas,
esdrúxulas ou dactílicos. Tal exposição de fatos sobre a língua é bem próxima do que hoje
concebemos nas gramáticas tradicionais de referência.
Após tal explanação, o autor apresenta uma observação feita por Grivet, outro
grande gramático, como forma de complementar e legitimar sua explanação. Isso também
é algo muito comum em toda a sua gramática, e também considerarmos como um traço
da gramática histórica, que se remete a estudos anteriores da linguagem. Ademais, na
mesma nota em que menciona Grivet, Pereira (1907) elabora que
autor). Para Pereira (1907), há dois tipos de derivação: a derivação própria e a derivação
imprópria.
O autor julga que a derivação própria é desenvolvida por meio de sufixos que,
aglutinados ao tema das palavras primitivas, modificam a significação, determinando-a.
Para Pereira (1907), os sufixos têm significação própria, pois trazem sentido novo à
palavra primitiva. Porém, esse valor significativo, essa vida própria só se revela em
conjunção com o tema; separado do tema, o sufixo não tem vida própria. Após essa
explanação, o autor faz uma nota que determina: “a terminação da palavra primitiva não
se chama suffixo, porém mera desinencia, como. p. ex., a ultima vogal de ferr + o, quere
+ -a” (PEREIRA, 1907, p. 157), adentrando no que hoje conhecemos como desinência e
aludindo à vogal temática, mesmo sem assim denominá-la. Por fim, explica que os sufixos
podem ser nominais ou verbais, formando substantivos, adjetivos e verbos,
respectivamente.
Já sobre a derivação imprópria, o autor é bem breve ao afirmar ser a mudança que
sofre uma palavra no sentido ou na categoria gramatical sem a intervenção de sufixos.
Desse modo, são formados os substantivos, adjetivos, advérbios, preposições, conjunções
e interjeições. Para cada classe de palavras listada, Pereira (1907) dá exemplos ilustrativos
que nem sempre facilitam o entendimento do leitor, como no caso de apresentação dos
substantivos próprios e apelativos (PEREIRA, 1907, p. 168), em que, apenas pela
listagem de palavras, o leitor precisa deduzir os conceitos das subclasses de substantivos.
Para além do processo de derivação, Pereira (1907) classifica a composição como
outro processo de formação de palavras, conceituando-a como “o processo pelo qual se
fórmam palavras novas com a união de dous ou mais elementos, como, p. ex.: re+fazer,
couve+flor, agu+ardente = refazer, couve-flor, aguardente” (PEREIRA, 1907, p. 169).
Após essa explicação breve e clara do fenômeno, o autor traz a ideia de determinante e
determinado, não popularmente conhecida à época:
comum, como ferro, ferreiro, ferragem, entre outros. A menção às palavras cognatas se
deve à influência da Linguística Histórica de que Pereira (1907) se valeu em sua descrição
de língua. Isso porque o trabalho com cognatos era comum nesse ramo da Linguística
devido à busca de parentescos entre as línguas a partir da análise fonológica e,
principalmente, morfológica.
Por fim, dentro do que Pereira (1907) defende como analogia e oposição de
sentido, há as definições de palavras sinônimas e antônimas. Segundo o autor, certas
palavras apresentam entre si significação análoga, e outras sentido oposto. As palavras
sinônimas são diversas na forma e idênticas ou semelhantes na significação, e é
justamente dessa identidade ou semelhança de sentido que Pereira (1907) ainda subdivide
em sinônimos perfeitos, como lábio e beiço, cara e rosto, por exemplo, e sinônimos
imperfeitos, como olhar e ver, bom e misericordioso, por exemplo. Sobre a ideia de
sinônimos perfeitos ou exatos, estamos de acordo com a quase totalidade dos
semanticistas atuais de que essa relação entre palavras não existe (CANÇADO, 2012;
NEVES, 2020), uma ideia que, à época, ainda não era consensual.
Após a exposição de tais fenômenos, o autor põe uma observação em que se
destaca:
Obs. - Quanto à significação, as palavras podem ainda ser tomadas no sentido proprio,
como, p. ex.: pé, cabeça, braço, falando-se das partes do corpo humano; ou no sentido
translato ou figurado, como, p. ex.: pé de vento, cabeça da revolta, braço da revolução.
Todas as vezes que uma palavra é desviada de seu sentido natural, primitivo, proprio,
e é applicada, por analogia, a designar um objeto differente do primitivo, adquire um
sentido chamado figurado ou translato.
Nesse trecho, podemos observar a busca por um falar mais correto e unívoco e a
ideia de sincretismo que rotula o presente momento em que o autor se vê perante sua
língua. É importante notar, não só nesse trecho, mas ao longo da gramática, o quanto essa
é uma preocupação latente de Pereira (1907). Quanto a uma possível inspiração que o
autor teve para tal classificação em analogias e oposição de sentidos, Fávero e Molina
(2009) apontam para Bréal (1992, p. 92) quando este afirma que “é preciso olhar a
analogia como uma condição primordial de toda a linguagem. Se ela foi uma fonte de
clareza e de fecundidade, ou se foi uma causa de uniformidade estéril, é o que somente a
história individual de cada língua pode nos ensinar”, uma clara filiação à corrente
histórico-comparativa, predominante à época de publicação da gramática de Pereira
(1907).
classe à parte, mas incluída na dos adjetivos, Júlio Ribeiro os considera independentes e
os classifica como palavras que se antepõem ao substantivo a fim de particularizarem-lhe
a significação, uma conceituação bem próxima da que hodiernamente concebemos.
Ademais, como já fora exposto no subtópico anterior, o autor ainda apresenta uma
outra proposta de classificação das palavras quanto à analogia de função, distribuindo as
classes já explicitadas por ele em palavras denominativas, que têm por função nomear os
seres (substantivos e pronomes), palavras modificativas, que modificam outras palavras
(adjetivos, verbos e advérbios), e palavras conectivas, que têm por função ligar ou
relacionar outras palavras entre si (preposição, conjunção e verbos de ligação). Essa
proposta de classificação, considerada bastante ousada para a época, apenas aparece ao
fim da seção de Morphologia, e não se detém na explicitação de cada uma das classes.
Da maneira como está posta na gramática, essa é, de fato, apenas mais uma maneira de
agrupar classes já existentes e definidas. No entanto, essa classificação adota o critério
semântico, que mais tarde será predominante na Nomenclatura Gramatical Brasileira
(NGB), mesmo que ainda sob o rótulo da morfologia.
Considerações finais
A Grammatica expositiva de Pereira (1907) foi publicada em um momento da
nossa gramaticografia em que a corrente da gramática científica estava dando os seus
primeiros passos e tinha como “norte” a Grammaticaportugueza, de Júlio Ribeiro (1881),
o que explica tantas semelhanças entre os dois compêndios. Além disso, Eduardo Carlos
Pereira era um grande crítico do momento que o ensino de nossa língua estava vivendo,
atribuindo os fracassos à adoção exclusiva de uma ou de outra corrente teórica ou didática
para esse ensino. Talvez por isso, há, em alguns momentos de sua gramática, alguns
poucos avanços para o que era frequente encontrar em compêndios à época.
Sobre a adoção de uma corrente aos seus estudos, o gramático assegurava que o
melhor seria se os professores ministrassem ao aluno o conhecimento histórico da língua,
e essa marca foi deixada em sua gramática, como podemos ver em alguns exemplos de
notas que trazem o fator histórico para a descrição da língua portuguesa. Contudo, o fato
de essas informações serem apresentadas em notas, e não no corpo do texto, denota ainda
uma hesitação com o que o próprio gramático pretendia ao contemplar com essa ideia.
Retomando o Prólogo da 1a edição, o autor finaliza-o esclarecendo que havia
enriquecido o seu trabalho para atender à sugestão do programa oficial de português “com
dezenas de provérbios, máximas e ditos sentenciosos tanto para aclarar e fixar regras,
quanto para aguçar o intelecto e formar o caráter” (PEREIRA, 1907, p. II). Com isso,
supomos que ele não tinha a intenção de formar um leitor e escritor proficiente em sua
língua, mas atingir os que pretendiam acessar a língua dita culta, afastando qualquer
desvio de língua ou “brasileirismos”, fato que também pudemos constatar em muitas
partes de sua gramática.
Outro fato bastante observado foi a perpetuação dos moldes de gramáticos
anteriores a Pereira (1907) no fazer gramatical. Como já indicado, era comum à época
uma mesma gramática servir ao leitor consulente e ao leitor pesquisador, fato explicado
pelo incipiente mercado editorial do período. Por isso, o gramático pensava em atender
ao grande público e vender suas obras em larga escala, como foi o caso de Pereira e as
suas 114 edições da Grammatica Expositiva. Sendo assim, analisando globalmente,
justifica-se o fato de haver pouca inovação em suas descrições linguísticas, se
compararmos com os gramáticos que o antecederam.
Conseguimos compreender o quanto a atmosfera intelectual do período influencia
o gramático ao traçar a sua linha de descrição linguística. Ademais, o fazer gramatical é
uma atividade totalmente inserida na sociedade em que a gramática é publicada, isto é,
voltado para o público que irá consumi-la. Mesmo filiadas ao paradigma tradicional de
gramatização (VIEIRA, 2018) e seguindo o modelo greco-latino, o clima de opinião dita
algumas particularidades das gramáticas, funcionando a percepção do autor como uma
trena que mede o que fica e o que sai da tradição milenar de gramatização.
Na gramática aqui analisada como modelo para as demais, o conteúdo e a maneira
com que Pereira (1907) conduziu a descrição da língua portuguesa têm traços do
momento histórico que o autor e a população brasileira estavam vivenciando.
Conseguimos enxergar uma preocupação com o “escrever e falar bem” como forma de
sobressair ao português falado na Europa, afinal a gramática de Pereira surgiu no período
pós-República, e muitas transformações estavam acontecendo no país. A sociedade estava
norteada por ideais positivistas e acreditava no progresso que o modelo Republicano
podia oferecer, bem como no poder da Educação em transformar uma sociedade
praticamente iletrada.
Por fim, apresentamos os principais pontos observados mediante a busca por
fenômenos lexicais presentes na gramática de Pereira (1907), interpretando os dados e
expondo-os ao leitor. Podemos inferir, de tal maneira, que a gramática de Pereira (1907)
tinha objetivo pedagógico, advindo das necessidades expressas à época, como seguir
programas oficiais como o do Colégio Pedro II, onde o próprio autor lecionava. Portanto,
Referências
AUROUX, S. A revolução tecnológica dagramatização . Campinas: Editora da Unicamp,
2014.
ANTUNES, I. Território das palavras: estudo do léxico em sala de aula. São Paulo:
Parábola, 2012.
AQUINO, J. E. de. Júlio Ribeiro na história das ideias linguísticas no Brasil. 2016. 1
recurso online (354 p.) Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Estudos da Linguagem, Campinas, SP. Disponível em:
https://hdl.handle.net/20.500.12733/1630588. Acesso em: 8 jun. 2023.
RIBEIRO, Julio. Grammatica Portugueza. São Paulo: Teixeira & Irmão, 1881.
SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
Abstract: This artide’s objective is to discuss the concept of linguistic tools by the discursive
perspective of the History of Linguistics Ideas, considering it specifically in relation to the process
of grammaticalization of Brazilians to Brazilians (ORLANDI, 2009a). Therefore, it starts from a
theoretical reflection to, in the confrontation between theory and analysis, investigate materialities
that deal with national and regional dimensions of Brazil’s language. These materialities are:
about the national dimension, the Gramática Histórica da Língua Portuguesa (GH, 1931 [1921
7]) and the Gramática Secundária da Língua Portuguesa (GS, 1964 [192?]), both of the
authorship of Manuel Said Ali Ida; and about the regional dimension, O Linguajar Carioca (LC,
1953 [1922]), written by Antenor de Veras Nascentes. With this purpose, it resumes the discussion
initiated by Orlandi e Guimarães (2001), among others, about the ambivalence between the unit
and diversity that is constitutive of the Brazilian grammaticalization and about the process of
linguistic colonization/decolonization with the purpose of comprehending, from the analysis of
the materialities already mentioned before, how the linguistic-grammatical science from the
beginning of the XX century formulates the relation between languages and subjects of/in Brazil.
Keywords: Linguistic tools. Brazilian grammaticalization. Said Ali. Antenor Nascentes.
Introdução
Este artigo apresenta resultados parciais de duas pesquisas que, à luz da Análise
do Discurso Materialista em sua relação com a História das Ideias Linguísticas (AD-
HIL)4, vêm sendo desenvolvidas no âmbito do projeto Arquivos de Saberes Linguísticos
(UERJ/FAPERJ)5 e que partem de textualidades pertencentes aos acervos dos Arquivos
Said Ali e Antenor Nascentes6. Dentre outras questões movimentadas por esses acervos,
adotamos como eixo temático norteador desta reflexão o modo como a ciência
linguístico-gramatical do início do século XX formula a relação entre línguas e sujeitos
no/do Brasil para, a partir disso, discutir o conceito de instrumentos linguísticos, tal como
comparece em Auroux, notadamente em textualidades postas em circulação no Brasil e
na França entre 1992 e 20087. Nessa discussão, dada a nossa filiação teórica,
4 Deve-se esclarecer que a reflexão ora apresentada se filia ao dispositivo teórico-analítico da AD e que,
nessa relação, as ideias linguísticas e suas histórias são tomadas como objeto (Cf. COSTA, 2019b). Assim,
mesmo quando consideramos gramáticas como instrumentos linguísticos, o fazemos à luz da perspectiva
discursivo-materialista, realizando os devidos deslocamentos como será demonstrado adiante.
5 Para mais informações, acesse: https://www.saberling.institutodeletras.uerj.br/.
6 Desenvolvem tais pesquisas, sob a orientação da Profa. Dra. Thaís de Araujo da Costa, as graduandas
Bruna Alves Goulart (IC-FAPERJ) e Giulia Nascimento de Melo (EXT-UERJ).
7 Entendemos que esse conceito segue em movimento nos trabalhos de Auroux e de outros pesquisadores
filiados à História das Ideias Linguísticas no Brasil e na França e que, nesse sentido, muitas outras
textualidades poderiam ser mobilizadas nesta reflexão. Contudo, com esse recorte, objetivamos dar um
primeiro passo rumo à investigação da historicidade do conceito em obras fundadoras filiadas ao nome de
Auroux, buscando compreender como os sentidos nelas inscritos afetam os trabalhos desenvolvidos à luz
da perspectiva discursiva da HIL e propondo deslocamentos necessários em função dos princípios
epistemológicos que fundamentam os dois campos, entre os quais, como ensina Nunes (2008), não há uma
relação de complementaridade, mas de ressonância para ambos os lados.
de Said Ali e Nascentes e discutindo, com base em Guimarães (2004), Payer (2006) e
Medeiros e Petri (2013), o modo como se inscrevem/são inscritas na gramatização
brasileira frente à dimensão ou à parte da língua posta como objeto. Por fim, no sexto
momento, adentramos a materialidade das gramáticas, em busca de sentidos que, no
batimento entre teoria e análise, nos permitam compreender a relação nelas estabelecidas
não só entre línguas e sujeitos, mas também entre o que se coloca como nacional e
regional, assim como o modo como essas relações afetam o imaginário de instrumentação
linguística no/do Brasil.
8 Parte da reflexão tecida aqui e na seção seguinte comparece no vídeo-verbete Gramática, da Enciclopédia
Virtual de Análise de Discurso (Encidis/UFF), de autoria de Thaís de Araujo da Costa. O vídeo-verbete
encontra-se disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=7JvfU46lfyQ&t=44s> Acesso em: 18 jul.
2023.
9 A constituição do sujeito em autor implica, a partir da sua inscrição em um dado domínio de saber, uma
tomada de posição frente ao objeto do dizer. De acordo com Orlandi (2007, p.40), “Em toda língua há
regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O que
significa no discurso são essas posições. E elas significam em relação ao contexto sócio-histórico e à
memória (o saber discursivo, o já-dito)”.
10 Essa nomeação remete à proposta do autor de um “empirismo externalista ou (...) externalismo” (id.,
1998a, p. 4 [tradução nossa]); não se configura, pois, como uma crítica, mas como um empreendimento
analítico que se calca na constatação de uma regularidade na obra em questão, a saber: o comparecimento
dos adjetivos externo e externalista, para determinar, respectivamente, os substantivos objeto e empirismo,
e do substantivo externalismo. A análise visa, portanto, compreender os efeitos de sentidos, em relação ao
conceito de instrumentos linguísticos e à rede conceitual em que se inscreve, produzidos a partir desses
comparecimentos.
11 Esse texto foi originalmente publicado em francês em 2006 e traduzido para o português brasileiro em
2021.
12 Em Análise de Discurso, a paráfrase é tomada como procedimento analítico, visto que, como explica
Orlandi (2009b [1983], p. 125), por meio dela, o analista pode observar “o retorno aos mesmos espaços do
dizer”, produzindo “diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado” (id., 2007, p. 36), o que lhe
permite ler no que é dito o que não é dito, mas o constitui significativamente.
13 Diz a autora (COSTA, 2019b, p. 27-28): “o conceito de gramática enquanto instrumento linguístico é
problemático tanto pela própria noção de instrumento como pela de hiperlíngua. No que tange à noção de
instrumentos linguísticos, cabe pontuar que essa vem sendo mobilizada discursivamente por analistas
brasileiros pelo menos desde Língua e cidadania (Orlandi e Guimarães, 1996, p.9), obra na qual se ressalta
na apresentação a importância de considerá-los na sua relação com o “modo como a sociedade constrói
elementos da sua identidade”, ao mesmo tempo em que “se constitui historicamente”. A noção de
hiperlíngua, por seu turno, como explicaram Zoppi-Fontana e Diniz (2008, p.96), “implica uma concepção
de comunicação, sujeito, história e língua bastante diferentes - por vezes, opostas - daquelas da Análise do
Discurso”. A nosso ver, o mesmo pode ser dito sobre a noção de instrumento. E isso porque a concepção
de uma hiperlíngua que se projeta num instrumento linguístico pressupõe o estabelecimento em certos
ambientes de relações de comunicação entre indivíduos baseadas em competências linguísticas. Essa
concepção é conflitante em relação aos pressupostos teóricos da AD, porque, em função da noção de
interpretação, entende-se que há sempre comunicação e não comunicação. O equívoco é sempre possível,
ele faz parte da língua, de modo que as mesmas palavras, sob condições de produção distintas, podem
significar diferentemente. Isso significa que, em nossa perspectiva, uma vez que o equívoco é tomado como
constitutivo, a suposta competência desenvolvida pelo instrumento não garante o estabelecimento de
comunicação, mas produz a ilusão de. Além disso, a noção de indivíduo dado a priori incutida no conceito
de hiperlíngua e no de instrumento, já que se entende que por meio deste aquele pode ter a sua competência
linguística desenvolvida, também é problemática do ponto de vista teórico. Em AD, entende-se que os
sujeitos se constituem/são constituídos nos/pelos processos discursivos, ou seja, a concepção de indivíduo
presente na proposta de Auroux apaga, portanto, o processo histórico a partir do qual o sujeito, por meio do
processo de identificação/subjetivação, se projeta no dizer. Por fim, outro ponto que é controvertido diz
respeito à atuação do instrumento linguístico como ferramenta que possibilita o desenvolvimento da
competência linguística do indivíduo. Tal concepção revela uma visão positivista do processo de ensino-
aprendizagem, uma vez que, com o apagamento das condições históricas do sujeito, da gramática e das
regras que nela comparecem, bem como do próprio processo de ensino-aprendizagem, o qual é visto como
transparente e evidente, pressupõe-se que qualquer um, em qualquer lugar, pode, com uma gramática, ter
acesso ao corpo de regras de uma língua e aprimorar a sua competência como falante, prolongando a sua
fala natural.”
14 Diz Orlandi (2007, p. 43): “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica
dada - ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada - determina o que
pode e deve ser dito”.
à baila a heterogeneidade, de um lado, dos saberes que constituem o que, numa dada
conjuntura, se nomeia como gramática e, de outro, das formas materiais em que tais
saberes (não) podem/devem se inscrever.
Tendo em vista essa heterogeneidade, Costa (2019a [2016]) formulou a distinção
entre a Gramática, com inicial maiúscula e precedida de artigo definido, também por
vezes adjetivada como normativa ou tradicional, enquanto dom ínio de saber, e
gramática, com letra minúscula, enquanto form a m aterial15.
Enquanto domínio de saber, na esteira de Pêcheux (2009 [1975]), a Gramática
é tomada pela autora como uma FD constitutivamente heterogênea na qual se inscrevem
diferentes formas de saberes linguísticos (a fonética, a fonologia, a morfologia, a sintaxe
etc.) e que se distingue e se relaciona, por vezes de forma tensa, com outros domínios,
como a Linguística, a Filologia, entre outros, igualmente heterogêneos. Considerando
especificamente o que designa como discurso gramatical brasileiro, Costa (2019a [2016])
destaca ainda que dizer que a Gramática se constitui enquanto um domínio de saber
significa tomá-la como um conjunto de dizeres que - determinados sócio, histórica e
ideologicamente - se impõe como a única memória possível para esse discurso e, por
conseguinte, considerar a sua filiação a uma prática discursiva desenvolvida por sujeitos
inscritos em condições determinadas.
Logo, dizer que a Gramática, enquanto domínio de saber, não é homogênea
implica, dessa perspectiva, considerar que os sentidos que a ela se filiam são
historicamente construídos e se significam em relação a outros sentidos com os quais
disputam espaço na forma material da gramática. Assim sendo, cabe ao analista-
historiador (NUNES, 2008) buscar compreender o processo de naturalização de
determinados sentidos em detrimento de outros - processo esse que, por ser histórico, não
é evidente, não se dispõe linearmente na linha do tempo de modo a se estabelecer relações
óbvias ou transparentes de causa e efeito. E isso porque, desse lugar, concebemos, na
esteira de Nunes (2002, p. 107), que “as determinações causais estão relacionadas com as
condições de produção do discurso” ou, dito noutros termos, que as relações de
15 Orlandi, considerando a relação entre língua e história, propõe, deslocando o conceito hjelmsleviano,
que aquela seja tomada enquanto forma material, isto é, como “forma encarnada na história para produzir
sentidos”(ORLANDI, 2007, p. 19). Em sua reflexão, a expressão “forma material” é retomada ainda como
“materialidade linguística e histórica” (ORLANDI, 2007, p. 59), “materialidade discursiva” (ibid., p. 90) e
“materialidade simbólica e significativa” (ibid., p. 18). Lagazzi (2011, p. 401 [itálicos da autora]),
observando a necessidade de “concernir o trabalho com as diferentes materialidades [e não apenas a
linguística]”, propõe a formulação “materialidades significantes”, lembrando que estas se constituem como
“materialidades prenhes de serem significadas”, isto é, o “modo significante pelo qual o sentido se formula”
(ibid., loc. cit.). É, pois, nesse sentido, que tais expressões comparecem neste trabalho.
O conjunto das frases que permite construir uma gramática é uma língua
gramatical. Se nomeamos língua empírica o conjunto das frases efetivamente
pronunciadas por um grupo de seres humanos e seus descendentes, é possível
mostrar que língua gramatical e língua empírica são incomensuráveis
(AUROUX, 1998b, p. 18).
16 Não é nosso objetivo aqui percorrer todos os meandros dessa história ou de qualquer outra, porque, para
a perspectiva discursiva, a incompletude é constitutiva e, mesmo para a HIL, como pontua Auroux (2021)
toda (representação da) história é necessariamente parcial. É parcial porque algo sempre fica de fora, mas
também porque demanda tomada de posição, inscrição em uma memória. “O sentido pode sempre ser
outro”, nos ensina Orlandi (2007, p. 83). E nesta história dos conceitos da história das ideias linguísticas
não poderia ser diferente.
linguística, dentre os quais se destacam, entre outros, os objetos técnicos do campo dos
estudos da linguagem, como os dicionários e as gramáticas normativas ou tradicionais.
Sob essa perspectiva, uma língua gramatical concerne, portanto, a “toda língua
gerada por uma gramática” que, sendo definida pelos axiomas do cálculo e da língua,
constitui a “contraparte objetiva (real ou ideal) de uma gramática” (ibid., p. 103 - tradução
nossa) - daí mais adiante afirmar que as gramáticas se assemelham a “ ‘máquinas’ de
fabricar a língua ou ao menos a forma consensual aceita em uma dada época” (ibid., p.
264 - tradução nossa).
Expliquemos. Lembrando que, habitualmente, concebemos a gramática enquanto
a gramática de uma língua, como a gramática do francês, por exemplo, Auroux pontua
que, por vezes, ingenuamente tendemos a considerar “i. que a língua preexiste à
gramática” ; e “ii. que a gramática é a representação da língua” (ibid., p. 103 - tradução
nossa). Dessa relação especular, segundo o autor, decorre inclusive o reconhecimento da
validade da gramática, ou seja, será válida aquela em que é possível identificar o que é
comumente chamado de francês, no caso da gramática do francês.
Entretanto, há, conforme Auroux, uma outra forma de identificar uma língua. Esta
ocorre quando somos colocados diante de uma “realização empírica” (ibid., loc. cit.), seja
falada ou escrita, e reconhecemos como sendo manifestação de uma língua e não de outra.
É, pois, o conjunto não fechado de realizações empíricas possíveis que constitui o que o
autor designa como língua empírica. Dessa maneira, com essa conceituação, Auroux
afirma introduzir na definição de língua a sua temporalidade e os sujeitos falantes,
distanciando-se para tanto de uma concepção recursiva.
É nesse ínterim que entra em cena na obra francesa o conceito de hiperlíngua com
vistas a “admitir certa incomensurabilidade entre a língua empírica e a língua gramatical”,
sendo então ambas consideradas como “construções, elementos de nossa representação”
(ibid., p. 113 - tradução e itálico nossos). A partir dessa reconfiguração teórica, Auroux
levanta o seguinte questionamento: “o que existe em matéria de linguagem?” . E responde:
a língua empírica não tem existência autônoma (ou substancial, como diziam
antigamente os filósofos), ela existe nas manifestações sonoras ou escritas sem
poder ser a elas reduzidas, porque a característica de um enunciado linguístico
é justamente a de não ser simplesmente uma vibração do ar ambiente. Mas
apenas existe, em certas porções de espaço-tempo, nos sujeitos, dotados de
certas capacidades linguísticas ou ainda de “gramáticas” (não necessariamente
idênticas), cercados por um mundo de artefatos técnicos, entre os quais figuram
(por vezes) as gramáticas e os dicionários. Dito de outro modo, o espaço-
tempo, em relação à intercomunicação humana, não é vazio, ele dispõe de uma
certa estrutura que lhe conferem os objetos e os sujeitos que o ocupam (ibid.,
p. 115 [tradução nossa]).
17 A gramatização é, segundo Auroux (2009 [1992], p. 65), “o processo que conduz a descrever e a
instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber
metalingüístico: a gramática e o dicionário”.
Antes de continuarmos, devemos esclarecer que não nos interessa aqui explorar
os problemas epistemológicos ocasionados pela mobilização do conceito de hiperlíngua
em pesquisas desenvolvidas à luz da perspectiva discursiva da HIL. Isso já foi abordado
com propriedade por Zoppi-Fontana e Diniz (2008), com quem concordamos18. A nós,
interessa pensar especificamente a relação estabelecida entre instrumentos linguísticos e
o que neles se formula como nacional e regional e, para isso, impôs-se considerar também
a relação com o que Auroux nomeia como hiperlíngua.
Dito isto, seguimos nossa reflexão ainda debruçando-nos sobre o artigo de Auroux
supracitado. Nele, o autor relaciona a “questão da língua nacional” ao processo de
gramatização brasileiro da língua portuguesa, momento no qual se dá início à descrição
de modos de dizer em outro espaço-tempo (outra hiperlíngua) que não o europeu com o
desenvolvimento, notadamente a partir do século XVIII, de dicionários monolíngues e
“igualmente [de] dicionários de regionalismos” (ibid., p. 21), entre outros. Dicionários
monolíngues dizem da dimensão nacional da língua, mas em Auroux comparecem ao lado
dos dicionários ditos regionalistas. Esse comparecimento nos impôs as seguintes
questões: Como o nacional e o regional se articulam no espaço-tempo estruturado da
hiperlíngua? Como o regional afeta/é afetado pelo processo de gramatização?
Sobre isso, nada é dito nos textos de Auroux recortados para esta reflexão.
Embora, por ora, não nos interesse ir atrás do porquê dessas ausências com que nos
deparamos, fato é que elas são, em nosso percurso, significativas e nos levaram a
mobilizar na próxima seção teóricos brasileiros que, inscrevendo-se numa relação, não de
filiação, mas produtiva quanto às ideias de Auroux, se propuseram a refletir sobre o
processo de gramatização no/do Brasil, operacionalizando em suas análises o conceito de
instrumentos linguísticos e pensando-o no que toca aos processos de
colonização/descolonização.
18 Na nota 13, trouxemos rapidamente as ponderações dos autores. Aos leitores interessados, porém,
indicamos a leitura do artigo na íntegra.
19 Por ideias linguísticas, consideramos, com Costa (2023), os discursos sobre (meta)língua(gem). Tais
discursos, conforme Orlandi e Guimarães (2001, p. 32), colocam em circulação sentidos relacionados “à
definição da língua, à construção de um saber sobre a língua, à produção de instrumentos tecnológicos”.
20 Nesse texto, a autora, de um modo geral, retoma ideias que vem desenvolvendo em trabalhos dispersos
desde os anos 1990, fato que justifica o seu recorte em detrimento de outras textualidades em que também
se dedica à temática aqui abordada.
“a gramatização de uma língua é uma parte da história desta língua”, donde a conclusão
de que “as tecnologias lingüísticas não são somente os produtos de um saber”, mas
também “contribuem para a constituição dos fatos da língua” (ibid., loc. cit.).
Voltemos às inquietações compartilhadas no final da seção anterior e que nos
movem nesse percurso de leitura. Com Orlandi (2009a) e Orlandi e Guimarães (2001),
vimos como unidade e diversidade se relacionam, no espaço-tempo brasileiro, em um
processo de gramatização/endogramatização cujo efeito é a projeção de uma língua
imaginária que passa a equivaler à língua nacional brasileira. Ocorre que, nesse processo,
há também instrumentos linguísticos que se voltam não para a dimensão nacional, mas
para uma dimensão regional da língua do Brasil ou ainda para uma parte dessa língua.
Nesses casos, como pensar a relação entre unidade e diversidade ou, ainda, entre língua
fluida e língua imaginária? Nosso incômodo persiste e sobre ele continuaremos a nos
debruçar nas próximas seções, agora tomando como objeto de análise três instrumentos
linguísticos aqui, como dito, concebidos enquanto materialidades significantes.
21 O termo inclusão remete às ausências observadas nas textualidades filiadas ao nome de Auroux e postas
em circulação no Brasil e na França mais ou menos na mesma época em que teóricos brasileiros se
dedicavam à reflexão sobre o processo de gramatização no/do Brasil tendo em vista a sua relação
incontornável, como podemos depreender a partir de Orlandi (2001) e Orlandi e Guimarães (2001), com os
processos de colonização/descolonização.
delimitação de seis zonas de subfalares do que formula como falar brasileiro, ao lado de
Espírito Santo, Sul de Minas e Distrito Federal, no chamado subfalar fluminense, sendo,
portanto, o linguajar carioca significado como “uma variedade” desse subfalar (ibid., p.
26), isto é, como uma subparte regional (variedade ou linguajar do Rio de Janeiro) de uma
parte regional (subfalar fluminense) de um todo nacional (o “falar brasileiro”).
Para pensar essa tensão entre unidade e diversidade no tocante ao que se projeta
como nacional e regional nas obras de Said Ali e Nascentes, retomamos o conceito de
dimensões discursivas da linguagem formulado por Payer (2006, p. 107), considerando,
então, língua nacional e língua regional como duas dimensões que “não são autoevidentes
nem semelhantes em quaisquer circunstâncias históricas” e que colocam em cena
diferentes modos de relação entre línguas, sujeitos e memória. Nesse sentido,
consideramos que, nas gramáticas de Said Ali, é a dimensão nacional da língua em sua
unidade imaginária que é posta como objeto, mesmo que, dada a ambivalência da relação
com Portugal, nem sempre a relação com o Brasil possa/deva comparecer de forma
marcada. Na gramática de Nascentes, por seu turno, a dimensão objetificada é a dimensão
regional, notadamente a da região do Estado do Rio de Janeiro, ainda que por vezes, para
dizer desta, imponha-se também dizer da dimensão nacional. Sobre essa dimensão
regional, como visto, diz-se ainda que se irá fazer um recorte social específico, tomando
como objeto a chamada “língua do povo” .
Por isso, retomamos ainda as reflexões de Medeiros e Petri (2013) quanto ao que
propõem como partição da língua para então tentar continuar uma conversa sobre a
relação entre o nacional e o regional em instrumentos linguísticos produzidos por
brasileiros para brasileiros, nos quais, como observam, comparece “uma língua partida,
uma língua que se parte [em partes]” (ibid., p. 63). Debruçando-se, dentre outras
materialidades, sobre o capítulo “Vocabulário” da obra de Nascentes aqui tomada como
objeto, as autoras afirmam que as partições da língua “podem funcionar, por um lado,
como metonímias do nacional - na medida em que é posto como parte da língua; por
outro lado, podem ser, contraditoriamente, excluídas do nacional por serem muitas vezes
significadas como desvio, incorreção, vício, patologia [...]” (ibid., p. 45), configurando-
se este último, a seu ver, como o caso do capítulo analisado da obra de Nascentes. Tal
funcionamento parece, porém, a princípio, contradizer o que se diz no capítulo “Posição
do linguajar carioca no conjunto do falar brasileiro”, no qual, como pontuamos, tal
linguajar é significado como uma subparte de uma parte regional do todo nacional.
Dizemos a princípio porque, como vimos, no capítulo “O falar brasileiro”, os usos
próprios da chamada “língua do povo” são significados como “erros”, “moléstias”, o que
nos leva a perguntar: funcionaria em Nascentes o linguajar carioca como uma metonímia
ou como um antônimo do falar brasileiro? É, pois, o caso de continuar investigando e de
verificar se o funcionamento descrito pelas autoras é observado em outros capítulos da
obra.
Para concluir esta seção, cabe lembrar o que pontuam Medeiros e Petri sobre a
relação entre língua e sujeito. Dizem as autoras que “tratar da língua e das tensões que
nela e por ela se instalam é também tratar da questão do sujeito” (ibid., p. 48). Com isso,
deslocam a ideia de um “ sujeito brasileiro” universal para, então, ressaltar a necessidade
de pensar o lugar em instrumentos linguísticos desse sujeito que, tal como a língua,
também não é uno. Aceitando essa sugestão, estabelecemos, como exporemos no próximo
momento, como um primeiro recorte analítico do corpo das gramáticas de Said Ali e
Nascentes a relação entre línguas e sujeitos no/do Brasil.
22 Uma primeira versão da análise aqui empreendida foi apresentada em formato de pôster no XIII
Seminário dos Alunos de Pós-Graduação em Letras da UERJ, realizado na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, em 23 de novembro de 2022, por Bruna Alves Goulart, Giulia Nascimento de Mello e Gabrielly
Azalim Braz, sob o seguinte título: “Efeitos da Colonização Linguística em Said Ali e Antenor Nascentes”.
SD1: N eo lo g ism o é o contrario do archaismo, é a expressão ou palavra nova, quer formada com os recursos
proprios do idioma, quer tirada de idioma estrangeiro. O neologismo indigena produz-se em geral por
analogia de outros vocabulos segundo os processos de derivação e composição. [...] Ao neologismo tomado
de outra lingua dá-se o nome de e str a n g e ir ism o [...]. A adopção de estrangeirismos fez-se em todas as
épocas, sempre que no vocabulário da lingua não se encontrava termo perfeitamente adequado ao conceito
novo. Assim o portuguez antigo adoptou grande numero de vocábulos arabes, e os escriptores quinhentistas
se utilisaram de muitas denominações asiaticas e brasilicas.” (ALI, 1964 [192?], p. 308-309 [negrito do
autor; grifo nosso]).
SD2: “enriquecimento do vocabulario portuguez, de um lado com termos asiaticos e africanos, de outro
lado com expressões das linguas brasilicas” (ALI, 1931 [1921-7], p. 4-5 [grifo nosso]).
23 Dizemos a priori porque, como explica Costa (2021), a caracterização da abordagem empreendida na
GH como diacrônica é polêmica na história do conhecimento linguístico-gramatical no/do Brasil.
SD3: Desde meados, pois, do seculo XVI, colonos portugueses, indios, africanos, seus descendentes puros
ou mestiçados, começaram, cada qual a seu jeito, a modificar a língua portuguesa e mais tarde as
modificações por eles introduzidas vieram a constituir o falar brasileiro (NASCENTES, 1953 [1922], p. 10
[grifo nosso]).
SD4: A principal característica do léxico carioca é, se assim nos podemos exprimir, o seu cosmopolitismo.
Com efeito, capital e mais importante cidade do Brasil, o Rio de Janeiro exerce sôbre o resto do pais uma
força centrípeta que acarreta para o vocabulário carioca termos oriundos de todos os Estados.
Ao lado desta força existe a contraria, que espalha pelo país inteiro os neologismos cariocas, como se deu
com o verbo avacalhar e com a palavraparedro, por exemplo.
O vocabulário carioca, ao lado dos elementos portugueses, tupis e africanos, comuns a todo o Brasil, contem
elementos estaduais e elementos proprios. [...]
A incorporação imediata pode ser mais bem apreciada. Vejamos, por exemplo, o que se deu com a palavra
urucubaca. Esta palavra, apesar conhecida de grande numero de cariocas que mantêm relações com pessoas
do norte, era ignorada de muita gente. Uma circunstancia eventual (a cantiga Ó Filomena) deu-lhe uma
aplicação que a impôs à generalidade da população e assim incorporou-se ela imediatamente ao léxico
carioca (ibid., p. 181-182 [grifos nossos]).
C olon o = aquele que em igra para povoar e/ou explorar um a terra estranha
papel atribuído aos sujeitos europeus - ainda que por vezes a sua participação como
agente de mudanças linguísticas seja silenciada - e à sua língua. Sabemos também o papel
atribuído aos sujeitos não europeus, mas nada se disse até então sobre as suas línguas ou
sobre como elas participam da constituição daquilo que se nomeia como falar brasileiro
e, mais especificamente, do chamado linguajar carioca.
Na SD4, ao se dizer sobre o léxico ou vocabulário carioca, diz-se da sua
heterogeneidade constitutiva. Ele é composto, assim como o vocabulário dos demais
subfalares brasileiros, por elementos portugueses, tupis e africanos, mas também
estaduais, i.e, advindos de outros Estados, e próprios. Ao que perguntamos: em que
consistiriam esses elementos ditos estaduais e próprios?
Como exemplos de neologismos cariocas que se espraiaram por todo o país,
citam-se avacalhar e paredro. O primeiro é um verbo formado, segundo o Grande
Dicionário Houais (on-line), no início do século XX, por parassíntese a partir do
acréscimo do prefixo a- e do sufixo -alhar, ambos portugueses, ao radical do substantivo
vaca, palavra também portuguesa de origem latina (vacca, ae). O segundo, de acordo com
o mesmo dicionário, tem origem grega, mas foi incorporado ao léxico da língua
portuguesa via latim (paredros ou parêdros,i) no início do século XVIII.
Já como exemplo de neologismo advindo de outro Estado que, após generalizar-
se, foi incorporado ao léxico carioca, cita-se o termo urucubaca. Este, segundo o Houais
(on-line), teria possivelmente se formado, no século XIX, por hipértese dos fonemas
consonantais da terceira e da quarta sílaba de *urubucaca, palavra derivada do
substantivo urubu, que é de origem tupi.
Assim, um olhar atento aos exemplos elencados para ilustrar o que se formula
como elementos estaduais e próprios nos possibilita observar que: 1. os elementos
tomados como próprios do chamado linguajar carioca que se estenderam para outros
subfalares do falar brasileiro são elementos da língua portuguesa oriundos do latim ou,
indiretamente, do grego; e 2. que o elemento posto como oriundo de outro estado filia-se
a uma língua indígena. Note-se ainda que, contemporaneamente, os três itens mobilizados
como exemplos são considerados como pertencentes ao léxico da língua portuguesa,
comparecendo, como apontado, no Grande Dicionário Houaiss.
Desse modo, o apagamento dessa historicidade pode ser tomado como uma forma
de deslocamento dos lugares de memória a partir dos quais a língua do Brasil e os seus
falantes são significados. No primeiro caso, tem-se uma ruptura com Portugal por meio
do silenciamento da relação com a língua portuguesa e do alçamento do linguajar carioca
ao lugar de origem. No segundo caso, por sua vez, põe-se em silêncio a relação com as
línguas indígenas alçando outros Estados brasileiros ao lugar de origem e inscrevendo as
línguas e os sujeitos indígenas, assim como os europeus, em um outro espaço-tempo que
não o brasileiro.
Além disso, a organização sintática do período “O vocabulário carioca, ao lado
dos elementos portugueses, tupis e africanos, comuns a todo o Brasil, contem elementos
estaduais e elementos próprios” diz-nos da divisão estabelecida entre elementos
portugueses, indígenas e africanos e entre eles e aqueles que são colocados como
estaduais e próprios. Notemos que “ao lado dos elementos portugueses, tupis e africanos,
comuns a todo o Brasil” é formulado como um termo acessório encaixado entre o sujeito
e o predicado de “O vocabulário carioca contem elementos estaduais e elementos
próprios”. No termo acessório, há entre portugueses, tupis e africanos uma coordenação
que, a princípio, poderia fazer supor igualdade, mas cuja ordem coloca em cena uma
hierarquização. Sintoma disso é, por exemplo, o fato de, nesse capítulo, não termos
encontrado exemplos que remetessem a línguas africanas ou que nos permitissem
observar ressonâncias dessas línguas. A esses elementos, sobrepõem-se, contudo, os que
são predicados como estaduais e próprios, isto é, aqueles que, do lugar de que fala o
estudioso da linguagem, entende-se como a marca de distinção do nacional (o falar
brasileiro) e que comparecem no lugar de termos integrantes da oração. Notemos ainda
que mesmo os elementos ditos portugueses, tupis e africanos são concebidos em relação
ao nacional, já que se diz serem “comuns a todo o Brasil” .
Por último, cabe salientar que os silenciamentos operados contribuem para a
projeção de um imaginário de hierarquização também na dimensão nacional entre os
subfalares (as partes) que constituem o falar brasileiro, no qual tem lugar de destaque o
que se nomeia como linguajar carioca (dimensão regional) por ser ele tomado como o
subfalar da “capital e mais importante cidade do Brasil, o Rio de Janeiro” . Ou seja, apesar
de inicialmente se anunciar que se tomará como objeto a língua do povo tida como errada,
o linguajar carioca, pelo menos no que respeita ao capítulo intitulado “Léxico”, é
significado como cosmopolita e como o subfalar mais importante do falar brasileiro, um
subfalar que tanto recebe “termos oriundos de outros estados” (força centrípeta) como
também “espalha pelo país inteiro” os seus elementos próprios (força centrífuga),
constituindo-se, por isso, como o pilar de sustentação da unidade imaginária da língua
Considerações finais
Neste artigo, buscamos, primeiramente, refletir sobre a historicidade do conceito
de instrumentos linguísticos - um conceito que poderíamos caracterizar, nos termos de
Stengers (1987)25, como nômade, tendo em vista o seu deslocamento da História das
Ideias Linguísticas - tal como formulada e posta em circulação na França no final do
século XX - para o da perspectiva materialista da Análise de Discurso - tal como
desenvolvida no Brasil desde mais ou menos a mesma época. Em nosso percurso de
leitura, como princípio metodológico, priorizamos discursividades fundadoras desses
lugares teóricos em que tal conceito comparece. Assim, da HIL, foram recortados
exemplares discursivos filiados ao nome de Auroux e, da AD-HIL, de Orlandi e
Guimarães - todos publicados entre o início dos anos 1990 e 2000.
Nesse percurso, por questão de coerência epistemológica, filiamo-nos a estudos
que tomam os instrumentos linguísticos discursivamente como formas materiais e
buscamos depreender o que se diz teoricamente sobre a relação entre o nacional e o
regional em tais instrumentos. Foi então que, deparando-nos com ausências nas
textualidades filiadas ao nome de Auroux no tocante a essa relação, voltamos o nosso
olhar para os trabalhos dos teóricos brasileiros. Nesses trabalhos, observamos que a
24 Considerando que, nessa materialidade, não é qualquer linguajar ou subfalar que metaforiza o falar
brasileiro, mas aquele que é significado como “cosmopolita”, julgamos importante em gestos futuros de
análise refletir, na esteira de Rodriguez-Alcalá (2011), sobre a constituição desse instrumento linguístico,
na relação com o espaço, enquanto uma tecnologia urbana.
25 Em sua reflexão, a autora aborda os modos e efeitos da propagação de um conceito de um domínio
científico a outro.
reflexão sobre as dimensões nacional e regional não só se fez presente de forma regular
por meio da depreensão da ambivalência entre unidade e diversidade constitutiva do
processo de gramatização brasileiro, como foi posta em relação com a “especificidade da
nossa história de país de colonização” (ORLANDI, 2001, p. 7).
A partir disso, lançamo-nos à análise de instrumentos linguísticos que, filiados
aos nomes de autor Said Ali e Antenor Nascentes e voltados para essas diferentes
dimensões linguísticas, foram publicados no Brasil na segunda década do século XX.
Com esse batimento entre teoria e análise, objetivamos, por um lado, depreender os
modos de significação nessas materialidades das relações estabelecidas entre sujeitos e
línguas no/do Brasil e o que se formula como nacional e regional; e, por outro, contribuir
para as reflexões à luz do dispositivo teórico que habitamos (e que também nos habita)
sobre a história do conhecimento linguístico-gramatical no/do Brasil, notadamente no que
respeita ao processo de instrumentação linguística.
A análise possibilitou compreender como, tanto nos dizeres de Said Ali quanto
nos de Nascentes, faz-se significar o que Mariani definiu como colonização linguística,
visto que, como demonstramos, neles é possível observar, predominantemente, a
“imposição de ideias linguísticas vigentes na metrópole e um imaginário colonizador
entrelaçando língua e nação em um projeto único” (MARIANI, 2004, p. 25). Assim é
que, nas materialidades analisadas, depreendemos o comparecimento de sentidos que
apontam para a unidade da língua do Brasil e também entre esta e a língua de Portugal,
ainda que de modos distintos.
Em Said Ali, a língua da nação brasileira é uma: a língua portuguesa, a nossa
língua. As línguas indígenas e africanas, quando comparecem, são significadas como da
ordem de uma variação lexical. São advindas de tempo e espaço outros. São elementos
estrangeiros (de fora) que apenas por empréstimo podem compor o nacional (o dentro).
Nesse imaginário, sujeitos indígenas e africanos são postos como alteridades em relação
ao sujeito universal nacional brasileiro.
Na obra de Nascentes, contudo, ao se tentar apreender a fluidez da língua
brasileira, descrevendo-a, instrumentalizando-a, produz-se uma língua imaginária
(trans)regional que por vezes é tomada como metáfora do falar (e não da língua) nacional,
deslocando para o Brasil o lugar de referência a partir do qual língua e sujeitos são
significados. Como efeito desse movimento de instrumentação de um subfalar, a
ambivalência entre unidade e diversidade constitutiva da gramatização brasileira e do
processo de constituição da língua nacional do Brasil faz, tal como pontuaram Orlandi
descolonização linguística, tal como empreendido no Brasil, pode se dar sem uma relação
tensa, tão necessária quanto contraditória, com o de colonização. É o caso de seguir
investigando.
Referências
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augmentada de Lexeologia do Portuguez Historico e Formação de Palavras e Syntaxe do
Portuguez Historico. São Paulo - Cayeiras - Rio: Companhia Melhoramentos de São
Paulo (Weiszflog Irmãos incorporados), 1931 [1921-1927].
____ . G ram m atica Secundaria da Lingua Portugueza. 8a ed. São Paulo: Companhia
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____ . Grammatica historica da lingua portugueza de Said Ali cem anos depois:
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SCHERER, A.; PETRI, V. (Orgs). L íngua, Sujeito e H istória. v. 18. n.37. Santa Maria,
UFSM: Programa de Pós-graduação em Letras, jul./dez. 2008.
____ . A linguagem e seu funcionam ento: as formas do discurso. 5a. ed. Campinas, SP:
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ORLANDI E.P.; DE SOUZA, T.C.C. A língua imaginária e a língua fluida: dois métodos
de trabalho com a linguagem. In: ORLANDI, Eni Pulcinelli (Org.). Política lingüística
na A m érica L atina. Campinas: Pontes, 1988.
Resumo: Neste texto, realizamos um gesto inicial de análise sobre o vocabulário Gíria cabocla
do sul do Paraná, produzido no início do século XX por José Júlio Cleto da Silva. Para tanto,
reconstituímos a conjuntura ampla e as circunstâncias específicas em que o autor desenvolveu seu
trabalho e traçamos algumas considerações analíticas acerca do título, do prefácio e de alguns
verbetes do vocabulário. Adotamos a perspectiva teórica da História das Ideias Linguísticas em
diálogo com as áreas de Análise de Discurso e de Saber Urbano e Linguagem, perseguindo a tese
discursiva desenvolvida por Rodríguez-Alcalá (2011a) de que sujeitos, sentidos e espaços se
constituem conjuntamente em um mesmo movimento histórico. Os gestos analíticos aqui
empreendidos permitem observar: i) uma tomada de posição (favorável ao Paraná e desfavorável
à Santa Catarina) diante da política de produção e legitimação das divisas interestaduais, no
próprio título do vocabulário; ii) uma dificuldade na definição da unidade linguística, espacial e
temporal da gíria cabocla, no prefácio; e iii) um certo processo de tradução da gíria cabocla para
a língua nacional, na definição sinonímica dos verbetes.
Palavras-chave: História das Ideias Linguísticas; José Júlio Cleto da Silva; Gíria cabocla do sul
do Paraná.
Abstract: In this text, we perform an initial gesture of analysis on the vocabulary called “Gíria
cabocla do sul do Paraná”, produced in the early 20th century by José Júlio Cleto da Silva. To do
so, we reconstructed the broad conjuncture and specific circumstances in which the author
developed his work, and we made some analytical considerations about the title, preface, and
some entries in the vocabulary. We adopted the theoretical perspective of the History of Linguistic
Ideas in dialogue with the areas of Discourse Analysis and Urban Knowledge and Language,
pursuing the discursive thesis developed by Rodríguez-Alcalá (2011a) that subjects, meanings,
and spaces are jointly constituted in the same historical movement. The analytical gestures
undertaken here allow us to observe: i) a position (favorable to Paraná and unfavorable to Santa
Catarina) in relation to the politics of production and legitimation of interstate borders, in the title
of the vocabulary; ii) a difficulty in defining the linguistic, spatial, and temporal unity of “gíria
cabocla” in the preface; and iii) a certain process of translating “gíria cabocla” into the national
language, in the synonymous definition of the entries.
Keywords: History of Linguistic Ideas; José Júlio Cleto da Silva; Gíria cabocla do sul do Paraná.
Introdução
O final do século XIX e o início do século XX foram bastante conturbados na área
que atualmente corresponde ao Sul e Sudoeste do Paraná e ao Oeste e Planalto Norte de
Santa Catarina. Toda essa região - à época ainda indefinida - foi palco de disputas
territoriais, tais como a questão Palmas/Misiones e da questão de limites entre Paraná e
Santa Catarina, e de conflitos sociais, que desencadearam a Guerra do Contestado.
Ao mesmo tempo em que levantes sociais se desenvolviam e as fronteiras
internacionais e as divisas interestaduais eram demarcadas, houve uma pesquisa histórica
e geográfica por parte da elite intelectual paranaense para fornecer argumentos que
justificassem a instauração de um domínio paranaense na área em disputa, bem como para
a criação de símbolos e tradições estaduais que proporcionassem uma homogeneização
social no âmbito estadual.
É dentro de toda essa conjuntura histórico-social que verificamos2 a produção do
vocabulário regionalista Gíria cabocla do sul do Paraná por parte de José Júlio Cleto da
Silva. Trata-se de um autor e de uma obra praticamente desconhecidos, especialmente no
campo dos estudos da linguagem.
Assim, nosso objetivo neste texto é realizar um gesto inicial de análise sobre esse
vocabulário. Buscamos, em certa medida, “reconstituir” as condições de produção em
que se desenvolveu o trabalho linguístico do autor, e esboçamos algumas considerações
analíticas acerca do título, do prefácio e de alguns verbetes do vocabulário, a partir da
perspectiva teórica da História das Ideias Linguísticas em diálogo com a Análise de
Discurso.
A exposição estará organizada da seguinte forma: inicialmente, abordamos a
conjuntura histórica do final do século XIX e início do século XX no Paraná, destacando
alguns fatos que julgamos pertinentes para a compreensão da conjuntura ampla de
produção do vocabulário. N a sequência, trazemos à tona algumas considerações acerca
do autor, com vistas a compreender as circunstâncias específicas de produção do
vocabulário. Após, fazemos uma descrição breve da obra, para analisar seu prefácio e
duas regularidades sintáticas que se fazem presentes nos verbetes. Por último, nas
2 Optei por escrever este artigo na primeira pessoa do plural, uma vez que ele é fruto de várias discussões
coletivas. Agradeço à Carolina Rodríguez-Alcalá, José Horta Nunes e Verli Petri pelas leituras de diferentes
versões deste manuscrito e pelas várias contribuições que me deram. Também agradeço às diferentes
instituições que permitiram consultas em seus acervos: Arquivo Histórico de Guarapuava, Arquivo
Histórico do Exército, Biblioteca Pública do Paraná, Casa da Memória de Curitiba, Departamento de
Arquivo do Estado do Paraná, Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e Museu Paranaense.
1. A invenção do P a ra n á
Em sua dissertação de mestrado, Christiane Marques Szesz (1997) defende a tese
de que o Paraná foi inventado a partir de suas fronteiras. A autora nos conta que a província
do Paraná foi criada em 1853, a partir do desmembramento da província de São Paulo,
sendo fruto de uma medida administrativa. Além disso, ela argumenta que a delimitação
das fronteiras não era clara e que parte dos territórios que atualmente corresponde ao oeste
de Santa Catarina e ao sudoeste do Paraná não era muito bem conhecida.
A autora salienta que, a partir da segunda metade do século XIX, essa região passou
a ser ocupada, de modo que se constituíram grandes fazendas de pecuária e foram fundadas
localidades importantes, como Palmas e Porto União da Vitória. Ao lado disso, parte da
região era rica em madeira e erva-mate. Tais fatores despertavam o interesse por parte do
Paraná, de Santa Catarina e da própria República Argentina. Tratava-se de uma área que
interessava particularmente às elites paranaenses que, diante dos conflitos territoriais que
se intensificaram entre o final do século XIX e o início do século XX, mobilizaram a
História e a Geografia como argumentos para justificar seu domínio sobre a região.
A disputa pelo domínio econômico, jurídico e político dessa região desembocou
em dois conflitos territoriais, referidos por Szesz (1997). O primeiro deles foi a questão
de Palmas ou Misiones3, em que os governos brasileiro e argentino buscaram delimitar
suas fronteiras. Os tratados de Madrid (1750) e de Santo Ildefonso (1777), celebrados
entre Portugal e Espanha, haviam determinado que a fronteira entre a região meridional
das colônias estava traçada pelos rios Uruguai e Iguaçu, e pela faixa intermediária entre
o vale dos rios. O tratado de 1777 estabelecia que, nessa faixa intermediária, a fronteira
internacional seria delimitada pelos rios Peperi-Guaçu e Santo Antônio, mas as
metrópoles europeias nunca definiram in loco quais eram os rios que eram assim
nomeados, embora esses estivessem presentes nos mapas. Havia, assim, certa indefinição
das fronteiras entre Brasil e Argentina que não foi levantada em um primeiro momento,
3 No âmbito da História das Ideias Linguísticas, esse conflito diplomático é discutido por Lemos (2019),
que analisa como o espaço de fronteira entre Dionísio Cerqueira-SC, Barracão-PR (Brasil) e Bernardo de
Irigoyen (Misiones, Argentina) vai sendo construído discursivamente.
mas que veio à tona em 1857, por iniciativa do governo brasileiro. Em 1881, a Argentina
definiu sua interpretação sobre o tratado de 1777 e, segundo essa, o rio que os brasileiros
denominavam de Chapecó seria o rio Peperi-Guaçu e o rio chamado de Chopim pelos
brasileiros seria o Santo Antônio. Em 1888, a Argentina deu uma nova interpretação ao
tratado de Santo Idelfonso e passou a argumentar que o rio chamado pelos brasileiros de
Jangada seria o rio Santo Antônio. A disputa foi somente definida em 1895, quando a
região contestada passou a pertencer ao Brasil, graças ao arbitramento internacional
realizado por Grover Cleveland, então presidente dos Estados Unidos da América (EUA).
Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-2-Mapa-da-Questao-de-Palmas-Fonte-
Readaptado-de-BARROS-1980-p-59 fig5 329454328
4 Uma versão digitalizada do processo está disponível na página da internet do Tribunal de Justiça do
Paraná. Disponível em: https://www.tipr.ius.br/memoria-e-iustica-museu/-
/asset publisher/51Sv/content/guerra-do-contestado/397262. Acesso em 20/09/2022.
Brás, então presidente da República, por meio do qual o território contestado foi dividido
ao meio.
Fonte: https://www.researchgate.net/figure/FIGURA-7-Mapa-dos-limites-entre-o-Parana-e-Santa-
Catarina-1865-1916-Fonte-Base fig3 316475770
5 Como poderá ser visto mais à frente, a nomeação do instituto foi mudando ao longo do tempo.
Inicialmente, entre 1900 e 1947, o nome adotado era Instituto Histórico e Geográphico Paranaense, depois
passou a Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico Paranaense até 1999, ano em que se adotou o nome
que mantém até hoje: Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. Disponível em:
https://ihgpr.com.br/estatuto.php. Acesso em: 05/01/2023. Essa variação da nomeação do instituto ao longo
da história é particularmente interessante se considerarmos outros nomes de instituições, como é o caso do
instituto congênere cearense: Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico). Nessas
nomeações, tanto “etnográfico” (etno - povo) como “antropológico” (antro - homem) apontam para os
sujeitos, enquanto “geográfico” (geo - terra) se relaciona com o espaço. Nos institutos históricos, também
se produziu um importante saber sobre a língua, seja por meio da viabilização da produção de dicionários
bilíngues e de dicionários de regionalismos (NUNES, 1996), seja por meio da divulgação de um saber
linguístico na revista do IHGB, por meio de diferentes formas e em diferentes domínios (GARCIA, 2011),
mas, ao menos pelo que sabemos, em nenhum caso essa marcação se fez presente no nome do instituto.
6 Sobre os sócios fundadores do IHGPR, Szesz (1997, p. 129) afirma: “A maioria dos seus componentes
eram funcionários públicos e desempenhavam funções no aparelho do estado, fossem aqueles que seguiam
a carreira de magistratura após estudos jurídicos, ou aqueles, que mesmo sem estudos universitários
percorriam uma carreira média na burocracia”.
7 Este mapa pode ser observado na coleção de mapas históricos do Paraná, que se encontra no site do
Instituto Água e Terra. Disponível em: https://www.iat.pr.gov.br/Pagina/Coletanea-de-Mapas-Historicos-
do-Parana. Acesso em: 08/01/2023.
8 Para uma melhor compreensão do papel das tradições na criação das identidades nacionais, ver Thiesse
(1999) e Hobsbawn e Ranger (2008).
algumas das questões que nos interessam. Trata-se de um trabalho único que busca
compreender o papel desempenhado por José Júlio Cleto da Silva como líder da
resistência ao Acordo de Limites.
Barboza nos narra que a família Cleto da Silva buscava estreitar relações que
permitissem uma colocação na política paranaense no início do século do século XX.
Nesse sentido, o autor relata que José Júlio Cleto da Silva se mudou para o interior do
estado em 1896, buscando uma colocação como comerciante. À época, o pai de José Júlio
Cleto da Silva - José Cleto da Silva - já se encontrava na região e estava inserido no
círculo de poder local, ocupando o cargo de presidente da câmara e tendo fundado um
colégio em União da Vitória.
Foi esse caminho pavimentado pelo pai que, segundo Barboza (2017), permitiu a
Cleto da Silva se inserir rapidamente no cenário político local. Alguns anos após sua
chegada à região, em 1900, ele casou-se com Francisca Pacheco, que era membra de uma
família pioneira na colonização dos Campos de Palmas. Nesse mesmo ano, ainda de
acordo com Barboza (2017), Cleto também teve atitudes que apontam para uma prática
comum de grilagem. Trata-se da tentativa de compra9, junto a outros, de uma área de
aproximadamente seis mil hectares de terras devolutas, na região então em disputa entre
Brasil e Argentina. Nessa tentativa de compra, ele e seus colegas exigiam que fossem
demarcados os limites, e que a União declarasse a parte desse território que seria utilizado
para defesa da fronteira.
Na visão de Barboza (2017), a fama e o prestígio conquistados pelo pai de Cleto
também foram fundamentais para sua eleição como prefeito da então cidade de Bela Vista
de Palmas, em 1908. Em seu mandato, Cleto foi o responsável por realizar a mudança do
nome da cidade para Clevelândia, em homenagem a Grover Cleveland, presidente dos
EUA e árbitro na questão de Palmas/Misiones entre Argentina e Brasil.
No entanto, em 1909, o estado de Santa Catarina obteve uma segunda sentença
favorável ao processo que movia no STF contra o Paraná, o que, de acordo com Barboza
(2017), deixou os coronéis da região preocupados. Diante disso, Cleto e outras lideranças
locais, reunidos em um comício em Palmas, expressaram a ideia da criação de um estado
independente na região contestada, o estado das Missões. Nesse momento, Cleto também
renunciou ao cargo de prefeito e mudou-se para União da Vitória, buscando defender os
interesses paranaenses na questão dos limites. Em 1910, em União da Vitória, Cleto passa
repressão por parte do governo estadual, que enviou tropas à região, com vistas a
desmanchar movimentos de resistência ao acordo, fossem eles armados ou não.
Descontente com a situação, em abril de 1917, Cleto solicitou uma licença do cargo de
tabelião e passou a realizar reuniões a fim de organizar um levante armado na região, em
prol da criação do estado das Missões. Havia adeptos da ideia nas cidades de Curitiba,
União da Vitória, Palmas, Três Barras, Clevelândia, Rio Negro e Timbó. Cleto também
contava com o apoio de políticos e líderes locais, de modo que acreditava contar com
homens e recursos suficientes para combater as tropas federais e estaduais.
Sobre o levante, Barboza (2017) nos conta que este estava marcado para o dia 30
de julho. Porém, denúncias chegaram ao conhecimento do governo federal, que enviou
tropas para a região no dia anterior à data programada. Assim, Cleto e seus homens
deixam União da Vitória e vão em direção à estação de trem Nova Galícia, localizada a
28 quilômetros de distância. Eles pretendiam interromper a comunicação ferroviária da
região com o Rio Grande do Sul, enquanto esperavam que a população aderisse ao
movimento e que mais homens pegassem em armas. No entanto, dos mais de 100 homens
que deveriam seguir o movimento, apareceram apenas 22 e, mais tarde, outros 11, sendo
que desse total nem todos estavam armados. Com os planos frustrados, nos dias que se
seguiram, o grupo marchou para Palmas, cidade que pretendiam atacar, o que acabou não
se concretizando. No dia 14 de agosto, o movimento havia fracassado. Os manifestantes
debandaram então para Clevelândia e, de lá, alguns atravessaram a fronteira com a
Argentina.
Cleto, por sua vez, foi para Guarapuava, onde escreveu o livro Accordo Paraná-
Santa Catharina ou O Contestado diante das carabinas, em que detalha sua versão sobre
o acontecimento. Cleto também foi indiciado na comarca de Palmas e perdeu o cargo de
deputado estadual. No entanto, antes mesmo da publicação do livro, ele obteve a anistia
e voltou a exercer a função de tabelião de União da Vitória. Depois dos acontecimentos,
Cleto continuou com sua vida intelectual, escrevendo sobre outros temas e participando
de instituições, sem se envolver em outras polêmicas. Anos mais tarde, em 1937 e 1938,
Cleto da Silva foi admitido como sócio correspondente do Círculo de Estudos
Bandeirantes (CEB) (FERRARINI, 2011) e do IHGPR11, respectivamente. Além disso,
consta que ele participava ativamente da Loja Maçônica de União da Vitória entre as
décadas de 1930 e 1950 (GOHL, 2003).
Por fim, a obra de José Júlio Cleto da Silva passou por um processo de resgate
realizado pelo neto do autor, Josaphat Lona Cleto, procurador aposentado e associado do
IHGPR.
Fonte:https://rbi.com.br/conheca-a-historia-do-movimento-que-quase-tornou-palmas-capital-de-
um-estado/
Por meio desse percurso histórico, é possível entender que a posição social de José
Júlio Cleto da Silva era a de um burocrata médio do estado (prefeito municipal de
Clevelândia, jornalista, tabelião e oficial do Registro de Imóveis, deputado na Assembleia
Legislativa do Estado) e que ele esteve envolvido nas relações de coronelismo e nos dois
conflitos territoriais que se desenvolveram no Paraná à época de diferentes formas: por
meio da compra de terras, por meio da atuação como jornalista no semanário Missões,
por meio da atuação na Assembleia Legislativa, por meio do levante armado ou mesmo
por meio da escrita de trabalhos literários e históricos.
Ao lado desse percurso de pesquisa sobre a vida de José Júlio Cleto da Silva,
procuramos elaborar uma lista com as obras de sua autoria a partir de uma pesquisa de
arquivo 12
12 O asterisco (*) indica que não tivemos acesso a essas obras e que apenas sabemos de sua existência por
meio de outros textos.
(acreditamos que era uma espécie de vocabulário ao final do livro)13. Na nota, explica-se
ainda que parte do trabalho foi publicado no jornal A república, embora também não
tenhamos conseguido encontrar em nossas pesquisas a edição específica do jornal em que
se deu a publicação.
Assim, enfatizamos que o vocabulário a partir do qual realizamos as análises mais
à frente é uma republicação desses trabalhos ao qual foram acrescidos manuscritos
inéditos. Trata-se de uma republicação realizada pela Assembleia Legislativa do Estado
do Paraná, no ano de 1990, que se insere no âmbito do projeto mais amplo de resgate da
obra de José Júlio Cleto da Silva empreendido por Josaphat Lona Cleto, neto do autor e
historiador ligado ao IHGPR.
Por fim, gostaríamos de destacar um ponto importante na nomeação do
vocabulário. Pensamos que esse título, em si mesmo, significa como uma tomada de
posição diante da questão dos limites entre Paraná e Santa Catarina. Ao nomear o
vocabulário como Gíria cabocla do sul do Paraná, o uso do adjunto adverbial de lugar
marca que o material linguístico que ali está reunido é falado no território que se considera
ser o sul do Paraná e não outra região, como o planalto norte de Santa Catarina, por
exemplo.
Em outras palavras, o próprio título do vocabulário - aliado às condições de sua
produção - nos direciona para uma interpretação de que a produção deste instrumento
linguístico está associada, em alguma medida, a uma política de produção e legitimação
das fronteiras territoriais (favorável ao Paraná e desfavorável à Santa Catarina), de
maneira similar ao que se passa nos exemplos apresentados por Rodríguez-Alcalá (2020)
e que retomamos anteriormente.
Tendo apresentado algumas considerações sobre o processo de publicação da obra
e algumas observações14 sobre seu título, passemos à análise do vocabulário, iniciando
pelo prefácio.
13 Essa hipótese parte de uma referência que consta na bibliografia do Glossário do Vale do Iguaçu, de
autoria de Francisco Filipak (1976, p. 31): “2) Vocabulário da Gíria Cabocla do livro CAMPOS E SELVAS
de Thales Patrício, pseudônimo de José Júlio Cléto da Silva, União da Vitória, PR, 1924”.
14 Salientamos o uso do adjetivo “cabocla” no título do vocabulário, que significa a variedade linguística
falada no espaço e os sujeitos que a falam. Assim, podemos concluir que não são todos os sujeitos da região
que se considera ser o “sul do Paraná” que falam o que ali está reunido, mas uma parte específica dos
sujeitos, os “caboclos”. Embora Cleto não especifique o que entende por caboclo nem os motivos pelos
quais utiliza esse adjetivo, pensamos que uma possibilidade de resposta a essa questão aparece ao olharmos
para a crítica ao trabalho de Cleto realizada por Filipak e Sicuro (1976, p. 135, grifos nossos): “Foi o
primeiro autor a estudar os falares e a gíria cabocla regional, deixando inédito um rico glossário lingüístico
digno de maiores estudos. Ninguém como ele, através de sua pena versátil, soube retratar a feição moral, o
meio ambiente e os hábitos lingüísticos do nosso primitivo homem iguaçuano”.
3.1. O prefácio
Os prefácios dizem algo sobre a obra que acompanham. Em nosso entendimento,
eles nos dão pistas sobre as condições de produção e de publicação das obras, além de
construírem/reproduzirem determinados sentidos sobre a obra e o autor. Em nosso caso,
em que olhamos para uma obra lexicográfica publicada em parte em 1924 e que
posteriormente foi republicada em 1990, acreditamos que o prefácio que acompanha a
obra pode nos dizer algo sobre o autor, sobre a obra e sobre a descrição da língua que ali
se realiza.
Esse entendimento não é uma novidade ou exclusividade de nosso trabalho e, por
isso, lembramos dois trabalhos de pesquisa desenvolvidos no âmbito da História das
Ideias Linguísticas que apontam para a relevância desses materiais.
Em um capítulo da obra Terra à vista, Eni Orlandi (2008, p. 120-121) analisa as
reedições de relatos de missionários e viajantes europeus ao Brasil, interessando-se pelos
aparelhos críticos que acompanhavam essas novas edições e pela maneira como esses
aparelhos críticos orientam e até mesmo determinam a leitura e a interpretação desses
documentos históricos. Na perspectiva da autora, a inserção de um prefácio e de notas
não deixa intactos os sentidos: “Com os prefácios e as notas, os autores visam conter o
texto nos limites, ou melhor, procuram não deixar que ele signifique além de certos
limites, e apagar as transformações de sentido trazidas pelo fato de que, na sua
materialidade, eles são objetos integralmente históricos (e linguísticos)” .
Verli Petri (2007) também discute o funcionamento do prefácio, ao comparar um
dicionário de regionalismos e um dicionário geral de língua, ambos produzidos na década
de 1980. Em seu texto, a autora afirma que, apesar de apresentar formas bastante diversas
(a depender de quem produz o prefácio e dos objetivos do texto), o prefácio tem um
funcionamento específico: ele precede o texto principal e funciona como um lugar para
enaltecer a obra que se segue, o que é próprio do espaço mercadológico.
Na sequência, analisamos o prefácio da Gíria cabocla do sul do Paraná, buscando
compreender como se constroem discursivamente os sentidos em torno da língua, do
espaço e dos sujeitos. Destacamos que se trata de um prefácio escrito por Antonio Lustosa
de Oliveira15, que se declara amigo de José Júlio Cleto da Silva. Para observarmos esse
processo, selecionamos o seguinte recorte:
15 Pelas informações que dispomos, Antonio Lustosa de Oliveira foi jornalista, agropecuarista e político
brasileiro. Como político, ocupou os cargos de prefeito de Guarapuava (1944), deputado estadual (1947) e
deputado federal (1958).
(variedade de) língua, depois de um tempo decorrido desde a questão dos limites, passa a
significar como uma tradição que merece ser preservada justamente pela ligação com o
espaço disputado e com os “nossos antepassados” . E aqui cabe perguntar: antepassados
de quem?
O prefácio não responde a essas questões. Ele apenas trata da preservação do
“linguajar dos nossos antepassados”, como se todos os paranaenses fossem descendentes
dos tropeiros, dos moradores dos antigos povoados e vilas ou das antigas fazendas da
pecuária paranaense. Há uma tentativa de fixar imaginariamente os sujeitos, o espaço e a
(variedade de) língua.
No entanto, se em uma rápida leitura identificamos uma língua que
imaginariamente se caracterizaria por ser falada no passado, nas regiões sul e sudoeste do
Paraná, por sujeitos ligados à pecuária, nem tudo se passa tão bem assim. Há problemas
que aparecem lateralmente no prefácio que apontam para a língua que está sempre em
movimento e recusa categorizações: a língua fluida.
Nesse sentido, vale retomar a distinção entre língua imaginária e língua fluida
estabelecida por Orlandi (2009). Do lado da língua imaginária, temos a língua
normatizada, presa em regras, fórmulas e esquemas que são artefatos produzidos pelos
estudiosos da linguagem ao longo da história e que permitem ter um imaginário de língua.
Do lado da língua fluida, temos a língua que não aceita limites, recusa sistematizações,
em suma, uma língua sempre em movimento. Essa mesma distinção é válida para pensar
o espaço-tempo. O que há no mundo é um espaço-tempo fluido, continuum, mas a partir
do Renascimento e das tecnologias que possuíam, “os europeus vão segmentar e
categorizar o espaço e o tempo fluidos do planeta (estabelecer os pontos cardeais, a
divisão dos hemisférios, a contagem do tempo...), produzindo o que chamamos de
espaço-tempo imaginário, cartográfico” (RODRIGUEZ-ALCALÁ, 2018, p. 77, grifos
da autora).
Essa distinção nos permite compreender melhor as referências feitas no corpo do
prefácio. Uma obra linguística tem a necessidade de descrever a unidade de uma língua
(ou de uma variedade linguística), mas, paradoxalmente, essa tentativa de delimitar a
unidade defronta-se com problemas.
Ao tentar delimitar o tempo da Gíria cabocla do sul do Paraná, aponta-se que
algo dela também é falado no presente, como pode ser observado em: “velhas formas de
expressão do antigo português, ainda hoje, aqui e acolá, vivas e atuantes”, “Tais
locuções, familiares e populares, eram e continuam vigentes na região meridional do
3.2. Os verbetes
Em seu texto intitulado Lexicografia discursiva, Eni Orlandi (2013) propõe ler os
dicionários como discursos17, isto é, como textos produzidos em determinadas condições
de produção e atravessados pelo funcionamento da memória discursiva. Nesse mesmo
texto, a autora assinala que um processo ideológico próprio do dicionário é forjar o
imaginário de completude da língua, a partir de dois procedimentos: a intertextualidade e
a interdiscursividade. A intertextualidade se materializa na remissão de um verbete a
outros verbetes, em uma espécie de circuito fechado, e a interdiscursividade se apresenta
por meio da maneira pela qual a memória discursiva intervém na definição do verbete.
José Horta Nunes (1996), em sua tese de doutorado, expõe procedimentos
analíticos que nos permitem ver mais de perto o atravessamento da memória discursiva
em verbetes de dicionários. Para ele, inicialmente, é preciso montar inicialmente séries
heterogêneas do ponto de vista lexicográfico, mas homogêneas do ponto de vista
sintático. Depois, em uma segunda etapa, faz-se necessário observar as variações
sintáticas mais recorrentes, para, por fim, em uma terceira e última etapa, realizar
interpretações discursivas das regularidades sintáticas.
Ao analisarmos os verbetes de Gíria cabocla do sul do Paraná, levamos em conta
que este é um vocabulário organizado pelo critério alfabético. De tal modo, com vistas a
17Ainda sobre a leitura do dicionário como discurso, remetemos a Collinot e Mazière (1997).
18 MOITA - Estar quieto esperando a caça; calado, à espreita; estar na espera; na surdina; estar escondido:
“O caboclo estava na m o ita e de im p r o v iso deu o golpe certo”; MORANGUINHO - Bicho de pé: “O
compadre estava cheio de m o r a n g u in h o s ” (SILVA, 1990, p. 40).
19 Ainda que lateralmente, precisamos que à medida que se coloca mais sinônimos para definir a entrada se
realiza um deslocamento de sentidos. É o caso por exemplo de “MOLAMBENTO - Sujo; seboso;
porcalhão” e “MOLOIDE - Fraco; covarde; preguiçoso; vadio”, em que temos, inicialmente, uma
característica física (sujo/fraco) que se desloca para uma característica moral (porcalhão/vadio).
Considerações Finais
Neste trabalho, buscamos dar a conhecer o vocabulário regionalista Gíria cabocla
do sul do Paraná, produzido por José Júlio Cleto da Silva. Para tanto, realizamos alguns
gestos analíticos iniciais, sempre perseguindo a tese discursiva de que sujeitos, sentidos
[linguagem] e espaço se constituem em um mesmo processo histórico. Agora, ressaltamos
algumas compreensões que nos parecem as mais interessantes.
20 De acordo com Nunes (2006), o Vocabulário pernambucano foi parcialmente publicado (até a letra B)
em 1916, pela Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco. Ainda de acordo
com Nunes (2006), o autor faleceu em 1923 e a primeira edição completa da obra deu-se somente em 1937.
Referências
BARBOZA, G. G. A resistência ao Acordo de Limites e o Estado das Missões (1910
1917). 2017. 127 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) -
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2017.
HOBSBAWN, E.; RANGER, T. (orgs.). A invenção das tradições. 6 ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2008.
THIESSE. A-M. La création des identités nationales. Europe, XVIIIe-XXe siècle. Paris
: Éditions du Seuil, 1999.
Fontes
Resumo: O modo como o feminino é enunciado repousa sobre uma memória da condição de
“ser mulher”, em nossa sociedade, em contraposição com o “ser homem”. Os dizeres sobre os
corpos perpassam, portanto, as diversas textualidades que nos cercam e significam na forma de
paráfrases de um mesmo repetível. Neste artigo, temos como objetivo analisar os discursos
reproduzidos nos verbetes “mulher” e “homem” em seis edições distintas do Diccionario de
laLenguaEspanola (DLE) da Real Academia Espanola. Com base no corpus explicitado,
propomos observar os sentidos que se repetem na memória sobre o feminino e o masculino,
bem como a forma como se dão as mudanças na ordem da enunciação, a partir dos recortes
produzidos sobre as definições relacionadas aos dois lemas selecionados para este estudo. Nossa
análise está fundamentada nos estudos do campo da Análise de Discurso materialista e da
História das Ideias Linguísticas. Após a organização do corpus e pela análise empreendida,
pudemos compreender, na história e de modo comparativo, como os verbetes analisados
reproduzem lugares para os corpos femininos que os delimitam ao espaço doméstico,
contrariamente aos corpos masculinos, que podem ocupar, de forma legítima, o espaço público.
Palavras-chave: História das Ideias Linguísticas; Dicionário da Língua Espanhola; Mulher;
Homem.
Abstract: The way in which the feminine is enunciated rests on a memory of the condition of
“being a woman”, in our society, as opposed to “being a man”. Therefore, the sayings about
bodies permeate the various textualities surrounding us and signify in the form of paraphrases of
the same repeatable. In this article, we aim to analyze the speeches reproduced in the entries
“woman” and “man” in six different editions of the Diccionario de la Lengua Espanola (DLE)
of the Real Academia Espanola. Based on the explicit corpus, we propose to observe the
meanings that are repeated in the memory about the feminine and the masculine, as well as the
way in which changes occur in the order of enunciation, based on the clippings produced on the
definitions related to the two mottos selected for this study. Our Analysis is based on studies in
the field of Materialist Discourse Analysis and the History of Linguistic Ideas. After organizing
the corpus and through the analysis carried out, we were able to understand, in history and in a
comparative way, how the analyzed entries reproduce places for female bodies that delimit them
to the domestic space, contrary to male bodies, which can legitimately occupy the public space.
Keywords: History of Linguistic Ideas; Spanish Language Dictionary; Woman; Man.
Introdução
Por volta dos anos 1830, o sistema fabril absorveu muitas das atividades
econômicas tradicionais das mulheres. Claro, elas foram libertadas de
algumas de suas velhas tarefas opressivas. Ao mesmo tempo, porém, a
incipiente industrialização da economia minou o prestígio que as mulheres
tinham no lar - um prestígio baseado no caráter produtivo e absolutamente
essencial de seu trabalho doméstico até então. Por causa disso, a condição
social das mulheres começou a se deteriorar. Uma conseqüência ideológica
do capitalismo industrial foi o desenvolvimento de uma ideia mais rigorosa
de inferioridade feminina. De fato, parecia que quanto mais as tarefas
domésticas das mulheres eram reduzidas, devido ao impacto da
industrialização, mais intransigente se tomava a afirmação de que “o lugar da
mulher é em casa”.
Na verdade, o lugar da mulher sempre tinha sido em casa, mas durante a era
pré-industrial a própria economia centrava-se na casa e nas terras cultiváveis
ao seu redor. (...) O lugar das mulheres era mesmo em casa - mas não apenas
porque elas pariam e criavam as crianças ou porque atendiam às necessidades
do marido. Elas eram trabalhadoras produtivas no contexto da economia
doméstica, e seu trabalho não era menos respeitado do que dos seus
companheiros (DAVIS, 2016, p. 44-45. Grifos da autora).
os em redes de sentidos que trabalham pela memória dos discursos sobre a mulher nas
definições do DLE nas edições analisadas.
2. De A a Z , olhamos o M e retornam os p a ra o H
Em AD, o trabalho com corpus direciona nosso olhar e é nesse trabalho que
construímos nosso dispositivo teórico-metodológico. É na construção do objeto, no
procedimento de recortar (ORLANDI, 1984) e de de-superficializar o texto para
organizar as sequências discursivas que nós como analistas nos voltamos para a teoria
para questionar nosso objeto. Aguilar et al (2014) defende que o exercício de escolha do
corpus já é parte constitutiva da pesquisa, pelo que podemos entender que os gestos de
leitura e de seleção do corpus já fazem parte do procedimento analítico em AD. Com
base nesse pressuposto, seguimos os seguintes passos para a delimitação do corpus: (i)
seleção do corpus a ser trabalhado; (ii) escolha dos dois lemas na versão online do
Diccionario Histórico de la Lengua Espanola (DHLE) e, também na versão online do
Diccionario de la Lengua Espanola (DLE)3; (iii) seleção das edições a serem
trabalhadas: 1780, 1817, 1884, 1992, 2001 e 20204; (iv) nos dicionários, selecionamos
as definições referentes aos verbetes “mujer” e “hombre”; (v) e, por fim, a partir desse
gesto de organização, selecionamos as definições que mostraram regularidades, pelas
quais pudemos organizar o material em redes de sentidos identificadas em nossas
análises.
3O Diccionario Histórico de la Lengua Espanola (DHLE) é um acervo online que agrupa algumas
edições anteriores do Diccionario de la Real Academia Espanola. As versões presentes no site do DHLE
- que é de domínio da Real Academia Espanhola - apresenta as obras dos seguintes séculos e períodos:
1780, 1817, 1884, 1925, 1992 e 2001.
4O DLE atualmente está em sua 23a edição, datada de 2014, entretanto, sua versão digital é
constantemente atualizada. Considerando esta questão, utilizaremos a data de 2020 e não de 2014 em
nossa análise, pois tomamos como corpus a versão online atualizada no ano de 2020.
Q u a d r o 1 - M u lh e r c a s a d a co m u m h o m e m
D efin içã o S e q u ê n c ia d isc u r s iv a (S D ) A n o d e p u b lic a ç ã o
casada; Muger DLE (1780) SD1
marido; Se entiende regularmente por la que está c a s a d a , con relación al
m a r id o . Uxor.5
casada; Muger DLE (1817) SD 2
marido; Se entiende regularmente por la que está c a s a d a , con relación al
m a r id o . Uxor.
casada; Mujer DLE (1884) SD 3
marido; La c a s a d a , con relación al m a r id o .
casada; Mujer DLE (1992) SD 4
marido; La c a s a d a , con relación al m a r id o .
casada; Mujer DLE (2001) SD 5
marido; Mujer c a s a d a , con relación al m a r id o .
F o n te: Elaboração autoral.
Parece-nos interessante começar essa análise com a rede de sentidos que vincula
a mulher automaticamente a um casamento, pois este é um papel constantemente
imposto à mulher.
5A palavra Uxor tem origem latina e, segundo se lê no Dicionário Glosbe significa: mulher casada,
esposa. Disponível em: https://pt.glosbe.com/la/pt/luxor. Acesso em: 10 jul. 2023.
Q u a d r o 2 - H o m e m q u e é ca sa d o
D efin içã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
mí; Hombre DLE (1780) SD 6.
hombre; Marido, hablando la muger; y así se dice: m i H O M B R E hizo
esto, mi HOMBRE dixo lo otro. Vir.
marido; Hombre DLE (1817) SD 7.
. Entre el vulgo lo mismo que M A R ID O .
marido; Hombre DLE (1884) SD 8.
Entre el vulgo, m a rid o .
marido; Hombre DLE (1992) SD 9.
m. Entre el vulgo, m a rid o .
marido; Hombre DLE (2001) SD 10.
m. coloq. M a r id o .
F o n te: Elaboração autoral.
Q u a d r o 3 - O u tr o m em b r o
D efin iç ã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
esposa f. E sp o sa o p a r e ja fe m e n in a habitual, con relación al o tro DLE (2020) SD 11
parejafemenina; m ie m b r o de la pareja.
otromiembro
marido; m. coloq. M a r id o o p a r e ja m a sc u lin a habitual, con DLE (2020) SD 12
pareja relación al o tro m ie m b r o de la pareja.
masculina;
otro miembro;
F o n te: Elaboração autoral.
Q u a d r o 4 - D o n a d e c a sa
D efin iç ã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
cuida de su Muger DLE (1780) SD 13
hacienda y MUGER DE SU CASA
familia con . La que tiene gobierno y disposición para mandar y executar
mucha las cosas que la pertenecen, y c u id a d e su h a c ie n d a y
exacción; fa m ilia co n m u c h a e x â c c io n y diligencia. Mulier domi
sollicita.
Mujer en la Hombre DLE (1884) SD 14.
casa; El hombre en la plaza, y la m u je r e n la c a s a .
ref. que ensena que así como el hombre tiene, por lo regular,
que ganar para la vida fuera de su casa, la mujer debe cuidar
en ella de su hacienda.
cuida de su Mujer DLE (1817) SD 15
hacienda y MUGER DE SU CASA
familia con . La que tiene gobierno y disposición para mandar y
mucha ejecutarlas cosas que le pertenecen, y c u id a d e su h a c ie n d a
exactitud; y fa m ilia co n m u c h a e x a c titu d y diligencia. Mulier domi
sollicita.
cuida de su Mujer de su casa. DLE (1884) SD 16
hacienda y La que tiene gobierno y disposición para mandar y
familia con ejecutarlas cosas que le pertenecen, y c u id a d e su h a c ie n d a
Nesse quadro, estão descritas as sequências discursivas que fazem referência às tarefas
domésticas e ao cuidado com o lar. Comparecem tais dizeres em cinco das seis entradas
analisadas. No lema referente à versão atual do DLE, também foi encontrada essa
definição, mas com a marca de uso desus. Ou seja, que a mesma está em desuso, o que
podemos associar às transformações das relações históricas delineadas por outras
formas de dizer sobre a mulher, resultado das disputas históricas protagonizadas pelo
movimento feminista. Nesse embate de outras formas de dizer, é preciso destacar as
discussões que levantam autoras do feminismo negro, como Angela Davis (2016) e
Carla Akotirene (2020), referente às relações entre mulheres e trabalho. Enquanto havia
uma discussão propagada pelo feminismo sobre os direitos trabalhistas da mulher, tais
autoras destacam que esta não era uma questão para as mulheres negras, que sempre
ocuparam espaços fora dos seus lares, trabalhando no cuidado de outras famílias,
deixando, muitas vezes, o cuidado de seus filhos.
Q u a d r o 5 - T o r n a r -se m u lh e r
D efin iç ã o /D e n o m in a ç ã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
menstruar; Muger DLE (1780) SD 19
SER MUGER
. f. con que se explica haber llegado una moza á
estado de m e n s tr u a r . Viripo tentem ese mulicrem.
menstruar; Muger DLE (1817) SD 20
SER MUGER
. f. con que se explica haber llegado una moza á
estado de m e n str u a r. Viro matura.
Mujer DLE (1884) SD 21
pubertad; La que ha llegado a la edad de la p u b e r ta d .
Mujer DLE (1884) SD 22
menstruar; Ser mujer.
fr. Haber llegado una moza á estado de m e n str u a r
pubertad; Mujer DLE (1992) SD 23
f. La que ha llegado a la edad de la p u b e r ta d .
menstruar; Mujer DLE (1992) SD 24
ser mujer.
fr. Haber llegado una moza a estado de m e n str u a r .
pubertad; Mujer DLE (2001) SD 25
edad adulta; 2. f. mujer que ha llegado a la p u b e r ta d o a la
e d a d a d u lta .
menstruación; Mujer DLE (2001) SD 26
ser una nina o adolescente.
1. loc. verb. Haber tenido la m e n str u a c ió n por
primera vez.
edad adulta; 2. f. mujer que ha llegado a la e d a d a d u lta . DLE (2020) SD 27.
menstruación; ser mujer una nina o adolescente DLE (2020) SD 28
1. loc. verb. Haber tenido la m e n str u a c ió n por
primera vez.
F o n te: Elaboração autoral.
Q u a d r o 6 - T o r n a r se h o m e m
D efin içã o S e q u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
entrar a la Hombre DLE (1780) SD 29.
polla; HACERSE HOMBRE
. f. En el juego del hombre es lo mismo que e n tr a r a la p o lla .
In ludo chartarum pictarum pracipuas partes agere.
edad viril ó Hombre DLE (1817) SD 30.
adulta; . El que ha llegado a la ed a d v ir il o a d u lta .
edad viril ó Hombre DLE (1884) SD 31.
adulta; El que ha llegado á la e d a d v ir il o a d u lta .
edad viril o Hombre DLE (1992) SD 32.
adulta; m. El que ha llegado a la e d a d v ir il o a d u lta .
edad adulta; Hombre DLE (2001) SD 33.
3. m. Varón que ha llegado a la e d a d a d u lta .
edad adulta; 3. m. Varón que ha llegado a la e d a d a d u lta . DLE (2020) SD 34.
F o n te: Elaboração autoral.
Q u a d r o 7 - M u lh e r d a v id a a ir a d a
D e fin iç ã o S e q u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
ramera; Muger DLE (1817) SD 35
MUGER DEL PARTIDO
Lo mismo que R A M E R A . Mulier libera, velim
pudicae vitae.
prostituta; Muger DLE (1817) SD 36
ramera; MUGER PERDIDA
Q uadro 8 - H o m e m d a v id a a ir a d a
D e fin iç ã o S eq u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
Hombre; Hombre DLE (1817) SD 42.
gente; H O M B R E , G E N T E , MUGER Ó PERSONA
libre; DE LA VIDA AIRADA
guapo; . loc. fam. que se dice del que vive lib r e y
licenciosamente, y también del que se precia de
g u a p o y valenton. Perditus, balatro.
Hombre ó muger; H O M B R E Ó M U G E R DE MALA VIDA DLE (1817) SD 43.
. El vicioso y entregado a la vida licenciosa.
Luxuriosae vitae homo.
guapo; hombre de la vida airada. DLE (1884) SD 44.
valentón; El que se precia de g u a p o y v a le n tó n .
licenciosamente; hombre de la vida airada. DLE (1884) SD 45.
El que vive lic e n c io sa m e n te .
guapo; hombre de la vida airada. DLE (1992) SD 46.
valentón; El que se precia de g u a p o y v a le n tó n .
licenciosamente; hombre de la vida airada. DLE (1992) SD 47.
El que vive lic e n c io sa m e n te .
F o n te: Elaboração autoral.
Q u a d r o 9 - C o n h e c im e n to fe m in in o
D e fin iç ã o S e q u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
ciencias humanas; mujer de letras. DLE (2001) SD 48.
f. La que cultiva la literatura o las c ie n c ia s
h u m an as.
F o n te: Elaboração autoral.
O silên cio in dica que o sentido pode sem pre ser outro e, m uitas v e z e s, o m ais
im portante é aquilo que não se d iz (O R L A N D I, 1997). A m aterialidade
sign ificante do silên cio caracteriza-se co m o sendo diferente da m aterialidade
sign ificante da lin gu agem e é esse o principal fator que in flu en cia na m aneira
p ela qual se produz sentido. (PER EIR A , p A c ÍFICO e R O M Ã O , 2 0 0 9 )
Q u a d r o lO - C o n h e c im e n to m a sc u lin o
D e fin iç ã o S e q u ê n c ia d isc u r siv a A n o d e p u b lic a ç ã o
H om bre D L E (1 8 1 7 ) SD 49.
LITERATO ; HO M BRE D E LETRAS
. L o m ism o que L IT E R A T O .
sabio; H om bre D L E (1 8 1 7 ) SD 50.
artes; H O M B R E D E A M B A S Ó D E T O D A S SILLA S
facultades; . met. E l que es sa b io e n varias a rte s ó fa c u lta d e s.
Homo diversis scientiis doctus, peritus.
H om bre D L E (1 8 1 7 ) SD 51.
m ucho; H O M BR E LLENO
sabe; . m et. E l que sa b e m u c h o . Valdè sapiens
H om bre D L E (1 8 1 7 ) SD 52.
HOM BRE D E B U E N A S L E TR A S
B U E N A S LE TR A S; . E l versad o en letras hum anas. Litteratus, litteris
humanioribus politus.
H O M BR E; H O M B R E , SU G E T O , P E R S O N A , G E N T E D E D L E (1 8 1 7 ) SD 53.
P E R SO N A ; LETRAS
. E l d octo é instruido. Litteratus, eruditus.
instruído; hom bre hecho. D L E (1 8 8 4 ) SD 54.
facultad; fig. E l in str u íd o ó versad o en una fa cu lta d .
sabio; hom bre de am bas sillas. D L E (1 8 8 4 ) SD 55.
artes; fig . E l que e s sa b io en varias a rte s ó fa cu lta d es.
facultades;
buenas letras; hom bre de b u e n a s letra s. D L E (1 8 8 4 ) SD 56.
E l versad o e n letras hum anas.
Literato; H om bre de letras D L E (1 8 8 4 ) SD 57.
L ite ra to .
Considerações finais
Nesse artigo, tentamos percorrer um caminho de análise a partir das relações que
se sobrepunham nas textualidades, tomando como ponto de partida os verbetes
“mulher” e “homem” nas diferentes edições do DLE. Com essa forma de organização,
buscamos dar a ver as materialidades de forma sequencial, evidenciando as relações que
se estabeleciam na forma de paráfrases quando se tratava do lugar da mulher
imaginariamente projetado nas definições em tela. Na esteira dessa discussão, buscamos
mostrar como, de certo modo, o DLE repete lugares de memória do que é ser mulher e
institui um lugar diferente para o modo de ser homem. A esse modo de dizer é possível
sublinhar o funcionamento de formações discursivas que, por um lado, se apoiam no
Referências
AGUILAR, P; GLOZMAN, M; GRONDONA, A; HAIDAR, V. ^Qué es un corpus?In:
E ntram ados y perspectivas. Buenos Aires; Ano: 2014 vol. 4, p. 35 - 64.
DAVIS, A. M ulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo:
Boitempo, 2016.
PÊCHEUX, M. Sem ântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P.
Orlandi et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1988 [1975].
Resumo: O escopo desta pesquisa consiste na análise de descrições gramaticais do fa d’Ambô na obra
Gramatica Annobonesa (1957), escrita pelo missionário católico Natalio Barrena, no período colonial.
O fa d’Ambô é uma língua crioula falada maioritariamente em Ano Bom - ilha que compõe o território
da República da Guiné Equatorial, no Golfo da Guiné. É uma das quatro línguas que constituem a
família de línguas do Golfo da Guiné, junto às línguas santome, angolar (Ilha de São Tomé), e lung’Ie
(Ilha do Príncipe). Buscaremos, à luz da historiografia linguística (SCHUCHARDT, 1979; GRANDA,
1986; BATISTA, 2005; ALTMAN, 2011; POST, 2013; FERNANDES, 2015):(i) situar a Gramatica
Annobonesa (1957) entre obras de tradição gramatical missionária como uma das últimas publicações
(e talvez a última) deste tipo, marcada pela transposição do protótipo gramatical renascentista, em
conformidade à posição paradigmática do modelo greco-latino (cf. AGOSTINHO 2021); (ii) atentar
para as peculiaridades da obra ante a gama de trabalhos produzidos por missionários considerando que
não há um modelo greco-latino único (ALTMAN, 2011); e (iii) compreender de que forma os
fenômenos linguísticos do fa d’Ambô são classificados, a fim de fornecer hipóteses acerca do olhar do
autor sobre a língua, ou seja, a concepção de língua implícita nas descrições.
Palavras-chave: fa d’Ambô; línguas crioulas; linguística missionária; historiografia linguística; Golfo
da Guiné.
Abstract: The scope of this research consists of analyzing grammatical descriptions of fa d’Ambô in
the book Gramatica Annobonesa (1957) written by Catholic missionary Natalio Barrena during the
colonial period. Fa d'Ambô is a creole language mainly spoken on the island of Ano Bom, which is part
of the territory of the Republic of Equatorial Guinea in the Gulf of Guinea. It is one of the four languages
that make up the Gulf of Guinea language family, along with Santome, Angolar (São Tomé Island), and
Lung’Ie (Príncipe Island). In light of linguistic historiography (SCHUCHARDT, 1979; GRANDA,
1986; BATISTA, 2005; ALTMAN, 2011; POST, 2013; FERNANDES, 2015), we will: (i) position the
Gramatica Annobonesa(1957) among missionary grammatical works as one of the last publications
(and perhaps the last) of this kind, marked by the transposition of the Renaissance grammatical
prototype, following the paradigmatic position of the Greco-Latin model (cf. AUTHOR, 2021); (ii) pay
attention to the peculiarities of the work in relation to the range of works produced by missionaries,
considering that there is no single Greco-Latin model (ALTMAN, 2011); and (iii) understand how
linguistic phenomena of Fa d’Ambô are classified in order to provide hypotheses about the author’s
perspective on the language, in other words, the implicit conception of language in the descriptions.
Keywords: Fa d’Ambô; creole languages; missionary linguistics; linguistic historiography; Gulf of
Guinea.
Introdução
3 Silviano Santiago aborda, em sua análise da carta de Pero Vaz de Caminha (1500), os fatores de “dívida e posse”,
que permeavam as relações entre a coroa portuguesa e a Igreja Católica durante as grandes navegações. A bula
Inter Caetera de 1456, assinada pelo papa Calisto III, “doava” ao rei Dom Manuel I de Portugal as terras
descobertas pelos navegadores. Desse modo, a apropriação de novos territórios por Portugal correspondia também
ao alargamento dos domínios da Igreja Católica, uma vez que tal prescrição pressupunha a conversão dos
habitantes das novas terras ao Catolicismo. Cf. SANTIAGO, Silviano. Destinos de uma carta. In: Ora (direis)
puxar conversa! - 1a. edição. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2006, p. 229 - 245.
Nesse sentido, Altman (2011) assinala que a historiografia linguística canônica teria
relativizado a contribuição da tradição missionária até pelo menos metade do século XX. No
século XVI, há registros de 212 trabalhos realizados por missionários no continente americano,
número que cresce ainda mais se incluirmos descrições de línguas africanas e asiáticas
(ALTMAN, 2011), atribuindo, assim, contribuição relevante aos estudos gramaticais por parte
da tradição de linguística missionária. A autora assevera que
No tocante ao fa d’Ambô - língua crioula que permanece sendo plenamente falada pelos
habitantes da Ilha de Ano Bom, no Golfo da Guiné - duas gramáticas foram escritas no final
do século XIX, após a chegada de missionários espanhóis na Guiné Equatorial, na época
colônia da Espanha (chamada de Guinea Espanola), a saber: Elementos de La Gramatica Ambú
o de Annobón, escrita pelo Padre Isidro Vila, e publicada em 1891, em Madrid; e a Gramatica
Annobonesa, de Padre Natalio Barrena Merino, publicada postumamente em 1957 também em
Madrid. Ambos os autores supracitados eram congregados à ordem dos Missionários Filhos do
Imaculado Coração de Maria (em espanhol: Congregación de los Misioneros Hijos Del
Inmaculado Corazón de María). Não obstante, não há trabalhos de historiografia linguística
anteriores empenhados na análise dessas obras. Quando citadas, o são em trabalhos de
linguística histórica e de linguística formal que têm como foco o estudo da própria língua. Neste
ponto, a invisibilidade dessas obras por parte da historiografia linguística se atenua ao fato do
fa d’Ambô ser pouquíssimo estudado. As gramáticas de Vila e de Barrena, bem como os
trabalhos da Congregação Claretiana, não aparecem citados em obras dedicadas à historiografia
da linguística missionária.
As gramáticas missionárias do fa d’Ambô são importantes documentos da história da
linguística. O estudo dessas obras permite revisitarmos constantemente a história da disciplina,
revisar a sua historiografia e, consequentemente, repensar as metodologias científicas e a
concepção que delineamos sobre o objeto, seja a história da linguística ou a língua propriamente
dita, ontem e hoje. Um estudo sincrônico implica sempre em diacronia. Hovdhaugen argumenta
que não há razão para presumir que a estrutura e a importância das gramáticas missionárias foi
sempre a mesma durante séculos (1996, p. 19).
1. M ateriais e métodos
Utilizamos, para a análise aqui empreendida, a segunda edição da Gramatica
Annobonesa, publicada em 1957, em Madrid4. Não tivemos acesso à primeira edição. Madeira
(2008) informa que a primeira edição é mencionada por Streit & Dindinger, no Almanaque
(1923), sem mais detalhes (apud REINECKE et al. 1975, p. 94). Consideramos parâmetros
4 Sendo uma cópia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Faculdade de Letras. Ficha: BARRENA,
RVDO. P. Natalio. Gramatica Annobonesa. 69-38.778. 496 B271g. Ver anexo A
internos e externos de análise5 (BATISTA, 2013), sendo que, em relação aos parâmetros
externos, analisamos uma série de documentos missionários da Ordem Claretiana, à qual
pertencia Barrena, em especial a Revista La Guinea Espanola (contemporânea da produção da
Gramatica Annobonesa) publicada entre 1903 e 1969. A importância da investigação desses
documentos se faz a partir das considerações de Hovdhaugen, que argumenta que é na área da
linguística missionária é necessário investigar e reunir todas as fontes disponíveis, tais como
manuscritos, cartas, diários, entre outros (HOVDHAUGEN, 1996, p. 19).
Sem pretender esgotar o trabalho investigativo, a análise historiográfica recorta eventos
históricos para que possa então interpretá-los (BATISTA, 2013). Tais eventos podem ser de
natureza científica, religiosa ou mitológica, uma vez que o adjetivo “linguística” não se
restringe à Ciência Linguística moderna, podendo abarcar os mais variados saberes acerca da
linguagem desenvolvidos ao longo da história (BATISTA, 2013). O objeto da historiografia
linguística não é a língua, mas sim a forma como a língua foi apreendida, estudada, e explicada
pelas comunidades de saber (BATISTA, 2013).
O fazer-narrativo da história da linguística requer, na medida em que figuramos o
conhecimento como uma “realidade histórica”, da ordem de uma “ [...] temporalidade
ramificada da constituição cotidiana do saber” (AUROUX, 1992, p. 11), a proposição de
correspondências entre parâmetros internos e externos de análise (BATISTA, 2013, p. 74), e,
portanto, intenta olhar para as circunstâncias de tempo e de lugar do narrado. As tradições
linguísticas devem ser analisadas a partir do seu próprio recorte sócio-histórico e cultural, sem
fixá-las dentro de uma linha de tempo progressiva, onde as ideias linguísticas de lugares,
tempos e recursos diferentes se anulam, ou são pensadas como mais ou menos nobres de acordo
com as posições que ocupam na linha cronológica. Estamos tratando do efeito de um recorte,
“o historiógrafo recorta, seleciona e hierarquiza fatos da corrente histórica” (BATISTA, 2013,
p. 47). Assim, buscamos trechos que evidenciassem a visão de língua e de gramática de
Barrena, bem como exemplos linguísticos específicos do fa d’Ambô, a fim de observar a
maneira como o autor descreve a língua.
5 Os parâmetros externos de análise dizem respeito ao contexto sócio-histórico, cultural, político e econômico no
qual a obra foi construída, enquanto os parâmetros internos de análise tratam do conteúdo da obra, tais como as
descrições gramaticais.
6 Professor catedrático de filologia portuguesa da Universidade de São Paulo. BUENO, Francisco da Silveira.
Gramática normativa da língua portuguesa. Livraria Acadêmica, Saraiva & Cia. São Paulo, 1944.
nomenclatura não representa um conjunto homogêneo de trabalhos, contudo, diz ser possível
estabelecer alguns parâmetros prototípicos de uma gramática missionária (1996, p. 15), a saber:
as línguas descritas não são línguas nativas dos missionários, e a gramática se caracteriza por
ser sincrônica e pedagógica, e abrange os níveis fonológico, morfológico e sintático baseado
em dados coletados de um corpus oral, e em alguns casos de textos religiosos traduzidos.
2. O fa d ’Ambô
O fa d’Ambô é uma língua crioula falada majoritariamente em Ano Bom - ilha que
compõe o território da República da Guiné Equatorial, no Golfo da Guiné. É uma das quatro 7
7 Atualmente, o termo continuum é usado para descrever níveis de crioulização que variam entre o que seria a
língua crioula, formas intermediárias (mesolectal varieties) e a língua lexificadora, uma vez que, muitas vezes,
línguas crioulas são faladas dentre as mesmas extensões geográficas que as línguas lexificadoras (MUYSKEN,
SMITH, 1994).
línguas que constituem a família de línguas crioulas do Golfo da Guiné, junto às línguas
santome (ou forro), angolar (Ilha de São Tomé) e lung’Ie (Ilha do Príncipe) (ARAUJO et al.,
2013).
O processo de colonização do Golfo da Guiné iniciou no final do século XV, mais
precisamente em São Tomé, onde se atribui também o desenvolvimento do protocrioulo do
Golfo da Guiné, que, posteriormente, deu origem às quatro línguas que compõe o tronco
linguístico do Golfo da Guiné: santome (ou forro), angolar, lung’Ie e fa d’Ambô (BANDEIRA,
2017).
Há divergências teóricas em relação ao processo de crioulização no Golfo da Guiné.
Cosme (2014) defende que o santome seria a continuação do protocrioulo, e que o processo de
especiação das outras três línguas teria ocorrido a partir do santome. Por sua vez, Bandeira
(2017) defende, em seu trabalho de reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo
da Guiné, que as quatro línguas crioulas foram originadas diretamente do protocrioulo do Golfo
da Guiné:
‘La lengua de estas gentes parece derivada del idioma de Sto. Tomé; pues he tenido
ocasión de oir hablar á los naturales de la referida Isla con los de Annobón, cada uno
em su lengua, y se entendian bastante bien em casi todo á no ser em algunas palabras
que eran diferentes. Lo cual no es nada de extranar, supuesto que esta Isla de Annobón
hubiera sido poblada con los habitantes de aquèlla.’
Outra menção sobre a similaridade entre as línguas crioulas do Golfo da Guiné data do
século XVIII. Hagemeijer (2009, p. 5) cita que:
‘Matos (1842) foi o primeiro a identificar formalmente o parentesco entre três das
quatro línguas crioulas, afirmando que o lung’Ie é “quasi o mesmo, que o de S.
Thomé, ajuntando-lhe maior numero de termos africanos”, ao passo que “o dialecto
da Ilha de Anno Bom é o mesmo que o de S. Thomé, mas com uma pronunciação
gutural semelhante à dos Arabes”’ 9
8Muito embora só tenhamos dados históricos a respeito de uma nova língua em São Tomé a partir do século XVII.
Cf. SANDOVAL, Alonso de. 1987 [1627]. De instauranda aethiopum salute. Un tratado sobre la esclavitud.
Introdução e transcrição de Enriqueta Vila Vilar. Madrid: Alianza Editorial. Apud HAGEMEIJER, Tjerk. As
Línguas de S. Tomé e Príncipe. Revista de Crioulos de Base Lexical Portuguesa e Espanhola 1:1 (2009), 1-27
ISSN 1646-7000.
9 A “pronunciação gutural” a que Matos se refere é a fricativa velar [x], que não ocorre nas línguas-irmãs do fa
d’Ambô.
10 Órgão público espanhol responsável pelo fomento de ciência e tecnologia, fundado em 1939. Informações
disponíveis em www.csic.es.
11 O site Fondo Claretiano disponibiliza um acervo de fotografias digitalizadas do período colonial da Guiné
Equatorial. Uma das fotografias do acervo indica a presença de Natalio Barrena a partir da seguinte legenda: “La
Comunidad misionera de Banapá y representantes de la comunidad de Santa Isabel celebrando los 30 anos de
estancia seguida em lãs misiones del P. NATALIO BARRENA, llegado el 19-7-1892. También estuvieron
presentes los empleados de la finca "La Vigatana" y el Sr. Vizoso”. Disponível em
http://bioko.net/claret/displayimage.php?album=1&pos=12.
12 As datas de nascimento e falecimento do autor são informadas no seu (também póstumo) Catecismo de la
doctrina Cristiana del V. P. Antonio María Claret; traducido al fa d'ambô. Editorial Del Corazón de María.
Madrid: 1928.
i. Prólogo, escrito por Antonino Jimenez, seguido das Breves notas da Ilha de Ano Bom
e suas coisas, de Epifanio Doce;
ii. Preliminares: Apresenta a definição de ‘gramática’;
iii. As descrições linguísticas estão divididas em 45 lições, e cada uma delas contém
exercícios para tradução;
iv. Ortologia: alfabeto, pronúncia das vogais e das consoantes, ditongos e consoantes
duplas;
v. Analogia : partes da oração, o artigo, regras para o uso de artigo indeterminado “a”, “ua”
e “zugua”;
vi. Apêndices; catecismos em fa d’Ambô para exercícios de tradução em espanhol.
. GRAMATICA ANNOBONESA
. i
PRELIMINARES
D EE IbT IC IO N .—G ram ática annobcnesa es d arte de hablar y escribir co
rrectamente la leiigua de Anrtobón, o sea el fa d' Ambô, com o elk>s dicen.
o r t o l o g í a
'• A L F A B E T O
E l alfabeto annobonés consta d e vcin tisiete letras, que son las m ism as dei
espanol, a excepción de Ia ü y rr.
L E C C IO N I ■ j
Essa noção também está presente na obra de Vila (1891), na qual define gramática como
“a arte de falar e escrever uma língua com propriedade e correção” (VILA, 1891, p. 05). As
noções de “certo” e “errado” na língua são observáveis desde a antiga civilização védica, ao
que diz respeito às relações entre estudos gramaticais e religiosidade. O sânscrito clássico,
sistematizado gramaticalmente por Pânini (circa 520 a.C - circa 460 a.C), foi fixado como
“língua perfeita” 13 - samskrta, “acabado”, “perfeito” - e opunha-se às prakritas, línguas indo-
13 O conceito de “língua perfeita” é, na verdade, equivocado, pois cada língua possui suas idiossincrasias, e os
juízos de valor que lhe atribuímos são, na verdade, de caráter social.
arianas, faladas no subcontinente indiano. Stella (1960, p. 147) informa que a ideia de uma
Rãmãyana) epopeia literário-religiosa atribuída a Valmik entre os séculos 500 e 100 a.C. A
gramática, concebida como um sistema de regras, visava conservar a sacralidade das escrituras
sânscritas e configurava a posição literária da língua. Aqui, uma língua universal e pura
(sublime) orienta-se no sentido de prescrever o uso correto da língua (o sânscrito) em oposição
às formas “incorretas” :
‘In India the foUowers of the Vedic tradition have always kept Sanskrit, the language
of the Veda, in high regard. Sanskrit is the only correct language, other languages
being incorrect. Patanjali's Vyãkarana-Mahãbhãsya (ca. 150 B.C.E.), in its first
chapter called Paspasãhnika, distinguishes clearly between correct and incorrect
words, pointing out that many incorrect words correspond to each correct word;
besides correct gauh there are many incorrect synonyms: gãvi, goni, gotã, gopotalikã,
etc. There are various [397] reasons for using correct words only, the most important
being that this produces virtue (dharma) and benefit (abhyudaya). Correct words are
in fact used in many texts and regions; Patanjali mentions the earth with its seven
continents and the three worlds, which shows that for him Sanskrit is the language of
the universe. Sanskrit is also eternal. The reasons adduced to prove this may seem
primitive to us, but they leave no doubt as to Patanjali's convictions’.
(BRONKHORST, 1993, p. 01)
melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma, ainda que ela
agora tivera sua valia epreço’"(Oliveira, 1975 [1536], p. 42).
14 No mesmo parágrafo, diz o autor que, no caso das meninas, houve resistência por parte dos mais velhos em
deixá-las aprender espanhol, resultando que, após muitos anos de missão, encontram-se poucas mulheres falantes
de espanhol. E ainda: “Como no han de salir de la Isla no les interessa el calentar de sus cabezas, com lengua
que no han de usar ”.
15Segundo Echegaray (1999, p.10), a comunidade de Santa Isabel recebeu a primeira prensa em 1901, ano de
fundação da revista El Eco de Fernando Póo, publicada somente até a sétima edição devido à quebra do
equipamento de impressão. O Fondo Claretiano informa que a primeira prensa chegou em Fernando Póo em 1899,
trazida pelo Governador D. José Rodriguez de Vera, para a impressão do folheto comemorativo da colocação da
primeira pedra da catedral. Disponível em: www.bioko.net/guineaespanola/laguies.htm.
(1992, p. 35) chama de gramatização massiva , processo de gramatização a partir de uma mesma
tradição linguística, o modelo greco-latino. Ainda que a maior parte do léxico do fa d’Ambô
seja de origem portuguesa, trata-se de uma língua de tipologia gramatical diferente das línguas
indo-europeias. Assim, o fa d’Ambô não se encaixa no modelo pré-definido.
As referências aos casos latinos presentes no texto, como na lição VII, que trata de
declinação, são exemplos de influência gramatical greco-latina. Ainda que o fa d’Ambô não
tenha declinação, como o próprio autor comenta ao escrever que “para conhecer os casos do
nome em fa d’Ambô, há que olhar ao lugar que ocupa na frase”, o autor faz uso dessas
nomenclaturas para se referir à sintaxe, o que é comum na maioria das gramáticas escritas até
o início do século XX. Essa referência aos casos latinos marca a influência da tradição
gramatical renascentista, que procurava transpor o modelo greco-latino, mesmo em gramáticas
de línguas de tipologia diferente. É como se o autor usasse uma estrutura gramatical pronta, um
paradigma, e o trabalho de descrição do fa d’Ambô fosse subordinado à essa estrutura. Dito de
outro modo, Barrena parece encaixar os fenômenos linguísticos “inéditos” que observa em
outra estrutura - de outra língua, como podemos observar na Lição XVII que trata da
declinação:
F igu ra 2 : L ição V II
L E C C I O N V I I
DECLINACION , .
" V -*■ ‘ * • ; . - - ' . ' -
’ ' D E F IN IC IO N .— Dedinación es la serie ordenada de los casos.— Para cono-
cer d caso dei nombre en fa d' Ambô, hay que mirar el lugar que ocupa en !a fra
se, por ei poco uso que hacen de preposiciones, que lo indiquén.
’ E l nominativo, acusativo y vocativa.pocas dificutóades ofrecen. v
. , De d a t i v o i * .
El dativo en espaüol, en fa d’ Ambô &e traduoc tm a s veces coa la preposición
da (para) y otras con las preposiciones de genitivo; v. gr., y otras sia preposición:
Te vendo este tabaco para tu pàdre . M'vende tabacu say da pebo. .
Toma este libro para tu hermano . . Ma livulu say da narnen bt>. - "
La caTabaza para çl hombre.............. Ojó nápay, o ji nápay. ... •
Los perros para los criados".’- . . . Jasólo nan tusu, o ji nan túsu. «■
Yo doy a ti yuca (pan de yuca) . . M’da ba paxiója.
• ■ . , De a b l a t i v o ;
Este caro, pocás di-fieultades ofrece; pucs basta saJbcr emplear las preposiciones
que suek.i tisarse. 7
La prepcéición con se traduce por cu, jo, ji; v. g r . : Juegas con cl gato. BtTfugá
cu gátu.
. Paseas con tu amigo. Bo pasiá cu jamada bc. ■" •
Tú vas con él.— Bo ba joT.
F igu ra 3 : L ição X X II
L E C C I O N X X I I ' *
3 1 Todas las personas de cada tiem po so n iguales, y tom adas dei in fin iti
vo, sin otra d iferencia que Ia dei pronombre o sujeto.
■ „ ■' . ' í
i C o n j u g a c i ó n • -
V erdad es que un m ism o tiem po admite' varias form as, pero siempre
son las m ism as, y n o son d ificiles.
D el verbo sa, ser, o estar, y de la partícula ja; <v. g r . : y o lloro, tú Horas, etc.,
etcétera. M’ sa ja svl&; bo sa ja svlá; él sa ja sidá; non sa ja sulá; nameseji sa
ja súlá; ineni sa ja sulá. ' ' . ■ ' ' . -
2 ." E l pretérito p erfecto lo form an dei in fin itivo precedido dei pronombre
, o su jeto y seguido d e la s partículas r a o eza; o beza; y. g r . : y o lloré o h e llorado,
M ’ sula za o eza; o beza. . . „
■44
De fato, o fa d’Ambô - assim como as suas línguas irmãs santome, lung’Ie e angolar -
não apresenta morfologia flexional nos verbos. Em fa d’Ambô, as noções de tempo, modo e
aspecto são dadas a partir de partículas pré-verbais. Nos verbos de ação, por exemplo, a
ausência de marcação denota tempo passado e aspecto perfectivo:
(1) Bo bê pixokho.
2SG ver pixokho 16
‘Você viu o p i x o k h o (AGOSTINHO et a l 2019, p. 7, modificado)
L E C C T O N X X I I I
Verbo SER o ESTAR sa (jim ).
N o so tr o s é r a m o s o e s t i b a m * n o í « “ « “ U á ^ b e ia
V o so tr o s e r a is o ftstáh ak sa ?a ’ eza’ b e?a*
e i 1m s & s 2 .M r
Pretérito perfecto.
, (Primera forma.)
Y o fu i o e s tu v e ........i,...................... .
ursa.
T u fu js w o e s tu v iste ....................
bo sa.
E l fu é o e s ta v ' 0 ........... .. ............................. ..
í l sa.
N o s o tr o s fu im o s o estuvim oB non sa.
V o so tr o s fui&teis o e s tu v is te i 3 .........
E llo s fuercwi o e stu v ier o n ........
nameséji sa
ineni sa.
(SeR-Jixia: forma.)
Tú hC/ Íd?, 0 hÇ,«tado-.i m'ia za, ezá, beza.
*^ f^4* ^ h-as sido o ha-s
gltí ô«^»;h;7MiVhr«üo':::
Nosotros fuuuos o estuvimos, hemos
à° ” 2’ S ' t s
Sido O Iremos estado .......................... non sa zlj <zâj beza .
46
Tal redundância se deve ao objetivo pedagógico da gramática - uma vez que todo o
contexto que a rodeia aponta que o público-alvo era o grupo de missionários - , mas
principalmente para a tentativa de gramatização do fa d’Ambô a partir da tipologia linguística
greco-latina.
Em relação ao que denomina verbos regulares, Barrena apresenta mais de uma forma
para cada categoria de tempo do indicativo da gramática tradicional. Há, por exemplo, três
formas para o presente e três para o pretérito imperfeito, conforme pode ser observado na
imagem a seguir:
F igura 5: Lição XXVIII
i . L E C C I O N X X V I I I
Como va queda indicado todos los verbos regulares de esta lengua, cualquie»
ra sea su terminación se reducen a u na sola conjugación. '
MODO IN D IC A T IV O >1 :
(Segunda forma)
Yiói ÜOrO ‘.......... ........... tifja s u lá . ,
Tu Horas ..... . ....... ” . . . b o j a s u lá .
El IJora. .............. ................ é! j a s u tá .
N osertros lloramo s .......... n o n jm s u lá .
Vosotro-s llorái-s ... ............... n a m e s é ji j a s c lá .
Eli os Otírau. ........... ............ . ' i n e n i j á s u lá .
(Tercera forma)
Y o Uoro.................. ................ n p s u lfe . •.
T t i Jlo.ras ................... . ■ ■ ■ - ....... b o s u lá .
EI Hora ................. ......... éí sujá.
Nosotrds lloramo-s ■■■■■■■* .■ non sulá.
Vosotros Itoráis .... .......... n a m e s é ji s u lá .
Ellos Ikvram ......... ~ ~ ..... ’ ineííi sulá.
Pretérito imperfecto .........
t P r i m c a ferm a) .. 1
Yo Jloraiba .............. .............. n ^ s u lá . .
T ú llorabas ........ ............. b o s u lá , ■
El Horaba. ....... ........ é l s u lá ,
N osotros lloTábamos ......... n c u fs u lá .
Vosotros dlorábais . .......... nameséiji sulá.
Ellos lloraban ....... .............. i n e ã i S u lá :
(Segunda, forma.)
-Yo Iloraba m ’s a j a s u lá .
Tú llo ra b a s ............ ■............ . b o sa j a s u lá .
El Iloraiba .............. ............ ' é l sa, j a s u lá .
Nosotras llorabamos ........ non sa ja sulá.
Vosotros llorábais ., ............. . n a m e s é ji s a j a s u lá .
EJlos lloraban ..... . . . . . . . . . . .. i n e n i s a j a s u lá .
(Tierccra fgnna.)
Yo Jloraba ............... ............ m ' j a s u lá .
j Tu llorabas .......... ............ b o j a s u lá .
El Ilovaba ....... ......... él ja sulá. ! .
Nosotros llorábaimos ......... . lon ja sulá.
Vosotros llorábais ,, ....... nameséji sulá.
Ellos lloraban ......... ineni ja sulá.
F ig u ra 6: Lição II
L E C C I d tf X L -
1
CONCORDÂNCIA
fU K C U K U A M U A E • W -£ f
-r ■ . •". -tjr. • :
‘ DEiFINICION.—Concordância es la conformidad de accidentes que an
entre sí las -partes variables de la oradón. - ' : x '
f . . . . . :
DIVrSION.—Hay en espaúol tres clasés de concordância a saber , 5*
, ' • ■'. ' . ' • ' , •'h’■?
j « Dg nombre y adjetivo o artículo O pronombre o partidpio. ' i >£jj
2.* Dc sujeto y verbo.
.3.* De relativo y antecedente . ~. 4
En fa d’A m b ô poca cosa bay‘que decir de cada una de ellas, -pües, como se'-* .
dijo en la Analogia los nombres, excepto los de personas, careceu de plural; el-í ^
adjetivo; excepto el demostrativo que tiene plural, también carece de gqnèro j:A -%
núfneío, y el caso no crea dificidtad: d verbo es en todas iás personas de cadá
ti(Mnpo lo mismo, cambiando só!o'el:\ u jéto 0 pronombre ; y así ba^tarán/algunas >"/
observaciones para mayor claridad y facilitar con algunos ejemplos^àrcomposb
cióu y traducción de esta léngua. -<• ' : ’ - , T ,,
17 “O verbo é o mesmo em todas as pessoas de cada tempo, mudando apenas o sujeito ou pronome” (tradução
nossa).
F ig u ra 7: Lição II
3.3. Público-alvo
Em Barrena (1957), o teor pedagógico da obra - destinada à própria comunidade
missionária - é evidente. Além da redundância presente nas descrições linguísticas da língua,
como no já comentado caso do paradigma verbal, as comparações ao espanhol são constantes
na obra, como nos fragmentos expostos abaixo:
a) Alfabeto: “O alfabeto annobonés consta de vinte e sete letras, que são as mesmas
do espanhol, com exceção do ll e rr” (p. 17).
b) Consoantes simples: “Pode-se afirmar que, com exceção de quatro consoantes: j, v,
x, z, todas soam ou se pronunciam como em espanhol” (p. 19).
c) Partes da oração: “As partes da oração em fa d’Ambô são dez, como no espanhol, a
saber: artigo, nome substantivo, nome adjetivo, pronome, verbo, particípio,
advérbio, preposição, conjunção e interjeição” (p. 20).
Na realidade, usar a própria língua nativa como referência servia como maneira de
facilitar o aprendizado da língua estrangeira alvo. Somado a isso, há vários exercícios de
tradução espanhol - fa d ’Ambô ao longo da gramática:
• . EJERCICIOS PRACTICOS
I. iQ u ié n h a h e c h o esto ? r. jQ u e n g u e fe jo sa y ?
2; Y o h e .h e c h o e s t a c a s a y M a n u e l 2 . M ’f e j a j i s a y s e M e n é f e is a lá .
a q u é lla . # 3 . F a j a ta is a y s a g a v i m a i x c u is a y
3. E s te p a p el es m ejo r q u e é s e q u e sa cu b ó , m a n ji © pá sq u e v é sa y
t ú t je n e s , p e r o e s a p lu m a v a m e - sa g a v i m a ix c u is a y .
jo r q u e é s ta . " 4 . N a m i n a d o s n e n s a y sa g a v i m u it u ,
4. E s t o s d o s n in o s sem m u y b u e n o s , is a y s a la v a m a . isai á s a c h ig u e s u .
é s t e e s e s p a ü o l, a q u é l p o r t u g u ê s . 5 . J o x i b o f a lá s e s a i x i q u e m ’m a s n i .
5. L o q u e d ic e s e s lo q u e y o p e n s a b a . 6 . i B o jo n s é n a n g u e n e n sa y sa ja bi
5. í C o n o c e u s te d a l o s q u e v i e n e n ? ■ yay?
7 . S i, s e n o r , s o n l o s q u e e s t u v i e r o n 7 . X u é , se s a n a n g u in e n x l s ta ja ji
a y e r en- n u e s t r a c a s a . n o o n te .
8 . E se q u e ves e s m i h erm a n o , y el 8 . I s a y c u b o sa ja b e sa n a m é m u se
• • q u e l e a c o m p a n a es el d e J u a n . n g u i x i j o ’l s a j a b a y s a ji Z u á .
9 É l q u e e s t u d ia a p r e n d e r á , y e l q u e 9 . N g u i x i sa ja le , q u e x i n á m u it u , s e
es p e r e z o s o s e r á s ie m p r e u n tontcn. n g u ix i sa p is c ü z u q u e s a d a n a -
10. E s o s q u e t a n t o h a b la n , s o n lo s d u t u jía .
m á s ig n o r a n t e s . 10 . N a n g u é n e n sa y sa ja fa m u n ta y i
11. N o o lv id e s esto- p o r a q u e llo . s e s a d á n a jd u m a ix c u t u d u .
12. 'E s te s o m b r e r o e s e l d e m i h e r m a 11 . B o n a q u e s é j o s e f d i'p 4 a f .
n o y a q u é l el d e P e d r o ; e l d e J u a n 12 . fB é te s a y s a ji n a m é m u , s e is a lá
lha d e s a p a r e c id o . sa ji F é d u lu ; ji Z u á p en d é.
(p. 93).
A gramática de Vila (1891) também evidencia a comunidade claretiana como o público-
alvo do trabalho missionário. Vila inicia o prólogo apresentando o fa d’Ambô como uma língua
que oferece pouca dificuldade de aprendizagem, não sendo necessária a elaboração de um
“tratado extenso sobre este idioma”. E segue dizendo que:
Las reglas sensillas y breves, que con el nombre de Elementos tenemos el gusto de
ofrecer á nuestros Hermanos, y la ayuda de un pequeno diccionario que tenemos ya
comenzado, y con el favor de Dios no tardaremos mucho en concluir, serán, á nuestro
parecer, suficientes para que, el dia que a obediencia los envíe á esta Isla, entiendan a
los indígenas, y no tengan necesidad más que de perfeccionarse la pronunciación con
su trato para hacerse entender de ellos. La facilidad de este idioma proviene de su
mucha semejanza con el português, del cual ha tomado muchas palabras, pudiendo en
verdad decirse que el ambú actual no es más que una amalgama del primitivo con el
português’18 (VILA, 1891, p. 05)
‘It is significant that Portuguese and Spanish missionaries never compiled grammars
or dictionaries of the varieties such as pidgins and creoles that resulted from contact
with European languages: they were interested in independent “natural languages”
which had not been corrupted by linguistic contact’. (ZWARTJES, 2011, p. 13)
18 Sobre o “pequeno dicionário” citado por Vila, referências apontam para a existência de um dicionário “espanhol
- fa d’Ambô e fa d’Ambô - espanhol”, de autoria de Natalio Barrena, datado de 1928 (STREIT & DINDINGER,
Almanaque 1923, in: REINECKE et al., 1975, p. 94 apud MADEIRA, 2008, p. 07, 126). Como não há quaisquer
outras informações a respeito de possíveis exemplares, não é possível precisar que se trata do mesmo dicionário
que Vila menciona, senão estimar com base nas datas de chegada do autor em Ano Bom e de seu falecimento, já
mencionadas.
19A Arte da Língua de Angola (1697), escrita pelo jesuíta Pedro Dias, também tinha como público-alvo à própria
comunidade da Companhia de Jesus (ROSA, 2013).
p. 1).
(ii) Utilizam o modelo greco-latino: (t)hese grammars are modeled according to the
traditional Greco-Latin framework (...) In the New World, Asia, and elsewhere,
missionaries had to find an adequate methodology in order to describe
typological features they had never seen before” (2018, p. 1).
O teor pedagógico e o público-alvo descritos nesta seção são indicativos de que a obra
corresponde às características de gramáticas de tradição missionária descritas por Hovdhaugen
(1996).
Assim, corroboramos Agostinho (2021), e consideramos a gramática de Barrena como
um raro exemplo (e talvez o único) de uma gramática missionária de uma língua crioula.
Ademais, sugerimos que essa obra seja uma das últimas gramáticas missionárias, ou talvez a
última.
Considerações finais
A forma como Barrena (1957) conceitualiza o termo gramática, como “arte de falar e
escrever”, nos indica, logo no início de sua obra, a influência da tradição gramatical greco-
latina do renascimento, que buscava padronizar a língua nacional em busca de promover a
unidade linguística da nação, em oposição ao latim, que vigorava como língua oficial, política
e literária. No caso do fa d’Ambô, a influência gramatical caracteriza-se somente no que diz
respeito à descrição linguística, e não ao contexto da elaboração da gramática. Em outras
palavras, a missão claretiana trabalhava a serviço do governo espanhol, empenhada tanto em
transmitir a fé católica (vigorante em Espanha) aos habitantes de Ano Bom, quanto em ensinar-
lhes o espanhol. Os exemplos e comparações do fa d’Ambô com o espanhol demonstram o teor
pedagógico da obra, que por sua vez, não eram voltados para a fins de alfabetização da própria
população nativa, mas para servir como um manual à comunidade missionária que vivia na
colônia e precisava aprender a língua nativa para transmitir a fé e traduzir catecismos do
espanhol para o fa d’Ambô. Além da definição de gramática empregada pelo autor, as
constantes comparações com o espanhol e referências ao latim, indicam uma tentativa
eurocêntrica de enquadrar o fa d’Ambô nas categorias gramaticais de uma língua de tipologia
românica, a partir de um modelo greco-latino de gramática. Ao mesmo tempo, Barrena
apresenta reflexões sobre as diferenças gramaticais entre o fa d’Ambô e o espanhol em diversos
trechos, o que demonstra uma compreensão acerca da incompatibilidade do modelo utilizado.
Ademais, o fato de se escrever uma gramática do fa d’Ambô coloca esta língua como diferente
do espanhol e do português, ou seja, em um lugar de “singularidade” (cf. Orlandi 2000, p. 27).
É válido lembrar que não temos conhecimento de outras gramáticas missionárias sobre línguas
de contato, além das gramáticas de Barrena e Vila (cf. ZWARTJES, 2011, p. 13).
A motivação da escrita da gramática de Barrena é ligada à tentativa de catequização da
população de Ano Bom, sendo destinada para a comunidade de missionários e não para os
falantes da língua. Nesse sentido, prevalece o teor pedagógico voltado para o ensino de uma
língua estrangeira, escrita por um não-nativo.
Concluímos que o uso do (i) modelo greco-latino, o (ii) teor pedagógico e (iii) o público-
alvo são indicativos de que a obra corresponde às características de gramáticas missionárias a
partir de Hovdhaugen (1996) e Zwartjes (2018: 1), sendo uma das últimas publicações (e talvez
a última) deste tipo, conforme sugerido por Agostinho (2021). Assim, a gramática de Barrena
se apresenta como um raro exemplar de gramática missionária de uma língua crioula.
Referências
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AGOSTINHO, A. L.; ARAUJO, G. A. De. Playing with language: Three language games in
the Gulf of Guinea. Language Documentation & Conservation. Vol. 15, p. 219-238, 2021.
AGOSTINHO, A. L.; HYMAN, L. M. Word Prosody in Lung’Ie: One System or Two? Probus.
ARAUJO et al. Fa d’Ambô: língua crioula de Ano Bom. Cadernos de Estudos Lingüísticos.
BRONKHORST, J. Buddhist Hybrid Sanskrit: The Original Language. In: Aspects of Buddhist
Texts, Oct. 1-5, 1991. Sarnath, Varanasi: Central Institute of Higher Tibetan Studies, 1993.
2014.
https://static.cambridge.Org/content/id/urn:cambridge.org:id:article:S026667311500001X/res
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HOVDHAUGEN, E. ...and the Word was God. Missionary Linguistics and Missionary
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Dubrull, 1891.
INSTITUTO DE ESTÚDIOS A F R I C A N O S
GRAM ATICA A N N O B O N E SA \
U *AX *
MADEID, 19S7
LA GUINEA ESPANOLA
LA GUINEA ESPANOLA.
impedia ni ponia ordcn; habia muchas riflas v no alguna otra cosa ya cn latln. ya cn português corrom
hab a quicn pusicse paz. Hn una palabra tcniamos pidos, á mancra dc salmos que t-imbicn los repetia
aqui un pucblo ó más bien una Isla eritera dc más cl pueblo.
de mil cuatrocicntos habitantes sin autoridad y siri Fambien hacían ntras ccrcmonias, aun estando Ia
ninguna elase dc gobierno. Misión hspaftoLa, aunque pedia n artes permiso al
Asi continuaron Ias cosas hasta cl ano irjoa cn Padre Superior. como he tenido ocasión dc ver
que sc crcó Ia Dclegación dc Annoo^n i cirgo dc muchas vcces. como los cânticos dc las cuatro nochts
un empleado europeu con un practícante y un puesto qu« prcccdcn al dia dc Navidad y cuando hacíare
dc policia colonial Los resultados dc íejncjnntc rogativas cn tiempo dc tequia nara pedir agua. los
medida no se han hecho esperar. sictc pasris dc la pasión dc Cristo ó Ia «Pntesa». que
1 2 . C u á la s s ? n eu id io m r y su ro lrg io n : cllos llaman y adernas aún contlnuaban bautizandn.
C a le n d á rio .— Kl idi>ma dc lo» armoboncscs cs etc-, etc.
particular dc esta Isla y no sc Cono*;c lucra dc cila, Para enterar meior á los que esto lean sobre Ias
aunque cs muv parecido al dc fcto. Thomé. como fun.ioncs que lu ilin estas gentes, pondremes alguno*
vamos á dcor luego. de los cânticos que cn cilas empleaban sacados de
La lengua dc estas gentes parece derivada d d un catecismo português impreso cn l.isboa el aflo
idioma dc Sto. rome; pues hc tenido ocasión dc 1K24, que tengo á Ia vista, ordenado ò mancra dc
oir hablar á los natural» de In reterida Isla con los dialogo porei P. Marcos J , Doctor cn Teologia, y
de Annobôn. cada une* en su Icngja, y sc cntcnduin acrcccntado por el P. Igoacio Martins Doctor Teólogo.
bastante bien cn casi todo, à no *cr cn algunas pn- E i un libro que apenas .»« puede Iccr de comido
labrav que cran diferentes. Lo cual no cs nada de que está por los ratones y dc quemado; y sin embargo
estradar, supvcsto que esta isla dc Annotón hubicra lo guardan y conscrvan como una joya, cspcciaJmcmc
*iJo pobloda con los habitantes dc aquclla. cl «M.iCitrc FrenL» que cs como «] cucargado dc
S u r<sligion.—La rcli,;iõn dc estos habitantes cs enseflaresías coras y cl que mc ha dejado cl libro
Ia católica, ia cual, implantada poralgunos Mixioncros por algunos dias.
portugueses j tines dei algto diccincho» sc ha con Csnticnc el referido libro, primeramente una de-
servado al traves dei posado siglo hasta d presente, voción i S. Antooio para encontrar las cotas perdidas;
aunque á su mancra, pues casi iodas Ias ccrcmonias luego potie Ias indulgências que ganan Ins que cnsolan
católicas habíaii degenerado cn supcrstkiones ridículos y .1prenden la docirina crlstiana; desputs posa á
à i lo menos cn va nas imitacioncs y sõlo tenian c.vplicir la doctrina crisiiana cn dcec capitulos.
alguna idea vaga dcl cristianismo, dei que no sabian Ln el capitulo trcce trac cuatro mancras de avudar
sino unas cuuntas oracioncs cn portuguc; y cn latín. mira que son: scgún cl rito Romano, scgún «1 rito
pero u n corrompidj* y mol diehas, que apenas sc de la Crdcn Crrmelluna, conforme al r.to dc Ja
parcccn ã la; originalcs, lo cual sc iba trasm tienrfo Orden dc S. Bernardo, y conforme al rito dc la
de padres á hij< s, Yodavii hay vários ancianos dc Ordcn de Slo. Domingo. Er» <] capítula latorcc trac
ambos k *cos bautuidos por cllos, lo* cualcs son I s unas oraciorcs cn latln que son, «Pater noster»,
que mc;or siben csas orocioncs cn português y cn « \vc Maria», cl «Credo*, y «Sabe Regina». Luego
latln, como son d «Miscrerc», d «Benedictus*. itc.. siguc.i ê mancra dc Apcrdice slgunos tratados muy
en latin muy corrompido, y cn português Ias ora- devotos y provcchosos erdenados por cl P. Ignacio
ciones d d catecismo como son; cl «Yo ftendor». Mnrtim, que comprcnden lo que ha de haccr c|
«Scftor mio Jesucristo». «Salvo, «Pjdrc nu estro*. cristiano para rccibir los sacramentos dc Cnnlcriòn
«Ave Ataria*i «Pecados Capital cs», «Obras dç mi- y Comunidn. Luego siguen las Icianiss de los santos
scrico rd « S acram en to s» , etc.; pero lo; que sepan y u ra s cosss que parece sc Ias han dejado perder.
todo esto son muy poços. Siguc despues cl modo dc rezar cl rosarij y final-
Abando u d i esta Isla por Ias .Misioncros portugue mente vienen Ias «Cantigas Devotas».
ses, suplicron á «dos, cn lo que pudicron, algunos (Continuará) A á l a i i t f M a r r e t a CJ, M. F.
sncrisiancü. cada uno dc los cualcs estaba «ncargado
dc su iglçsia ó ermita, pues cs dc saber que Ias hay
cn grau número. (19 entre todos Ias dc Ia Isla». De Ia
Iglisia «grande* ó «guesa gany», que cllos diccn, La K o la
Cstaba encargado d primeroy principal, quien bacia
ciai tidas bs íundonc; que acosiutnbran los católicos K ntre tsa hcrmrra vaikdcd dc á ih ks frutalca que
como«bauíbar», «enterrar*, «casar», «cantar Icuniai», pueblan los rronns y los v-illes c*c nuestra (iuinca,
«bendeeu agua», «bcndccir al pueblo», «haver ro. sobrcsalc el llamado irbol dc la Knla, conocido. ts
gativai para pedir agua», etc., ele. l'na de estas cicrto. cn nu estro CoIonla pero poco aprovcehado;
funciones Ia liacínn los domingos y di s de (iesta. to euul n de sentir, atendida su e.vcvpcion I impor
Ia cual consistiam que cl referido racrisi; n (Sanguistá) tância. Nos f ermitirán. pues, nuestros lectorcsque
vestido cnn una baia azul s tla dc Ia íaciixia con diganiascuiiro jolabras siqukra, sobre dichnproduc-
dos acólitos uno dc La cualcs sacata un litro que to; el cual,si bien cs útil en tedas partes al hombre, lo
bacia de «ritual» y, colocados cn frente dei alur, «s aun más aqui rrisiro 1 nr.de I > tc temos lan á
entonaban Ja Ictania dc lòs rantos. haciendo como mareo.
que leia pero $in raber Jicr, y llegando al «Saneia Kl áriot dc li Kola pcrtcnecc á Ias malváccas. y
Marii» y al Santo dei dia, ii ira dc los que entran llcga á adquirir li altura dc diez y hasta de veinte
cn las letanias, tocata Ia campa ni lia. Luego canuban metros. Los l.emos vist) en I is montes y en |<s
A N E X O E - C o m u n id a d e m issio n á r ia d e B a n a p á
*1
q u e h o y e m p ro n d e m o s o o n h n n s, p e ru n o
i m p o r t a ; a t J « la n t e * i, q u e a l i a d o n d e u o l l c -
g u c u n u e s ir a s í u e r z u s y m e d id a » , J le y u r á
l a i n d u l g e i i c i u d e . Au e s t r o » e s t i m a d o s c o m
p a t r io t a s , o n e u y u p r o v e r b i a l g e u e io s id u d
9 1p r i > por i i u e l d i a i n n f> ti* p tr u d o ; m u c h . s im o c o n í lu m o ? . V a m o s , pnes, cs-
g L . le u e m o ã lu d u lc e s u lis f u c c ió u de p u u o le * , b h m c o s y d c c o l o r , m in e m o s n u c s -
s a lu d u r a l p u b lic o d e s d e Ia s e o lu in - t r a s f iiG iz u , ju n t o m o n n s io d o s e u c o m p a c
iu » & d c u o t t n u e v t n p u b l i c a c i d n q n i n c c n n l t o e s c u a d r ô n , io d o s u n i d o s I r a b u j n m o s c o u
q u e , u u u q u c h u m i l d e y s e n c i lJ a y » i n p r e - a i- d o r y â m c d id e d c n u e s t r a s fttc rz n s y
le u H i u n c H d e i i i u g ú a g õ n e n r , a s i y t o d o , h r tb c r c s c n p r o d c la B E L IC S IO .N y d c lu
n o ilu d a m o s q u e d o w d e lo » a p a r t a d a » r e - P A T R I A , im it e m o s lo a e je m p lu s d c u u e s .
g iu u c s e n q u e v iv im o s lia d© c o n t r ib u ir t r o s g l o r i o s o s u n t e p a s a d o » , y c o r n o e l lo s ,
n o p o o u u I a g l o r i u d e D í - m í, a l l u v l i c v m e re c e re m o s o c u ir Q u e s tim s it u e s c o u
c t » p le u d o r d e i C a t o l ic i s m o y a lu p r o a p e - d iu d e m a d e g lo r ia y d e in n r io i ta lid a d .
r id o d m a t e r ia l y m o iu l d e n u e s t ia m a
d re K s p fm . Y d e p r o p õ M to lie m o s d ic h o Y Iclicísimas Pascuas para todos.
d i.» s u s p i r a d o , p u e s , rt Jú v e r d o d , ô » t c b a
s id o n u w t r o s u s p i r o d e s d e lia o e m u c h o f t
O fio h , s u s p i r o q u n s n l i u d e n u e s t i u s p e -
c l i u ü a í o e r d c c a t ^ l ic o c * . d o m i s i o n o i - o H y
du e s p a ü o le » . E s t o in is m o m is p ir u b n n
PARTE
lu u c h u - s y b e n e m é r it a » p e i* * o r u iw d ç n u e s -
t m C o l o n i a d c ? 'Q o ^ r o d e .- l i l i i n e a , y e s te
INSTRUUTIVA.
c o n s U i i i l c s u s p i r o s e * * c t le jM ü u c í i í u s m i l y
\ u m c u r U i. s < ( tio a I a c o n l i u u u r c c i b i a r n o s SECCKIN OFICIAL.
d c lu l» e iu u s u lt i. e u la s q u e , c o m o y a o p u n ^
L u i u o s c n n u e M n » P l l O S P E C T O , s o 1109 BASES i Ias q«í liin dc sjjetjrst Ias «iitralus i)íc se IIc-.íq
c o n u tu ic u b u lu ih e r o u E s ita n a v e r tlu t lc r a
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à cfccto talfü loa palroios j «bm w . pari Feriaido Too'ca
p e d i u s e n o » c o u i n s i » l c * n c i u lle v a s e m o s s a BA. (t)
e i t b u U i 11 c o d è c i a d a e m p r e é u . 1* L o s q u e d c s c c n c o n t r a t a r b r a c e r o s se d i r i g i n i n
U m u d i s in u is d iílc u lL a d c s d c Io d a s u o r - « l S u b - G iib e m a J o r d c B « ta e l q u e a v is a r á A
t c li e m o s Ú m id o q u o v e n c e r p a r a J u . c o n - l o s jc f e s t l e lo s p u c b to s I n n ie d ia to s p a r a q u e d i-
s c c u c i ó u d o i i u e s t r ú d o c o , d o Uit i i j u i i c - {p i c l n ú m e r o d c lio m b r c s c o n q j c s e p u e d e c o n
r a r ju o im is d c u u u v e z p o u s a m o s eu ta r.
a b a n d o n a r n u e s tr o in te n to . M a y o re s (u l
U l Con kus-.o lo tc ru m o i aq u i Lu w ^uirnir* B a se a , cujr* -aprcuO * r.o»
vez s e u u s p r c s e tiu m iu c u la u rd u a ta re a ha 1W0 cns->-v.i4 * p o r «I Sr. S u b - G e b c r u ilo r dc B A T A ,
A C O LO C A Ç Ã O PR O N O M IN A L EM LO C U Ç Õ ES VERBAIS: EN TRE A
NORMA PREDICADA E A PRATICADA
Ana Teixeira
Universidade Federal do Piauí
Resumo: O presente artigo apresenta bases teóricas da História das Ideias Linguísticas em diálogo
com algumas noções da Sociolinguística Variacionista. O objetivo geral é o de comparar regras
predicadas sobre colocação pronominal em locuções verbais em gramáticas normativas com os
usos efetivamente praticados em textos escritos cultos dos primeiros quinze anos do século XXI.
No âmbito do predicado, compulsa-se as gramáticas normativas de Rocha Lima (2012 [1957]),
Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]), Melo (1978 [1967]) e
Said Ali (1969 [1924]). No âmbito do praticado, trabalha-se com textos jornalísticos, literários,
científicos, religiosos e jurídicos, publicados nos quinze primeiros anos do século XXI. No cotejo
entre o predicado e o praticado, de modo geral, há concordância entre as prescrições gramaticais
e os usos dos brasileiros na escrita monitorada. Todavia, é notório comentar que os instrumentos
linguísticos analisados, à exceção de Luft (2002 [1976]), podem repensar e trazer como regras
básicas, e não como notas de rodapé ou observações ou em tópico à parte, as formas efetivamente
realizadas pelos brasileiros, como é o caso da colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2). Com a
realização do presente artigo, verifica-se a necessidade de o assunto de colocação pronominal em
locuções verbais ser repensado e atualizado nas gramáticas normativas, no sentido de abarcar
como regras básicas as realizações efetivamente em uso pelos brasileiros, particularmente em
contextos monitorados.
Palavras-chave: Colocação pronominal; Locuções verbais; Norma predicada; Norma praticada;
História das Ideias Linguísticas; Sociolinguística Variacionista.
Abstract: This article presents theoretical bases of the History of Linguistic Ideas in dialogue
with some notions of Vaciationist Sociolinguistics. The general objective is to compare predicate
rules about pronominal placement in verbal groups in normative grammars with the uses
effectively practiced in cult written texts of the first fifteen years of the 21st century. Within the
scope of the predicate, the normative grammars of Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009
[1961]), Cunha and Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]), Melo (1978 [1967]) and Said Ali
(1969 [1924]) are perused. In the field of the practiced, journalistic, literary, scientific, religious
and legal texts, published in the first fifteen years of the 21st century are worked on. In the
collation between the predicate and the practiced, in general, there is agreement between the
grammatical prescriptions and the uses of Brazilians in monitored writing. However, it is
notorious to comment that the analyzed linguistic instruments, with the exception of Luft (2002
[1976]), can be rethought and bring as basic rules, and not as footnotes or observations or in a
separate topic, the forms effectively performed by Brazilians, as is the case of intra-LVC
placement without a hyphen (V1clV2). With the completion of the present article, it is verified
the need for the subject of pronominal placement in verbal groups to be rethought and updated in
normative grammars, in the sense of embracing as basic rules the realizations effectively in use
by Brazilians, particularly in monitored contexts.
Keywords: Pronominal placement; Verbal groups; Predicate norm; Practiced norm; History of
Linguistic Ideas; Vaciationist Sociolinguistics.
Considerações iniciais
Em História das Ideias Linguísticas (HIL), a gramática, assim como o dicionário,
segundo Auroux (2014 [1992]), fazem parte do processo de gramatização, o qual
descreve e instrumentaliza uma língua e, diante disso, constituem-se pilares do saber
metalinguístico. A gramática “não é uma simples descrição da linguagem natural; é
preciso concebê-la também como um instrumento lingüístico1” (Auroux, 2014 [1992], p.
70), porque “uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de
formas que não figuram juntas na competência de um mesmo locutor” (Auroux, 2014
[1992], p. 70). A gramática, pelo viés da HIL, é um artefato tecnológico que
instrumentaliza uma língua a partir de referências e normas, sendo passível de análise e
discussão de seus aspectos técnicos e seus efeitos para a produção do conhecimento
linguístico.
Segundo Orlandi e Guimarães (2001), a partir da análise dos instrumentos
linguísticos, é possível compreender também a construção da sociedade brasileira e ter
consciência da história do PB. Tais instrumentos, enquanto objetos históricos, podem ser
“um excelente observatório da constituição dos sujeitos, da sociedade e da história”
(Orlandi, 2001, p. 9); em outros termos, “a produção tecnológica relacionada com a
linguagem é, não há dúvida, lugar privilegiado de observação do modo como uma
sociedade produz seu conhecimento relativamente à sua realidade” (Guimarães; Orlandi,
1996, p. 9). Diante disso, ancorando-se na perspectiva da HIL, pretende-se, com o
presente artigo, realizar uma reflexão sobre a instrumentação linguística quanto ao
estatuto da colocação pronominal em locuções verbais, em diálogo com algumas noções
1A noção de instrumento linguístico, a partir da articulação da HIL com a análise do discurso, pode abarcar
a produção de saber linguístico que engloba não só a gramática e o dicionário, como também “outros objetos
históricos, tais como relatos de viajantes e de missionários, manuais, cartilhas, glossários, enciclopédias,
programas, parâmetros curriculares, museus, nomenclaturas, manifestos, etc.” (Ferreira, 2018, p. 25).
2Os primeiros projetos de HIL em âmbito brasileiro foram produzidos sobremaneira a partir da articulação
com a análise de discurso e, no desenrolar do tempo, as pesquisas também se estenderam para diferentes
áreas, tais como: “sintaxe, semântica, análise de discurso, semiótica, pragmática, sociolinguística,
linguística indígena, lexicologia, filosofia da linguagem, história, estudos clássicos, ciências da informação
e da cognição e literatura” (Ferreira, 2018, p. 20).
3 Segundo Barbosa (2015), o predicado refere-se à norma padrão dos manuais prescritivos; o praticado,
por sua vez, à norma culta.
4 Para Dias (2007), as regras de concordância, de colocação de pronomes, regência etc. são dispositivos
normativos.
por variante cada uma das formas de realizar a mesma coisa” . Para Tarallo (1994, p. 8),
o conceito de variante linguística remete às “diversas maneiras de se dizer a mesma coisa
em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade”; já o conceito de variável
linguística se reporta ao “conjunto de variantes” .
A partir dessas conceituações de Calvet (2002) e Tarallo (1994), as variáveis se
referem, neste texto, aos tipos de locuções verbais: Auxiliar + Infinitivo, Auxiliar +
Gerúndio ou Auxiliar + Particípio, enquanto que o fenômeno da colocação pronominal
nesses tipos de locuções verbais dizem respeito às variantes. Desta forma, trabalham-se
com as seguintes variáveis e variantes linguísticas:
- Para a variável Auxiliar + Infinitivo, têm-se as variantes: 1. Colocação pré-LVC
(cl-V1V2): próclise ao verbo auxiliar; 2. Colocação intra-LVC com hífen (V1-clV2):
ênclise ao verbo auxiliar; 3. Colocação intra- LVC sem hífen (V1clV2): próclise ao verbo
principal; 4. Colocação pós-LVC (V1V2-cl): ênclise ao verbo principal;
- Para a variável Auxiliar + Gerúndio, têm-se as variantes: 1. Colocação pré-LVC
(cl-V1V2): próclise ao verbo auxiliar; 2. Colocação intra-LVC com hífen (V1-clV2):
ênclise ao verbo auxiliar; 3. Colocação intra- LVC sem hífen (V1clV2): próclise ao verbo
principal; 4. Colocação pós-LVC (V1V2-cl): ênclise ao verbo principal; e,
- Para a variável Auxiliar + Particípio, têm-se as variantes: 1. Colocação pré-
LVC (cl-V1V2): próclise ao verbo auxiliar; 2. Colocação intra-LVC com hífen (V1-
clV2): ênclise ao verbo auxiliar; 3. Colocação intra- LVC sem hífen (V1clV2): próclise
ao verbo principal; 4. Colocação pós-LVC (V1V2-cl): ênclise ao verbo principal.
O estudo da posição dos clíticos, dependendo do corpus a ser utilizado na
investigação, pode apresentar resultados diferentes. Em Vieira (2003), por exemplo, que
se propôs a trabalhar com textos orais nas variedades do Português Europeu (PE), do
Português Brasileiro (PB) e do Português Moçambicano (PM), pôde ser constatado que a
colocação intra-LVC é a mais encontrada nessas variedades. Já, nas pesquisas de Nunes
(2009), Martins (2010) e Costa (2014), que se propuseram a trabalhar com textos escritos,
os resultados foram discrepantes. Nunes (2009) constatou que no século XIX há
preferência pelo uso da colocação pré-LVC nas variedades do PB e PE; no século XX,
por sua vez, no PE a colocação preferida é a pré-LVC, enquanto que no PB há equilíbrio
no uso das colocações pré-LVC e pós-LVC, além de aumentar o uso da colocação intra-
LVC sem hífen. Martins (2010) constatou que há uma diminuição constante no uso das
colocações pré-LVC e intra-LVC com hífen, além de se encontrar, diferentemente dos
escritos lisboetas, colocações pré-LVC e intra-LVC sem hífen, nos escritos catarinenses
dos séculos XIX e XX. Costa (2014) apresentou a colocação pós-LVC como a
predominante nas missivas mineiras novecentistas. Diante disso, analisando-se as
ocorrências dos clíticos em LCV nos textos contemporâneos, o presente texto almeja
responder ao seguinte questionamento: qual é a ordem pronominal em LCV recorrente
nos textos produzidos nos primeiros quinze anos do século XXI? A hipótese é a de que a
posição intra-LVC sem hífen é a efetivamente praticada nos textos contemporâneos
monitorados, tendo em vista que essa posição é considerada por muitos pesquisadores
como marca brasileira (Teyssier, 2001; Vieira, 2002; Bagno, 2009; Schei, 2010).
Metodologicamente, no âmbito do predicado, seleciona-se seis gramáticas
normativas a fim de verificar as prescrições sobre colocação pronominal em locuções
verbais: a Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Rocha Lima5 (2012 [1957]);
a Moderna Gramática Portuguesa, de Bechara6 (2009 [1961]); a Nova Gramática do
Português Contemporâneo, de Cunha7 e Cintra8 (2008 [1985]); a Moderna Gramática
Brasileira, de Luft9 (2002 [1976]); a Gramática Fundamental da Língua Portuguesa, de
5 Carlos Henrique da Rocha Lima nasceu em 1915 no Rio de Janeiro e faleceu em 1991, na mesma cidade
natal. Diplomou-se Bacharel em Ciências e Letras e se graduou Doutor em Letras. Foi gramático, filólogo,
crítico literário, professor de português, latim e literatura. Ocupou diversos cargos administrativos em
escolas, universidades e órgãos colegiados federais. Membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia;
da Academia Brasileira da Língua Portuguesa; da Sociedade Brasileira de Língua e Literatura, entre outras.
Autor de inúmeras obras na vertente da Filologia, da Literatura e dos Livros didáticos, além de trabalhos
de direção e consultoria (Rocha Lima, 2012 [1957], p. 15-21).
6Evanildo Cavalcante Bechara nasceu em 1928 no Recife (PE). É filólogo, gramático e professor, atuando
em cursos de pós-graduação e de aperfeiçoamento para professores universitários e de ensino fundamental
e médio. Bacharelou-se em 1948 e licenciou-se em 1949 em Letras, modalidade Neolatinas. Doutorou-se
em Letras no ano de 1964. Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. É representante brasileiro
do novo Acordo Ortográfico e membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Brasileira de
Filologia, da Sociedade Brasileira de Romanistas, do Círculo Linguístico do Rio de Janeiro, entre outros.
Tem uma vasta produção contando com vários livros, capítulos de livros, artigos, verbetes em dicionários,
teses de concursos, traduções, resenhas, prefácios, introduções e apresentações (Academia Brasileira de
Letras, 2016a; Bechara, 2009 [1961]).
7 Celso Ferreira da Cunha nasceu em Teófilo Otoni (MG) em 1917 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em
1989. Foi professor, filólogo e ensaísta. Bacharelou-se em Direito (1938), licenciou-se em Letras (1940),
formou-se Doutor em Letras e Livre-Docente em Literatura Portuguesa (1947). Ocupou importantes
funções públicas. Pertencia à Academia Brasileira de Letras, à Academia das Ciências de Lisboa, à
Academia Mineira de Letras, à Academia Brasileira de Filologia, ao Círculo Linguístico do Rio de Janeiro,
entre outros. Contribuiu mormente em três vertentes: nos estudos dos cancioneiros, fundamentais para o
conhecimento da origem e evolução da língua; nos estudos gramaticais com a publicação de inúmeros
compêndios; e em ensaios com reflexões sobre a língua (Academia Brasileira de Letras, 2016b).
8 Luís Filipe Lindley Cintra nasceu em Espariz, Tábua, Portugal no ano de 1925 e veio a óbito em 1991 na
capital de Portugal, Lisboa. Licenciou-se e doutorou-se em Filologia Românica, respectivamente em 1946
e 1952. Foi professor e linguista. Pertencia à Academia Espanhola de História, à Academia de Buenas
Letras de Barcelona, à Academia Portuguesa de História e à Academia das Ciências de Lisboa. Integrou
equipes que trabalharam para a concretização do Atlas Linguístico da Península Ibérica. Distinguiu-se,
principalmente, como pesquisador nas áreas da literatura medieval, da linguística românica, da dialetologia
e da geografia atual da Língua Portuguesa (Castro, c2016).
9 Celso Pedro Luft nasceu em Poço das Antas (RS) no ano de 1921 e seu falecimento se deu em 1995 na
cidade de Porto Alegre. Foi gramático, filólogo, dicionarista e professor de Língua Portuguesa (Filologia e
(códigos e leis), publicados nos quinze primeiros anos do século XXI, a fim de se ter uma
amostra da realidade linguística atual na modalidade escrita monitorada. Desta maneira,
catalogam-se 500 ocorrências13 de colocação pronominal em contextos de locuções
verbais, sendo 100 ocorrências de cada uma das categorias de textos, quais sejam:
jornalística, literária, científica, religiosa e jurídica. Posteriormente, por categoria,
organiza-se de acordo com a variável de locução verbal: Auxiliar + Infinitivo, Auxiliar +
Gerúndio ou Auxiliar + Particípio, tendo em vista esta distinção em relação às regras das
gramáticas selecionadas e a particularidade de cada construção. Cumpre esclarecer que
as locuções formadas por mais de duas formas verbais, bem como as estruturas com
mesóclise no verbo auxiliar, assim como os contextos com ordenamento de clíticos em
locuções verbais com a presença de elemento interveniente (preposição, por exemplo),
não compõem o corpus deste texto. Com isso, em seguida, procede-se com a análise
segundo a posição do pronome oblíquo átono: pré-LVC (cl-VIV2): próclise ao verbo
auxiliar; intra-LVC com hífen (V1-clV2): ênclise ao verbo auxiliar; intra-LVC sem hífen
(V1clV2): próclise ao verbo principal; e pós-LVC (V1V2-cl): ênclise ao verbo principal,
a fim de verificar a mais frequente. E, por fim, realiza-se o comparativo entre o que dispõe
as gramáticas (norma predicada ) e o que efetivamente os brasileiros realizam na escrita
monitorada (norma praticada ).
O trabalho, de natureza comparativa, quantitativa e qualitativa, com bases teóricas
da HIL em diálogo com a SV, está estruturado com o seguinte percurso textual: inicia-se
por uma discussão sobre a constituição da norma no Brasil, adentrando no estatuto da
colocação pronominal; em seguida, pormenorizam-se sinteticamente as informações
sobre colocação pronominal em locuções verbais nas gramáticas normativas pesquisadas;
posteriormente, expõe-se a análise das ocorrências de colocação pronominal nos
contextos de locuções verbais a partir de textos contemporâneos; logo depois, retrata-se
o cotejo entre o predicado e o praticado ; e, por fim, apresentam-se as considerações
finais.*(i)
13 Os dados catalogados foram identificados por meio da seguinte codificação: (i) abreviatura da autoria;
(ii) ano de publicação (entre 2000 e 2015); (iii) gênero textual (editorial [E], conto [CO], crônica [CR],
capítulo de livro [CDL], artigo científico [AC], livro [L], artigo religioso em folheto litúrgico [ARFL],
artigo religioso em meio digital [ARMD], código civil [CC]; código florestal [CF] e código de processo
civil [CPC]; (iv) categoria (texto jornalístico [TJO], texto literário [TL], texto científico [TC], texto
religioso [TR] e texto jurídico [TJU]); e (v) número da ocorrência dentro da categoria. A título de
exemplificação, leia-se o código “(EDLC-2013-L-TR-301)” como a identificação de um dado produzido
por Edmundo de Lima Calvo, no ano de 2013, num livro de categoria textual religiosa, sob o número 301
na ordem do corpus.
língua imaginária, a Língua Portuguesa, e uma língua fluída14, uma língua do dia a dia,
a Língua Brasileira:
Desta forma, existiam aqueles que defendiam uma autonomia linguística e aqueles
que defendiam a língua pura, a Língua Portuguesa, legada de Portugal. Para Faraco (2008,
p. 110) havia dois grupos: “um conservador, purista; e outro, defensor da absorção, na
escrita, de características próprias do modo brasileiro culto de falar a língua” . Segundo
Teyssier (2001), muitos brasileiros, com a Independência, acreditavam que, para ter uma
nação original, com cultura e literatura próprias, era preciso ter uma língua original. Com
isso, além dos gramáticos, os escritores e os filólogos também tiveram espaços nessas
querelas em relação à questão da língua no Brasil, considerada um “problema nacional
da mais alta importância” (Teyssier, 2001, p. 111).
Faraco (2015), retratando sobre os ideários dos escritores românticos em defesa
da língua nacional, fez os seguintes comentários:
14 “À diferença da ‘língua imaginária’ construída como objeto fixado pela gramática, a ‘língua fluida’ está
em constante mudança, eminentemente tomada na historicidade e no movimento” (Orlandi; Guimarães,
2001, p. 34).
Mas Alencar teve uma defesa célebre contra o “purismo mesquinho e estéril”
(Teyssier, 2001, p. 111), justificando suas escolhas como expressão de originalidade e
autenticidade. Assim, após um momento de calmaria, outra polêmica ocorre entre os
escritores. Rui Barbosa, numa atitude de purismo e tradicionalismo, busca modelo nos
escritores portugueses do passado para criticar a redação do primeiro Código Civil
Brasileiro (Teyssier, 2001). No que concerne a essa polêmica, é interessante observar o
que disse Faraco (2015):
No caso dos clíticos, foi feito um pequeno estudo quantitativo sobre todos os
casos constantes nos dois textos. A diferença é gritante. A constituição do
império chega a apresentar casos severamente condenados pela atual norma
culta, como começar a sentença pelo clítico (Pagotto, 1998, p. 52).
Para Faraco (2008, p. 71) a norma culta, também, denominada por ele de comum
e standard, é empregada para designar “o conjunto de fenômenos linguísticos que
ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de
fala e escrita” . E, ainda com o mesmo autor, a norma padrão, por sua vez, não é uma
variedade da língua, como a norma culta, mas “um construto sócio-histórico que serve de
referência para estimular um processo de uniformização” (Faraco, 2008, p. 73). O mesmo
autor, também, faz comentários distintivos dessas duas normas, conforme se vê abaixo:
e auxiliar + gerúndio. Uma das possibilidades para justificar essa ausência seria pelo
autor, pelo menos na apresentação do tópico Colocação do pronome átono nas
conjugações compostas e perifrásticas, não fazer referência a regras de colocação em
tempo simples ou por não trazer notas explicativas para usos diferenciados entre o PB e
o PE, conforme realizado pelos demais autores das obras pesquisadas.
A fim de contribuir com a análise no âmbito do praticado, sumarizam-se alguns
casos convergentes de regras na maioria dos compêndios pesquisados e alguns casos
particulares:
1. Antepõe-se o pronome oblíquo átono quando a locução verbal vem precedida
de palavra negativa sem pausa, consoante Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008
[1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]);
2. Antepõe-se o pronome oblíquo átono quando a locução verbal vem precedida
de palavras com partículas QU - pronomes relativo, interrogativo e exclamativo, bem
como conjunções subordinativas, de acordo com Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra
(2008 [1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]);
3. Não se faz ênclise ao futuro do presente e do pretérito, nem a particípio passado,
concordante com Bechara (2009 [1961]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]);
4. Antepõe-se o pronome oblíquo átono com o gerúndio precedido da preposição
em, conforme Bechara (2009 [1961]) e Melo (1978 [1967]);
5. As construções com o pronome o (a, os, as) não são usadas na colocação intra-
LVC sem hífen (V1clV2) em contextos de auxiliar + particípio, segundo Rocha Lima
(2012 [1957]); e,
6. A próclise ao verbo principal nas locuções verbais é marcadamente utilizada no
Brasil, conforme Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra
(2008 [1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]).
Sobre o item 6, é interessante comentar que a gramática de Luft (2002 [1976]) é a
única que traz esta regra com o mesmo peso e importância em relação às demais
colocações de pronomes átonos e, assim, a traz no curso do capítulo/tópico como uma
das possibilidades de utilização. Ademais, no tópico referente às regras de colocação dos
pronomes oblíquos, esse autor ainda traz uma nota advogando que não faz sentido as
gramáticas brasileiras condenarem as colocações brasileiras dos pronomes. As gramáticas
de Rocha Lima (2012 [1957]) e Cunha e Cintra (2008 [1985]) trazem essa regra em um
tópico posterior, à parte, não compondo, desta forma, as regras gerais de colocação do
pronome átono: Rocha Lima (2012 [1957]) num tópico intitulado Interposição do
pronome átono ; Cunha e Cintra (2008 [1985]), por sua vez, num tópico intitulado A
colocação dos pronomes átonos no Brasil. A gramática de Bechara (2009 [1961]) traz
essa regra em uma nota de observação e, ainda, num tópico posterior intitulado
Explicação da colocação dos pronomes átonos no Brasil, comentando que é uma
colocação frequente entre os brasileiros, mas ainda não acolhida pela Gramática clássica
como digna de imitação. Melo (1978 [1967]) traz comentários sobre essa colocação numa
nota de observação, comentando que é uma prática comum na linguagem coloquial
brasileira, que já repercute na língua literária.
Feitos estes comentários, passa-se ao exame da colocação pronominal em
locuções verbais efetivamente utilizada pelos brasileiros na escrita monitorada.
% 6 %
% % % %
% 0
% % % 2 %
TOTAL 100 2 0 % 10 2 0 % 10 2 0 % 10 2 0 % 10 2 0 % 50 1 0 0 %
0 0 0 0 0
sem hífen (V1clV2) com 22% e, em quarto lugar, da colocação intra-LVC com hífen (V1-
clV2) com 12,4% das ocorrências. É interessante indicar que nos textos jurídicos inexiste
a colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2), demonstrando o conservadorismo dos textos
desse gênero em relação às marcas inovadoras do PB. Nos textos literários, por sua vez,
a colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2) é a com maior percentual entre as demais
colocações, demonstrando uma propensão pelas marcas inovadoras do PB.
Em geral, também, serão detalhados o número de ocorrências e os percentuais
relacionados aos contextos das formas do verbo principal no infinitivo, no gerúndio e no
particípio:
T e x to s J o r n a lístic o s
Com base no quadro acima, verifica-se que, de modo geral, a forma do verbo
principal no infinitivo com o percentual de 69,2% das ocorrências é o contexto de maior
domínio, seguido, em segundo lugar, da forma do verbo principal no particípio com
22,2% e, em terceiro lugar, da forma do verbo principal no gerúndio com apenas 8,6%
das ocorrências averiguadas. Nota-se, de modo geral, a inexistência da colocação pós-
LVC (V1V2-cl) em contextos de locuções com auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio.
Assim sendo, adiante, apresenta-se o comparativo entre as regras dos compêndios
gramaticais (norma predicada) e a realidade aplicada pelos brasileiros na modalidade
escrita monitorada (norma praticada).
Contexto PR PR PR PR
PRE PRE PRE PRE
A A A A
C x x C x x C x x C x x
1 1 1 1
C x x C x x C x x C x x
A u x ilia r + In fin itiv o
2 2 2 2
C - x C x x C - x C x x
3 3 3 3
C x x C x x C x x C x -
1 1 1 1
C x x C x x C x x C x -
A u x ilia r + G e rú n d io
2 2 2 2
C - x C x x C - x C x -
3 3 3 3
C x x C x x C x x C - -
1 1 1 1
A u x ilia r + C - x C - x C - x C - -
P a r tic íp io 2 2 2 2
C x x C x x C - x C - -
3 3 3 3
Assim, constata-se que a colocação pré-LVC (clV1V2) têm, de modo geral, tanto
prescrições gramaticais quanto os usos pelos brasileiros na escrita monitorada. Para esta
colocação, não houve prescrições no compêndio de Said Ali (1968 [1924]) em contextos
de locuções com auxiliar + infinitivo e auxiliar + gerúndio, nem prescrições no
compêndio de Melo (1978 [1967]) em contextos de locuções com auxiliar + particípio,
apesar de ter prescrições nos demais compêndios examinados e ainda ser praticada entre
os brasileiros na escrita monitorada.
A colocação intra-LVC com hífen (V1-clV2), por sua vez, de modo geral,
também, contempla tanto as prescrições gramaticais quanto os usos pelos brasileiros na
escrita monitorada. Para esta colocação, apenas o compêndio de Melo (1978 [1967]) não
apresenta prescrições em contextos de locuções com auxiliar + particípio, mesmo
prescrita por outros compêndios e utilizada na escrita monitorada pelos brasileiros.
Já a colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2), de modo geral, também, abarca
tanto as prescrições gramaticais quanto os usos pelos brasileiros na escrita monitorada.
Esta colocação não teve prescrições no compêndio de Said Ali (1968 [1924]) em
contextos de locuções com auxiliar + infinitivo, auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio,
assim como não teve prescrições no compêndio de Melo (1978 [1967]) em contextos de
locuções com auxiliar + particípio, embora existam prescrições nos demais compêndios
averiguados e ainda ser produtiva entre os brasileiros na escrita monitorada. Vale
rememorar, ainda, conforme exposto por Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009
[1961]), Cunha e Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]), que a
colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2) nas locuções verbais é nitidamente utilizada
entre os brasileiros. Contudo, é oportuno relembrar, também, que nos textos jurídicos não
foram visualizadas ocorrências dessa colocação, trazendo, assim, à baila o
conservadorismo nesses escritos e a não propensão para o uso de marcas inovadoras do
PB.
A colocação pós-LVC (V1V2-cl), no que lhe concerne, apresenta tanto
prescrições gramaticais quanto os usos pelos brasileiros na escrita monitora, em contextos
de locuções com auxiliar + infinitivo. Há prescrições gramaticais, porém não há usos
entre os brasileiros na escrita monitora, em contextos de locuções com auxiliar +
gerúndio. Nos contextos de locuções com auxiliar + particípio, não há mobilidade de
pronome átono pós-LVC (V1V2-cl), nem usos entre os brasileiros. É interessante frisar,
segundo Bechara (2009 [1961]), Luft (2002 [1976]) e Melo (1978 [1967]), que não se faz
ênclise a particípio passado, com isso, explicar-se a não mobilidade dos clíticos
pronominais nesses contextos.
Para a comparação da norma predicada e da norma praticada, é notório reiterar
as informações sobre o número de ocorrências e percentuais da colocação dos pronomes
átonos em locuções verbais, segundo a forma do verbo principal em textos analisados.
Assim sendo, apresenta-se parte do Quadro 3 para contribuir com a sistematização
comparativa em curso.
Considerações finais
O presente estudo investigativo acerca da instrumentação linguística quanto ao
estatuto da colocação pronominal em locuções verbais, a partir da comparação dos
dispositivos normativos expostas nos artefatos tecnológicos de Rocha Lima (2012
[1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008 [1985]), Luft (2002 [1976]), Melo
(1978 [1967]) e Said Ali (1969 [1924]) com o que efetivamente os brasileiros realizam
em textos jornalísticos, literários, científicos, religiosos e jurídicos nos quinze primeiros
anos do século XXI, mostrou-se promissor no sentido de constatar a mobilidade por que
passam os pronomes oblíquos átonos e também demonstrou como os artefatos
tecnológicos ainda precisam abarcar os usos efetivados pelos brasileiros em contextos
monitorados, intentando representar, de fato, o PB.
Os compêndios gramaticais apresentam-se em sua maioria regras prescritivas
convergentes quanto à mobilidade desses clíticos pronominais em locuções verbais.
Constatou-se, assim, a concordância dos preceitos gramaticais contemplados nos
compêndios de Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008
[1985]) e Luft (2002 [1976]) quanto à mobilidade dos clíticos pronominais nos contextos
de locuções com auxiliar + infinitivo, auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio. O
compêndio gramatical de Melo (1978 [1967]), por sua vez, mesmo sendo convergente
com os compêndios acima no que se refere aos contextos de locuções com auxiliar +
infinitivo e auxiliar + gerúndio, é divergente no sentindo de não considerar como locuções
verbais as construções com auxiliar + particípio, com isso, inexistindo mobilidade da
colocação dos pronomes átonos nesses contextos. O compêndio de Said Ali (1968 [1924])
é o mais discrepante dos compêndios em relação à mobilidade dos clíticos e os contextos
a serem utilizados. Neste compêndio, a colocação pré-LVC (clV1V2) pode ser aplicada
nos contextos de locuções com auxiliar + infinitivo. A colocação intra-LVC com hífen
(V1-clV2), por sua vez, é utilizada nos contextos de locuções com auxiliar + infinitivo,
auxiliar + gerúndio e auxiliar + particípio. Já a colocação pós-LVC (V1V2-cl) é
convergente com dos demais compêndios à medida que pode ser aplicada em contextos
com auxiliar + infinitivo e auxiliar + gerúndio. Conforme já mencionado anteriormente,
uma das possibilidades para justificar a ausência de regras seja pelo fato de o autor não
fazer referência a regras de colocação em tempo simples ou por não trazer notas
explicativas para usos diferenciados entre o PB e o PE.
Ademais, ainda fazendo considerações sobre a norma predicada, é interessante
comentar que as regras para a utilização da posição intra-LVC sem hífen (V1clV2) nos
compêndios gramaticais não são tratadas de forma unívoca. Luft (2002 [1976]) traz a
possibilidade de uso dessa posição elencada com as demais colocações, enquanto, que
Rocha Lima (2012 [1957]), Bechara (2009 [1961]), Cunha e Cintra (2008 [1985]) e Melo
(1978 [1967]) trazem essa possibilidade em tópico à parte ou em notas de observação,
não compondo, deste modo, as regras gerais de colocação do pronome átono elencadas
nos compêndios. Diferentemente dos demais compêndios, Said Ali (1968 [1924]), pelo
menos no tópico que aborda sobre a colocação pronominal em locuções verbais, não
apresenta a possibilidade de uso dessa variante de colocação.
Nos textos contemporâneos nas categorias jornalística, literária, científica,
religiosa e jurídica, verifica-se que, de modo geral, a colocação pré-LVC (clV1V2) é a de
maior representatividade, seguida, em segundo lugar, da colocação pós-LVC (V1V2-cl),
em terceiro lugar, da colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2) e, em quarto lugar, da
colocação intra-LVC com hífen (V1-clV2). Com isso, vê-se que a questão norteadora da
investigativa que consistia em saber qual a colocação pronominal em locuções verbais
mais recorrente nos textos dos primeiros quinze anos do século XXI é respondida: a
colocação pré-LVC (clV1V2) é a mais produtiva entre os textos contemporâneos. Nesse
contexto, a hipótese levantada de que a posição intra-LVC sem hífen (V1clV2) fosse a
mais recorrente foi refutada. Ademais, vale sobrelevar que, mesmo o percentual sendo
menor, a colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2), considerada marca brasileira por
muitos pesquisadores, é a terceira mais aplicada, tendo aceitabilidade à medida que há
um significativo número de ocorrências.
Ainda no que se refere ao uso da colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2),
verifica-se que o número maior de ocorrências foi catalogado na categoria de textos
literários. Aventa-se que essa preponderância se deve sobremaneira pela liberdade de
criação que os escritores têm em relação às demais categorias de textos monitorados.
Sobreleva-se, ainda, que nos textos jurídicos não foram encontradas ocorrências de
colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2), tal fato pode se dever pelo conservadorismo e
total obediência aos preceitos tradicionais da gramática normativa.
No cotejo entre o predicado e o praticado, certifica-se que, de modo geral, há
concordância entre as prescrições gramaticais e os usos dos brasileiros na escrita
monitorada. Desta forma, apreende-se que a norma predicada e a norma praticada, no
que se refere à colocação pronominal em locuções verbais, apresentam-se convergentes.
Contudo, é notório comentar que os instrumentos linguísticos analisados, à exceção de
Luft (2002 [1976]), podem repensar e trazer como regras básicas, e não como notas de
rodapé ou observações ou em tópico à parte, as formas efetivamente realizadas pelos
brasileiros, como é o caso da colocação intra-LVC sem hífen (V1clV2).
Com a realização do presente artigo, verifica-se a necessidade de o assunto de
colocação pronominal em locuções verbais ser repensado e atualizado nas gramáticas
Referências
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de Janeiro: Nova Fronteira, 2009 [1961].
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Maria Stahl; FARACO, Carlos Alberto (org.). Pedagogia da variação linguística: língua,
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que falamos. 2. ed. 3. reim. São Paulo: Contexto, 2014.
PENHA, João Alves Pereira. Gladstone Chaves de Melo 1917-2001. Círculo Fluminense
de Estudos Filológicos e Linguísticos (CiFEFiL). Cadernos do CNLF, série VII, n. 5,
2003. Disponível em: http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno05-03.html.
Acesso em: 29 jun. 2023.
SCHEI, Ane. A colocação pronominal do século XIX: a língua literária brasileira. São
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SILVA, Maximiano de Carvalho e. Fontes para o estudo da vida e obra de Manuel Said
Ali. Confluência. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português, n. 5, p. 48-59, jan./jun. 1993.
Disponível em: https://confluencia.emnuvens.com.br/rc/article/view/740/502. Acesso
em: 29 jun. 2023.
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo problematizar a aparente aproximação entre os
conceitos de norma padrão e da norma estabelecida como culta, haja vista que o primeiro, a nosso
ver, atua, como um instrumento linguístico, ao regular a gramática normativo-prescritiva,
enquanto o segundo se configura, em princípio, como uma amostra de usos da língua recorrentes
entre sujeitos historicamente considerados cultos. No entanto, não é raro que, tanto na grande
mídia, quanto em salas de aula da rede básica de ensino, os termos se confundam, de modo a
corroborar com a manutenção sistemática de poder inerente ao uso da língua portuguesa no Brasil.
Para tanto, recorremos ao referencial teórico da Linguística Aplicada, devido a seu caráter
indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), dado que mobilizamos aqui conceitos da tradição
normativa (a saber, norma padrão) e da sociolinguística (a saber, norma culta), sob o prisma da
História das Ideias Linguísticas (AUROUX, 1992, 1998). Para realizar a discussão proposta,
adotamos a metodologia explanatória de base qualitativa. Por fim, verificamos que a confusão
entre tais noções de norma afeta as práticas sociais da língua em uso (LUCCHESI, 1994, 2015;
FARACO, 2008; BAGNO, 2003, 2012), bem como das relações de poder inerentes a ela
(MATTOS E SILVA, 1995; CHARITY-HUDLEY, 2013; CERQUEIRA, 2020, 2022; FREITAG,
2023).
Palavras-chave: Norma padrão; Norma dita culta; Gramática normativo-prescritiva;
Instrumentos Linguísticos
1 Dedicamos este trabalho à Professora Viviane Gomes de Deus Deiró, nossa professora de LETA13 -
Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa, responsável por nos apresentar ao universo da variação
linguística, bem como de suscitar em nós o interesse por tais estudos. Do ponto de vista político, ser
ensinada por outra mulher negra, na primeira década dos anos 2000, foi um processo emancipatório que
merece destaque. Ademais, o Movimento Estudantil também é responsável por esse debate, ao passo que
atuou como agência de letramento político em nossa formação.
2 Professora Adjunta do Setor de Língua Portuguesa, do Instituto de Letras, da Universidade Federal da
Bahia. Mestra e Doutora em Língua e Cultura (UFBA). Pós-Doutora em Linguística (UFAL). E-mail:
f.cerqueira@ufba.br.
Abstract: The present work aims to problematize the apparent approximation between the
concepts of standard norm and established norm as cultured, given that the first acts, in our view,
as a linguistic instrument, by regulating normative-prescriptive grammar, while the second is
configured, in principle, as a sample of recurrent uses of language among subjects historically
considered cultured. However, it is not rare that, both in the mainstream media and in classrooms
of the basic education network, the terms are confused, in order to corroborate the systematic
maintenance of power inherent to the use of the Portuguese language in Brazil. To do so, we resort
to the theoretical framework of Applied Linguistics, due to its interdisciplinary nature (MOITA
LOPES, 2006), given that we mobilize here concepts from the normative tradition (namely,
standard norm) and sociolinguistics (namely, learned norm), under the prism of the History of
Linguistic Ideas (AUROUX, 1992, 1998). To carry out the proposed discussion, we adopted an
explanatory methodology based on a qualitative basis. Finally, we verified that the confusion
between such notions of norm affects the social practices of the language in use (LUCCHESI,
1994, 2015; FARACO, 2008; BAGNO, 2003, 2012), as well as the power relations inherent to it
(MATTOS E SILVA, 1995; CHARITY-HUDLEY, 2013; CERQUEIRA, 2020, 2022; FREITAG,
2023).
Key words: Standard Norm; So-called Cultured Norm; Normative-prescriptive grammar;
Linguistic Instruments
Introdução
O presente texto é fruto de uma série de reflexões que nos acompanham desde o
início da graduação, se estendendo a contextos diversos de prática docente, nas quais
fomos interpeladas por estudantes, bem como por problematizações no campo da leitura
e da produção de estudos linguísticos.
Imaginamos que, de repente, a problemática tenha se iniciado ainda na escola
básica: afinal, para que vamos à escola aprender português se essa é a nossa língua
materna? No entanto, foi, ao longo da formação e da prática docente, que a resposta veio:
não é o português que falamos, como língua materna, a modalidade linguística que vamos
aprender e/ou ensinar nas escolas. Em verdade, a questão nem sequer se restringe à fala,
pois o modo como nossos estudantes escrevem em redes sociais não é o modo como
esperamos que escrevam nas redações, com destaque, para os gêneros em que prevalece
a tipologia dissertativa.
Por conta desses ruídos, buscamos realizar um levantamento de alguns aspectos
envolvidos no processo de instrumentalização da língua portuguesa no Brasil,
especialmente, no que concerne às relações de poder atreladas a certos usos, o que parece
ter forte relação, não só com rótulos sociais, mas, principalmente, com a identidade dos
3 Sabemos que, tradicionalmente, os instrumentos linguísticos são ferramentas cujo intuito é de materializar
os sentidos atribuídos à norma padrão. Contudo, é nosso interesse destacar que a noção de norma n o s
instrumentos linguísticos, não raras vezes, escamoteia a compreensão de norma co m o instrumento
linguístico, visto que sua função prescritiva parece não se manifestar apenas em produtos escritos, mas em
outras vias, tais como discursos midiáticos, conforme discutiremos nas seções seguintes.
qualitativa, o que nos permitiu realizar um breve panorama dos debates já realizados
acerca da questão, dialogando com esses estudos, em direção ao objetivo proposto.
Para tanto, o trabalho divide-se em quatro seções, a saber: a. Norma padrão como
instrumento linguístico; b. Problemas em torno da confusão entre norma culta e norma
padrão; c. Como lidar com a confusão: qual o limite entre instrumento e variação
linguística; e a conclusão, seguida pelas referências.
Dito de outro modo, norma, em termos coserianos, seria aquilo que é considerado normal,
comum, recorrente entre o sistema (a língua: autônomo, social-coletivo, abstrato e
invariável) e o uso (a fala: individual, particular, concreta e variável).
Tendo em vista as associações possíveis entre os conceitos de gramática e de
norma, Mattos e Silva (1995, p. 14, grifo da autora) os define da seguinte maneira
5 Inform alm ente, d izem os, em Teoria(s) da Literatura que “a obra é aberta, m as não escancarada” . D e m odo
sem elhante, d izem o s, inform alm ente, em T eorias L ingu ísticas que “as língu as variam , m as que a variação
não é d esvin cu lad a do sistem a gram atical da língu a” . Isto é, em português p o d e-se d izer “o s m en in os” ou
“o s m en in o _ ”, m as não “ * o _ m en in os” , haja v ista que, em português, o determ inante é o regulador de
concordância.
6 In clu sive a distribuição d os p ronom es p esso a is quer do caso reto, quer do caso o b líq u o, em português
brasileiro, sequer “o b ed ece” aos padrões de con cordân cia/flexão verbal can ôn icos. Para um debate m ais
am plo, v er Carvalho (2 0 0 8 , 2 0 17).
culta, sendo aquela que remete à prestígio social, é o uso linguístico esperado por aqueles
que frequentaram por mais tempo a escolarização formal. Em oposição, a norma popular,
é o uso linguístico esperado por aqueles que frequentaram por menos tempo a
escolarização.
Não por acaso, apesar de (1a) e (1c) divergirem da norma padrão, prescrita na
gramática, apenas a variante em (1c) acarreta estigma aos falantes que dela fazem uso. A
mesma reflexão é possível com o dado em (2), produzida em reportagem veiculada pelo
jornal Folha de São Paulo.
[a] relação entre raça, classe social e escolarização é, pois, complexa e está
interligada, e escolaridade, medida em anos na escola ou nível de estudo, é a
categoria de estratificação cuja métrica é objetiva. Daí que as explicações ou
interpretações de resultados de estudos sociolinguísticos que adotam a métrica
da escolaridade costumam extrapolar para a relação entre raça e classe social
que o constructo subsume (FREITAG, 2023, no prelo).
classes mais baixas [...]” (LUCCHESI, 2015, p. 34). Isto é, não só estudos linguísticos
afetam a compreensão de norma, mas também as atitudes e percepções de seus falantes,
enquanto membros de comunidades de fala da língua e/ou de prática em questão.
No entanto, na direção do debate proposto por Milroy (1980), Faraco (2008, p.
44) destaca que não existe “norma pura”, uma vez que são sempre híbridas, pois as
normas absorvem características umas das outras, “ [p]or isso não é possível estabelecer
com absoluta nitidez e precisão os limites de cada uma das normas - haverá
sobreposições, desbordamentos, entrecruzamentos” . Ou seja, variantes produtivas entre
os falantes da norma popular podem passar a ser produtivas entre os falantes da norma
considerada culta, assim como o inverso, dado que a variação vertical (ou diastrática)
ocorre tanto de modo ascendente, quanto descendente (WEINEREICH; LABOV;
HERZOG, 2006).
Nesse sentido, há um conflito de ordem social e ideológica no que concerne à
compreensão do conceito de norma culta, pois
[o] que as pesquisas científicas feitas no Brasil nos últimos trinta anos têm
revelado é que existe uma diferença muito grande entre o que as pessoas em
geral chamam de norma culta, inspiradas na longa tradição gramatical
normativo-prescritiva, e o que os pesquisadores profissionais chamam de
norma culta, um termo técnico para designar formas linguísticas que existem
na realidade social (BAGNO, 2012, p. 24).
Não raramente, livros didáticos, notícias veiculadas pela grande mídia e até
mesmo textos acadêmicos tratam norma padrão e norma culta como sinônimos, o que
gera a falsa sensação de que há pessoas capazes de dominar a norma padrão. Há décadas,
os estudos sociolinguísticos informam que não há falantes de norma padrão, mas que a
função dessa norma é o de orientação de escrita em gêneros textuais mais formais. Porém,
é recorrente, no imaginário coletivo, a crença de que as pessoas, que falam
“corretamente”, dominam a norma padrão, cujo discurso seria, sob essa ótica, legitimado
pela gramática normativo-prescritiva. A grande questão é: o que significa falar
corretamente? Assumir todas as formas, quase sempre idealizadas, previstas pela norma
padrão, o que os estudos linguísticos confirmam ser impossível, dado ao caráter
heterogêneo das línguas humanas? Ou falar corretamente corresponde seguir o padrão
dos usos da norma culta, isto é, a falar de modo semelhantes às pessoas consideradas
cultas?
Quanto a isso, Araújo (2008) aponta que
7 Conforme estudos antropológicos, o termo cultura é publicado pela primeira vez em 1877, por Edward
Burnett Tylor, cuja função foi de referir todos os produtos da vida social humana. Porém, o termo passa
por intensas mudanças, dentre as quais, algumas o restringem às culturas hegemônicas. Em virtude disso,
optamos por adotar o conceito de cultura apresentado por Mintz (1982), dado a seu caráter mais abrangente.
de cultura, de modo que haja a leitura de que alguns dispõem de mais cultura do que
outros.
Com efeito, o conceito de norma popular também mostra-se problemático, uma
vez que
[p]or exemplo, se a cultura popular é a cultura “do povo”, quem é o povo? São
todos: o pobre, as “classes subalternas”, como costumava chamá-las o
intelectual marxista Antonio Gramsci? São os analfabetos ou os incultos? Não
podemos presumir que as divisões econômicas, políticas e culturais em uma
determinada sociedade necessariamente coincidam. E o que é educação?
Apenas o treinamento transmitido em algumas instituições oficiais como
escolas ou universidades? As pessoas comuns são ignorantes ou simplesmente
têm uma educação diferente, uma cultura diferente das elites? (BURKE, 1992,
p. 14)
[...] [a]s culturas vem a ser representadas em virtude dos processos de interação
e tradução através dos quais seus significados são endereçados [...] apaga[ndo]
qualquer reivindicação essencialista de uma autenticidade ou pureza inerente
de culturas que, quando inscritas no signo naturalístico da consciência
simbólica, frequentemente se tornam argumentos políticos a favor da
hierarquia e ascendência de culturas poderosas (BHABHA, 1998, p. 14).
(3) Durante discurso que proferiu na CCJ, o ministro da Justiça, Sérgio Moro explicava
sobre a interpretação que se deve fazer quando uma mulher reage à violência
doméstica. Nesse instante, o ministro falou “conje” quando se referia a “cônjuge” .
V irou meme na internet.
(UOL Notícias - Notícia veiculada em 03 de abril de 2019, grifo nosso)
(4) Maria Júlia Coutinho, a Maju: muita da informalidade do “Jornal Nacional” se deve
às qualidades da jornalista, que deixou de ser um a m era “moça do tempo” para
ser uma estrela do jornalismo.
(Jornal Opção - R7 - Notícia veiculada em 17 de outubro de 2021, grifo nosso)
Considerando os dados em (3) e (4) com base na discussão supracitada, o que valida
que um homem branco e juiz ao produzir expressões como “conja”, variante que concorre
com “cônjuge”, seja afetado pelo mero riso; enquanto uma mulher negra jornalista tem
sua capacidade intelectual e profissional questionadas ao produzir algo como “os
menino”8. Não obstante, fica claro que o preconceito9 não é sobre a variação na língua
pura e simplesmente, mas, principalmente, sobre quem produz certas formas de uso.
Logo, cabe questionar por que o juiz branco que fala “conja”, não tem sua capacidade
intelectual e profissional questionada, como ocorreu com a jornalista negra10, embora o
suposto erro normativo dele seja uma variante raramente produtiva (ou nunca) entre
falantes da norma dita culta?
Destarte, é preciso destacar
8 Para uma discussão acerca do preconceito linguístico com base na hipervalorização da morfologia
flexional, ver Silva (2023).
9 Para melhor compreensão de como o racismo atua sobre a língua, bem como é veiculado por ela, evento
que extrapola o preconceito linguístico, ver Racismo Linguístico, de Nascimento (2019).
10Para melhor compreensão da intersecção de racismo com sexismo no Brasil, ver Gonzalez (1983).
3. Como lidar com a confusão: qual o limite entre instrum ento e variação
linguística?
Sabemos que, a depender do enquadramento teórico, língua pode vir a assumir
diferentes concepções. No presente trabalho, compreendemos que língua seja tanto um
sistema heterogêneo passivo de variação e de mudança, conforme as situações concretas
de uso (CERQUEIRA, 2020), quanto um instrumento de poder manifesto nas práticas
sociais (AQUINO, 2020b). Tendo isso em vista, parece estratégico discutir a associação
de acerto e de erro, respectivamente, com as normas ditas culta(s) e popular(es).
Conforme discutido nas seções anteriores, acreditamos que essa associação seja
decorrente da ausência de limites claros entre norma padrão - para nós, instrumento
linguístico em esfera abstrata, cuja contraparte concreta é a gramática normativo-
prescritiva - e as normas linguísticas, como manifestações concretas de uso, nas quais se
verifica a heterogeneidade do sistema linguístico, ou seja, em que a variação incide. À
medida que os setores hegemônicos da sociedade produzem determinado “desvio” da
norma padrão, não há a compreensão de erro. Por outro lado, quando segmentos sociais
minoritários o fazem, rapidamente, surge alguma entidade no âmbito da grande mídia
denunciando o suposto erro. A grosso modo, escolarização e estratificação social
(econômica, racial, de identidade gênero e de orientação sexual) têm sido “confundidas” .
A escolaridade dos falantes é uma variável muito recorrente nos estudos
sociolinguísticos, pois sua escolha busca confirmar uma das hipóteses centrais do campo:
a de que informantes com níveis mais elevados de escolarização tendem a empregar as
variantes mais próximas do padrão normativo, bem como da norma estabelecida como
culta, enquanto os informantes menos escolarizados tendem a apresentar em sua fala mais
variantes estigmatizadas (RODRIGUES, 2009). Assim, essa variável tem sido
selecionada para aferir, em uma dinâmica subsequente, a estratificação social desses
falantes, pois se pressupõem que, quanto mais alto o indivíduo estiver na pirâmide
socioeconômica, mais acesso a escolarização ele teve e, por conseguinte, quanto menos
escolarização o indivíduo possuir, mais baixo ele se encontra na pirâmide
socioeconômica.
Contudo, quando se considera a atual conjuntura social brasileira, percebe-se que
o panorama não é estável, pois
[...] mudanças nas políticas públicas de educação nas últimas décadas, como a
Progressão Continuada e a ampliação do acesso aos cursos universitários
através do ProUni, permitem um sério questionamento dessa [aparente]
equivalência na década de 2010 [...] (MENDES; OUSHIRO, 2012, p. 981).
Conclusão
Considerando a recorrente confusão entre o uso dos termos norma padrão e norma
culta, tanto na grande mídia, quanto em salas de aula da rede básica de ensino,
contribuindo, desse modo, com a manutenção sistemática de poder inerente ao uso da
língua portuguesa no Brasil, realizamos no presente trabalho a problematização da
aparente aproximação entre esses conceitos. Para chegarmos aos resultados apresentados
a seguir, discutimos a noção de norma padrão, a fim de destacar sua ação como
11 De acordo com Muniz (2021, p. 281), a mandinga, uma técnica da arte da capoeira, é “[...] a própria
linguagem corporificada nas reexistências da população negra. [É] [a] engenhosidade como usamos a
linguagem de forma estratégica para sobreviver enquanto população constantemente aniquilada”.
Referências
ANTUNES, I. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no
caminho. São Paulo: Parábola, 2007.
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
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BURKE, P. A nova história, seu passado e seu futuro. In: BURKE, P. (Org.). A escrita
da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP,
1992, p. 7-38.
FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola,
2008.
MENDES, R.; OUSHIRO, L. O mapa sociolinguístico brasileiro. Alfa, 2012, v. 56, n.3,
p. 973-1001.
MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. Parábola: São
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MOURA, C. O negro, de bom escravo a mau cidadão? São Paulo: Editora Dandara, 2021.
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Filologia e Língua Portuguesa,
1998, n. 2, p. 165-271.
SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1997.
WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. Fundamentos empíricos para uma teoria
da mudança linguística. São Paulo: Parábola, 2006.
Carolina Rodríguez-Alcalá
Unicamp
Resumo: Este artigo analisa o funcionamento dos exemplos nas primeiras gramáticas de guarani,
escritas por missionários jesuítas nos séculos XVII e XVIII para atender aos interesses coloniais
espanhóis na então região do Paraguai. A finalidade imediata de tais gramáticas era a aprendizagem
da língua pelos missionários, a fim de permitir a comunicação cotidiana com os falantes da língua
e sua instrução religiosa. As primeiras descrições basearam-se na observação da língua em
situações de uso, uma vez que se tratava de uma língua não documentada e desconhecida pelos
gramáticos. Interessa-nos neste artigo definir como a finalidade e as condições iniciais desse
trabalho de gramatização determinaram a constituição do corpus de exemplos, no que diz respeito
ao estatuto dos mesmos e aos critérios de validação, bem como à sua relação com a oralidade. A
partir disso, visamos compreender se o trabalho linguístico inicial permitiu a estabilização do
corpus ao longo do tempo, afetou o tratamento dos exemplos e deu lugar à emergência de uma
tradição escrita assumida pelos locutores da língua.
Palavras-chave: exemplos; gramáticas; guarani; jesuítas; Paraguai.
Abstract: This article analyzes the functioning of examples in Guarani grammars written by Jesuit
missionaries in the 17th and 18th centuries to serve the Spanish colonial interests in the then
Paraguayan region. Their immediate purpose was for foreign missionaries to learn the language in
order to enable everyday communication with speakers of the language and their religious
instruction. The first descriptions were based on the observation of the language in situations of
use, since it was an undocumented language and unknown to grammarians. The aim of this article
is to define how the initial purpose and conditions of this grammatization work determined the
constitution of the corpus of examples, with regard to their status and validation criteria, as well as
their particular relationship with orality. From this, I seek to understand whether and to what extent
this initial linguistic work allowed the stabilization of the corpus over time, affected the treatment
of the examples and gave rise to the emergence of a written tradition assumed by the speakers of
the language.
Key words: examples; grammars; guarani language; Jesuits; Paraguay.
1Este artigo foi publicado originalmente em francês, na revista L ’exemple dans les traditions grammaticales. Langages
166, organizada por J.-M. Fournier. Paris: Larousse/Armand Colin, junho de 2007/2, p. 112-126. Disponivel em :
L'exemple dans les grammaires jésuitiques du guarani | Cairn.info. Acesso em 28/07/2023.
A presentação
As primeiras gramáticas de guarani foram escritas por missionários jesuítas nos
séculos XVII e XVIII para atender aos interesses coloniais de evangelização dos índios nos
então domínios espanhóis do Paraguai, visando seu controle político. Foram elaboradas a
partir da adaptação de categorias gramaticais greco-latinas a uma língua muito diferente
em termos de tipologia (o guarani é uma língua aglutinante) e de funcionamento social (o
guarani era uma língua oral, de sociedades semi-nômades). A tensão entre esses
condicionamentos técnicos e sócio-políticos determinará as características das descrições
gramaticais e as particularidades do corpus de exemplos, em particular sua constituição,
estabilidade e mudança ao longo do tempo. É a análise de algumas dessas particularidades,
tendo em vista as condições da gramatização (AUROUX, 1992), o objeto deste artigo.
Tomamos a gramática como instrumento linguístico (ibidem) e como objeto
histórico, considerando que ela intervém no processo de constituição das relações entre os
sujeitos e da forma das instituições de uma sociedade (ORLANDI, 1997; 2001). As
gramáticas de guarani, além de sua relevância para a história das ideias linguísticas, no que
diz respeito ao desenvolvimento de teorias e métodos operado pelos missionários-
gramáticos, são por isso, ao mesmo tempo, um observatório da sociedade instituída a partir
dessa experiência singular que constituíram as reduções jesuíticas do Paraguai.
Analisaremos a Breve introducciónpara aprender la lengua guaraní, de Alonso de
Aragona, a primeira gramática conhecida de guarani, que permaneceria inédita até 1979 (o
manuscrito data de 1629ca); a Arte de la lengua guarani, de Antonio Ruiz de Montoya, a
primeira gramática publicada dessa língua (Madrid, 1640), que é contemporânea, em sua
elaboração, da gramática de Aragona; e a Arte de la lengua guarani por el P. Antonio Ruiz
de Montoya de la Companía de Jesús con los escolios, anotaciones y apêndices del P.
Paulo Restivo de la misma Companía, sacados de los papeles del P. Simón Bandini y de
otros, de Paulo Restivo, a última das gramáticas do período das reduções (1609-1768), que
foi publicada em 1724 no povoado jesuítico de Santa María la Mayor e que, como lemos
no título, se apresenta como uma reedição da gramática de Montoya2.
2 A s edições analisadas neste artigo constam na bibliografia; as citações serão feitas com o nome do autor seguido do
número de página.
1. A C onstituição do C orpus
A finalidade imediata das gramáticas de guarani era a aprendizagem da língua pelos
missionários, de forma a possibilitar a comunicação cotidiana e a instrução religiosa,
incluindo a administração dos sacramentos. Os missionários não contavam com registros
escritos nem com seu conhecimento da língua enquanto locutores, uma vez que estamos
frente a um caso de exogramatização (AUROUX, 1992) de uma língua não documentada
e desconhecida para os gramáticos. Frente a essa impossibilidade de recuo filológico, eles
fundamentaram suas descrições na observação da língua em situações de uso, produzindo
3 Estamos referindo-nos aqui ao guarani jesuítico, cujo desenvolvimento histórico não deve ser confundido com aquele
do guarani falado pela sociedade colonial e pós-colonial, atual língua oficial no Paraguai (junto ao espanhol), nem com
o do guarani dos índios que permaneceram como grupo diferenciado, os quais representam hoje aproximadamente 1 %
da sociedade nacional (cf. MELIÀ, 1992; RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2002).
4 Os primeiros trabalhos gramaticais sobre o guarani foram realizados pelo frei franciscano Luis de Bolanos, que chegou
a Assunção no último quartel do século XVII, acompanhado do frei Alonso de San Buenaventura, autor de uma gramática
de quechua.
La negacion ordinaria es, ani, como ta si del varon la India dice heê, Por decir
no se, dicen he o herugua. (Aragona 52) (sublinhado nosso)
individualizado, mas “anônimo”5 (um índio usou), até um locutor que é “citado” (o índio
“x ” usou). Se temos presente o sentido originário de citatio como “aquilo que é chamado,
invocado”, como nos lembra A. Rey (1995), temos que o gramático, que não é locutor da
língua nem conta com registros escritos, invoca a autoridade índio através da “citação” de
exemplos extraídos da oralidade, acompanhados de referências, de precisão variável, para
eximir-se de sua responsabilidade.
[che r]ecobe mi vida. Nderecobe, Hecobe su vida del Guecobe su vida propria,
como diciendo, Jesu Christo dio su vida derramo su sangre [...]. (Aragona 29)
(sublinhado nosso)
5 É interessante estabelecer um paralelo entre o estatuto desses exemplos extraídos da oralidade e aquele da citação
anônima no Dictionaire Critique de la languefrançaise, de Jean-François Féraud, analisado por F. Martin-Berthet (1995,
p. 59), como categoria intermediária entre o exemplo inventado e a citação literária.
em tupã, nome de uma divindade indígena utilizado para traduzir o deus cristão6, ou são
criados neologismos, como tupâci, “mãe de Deus” (ci = “mãe”), atupãpici “comungar”
(apící = “eu tomo”) 7, etc. Quanto aos mecanismos morfossintáticos, temos na seguinte
passagem de Restivo um exemplo desse procedimento de tradução, que parte do uso do
índio para traduzir dogmas da doutrina cristã:
[...] en el primer sentido impersonal usa mas el Indio del habi l. hai que del cabi
y en el otro sentido personal mas usa del cabi l. cai que del habi y assí para
decir el Indio: no se ha tocado que es romance impersonal dice ndapocohai sin
relacion y para el otro romance personal: no tiene que tocar ó en que estribar
dice ndipocoai con la relativa. Para decir pues: la Virgen no fué tocada, fué
intacta, no ha de ser con relacion ndipococai l. ndipocohai Tupâci, sino
ndapocohai Tupâcirehe [...]. V. G. La Virgen no fué tocada del pecado, se haga
desta manera que es mucho mejor: na ângaypapocoharuguaí nânga Tupâci la
Vírgen no es á quien tocó el pecado. (Restivo 164-5) (sublinhado nosso)
conhecedores da língua dos índios e por não conterem elementos contrários à Santa Fé e
bons costumes, como lemos nas aprovações das gramáticas de Ruiz de Montoya e de
Restivo.
10O catecismo utilizado com os índios era o mesmo destinado na Europa às crianças e aos iletrados.
11Retomamos aqui as afirmações de Nunes (1996, p. 93) em relação ao método lingüístico dos jesuítas na gramatização
do tupi, no século XVI.
[Advérbios particulares]
Tií, no, con desden.
[...]
Ahe. ola, llamando.
Rei.
Enei. ea tu, animando.
(Ruiz de Montoya 146-7) (sublinhado nosso)
Las partículas pe, pãnga, piã, paco, pico, pugui [...] son partículas que sirven
para conciliar la atencion antes de narrar alguna cosa [...].
Lo mesmo hazen las partículas afirmativas como naco, nero, nico, ro, nugui
&c., ut:
chanero miradlo pues, como quien ve la cosa [...].
Charo l. chairo mirad aquello, sin que se aya hablado de la cosa.
Chaterô mirad, atended, como mostrandole algo. (Restivo 112) (sublinhado
nosso)
3.1. As referências
Restivo cita autores estrangeiros — religiosos e leigos — e um índio, Nicolás
Yapuguay, os quais menciona em sua apresentação ao leitor:
Los autores, que se citan, son: Ruiz, Bandini, Mendoza, Pompeyo, Insaurralde,
Martinez y Nicolas Yapuguay, todos son de primera classe. (Restivo 6)
— exemplo + autor
Con esta particula rire y negacion se haze el romance »si no ubiera« [...]. Item
á vezes da este romance »por no aver«: penamoi yeta ocarai eymbire, oho
anaretame rae por no aver sido vuestros abuelos Christianos, se fueron al
infierno (Mend.) [...]. (Restivo 120-1) (sublinhado nosso)
Nota que muchas vezes usan del rüguay sin la partícula na, ut: anebê teçaori
catu pipe hece omaêmo (Band. sermon de la Purific.) por esso le mira no con
ojos alegres. (Restivo 47) (sublinhado nosso)
Preguntando en una doctrina Nic. porqué las obras buenas de los que estan en
pecado mortal no tendrán premio en la otra vida responde: Tupâ gracia
hembiapo mbocatupiri harangue porey ramboé por falta de la gracia de Diós
que avia de aver hecho buenas sus obras [...]. (Restivo 67) (sublinhado nosso)
Essa imprecisão pode ser explicada pela natureza dos textos citados. Estes não são,
como em outras tradições gramaticais, obras literárias (religiosas ou não) escritas por
autores, enquanto “usuários” privilegiados da língua a serem tidos como modelos, mas
registros do uso corrente da língua e traduções feitas por locutores capazes, no caso de
Yapuguay, ou por estrangeiros lenguarazes, isto é, bons conhecedores da língua, nos
demais casos. Mais do que a autores, Restivo recorre assim a autoridades na língua, cuja
simples menção basta para avalizar suas descrições, mesmo em certas passagens em que
os exemplos são inventados pelo gramático e legitimados por analogia: “todos se hallan tal
qual vez usados de Martinez que fue gran lenguaraz y del Padre Simon Bandini, príncipe
de esta lengua”; “son modos muy usados en las composiciones de Indios y Padres
lenguaraces” (Restivo 163, 194).
As citações textuais funcionam de modo a atestar o uso corrente dos índios, como
vemos explicitado em diversas passagens pelo modo de apresentar os exemplos (os índios
usam/dizem... + citação). Na maioria dos casos essa atestação é feita por estrangeiros, o
que produz uma discrepância entre a fonte enunciativa que introduz o exemplo (o índio) e
a citação de autor estrangeiro para legitimá-la:
Ma l. mabae, qual es, ut: ma pãnga qual es? Ma nabepãnga como es, de que
tamano? A vezes dicen: quien, ut: mabae upe guarâ para quien? y se le puede
anadir ace, ut: mabae acepíri pânga ereyu raé (Band.) para quien has venido?
(Restivo 27) (sublinhado nosso)
El pronombre relativo es haé [...].El Ablat. haze haépipe l. ypipe; haépipe ayu
en ella vine, assí lo usó un Indio hablando de una canoa [...]. (Restivo 25)
(sublinhado nosso)
A identificação das fontes escritas tem, muitas vezes, a função de situar o objeto do
discurso citado e contextualizar semanticamente os exemplos, num procedimento similar
ao adotado em relação aos exemplos extraídos a oralidade, como vemos nos seguintes
exemplos, um extraído de um sermão de Bandini, outro observado por Restivo numa
confissão (que é citado no tratado de partículas):
É preciso ter presente a própria natureza dos textos citados, que como foi assinalado
estavam marcados pela oralidade e destinados a serem transmitidos oralmente aos índios.
As citações textuais são frequentemente introduzidas por verbos locutivos e apresentadas
de acordo com uma estrutura dialogai (“hablando el padre Pompeyo de... dice...”;
“preguntando Nicolás... responde...” etc.). Isso produz uma indistinção em muitos desses
exemplos, uma vez que essas citações não têm, a rigor, marcas formais que as distingam e
que a identificação da fonte enunciativa, como havíamos visto, pode também caracterizar
exemplos extraídos da oralidade:
hablando Nic. de una muger. que estubo siete dias sin poder parir, dice: cunâ ymembí á
haguâcatu eybae. (Restivo 188) (sublinhado nosso)
hablando el P. Aragona de aquella estrella que guió los magos y se paró encima de
Belen. dice: henonde rupi oata ohobo, mitâ Jesus áhague á ramo guendí catupírí
reropítabo coíte: cone hini raé penembieca oyabo berami andubo caminando por
delante dellos y se paró con sus hermosíssimos resplandores encima del lugar donde
avia nacido el nino Jesus. como si dixera: aquí está á quien buscais [...]. (Restivo127-
8) (sublinhado nosso)
Aviendo segundo verbo aunque se dexe la partícula tamo l. amo con los tiempos
de subjuntivo y gerundios. tambien dará el romance de »como si« E.G.
marânderecoeyramo pae, Pay ndenupâuca eymi rae (Mart.) como si no faeras
vellaco. avia el Padre de dexar el mandar açotarte [...]. (Restivo 193)
(sublinhado nosso)
el catechismo en lengua guarani por Nicolas Yapuguai con direccion del P. Paulo Restivo
de la Companía de Jesús; o segundo, Sermones y exemplos en lengua guarani, por Nicolás
Yapuguay. Con direction de un religioso de la Companía de Jesus. En el pueblo de S.
Francisco Xavier, é publicado três anos mais tarde, em 1727.
O Prefácio de Explicacion de el catechismo..., escrito por Restivo, é muito
elucidativo. Ele mostra que a autoria do índio não corresponde à concepção moderna de
autor na tradição ocidental. Para Foucault, o autor de uma obra é, no sentido moderno, o
princípio de unidade do texto, o lugar originário da escrita, a quem se pode atribuir o poder
criador, o projeto, a responsabilidade (FOUCAULT /1969/ 2002, p. 50). Todos os discursos
que comportam a função autor comportam uma pluralidade de “eus”, que asseguram essa
função: o eu do prefácio, das conclusões, o que fala do significado do trabalho, dos
obstáculos encontrados, dos resultados obtidos, dos problemas que ainda se põem (ibidem ,
p. 55-56). Vejamos como isso se coloca no Prefácio do livro assinado por Yapuguay:
representa o falante nativo capaz que interpreta e rescreve em sua língua a obra de seu
mestre (la frase es Suya / yo no hize mas que darle la materia).
É preciso considerar o controle sobre a prática da escrita exercido pelos jesuítas em
relação aos índios. A alfabetização limitava-se a uma pequena elite constituída, em sua
maioria, pelos filhos de caciques e outras autoridades indígenas e ainda essa elite
alfabetizada tinha um domínio limitado da escrita e da leitura. Mais do que escritores,
formava-se copistas, inclusive em castelhano e em latim, que desenvolvessem a arte da
caligrafia e fossem capazes de fazer leituras em voz alta, sem que isso indicasse um
domínio dessas línguas. Quanto à escrita em guarani, ela esteve dirigida ao missionário
estrangeiro (os títulos, os prefácios e as notas explicativas das obras de Yapuguay estão
escritas em espanhol), como subsídio para seu trabalho catequético, e foi sempre exercida
sob estreita tutela, como indicam o Prefácio e os títulos das referidas obras de Yapuguay
(que assinalam a direção do missionário), ou algumas passagens na gramática de Restivo
quando cita seu discípulo (Nic. en una doctrina que le hize hazer... [Restivo 213]).
4. A instabilidade do corpus
O fato de a finalidade imediata das gramáticas - a comunicação oral com os índios
- ter permanecido estável representou um critério de instabilidade do corpus constituído.
Uma vez que se tratava de entender e ser entendidos, o que não era entendido em um
espaço/tempo determinado devia ser excluído. Não há lugar para arcaísmos nessas
gramáticas. Ao mesmo tempo, o fato de esse trabalho de gramatização não ter sido
centralizado por um Estado nacional, a extensão geográfica considerável e as dificuldades
de comunicação entre as reduções, são outros fatores que atentaram contra uma maior
fixação do corpus.
A tarefa gramatical empreendida nesse segundo momento da gramatização
representado por Restivo apresenta-se, assim, como uma atualização dos primeiros
trabalhos gramaticais. Martínez, autor citado por Restivo, faz uma nova tradução do
catecismo de Ripalda, base da tradução do Catecismo de Ruiz de Montoya, que poucas
décadas depois era considerada arcaica e de difícil compreensão. O mesmo acontece com
o Tesoro de la lengua guarani, dicionário publicado por Ruiz de Montoya em 1639, que
Restivo atualiza em Phrases selectas y modos de hablar escogidos y usados en la lengua
guaraní, sacados del Thesoro escondido que compuso el Padre Antonio Ruiz de nuestra
Companía de Jesús para consuelo y alivio de los fervorosos misioneros, principiantes en
dicha lengua12. O Prefácio de Phrases selectas expõe a situação apontada. O texto atesta,
em primeiro lugar, a grande variabilidade da língua, que ainda em tempos de Restivo
produzia problemas de incompreensão mesmo em povoados próximos entre si. Restivo
expõe também as críticas que circulavam em relação a Ruiz de Montoya, pelo fato de que
a língua registrada por ele já não se entendia, o que tornava sua leitura uma “perda de
tempo” :
Mas con dezeo de que no se ocultasse mas, a los ojos de tanto feruoroso
missionero, y aconsejado de algunos P.es, que me lo pidieron, me determine
sacarlo en limpio escogiendo los terminos mas vsados, y dexando los vocablos,
que por no tales, no se entienden: tomando este pequeno trabajo, con dezeo de
ayudar, y dar algun aliuio a los Missioneros princiantes [sic], desde los
principios de sus feruorosos trabajos en el estudio deste Idioma guãrãni.
(ibidem, p. 63)
Considerações finais
A análise realizada permitiu apontar algumas características do corpus de exemplos
nas gramáticas de guarani e sua relação com as condições históricas de elaboração dessas12
12 O manuscrito é de 1687, data anterior à chegada de Restivo às missões (1691), mas Melià (1969, II, p. IV-V) atribui o
fato a um erro do copista e atribui a autoria ao missionário siciliano.
gramáticas, o que inclui sua finalidade política, a imagem da língua e do locutor e o tipo
de sociedade instituída. A gramatização do guarani não surgiu de um projeto de construção
de uma unidade nacional, apoiado na ideia de excelência da língua, mas da necessidade de
controle político de seus locutores, os quais foram mantidos, ao que tudo indica, à margem
desse processo, que permaneceu orientado ao missionário estrangeiro. A língua não
representou um patrimônio cultural a ser conservado e cultivado, mas manteve um valor
instrumental, o que continuou a afetar as estratégias de constituição dos exemplos, sua
permanência e sua relativa instabilidade. Esses fatores estabelecem algumas diferenças
importantes em relação à gramatização de outras línguas, como os vernáculos europeus ou
mesmo certas línguas no contexto colonial americano, como o português no B rasil13,
diferenças essas que devem ser consideradas para compreender a especificidade do
trabalho gramatical dos jesuítas em relação às línguas ameríndias 14. O modelo de
subjetivação promovido pelos exemplos nas gramáticas de guarani não é o sujeito burguês
dos Estados liberais europeus, mas o discípulo obediente, sob a estrita tutela do mestre, o
que responde ao projeto político da sociedade das missões. Se essas condições se
modificaram e os índios se apropriaram desse trabalho de gramatização é algo a ser
analisado com cuidado, mas nas gramáticas analisadas, pelo que concluímos do
funcionamento dos exemplos, não há indícios de que isso tenha acontecido.
Referências
AUROUX, S. A Revolução Tecnológica da Gramatização. Campinas: Unicamp, 1992.
13 Ver, a esse respeito, os artigos sobre a gramatização do português brasileiro em Auroux, Orlandi e Mazière (1998) e
em Orlandi (org.) (2001).
14 É interessante confrontar, à maneira de comparação, o artigo de Chantal Girardin (1995) sobre o exemplo no dicionário
Dictionnaire Royal Augmenté, de François-Antoine Pomey, elaborado de acordo com a doutrina pedagógica dos jesuítas
junto à elite europeia; e, de outro lado, o trabalho de Nunes (1996) sobre as descrições lexicográficas do tupi realizadas
pelos jesuítas do Brasil.
FOURNIER, J.-M. Constitution des faits/validation des données dans les grammaires de la
tradition française. In: L ’exemple dans les traditions grammaticales. Langages 166,
2007/2, p. 86-99.
MELIÀ, B. La création d ’un langage chrétien dans les reductions des guaranis au
Paraguay. 2 Vol. Tese de Doutorado, Universidade de Estrasburgo, 1969.
ORLANDI, E. P. Terra à Vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo:
Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
REY, A. Du discours au discours par l’usage: pour une problématique de l’exemple. In:
L ’exemple dans le dictionnaire de langue. Histoire, typologie, problématique. Langue
française 106. Paris: Larousse, 1995, p. 95-123.
SEPP, A. 1971. Relación de viaje a las misiones jesuíticas. Buenos Aires: Eudeba, Vol I.
Gramáticas
ARAGONA, A. de. 1979. Breve introducción para aprender la lengua guaraní. In:
Amerindia, 4, 23-61 (ms. 1629ca; edição, apresentação e notas de B. Melià).
Eduardo Guimarães
DL-IEL/Laberub
Unicamp
Abstract: This text aims at analyzing a decisive event in the Brazilian grammatization process.
This is the establishment of the new Portuguese Program for Preparatory Exams in Brazil,
established in 1887. My specific objective is to seek to answer two questions: 1. Can this event,
or what it establishes, be taken as a linguistic instrument? 2. Is the role of this event in the
constitution of the National Language of Brazil linked to its character as a linguistic instrument?
A fundamental aspect here is related to the issue of the national and official language of a nation-
state. The event of the Program thus signifies a specific past, as well as projects a whole new
future by catalyzing studies on the Portuguese language at that time. To this extent and due to its
performativity, supported by the State and the Authority of Colégio Pedro II (since the Program
is established by Fausto Barreto), we consider that the Program is a grammatical instrument, but
it is not an instrument of the order of standardization of language, but the standardization of what
1 Uma primeira versão deste texto foi publicada em francês sob o título “Instruments linguistiques et langue
nationale: un événement au Brésil au XIXe siècle”, no livro Penser l ’histoire des savoirs linguistiques:
hommage à Sylvain Auroux, de organização de Sylvie Archaimbault, Jean-Marie Fournier e Valérie Raby
(ENS Éditions, 2014).
and how should be taught about the language. To this extent, we consider it to be a linguistic
meta-instrument.
Key-words: Grammatical instrument; Event; National Language; History of Linguistic Ideas;
Preparatory Exams of 1887.
Introdução
Vou me dedicar aqui a analisar um acontecimento que julgo decisivo no processo
brasileiro de gramatização. Trata-se do estabelecimento do novo Programa de Português
para os Exames Preparatórios no Brasil, estabelecido em 18872.
Este acontecimento traz uma regulação didático-pedagógica a respeito da língua
nacional para acesso à universidade. Vou neste texto tratar deste acontecimento a partir
da análise do texto em que se apresenta. Tomo este acontecimento, então, como um
acontecimento enunciativo. Meu objetivo específico é procurar responder a duas
perguntas: 1. Este acontecimento, ou aquilo que ele estabelece (o novo Programa para os
Exames Preparatórios) pode ser tomado como um instrumento linguístico? 2. O papel
deste acontecimento na constituição da Língua Nacional do Brasil está ligado a seu caráter
de instrumento linguístico?
1.Prelim inares
Acompanhando os estudos sobre a gramatização (Auroux, 1992), sabemos como
ela pode se dar como endogramatização ou exogramatização. Ou seja, temos uma
distinção que leva em conta no processo de gramatização a relação do gramático enquanto
participante, ou não, do grupo social de falantes da língua que se gramatiza. Em outras
palavras, vê-se uma diferença no processo na base da consideração da língua e suas
condições de enunciação. No primeiro caso trata-se da produção de instrumentos
gramaticais (gramáticas, dicionários, etc) da língua de que se é falante enquanto
participante de um “grupo social” específico caracterizado por esta língua; no segundo
2 Tendo em vista os objetivos do projeto “História das Idéias Linguísticas: Construção de um Saber
Metalingüístico e a Construção da Língua Nacional” (coordenado por Eni Orlandi entre os anos 1992
1995), fiz (Guimarães, 1997a) uma primeira análise deste documento com o objetivo de observar, no final
do século XIX, como funcionavam as ciências da linguagem como parte do corpo social em que se
formulam, com o objetivo de compreender, não suas funções, mas como elas funcionam na sociedade.
trata-se da produção de instrumentos gramaticais de uma língua feita por quem não é do
grupo social por ela caracterizado.
O que essa diferença coloca, já na própria distinção, é que o interesse pelo
conhecimento sobre as línguas não se apresenta como historicamente neutro. Ou seja, esta
caracterização de dois processos considera que a busca por um objeto de conhecimento
como a linguagem, e mais especificamente as línguas, tem sentidos diferentes,
dependendo da relação política na qual ela se dá.
O movimento da gramatização massiva das línguas, como nos mostra Auroux
(1992), se deu ligada num processo de endogramatização relativo ao que chamamos hoje
línguas nacionais. E este processo se dá concomitante ao da ampliação de domínios
territoriais e políticos (fim do século XV, início do XVI). E esta ampliação de domínios
motivou, com freqüência, processos de exogramatização. No processo de colonização do
Brasil isso se deu, por exemplo, com o tupi.
Por outro lado, o processo de colonização iniciado por volta do século XVI acabou
por criar condições muito particulares no que diz respeito à relação entre línguas e entre
línguas e seus falantes, que são por elas determinados3. Um aspecto fundamental aqui é
o relacionado com a questão da língua nacional e oficial de um Estado-nação.
Os trabalhos que vimos realizando no Brasil, desde o início de nossa participação
no projeto História das Idéias Lingüísticas4, levaram em conta este aspecto particular.
Trata-se do estabelecimento de uma língua nacional que se apresenta como a adoção de
uma língua da qual de certo modo se separa, condição envolvida no processo de
colonização. É neste sentido que desde o início de nossas pesquisas em história das ideias
linguísticas consideramos para a língua portuguesa o que chamamos “gramatização
brasileira do português” (Orlandi, 1997; Guimarães, 1994). Não se tratava naquele
momento, o século XIX, de inaugurar a gramática do português. Isto fora feito no século
XVI por Fernão de Oliveira (1536), a partir do qual tantas outras gramáticas foram
publicadas. Exatamente como parte de um processo histórico ligado às grandes
navegações, a partir do que Portugal tomou posse do que é hoje o Brasil, passando a
explorar e a expandir este espaço e a colonizá-lo.
3 A este respeito ver, por exemplo, as colocações que faço sobre o que chamo (Guimarães, 2002) espaço
de enunciação e a categoria do falante enquanto categoria enunciativa e não psico-fisiológica.
4 Do final dos anos 1980 em diante.
5 Este aspecto é, segundo Orlandi, central neste processo. Sobre isso ver Orlandi (1997, 2002).
6 Sobre esta questão ver Guimarães (1997b, 2004, 2007).
7 Vou utilizar a publicação do Programa para os Exames Preparatórios feita em Procellarias, de Julio
Ribeiro (1887). As páginas citadas quando localizo elementos do Programa se referem a esta edição.
8 Programa p. 87-88.
9 Idem, p. 88
10 Idem, p. 88-89.
11 Idem, p. 89.
12 Idem, p. 89.
13 Idem, p. 90.
14 Idem, p. 90.
15 Idem, p. 91.
16 Idem p. 92.
Maciel, lhe permitia difundir e firmar novas doutrinas. Ou seja, Maciel reconhece a força
da instituição como lugar de enunciação do Programa.
Ainda segundo Maciel, este programa “Assinalou nova época na docência das
línguas e, quanto à vernácula, a emancipava das retrogradas doutrinas dos autores
portugueses que esposávamos” (Maciel, 1926, 502). Ao mesmo tempo, ele diz que a partir
do programa várias gramáticas se fizeram, como as de João Ribeiro, Alfredo Gomes e a
de Pacheco Silva e Lameira Andrade. Para ele, as duas primeiras foram mais usadas para
o ensino, para os alunos, e a terceira, mais para consulta. Assim, “Houve pois com a
publicação do programa em 1887, uma como Renascença dos estudos da língua
vernácula: na imprensa, na docência particular se aclarava, se discutiam os fatos da língua
à luz das novas doutrinas” (idem, 504). As gramáticas acima referidas por Maciel foram
publicadas em 1887, depois do estabelecimento do novo Programa, e diziam atender ao
que ele estabelecia.
20 Tal como já referimos, sobre esta questão ver Orlandi (1997, 2002, 2009), Guimarães (1994, 2004) e
Orlandi e Guimarães (1998 e 2007).
21 Antonio Joaquim de Macedo Soares (1838-1905).
22 Esse estudo foi publicado em francês no Atlas Etnográfico do Globo de Adrien Balbi.
reeditado em 1849, 1862 e 1872. O que se deve observar nestes casos é que estes estudos
não se desdobram num movimento intelectual com suas consequências, tal como, pela
observação do acontecimento do Programa, se pode considerar a partir dos anos 1880. A
análise do Programa permite encontrar um momento decisivo na formação de um
movimento de ideias que muda o curso da relação com a produção de instrumentos
linguísticos no Brasil.
conhecimento sobre a língua. Ou seja, no caso do diretório dos índios, o que o Estado
português faz é regular diretamente o processo de relação das línguas, no caso do Novo
Programa dos Exames Preparatórios o Estado brasileiro faz uma intervenção que
estabelece o que ensinar sobre a língua, que conhecimentos são os que distinguem quem
sabe a língua, ou seja, os conhecimentos que caracterizam qual é a língua. Sabemos, já
nos referimos a isso há pouco, que podemos encontrar artefatos aparentemente
assemelhados, como os programas de ensino de qualquer estabelecimento escolar. Mas
interessa notar que estes últimos não funcionam e não significam do mesmo modo que o
Programa em análise. A performatividade do Programa tem características que os
programas de disciplinas nas escolas não têm. E isto o distingue.
Se nos reportamos à nossa pergunta de se o Programa é um instrumento
gramatical, vemos que ele não é um instrumento da ordem da normatização da língua,
mas da normatização do que se deve ensinar sobre a língua e como. E este aspecto é
diretamente resultado da performatividade do Programa. E é nessa medida que o novo
programa foi um instrumento decisivo, entre outros, no processo de gramatização
brasileira do português.
O momento histórico aqui analisado é vital na vida brasileira, pois nele está se
dando todo um trabalho de reflexão sobre as condições da nacionalidade brasileira. E
neste embate a questão da língua é uma questão crucial23. Há toda uma discussão que se
instala sobre se o português do Brasil é o mesmo que o de Portugal ou não. São conhecidas
as disputas como a de José de Alencar (escritor brasileiro) e Pinheiro Chagas (escritor
português)24.
No campo de conhecimento sobre a língua, como já dissemos, há o
desenvolvimento de estudos a respeito, por exemplo, da especificidade do léxico do
português no Brasil, questão que já se pusera através do Marquês da Pedra Branca no
início do século XIX, logo após a independência do Brasil, e chega ao trabalho de Pacheco
Silva Jr, um dos personagens da década de 1880. Importante a se ressaltar aqui que a
Gramática Histórica de Pacheco Silva traz na sua parte final todo um estudo sobre os
Brasileirismos e Provincialismos, como uma forma de caracterizar as mudanças da língua
no Brasil.
23Sobre a questão da língua e a nacionalidade ver Língua e Cidadania (Guimarães e Orlandi, 1996).
24 Não deixa de ter interesse acompanhar como esta discussão se projeta pelo início do século XX, passando
por um momento agudo nos anos 1930 e chegando à Constituinte brasileira de 1946. Sobre as discussões
destes momentos ver o livro de Dias (1996).
Conclusão
Retomando a distinção feita acima, o acontecimento do Programa produz um
instrumento que estabelece a forma do conhecimento sobre a língua. E dado que se trata
de um Programa estabelecido pelo Estado, através da autoridade de um Professor de uma
Instituição modelar do Brasil naquele momento, sua propagação tem uma extensão
correspondente ao peso da instituição que o formula e alcança todo o Brasil. E isto abre
25 A relação da construção de um conhecimento sobre a língua e sua constituição como língua nacional foi
fortemente trabalhado pelo projeto “História das Idéias Linguísticas: Construção de um Saber
Metalingüístico e a Constituição da Língua Nacional”, coordenado por Eni Orlandi e tem muitos de seus
resultados publicados, entre outros textos, na revista Langages 130 (Auroux, Orlandi, Mazière 1998), em
História das Idéias Linguísticas (Orlandi (org.), 2001)e em Um Dialogue Atlantique (Orlandi e Guimarães
(org.), 2007).
uma nova história, um novo movimento de autoria da gramática e um novo caminho para
a intensificação dos conhecimentos sobre a especificidade do português do Brasil. O
Programa tem, segundo esta análise, participação naquilo que produz um movimento que
Eni Orlandi (2009) tem tratado de modo muito relevante como um processo de
descolonização lingüística. O Novo Programa naquele momento é um catalisador deste
processo de descolonização, tal como outros que vieram posteriormente. E isto está
diretamente ligado ao fato de que se trata de um processo de endogramatização. O
processo brasileiro de gramatização do português (enquanto um processo de
endogramatização) significa a língua portuguesa como Língua Nacional do Brasil, o que
é muito diretamente significado pelo estabelecimento do Programa enquanto gesto do
Estado brasileiro.
E na medida em que este instrumento regula a forma do conhecimento sobre a
língua, e assim regula a própria caracterização da língua, é um meta-instrumento
lingüístico, ou seja, é uma extensão de memória sobre o que é necessário conhecer sobre
a língua. E enquanto meta-instrumento ele catalisa a produção de instrumentos
lingüísticos como gramáticas e dicionários naquele momento. Enquanto meta-
instrumento lingüístico ele não só nos diz o que é a língua, mas ele produz uma política
de língua. Neste sentido, ele faz parte do que é decisivo para a constituição da língua
nacional no final do século XIX. E isto responde à nossa segunda pergunta: o papel deste
acontecimento na constituição da Língua Nacional está ligado a seu caráter de
instrumento lingüístico.
Nem todo programa de ensino de língua é um meta-instrumento, ele pode ser
simplesmente a especificação do que se deve ensinar na medida em que se tem o que é a
língua normatizada. Um programa de ensino comum é resultado da gramatização. No
caso do Programa aqui em estudo, a questão é absolutamente de outra ordem, ele
estabelece condições no processo de gramatização. Está em questão uma regulação do
Estado e das instituições sobre o conhecimento sobre a língua. Em virtude disso o
Programa estabelece como deve ser uma gramática da língua. É isso que faz desse
Programa um instrumento, ou melhor, um meta-instrumento gramatical.
Referências
Unicamp, 1992
AUROUX, S., Orlandi, E.P. e Mazière, F. Langages, 130. Paris, Larousse, 1998.
Unicamp, 1997.
Bruno Turra
Referências
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COSTA, T.A. Grammatica historica da lingua portugueza de Said Ali cem anos depois:
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Linguíst., Campinas, SP, v. 24, n. 48, p. 61-109, jul./dez., 2021.
KATO, M. RAMOS, J. Trinta anos de sintaxe gerativa no Brasil, D.E.L.T.A., v. 15, no.
especial, 1999 (105-146).