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Introdução
O saber (as instâncias que o fazem
trabalhar) não destrói seu passado como se
crê erroneamente com frequência; ele o
organiza, o escolhe, o esquece, o imagina ou
o idealiza, do mesmo modo que antecipa o
seu futuro sonhando-o enquanto o constrói.
Sem memória e sem projeto, simplesmente
não há saber. (Auroux, 2009a, p. 12)
Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas
Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas
1
As colunas de Cândido Figueiredo foram reunidas no livro Falar e escrever: Novos estudos práticos da
língua portuguêsa ou consultório popular de enfermidades da linguagem; e as de Cândido Lago em O
que é correcto – A verdade na Analyse: respostas a consulentes.
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os falantes brasileiros, isto é, em relação ao uso que aqui se fazia dela. Assim sendo,
com tal deslocamento, não se trata mais tão somente de uma relação, no que tange à
disputa pela legitimidade de determinados usos linguísticos, conforme Orlandi (idem, p.
161), “entre portugueses e brasileiros, e entre teorias científicas sobre a linguagem”,
mas também “entre brasileiros e brasileiros”, que incluem, excluem, valorizam,
hierarquizam, estigmatizam, explicam etc. determinados usos.
É preciso observar também que, como vimos em Teyssier (2001), Alencar fora
acusado de “escrever uma língua incorreta”. Isto é, não havendo ainda legitimidade
perante a sociedade, o uso defendido pelo escritor era significado como da ordem do
erro, como algo que não era considerado língua portuguesa. É válido lembrar aqui que a
noção de erro, com o desenvolvimento dos estudos linguísticos, sofreu um
deslocamento. Muitas vezes, em vez de erro, atualmente, fala-se em variação ou em
adequação a um determinado contexto sociocomunicativo, ficando a noção de erro
restrita, na maioria dos casos, a questões puramente ortográficas.
Essa noção de erro como algo que está fora da língua, contudo, sob a qual foi
rotulado por muitos o dizer de Alencar, é recorrente nos consultórios gramaticais dos 150
séculos XIX-XX. Assim sendo, a despeito da importância de Figueiredo no que tange à
defesa dos considerados “bons modelos de vernaculidade”, conclui o filólogo Antenor
Nascentes em 1939: “Como se vê, estamos no pleno domínio do certo ou errado”, “o
que não está nos clássicos está errado; a língua perdeu o direito de transformar-se”
(Nascentes, 2003 [1939], p. 196- 197). Tal tensão entre o certo e o errado se materializa
desde os títulos dos consultórios de Figueiredo e de Lago (“O que se não deve dizêr” e
“O que é correcto”), mas também na forma como são nomeados a textualidade em
questão (consultórios), o colunista (consultor), o leitor que remete suas perguntas ao
colunista (consulente) e a sua prática (consulta) a partir da, como explica Medeiros
(2010), significação da língua no discurso médico.
De acordo com a autora, na coluna de Floriano Lemos, “Crônica Científica”,
publicada no jornal Correio da manhã, durante o governo JK (1956-1961), a língua era
significada no discurso médico como “algo a ser tratado, algo a ser curado” (idem, p.
288). Por isso, o seu objetivo era justamente “tratar dos problemas de saúde da língua”
(idem, ibidem). Embora a coluna de Lemos tenha o funcionamento um pouco distinto do
das colunas de Lago e de Figueiredo – visto que a sua temática não abordava somente
problemas linguísticos, mas também, conforme Medeiros (2003), assuntos referentes a
problemas de saúde, e que ter como “mote” a consulta de leitores que buscam respostas
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para as suas dúvidas a respeito de usos próprios à “norma culta” da língua portuguesa
não era uma constante –, nas colunas de Lago e Figueiredo publicadas na mídia
impressa no final do século XIX e início do século XX também se observa essa
significação de questões linguísticas no discurso médico. A língua é vista como algo
doente que precisa ser tratado, e os erros cometidos pelos usuários e pela imprensa são
considerados empregos viciosos que a fazem adoecer. Assim materializa-se a oposição
que mencionamos anteriormente entre o que é considerado, tanto da parte dos
consulentes quanto dos consultores, incorreto e o que é considerado correto, entre o que
é “português” e o que é “erro”, “asneira”, “chacota”, “gramática de negro”, “desvio”,
“corrupção”.
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Assim como Amaral, Cândido Lago, filólogo brasileiro que escreve colunas
sobre língua num jornal de grande circulação no Brasil no final do século XIX e início
do século XX, ao prescrever determinados usos em detrimento de outros, também fala
do lugar do português. Fato este que pode ser comprovado pelas autoridades citadas
pelo filólogo: tanto os exemplos retirados da literatura quanto de dicionários são de
produção portuguesa (Camões, Alexandre Herculano, Almeida Garret, Caldas Aulete,
entre outros). Portanto, a correção prescrita no seu consultório espelha na verdade uma
certa norma escrita lusitana e não a escrita/falada no Brasil na época em questão, como
podemos observar na sequência a seguir:
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fala dos gramáticos brasileiros2. Seria ilusão, todavia, supor que essa norma portuguesa
prescrita nos consultórios de Lago e de Figueiredo é unívoca. Ao contrário, havia
também entre esses dois consultores divergências, de modo que o primeiro chegou a
fazer um comentário em uma de suas colunas desautorizando o segundo3, assim como
havia também entre os gramáticos e filólogos portugueses. Do mesmo modo, a norma
prescrita nos consultórios de Figueiredo passava a incomodar os estudiosos brasileiros
que naquela época, de forma ainda incipiente, construíam o lugar do especialista
brasileiro que fala sobre a sua própria língua, não mais a partir do olhar português.
Referimo-nos aqui aos trabalhos de Mario Barreto e de Heráclito Graça, cujas críticas a
Figueiredo, publicadas na mídia impressa na mesma época, foram reunidas,
respectivamente, nos livros: Estudos da língua portuguesa e Factos da linguagem.
Assim sendo, em conformidade com o que propõe Orlandi (2002, p. 161), a
partir da leitura dos consultórios de Lago e Figueiredo é possível depreender a
existência, nessa conjuntura, de um embate linguístico-teórico não só “entre portugueses
e brasileiros”, mas também “entre brasileiros e brasileiros” e, nós completaríamos, visto
que nem mesmo em Portugal havia ainda uma uniformidade, entre portugueses e 153
portugueses, com a diferença de que, no que tange à literatura e aos estudos gramaticais,
os portugueses já tinham um lugar social de saber configurado, ao passo que os
brasileiros ainda buscavam, a partir da depreensão dos usos feitos pelos escritores da
nossa literatura, que tinha então menos de um século, instituir e legitimar os estudos
sobre língua aqui desenvolvidos. Tal fato foi o que, a nosso ver, acarretou o
silenciamento, salvo raríssimas exceções, dos estudiosos do Brasil, até mesmo nas
colunas do filólogo brasileiro.
Como materialização dessa distinção de lugares de se dizer da língua e sob a
ilusão de unidade linguística entre Brasil e Portugal, criou-se uma dicotomia
(imaginária) entre o certo e o errado, entendendo-se como o que é certo a própria língua
2
“O Sr. P. Sarmento consulta, se é correcto dizer, como se lê em ilustrado artigo do moço Dr. Mario
Barreto (...)” (Lago, 1911, p. 106). [itálico do autor; sublinhado meu]
“O Sr. Vincentius consulta:
a) -- Se é correcto o seguinte trecho, que se lê nas cartas philológicas do Sr. Mario Barreto (...).
b) Se não são errôneas as três expressões seguintes (que se acham na grammatica dos finados Pacheco
Junior e Lameira Andrade) (...)” (idem, p. 119). [itálico do autor; sublinhado meu]
3
“‘Se podér, se podéres, poderá, podésse, etc.’, estão bem escriptos com ‘o’, porque são derivados de
‘podéste’, (e não de ‘pude’, como se julgava em tempos idos).
Para provar que esta é a verdade, basta ver que é de ‘foste’ (e não de ‘fui’), que se derivam ‘fôra, fosse,
for’.
Na minha opinião, pois, erra Candido de Figueiredo, escrevendo ‘pudeste’, etc., com ‘u’, graphia
antiquada, que está hoje provado ser erronea". (idem, p. 114) [itálico do autor; sublinhado meu]
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portuguesa ou, como vemos em Figueiredo, o “bom português” (1906, p. 64), português
este que, como dissemos anteriormente, reflete o uso feito pelos escritores e a grafia
aceita pelos lexicógrafos lusitanos. O errado, por sua vez, não é português, é “gramática
de negro” (idem, p. 146), é “asneira”, “chacota”, “vício”, “desvio”, “corrupção”,
incluindo-se aí algumas construções próprias da modalidade brasileira, como muitas
vezes vimos nos consultórios de Lago e Figueiredo.
Desse modo, assim como observaram Medeiros e Oliveira (2012) a respeito d’ O
dialeto caipira, de Amadeu Amaral, os consultórios gramaticais do final do século XIX
e início do século XX, embora se propusessem a falar sobre “a língua portuguesa”, ao
prescreverem aquilo que se julgava ser correto, abordavam uma certa dialetação da
língua portuguesa, tomando-a como se fosse toda a língua, isto é, a única possibilidade
de se dizer em português. Em oposição a essa dada dialetação, estava, pois, aquilo que
se julgava ser vício, corrupção, ou seja, tudo aquilo que destoasse dessa dialetação tida
como perfeita, inclusive alguns usos próprios da dialetação brasileira.
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Referências Bibliográficas
_________. O que se não deve dizer. Lisboa: Livraria editora Tavares Cardoso &
Irmão, 1903.
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História das Ideias Linguísticas
NETO, Serafim da Silva. Introdução ao estudo da Língua Portuguesa no Brasil. 2ª. ed.
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_______ . Língua e conhecimento linguístico: para uma história das ideias no Brasil. 156
São Paulo: Cortez, 2002.
TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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