Você está na página 1de 10

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas

do Laboratório Arquivos do Sujeito

A LÍNGUA PORTUGUESA NOS CONSULTÓRIOS GRAMATICAIS


DOS SÉCULOS XIX-XX: UMA LÍNGUA DOENTE

Thaís de Araujo da Costa


Doutorado/UFF
Orientadora: Profª. Drª. Vanise Medeiros

Introdução
O saber (as instâncias que o fazem
trabalhar) não destrói seu passado como se
crê erroneamente com frequência; ele o
organiza, o escolhe, o esquece, o imagina ou
o idealiza, do mesmo modo que antecipa o
seu futuro sonhando-o enquanto o constrói.
Sem memória e sem projeto, simplesmente
não há saber. (Auroux, 2009a, p. 12)

Em nossa tese de doutoramento, a partir do suporte teórico-metodológico


subsidiado pela Análise de Discurso, de Pêcheux (2009) e Orlandi (2007), na sua
relação com a História das Ideias Linguísticas, de Auroux (2009a/ 2009b) e Orlandi
(2001), tomando como objeto os dizeres de Evanildo Bechara sobre a língua
portuguesa, buscamos compreender como os diferentes lugares sociais (Grigoletto,
2008) ocupados por Bechara se projetam no discurso nele se fazendo significar, e como
os distintos instrumentos linguísticos (Auroux, 2009) produzidos a partir desses
distintos lugares significam e são significados na história dos estudos linguísticos do/no
Brasil. Para tanto, selecionamos como objeto de análise a primeira e a trigésima sétima
edição da Moderna gramática portuguesa, publicadas, respectivamente, em 1961 e
1999, a Gramática Escolar da Língua Portuguesa, publicada em 2001, e 108 colunas
metalinguísticas publicadas no jornal O Dia, entre 2010 e 2012.
Tendo como objeto as colunas, propusemo-nos inicialmente a pensar como a
língua portuguesa nelas é significada a partir da relação tensa estabelecida entre as
dimensões nacional e transnacional, conforme distinção proposta por Zoppi-Fontana
(2009), na conjuntura atual. Entretanto, ao nos debruçarmos sobre as colunas de
Bechara, fomos levados a olhar para o passado, buscando a compreensão de como a
memória daquilo que passaremos a chamar de “espaços para se dizer da língua na mídia
impressa” se faz significar no objeto em estudo.

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas

Conforme nos lembra Medeiros (2003), uma das preocupações do analista de


discurso é proceder à depreensão de como se dá o funcionamento discursivo. De acordo
com a autora, é tendo como norte essa preocupação que o analista é levado a não
considerar metodologicamente o seu objeto de estudo como produto acabado e a-
histórico, trazendo para a sua análise a reflexão sobre como se dá o seu processo de
constituição, a sua historicidade. Assim sendo, deixando temporariamente nosso
objetivo inicial em suspenso, propomo-nos aqui a refletir a respeito de como se deu a
constituição desse espaço onde se diz da língua no jornal, situando-o na história da
produção dos saberes linguísticos no/do Brasil e buscando compreender o sentido de
língua com que se trabalha nesses espaços.

Uma língua doente


A prática de se publicar colunas sobre língua portuguesa em jornais remonta no
Brasil ao final do século XIX e início do século XX, quando ganharam popularidade os
famigerados Consultórios Gramaticais. Entende-se comumente por consultório
gramatical, conforme Marcondes (2008), a coluna publicada na mídia impressa, seja em 148
jornais ou revistas, que visa à prescrição de uma norma gramatical que reflete numa
determinada época o ideal de correção estabelecido socialmente. Nesse tipo de coluna,
há marcada a interlocução entre consulente, o leitor do periódico e do consultório que
remete suas dúvidas à sessão, e o consultor, especialista em língua portuguesa que
escreve a seção tendo como mote a pergunta enviada pelo consulente.
Tal caracterização, contudo, bem como a sua nomeação como “Consultório
Gramatical”, é uma construção histórica, que se naturalizou, tornando-se uma evidência
ao longo dos séculos. Enquanto analistas do discurso, como pontuamos anteriormente a
partir de Medeiros (2003), preocupamo-nos com a depreensão de como se dá o
funcionamento discursivo do objeto em análise, interrogando, para tanto, como se dá o
seu processo de constituição. Daí, com vistas a reafirmar o processo de desnaturalização
dessa prática, optarmos por designar os textos que dela resultam como “espaços de se
dizer da língua na mídia impressa”.
Pensando sobre o funcionamento desses espaços, sentimos, então, a necessidade
de voltarmos o nosso olhar para o momento de fundação dessa prática no Brasil. Em
Nascentes ([1939] 2003), Silva Neto (1963), Elia (1975), Guimarães (1996/ 2004) e
Marcondes (2008) são apontados como precursores no Brasil dos chamados
Consultórios Gramaticais o filólogo português Cândido de Figueiredo e o filólogo

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas

brasileiro Cândido Lago, os quais mantinham, na mesma época, seções em jornais de


grande circulação, a saber, respectivamente, no Jornal do Commercio, sob o título de
“O que se não deve dizêr”, e no jornal Correio da manhã, sob o título de “O que é
correcto”. Para melhor compreendermos os efeitos de sentidos engendrados por essa
prática, então, além de nos debruçarmos sobre a literatura especializada, buscamos
também os textos originais desses colunistas1.
Sobre Figueiredo, comenta Nascentes (2003 [1939]), retomando Clóvis
Monteiro, que, embora tenha sido fortemente combatido, suas publicações exerceram
influência positiva principalmente sobre os jovens da época, nos quais despertou o
interesse pelos estudos linguísticos e, principalmente, pelos chamados “bons modelos
de vernaculidade” (Monteiro apud Nascentes, idem, p. 196).
Traçando um paralelo com o plano literário, é a esta época que, de acordo com
Teyssier (2001), com o movimento Romântico, que perdurou no Brasil até 1870, a
questão da língua nacional se coloca para os escritores. O autor cita, para ilustrar tal
afirmação, os embates entre o português Pinheiro Chagas e o escritor brasileiro José de
Alencar, que, no prefácio de Iracema, reivindicara não uma língua diferente da de 149
Portugal, mas o direito a certa originalidade na escrita, principalmente no que tange à
colocação dos pronomes átonos.
É preciso observar que, como nos explica Teyssier (idem, p. 111), José de
Alencar fora alvo não só de Pinheiro Chagas, mas também “de outros censores dos dois
países, que o acusaram de escrever uma língua incorreta”. Assim sendo, tais embates
nos revelam não só uma disputa pela língua entre Brasil e Portugal, mas também no
território nacional, em relação aos usos que podem e devem ser legitimados
socialmente.
Devemos lembrar aqui que, no final do século XIX, tem-se, como propõe
Orlandi (2002), o deslocamento do lugar de produção de conhecimento sobre a língua
de Portugal para o Brasil – a Grammatica portugueza, de Julio Ribeiro, primeira
gramática publicada no Brasil, data de 1881. Os estudos linguísticos sobre língua
portuguesa a que se tinha acesso até então eram oriundos de Portugal, mas a esta época
alguns intelectuais brasileiros, influenciados pelos ideais românticos, começaram a
pensar a língua portuguesa e, mais do que isso, passaram a pensá-la na sua relação com

1
As colunas de Cândido Figueiredo foram reunidas no livro Falar e escrever: Novos estudos práticos da
língua portuguêsa ou consultório popular de enfermidades da linguagem; e as de Cândido Lago em O
que é correcto – A verdade na Analyse: respostas a consulentes.

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas

os falantes brasileiros, isto é, em relação ao uso que aqui se fazia dela. Assim sendo,
com tal deslocamento, não se trata mais tão somente de uma relação, no que tange à
disputa pela legitimidade de determinados usos linguísticos, conforme Orlandi (idem, p.
161), “entre portugueses e brasileiros, e entre teorias científicas sobre a linguagem”,
mas também “entre brasileiros e brasileiros”, que incluem, excluem, valorizam,
hierarquizam, estigmatizam, explicam etc. determinados usos.
É preciso observar também que, como vimos em Teyssier (2001), Alencar fora
acusado de “escrever uma língua incorreta”. Isto é, não havendo ainda legitimidade
perante a sociedade, o uso defendido pelo escritor era significado como da ordem do
erro, como algo que não era considerado língua portuguesa. É válido lembrar aqui que a
noção de erro, com o desenvolvimento dos estudos linguísticos, sofreu um
deslocamento. Muitas vezes, em vez de erro, atualmente, fala-se em variação ou em
adequação a um determinado contexto sociocomunicativo, ficando a noção de erro
restrita, na maioria dos casos, a questões puramente ortográficas.
Essa noção de erro como algo que está fora da língua, contudo, sob a qual foi
rotulado por muitos o dizer de Alencar, é recorrente nos consultórios gramaticais dos 150
séculos XIX-XX. Assim sendo, a despeito da importância de Figueiredo no que tange à
defesa dos considerados “bons modelos de vernaculidade”, conclui o filólogo Antenor
Nascentes em 1939: “Como se vê, estamos no pleno domínio do certo ou errado”, “o
que não está nos clássicos está errado; a língua perdeu o direito de transformar-se”
(Nascentes, 2003 [1939], p. 196- 197). Tal tensão entre o certo e o errado se materializa
desde os títulos dos consultórios de Figueiredo e de Lago (“O que se não deve dizêr” e
“O que é correcto”), mas também na forma como são nomeados a textualidade em
questão (consultórios), o colunista (consultor), o leitor que remete suas perguntas ao
colunista (consulente) e a sua prática (consulta) a partir da, como explica Medeiros
(2010), significação da língua no discurso médico.
De acordo com a autora, na coluna de Floriano Lemos, “Crônica Científica”,
publicada no jornal Correio da manhã, durante o governo JK (1956-1961), a língua era
significada no discurso médico como “algo a ser tratado, algo a ser curado” (idem, p.
288). Por isso, o seu objetivo era justamente “tratar dos problemas de saúde da língua”
(idem, ibidem). Embora a coluna de Lemos tenha o funcionamento um pouco distinto do
das colunas de Lago e de Figueiredo – visto que a sua temática não abordava somente
problemas linguísticos, mas também, conforme Medeiros (2003), assuntos referentes a
problemas de saúde, e que ter como “mote” a consulta de leitores que buscam respostas

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas

para as suas dúvidas a respeito de usos próprios à “norma culta” da língua portuguesa
não era uma constante –, nas colunas de Lago e Figueiredo publicadas na mídia
impressa no final do século XIX e início do século XX também se observa essa
significação de questões linguísticas no discurso médico. A língua é vista como algo
doente que precisa ser tratado, e os erros cometidos pelos usuários e pela imprensa são
considerados empregos viciosos que a fazem adoecer. Assim materializa-se a oposição
que mencionamos anteriormente entre o que é considerado, tanto da parte dos
consulentes quanto dos consultores, incorreto e o que é considerado correto, entre o que
é “português” e o que é “erro”, “asneira”, “chacota”, “gramática de negro”, “desvio”,
“corrupção”.

Medeiros e Oliveira (2012), ao se debruçarem sobre O dialeto caipira, de


Amadeu Amaral, livro que, conforme os autores, inaugura a segunda fase dos estudos
dialetais no Brasil, em 1920, lembram-nos que o fato de, com o deslocamento do lugar
de produção das gramáticas de língua portuguesa de Portugal para o Brasil no século
XIX, passar-se a ter, retomando Orlandi (2002), também uma relação entre brasileiros e
brasileiros, não significa que não seja possível perceber um sujeito que, ainda que 151

brasileiro, “fala em grande medida do lugar do português” (Medeiros; Oliveira, 2012, p.


154). É nesse sentido que os autores, seguindo seu raciocínio, afirmam que, na obra em
questão, o “dialeto caipira” é considerado “a partir de uma posição de quem fala do
lugar do lusitano, significando o ‘dialeto’ do lugar da corrupção, da contaminação, da
falta, do inculto, dos ‘roceiros ignorantes e atrasados’” (Amaral, 1920, p. 1 apud
Medeiros; Oliveira, idem, ibidem).
Ainda conforme Medeiros e Oliveira (idem), há na obra de Amadeu Amaral uma
divisão que comparece com a denominação “dialeto caipira”, que é significado, por um
lado, como “dialeto bem pronunciado”, por outro, como “língua falada que se
corrompeu”. Logo, conforme os autores, em Amaral, não se fala da língua propriamente
dita, mas de parte dela, de uma “dialetação da língua portuguesa”. O “falar caipira” é,
pois, nesse sentido, resultado “de deturpação daquilo que já era cópia – ainda que bem
feita – de uma língua”. Sob essa ótica, como destacam os autores, “a língua falada no
Brasil é posta como dialetação, reprodução (imperfeita) da língua-matriz lusitana. O
‘dialeto caipira’ é da ordem do vício, da corrupção, do atraso”. (Medeiros; Oliveira,
2012, p. 158).

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas

Assim como Amaral, Cândido Lago, filólogo brasileiro que escreve colunas
sobre língua num jornal de grande circulação no Brasil no final do século XIX e início
do século XX, ao prescrever determinados usos em detrimento de outros, também fala
do lugar do português. Fato este que pode ser comprovado pelas autoridades citadas
pelo filólogo: tanto os exemplos retirados da literatura quanto de dicionários são de
produção portuguesa (Camões, Alexandre Herculano, Almeida Garret, Caldas Aulete,
entre outros). Portanto, a correção prescrita no seu consultório espelha na verdade uma
certa norma escrita lusitana e não a escrita/falada no Brasil na época em questão, como
podemos observar na sequência a seguir:

(...) a fórma –“há tempo que te não vejo”, é seguida hodiernamente


por bons escriptores portugueses.
Diz o Sr. T.C. que agrada mais ao seu ouvido ouvir dizer –“há tanto
tempo que não te vejo”. A isto, respondo, que todos acham mais
agradável ao ouvido, aquillo a que estão habituados; por conseguinte,
esse argumento não tem valor algum; quem diz habitualmente – no
nosso meio viciado – “vou na cidade, cheguei em nossa casa, ele é tão
surdo que não escuta nada”, diz uma sucia de asneiras; e, entretanto,
agrada-lhe isso mais do que o correcto – “vou à cidade, cheguei a
casa, ele é tão surdo que não ouve nada”. 152
Portanto, sem receio de errar, póde dizer – –“há tempo que te não
vejo!”, na certeza de que fala correctamente a sua língua.
O ouvido de um ente que vive num meio viciado, póde, porventura,
ter algum valor no caso de que se trata? (Lago, 1911, p. 126). [itálico
do autor; sublinhado meu]

No inserto acima, note-se ainda que o consultor coloca a incorreção, o erro, no


mesmo eixo semântico do vício (“meio viciado”) e da asneira (“sucia de asneira”).
Lembremos que os consultórios de Lago são escritos de um brasileiro para brasileiros,
porém, apesar disso, aquilo que incomoda o consulente – a questão da colocação
pronominal, que a esta época já havia sido debatida por nossos escritores românticos – é
comparado ao emprego da regência dos verbos ir e chegar com a preposição em em vez
de a, emprego este tipicamente brasileiro. Ou seja, aquilo que Lago está chamando de
vício consiste, na verdade, em empregos próprios, já naquela conjuntura, à modalidade
brasileira da língua, os quais, entretanto, ainda causavam estranhamento em muitos
especialistas da linguagem.
Este lugar de que fala Lago – lugar que dissemos ser o do português, e não o do
brasileiro que fala sobre a sua língua –, contudo, não é ocupado somente pelo consultor,
mas por vezes também pelos consulentes que, em suas consultas, buscam deslegitimar a

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas

fala dos gramáticos brasileiros2. Seria ilusão, todavia, supor que essa norma portuguesa
prescrita nos consultórios de Lago e de Figueiredo é unívoca. Ao contrário, havia
também entre esses dois consultores divergências, de modo que o primeiro chegou a
fazer um comentário em uma de suas colunas desautorizando o segundo3, assim como
havia também entre os gramáticos e filólogos portugueses. Do mesmo modo, a norma
prescrita nos consultórios de Figueiredo passava a incomodar os estudiosos brasileiros
que naquela época, de forma ainda incipiente, construíam o lugar do especialista
brasileiro que fala sobre a sua própria língua, não mais a partir do olhar português.
Referimo-nos aqui aos trabalhos de Mario Barreto e de Heráclito Graça, cujas críticas a
Figueiredo, publicadas na mídia impressa na mesma época, foram reunidas,
respectivamente, nos livros: Estudos da língua portuguesa e Factos da linguagem.
Assim sendo, em conformidade com o que propõe Orlandi (2002, p. 161), a
partir da leitura dos consultórios de Lago e Figueiredo é possível depreender a
existência, nessa conjuntura, de um embate linguístico-teórico não só “entre portugueses
e brasileiros”, mas também “entre brasileiros e brasileiros” e, nós completaríamos, visto
que nem mesmo em Portugal havia ainda uma uniformidade, entre portugueses e 153
portugueses, com a diferença de que, no que tange à literatura e aos estudos gramaticais,
os portugueses já tinham um lugar social de saber configurado, ao passo que os
brasileiros ainda buscavam, a partir da depreensão dos usos feitos pelos escritores da
nossa literatura, que tinha então menos de um século, instituir e legitimar os estudos
sobre língua aqui desenvolvidos. Tal fato foi o que, a nosso ver, acarretou o
silenciamento, salvo raríssimas exceções, dos estudiosos do Brasil, até mesmo nas
colunas do filólogo brasileiro.
Como materialização dessa distinção de lugares de se dizer da língua e sob a
ilusão de unidade linguística entre Brasil e Portugal, criou-se uma dicotomia
(imaginária) entre o certo e o errado, entendendo-se como o que é certo a própria língua

2
“O Sr. P. Sarmento consulta, se é correcto dizer, como se lê em ilustrado artigo do moço Dr. Mario
Barreto (...)” (Lago, 1911, p. 106). [itálico do autor; sublinhado meu]
“O Sr. Vincentius consulta:
a) -- Se é correcto o seguinte trecho, que se lê nas cartas philológicas do Sr. Mario Barreto (...).
b) Se não são errôneas as três expressões seguintes (que se acham na grammatica dos finados Pacheco
Junior e Lameira Andrade) (...)” (idem, p. 119). [itálico do autor; sublinhado meu]
3
“‘Se podér, se podéres, poderá, podésse, etc.’, estão bem escriptos com ‘o’, porque são derivados de
‘podéste’, (e não de ‘pude’, como se julgava em tempos idos).
Para provar que esta é a verdade, basta ver que é de ‘foste’ (e não de ‘fui’), que se derivam ‘fôra, fosse,
for’.
Na minha opinião, pois, erra Candido de Figueiredo, escrevendo ‘pudeste’, etc., com ‘u’, graphia
antiquada, que está hoje provado ser erronea". (idem, p. 114) [itálico do autor; sublinhado meu]

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas

portuguesa ou, como vemos em Figueiredo, o “bom português” (1906, p. 64), português
este que, como dissemos anteriormente, reflete o uso feito pelos escritores e a grafia
aceita pelos lexicógrafos lusitanos. O errado, por sua vez, não é português, é “gramática
de negro” (idem, p. 146), é “asneira”, “chacota”, “vício”, “desvio”, “corrupção”,
incluindo-se aí algumas construções próprias da modalidade brasileira, como muitas
vezes vimos nos consultórios de Lago e Figueiredo.
Desse modo, assim como observaram Medeiros e Oliveira (2012) a respeito d’ O
dialeto caipira, de Amadeu Amaral, os consultórios gramaticais do final do século XIX
e início do século XX, embora se propusessem a falar sobre “a língua portuguesa”, ao
prescreverem aquilo que se julgava ser correto, abordavam uma certa dialetação da
língua portuguesa, tomando-a como se fosse toda a língua, isto é, a única possibilidade
de se dizer em português. Em oposição a essa dada dialetação, estava, pois, aquilo que
se julgava ser vício, corrupção, ou seja, tudo aquilo que destoasse dessa dialetação tida
como perfeita, inclusive alguns usos próprios da dialetação brasileira.

Para fechar e pensar novos percursos a se traçar 154


A partir da reflexão que tecemos aqui, foi-nos possível observar a constituição,
nos séculos XIX-XX, de espaços de se dizer da língua que, na mídia impressa,
consagraram-se historicamente como consultórios gramaticais, bem como o modo como
a língua portuguesa neles é significada a partir de distintos lugares na conjuntura em
questão. Como desdobramentos possíveis para a nossa análise das colunas de Bechara
publicadas no século XXI no Jornal O Dia, uma vez que nelas, com exceção do termo
consulta, que é empregado uma única vez, não comparecem as designações consultório,
consulente e consultor, pretendemos pensar se há e, se houver, como se dá a filiação da
coluna assinada por Bechara a essa memória. É de nosso interesse também, levando-se
em consideração que no contexto de produção das colunas de Bechara já se tem o pré-
construído da Sociolinguística, refletir a respeito dos efeitos produzidos a partir do
deslocamento da noção de erro. Além disso, retomaremos nossa reflexão a respeito de
como a significação da língua portuguesa na sua dimensão transnacional (Zoopi-
Fontana, 2009) produz efeitos na sua dimensão nacional, materializando-se nos
instrumentos linguísticos produzidos no Brasil por brasileiros para brasileiros.

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas

Referências Bibliográficas

AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. Eni P. Orlandi. 2ª.


ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2009a.

________. Filosofia da linguagem. Trad. Marcos Marcionilo. SP: editora Parábola,


2009b.

ELIA, S. Os estudos filológicos no Brasil. In: Ensaios de filologia e linguística. Rio de


Janeiro: Grifo, 1975, pp. 117-176.

FIGUEIREDO, Cândido de. Falar e escrever: Novos estudos práticos da língua


portuguêsa ou consultório popular de enfermidades da linguagem. 2ª. Série. Lisboa,
Livraria Clássica Editora, 1906.

_________. Lições práticas da língua portuguêsa. Vol. I 5ª.ed. Lisboa, Livraria


Clássica Editora, 1911 [1891].

_________. O que se não deve dizer. Lisboa: Livraria editora Tavares Cardoso &
Irmão, 1903.

GRIGOLETTO, Evandra. Do lugar discursivo à posição-sujeito: os movimentos do


sujeito-jornalista no discurso de divulgação científica. In: MITTMANN, S.,
GRIGOLETTO, E. e CAZARIN, E. (Orgs.). Práticas discursivas e identitárias: sujeito 155
e língua. Porto Alegre: Nova Prova, 2008, p. 47-65.

GUIMARÃES, Eduardo. Sinopse dos estudos do português no Brasil: a gramatização


brasileira. Campinas, SP: Pontes, 1996. Separata de: GUIMARÃES; ORLANDI (org.).
Língua e Cidadania: o português do Brasil. Campinas, SP: Pontes, 1996. p. 127-138.

_________. Metodologia: história do saber e instituições. In: História da Semântica.


Campinas, SP: Pontes, 2004, p. 11-22.

_________. Panorama e Periodização. In: História da Semântica. Campinas, SP:


Pontes, 2004, p.23-26.

_________. Acontecimentos institucionais e estudos do português. In: História da


Semântica. Campinas, SP: Pontes, 2004, p. 27-52.

MARCONDES, Iara Lúcia. Os consultórios gramaticais: um estudo de preconceito e


intolerância linguística. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008. 179f.

LAGO, Cândido. O que é correcto – A verdade na Analyse: respostas a consulentes.


Rio de Janeiro: Pap. Moderna – Parreira & C., 1911.

MARIANI, Bethania.“Entre a evidência e o absurdo: sobre o preconceito linguístico”.


In: Revista Letras, Santa Maria, v.18, n.2, p. 19-34, jul./dez. 2008.

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.
História das Ideias Linguísticas

MEDEIROS, V. “Sabendo (d)a Língua pelo Jornal: o que colunas, publicações e


produção de material nos dizem da língua”. In: MEDEIROS, V.; TEDESCO, T.
Travessias nos estudos de língua portuguesa - Homenagem a Evanildo Bechara e
Olmar Guterres. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2010.

__________. Dizer de si através do outro: do heterogêneo no identitário brasileiro.


Tese de doutorado, UFF, 2003.

MEDEIROS, Vanise G.; OLIVEIRA, Thiago M. “O Dialeto Caipira, de Amadeu


Amaral: Discurso Fundador e Acontecimento Discursivo”. In: Revista Confluência,
NÚMERO 41/42 – SUMÁRIO – 2.º SEMESTRE DE 2011 / 1.º SEMESTRE DE 2012.

NASCENTES, Antenor. A filologia portuguesa no Brasil (1939). In: NETO, Raimundo


Barbadinho (org.) Estudos filológicos: volume dedicado à memória de Antenor
Nascentes. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2003, pp. 186-204.

NETO, Serafim da Silva. Introdução ao estudo da Língua Portuguesa no Brasil. 2ª. ed.
aum. e rev. Instituto Nacional do Livro. Ministério da Educação e Cultura. Rio de
Janeiro, 1963.

ORLANDI, Eni. (org.). História das Idéias Lingüísticas: constituição do saber


metalingüístico e constituição da língua nacional. Campinas, SP: Pontes, 2001.

_______ . Língua e conhecimento linguístico: para uma história das ideias no Brasil. 156
São Paulo: Cortez, 2002.

_______ . Análise de Discurso – princípios e procedimentos. 7ª edição − Campinas, SP:


Pontes, 2007.

ORLANDI, Eni & GUIMARÃES, Eduardo. “Produção de um espaço de produção


lingüística: a gramática no Brasil” IN: Orlandi (org). História das Idéias Lingüísticas:
constituição do saber metalingüístico e constituição da língua nacional. Campinas, SP:
Pontes, 2001.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4ª ed.


Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.

TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ZOPPI-FONTANA, Mônica Graciela. O português do Brasil como língua


transnacional. In: ZOPPI FONTANA, Mônica Graciela (org.). O português do Brasil
como língua transnacional. Campinas: Editora RG, 2009, p. 13-41.

Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 147-156, 2013.

Você também pode gostar