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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429 www.revistaliteris.com.

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Maio 2009

Um diálogo entre a lingüística e a antropologia sobre o


caráter crítico- descritivo dos estudos científicos

Rômulo Pinto de Souza1


(UFF)

Resumo:
Esse artigo pretende observar a contribuição da lingüística para um estudo
antropológico no que diz respeito à descrição da realidade observada. Para isso, propõe-
se um recorte sob o caráter crítico, que se espera do pesquisador, acerca da descrição
científica de seu objeto de estudo retirado do real. No entanto, cabe-me ressaltar o
recorte, a que se propõe essa discussão, no desenvolvimento da categoria “registro”
como o primeiro passo de uma reflexão surgida na pesquisa de iniciação científica
intitulada, “Interfaces e diálogos no processo de elaboração do registro dos produtos
multimídia”. Assim, essa visa a estabelecer o diálogo já proposto nesta entre a
“instrumentalização” teórica da ciência da linguagem e a antropologia na representação
lingüística da realidade estudada.
Palavras chave: Lingüística – Estudo antropológico – Caráter crítico-descritivo –
diálogo – registro
Abstract:
This article aims to observe the contribution of linguistics to an anthropological
study as regards the description of the observed reality. For this, it is proposed a cut in
the critical feature that is expected of the researcher, about the scientific description of
its object of study taken from the real. However, it is for me the highlight clipping, as
this discussion suggests, the development of the "record" as the first step of a reflection
has emerged in the research of scientific initiation entitled, "Interfaces and dialogues in
the process of preparing the record of multimedia products." Thus, it aims to establish
dialogue between the already proposed this "instrumentalization" of the theoretical
science of language and linguistic anthropology in the representation of reality studied.

1
Graduado em Português/literaturas (UFF), graduando em Português/alemão (UFF) e atualmente cursa a
especialização em leitura e produção de textos (UFF). Tem experiência na área de Letras, atuando
principalmente nos seguintes temas: alteridade, diálogo e contexto.
Endereço eletrônico: romulopsouza@gmail.com.
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Keywords: Linguistics - Study anthropological - Character - critical-descriptive -


dialogue – Registered.

“As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e


dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior
parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num
espaço em que nenhuma palavra nunca pisou.”

Rainer Maria Rilke, in Cartas ao Jovem Poeta.

Esse artigo surgiu após o desenvolvimento de uma pesquisa intitulada: Interfaces


e diálogos no processo de elaboração do registro dos produtos multimídia. Por sua vez,
esta objetivava a exposição do Acervo cultural expresso por mídias, que precisavam ser
registradas como forma de consolidar e difundir o conhecimento adquirido pela ação de
nosso grupo de estudo em sociedade. No entanto, a adequação da linguagem utilizada
em tal empreendimento para o público alvo, constituído por estudantes e pesquisadores,
trouxe-me a oportunidade de mesclar a prática exercida no projeto com o levantamento
de teorias lingüísticas conhecidas pelo meio acadêmico. 1
Assim, tal processo de manuseio com os materiais promoveu a união entre os
saberes já obtidos em minha primeira graduação em letras com perspectivas de outras
ciências, que fomentaram a complexa questão quanto ao uso dos estudos de linguagem e
à sua abordagem em meios tipicamente orais.
E, a partir desta reflexão de instrumentalização teórica, comecei a rever algumas
questões sobre a manifestação de linguagem, já suscitadas em minha formação
universitária, como o caráter descritivo em que podemos vê-la e o seu aspecto de
registro. Por isso, desenvolverei todo o meu discurso com o foco nessas dúvidas que
permeiam a categoria de registro e as suas conseqüências para os estudos científicos de
duas áreas específicas: A Antropologia e a lingüística.
A primeira ciência veio ao encontro da última, visto que as coincidências foram
muitas durante as primeiras leituras dessa pesquisa. Acrescenta-se a isso o auxílio
proporcionado pelo diálogo exercido com o meu orientador, o qual soube me inserir no
mundo antropológico, apesar de pouco ainda saber sobre este campo. Pois, como diria
Jakobson: “Se, agora, estudamos a linguagem juntamente com os antropólogos,
devemo-nos regozijar com a ajuda que eles nos trazem.” (JAKOBSON, 2005: 17)
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Foi esse o auxílio procurado nas leituras de Lévi-Strauss 2 e de Geertz 3 a


respeito da lingüística, como a ciência social que objetiva, de modo mais abstrato do
que o utilizado na Antropologia, registrar a cultura observada por seu pesquisador.
Dessa forma, o diálogo entre a metodologia dessas disciplinas, no que se refere à
discussão da instrumentalização teórica da ciência da linguagem, poderá enriquecer um
ponto de vista científico interdisciplinar nos campos científicos aqui já citados.
Essa perspectiva está em um trecho do capítulo Linguagem e Sociedade, de
Antropologia Estrutural, e analisada segundo o critério de interdependência esperado na
atitude do pesquisador, visto que: “A interdependência do observador e do fenômeno
observado é uma noção familiar à teoria contemporânea.” (LÉVI-STRAUSS, 1996: 71)
E, mais adiante, pode-se observar que:
“Trata-se então, sempre, de condutas individuais, estudadas por um
observador que é ele mesmo um indivíduo, ou mais ainda, do estudo de uma
cultura, de um ‘caráter nacional’, de um gênero de vida, por um observador
incapaz de se desembaraçar completamente de sua própria cultura ou da cultura
da qual toma seus métodos e hipóteses de trabalho, que provêm eles mesmos de
um tipo determinado de cultura”. (LÉVI-STRAUSS, 1996: 72)

Assim, esse primeiro foco avalia a complexidade de uma análise antropológica,


tendo em vista o caráter pessoal da pesquisa desta natureza. Isso põe em questão, em
outras palavras, a mescla da perspectiva do pesquisador com a pertencente ao meio
observado. O que expressa uma dualidade que existe também na lingüística.
Já Geertz demonstra, quando menciona o trabalho antropológico da etnografia,
tal situação sob o mesmo aspecto, pois:
“Nos escritos etnográficos acabados, inclusive os aqui selecionados, esse
fato- de que o que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria
construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se
propõem- está obscurecido, pois a maior parte do que precisamos para
compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma idéia, ou
o que quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da coisa em
si mesma ser examinada diretamente.” (GEERTZ, 1989: 19)

Neste, o objeto é analisado como o acontecimento particular e o que quer que


seja são vistos, nas palavras do antropólogo, a partir de um viés obscurecido. Mas tudo
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recebe um nível de informação de fundo sob o olhar daquele que faz a etnografia. Esse,
por sua vez, convive com a cultura e registra o meio observado através de sua
construção própria ou, em outras palavras, a sua idiossincrasia.

A linguagem, então, está como recorte de uma realidade mais direta, ainda que o
processo lingüístico se faça através da abstração dos elementos culturais observados. O
lingüista não tem uma construção própria do que analisa. Afinal, essa faz parte da
sociedade a qual pertence e exerce uma outra função no estudo antropológico. É o que
diz Lévi-Strauss quanto à metodologia lingüística:
“Somos levados, realmente, a indagar se diversos aspectos da vida social
(aí compreendidas a arte e a religião) – cujos estudos já sabemos que podem se
valer de métodos e noções tomados da lingüística – não consistem em fenômenos
cuja natureza se assemelha à da linguagem.” (LÉVI-STRAUSS, 1996: 78)
E tal comparação entre os métodos é feita, de forma mais explícita, no trecho:
“Toda a demonstração, cujas articulações principais recordamos acima,
pôde ser bem conduzida sob uma condição: considerar as regras do casamento e
os sistemas de parentesco como uma espécie de linguagem, isto é, um conjunto
de operações destinadas a assegurar, entre os indivíduos e os grupos, um certo
tipo de comunicação.”
(LÉVI-STRAUSS, 1996: 77)
Dessa forma, os estudos de linguagem também exercem o seu auxílio ao registro
dos estudos antropológicos com o objetivo de precisar a cultura pesquisada de forma
estrita e menos indireta. Sob isso, ainda observamos o antropólogo dizer que:
“De todos os fenômenos sociais, somente a linguagem parece presentemente suscetível
de um estudo verdadeiramente científico, que explique a maneira pela qual ela se formou e
preveja certas modalidades de sua evolução ulterior.” (LÉVI-STRAUSS, 1996: 74)
Esses seriam uma forma de obedecer a um critério que ainda persistiu durante
muito tempo entre os cientistas. A antiga defesa da objetividade no campo científico,
porque uma descoberta, no ramo da ciência, estaria isenta de tendências pessoais.4 Idéia
encontrada em um livro de semiótica publicado na década de 80 no Brasil.5 Pois para o
autor:
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“O mecanismo lógico da descoberta científica independe de tendências


subjetivas e, portanto, não se confunde com uma suposta necessidade psicológica
de dependência da tradição. A atividade da ciência normal não é um dado
psicológico, mas uma prática institucional dos cientistas que pode ter sido
descrita nos parágrafos acima, se for tomado como marco básico o quadro de
referência teórica condutor da comunidade científica.” (NEIVA JÚNIOR, 1983:
13)
Com essa declaração, a antropologia não seria atividade de ciência normal por
depender de critérios pessoais em sua descrição, enquanto a lingüística poderia
estabelecer, por si só, um registro da comunidade observada. Por isso, a proposta desse
artigo é confrontar tais teorias e problematizá-las com o intuito de evitar equívocos que
excluam o caráter crítico dos estudos científicos.
Confrontá-las, a partir de um único recorte, é uma forma de retomar um diálogo
já começado entre ambas e respeitar a tão exigida interdisciplinaridade nos centros
acadêmicos atuais.
Jakobson, no século passado, declarou tal indignação em um artigo e propôs o
mesmo. Uma união entre o método antropológico e lingüístico sob a perspectiva
comunicativa de sua teoria. Disse o lingüista em uma conferência 6 : “Cada um de nós
aqui – posso dizer – emitia uma nota diferente, mas éramos todos como tantas variantes
de um mesmo e único fonema.” (JAKOBSON, 2005: 16)7
E são os diferentes modos de experimentação que devem ser ressaltados nessa
discussão. Pois tanto a antropologia quanto a lingüística, cada uma ao seu modo,
enfrentam a complexa necessidade de registro do fenômeno observado. Isso explica,
então, o caráter complementar exercido entre ambas.
O papel da lingüística na antropologia é o de registrar com mais concretude as
manifestações culturais que são captadas pela linguagem do meio social observado. No
entanto, o plano da oralidade não coincide com a escolha central dessa ciência pela
modalidade escrita.
Essa perspectiva assombra demais aos lingüistas, porque já a encontramos como
proposta reflexiva pelo próprio Saussure no século XX. Pois: “como a linguagem
escapa as mais das vezes à observação, o lingüista deverá ter em conta os textos
escritos, pois somente eles lhe farão conhecer os idiomas passados ou distantes.”
(SAUSSURE, 1972: 13) 8
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Aí está o que esse artigo entende por complexidade do aspecto de registro pela
linguagem: O ato de registrar não pode ser analisado como mera observação do meio
pesquisado. Por isso, faz-se necessário a análise crítica desse processo no diálogo entre
as disciplinas que apresentam, em um primeiro momento, diferenças no modo como
encaram, de forma científica, a realidade pesquisada.
Lévi-Strauss ressalta tal interdisciplinaridade quando diz que:
“Cabe ao lingüista dizer se as estruturas lingüísticas destas regiões podem ser,
mesmo aproximadamente, formuladas nos mesmos termos ou em termos equivalentes.
Se tal sucedesse, teria sido dado um grande passo para o conhecimento dos aspectos
fundamentais da vida social.” (LÉVI-STRAUSS, 1996: 82) 9

O grande passo está na colaboração em que a ciência da linguagem pode exercer


para o trabalho do antropólogo, uma vez que o inverso também ocorre. Pois, ainda
Saussure na obra fundamental para os lingüistas exorta que:
“A lingüística tem relações bastante estreitas com outras ciências, que
tanto lhe tomam emprestados como lhe fornecem dados. Os limites que a
separam das outras ciências não aparecem sempre nitidamente. Por exemplo, a
Lingüística deve ser cuidadosamente distinguida da Etnografia e da Pré-história,
onde a língua não intervém senão a título de documento; distingue-se também da
Antropologia, que estuda o homem do ponto de vista da espécie, enquanto a
linguagem é um fato social” (SAUSSURE, 1972: 13) 10

Essa relação estreita de que fala o lingüista exorta-nos a respeito do diálogo em


comum que deve existir entre a ciência da linguagem e as outras disciplinas. O mesmo,
por sua vez, completaria lacunas já inerentes à insuficiência de um estudo lingüístico
não-dialógico.
A descrição de uma realidade deve observar todas as manifestações culturais
encontradas na linguagem do meio observado. Afinal, esse é apenas um dos mais
diversos meios de se descrever a cultura popular, a sua história e desenvolvimento. É o
que vemos no discurso de Geertz em relação ao método etnográfico, pois:

“Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer


relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear
campos, manter um diário, e assim por diante. Mas não são essas coisas, as
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técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que


define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para
uma “descrição densa”, tomando emprestada uma noção de Gilbert Ryle.”
(GEERTZ, 1989: 15) 11

No entanto, devemos destacar o que ele chama de risco elaborado nesse tipo de
trabalho. Isso revela o fato de que registrar o campo pesquisado é uma ação muito
complexa e a etnografia não é pura técnica. Ou seja, em outras palavras, essa não se
atém ao registro formal pela linguagem, apesar desta assumir a função de instrumento
imprescindível.
Tal descrição densa perpassa todos os aspectos vividos pelo etnógrafo em
campo. O antropólogo consciente dessa teia difusa, em que está emaranhado, atua, de
forma crítica, diante do caráter descritivo do seu trabalho, enquanto o lingüista deve
perceber o diálogo, inerente aos estudos lingüísticos, com outras disciplinas, como a
Antropologia.
É o que observamos Goody, quando este diz que:

“A escrita é evidentemente uma variável múltipla, tanto em termos de


técnica como em termos de utilização (restrita ou não) e do seu armazenamento
acumulado. A palavra escrita toma muitas formas diferentes, que por sua vez
influenciaram as tendências que ela é susceptível de encorajar. Em qualquer dos
casos, a forma que toma não é mais que um fator a influenciar uma situação
particular.” (GOODY, 1986:197)

Dessa forma, a distância entre as modalidades distintas da linguagem fica


evidente. A escrita não possui o mesmo privilégio da oralidade e essa questão é muito
recorrente nos estudos da ciência da linguagem. Como ilustração explicativa, podemos
recorrer ao que diz Vinicius de Morais quanto ao seu contato com a escrita: “A poesia é
fruto da vida de cada um. Meu pensamento não é abstrato, está sempre relacionado à
minha experiência de vida.” (STEEN, 2008:11) 12
O grande poeta brasileiro também foge ao mero registro na composição de suas
obras, que surgem do modo como descreve o seu cotidiano. Entretanto, ainda que essa
atitude seja comum no gênero poético, este exemplo ilustra com precisão a questão já
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colocada nos parágrafos anteriores a respeito desse aspecto da linguagem sob o prisma
de quem vive de sua instrumentalização.
Já os lingüistas observam-na de forma semelhante, mas com o foco para a
ciência desta. A crítica, nesse caso, insere-se no lugar em que a mesma ocupa dentre as
outras ciências. Vide Jakobson: “Em relação à linguagem, todos os outros sistemas de
símbolos são acessórios ou derivados. O instrumento principal da informação
comunicativa é a linguagem.” (JAKOBSON, 2005: 18) 13
Descrever não é registrar apenas. O questionamento desse processo persiste no
momento em que os cientistas o encontram em suas pesquisas. Na lingüística, isso
ocorre na profusão de novos termos surgidos de uma análise teórica da realidade de uma
língua pesquisada. Crítica notória já feita pelo próprio Jakobson, quando esse diz: “Os
termos novos são, muitas vezes, a doença infantil de uma nova ciência ou de um ramo
novo de uma ciência.” (JAKOBSON, 1975: 19) 14
Aqui chegamos, finalmente, ao tema central desse artigo: A discussão do que
considero caráter crítico-descritivo dos ramos científicos abordados. Para isso,
observaremos o texto de Foote-Whyte e o seu conceito de observação de participante,
como uma revisão concisa dos problemas levantados nesse amplo diálogo, proposto até
aqui, entre a Antropologia e a Lingüística.
De certa forma, podemos considerá-lo a melhor exemplificação das questões
suscitadas até este parágrafo. A sua descrição rica nos auxilia a confrontar o que já
discutimos na observação científica registrada e, também, a sua postura crítica no
entendimento do conceito de participação em sua etnografia.
Ambas conjugam uma visão antropológica de sua vivência na cidade de
Corneville a um discurso leve para além do simplório registro da comunidade
observada. É o que vemos em um trecho, quando o antropólogo diz sobre o contato com
um habitante: “Algumas interpretações que fiz são mais dele do que minhas ainda que
agora seja impossível distinguí-las”. (FOOTE-WHYTE, 1975: 80)
Podemos entendê-lo, então, como um modo do próprio escritor lidar com a
crítica observada por Geertz ao comprometimento do antropólogo com o meio descrito.
As suas interpretações não são o resultado de uma visão idiossincrática e sim, de sua
co-participação na sociedade. Cooperação já discutida nesse artigo, quando analisamos
a relação entre o pesquisador e o objeto observado.
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Isso também promove a reflexão sobre a aproximação entre o caráter descritivo


de uma pesquisa e o seu modo de observação. O que explica, por vezes, a dúvida
semântica em uma transcrição científica quanto ao ato de pesquisar, apesar de uma
pesquisa sempre pressupor um exímio observador dos dados a serem coletados.
Tal questão se intensifica com o ato, não menos complexo, de registrá-los a
partir de uma instrumentalização teórica proporcionada pelo uso da linguagem. Essa
colabora na tentativa de reconstrução de uma realidade social analisada e serve como
quadro lingüístico dos eventos de uma sociedade específica, antes só transmitidos pela
oralidade.
No entanto, além da natureza instrumental, a lingüística preocupa-se com a
linguagem em sua manifestação sócio-cultural e não apenas com a sua propriedade
finalística. Fato inicialmente levantado, no ramo científico, por Saussure na tão famosa
dicotomia langue / parole. 15
Já, no trabalho antropológico, essa distinção assume maiores proporções, porque
é um caráter identificador do discurso diagnosticado. Foote-Whyte percebe isso quando
demonstra a sua lucidez na observação da comunicação estabelecida em Corneville:

“Em Corneville eu falava mais entusiasticamente, engolindo os finais e


gesticulando muito. (Naturalmente, havia também diferença no vocabulário que
utilizava. Enquanto estava profundamente envolvido em Corneville, durante as
minhas visitas a Harvard me via de língua travada (...)” (FOOTE-WHYTE, 1975
:82)

Nota-se aqui a distinção entre o modo de falar exigido pela situação discursiva.
Esse recurso utilizado pelo próprio pesquisador é parte de uma consciência crítica da
metodologia empregada e uma forma de se inserir na comunidade que era observada.
Ao mesmo tempo, soube aliar o método antropológico ao conhecimento lingüístico
necessário à sua pesquisa.
A sua descrição tornou-se densa a partir do diálogo entre os saberes que possuía.
Esta não foi reproduzida, mas registrada como um documento importantíssimo para as
gerações vindouras. 16 Outro desafio proporcionado ao mundo científico que precisa
acompanhar a distinção entre a oralidade e a modalidade escrita. Afinal, ambas as
disciplinas descrevem aspectos sócio-culturais que existiam antes do mundo escrito.
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Sobre isso, cito um trecho de um texto de Ítalo Calvino, encontrado no livro


“Usos e abusos da história oral”: 17
“(...), se sentimos tão intensamente a incompatibilidade entre o escrito e
o não-escrito, é porque estamos hoje muito mais cientes de que é o mundo
escrito; nunca podemos nos esquecer de que é feito de palavras, de que a
linguagem é empregada de acordo com suas próprias técnicas e estratégias, de
que os significados e as relações entre os significados se organizam segundo
sistemas especiais; estamos cientes de que, quando uma história nos é contada (e
quase todo texto escrito conta uma história, ou muitas histórias, até mesmo um
livro de filosofia, até mesmo o orçamento de uma empresa, até mesmo uma
receita culinária), essa história é acionada por um mecanismo, semelhante a
outros mecanismos de outras histórias.” (CALVINO, 2004: 142).

Tal incompatibilidade sempre irá existir, embora o desafio maior seja o de revê-
la com o caráter crítico de uma descrição, que não perca o elo necessário à realidade
observada. Daí o autor descrever a sua etnografia de Corneville com uma escrita
narrativa. Nela nos sentimos co-participantes de sua proposta e de seu registro daquela
realidade como forma de descrição aproximada de um real distante do leitor.
Essa distinção entre oralidade e escrita também é discutida por Goody, quando
esse fala sobre a introdução desta última na sociedade:
“O que a introdução da escrita ajuda a fazer, contudo, é tornar explícito o
implícito e, ao fazê-lo, a ampliar as possibilidades de acção social, por vezes
expondo contradições tácitas e conduzindo assim a novas resoluções (e
provavelmente a novas contradições), mas também criando tipos mais precisos
de transação e relação, mesmo entre parentes de confiança, que dão a estas
sociedades a força pra suportar circunstâncias mais complexas, mais
‘anônimas’.” (GOODY, 1986: 197)

No entanto, Foote-Whyte apresenta uma visão crítica quanto à interferência da


escrita como instrumento de pesquisa ao final de seu texto: “Estas declarações poderiam
ser fichadas sob o título ‘Atitudes relacionadas a escroques’?” (FOOT-WHYTE, 1975:
p.85) A sua denúncia está contra o surgimento de termos novos a partir do uso da
linguagem com essa finalidade científica, fato que já comentamos com uma declaração
de Jakobson.
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Isto o faz optar por uma nova postura com a adoção da observação participante,
pois parecia a este uma atitude de maior interesse científico. Assim, a sua descrição
devia ultrapassar um caráter de registro particular e evitar um risco muito comum em
campos científicos, que se tornam herméticos pelo mal uso da linguagem. Foote-Whyte,
ao seu modo, proporciona um diálogo entre o método antropológico e o lingüístico,
quando se preocupa em descrever, de forma crítica, a realidade que observou. E essa é a
principal proposta a que se dirige esse artigo.

Notas

1. Pesquisa desenvolvida junto ao meu orientador, o professor doutor Roberto Kant de Lima, que
coordena o NUFEP (Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas), a partir da bolsa de iniciação científica
que me foi concedida.

2. LÉVI-STRAUSS, Claude. Capítulo III Linguagem e Sociedade. IN: Antropologia Estrutural. tradução
de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires ; revisão etnológica de Julio Cesar Melatti. 5. ed. (p. 71 a 83.)
Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 1996.

3. GEERTZ, Clifford. Capítulo 1 - Uma descrição densa: Por uma Teoria Interpretativa da cultura. IN: A
interpretação das culturas. (p. 13 a 41.) Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.

4. Aqui o termo ciência é utilizado no sentido do saber compartilhado e respeitado entre os membros de
uma comunidade científica.

5. NEIVA JÚNIOR, Eduardo. Capítulo 1 - A marcha. IN: Táticas do signo: Semiótica & Ideologia. Rio
de Janeiro: achiamé, 1983.

6. Conferência de Antropólogos e Lingüistas, realizada na Universidade de Indiana, E. U. A. , de 21 a 30


de julho de 1952.

7. JAKOBSON, Roman. A linguagem comum dos lingüistas e dos antropólogos. IN: Lingüística e
Comunicação. (p. 15 a 33.) São Paulo: Cultrix, 2005.

8. SAUSSURE, Ferdinand de. Capítulo II – Matéria e tarefa da lingüística; suas relações com as ciências
conexas. Curso de Lingüística Geral. [4ª edição] São Paulo: Cultrix, 1972.

9. LÉVI-STRAUSS, Claude. Capítulo III Linguagem e Sociedade. IN: Antropologia Estrutural. tradução
de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires ; revisão etnológica de Julio Cesar Melatti. 5. ed. (p. 71 a 83.)
Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 1996.

10. SAUSSURE, Ferdinand de. Capítulo II – Matéria e tarefa da lingüística; suas relações com as ciências
conexas. Curso de Lingüística Geral. [4ª edição] São Paulo: Cultrix, 1972.

11. GEERTZ, Clifford. Capítulo 1 - Uma descrição densa: Por uma Teoria Interpretativa da cultura. IN: A
interpretação das culturas. (p. 13 a 41.) Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.

12. MORAIS, Vinícius de. IN: STEEN, Edla van. Viver & escrever: volume 3 – 2 ed. – Porto Alegre,
RS: L & PM, 2008. 200p.
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13. JAKOBSON, Roman. A linguagem comum dos lingüistas e dos antropólogos. IN: Lingüística e
Comunicação. (p. 15 a 33.) São Paulo: Cultrix, 2005.

14. Id.

15. SAUSSURE, Ferdinand de. Capítulo II – Matéria e tarefa da lingüística; suas relações com as ciências
conexas. Curso de Lingüística Geral. [4ª edição] São Paulo: Cultrix, 1972.

16. Uso a palavra densa sobre a denotação de consistente e de exaustiva, após a leitura do termo
“descrição densa” exposto por Geertz no texto já mencionado anteriormente.

17. CALVINO, Ítalo. Capítulo 10. A palavra escrita e a não escrita. IN: Usos e Abusos da História Oral.
Ferreira, Marieta de Moraes e Amado, Janaína. (org.) (p. 139 a 147.) Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2004.

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CALVINO, Ítalo. Capítulo 10. A palavra escrita e a não escrita. IN: Usos e Abusos da
História Oral. Ferreira, Marieta de Moraes e Amado, Janaína. (org.) (p. 139 a 147.) Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.

FOOTE-WHYTE, William. 3. Treinando a observação participação. IN: ZALUAR, Alba.


Desvendando as máscaras sociais. (p. 77 a 86.) Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves
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GEERTZ, Clifford. Capítulo 1 - Uma descrição densa: Por uma Teoria Interpretativa da
cultura. IN: A interpretação das culturas. (p. 13 a 41.) Rio de Janeiro: Editora Guanabara,
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GOODY, Jack. 5. Roturas e continuidades IN: A lógica da escrita e a organização da


Sociedade. Tradução de Teresa Louro Pérez. (pp. 193 a 206.) Lisboa: Edições 70, 1986.

JAKOBSON, Roman. A linguagem comum dos lingüistas e dos antropólogos. IN:


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Estrutural. Tradução de: Anthropologie estructurale. Tradução de Chaim Samuel Katz e
Eginardo Pires ; revisão etnológica de Julio Cesar Melatti. 5. ed. (pp. 71 a 83.) Rio de
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