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A ASSOCIAÇÃO DO FUNCIONALISMO COM A ETNOLINGUÍSTICA:

UMA DEFESA DA TEORIA FUNCIONALISTA BASEADA EM


PRESSUPOSTOS ANTROPOLÓGICOS*

Fabricio Santos Ferreira1

RESUMO

Compreender a cultura de um determinado povo ao qual não se pertence não é uma tarefa fácil,
principalmente quando não se detém as ferramentas necessárias para a obtenção desse entendimento.
Várias questões devem ser previamente consideradas, como a noção de relatividade cultural e
principalmente, uma atribuição de imparcialidade por parte de quem observa. Essa tal imparcialidade
exigida pela ética científica é justamente o ponto paradoxal na hora de se estudar cultura, uma vez que
estamos inseridos dentro de uma estrutura cultural e que inevitavelmente já temos nossos princípios
morais estabelecidos. Através da etnolinguística é possível constatar os aspectos culturais através dos
códigos criados pela comunidade em questão, o processo de linguagem construído pela sociedade é o
que lhe define e lhe resguarda enquanto sistema vivo de cultura.
Palavras-chave: Cultura; Etnolinguística; Antropologia; Linguística; Sociolinguística.

ABSTRACT

Understanding the culture of a specific people to which you do not belong is not an easy task, especially
when you do not have the necessary tools to obtain this understanding. Several issues must be considered
beforehand, such as the notion of cultural relativity and mainly, an attribution of impartiality on the part
of those who observe it. This impartiality required by scientific ethics is precisely the paradoxical point
when studying culture, since we are inserted within a cultural structure and that inevitably we already
have our moral principles established. Through ethnolinguistics it is possible to verify cultural aspects
through the codes created by the community in question, the language process built by society is what
defines and protects it as a living system of culture.
Keywords: Culture; Ethnolinguistic; Anthropology; Linguistic; Sociolinguistic.

*Ensaio apresentado à disciplina de Fundamentos dos Estudos em Teorias Linguísticas, do Programa de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade Regional do Cariri, ministrada pelo Prof. Dr. José Marcos Ernesto Santana
de França, no semestre letivo de 2020.2, como pré-requisito para obtenção de nota referente à avaliação final.
1
Sociólogo, Registro Profissional: 0000509/CE, Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Regional do
Cariri e aluno do curso de Mestrado em Letras da URCA.
Introdução

Este ensaio trata da relação estreita entre a linguística e outras ciências, especialmente
da ligação direta entre o funcionalismo e a etnolinguística, compreendendo a correlação dos
aspectos antropológicos na construção da interpretação sobre linguagem.
Na teoria sociolinguística, começamos a enxergar alguns parâmetros que servem de
norteamento para a compreensão real dos fatores que influenciam toda a estrutura de linguagem
numa determinada sociedade.
Através desse processo científico da linguística, podemos desenvolver vários conceitos
e configurações para a construção dessas ferramentas de análises. É notório que não podemos
desvincular algumas áreas de outras, muito embora as vezes seja preciso fragmentá-las para que
não haja um choque de interpretações.
É justamente através dessa divisão e da atribuição de autonomia de cada uma, apoiado
na junção posterior que seja coerente com cada ponto que determinada disciplina possa
contribuir que chegamos a um sistema, que por ser tão grandioso teoricamente, corrobora para
um aprofundamento desse estudo.
A motivação desse artigo vem da constatação real da possibilidade de interatividade
dessas disciplinas distintas, mas que podem ser conectadas de uma forma bastante proveitosa
no sentido de ampliação do campo de análise, e assim desenvolver uma profundidade teórica
na pesquisa desses fenômenos linguísticos-antropológicos.
Através de uma gama de pressupostos teóricos dentro da antropologia, tentarei trazer a
base de sustentação que nos ajudará a compreender a interdiscursividade dessas disciplinas e
como elas se relacionam, mostrando suas divergências e convergências que acarretam na defesa
do funcionalismo em contra partida ao estruturalismo.

Formalismo x Funcionalismo

Na batalha que envolve a consolidação do uso de determinada teoria, muitos métodos


científicos são usados para o desenvolvimento da estrutura do pensamento. Na área de
linguagem, dada a sua complexidade, os elementos usados podem até ser os mesmos, mas é
justamente na forma como se atribui os conceitos é que está o real “tira-teima” da jogada.
Nesse processo dialético acontecem inúmeras divergências e convergências que
evidenciam a certeza de ambas as correntes de pensamento. Acredito que é justamente por isso

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que, nesse contraste, quem ganha é a ciência, nesse caso a linguística. Apesar dos conflitos, são
esses entraves que desencadeiam as possibilidades de aprofundamento das pesquisas.
Através do Start dado por Ferdinand De Saussure, podemos começar a trabalhar o
estudo da linguagem de uma forma científica e a utilizar ferramentas que contribuem para o
desenvolvimento da análise linguística. O estruturalismo concebeu uma ideia da visão interna
da linguagem, através do seu princípio de que a língua deve ser estudada em si mesma e por si
mesma. Nesse estudo imanente da língua, é notório o abandono da preocupação das questões
extralinguísticas, fazendo com que o foco da análise da estrutura da língua seja observado
apenas dentro dos contextos internos.
Essa forma de pensamento estruturalista entende que a língua é forma (estrutura), e não
substância (a matéria a partir da qual ela se manifesta). Como na analogia do jogo de Xadrez
criada pelo próprio Saussure para explicar a importância da conotação de valor voltada ao
processo de compreensão da relação das peças entre si e como essa relação estabelece a função
de cada uma delas em relação as outras, nos faz entender como funciona a teoria estruturalista.
Desse ponto de partida, podemos desmembrar os elementos de cada uma das teorias
vigentes aqui, o Formalismo e o Funcionalismo, onde a antagonia entre essas duas correntes
nos dará o material necessário para a compreensão dos pontos chave de cada uma, nos ajudando
a elucidar os princípios e ênfases de ambas.
Segundo Dillinger (1991), enquanto o formalismo se refere ao estudo das formas
linguísticas, o funcionalismo se refere ao estudo do significado e do uso dessas formas
linguísticas nas ações comunicativas, ou seja, o formalismo enxerga a língua como um sistema
autônomo e o funcionalismo vê a língua como um sistema não-autônomo e que precisa ser
analisada a partir dos contextos de interação social.
Para alguns formalistas, o funcionalismo é criticado justamente devido a inserção de
uma análise psicológica e sociológica nos seus estudos, portanto ferindo, segundo eles, o
princípio da autonomia em relação as outras ciências. Estudar os fenômenos linguísticos dentro
do próprio sistema da língua é uma maneira de dar cientificidade e autonomia à linguística.
Já os funcionalistas mais radicais, criticam o formalismo por estudarem a língua como
um objeto descontextualizado, desconsiderando os falantes-ouvintes e as circunstâncias nas
quais a língua é usada. Sendo assim, fica difícil desatrelar os fatos sociais ao processo de
comunicação, sendo que essa é a única maneira de relatar os processos históricos que definiram
a estruturação da codificação da língua.

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Segundo afirma Neves (1997, p.39):

Na verdade, pode-se distinguir dois polos de atenção opostos no


pensamento linguístico, o funcionalismo, no qual a função das formas
linguísticas parece desempenhar um papel predominante, e o
formalismo, no qual a análise da forma linguística parece ser primária,
enquanto os interesses funcionais são apenas secundários.

As diferenças entre ambas as correntes de pensamento podem ser bastante antagônicas,


mas também podem acabar trazendo alguma confusão na hora de distinguir os seus principais
elementos. Através do quadro abaixo, podemos visualizar melhor as diferenças existentes entre
os dois paradigmas em termos de visão da língua, universais linguísticos, aquisição da língua
materna e estudo da língua:

QUADRO: FORMALISTAS FUNCIONALISTAS


EXEMPLO: Chomsky Labov
VISÃO DA LÍNGUA Fenômeno mental Fenômeno social
UNIVERSAIS Derivados de uma herança Derivados da universalidade
LINGUÍSTICOS linguística genética comum da dos usos que as sociedades
espécie humana humanas fazem da língua

AQUISIÇÃO DE LÍNGUA Capacidade humana inata Desenvolvimento das


para aprender línguas necessidades e habilidades
comunicativas da criança na
sociedade

ESTUDO DA LÍNGUA Como um sistema autônomo Em relação à função social

O Gerativismo utiliza-se de uma concepção bastante imponente sobre a compilação


neurolinguística que determina a nossa linguagem, levando em consideração uma série de
fatores inatos que fazem parte de uma essência genética, que compõem o nosso próprio cérebro
e consequentemente, a estrutura do nosso pensamento, independente das interceptações sociais
que venham a moldar as nossas interpretações de significados.
Desde a atribuição do gene FOXP2 com o desenvolvimento da linguagem e dos estudos
psicológicos do Cognitivismo, a linguística cognitiva traça um paralelo entre aptidão e
conhecimento, sendo que o primeiro independe de uma construção gradual.
Vários detalhes me fazem pensar sobre algumas discrepâncias do pensamento
gerativista. Utilizo a analogia do conto da Torre de Babel, onde Deus, num momento de raiva
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dos humanos por terem construído uma torre gigantesca na tentativa de alcançarem os céus,
acaba fazendo com que misturem suas vozes para que eles não possam entender uns aos outros.
Esse conto traz, além dos aspectos filosóficos, uma ideia da atribuição da variação linguística
como um castigo.
Apesar de compreendermos hoje esse conto como uma metáfora para explicar de forma
sintética as várias configurações da língua ao redor do planeta, a interpretação por parte dos
próprios seres humanos de como conseguiram desenvolver a linguagem é superficial e
historicamente sempre podemos perceber a ideia da dádiva (algo nos fora dado pelos deuses),
devido à complexidade da sua explicação de forma científica.
A ironia disso tudo está na questão de que, nós só podemos analisar esses elementos
numa forma antropológica e histórica desses eventos, precisamos dos fatores dos aspectos
sociais para nos referenciar até na hora da explicação sobre alguma teoria. Vide a exposição de
Chomsky sobre competência e desempenho:

A competência destaca-se como a capacidade de produzir variadas


sentenças, em outras palavras, o sujeito sabe produzir sentenças de
acordo com uma gramática interna, no qual, já sabemos distinguir uma
frase gramatical ou agramatical. E desempenho é o uso concreto da
língua. (CHOMSKY.1978, p. 12)

O uso concreto da língua é talvez um dos aspectos de convergência entre as duas teorias,
muito embora o formalismo se isole de forma mais radical ao estudo interno, sendo que no
funcionalismo, inevitavelmente serão os contextos sociais que darão “pano pra manga” na hora
de desenvolver um estudo sobre determinado objeto de pesquisa.
O Funcionalismo desde sempre bebeu em fontes com bastante abundância de
conhecimento social e humano, sendo essas características a chave para o desenrolar de sua
teoria, que com o passar do tempo, acabou se aprofundando dentro desse quadro de análise
social, contemplando os princípios das relações interdiscursivas.
Através da Sociolinguística conseguimos aumentar nosso poder de análise, utilizando
ferramentas complementares que ajudam na construção do entendimento sobre as questões
linguísticas. A ideia etimológica, por exemplo, demonstra o contexto em que determinada
palavra foi criada, geralmente atribuída a uma circunstância ou objeto oriundos de uma
interatividade social.

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Segundo Camacho,

O exame da linguagem no contexto social é tão importante para a


solução de problemas próprios da teoria da linguagem, que a relação
entre língua e sociedade é encarada como indispensável, não mero
recurso interdisciplinar. Como a linguagem é, em última análise, um
fenômeno social, fica claro, para um Sociolinguista, que é necessário
recorrer às variações derivadas do contexto social para encontrar
respostas para os problemas que emergem da variação inerente ao
sistema linguístico (CAMACHO, 2001, p. 50).

Outro aspecto bastante importante para compreendermos linguisticamente as expressões


humanas é a análise cultural, que é crucial para entendermos os processos de variação
linguística, que ocorre de acordo com as mudanças culturais de cada sociedade. No Brasil, por
exemplo, temos diversas maneiras de falar determinadas palavras, embora a língua seja a
mesma. É possível encontrar diversas palavras distintas para objetos, alimentos ou até mesmo,
sentimentos.
Isso acontece naturalmente nas sociedades e é causado pelas transformações de
determinadas características culturais que são mais maleáveis, do ponto de vista ético e podem
sofrer variações em momentos de adaptação desses indivíduos por questões geográficas e
climáticas por exemplo, ou seja, isso quer dizer que essas adaptações podem surgir de
acontecimentos naturais ou na maioria dos casos, de uma imposição cultural, como é o caso da
colonização de determinados países por outros.
A apropriação cultural também é bastante comum e pode acontecer de forma mais rápida
se determinada sociedade quiser aderir a posicionamentos sociais externos, como na utilização
de determinados rituais, gastronomia e uso da linguagem.
Por exemplo, a Índia é uma país onde existem inúmeras línguas sendo utilizadas, dentre
dialetos e línguas oficiais, além de uma diversidade religiosa gigantesca também. Mesmo assim,
ainda sobrou espaço para uma apropriação cultural na Índia que foi imposta pelo império
britânico, levando a uma ativação do uso da língua inglesa como uma das principais línguas
usadas no país hoje.

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A etnolinguística como ferramenta de análise da linguagem

Como já dito antes, a sociolinguística pode nos ajudar no estudo da linguagem,


abordando as questões sociais que integram a vida do coletivo, fenômenos factuais que ocorrem
e implicam diretamente na interação entre os indivíduos. Já através da Antropologia, podemos
aprofundar essa análise dentro de uma visão voltada aos movimentos sociais já estipulados,
como rituais e processos hierárquicos que inevitavelmente acontecem dentro de qualquer
sociedade, independentemente do nível de produção coletiva ou do número de indivíduos
participantes desse grupo.
A Antropologia é definida como o estudo do homem como ser biológico, social e
cultural, é a ciência do homem no sentido mais lato, que engloba origens, evolução,
desenvolvimentos físico, material e cultural, fisiologia, psicologia, características raciais,
costumes sociais, crenças, dentre outros aspectos que explicam a construção das nossas relações
sociais.
Antropologicamente, conceitos sobre crença e a aplicabilidade da religiosidade
socialmente é bastante discutido e pode nos referenciar sobre várias questões linguísticas acerca
de suas variações. No Brasil podemos encontrar uma diversidade de línguas entre os povos
indígenas, inclusive sobre variações que são determinadas por questões do entendimento desses
povos, e como disse antes, isso pode acontecer sobre determinado fenômeno natural, de um
objeto ou sentimental, dentre outros tipos.
Posso usar como exemplo, o uso da palavra que designa o sol e a lua para alguns povos
indígenas e que tem o mesmo nome para os dois, pois esses grupos não conseguem diferenciar
esses dois elementos, e atribuem esses elementos a fenômenos espirituais e transcendentais,
diferente das sociedades urbanas atuais que usam dois nomes, pois compreendem que os dois
são distintos, dentro das suas características físicas.
A hipótese Sapir-Whorf, postula que as pessoas vivem segundo suas culturas em
universos mentais muito distintos que estão exprimidos (e talvez determinados) pelas diferentes
línguas que falam. Deste modo, também o estudo das estruturas de uma língua pode levar à
elucidação de uma concepção de um mundo que a acompanhe.
Sapir (1969) afirmou o seguinte:

Continua de pé, entretanto, o ponto crucial de que, nas sociedades de


fato existentes, uma influência ambiental, mesmo do caráter mais
simples, é sempre consolidada ou mudada pelas forças sociais. É o caso,
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portanto, de tachar como errônea qualquer tentativa para considerar um
elemento de cultura, mesmo da natureza mais simples, como
unicamente devido à influência do ambiente.

A Etnografia enquanto estudo descritivo das diversas etnias, de suas características


antropológicas e sociais, é um registro descritivo da cultura material de um determinado povo,
e é na utilização dessa técnica que podemos observar e catalogar as características de
determinado grupo estudado em questão, e principalmente o objeto real de pesquisa que se
observa nesse grupo, uma vez em que as sociedades detém geralmente uma gama de aspectos
de expressão.
Um dos pontos mais importantes da questão do processo de pesquisa etnográfica está
na desvinculação do pesquisador em relação ao objeto pesquisado. No caso de um estudo sobre
um ritual de determinada comunidade, é preciso que o etnógrafo se desfaça das suas convicções
sobre uma série de concepções de expressão que venha a ter no seu próprio ambiente de
interatividade. É necessário enfatizar que não é preciso desacreditar dos seus princípios, o ideal
é que essas concepções não influenciem a sua captação da realidade do outro, e obviamente,
para se fazer isso é preciso que não haja juízo de valor e nem a interpretação sobre os conceitos
de certo ou errado.
Sendo assim, na análise etnolinguística, os conceitos da estrutura gramatical ou os
aspectos fonéticos que são estabilizados dentro da estrutura linguística utilizada pelo
pesquisador para se fazer esse estudo, deve ser entendida como algo não comparativo no sentido
valorativo em relação a língua dos indivíduos pesquisados, mas sim no sentido semântico.
Embora a análise do signo já esteja determinada por um conjunto de valores pré-estabelecidos
pela comunidade em questão, a atribuição de valores comparativos entre quem pesquisa e o
objeto de pesquisa provavelmente acarretará numa discrepância na construção do trabalho
etnolinguístico.
Justamente por se desprender desses conceitos é que o pesquisador pode abordar da
melhor forma esses indivíduos estudados, além é claro de provavelmente melhorar a sua
capacidade de uma captação otimizada do ambiente e das expressões observadas. No Brasil, é
comum a crítica a uma interpretação positiva da variação linguística sobre a Língua Portuguesa.
Segundo Marcos Bagno,

O preconceito linguístico se baseia na crença de que só existe, uma


única língua portuguesa digna de ser aceita, ensinada nas escolas,
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explicada nas gramáticas normativas e catalogadas nos dicionários e
qualquer manifestação linguística que escape desse triângulo
escolagramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito
linguístico, errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente (BAGNO,
2004, p. 38).

É inevitável desarticular essa junção do espaço em que vive o indivíduo com as suas
expressões. O mais interessante é tentar entender como as características do ambiente e as
necessidades dos indivíduos dentro do grupo, consolidam determinados meios de comunicação
e afetam diretamente as relações entre esses indivíduos uns com os outros e com o próprio
ambiente construído.
Como afirma Geertz (1978 p. 47)

A imagem de uma natureza humana, constante, independente de tempo,


lugar e circunstância, de estudos e profissões, modas passageiras e
opiniões temporárias, pode ser uma ilusão, que o que o homem é pode
estar tão envolvido com onde ele está, quem ele é e no que acredita, que
é inseparável deles. É precisamente o levar em conta tal possibilidade
que deu margem ao surgimento do conceito de cultura e ao declínio da
perspectiva uniforme do homem.

O relativismo cultural e a variação linguística

A antropologia cultural é uma corrente desenvolvida principalmente nos EUA com base
nos trabalhos do antropólogo Franz Boas, e diferente dos outros tipos de antropologia que são,
a antropologia biológica, antropologia pré-histórica, antropologia linguística e antropologia
psicológica, marca a consolidação da antropologia como disciplina autônoma, independente da
Sociologia e abrange produção econômica, relações de parentesco, língua, psicologia, artes,
religião, sistemas de conhecimento, técnicas, organização política e jurídica.
Através da teoria do relativismo cultural, Franz Boas deu início a uma interpretação das
culturas em reação a escola positivista criada por Auguste Comte, na qual o Etnocentrismo era
o definidor das bases teóricas do estudo antropológico, onde a história humana era
compreendida pelo progresso científico da Europa Ocidental e qualquer povo que não estivesse
adequado a essa escala social era considerado inferior.
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É no relativismo cultural em que são excluídos critérios morais sobre certo e errado no
processo de estudo sobre determinada cultura, procurando considerar costumes e tradições
como frutos de uma construção cultural específica, usando esse mesmo viés como vetor para o
entendimento da estabilização dessas estruturas culturais, diferente da ideia do etnocentrismo
sobre os níveis de julgamento e hierarquia das civilizações.
Segundo Franz Boas,

Nos poucos casos em que se tem investigado a influência da cultura


sobre as reações mentais de populações, pode-se observar que a cultura
é um determinante muito mais importante do que a constituição física.
[...] Nessas circunstâncias, precisamos basear a investigação da vida
mental do homem sobre um estudo da história das formas culturais e
das inter-relações entre vida mental individual e cultura (BOAS, 2010,
p. 97).

Essa relatividade cultural encontrada através desse método de observação, também nos
ajuda a entender algumas estabilizações de procedimentos dos indivíduos de determinada
cultura que se assemelham com os de outras culturas que não possuem conectividade direta.
Para alguns antropólogos, esse fenômeno pode ser entendido como uma transcendência de
determinadas características humanas que independem das relações sociais, são na verdade
essenciais e geralmente atribuídas a conceitos biológicos, seria uma espécie de compreensão
gerativista do processo cultural, fazendo-se uma analogia.
Porém, a forma mais comum de explicação desses fenômenos é a facilidade humana em
memorizar expressões, que nesse caso estiveram ligadas em algum momento do passado e não
podem ser desarticulada, muito embora pareça estar distante, como é o caso da similaridade das
línguas oriundas do Latim na Europa, onde a distanciação geográfica de acordo com a expansão
demográfica da vazão ao surgimento das variações linguísticas ao ponto da criação de novas
línguas complexas que se estabelecem posteriormente de forma autônoma.
Toda essa interpretação cultural pode ser associada com a linguística que é o ponto
crucial de entendimento dos povos através da sua palavra. A expressividade de cada
comunidade está ligada à sua forma de comunicação e é na língua que podemos observar suas
características mais peculiares, pois é através da codificação linguística, seja ela de forma falada
ou escrita que está a preservação cultural de cada povo.

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Quando uma determinada comunidade linguística faz uso de processos comunicativos
através de um sistema oral, tal manifestação acústico-oral caracteriza o que se pode chamar de
língua. Esse sistema carrega consigo consequências de um processo histórico, cuja dinâmica
pode propiciar mudanças no conjunto lexical que forma o universo linguístico.
A possibilidade do uso de diversos dialetos dentro de uma mesma comunidade nos
mostra a real percepção sobre a variação da língua, embora essa percepção não seja percebida
conscientemente pelo falante, que está envolvido numa diversidade de manifestações que
possibilita uma incessante marca de variação na qual podem ser facilmente apontadas as
variedades dialetais.
Segundo Dick (1998), “A linguagem como fato social põe em destaque ações,
atividades, valores e referenciais do cotidiano do grupo”. Transformando assim a língua através
de geração pelas forças sociais.
Já para Bideman (1978), o complexo universo semântico de uma determinada língua
“[...] se estrutura em dois polos opostos: o indivíduo e a sociedade. Dessa tensão em movimento
se origina o Léxico”.
É nessa análise léxico-semântica que podemos evidenciar a importância da criatividade
lexical de determinada comunidade através das suas expressões, onde podem se originar
neologismos, acréscimos ou junção de palavras que outrora não eram existentes, sendo possível
também, a negação e exclusão de determinadas palavras.
Através desse processo de metamorfose da linguagem, fica claro a possibilidade de se
fazer uma interpretação inversa, de dentro pra fora, ou seja, estudar os aspectos culturais a partir
do estudo da língua de um povo, entendendo que a variação linguística está intrinsicamente
ligada às relações de interpretação dos signos e significados por parte da sociedade.

Conclusão
A cultura é e sempre será o maior legado do coletivo, seja para que possamos deixar as
marcas das nossas características identitárias para as próximas gerações, seja para simplesmente
tentarmos enfiar nossas perspectivas e conceitos em detrimento do outro, na tentativa de
demonstrar a nossa razão social.
Exatamente pela sua complexidade na execução, a cultura também é extremamente
difícil de se compreender do ponto de vista científico, dada à sua natureza mutável e
transformadora. Essa maleabilidade dos aspectos factuais, tanto na sua realidade quanto na
visão do pesquisador, a torna um objeto de pesquisa bastante propício a falhas de interpretação.

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A interdiscursividade e as mesclagens de diferentes áreas do conhecimento, ajudam na
construção de uma análise mais coerente da linguagem. Várias estruturas científicas são
utilizadas no desenvolvimento da pesquisa sobre a linguagem.
A antropologia nesse caso, nos garante uma robustez na hora de compreender os
elementos da expressividade humana, alinhado com a linguística que tenta entender essas
manifestações através da fonética, fonologia, sintaxe, semântica, pragmática e estilística.
O funcionalismo, por sua vez, imbuído da sua forma de análise dentro de um modelo
abstrato aos mecanismos internos da mente, que é responsável pela produção e percepção da
língua, tenta descrever esses usos externos.
Nessa junção entre a linguística e a antropologia, a etnolinguística seria o meio mais
promissor de se conseguir entender todas essas características linguísticas e culturais, ao ponto
de se utilizar uma ciência que seja capaz de nos mostrar elementos internos e externos à língua,
e que são cruciais para compreendermos os porquês de determinada estrutura de linguagem e
sua relação direta com os processos identitários de determinada comunidade.

Referências

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NEVES, M. H. M. As duas grandes correntes do pensamento linguístico: funcionalismo e


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CHOMSKY, Noam. Aspectos da Teoria da Sintaxe. Coimbra: Armênio Amado. 1978.

SAPIR, Edward. Linguística com ciência: ensaios. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1969.

BAGNO, Marcos. Linguística da norma. Edições Loyola, 2002.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, (1973) 1978.

BOAS, Franz. Antropologia cultural. Trad. Celso de Castro. – 6ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2010.

DICK, Maria V. de Paula do Amaral. Os nomes como marcadores ideológicos. Revista


Internacional de semiótica e linguística. São Paulo, 1998, p. 97-122.

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BIDERMAN, M. Tereza. Teoria linguística: linguística quantitativa e computacional. Rio de
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978.

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