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Breno Mendes
Introdução
Uma das questões mais polêmicas do debate epistemológico na historiografia
contemporânea diz respeito à função que a narrativa exerce no conhecimento histórico,
e quais são seus alcances e limites na representação do passado. Acreditamos que esse
debate se tornará mais inteligível e profícuo a partir de uma investigação do conceito de
linguagem que subjaz ao de narração. Começaremos nosso percurso apresentando as
principais características do chamado giro-lingüístico, enfatizado como ele questiona os
modos da linguagem se referir à realidade. Em seguida, abordaremos a hermenêutica
que também toma o conceito de linguagem como algo fundamental, porém acredita que
ela é um meio de compreensão da experiência. Examinaremos as implicações desta
discussão na historiografia tomando como base a questão da narrativa nas obras de
Hayden White e Paul Ricoeur.
Mestrando em História pela UFMG.
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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de
Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de
História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e
perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)
que por “filosofia lingüística” entende “o ponto de vista segundo o qual os problemas
filosóficos podem ser resolvidos (ou dissolvidos) reformando a linguagem ou
compreendendo melhor a que usamos atualmente”. (RORTY, 1990: 50). Em suma, os
“filósofos lingüísticos” argumentam contra qualquer método “não lingüístico” de se
resolver problemas filosóficos, o que interditaria a proposição de teses filosóficas
cujos pressupostos estivessem para além da linguagem.
O filósofo brasileiro Manfredo Oliveira em sua obra reviravolta lingüístico-
pragmática na filosofia contemporânea, apontou algumas características importantes
deste movimento. Segundo ele, o primeiro sentido que a guinada lingüística tem é
bem lato e consiste no fato da linguagem ter se tornado no século XX a questão
central da filosofia. Nessa compreensão o giro lingüístico inclui um deslocamento
epistemológico. A linguagem deixa de ser um objeto para estar na “esfera dos
fundamentos” do conhecimento. Esse movimento elevou a filosofia da linguagem à
condição de filosofia primeira1. Isto quer dizer que a pergunta que guiava a filosofia
moderna sobre as condições de possibilidade do conhecimento girou rumo à
linguagem e se transformou em uma questão sobre as condições da linguagem
produzir sentenças intersubjetivamente válidas sobre o mundo. A pergunta pelo
sentido lingüístico de uma proposição precede a indagação sobre a verdade e a
validade dos juízos sobre o mundo. “Numa palavra, não existe mundo totalmente
independente da linguagem, ou seja, não existe mundo que não seja exprimível na
linguagem. A linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de
articulação de sua inteligibilidade” (OLIVEIRA, 2006: 13).
Outro traço importante do giro lingüístico é sua crítica a uma concepção
lingüística vigente em uma corrente chamada por Oliveira de semântica tradicional.
Essa vertente acredita que as palavras apresentam a essência das coisas, mostrando-as
adequadamente. Essa tese leva a semântica tradicional a adotar um realismo
convencional. Oliveira indica que tal realismo é uma teoria da reprodução (cópia).
Essa perspectiva considera que o objeto de conhecimento é pré-dado e exterior ao
pensamento do sujeito. No campo da linguagem o realismo afirma que as expressões
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Segundo K.O. Apel, esse posto de filosofia primeira outrora foi ocupado pela pesquisa sobre a natureza
ou essência das coisas ou dos entes (ontologia), pela reflexão sobre as representações ou conceitos da
consciência ou da razão (teoria do conhecimento).
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Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de
Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de
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É no campo da linguagem que ocorre a bifurcação entre língua e fala. A linguagem é uma faculdade
comum a todos, ao passo que a língua é “ao mesmo tempo um produto social da faculdade da linguagem
e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa
faculdade nos indivíduos” (SAUSSURE, 1977:17).
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Prova disso, para Saussure, é que não há nada no significante m-a-r que remeta necessariamente ao
significado que a ele associamos: uma larga extensão de água salgada. Essa relação é arbitrária, o
significante m-a-r poderia ser substituído por qualquer outro. Acresce que nenhum indivíduo é consultado
para que ela se estabeleça. “Queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação
ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” (SAUSSURE, 1977:83).
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Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de
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Esta revolução consiste no fato de Schleiermacher ter deslocado o eixo da interpretação do objeto para
o sujeito. Assim, a hermenêutica deixa de ser determinada pela natureza heterogênea de seu objeto
(fossem eles textos da antiguidade clássica, textos teológicos ou jurídicos) para ser marcada pela estrutura
do sujeito ou espírito em sua unidade. Daí se seguiu uma tentativa de apontar regras de interpretação que
fossem aplicáveis aos distintos corpora textuais.
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Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de
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Segundo Grondin, antes de Schleiermacher a hermenêutica buscava interpretar principalmente as
passagens obscuras dos textos. Este autor, porém, universaliza o mal-entendido, dizendo que ele está
presente em cada ponto do texto. A conseqüência é que nenhuma interpretação é definitiva, nenhuma
dissolve este fundo de não-compreensão. (GRONDIN, 1999)
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(GRONDIN, 1999). Esta alma individual é que confere a especificidade do estilo que
cada autor imprime em sua obra.
Um segundo ponto de inflexão na história da hermenêutica se deu no século XX
com as obras de M. Heidegger e H.G. Gadamer. Na leitura de Ricoeur estes alemães
empreenderam uma segunda revolução copernicana no campo hermenêutico ao deslocar
o eixo da compreensão – que outrora estava no terreno da epistemologia6 e metodologia
– para o solo ontológico. (RICOEUR, 2008) Esse movimento teve importantes
implicações no campo da linguagem.
Para Heidegger, sobretudo na segunda fase de sua filosofia, a linguagem deve
ser situada onde o ser se desvela, isto é, no homem. Isso equivale a localizar a
linguagem no fundamento da estrutura de compreensão do ser-aí (Dasein). Em suma, a
linguagem não é um objeto que está diante de nós, mas todo nosso pensar já está
articulado linguisticamente. Nessa perspectiva a linguagem não é fechada em si mesma.
Ela é uma abertura para a compreensão de nossa experiência com o mundo e com as
coisas. Nosso ser-no-mundo é mediado linguisticamente. “O originário não é que
falamos uma linguagem e dela nos utilizamos para poder manipular o real, mas, antes,
que a linguagem nos marca, nos determina, e nela se dá a revelação dos entes a nós, o
que só é possível porque (...) a linguagem é o evento de desvelamento do ser”
(OLIVEIRA, 2006: 206)
Se as discussões do giro-linguístico ressoaram nos posicionamentos de R.
Barthes e H. White no debate sobre a narrativa histórica, a hermenêutica está no cerne
da intervenção de Paul Ricoeur a respeito desse tema. Tornando explícito seu
pertencimento à tradição hermenêutica o filósofo francês concebe a linguagem como
uma abertura, uma mediação para a compreensão da experiência humana. Isto implica
em uma dimensão ontológica da linguagem: ela emerge e retorna a uma experiência.
Ademais, é colocado um acento reflexivo e existencial na linguagem, pois ela é o meio
privilegiado pelo qual o sujeito compreende a si mesmo. (RICOEUR, 1978)
A compreensão hermenêutica da linguagem oferece uma resposta à primeira
indagação que fizemos na metade de nosso percurso. Embora tome a linguagem como
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Isto é bastante claro na distinção entre explicação e compreensão assumida por W. Dilthey em seu
esforço de fundamentação das Ciências do Espírito.
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Para Ricoeur os elementos temporais da ação também induzem à narrativa, já que a tese central da obra
é que “O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de maneira narrativa; em
compensação, a narrativa é significativa na medida em que desenha os traços da experiência temporal.”
(RICOEUR, 1991, Tome I, p. 17).
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