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(Lacan).
A adoção do uso dos pronomes ele e ela, como única possibilidade na língua,
suprime efeitos do Gênero sobre o corpo, dificultando a inovação da língua diante de
cada vez mais novas formas de se entender na subjetivação e no político. Formas
genéricas como o “todos” apagam, no embate ideológico, corpos dissidentes que
demandam outras formas de tratamento, em respeito à dignidade da pessoa humana. No
entanto, a problemática da LN não se limita à linguagem em si, mas, ao transcender o
campo linguístico, torna-se ponto de disputa ideológica. Ao não se sentir representado
pela língua padrão, o sujeito percebe a língua como um instrumento de coerção sobre
sua subjetividade, sustado do direito político e da sua própria relação com o simbólico.
Uma vez que a relação com o eu se estabelece por meio da linguagem, a AD nos
convida a refletir sobre a relevância de uma análise dos discursos que emergem no
contexto da discussão sobre a LN. Enquanto algumas políticas regulatórias, como
projetos de lei que proíbem o uso da LN em escolas públicas, estão em vigor, há
também demandas de pessoas de diferentes orientações sexuais que buscam o
reconhecimento do uso da LN, sem considerá-la como uma ameaça aos padrões
linguísticos ideológicos e dominantes. Por isso, a polêmica em torno da LN adquire
predominantemente uma dimensão semântico-política (e ideológica), em vez de
puramente linguística.
Em síntese, a querela em torno da LN se dá por uma tentativa não excludente,
pela via da língua e do discurso, de pessoas LGBT+. Assujeitado, o sujeito tenta abrir
fissuras em estruturas normativas da língua que podem atuar como marcadores de
gênero. Mas na contramão do que dizem linguistas e estudiosos do discurso sobre o uso
da língua, a política brasileira veda, pela via legislativa, o uso da LN em grades
curriculares e livros didáticos de escolas de educação básica, públicas ou privadas, sob a
alegação de que a LN poderia “corromper o liame comunicacional mais elemental de
um povo: sua língua, o que faria jogar por terra todos os seus valores, identidade e
história comum” (Brasil, 2020).
Apaixonado pela ciência da linguagem, Pêcheux a toca de forma direta ou
tangencial, em diversos momentos de sua empreitada com os estudos da língua e do
discurso. Fundador da escola de análise de discurso, o autor desloca a reflexão sobre a
linguagem, tornando-a material e atenta a uma semântica que se constitui com o real da
língua e da história.
Em "Há uma via para a linguística fora do logicismo e do sociologismo?",
Pêcheux e Gadet (1998) discorrem sobre como a evolução da linguística pode ser
pensada, e interpretada, como um embate entre duas abordagens – o logicismo e o
sociologismo. Nossa análise aqui, e em concordância com o que pensou Pêcheux sobre
a linguística e as demais ciências da linguagem, sugere que elementos antagônicos
como os apresentados pelo autor – logicismo e sociologismo – transportam a
Linguística a uma condição de incerteza.
Então, uma questão epistemológica se impõe: de que forma poderiam os
linguistas, e os analistas de discurso, pensar a LN ignorando o fato de que não existe
neutralidade na língua? Pêcheux diz que a linguagem não pode ser neutra porque a
ideologia está presente no discurso, na opacidade da língua e na evidência do que é dito.
Assim sendo, por intermédio da interpelação do indivíduo convocado a se tornar sujeito,
inconscientemente o agora sujeito, submetido à língua, está à mercê da linguagem e da
história para se significar. Desse modo, distante de uma neutralidade da língua que uma
primeira leitura da LN poderia provocar, consideramos a interpelação ideológica como
um dos conceitos-chave para analisar a questão da linguagem inclusiva.
O uso dicionarizado da língua produz, um a um, o recenseamento de elementos,
isto é, de significantes, estancando o sentido. Assim, ignorar que o que se diz é sempre
historicizado é o mesmo que dicionarizar a língua, em uma tentativa de tornar
autorizado apenas alguns de seus usos. A LN ou até mesmo as gírias exemplificam que
o que é social e historicizado não pode ser homogêneo porque há condições de
produção, relações de classe, de nível de instrução que sustentam o discurso da língua
viva, ou seja, da língua que está em evolução.
Soler (2002) sobre esta questão:
O sujeito fala em um espaço dado, a partir dos signos disponíveis que encontra
na língua. Embora “escolha” o que dizer, esse movimento é sempre um movimento de
interpelação e de coerção do sujeito à ordem da língua e do simbólico. Pêcheux sempre
enfatizou a importância da língua para a Análise do Discurso, por estabelecer que ela é
condição material, isto é, a base que possibilita a produção de discursos, em seus efeitos
histórica e ideologicamente constituídos. No entanto, não ignorou em seu percurso
teórico uma abordagem dual de língua: 1) não desconsiderava as leis morfológicas,
fonológicas e sintáticas estabelecidas no campo da Linguística; 2) considerava um outro
funcionamento, não estritamente linguístico, mas proveniente da teoria psicanalítica,
com língua e inconsciente coexistindo.
Na perspectiva da LN, o deslocamento que realizamos é na direção de uma outra
abordagem, diferente das que consideram o pronome neutro apenas um fenômeno
linguístico. Não são os textos (os novos pronomes de tratamento trazidos pela LN) que
possuem funcionamento, mas sim a língua com seu mecanismo próprio, constituído por
combinações, substituições reguladas por imposições morfológicas e morfossintáticas.
Somado a esse funcionamento, há a presença do inconsciente e do desejo, da falha
estrutural que constitui todo sujeito interpelado.
A língua da qual falamos é apenas relativamente autônoma, pois, ainda que
possua estruturas morfológicas, fonológicas e relações sintáticas interiores, está sujeita
ao que Pêcheux chamou de "processos discursivos", isto é, dinâmicas discursivas com a
língua operando dentro das leis linguísticas – a base material.
É necessário observarmos ideologia e inconsciente na trama de processos que
envolvem a língua, questionando e atualizando o sentido a partir da subjetividade de
nossa época. Segundo Lacan (1953), "uma palavra não é uma palavra a não ser na
medida exata em que alguém acredita nela", isto é, em que dimensão podemos situar
uma palavra, um significante, um discurso, um sujeito, senão na dimensão da
ambivalência?
Toda palavra, conforme Lacan, não pode ter nunca um sentido único ou uma
única empregabilidade. Ela possui função criadora.
Legislação:
Artigo de Revista:
Capítulo de Livro:
Pêcheux, M., & Gadet, F. (1998). Há uma via para a linguística fora do logicismo e do
sociologismo? In E. Orlandi (Trad.), Escritos: discurso e política (pp. xx-xx). Editora da
Unicamp.
Livro:
Soler, C. (2002). O corpo falante: introdução à clínica psicanalítica do real (3a ed.).
Zahar.