Você está na página 1de 6

A linguagem neutra (LN) e o problema linguístico-discursivo da não-binaridade

The neutral language (NL) and the linguistic-discursive problem of non-binariness

"A palavra é essencialmente o meio de ser reconhecido. Ela está aí antes de


qualquer coisa que haja atrás. E, por isso, é ambivalente e absolutamente
insondável. O que ela diz, será que é verdade? Será que não é verdade? É
uma miragem."

(Lacan).

O estudo teórico-discursivo sobre a questão da linguagem mobiliza, tanto na


linguística como na psicanálise, um caminho para aquilo que nos particulariza: somos
seres – sujeitos de linguagem – capazes de simbolizar. Condenados à ordem do
simbólico e submetidos às coerções da língua, compreendemos, na Análise de Discurso
pecheutiana (AD), que é na e pela linguagem que nos significamos na vida social e
política. Nesse sentido, relações de força e de poder de matizes ideológicas sobre a
língua deságuam em relações de sentido, efeitos, como trabalhamos na Análise do
Discurso.
O discurso conservador sobre a língua sustenta que a linguagem não-binária é
“uma destruição ideológica da nossa língua”, como aponta Barbosa Filho (2022) ao
criticar, em seu texto "A linguagem neutra e a ética da linguística", a problemática sobre
tratar o tema como uma questão meramente gramatical ou puramente sociológica. Na
contramão de um positivismo da língua, na Análise do Discurso e na psicanálise nos
distanciamos de impulsos totalizantes no que diz respeito a uma ciência (da língua) que
fosse capaz de explicar tudo o que está arraigado à linguagem.
Por essa razão, neste artigo, buscamos outras alternativas para pensar a
linguagem não-binária, em uma tentativa de escapar às imposições ideológicas
dominantes sobre o uso “correto” da língua: "ela" para mulheres, "ele" para homens
(quando no plural, este pronome pode ser usado para se referir de forma generalizada a
todas as pessoas de uma sala, por exemplo: homens cis e trans, mulheres cis e trans,
pessoas não-binárias etc.).
Barbosa Filho (2022) comenta que tanto abordagens sociológicas como
gramaticais sobre o tema da linguagem não-binária (daqui em diante LN) apontam para
a mesma premissa:
deve-se proteger a língua de inovações que ameacem sua capacidade de
produzir entendimento, unidade e coesão social. Essa postura patrimonialista
remete, pois, a uma defesa dos "valores" que a língua supostamente
representa, mesmo na tendência gramatical. Em suma, ambas as tendências a
proteção da língua, a bem da verdade, não é proteção da língua, mas de um
certo imaginário de língua. (Barbosa Filho, 2022).

A adoção do uso dos pronomes ele e ela, como única possibilidade na língua,
suprime efeitos do Gênero sobre o corpo, dificultando a inovação da língua diante de
cada vez mais novas formas de se entender na subjetivação e no político. Formas
genéricas como o “todos” apagam, no embate ideológico, corpos dissidentes que
demandam outras formas de tratamento, em respeito à dignidade da pessoa humana. No
entanto, a problemática da LN não se limita à linguagem em si, mas, ao transcender o
campo linguístico, torna-se ponto de disputa ideológica. Ao não se sentir representado
pela língua padrão, o sujeito percebe a língua como um instrumento de coerção sobre
sua subjetividade, sustado do direito político e da sua própria relação com o simbólico.
Uma vez que a relação com o eu se estabelece por meio da linguagem, a AD nos
convida a refletir sobre a relevância de uma análise dos discursos que emergem no
contexto da discussão sobre a LN. Enquanto algumas políticas regulatórias, como
projetos de lei que proíbem o uso da LN em escolas públicas, estão em vigor, há
também demandas de pessoas de diferentes orientações sexuais que buscam o
reconhecimento do uso da LN, sem considerá-la como uma ameaça aos padrões
linguísticos ideológicos e dominantes. Por isso, a polêmica em torno da LN adquire
predominantemente uma dimensão semântico-política (e ideológica), em vez de
puramente linguística.
Em síntese, a querela em torno da LN se dá por uma tentativa não excludente,
pela via da língua e do discurso, de pessoas LGBT+. Assujeitado, o sujeito tenta abrir
fissuras em estruturas normativas da língua que podem atuar como marcadores de
gênero. Mas na contramão do que dizem linguistas e estudiosos do discurso sobre o uso
da língua, a política brasileira veda, pela via legislativa, o uso da LN em grades
curriculares e livros didáticos de escolas de educação básica, públicas ou privadas, sob a
alegação de que a LN poderia “corromper o liame comunicacional mais elemental de
um povo: sua língua, o que faria jogar por terra todos os seus valores, identidade e
história comum” (Brasil, 2020).
Apaixonado pela ciência da linguagem, Pêcheux a toca de forma direta ou
tangencial, em diversos momentos de sua empreitada com os estudos da língua e do
discurso. Fundador da escola de análise de discurso, o autor desloca a reflexão sobre a
linguagem, tornando-a material e atenta a uma semântica que se constitui com o real da
língua e da história.
Em "Há uma via para a linguística fora do logicismo e do sociologismo?",
Pêcheux e Gadet (1998) discorrem sobre como a evolução da linguística pode ser
pensada, e interpretada, como um embate entre duas abordagens – o logicismo e o
sociologismo. Nossa análise aqui, e em concordância com o que pensou Pêcheux sobre
a linguística e as demais ciências da linguagem, sugere que elementos antagônicos
como os apresentados pelo autor – logicismo e sociologismo – transportam a
Linguística a uma condição de incerteza.
Então, uma questão epistemológica se impõe: de que forma poderiam os
linguistas, e os analistas de discurso, pensar a LN ignorando o fato de que não existe
neutralidade na língua? Pêcheux diz que a linguagem não pode ser neutra porque a
ideologia está presente no discurso, na opacidade da língua e na evidência do que é dito.
Assim sendo, por intermédio da interpelação do indivíduo convocado a se tornar sujeito,
inconscientemente o agora sujeito, submetido à língua, está à mercê da linguagem e da
história para se significar. Desse modo, distante de uma neutralidade da língua que uma
primeira leitura da LN poderia provocar, consideramos a interpelação ideológica como
um dos conceitos-chave para analisar a questão da linguagem inclusiva.
O uso dicionarizado da língua produz, um a um, o recenseamento de elementos,
isto é, de significantes, estancando o sentido. Assim, ignorar que o que se diz é sempre
historicizado é o mesmo que dicionarizar a língua, em uma tentativa de tornar
autorizado apenas alguns de seus usos. A LN ou até mesmo as gírias exemplificam que
o que é social e historicizado não pode ser homogêneo porque há condições de
produção, relações de classe, de nível de instrução que sustentam o discurso da língua
viva, ou seja, da língua que está em evolução.
Soler (2002) sobre esta questão:

Em outras palavras, é aquilo que a linguagem ordenou e veiculou de gozo


num dado laço social, sempre histórico, que se deposita na alíngua. E, quando
digo a linguagem, isso inclui as produções mais banalizadas, as mais comuns,
de um discurso, bem como as invenções mais sublimadas e mais originais da
poesia e da literatura. Poder-se-ia, portanto, dizer que uma língua é
empenhada permanentemente pelo gozo que ordena a fala e seus significantes
gozados. (Soler, 2002).
A escritora e psicanalista ainda refere-se à alíngua como um cemitério,
reatualizado constantemente, como são todos os cemitérios, para exemplificar a
admissão de novos signos na língua. Isto é, passados à categoria linguística-discursiva
(ao verbo, em suas palavras), os signos expressam experiências vividas que, agora sob
uma interpretação ancorada na língua como base material onde ocorrem processos
discursivos, amparam e sustentam novas palavras, outras locuções, pronomes novos
como os observados na LN, os quais não encontram no dicionário seu uso autorizado.
Mas encontram na língua a base para o seu funcionamento próprio.
Ainda segundo a autora:

Outros signos, ao contrário, caem em desuso, são eliminados, pois se


tornaram impróprios à atualidade dos gozos, fora de uso, portanto. Alíngua
está morta, mas ela vem da vida. A questão, então, é de se saber como a
alíngua pulverulenta, se posso assim dizer, multiplicidade inconsistente,
inapreensível, pode se precipitar na letra, a única capaz de fixar uma
identidade, identidade de gozo? Como os elementos da alíngua podem estar
enganchados no corpo? (Soler, 2002).

O sujeito fala em um espaço dado, a partir dos signos disponíveis que encontra
na língua. Embora “escolha” o que dizer, esse movimento é sempre um movimento de
interpelação e de coerção do sujeito à ordem da língua e do simbólico. Pêcheux sempre
enfatizou a importância da língua para a Análise do Discurso, por estabelecer que ela é
condição material, isto é, a base que possibilita a produção de discursos, em seus efeitos
histórica e ideologicamente constituídos. No entanto, não ignorou em seu percurso
teórico uma abordagem dual de língua: 1) não desconsiderava as leis morfológicas,
fonológicas e sintáticas estabelecidas no campo da Linguística; 2) considerava um outro
funcionamento, não estritamente linguístico, mas proveniente da teoria psicanalítica,
com língua e inconsciente coexistindo.
Na perspectiva da LN, o deslocamento que realizamos é na direção de uma outra
abordagem, diferente das que consideram o pronome neutro apenas um fenômeno
linguístico. Não são os textos (os novos pronomes de tratamento trazidos pela LN) que
possuem funcionamento, mas sim a língua com seu mecanismo próprio, constituído por
combinações, substituições reguladas por imposições morfológicas e morfossintáticas.
Somado a esse funcionamento, há a presença do inconsciente e do desejo, da falha
estrutural que constitui todo sujeito interpelado.
A língua da qual falamos é apenas relativamente autônoma, pois, ainda que
possua estruturas morfológicas, fonológicas e relações sintáticas interiores, está sujeita
ao que Pêcheux chamou de "processos discursivos", isto é, dinâmicas discursivas com a
língua operando dentro das leis linguísticas – a base material.
É necessário observarmos ideologia e inconsciente na trama de processos que
envolvem a língua, questionando e atualizando o sentido a partir da subjetividade de
nossa época. Segundo Lacan (1953), "uma palavra não é uma palavra a não ser na
medida exata em que alguém acredita nela", isto é, em que dimensão podemos situar
uma palavra, um significante, um discurso, um sujeito, senão na dimensão da
ambivalência?
Toda palavra, conforme Lacan, não pode ter nunca um sentido único ou uma
única empregabilidade. Ela possui função criadora.

Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções, envolve


muitos sentidos. Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer, e,
atrás do que quer dizer, há ainda um outro querer-dizer, e nada será nunca
esgotado – se não é que se chega ao fato de que a palavra tem função criadora
e faz surgir a coisa mesma, que não é nada senão o conceito. (Lacan, 1953).

Por trás da superfície do que é dito há o que está subjacente, da ordem do


inconsciente e do desejo, da busca pelo objeto a. A LN não escapa a essas imposições,
pois, assim como toda linguagem, ela é produzida pelo sujeito do discurso. Muito mais
do que mero fenômeno linguístico, a LN revela uma inquietação, um deslocamento
operado pelo indivíduo interpelado em sujeito. Trata-se de uma tentativa de
reconhecimento.
REFERÊNCIAS

Legislação:

Brasil. Câmara dos Deputados. (2020). Projeto de Lei nº 5198/2020: Veda


expressamente a instituições de ensino e bancas examinadoras de seleções e concursos
públicos a utilização, em currículos escolares e editais, de novas formas de flexão de
gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras
gramaticais consolidadas. Recuperado de
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2265327

Artigo de Revista:

Barbosa Filho, F. R. (2022). A linguagem neutra e a ética da linguística. Revista digital


Parábola, 2(13), 14-19.

Capítulo de Livro:

Pêcheux, M., & Gadet, F. (1998). Há uma via para a linguística fora do logicismo e do
sociologismo? In E. Orlandi (Trad.), Escritos: discurso e política (pp. xx-xx). Editora da
Unicamp.

Livro:

Soler, C. (2002). O corpo falante: introdução à clínica psicanalítica do real (3a ed.).
Zahar.

Você também pode gostar