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Darcilia SIMÕES2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Programa de Pós-graduação em Letras
Preliminares
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LABOV, William. “Sociolinguística: uma entrevista com William Labov”. Revista Virtual de
Estudos da Linguagem - ReVEL. Vol. 5, n. 9, agosto de 2007. Tradução de Gabriel de Ávila Othero.
ISSN 1678-8931 [www.revel.inf.br].
Paciênça já num guento a pirsiguição
Já sô um caco véi nesse meu sertão
Tudo qui juntei foi só pra ladrão
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo plantá feijão no pó9
9
Letra fornecida pelo autor.
10
In https://www.letras.mus.br/adoniran-barbosa/43968/ Acesso em 21.Maio.2020
Geraldi (1996, p. 62), ao tratar de diferentes instâncias de uso da linguagem,
destaca a distinção entre as modalidades oral e escrita. Em virtude de um modelo antigo
de ensino em que a escrita era a base para o ensino da língua (havia uma máxima, que
remonta aos antigos filósofos da Grécia Antiga, que orientava essa conduta: “a
gramática é a arte do bem falar e escrever corretamente”), o convívio com falantes
alfabetizados leva à incorporação de características da escrita em suas falas. Todavia, o
conhecimento da invariante nas variações (JAKOBSON, 1967, p. 185) ensejou a
mudança de perspectiva no ensino da língua, no que tange à exclusividade da norma
culta. Atualmente, as demais variedades são objeto de reflexão científica e,
eventualmente, devem prestar-se à descrição nas classes de língua.
Por que a norma culta ainda deve ser privilegiada no ensino escolar?
Seguindo Geraldi, repito que, vivendo numa sociedade letrada, o aluno muito
antes de escrever convive com a língua escrita e sabe, portanto, o que é e o que não é
escrita. Conhece também alguns dos usos sociais dessa modalidade, o para que ela serve
e o seu valor social. Logo, ao buscar a escola, o aluno pretende precisamente aprender a
ler e a escrever para responder a uma necessidade prática nessa sociedade de que
participa.
Onde e como fica então o respeito à fala original do aluno?
A variedade popular é o primeiro modelo de língua que o falante aprende. Tal
aprendizado tem início no ventre materno, e é recebido pelas sinapses nervosas que
simbioticamente atuam entre feto e gestante. Assim sendo, os falantes em geral iniciam
sua prática linguageira por meio da variedade popular; é esta que vem na bagagem dos
sujeitos ao chegarem à escola. No entanto, manter intacto esse conhecimento, sem que
seja “incomodado” pela percepção de que existem outras formas de falar diferentes e
que merecem atenção, seria um verdadeiro estelionato linguístico, uma vez que seria
simulada ao aluno a inexistência da variação e construída uma hipótese falha acerca da
exclusividade da fala popular.
Encerrando esta seção, cumpre dizer que a gramática normativa é um
conhecimento de partida para a compreensão dos modos como a língua se organiza na
produção dos discursos-textos. Por conseguinte, não ensinar a variedade culta na escola
é privar o aluno das noções fundamentais da estruturação linguística, as quais são
modificadas segundo as situações de interlocução, ou seja, segundo a variedade
linguística predominante no ato de fala.
A gramática como necessário conjunto de regras de um jogo indispensável
É Bechara quem afirma: "...a gramática normativa tem o seu lugar e não se anula
diante da gramática descritiva, científica..."11, isso porque cada uma delas gera signos-
tipo que terão seus significados decorrentes dos contextos em que se materializam.
Volto a Sebeok (1996, p. 35) e trago ao texto uma de suas indagações ao tratar do
signo verbal: Como adquirem e mantêm os signos-tipo sua capacidade para significar?
Nesse ponto de minhas reflexões, chamo a atenção dos ouvintes/leitores para o
fato de que a multiplicidade da língua, seja em suas formas potenciais, seja em suas
variações, amplifica a necessidade de que se conheça o máximo possível desse sistema,
11
http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20000704.htm Acesso em 08.Maio.2019.
cuja riqueza se estende para além das normas que o disciplinam. Em outras palavras,
quanto mais formas se conhece, maior será a capacidade de expressão, portanto, maior
será a capacidade de criar signos que serão interpretados pelos interlocutores dando
assim vida social aos signos.
Destarte, tomando-se um modelo prévio (os textos escritos da literatura clássica
ditos exemplares) já se apresentavam problemas de análise bastante intrincados,
imagine-se ao considerar a potencialidade expressional das múltiplas variedades
linguísticas; isto é, uma mesma mensagem pode ser expressa de ene formas, segundo
quem a manifesta, para quem a apresenta, em que situação se encontram os
interlocutores, qual o tema sobre o qual se discorre etc. Isso tudo sem contar as
surpresas das frases (em especial as formadas por falantes não escolarizados), as quais
conseguem comunicar, mas não se ajustam a nenhum modelo estrutural previamente
construído. Eis a língua em funcionamento! Nessa perspectiva, a gramática será vista
como as regras do jogo linguístico, as quais significam e produzem significados.
As variedades linguísticas têm gramáticas próprias (Coseriu denomina as
variedades como línguas funcionais que têm gramática própria e que o falante domina e
lhe permite intercomunicar-se na sua comunidade de origem — apud BECHARA,
1991, p. 13), e estas constituem regras de jogos linguísticos distintos que trazem à cena
perfis socioculturais também distintos. Assim sendo, é preciso identificar tais regras
para operar adequadamente com a língua. Contudo, não nos seria possível discutir e
incorporar tantas regras quantas são as variedades, logo, o caminho mais simples é
dominar as regras da norma culta e, por eliminação, deduzir as demais regras das outras
variedades. Um exemplo no nível morfológico é a redução da conjugação verbal. Veja-
se o quadro a seguir:
CARACTERÍSTICA FLEXÃO Nº DE
TIPO DE NORMA
PRINCIPAL FORMAS
eu falo, tu falas, ele fala, nós 06
Norma culta (uso
falamos, vós falais, eles falam
formal):
12
In Simões, Considerações sobre a fala e a escrita. 2006, p. 50.
Porque, em geral, escolas e cursinhos particulares se debruçam sobre as regras do uso
formal da língua e, segundo esse modelo, treinam seus alunos para a participação no
ENEM. Assim sendo, é frequente a aprovação de alunos da rede particular de ensino
nesse certame.
Observe-se que os aprovados serão aqueles que dominam as regras do jogo que,
nesse caso, é representado pela redação do ENEM. Produção textual que deve seguir
não apenas as regras do uso formal, mas também detalhes estruturais da organização de
um texto coeso e coerente. É preciso, no entanto, ressaltar que a coesão e a coerência
também se relacionam com a gramática da língua e são categorias que permitem
distinguir textos e não-textos (FÁVERO, 1995, p. 6). Em uma redação que segue as
normas do uso formal não se pode prescindir do emprego, por exemplo, do modo
subjuntivo dos verbos (modo geralmente não praticado na fala popular). A despeito
disso, é comum ouvirem-se ou lerem-se construções como:
Se o Governo manter (mantiver) os cortes anunciados...
Se ele recompor (recompuser) o orçamento das universidades...
Quando a polícia intervir (intervier) na movimentação das milícias...
Quando o docente propor (propuser) atividades desse tipo...
Se eu não lhe ver (vir) mais... (Nessa passagem, ainda se tem o uso mais
popular do pronome átono lhe, muito frequente na fala nordestina.)
Veja-se o que diz Nascentes em “Lheísmo no Português do Brasil” 13 sobre o lhe
como objeto direto.
Os espanhóis chamam leísmo o emprêgo da forma le do pronome
da terceira pessoa, como única no acusativo masculino singular
(Dicionário da Real Academia).
Por analogia, criamos a palavra lheísmo para designar, no
português do Brasil, o emprêgo da forma lhe como objeto direto. (p. 1)
(..................................................)
Observe-se que o emprêgo de lhe como objeto direto aparece
quase sempre na alocução.
Aplica-se sempre a pessoas.
Êste emprêgo de lhe por o, a já vem preparado na língua
desde muito tempo. Vários fatos o provam (p.4)
(.................................................)
O mesmo emprêgo de lhe como objeto direto se encontra
ern Coa (Leite de Vasconcelos, Esquisse d'une dialectología portugaise,
Lisboa, 1970. p. 6)
É importante lembrar que esses usos são questionados, porque são praticados por
pessoas que deveriam ter domínio da norma culta e que estão se pronunciando em
situações formais (reportagens, encontros acadêmicos etc.), logo, tais empregos são
tomados como modelares. Entretanto, se a fala for oriunda de sujeitos pouco ou não
escolarizados, não haverá a exigência do uso do futuro do subjuntivo, uma vez que se
trata de uma particularidade do uso formal da língua e que depende de instrução escolar.
No entanto, considerando que os usos impróprios de formas verbais como as dos
exemplos dados ocorram numa sessão solene de um tribunal, de uma sessão plenária de
13
In https://revistas.ufpr.br/letras/article/view/19904/13129 Acesso em 21.Maio.2020
um congresso, de uma aula, de um artigo acadêmico, até de uma redação do ENEM, o
enunciador terá sua imagem prejudicada, sua autoridade será posta em xeque pelo
auditório (interlocutores, ou avaliadores), uma vez que sua fala não estará condizente
com sua imagem social do momento, portanto o auditório desconfiará da validade de tal
discurso ou mesmo da competência do enunciador.
Quando falo em auditório, chamo à cena o necessário ajuste do discurso-texto a
sua potencial plateia. Dessa forma, a fala de um professor, de um pesquisador, de um
cientista, não é equiparável à de, por exemplo, um vendedor ambulante (salvo exceções,
é claro!). Quem já não escutou nas ruas frases como:
Um biscoito é um e cinquenta, e dois biscoito é dois real.
Par de limpador de para-brisa é dez real.
Uma água é dois, duas água é três real.
A marcação de plural e a concordância inexistentes não prejudicam a
compreensão, mas, indiscutivelmente, sugerem a comunidade de fala de origem do
enunciador.
Sabe-se que o estilo cuidado, às vezes “empolado”, da enunciação não é garantia
de veracidade, respeitabilidade e que tais, dependendo da situação. Porém não se pode
deixar-se ir aos extremos. Vejam-se os exemplos:
1- Seu eu errar, consertá-lo-ei. (Michel Temer, setembro de 2016)
Comentário: a opção pela mesóclise teria sido uma forma prática de mostrar-se
diferente de seus antecessores?
Apesar de continuar integrando as normas de colocação dos pronomes átonos, a
mesóclise é hoje pouco usada. Porém, deve ficar claro que seu emprego não é proibido.
Deve-se sempre levar em conta o auditório, para que a colocação do pronome não se
torne mote para memes (imagens, vídeos, gifs, relacionados com tom humorístico,
disseminados pela Internet), por exemplo.
2 - O exemplo de uma mulher, conge, morta pelo seu conge...14 (Sergio Moro,
Ministro da Justiça, abril, 2019)
Comentário: a pronúncia incorreta da palavra cônjuge, por um operador do
Direito, provocou inúmeras discussões a respeito de sua competência, a partir de um
erro linguístico inaceitável por se tratar de um termo técnico amplamente usado na
linguagem do Direito, especialidade do falante em foco.
Numa fala pública, como é o caso de uma entrevista, uma sessão plenária etc., o
enunciador deve ter claro o seu papel social e cuidar de sua fala com a devida atenção
para evitar a possibilidade de originar piadas, quase sempre de gosto duvidoso.
3 - Não vamos colocar meta. Vamos deixar a meta aberta, mas, quando atingirmos
a meta, vamos dobrar a meta.15 (Dilma Rousseff, Presidente da República, julho, 2015)
Comentário: Nesse caso, o problema decorreu de um erro de seleção ou de um
entendimento equivocado do significado de uma palavra. Meta significa objetivo que se
14
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-moro-viraliza-com-nova-pronuncia-de-conjuge-
conje/ Acesso em 08.Maio.2019.
15
https://citacoes.in/autores/dilma-rousseff/ Acesso em 08.Maio.2019.
almeja [HOUAISS, s.u.]. No entanto, é construído pela enunciadora um jogo de
palavras sem sentido ao dizer que não vai haver meta, em seguida que vai deixar a meta
(no caso, inexistente) aberta e, por fim, fala em dobrar a meta até então não existente.
4- "Beliscão é dói para cacete"16 (Lula envia ao Congresso projeto que pune pais.
Julho. 2010).
Comentário: O Lula, então Presidente da República, comete grave erro de seleção,
completamente impróprio ao representante da maior investidura do país (ele era o
Presidente da República à época). A expressão “dói para cacete” teria outras formas
polidas de expressão como: dói muito, é muito doloroso etc.
5- Essa modalidade de seguro terá mais aceitatividade. [grifei]
Comentário: Entrevistado na rádio CBN, um representante de certa seguradora é
interpelado sobre a relevância de lançamento de mais uma modalidade de seguro, ao
que responde com um neologismo desnecessário, porque a língua já tem e mantém em
uso corrente a forma aceitação. Erros desse tipo demonstram uma estratégia de
preenchimento de lacunas lexicais por parte do falante, mas, ao mesmo tempo, indicam
curto repertório.
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