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INTRODUÇÃO

À LINGUÍSTICA

Debbie Mello Noble


Gramática
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Relacionar as diferentes concepções de língua às diferentes concep-


ções de gramática.
 Reconhecer as características das gramáticas prescritiva, descritiva
e internalizada.
 Interpretar fenômenos de linguagem de acordo com as diferentes
linhas teóricas.

Introdução
O termo “gramática” pode ter diferentes significados dependendo da
área da linguística que se propõe a estudá-la. Pode ser considerada um
conjunto de regularidades que compõem uma língua, as regras da lín-
gua, o que é certo ou errado, de uma maneira mais prescritiva. Pode
ser também o estudo da língua em uso pelos falantes, de uma maneira
mais descritiva. Sem contar a gramática internalizada, que é o sistema
de regras da língua que o falante domina, inato a ele. Além disso, para as
duas primeiras concepções — prescritiva e descritiva —, há a obra (nor-
malmente um livro) que as registra e também é chamada de gramática.
O conceito de gramática é, portanto, amplo.
Neste capítulo, você vai conferir os diferentes conceitos de língua
e de gramática que determinam suas abordagens, passando também
pelo conceito de gramaticalização. Também vai estudar as características
das gramáticas prescritiva, descritiva e internalizada, além de conhecer
os fenômenos da linguagem segundo diferentes abordagens teóricas.

Gramática: conceito e história


A primeira gramática da língua portuguesa foi publicada em 1536 por Fernão
de Oliveira, em Lisboa. A Grammatica da lingoagem portuguesa não seguia o
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modelo das gramáticas que até aquele momento eram produzidas, apesar de ter
um caráter normativo, que buscava “[…] propor uma norma para o português
do século XVI” (PINTO, 2004, documento on-line). Tinha também um caráter
linguístico e cultural, aludindo ao modo de falar dos portugueses daquele
período. A obra era composta de 50 capítulos, contendo normas gramaticais,
fonéticas, lexicológicas e, sobretudo, estudos etimológicos e sobre a sintaxe.
Tinha o objetivo de ser um primeiro registro da língua portuguesa, a fim
de perpetuá-la. Naquela época, Portugal estava buscando por uma “autonomia
nacional”. A gramática, então, seria uma forma de afirmar a identidade do
povo português, da nação portuguesa (PINTO, 2004).

Acesse o link a seguir e conheça a Grammatica da lingoagem portuguesa.

https://qrgo.page.link/3nN8N

Hoje, o conceito de gramática é muito amplo e debatido por teóricos, que


possuem distintas concepções sobre ela. É impossível falar de gramática
sem pensar em língua e sem trazer à tona a necessária relação entre elas.
As diferentes formas como a língua é concebida apontam para diferentes
concepções de gramática.
Uma das acepções de gramática é aquela que designa um livro, que possui
como assunto “[…] uma apresentação de elementos constitutivos de uma
língua” (FARACO; VIEIRA, 2016, p. 293). No entanto, os próprios autores
alertam para a abrangência do termo e da definição, refletindo sobre a ne-
cessidade de se manter aberta a pergunta o que é gramática? Isso ocorre
porque a língua é um objeto de estudo muito amplo e complexo, que suscita
diferentes reflexões e enfoques.
Uma gramática é um livro que, como tal, tem autoria e, consequentemente,
contém as percepções e os estudos de um determinado autor, sendo produzido
conforme as necessidades do momento histórico em que se insere. Não há,
portanto, apenas uma possibilidade de ver a língua, quer dizer, não há um
único conjunto de regras que a define.
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Para estudar a língua, é necessário estudar o seu funcionamento. Segundo


Nasi (2007), a forma como as diferentes correntes teóricas dos estudos da lin-
guagem estudam os processos de fala e de escrita demonstra suas concepções
de língua e de gramática.

Gramatização
A gramatização das línguas foi abordada por Sylvain Auroux no livro A
revolução tecnológica da gramatização, e é um processo importante para o
estudo da gramática. A gramatização no mundo ocidental, que se dá a partir
do Renascimento na Europa, é equivalente a uma revolução tecnológica, como
o surgimento da escrita. Esse processo “[…] conduz a descrever e a instru-
mentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares
de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” (AUROUX, 1992,
p. 65). Assim como o dicionário é, ainda hoje, um instrumento de consulta
sobre o certo e o errado na língua, a gramática também funciona como um
instrumento linguístico, uma vez que “[…] se torna simultaneamente uma
técnica pedagógica de aprendizagem das línguas e um meio de descrevê-las”
(AUROUX, 1992, p. 36).
Da gramaticalização, partem as noções de língua fluida e língua ima-
ginária, propostas por Orlandi e Souza (1988). Refletindo sobre a oposição
entre a língua “do mundo” — aquela falada no dia a dia, língua da interação
dos sujeitos — as autoras propuseram a ideia de língua fluida, ou seja, a
língua que não cabe em um conjunto de normas e, portanto, não é passível de
normatização. Por outro lado, a língua imaginária seria aquela sistematizada
pelos estudiosos da linguagem, que, a partir de certos artefatos, torna-se uma
língua da norma, um instrumento de coerção e de poder por parte daqueles
que possuem o domínio de seus saberes.

Essas propostas são relevantes para que você reflita, enquanto professor de língua
em formação, sobre a necessidade de estudar o funcionamento da língua e sobre o
papel das gramáticas, evitando abordá-las como um amontoado de regras passíveis
de serem apreendidas.
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Gramáticas prescritiva, descritiva e


internalizada
Como pode ser observado, as concepções de língua e gramática andam juntas.
Por isso, é essencial que você compreenda as diferenças entre as formas como
a língua é compreendida em cada teoria para entender os tipos de gramática
que delas derivam. A seguir, você vai conferir a distinção entre as gramáticas
prescritiva (ou normativa), descritiva e internalizada, ao mesmo tempo em que
vai conhecer os entendimentos sobre a língua que as sustentam.

Gramática prescritiva (normativa)


A gramática prescritiva, ou normativa, é aquela a que você provavelmente foi
exposto ao longo de sua escolarização. Isso porque, em geral, é essa a aborda-
gem usada para refletir sobre a linguística na disciplina de língua portuguesa.
No entanto, essa gramática pressupõe uma visão de língua homogênea, ou
seja, um modelo de língua que todo falante de uma língua deve seguir para
estar de acordo com suas regras. A gramática que acompanha essa visão de
língua é a prescritiva, ou normativa, aquela que dita normas e regras de um
certo modelo de língua como se ele fosse o único possível.
Conforme Franchi (2006, p. 16), alguns professores consideram que a gra-
mática seria “[…] o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever,
estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos
bons escritores. Dizer que alguém sabe gramática significa dizer que esse
alguém conhece essas normas e as domina”.
É nesse ponto que reside o maior problema da abordagem prescritiva da
gramática na escola. Ao considerá-la o padrão de excelência, a escola leva seus
alunos a perseguirem esse modelo ao longo da vida escolar. Porém, se esse é o
único ponto de vista gramatical ao qual se tem acesso, passa-se a acreditar que
todo o resto que produzimos como falantes em nosso dia a dia está errado. Nesse
caso, o aluno passa a vida acreditando que fala errado, que a língua é difícil, e
duvida de sua competência internalizada. Prioriza-se, nessa abordagem, a norma-
-padrão e, portanto, deixa-se de lado as variações da língua, que são muitas e
dependem de inúmeros fatores — sociais, econômicos, geográficos, entre outros.
Isso não quer dizer que a gramática normativa não tenha valor escolar, mas o
ensino de língua baseado somente na norma-padrão não pode desconsiderar as
variações e uma profunda reflexão linguística que passa, inclusive, pelas regras
da gramática normativa. Entra em jogo, nesse ponto, outra questão: muitos
professores afirmam compreender a variação linguística, mas consideram
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que ela deve ficar apenas no âmbito da fala, sendo a escrita normatizada pela
gramática da norma-padrão. No entanto, os exemplos presentes em Franchi
(2006) mostram que a escrita escolar também não pode ser somente pautada
nos padrões de certo e errado da gramática normativa.

Franchi (2006) apresenta dois textos de alunos de 3º ano do ensino fundamental e faz
algumas análises das percepções de professores sobre eles. Veja um trecho de cada
um dos textos a seguir.

Texto 1
Era uma vez um passarinho que vivia em uma árvore na frente da casa de João. E o
João temtava pegalo todos os dias mas não comsiguia. Até que um dia ele temtou
muito, mas muito, que ele acabou catando o passarinho.

Texto 2
Lá na fazenda do meu avô tem cavalos, galinha, pato, vaca, boi e porcos. Quando eu
vou lá, eu ando de cavalo e tomo leite de vaca. Os animais gostam muito de carinho
e amor. Eu gosto muito dos animais.

No primeiro exemplo, os professores consultados consideraram o texto “um de-


sastre”, ressaltando os erros como a troca de letras (m por n nas palavras destacadas)
e o desconhecimento das regras da língua. O Texto 2, por seu turno, não tem erros
gramaticais consideráveis e foi considerado um texto “limpinho, em bom português”
(FRANCHI, 2006).

Nesse exemplo, a concepção de gramática dos professores citados por


Franchi (2006) está associada à gramática normativa, que segue uma concepção
de língua dos escritores e de uma linguagem que seria mais culta e bela do que
a falada no dia a dia. O “bom português”, no entanto, como mostra Franchi
(2006), nem sempre garante um texto criativo.
No Texto 1, apesar dos desvios gramaticais, é possível notar uma maior
criatividade e, no Texto 2, uma maior contenção. Além disso, Franchi (2006,
p. 26) ressalta que o texto 1 não deixa de mostrar um “[…] razoável grau de
amadurecimento linguístico e textual”, considerando a capacidade do aluno
escritor do Texto 1 de construir uma série de operações complexas com a
língua, como em “Era uma vez um passarinho que vivia em uma árvore na
frente da casa de João”, enquanto o Texto 2 tem estruturas bastante simples
como “Eu gosto muito dos animais”.
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Para Franchi (2006), portanto, esses exemplos evidenciam que o aluno do


Texto 1 demonstra um “controle” da língua muito superior, de certa forma,
ao demonstrado pelo aluno do Texto 2.

Gramática descritiva
A proposta da gramática descritiva tem como base o princípio da observação
dos fenômenos linguísticos. Ao contrário da gramática prescritiva, ela não
tem o intuito de prescrever regras, de ditar como a língua deve ser, mas sim
de observar e descrever como a língua tem sido utilizada pelos falantes.
Para Ferraz e Olivan (2011), a gramática descritiva é um conjunto de regras
que descrevem os fatos da língua. Analisando e descrevendo a língua real que os
falantes utilizam, é possível observar quais fenômenos linguísticos ocorrem, como
a língua se estrutura, o que é aceitável ou não em termos de língua. Essas regras
ajudam a observar o que é gramatical e o que é agramatical. Gramatical é aquilo
que atende “[…] às regras da língua segundo determinada variedade linguística”
(FERRAZ; OLIVAN, 2011, p. 2236). Em outras palavras, gramaticais são aquelas
estruturas e frases comuns à comunidade de falantes. Veja o exemplo a seguir.

Todos os motoristas entraram em greve.


Os motoristas todos entraram em greve.
Os motoristas entraram todos em greve.
*Os todos motoristas entraram em greve.
*Os motoristas entraram em todos greve.

O sinal * significa que a frase é agramatical. Observe o posicionamento linear dos


elementos que constituem as sentenças. É possível notar que nem toda posição é
possível do ponto de vista da gramática internalizada do falante. Não se trata, portanto,
de prescrever o que é certo ou errado, mas de observar que certas construções sintáticas
não fazem sentido para os falantes; é agramatical (PERINI, 2005).

É necessário eleger certos fatos da língua para observar, já que seria im-
possível dar conta da totalidade de fatos da língua. Estudam-se, então, os fatos
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sintáticos, aqueles de particular interesse à teoria, uma vez que a sintaxe é a


parte da gramática de organização da língua. Na descrição de um fato sintá-
tico, como a posição linear que os elementos de uma frase ocupam, como no
exemplo dado, é possível observar que a língua permite certos posicionamentos
e não outros. Com o exemplo, nota-se que a gramática descritiva considera
o falante, sua intuição, sua língua internalizada, isto é, as possibilidades e
impossibilidades da língua por meio de fatos que são bastante intuitivos. O
autor explica que: “[…] os falantes têm muitas vezes intuições bem definidas
[…] em outros casos as intuições não são claras, e é preciso lançar mão de
outros recursos, como tentar observar o comportamento sintático de uma
sequência em outras frases” (PERINI, 2005, p. 45).
Toda gramática descritiva, portanto, pressupõe hipóteses e observação e,
consequentemente, constitui-se como resultado de uma pesquisa, argumen-
tando e justificando o caminho tomado. Por isso, do ponto de vista descritivo,
não é possível estudar gramática sem, ao mesmo tempo, fazer gramática, no
sentido de refletir, investigar e pensar nos fenômenos da língua.
Além disso, o trabalho de descrever uma língua inclui a descrição dos
seus aspectos formais somados aos significados que eles veiculam. Primeiro,
é realizada a descrição do aspecto formal e do semântico separadamente,
posteriormente realizando-se um confronto entre ambos (PERINI, 2005).

No Brasil, a norma considerada oficial está associada à língua escrita, não à língua que é
falada no país. No entanto, a estrutura da língua que escrevemos é muito diferente da
estrutura da língua que falamos e, por isso, é muito mais difícil refletir sobre a língua.
Há, portanto, uma disjunção que não é observada pela gramática normativa e
que se reflete na forma como o brasileiro escreve. Tentamos reproduzir, na escrita, as
regras e os padrões de um modelo estabelecido por uma língua diferente daquela
que falamos no dia a dia. Considerando isso, haveria duas línguas no Brasil, cada qual
com seu domínio próprio.
Este fato tem origem não somente na colonização, mas também na tentativa da
coroa portuguesa de unificar as línguas e tornar o português a única língua oficial
e obrigatória nas escolas. Isso era feito por meio de decretos, ou seja, por uma via
não natural. Com essa unificação forçada, não se aplica a gramática internalizada e a
linguagem inata do falante brasileiro, mas sim a tentativa de escrever nos padrões de
uma língua forjada como materna (PERINI, 2001).
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O gerativismo e a gramática internalizada


A gramática internalizada é entendida como aquela que todos os falantes
possuem de maneira inata. Essa seria uma predisposição genética que permite
não somente a aquisição da linguagem, mas também o desenvolvimento de
uma lógica interna de organização da língua.
De acordo com essa perspectiva, a linguagem humana, expressa por meio
de uma língua natural, é entendida como um fenômeno cognitivo. A língua é
tomada como produto da mente humana, e é este entendimento que sustenta
a teoria sobre a gramática internalizada.

Cognição é o termo científico utilizado para fazer referência ao conjunto das inteligên-
cias humanas. Segundo Kenedy (2013), o termo diz respeito aos fenômenos mentais que
têm relação com a aquisição, o armazenamento, a ativação e o uso do conhecimento.

Segundo Kenedy (2013), a linguagem é um conhecimento implícito, incons-


ciente no conjunto da cognição humana. Um indivíduo é capaz de produzir uma
infinidade de sentenças na sua língua materna sem se dar conta de que está
realizando isso, ou seja, ocorre de maneira inconsciente. Por isso, a linguagem
é entendida como um conhecimento tácito que os indivíduos possuem.
Essa concepção está ancorada no gerativismo, que tem como expoente prin-
cipal o cientista Noam Chomsky. Surge nos anos de 1950, quando o Chomsky,
então professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, formula suas ideias
sobre a “natureza mental da linguagem humana”. A teoria propunha a descrição
dos procedimentos mentais que “[…] geram as estruturas da linguagem, como
as palavras, as frases e os discursos”, sendo as frases organizadas por meio
de regras inconscientes na mente dos indivíduos (KENEDY, 2013, p. 17).
Além disso, a teoria gerativista entende que as línguas naturais não só são
produto da mente humana, mas também possuem uma exterioridade; elas só
se tornam úteis como línguas naturais se puderem ser compartilhadas pelos
indivíduos. Para que uma língua exista, seu léxico precisa ser compartilhado
pelos falantes.
Assim, pode-se dizer que há duas dimensões da língua, as quais foram
denominadas por Chomsky de língua-I (interna, individual e intensional), ou
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seja, a língua enquanto faculdade cognitiva, e língua-E (externa e extensional),


a língua como código linguístico.

Os gerativistas se interessam por estudar a língua-E para descrever os traços do léxico


das línguas (fonemas, morfemas, palavras) utilizados na formação das representações
mentais. Sendo a língua-E entendida como um produto sócio-histórico, ela está sujeita
“[…] às contingências da experiência cultural humana” (KENEDY, 2013, p. 33). Assim, os
gerativistas entenderam que a mente humana é capaz de adquirir essas informações da
língua-E para produzir e compreender expressões linguísticas no cotidiano da Língua-I.

É a língua-I, portanto, o principal objeto de estudo da concepção gerativista,


uma vez que esta faz parte do sistema cognitivo do indivíduo. O estudo da
língua-I é o estudo da capacidade humana de colocar em prática os códigos
da língua, como fonemas, morfemas, palavras, frases.
Entendendo que a língua-I está presente em todos os indivíduos, Chomsky
percebeu que, em vez de buscar uma descrição de cada língua separadamente,
era possível investigar as características universais das línguas. Publicou,
então, em 1965, Aspectos da teoria da sintaxe, em que explica os conceitos
de competência e desempenho. Competência linguística é o que permite ao
falante “[…] produzir o conjunto de sentenças de sua língua”. É por meio de
sua capacidade inata de linguagem que o falante desenvolve essa competência.
Por outro lado, o desempenho é o comportamento linguístico, são os fatores
externos ou não linguísticos, de ordens variadas, como inserção social, crenças,
interlocutores, e também o diferente “[…] funcionamento dos mecanismos
psicológicos e fisiológicos envolvidos na produção dos enunciados” (PETTER,
2015, p. 11). Isso quer dizer que o a competência está internalizada no falante,
enquanto o desempenho depende de outros fatores. Por exemplo, você sabe
falar em português, tem a competência linguística. Porém, está apresentando
um trabalho a uma turma cheia de alunos e começa a esquecer palavras e
gaguejar; seu desempenho está afetado pelo nervosismo.
A teoria desenvolvida por Chomsky para explicar e analisar os dados foi
denominada de gramática gerativa, uma vez que, segundo ela, o falante pode,
por meio de um limitado número de regras internas que possui, gerar um
infinito número de sentenças. A gramática gerativa, portanto, tem por objetivo
explicar e analisar as frases potencialmente realizáveis em uma língua, cuja
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intuição do falante é o “[…] critério da gramaticalidade ou agramaticalidade


da frase” (PETTER, 2015, p. 11). Observe a frase a seguir.

Problema este muito seu difícil é.

Neste exemplo, como falante, você consegue perceber que algo não está
bem na construção da sentença. Você não precisa ser um especialista em
linguística para perceber isso. É esse estranhamento que Chomsky entende
como a intuição do falante. Por menos escolarizado que o falante seja, ele é
capaz de organizar os elementos linguísticos que compõem esta sentença,
tornando-a novamente gramatical.
Uma sequência de palavras é agramatical quando, segundo Petter (2015),
não respeita as regras gramaticais internalizadas pelo falante. Um falante
pode utilizar sua competência inata para organizar o exemplo acima como:

Este seu problema é muito difícil.

Todo falante de uma língua natural possui competência para refletir sobre
a língua. Dessa forma, na escola, o professor de língua pode fazer valer essa
competência para proporcionar uma verdadeira reflexão sobre o objeto de
estudo da sua disciplina, utilizando-se de situações e exemplos do cotidiano
dos alunos. No entanto, não é isso que ocorre geralmente nas aulas de língua.

Interpretando fenômenos de linguagem


A linguagem é um fenômeno que permeia nossa vida social em diversos
aspectos e é de fundamental importância em nosso dia a dia. É necessário,
então, entender a gramática como uma forma de refletir sobre o funcionamento
da linguagem (e não somente como um amontoado de regras em um livro).
Dessa forma, estudar gramática na escola é importante, porque proporciona
um espaço de reflexão e pesquisa, podendo inclusive promover a autonomia,
a criticidade e a curiosidade científica dos alunos (PERINI, 2005). Uma vez
que se passe a enxergar a gramática como meio de observar e interpretar os
fenômenos da linguagem que ocorrem no cotidiano, o sentido e a significação
do ensino de gramática tomam outro rumo e abrem caminho para diversas
oportunidades. No exemplo a seguir, é possível realizar uma interpretação
muito simples de um fato da linguagem.
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O poema Pronominais, de Oswald de Andrade (1972), demonstra a diferença entre a


gramática descritiva e a prescritiva (normativa). Observe a seguir.

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.

O primeiro verso traz a colocação pronominal de acordo com a norma-padrão, que


sustenta a interpretação dos fenômenos da linguagem pela gramática normativa
(Dê-me). Já a língua do último verso representa a língua que sustenta a descrição da
gramática descritiva, que observa os fenômenos da linguagem pelo uso dos falantes
(Me dá). Isso quer dizer que, apesar de a gramática prescritiva orientar a não começar
frases com pronomes oblíquos, a construção da última frase “Me dá um cigarro” é
completamente possível, pois é compreendida pelos falantes da língua e utilizada
cotidianamente. Essa possibilidade está relacionada à gramática internalizada dos
falantes, uma vez que a língua materna, ou seja, aquela que o brasileiro possui inter-
nalizada, permite essa construção.

De acordo com Perini (2001, p. 13), todo falante “[…] possui um conhe-
cimento implícito, altamente elaborado da língua, muito embora não seja
capaz de explicitar esse conhecimento”. No Brasil, especialmente, em virtude
da distinção muito evidente entre a língua brasileira falada e a norma culta
do português, é possível perceber que esse conhecimento da língua é algo
naturalmente adquirido, e não fruto da instrução escolar.
A interpretação dos fenômenos linguísticos pode se dar em vários aspectos,
que compõem as gramáticas de uma língua: a fonologia, a morfologia, a sintaxe
e a semântica. No entanto, esses aspectos não esgotam as possibilidades de
interpretação, pois ainda se poderia observar a história das formas linguísticas,
por exemplo. Esses aspectos “[…] constituem o estudo da estrutura interna
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de uma língua — aquilo que a distingue das outras línguas do mundo, e que
não decorre diretamente de condições da vida social ou do conhecimento do
mundo” (PERINI, 2005, p. 50).

Refletindo sobre os fenômenos linguísticos


Na escola, como você já viu anteriormente, não ocorre efetivamente uma
interpretação dos fenômenos da linguagem. Na maioria das vezes, na aula de
língua portuguesa, ensinam-se regras que não fazem sentido para o aluno.
Utilizam-se exemplos de grandes escritores, que geralmente não são do século
XXI. Portanto, o aluno tem acesso a uma gramática e a exemplos de língua
que não condizem com a língua conhecida por ele. Muito diferente do que
muitos estudiosos defendem ser o ideal:

[…] o que deveríamos esperar do aluno ingressante no ensino médio é a ca-


pacidade de lidar com os aspectos da língua de modo reflexivo, sendo apto
a selecionar os recursos linguísticos e a estrutura gramatical adequados às
atividades de produção oral e escrita (FERRAZ; OLIVAN, 2011, p. 2238).

Em relação a essa postura reflexiva de língua e às concepções de gramática


que você viu até o momento, considere o fenômeno da regência verbal. A regência
é a relação entre um elemento, considerado regente e outro que o complementa.
De acordo com a gramática prescritiva, o verbo é o regente, e seus complementos
variam de acordo com o que o verbo “pede”. De acordo com a gramática descri-
tiva, a regência de um verbo é variável, dependendo do contexto. Além disso,
varia segundo ao longo do tempo, “[…] porque os falantes passam a interpretar
de forma diferente o significado dos verbos” (TENÓRIO; SILVA; SILVA, 2018,
p. 233). Considera-se, portanto, a gramática internalizada do falante. O verbo
“assistir”, por exemplo, tem na regência uma importante variação da significação.
Que variações são essas e como as diferentes linhas teóricas sobre gramática
a interpretam? No ponto de vista da gramática normativa, o verbo “assistir” é
apresentado como transitivo indireto ou direto, observando-se a mudança de
sentido conforme a mudança na transitividade. Observe a seguir:

1. verbo transitivo indireto: aponta para o sentido de presenciar, ver, observar;


rege a preposição a e não admite a substituição do termo regido pelo pronome
oblíquo lhe, mas sim o(s) e a(s);
2. verbo transitivo indireto: aponta para o sentido de caber (direito a alguém),
pertencer; rege a preposição a e admite a substituição do termo regido pelo
pronome oblíquo lhe(s);
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3. verbo transitivo direto: aponta para o sentido de socorrer, prestar assistência


e não rege qualquer preposição (A REGÊNCIA…, [200-?], documento on-line).

Assim, quando “assistir” for empregado para indicar os sentidos aponta-


dos em (1) e (2), é obrigatória a presença da preposição regida. Nesse caso, a
gramática trata da regência e da transitividade do verbo como uma prescrição,
informando o que é admitido ou não como complemento do verbo. Além disso,
prescreve como obrigatória a presença da preposição regida pelo verbo nos
casos 1 e 2. A distinção e a prescrição da regência desse verbo é semantica-
mente determinada, como por exemplo, em:

Assistimos ao jogo (1)


Não lhe assiste dizer se isto é certo ou errado (2).

Pela gramática descritiva, por outro lado, é possível entender o verbo


“assistir” também em suas ocorrências como transitivo direto, que rege um
objeto direto, sem preposição. Um possível exemplo é a própria acepção de
assistir em “Assistimos o jogo”. Isso porque observou-se, analisando os fenô-
menos linguísticos, que o uso de grande parte dos verbos vem modificando
a normatização. Notou-se também que há uma relação mais direta entre o
falante e a pessoa ou objeto a que ele se refere. Por outro lado, o verbo “assistir”
com o sentido de ajudar, auxiliar, socorrer, já é normatizado como um verbo
transitivo direto e é assim utilizado pelos falantes.
É possível também observar a forma como a gramática internalizada dos
falantes organiza esses usos. Podemos refletir sobre a voz ativa e a voz passiva
em relação ao verbo “assistir”. Observe que, pelas regras da gramática nor-
mativa, um verbo só possui voz passiva quando é classificado como transitivo
direto ou bitransitivo (direto e indireto). No entanto, é perfeitamente coerente e
bastante utilizada pelos falantes a ocorrência passiva, como na frase a seguir:

O filme de terror foi assistido pelas crianças.

Se, pelo viés da gramática normativa, “assistir” com sentido de ver, olhar,
deve ser transitivo indireto, tal ocorrência não poderia existir. No entanto, pela
gramática internalizada do falante, é perfeitamente corriqueira a ocorrência
da voz passiva nesse caso. Pode-se concluir que há uma discrepância entre
aquilo que a gramática normativa prescreve e aquilo que o falante entende
intuitivamente como adequado.
14 Gramática

Por fim, conhecer as regras gramaticais e saber como usá-las é também


importante. Por meio desse estudo, é possível ensinar as diversas configurações
da língua para preparar os alunos para as também diversas situações com que
vão se deparar na vida. Como explica Ferraz e Olivan (2011, p. 2236):

[…] saber gramática depende da ativação e do amadurecimento progressivo


de hipóteses sobre o que é a linguagem e quais seus princípios e regras. Nela,
o que pode ocorrer é uma inadequação da variedade linguística em um dado
momento de interação comunicativa, mas não o erro linguístico.

Para que possam se adequar às variedades linguísticas, portanto, os alunos


precisam conhecê-las, como todas as suas diversidades. No entanto, deve-se ter
como premissa que o aluno já tem conhecimento sobre a língua mesmo antes
de entrar na escola para ser alfabetizado. Considera-se, assim, sua gramática
interna, sua capacidade de produzir linguagem a partir do que já conhece. Além
disso, é fundamental incentivar o estudo da gramática por meio da reflexão
dos fenômenos linguísticos, que, como vimos, pode ser feita em certo grau
por pessoas que não são especialistas em linguística. Mais importante do que
apontar erros e acertos, é promover a reflexão sobre a língua.

ANDRADE, O. Obras completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. v. 6-7.


A REGÊNCIA e o verbo assistir. In: MINI GRAMÁTICA. Disponível em: http://www.nilc.icmc.
usp.br/nilc/minigramatica/mini/aregenciaeoverboassistir.htm. Acesso em: 8 jan. 2020.
AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Unicamp, 1992.
FARACO, C. A.; VIEIRA, F. E. (org.). Gramáticas brasileiras: com a palavra, os leitores. São
Paulo: Parábola, 2016.
FERRAZ, M. M. T.; OLIVAN, K. N. Gramática e formação do professor em língua materna:
refletindo sobre o ensino e ensinando para a reflexão. In: CONGRESSO INTERNACIONAL
DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA, 7., 2011, Curitiba, Anais… Curitiba, 2011.
p. 2234-2248.
Gramática 15

FRANCHI, C. Mas o que é mesmo “gramática”? In: POSSENTI, S. (org.). Mas o que é
mesmo gramática. São Paulo: Parábola, 2006.
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Leitura recomendada
BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL. Grammatica da lingoagem portuguesa. Lisboa:
BNP, 2020. Disponível em: http://purl.pt/120/1/index.html#/1/html. Acesso em: 8 jan.
2020.

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