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À LINGUÍSTICA
Introdução
O termo “gramática” pode ter diferentes significados dependendo da
área da linguística que se propõe a estudá-la. Pode ser considerada um
conjunto de regularidades que compõem uma língua, as regras da lín-
gua, o que é certo ou errado, de uma maneira mais prescritiva. Pode
ser também o estudo da língua em uso pelos falantes, de uma maneira
mais descritiva. Sem contar a gramática internalizada, que é o sistema
de regras da língua que o falante domina, inato a ele. Além disso, para as
duas primeiras concepções — prescritiva e descritiva —, há a obra (nor-
malmente um livro) que as registra e também é chamada de gramática.
O conceito de gramática é, portanto, amplo.
Neste capítulo, você vai conferir os diferentes conceitos de língua
e de gramática que determinam suas abordagens, passando também
pelo conceito de gramaticalização. Também vai estudar as características
das gramáticas prescritiva, descritiva e internalizada, além de conhecer
os fenômenos da linguagem segundo diferentes abordagens teóricas.
modelo das gramáticas que até aquele momento eram produzidas, apesar de ter
um caráter normativo, que buscava “[…] propor uma norma para o português
do século XVI” (PINTO, 2004, documento on-line). Tinha também um caráter
linguístico e cultural, aludindo ao modo de falar dos portugueses daquele
período. A obra era composta de 50 capítulos, contendo normas gramaticais,
fonéticas, lexicológicas e, sobretudo, estudos etimológicos e sobre a sintaxe.
Tinha o objetivo de ser um primeiro registro da língua portuguesa, a fim
de perpetuá-la. Naquela época, Portugal estava buscando por uma “autonomia
nacional”. A gramática, então, seria uma forma de afirmar a identidade do
povo português, da nação portuguesa (PINTO, 2004).
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Gramatização
A gramatização das línguas foi abordada por Sylvain Auroux no livro A
revolução tecnológica da gramatização, e é um processo importante para o
estudo da gramática. A gramatização no mundo ocidental, que se dá a partir
do Renascimento na Europa, é equivalente a uma revolução tecnológica, como
o surgimento da escrita. Esse processo “[…] conduz a descrever e a instru-
mentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares
de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” (AUROUX, 1992,
p. 65). Assim como o dicionário é, ainda hoje, um instrumento de consulta
sobre o certo e o errado na língua, a gramática também funciona como um
instrumento linguístico, uma vez que “[…] se torna simultaneamente uma
técnica pedagógica de aprendizagem das línguas e um meio de descrevê-las”
(AUROUX, 1992, p. 36).
Da gramaticalização, partem as noções de língua fluida e língua ima-
ginária, propostas por Orlandi e Souza (1988). Refletindo sobre a oposição
entre a língua “do mundo” — aquela falada no dia a dia, língua da interação
dos sujeitos — as autoras propuseram a ideia de língua fluida, ou seja, a
língua que não cabe em um conjunto de normas e, portanto, não é passível de
normatização. Por outro lado, a língua imaginária seria aquela sistematizada
pelos estudiosos da linguagem, que, a partir de certos artefatos, torna-se uma
língua da norma, um instrumento de coerção e de poder por parte daqueles
que possuem o domínio de seus saberes.
Essas propostas são relevantes para que você reflita, enquanto professor de língua
em formação, sobre a necessidade de estudar o funcionamento da língua e sobre o
papel das gramáticas, evitando abordá-las como um amontoado de regras passíveis
de serem apreendidas.
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que ela deve ficar apenas no âmbito da fala, sendo a escrita normatizada pela
gramática da norma-padrão. No entanto, os exemplos presentes em Franchi
(2006) mostram que a escrita escolar também não pode ser somente pautada
nos padrões de certo e errado da gramática normativa.
Franchi (2006) apresenta dois textos de alunos de 3º ano do ensino fundamental e faz
algumas análises das percepções de professores sobre eles. Veja um trecho de cada
um dos textos a seguir.
Texto 1
Era uma vez um passarinho que vivia em uma árvore na frente da casa de João. E o
João temtava pegalo todos os dias mas não comsiguia. Até que um dia ele temtou
muito, mas muito, que ele acabou catando o passarinho.
Texto 2
Lá na fazenda do meu avô tem cavalos, galinha, pato, vaca, boi e porcos. Quando eu
vou lá, eu ando de cavalo e tomo leite de vaca. Os animais gostam muito de carinho
e amor. Eu gosto muito dos animais.
Gramática descritiva
A proposta da gramática descritiva tem como base o princípio da observação
dos fenômenos linguísticos. Ao contrário da gramática prescritiva, ela não
tem o intuito de prescrever regras, de ditar como a língua deve ser, mas sim
de observar e descrever como a língua tem sido utilizada pelos falantes.
Para Ferraz e Olivan (2011), a gramática descritiva é um conjunto de regras
que descrevem os fatos da língua. Analisando e descrevendo a língua real que os
falantes utilizam, é possível observar quais fenômenos linguísticos ocorrem, como
a língua se estrutura, o que é aceitável ou não em termos de língua. Essas regras
ajudam a observar o que é gramatical e o que é agramatical. Gramatical é aquilo
que atende “[…] às regras da língua segundo determinada variedade linguística”
(FERRAZ; OLIVAN, 2011, p. 2236). Em outras palavras, gramaticais são aquelas
estruturas e frases comuns à comunidade de falantes. Veja o exemplo a seguir.
É necessário eleger certos fatos da língua para observar, já que seria im-
possível dar conta da totalidade de fatos da língua. Estudam-se, então, os fatos
Gramática 7
No Brasil, a norma considerada oficial está associada à língua escrita, não à língua que é
falada no país. No entanto, a estrutura da língua que escrevemos é muito diferente da
estrutura da língua que falamos e, por isso, é muito mais difícil refletir sobre a língua.
Há, portanto, uma disjunção que não é observada pela gramática normativa e
que se reflete na forma como o brasileiro escreve. Tentamos reproduzir, na escrita, as
regras e os padrões de um modelo estabelecido por uma língua diferente daquela
que falamos no dia a dia. Considerando isso, haveria duas línguas no Brasil, cada qual
com seu domínio próprio.
Este fato tem origem não somente na colonização, mas também na tentativa da
coroa portuguesa de unificar as línguas e tornar o português a única língua oficial
e obrigatória nas escolas. Isso era feito por meio de decretos, ou seja, por uma via
não natural. Com essa unificação forçada, não se aplica a gramática internalizada e a
linguagem inata do falante brasileiro, mas sim a tentativa de escrever nos padrões de
uma língua forjada como materna (PERINI, 2001).
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Cognição é o termo científico utilizado para fazer referência ao conjunto das inteligên-
cias humanas. Segundo Kenedy (2013), o termo diz respeito aos fenômenos mentais que
têm relação com a aquisição, o armazenamento, a ativação e o uso do conhecimento.
Neste exemplo, como falante, você consegue perceber que algo não está
bem na construção da sentença. Você não precisa ser um especialista em
linguística para perceber isso. É esse estranhamento que Chomsky entende
como a intuição do falante. Por menos escolarizado que o falante seja, ele é
capaz de organizar os elementos linguísticos que compõem esta sentença,
tornando-a novamente gramatical.
Uma sequência de palavras é agramatical quando, segundo Petter (2015),
não respeita as regras gramaticais internalizadas pelo falante. Um falante
pode utilizar sua competência inata para organizar o exemplo acima como:
Todo falante de uma língua natural possui competência para refletir sobre
a língua. Dessa forma, na escola, o professor de língua pode fazer valer essa
competência para proporcionar uma verdadeira reflexão sobre o objeto de
estudo da sua disciplina, utilizando-se de situações e exemplos do cotidiano
dos alunos. No entanto, não é isso que ocorre geralmente nas aulas de língua.
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
De acordo com Perini (2001, p. 13), todo falante “[…] possui um conhe-
cimento implícito, altamente elaborado da língua, muito embora não seja
capaz de explicitar esse conhecimento”. No Brasil, especialmente, em virtude
da distinção muito evidente entre a língua brasileira falada e a norma culta
do português, é possível perceber que esse conhecimento da língua é algo
naturalmente adquirido, e não fruto da instrução escolar.
A interpretação dos fenômenos linguísticos pode se dar em vários aspectos,
que compõem as gramáticas de uma língua: a fonologia, a morfologia, a sintaxe
e a semântica. No entanto, esses aspectos não esgotam as possibilidades de
interpretação, pois ainda se poderia observar a história das formas linguísticas,
por exemplo. Esses aspectos “[…] constituem o estudo da estrutura interna
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de uma língua — aquilo que a distingue das outras línguas do mundo, e que
não decorre diretamente de condições da vida social ou do conhecimento do
mundo” (PERINI, 2005, p. 50).
Se, pelo viés da gramática normativa, “assistir” com sentido de ver, olhar,
deve ser transitivo indireto, tal ocorrência não poderia existir. No entanto, pela
gramática internalizada do falante, é perfeitamente corriqueira a ocorrência
da voz passiva nesse caso. Pode-se concluir que há uma discrepância entre
aquilo que a gramática normativa prescreve e aquilo que o falante entende
intuitivamente como adequado.
14 Gramática
FRANCHI, C. Mas o que é mesmo “gramática”? In: POSSENTI, S. (org.). Mas o que é
mesmo gramática. São Paulo: Parábola, 2006.
KENEDY, E. Curso básico de linguística gerativa. São Paulo: Contexto, 2013.
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TENÓRIO, F. J. A.; SILVA, R. S.; SILVA, A. O lugar da reflexão na aula de gramática: por onde
começar? In: OSÓRIO, P.; LEURQUIN, E.; COELHO, M. da C. (org.). Lugar da gramática na
aula de português. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2018.
Leitura recomendada
BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL. Grammatica da lingoagem portuguesa. Lisboa:
BNP, 2020. Disponível em: http://purl.pt/120/1/index.html#/1/html. Acesso em: 8 jan.
2020.
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