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PSICOLINGUÍSTICA

Aline Azeredo Bizello


Computação gramatical:
ato de fala, intenção,
conhecimento linguístico
e expressão linguística
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Diferenciar o papel da computação gramatical para a produção e


para a compreensão.
 Descrever a teoria dos atos de fala e seu funcionamento.
 Relacionar o conhecimento linguístico à expressão linguística.

Introdução
O funcionamento de uma língua obedece a regras que são internalizadas
pelo falante nativo desde o seu nascimento, à medida que esse falante se
comunica, produz e compreende essa linguagem. Contudo, como ocorre
esse processamento da linguagem? O papel da computação gramatical
é definir os mecanismos para que esses processamentos ocorram, além
de revelar as relações entre o acesso ao léxico e as interfaces semântica e
sintática. Para estudar essas relações, a psicolinguística analisa a linguagem
na prática, por isso a importância da teoria dos atos de fala: com essa
teoria, a linguagem falada e o contexto ganham destaque e direcionam os
estudos da pragmática. Assim, é possível aliar o conhecimento linguístico
à expressão linguística.
Neste capítulo, você estudará o papel da computação gramatical
para a produção e a compreensão da linguagem. Além disso, conhecerá
a teoria dos atos de fala e seu funcionamento, bem como a relação entre
conhecimento linguístico e expressão linguística.
2 Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística

O papel da computação gramatical para a


produção e a compreensão da linguagem
A psicolinguística estuda o comportamento humano por meio da análise da
aprendizagem da linguagem. Sua base, portanto, é o estudo da comunicação
humana a partir de padrões de aprendizagem universais. Evidencia-se, assim,
que a psicolinguística é uma ciência que tem relação direta com a investigação
das relações entre o pensamento e a linguagem.
Em 1957, a psicolinguística passou pelo chamado período linguístico,
cujo marco foram as teorias de Noam Chomsky. O linguista publicou o livro
Syntactic Structures, o qual apresentava os fundamentos da gramática ge-
rativa transformacional. Esse modelo fundamentava-se em uma abordagem
racionalista e dedutiva, bem como demonstrava uma contraposição às teorias
baseadas nas operações comportamentalistas, como as de Skinner. Essas ideias
afastaram a psicolinguística do comportamentalismo e a aproximaram do
mentalismo. Assim, o modelo de Chomsky passou a ser o paradigma teórico
central dos experimentos em psicolinguística.
De acordo com Pereira (2010, p. 49):

Chomsky (segunda metade do século XX) faz importante ruptura com o


estruturalismo linguístico e retoma Descartes, defendendo o ponto de vista
do inatismo. Nesse entendimento, a linguagem se apresenta como compe-
tência e desempenho. A competência é constituída de condições universais
pré-existentes, portanto de todos os falantes, independente de sua língua de
cultura, e o desempenho, de natureza individual, sua realização. Assim, a
linguagem está vinculada a um falante ideal (competência) e a um falante
real (desempenho), sendo fundamentais os conceitos de pensamento e mente.

Esse tipo de abordagem foi o centro dos estudos da psicolinguística no pe-


ríodo linguístico. Dessa forma, as sentenças nucleares tornaram-se o principal
objeto de estudo, com foco na testagem do modelo gerativista.
Nessa época, surgiu a teoria da complexidade derivacional (TCD): quanto
mais complexas as transformações linguísticas, maior a demanda cognitiva.
Nesse sentido, o comportamento estaria diretamente ligado às questões linguís-
ticas. Segundo Balieiro (2004, p. 177), essa teoria propunha que “[...] os passos
para derivar uma estrutura superficial de uma estrutura profunda deveriam
também ser efetuados na recepção e compreensão das sentenças [...]”. Um pro-
blema dessa abordagem era que não se consideravam os fatores relacionados às
restrições mentais, por exemplo; consideravam-se apenas as restrições oriundas
do sistema linguístico. Assim, a TCD não se mostrou empiricamente sustentável.
Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística 3

A percepção desses problemas possibilitou a ampliação dos estudos da


psicolinguística e a sua aproximação com as pesquisas cognitivas. Estas pres-
supõem que sistemas cognitivos podem ser caracterizados em diferentes níveis
de análise complementares. Esse é o caso do sistema computacional, em que
uma tarefa deve ser desempenhada e algumas operações computacionais são
acionadas para que isso ocorra. De acordo com Corrêa e Augusto (2007, p. 168):

Diante da língua, como sistema cognitivo, teríamos, em princípio, a Linguís-


tica Gerativista situada no nível computacional, como teoria da computação
linguística, a Psicolinguística, no nível representacional-algorítmico, por
apresentar modelos procedimentais da formulação e análise de enunciados
linguísticos, de um ponto de vista funcional, e a Neurociência Cognitiva, no
nível implementacional. Uma gramática gerativa apresenta-se, contudo, como
um algoritmo de geração de expressões linguísticas e incorpora um léxico,
componente de caráter representacional. Assim sendo, os níveis computacio-
nal, representacional-algorítmico parecem se confundir no modelo formal
de língua, o que tem levado a explicações para fenômenos pertinentes ao
desempenho linguístico nos termos desse modelo [...].

A psicolinguística estuda o processamento linguístico humano por meio


de representações teóricas que apresentam as propriedades dos processos
mentais. Nessa análise, evidencia-se que o desempenho linguístico, tanto na
produção quanto na compreensão da linguagem, depende do conhecimento
linguístico e do desenvolvimento das habilidades de processamento do falante.
Para tanto, recorre-se ao uso de estratégias cognitivas.
O programa minimalista (PM), apresentado por Chomsky nos anos 90 como
parte de sua organização teórica, surge como forma de dar conta da unificação
desse sistema. Esse programa parte da ideia de que há um conjunto fixo de princí-
pios válidos para todas as linguagens. Quando elas são comparadas a parâmetros,
revelam as propriedades específicas que caracterizam o sistema de linguagem.
Há, no PM, outro conceito importante: a economia; isto é, as derivações ocorrem
apenas para combinar características interpretáveis com as não interpretáveis.
Essa economia atinge também a representação, ou seja, as estruturas gramaticais
devem ter tamanho e complexidade de acordo com a necessidade.
Com o PM, todos os mecanismos necessários para o processamento linguístico
passaram a ser considerados como fonte de restrições à forma das línguas natu-
rais. Nas palavras de Corrêa (2015, p. 111): “Na proposta minimalista, sentenças
ou expressões linguísticas geradas por uma gramática criam interfaces com os
sistemas que atuam no processamento linguístico [...]”. Um desses sistemas é o da
computação sintática, isto é, um conjunto de operações sintáticas que operam sobre
4 Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística

o léxico e controlam a derivação de expressões linguísticas. Estas são, portanto,


resultado das informações disponibilizadas pelo léxico: cada elemento do léxico
está posicionado hierárquica e linearmente para as interfaces fonética e semântica.
Corrêa (2015) diferencia computação sintática, do ponto de vista linguís-
tico, de computação sintática, do ponto de vista psicolinguístico. A primeira
abordagem refere-se às possibilidades combinatórias dos elementos de um
léxico gerados por um algoritmo para a expressão de sentenças oriundas de
relações lógico-semânticas. A segunda diz respeito às estruturas hierárquicas
criadas por um algoritmo que acessou o léxico mental ou por via semântica,
na produção da fala, ou por via fonológica, na compreensão da fala. Essas
estruturas revelam as relações de ordem lógica e semântica.
Na produção, a computação gramatical ocorre por meio da codificação,
ou seja, o conceito de uma mensagem e sua intenção constituem a porta de
acesso ao léxico. A informação gramatical codificada no léxico possibilita
que se instaurem relações lógico-semânticas e que elas sejam mapeadas.
Já na compreensão, a computação gramatical atua com a análise sintática:
primeiro, o léxico é reconhecido e origina uma estrutura sintática; depois, a
essa estrutura sintática é atribuída uma interpretação semântica.
Veja como Corrêa (2015) ilustra esses processos nas Figuras 1 e 2.

Figura 1. Computação sintática em processo de produção.


Fonte: Corrêa (2015, p. 114).
Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística 5

Figura 2. Computação sintática em processo de compreensão.


Fonte: Corrêa (2015, p. 114).

Evidencia-se, com esses esquemas, que toda informação relevante para


a computação sintática se encontra codificada no léxico, ao passo que toda
informação necessária para a análise sintática e a interpretação semântica de
um enunciado se encontra no modo como este se apresenta (CORRÊA, 2015).
Portanto, a computação gramatical é um processo que permite a combinação
de unidades do léxico de uma língua. Dessas operações, surgem expressões
linguísticas que podem ser produzidas e articuladas e ser interpretadas de
forma semântica na produção e na compreensão de mensagens.
Desse modo, a intenção é o fator que motiva a busca ao conhecimento
linguístico do léxico e das operações de combinações dos seus elementos, bem
como o ponto de partida de qualquer ato de fala, assunto da próxima seção.

Teoria dos atos de fala e seu funcionamento


Os estudos mais recentes da psicolinguística consideram o estudo da prag-
mática e da linguagem em contexto como um enfoque importante. Afinal,
a linguagem só pode ser compreendida de forma plena se considerados os
aspectos psicológicos, como as intenções do falante e os efeitos exercidos pelo
interlocutor. Nesse contexto, a conduta discursiva recebe atenção especial,
pois simboliza a comunicação realizada por meio da linguagem.
6 Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística

A pragmática refere-se à linguagem em uso, logo, lida com as variações e a


diversidade de uso e contextos. Esse aspecto pode ser um obstáculo para a análise
da linguagem, visto que se torna mais desafiador envolver essa diversidade em
uma abstração que busque elementos comuns que permitam um tratamento mais
teórico e sistemático. Assim, surgiram diferentes correntes teóricas que visavam
a analisar a pragmática na filosofia da linguagem. Entretanto, uma se destacou,
em virtude de assumir a característica central da pragmática, ou seja, a ideia de
que a linguagem se refere à ação ou realização de ato. Essa corrente teórica se
dividiu em duas tendências: uma liderada por Wittgenstein, e outra, por Austin.
A primeira tendência constatava a heterogeneidade da linguagem e não
tratava isso como um problema. Wittgenstein acreditava que não era possível
sistematizar algo pragmático, por isso analisava a linguagem de um ponto de
vista filosófico. A segunda tendência, por sua vez, introduziu uma concepção
performativa de linguagem e defendeu a sistematização da linguagem. Entre-
tanto, indicou uma condição: que a linguagem fosse tratada como uma forma
de ação, e não apenas como uma representação do real ou uma descrição de
fatos no mundo. Dessa segunda tendência surgiu a teoria dos atos de fala.
No final dos anos 50 e início dos anos 60, Austin e Searle organizaram confe-
rências sobre o assunto na Universidade de Harvard e publicaram o livro How to do
things with words, em 1962. A finalidade dessas ações era mostrar que a linguagem
é uma forma de ação e que, portanto, era preciso analisar as ações humanas que se
concretizam por meio da linguagem; a isso deram o nome de atos de fala.
Os estudiosos defendiam a ideia de que dizer não é apenas transmitir infor-
mações; é também uma maneira de agir sobre o interlocutor e sobre o contexto.
Essa afirmação revelou-se distinta de tudo que se havia estudado até o momento
sobre linguagem. Antes, a linguagem e as afirmações eram vistas como formas
de descrever uma situação, um estado de coisas. Austin coloca essa definição em
xeque, defendendo o ponto de vista de que as afirmações servem para realizar
ações e que não podem ser tratadas simplesmente como verdadeiras ou falsas.

Até o surgimento da teoria dos atos de fala, para os filósofos e linguistas, as afirmações
serviam apenas para descrever um estado de coisas, sendo, portanto, verdadeiras ou falsas.
Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística 7

Como exemplo, veja o enunciado “Lúcia lavou as mãos”. Observe que, de


fato, esse enunciado descreve um estado de coisas: há um ser que executa uma
ação que afeta outro ser. O falante representa linguisticamente um evento, e a
afirmação será considerada verdadeira se realmente Lúcia tiver lavado as mãos.
Austin (1990) identifica esse tipo de enunciado como contrastivo, pois
ele apenas faz um relato, descreve uma situação, e essa descrição pode ser
avaliada como falsa ou verdadeira. Entretanto, há enunciados que não fazem
nenhuma constatação, não sendo possível verificar uma descrição ou relato
e, muito menos, avaliar sua veracidade. Esse é o caso de alguns enunciados
proferidos na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, na forma
afirmativa e na voz ativa. Veja um exemplo:

Eu te perdoo.

Observe que, na frase, há a realização de uma ação: o ato de perdoar. Nesse


sentido, dizer algo é fazer algo. Austin denomina esses enunciados como
performativos. Esse tipo de enunciado revela que os indivíduos conseguem
executar diversos atos apenas falando. Veja enunciados semelhantes:

Guilherme vai à festa.


Guilherme vai à festa?
Guilherme, vá à festa!
Tomara que Guilherme vá à festa.

Observe que que cada enunciado revela uma ação diferente, em contextos
diversos. Esses exemplos ilustram atos de afirmar, perguntar, pedir, desejar.
Esses são exemplos de atos de fala. Veja a definição de Austin (1990, p. 95):

Distinguimos um conjunto de coisas que fazemos ao dizer algo, que sin-


tetizamos dizendo que realizamos um ato locucionário, o que equivale, a
grosso modo, a proferir determinada sentença com determinado sentido e
referência, o que, por sua vez, equivale, a grosso modo, a “significado” no
sentido tradicional do termo. Em segundo lugar dissemos (sic) que também
realizamos atos ilocucionários tais como informar, ordenar, prevenir, avisar,
comprometer-se, etc., isto é, proferimentos que têm uma certa força (conven-
cional). Em terceiro lugar, também podemos realizar atos perlocucionários,
os quais produzimos porque dizemos algo, tais como convencer, persuadir,
impedir, ou, mesmo, surpreender ou confundir.
8 Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística

Para saber mais sobre a teoria dos atos de fala, leia o livro How to do things with words
(1962), de John Langshaw Austin, traduzido para o português por Danilo Marcondes
de Souza Filho como Quando dizer é fazer. Palavras e ação (1990).

Entretanto, para que a ação se concretize, devem ser adequadas as cir-


cunstâncias. Se o falante profere o enunciado “Eu te perdoo” para uma pessoa
desconhecida, repentinamente, no meio da rua, esse enunciado será visto
como sem efeito, pois ele fracassou. No entanto, não se pode chamá-lo de
enunciado falso. Para Austin, esses são enunciados infelizes e, para que sejam
bem-sucedidos, dependem de condições de felicidade, como: o falante deve
ter autoridade para executar o ato; o contexto e as circunstâncias em que o
enunciado for proferido deverão ser adequados.
Nesse ponto, surgiram dificuldades de aplicação da teoria. Afinal, cada
cultura pode ter um entendimento diferente sobre as circunstâncias, e inter-
pretar o conjunto de condições necessárias para a concretização de qualquer
ato de fala é um desafio muito complexo.
Quando os estudiosos buscaram um critério gramatical para os enunciados
performativos, também encontraram dificuldades: não há uma correspondência
regular entre as formas linguísticas e os atos de fala que realizam. Inicialmente,
o verbo conjugado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo
foi um critério, porém constatou-se que há enunciados performativos que não
seguem esse critério. Um exemplo é o enunciado “Proibido fumar”, que nem
apresenta verbo conjugado.
Além disso, um enunciado pode obedecer a esse critério e não ser per-
formativo. Observe: Eu falo espanhol. Nesse enunciado, não se observam
ações, nem verbos performativos. A ação não é realizada enquanto o falante
profere o enunciado. Portanto, não basta que os enunciados sejam proferidos
na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, na forma afirmativa
e na voz ativa.
Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística 9

Você sabia que há muitos estudos sobre os verbos performativos? Acesse o link a
seguir para visualizar o exemplo de uma pesquisa realizada por Maciel (2008) sobre o
verbo performativo na linguagem legal.

https://qrgo.page.link/iqgPV

Ao longo dos estudos, Austin constatou que pode haver enunciados perfor-
mativos sem nenhuma palavra relacionada ao ato que executam. Um falante pode
dizer “Entregarei as provas amanhã” com a intenção de fazer uma promessa.
Observe que o verbo prometer não apareceu de forma explícita no enunciado; ele
está pressuposto. Esse é considerado um caso de performatividade implícita, ou
seja, quando a ação não é proferida diretamente. É o caso também de enunciados
como “Explique o conteúdo dessa mensagem”, pois não se sabe se o falante está
dando uma ordem ou fazendo um pedido, ou até mesmo pedindo um conselho.
Dessa forma, os atos de fala correspondem a casos em que a enunciação
de certas frases está associada à realização de ações. Alguns verbos têm a
propriedade de realizar ações, sendo chamados de performativos. Todavia,
além dessa característica do verbo, é preciso que esteja na primeira pessoa,
no presente e na voz ativa. Portanto, a análise dos atos de fala deve considerar
as formas linguísticas e as condições pragmáticas.
Em seus estudos, Austin distingue três níveis de fala, reelaborados por Searle
como: locucionário (ato de enunciar cada elemento que compõe a frase); ilocu-
cionário (ato que se realiza na linguagem); e perlocucionário (um ato que não se
realiza na linguagem, mas pela linguagem). No entanto, tanto Austin quanto Searle
não desenvolvem as questões sobre ato ilocucionário e perlocucionário; porém,
supõe-se que esses atos exigiriam um estudo sobre a interpretação dos atos de fala.
Em suma, a teoria dos atos de fala proporcionou uma contribuição sig-
nificativa para os estudos linguísticos, enfatizando a importância da análise
do contexto. Verificar quem fala, para quem fala, de onde fala, para que fala
é um passo importante para compreender os enunciados. Dessa forma, essa
teoria marca os estudos linguísticos, revelando que a linguagem também pode
ser vista sob o ponto de vista performativo e pragmático, menos descritivo.
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Conhecimento linguístico e expressão linguística


Você já deve ter se perguntado (ou ouviu alguém perguntar): por que os falan-
tes nativos de uma língua passam anos na escola (e até mesmo nos cursos de
nível superior) estudando a própria língua? Aliás, esse questionamento pode
ser ampliado para: se conseguimos nos comunicar na língua materna, por que
nos sentimos como estrangeiros que não entendem seu funcionamento e não
conseguem internalizar as regras gramaticais? O caminho para uma discussão
sobre esse assunto está na busca por compreender as diferenças entre conheci-
mento linguístico e expressão linguística e por relacioná-los no uso da língua.
Segundo Koch e Elias (2006), o conhecimento linguístico abrange o co-
nhecimento gramatical e lexical; em outras palavras, a língua escrita e suas
regras. No entanto, como os indivíduos desenvolvem esse conhecimento?
Sabe-se que os bebês aprendem a se comunicar pela linguagem corporal e fa-
cial e pela linguagem oral. Assim, vão se tornando sujeitos ativos por meio da
interação com os falantes que os rodeiam. Nessa fase de aprendizagem, não
há formas predeterminadas sobre como ensinar e como aprender a língua.
À medida que crescem, as crianças ampliam sua capacidade representativa de
comunicação a ponto de disporem de um vocabulário de regras gramaticais que lhes
permitem compreender seus interlocutores e ser compreendidas por seus ouvintes.
Nessas manifestações linguísticas, a criança demonstra seu conhecimento
linguístico, isto é, seu vocabulário e suas regras. Segundo Cagliari (1994,
p. 19), “A criança vai aprender a dizer nóis vai ou nós vamos não porque é
menos ou mais dotada para a linguagem, mas porque se tornou falante de
um ou de outro dialeto [...]”.
Travaglia (1998, p. 17) define competência gramatical ou linguística como:

[...] a capacidade que tem todo usuário da língua (falante, escritor/ouvinte,


leitor) de gerar sequências linguísticas gramaticais, isto é, consideradas por
esses mesmos usuários como sequências próprias e típicas da língua em
questão. Aqui não entram julgamentos de valor, mas verifica-se tão somente
se a sequência (de orações, frases) é admissível, aceitável como uma cons-
trução da língua.

Portanto, conhecimento linguístico refere-se ao conhecimento sobre o fun-


cionamento de uma língua, o que envolve saber articular vários componentes,
como: a relação entre os sons (fonologia), a estruturação de palavras (morfolo-
gia), a organização das palavras em frases (sintaxe), o significado das palavras
(semântica). Esse conhecimento não é oferecido ao falante nativo da língua
apenas quando este ingressa na escola, uma vez que este é um conhecimento
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implícito, oriundo de uma capacidade de linguagem que permite adquirir e


dominar uma língua. Assim, evidencia-se que conhecimento linguístico não
é conhecimento da gramática normativa.
Aliás, a gramática normativa analisa apenas uma variante linguística e
se constrói com regras que determinam as formas certas e erradas de uso da
língua, ao passo que o conhecimento linguístico se insere em outra perspectiva,
pois ele é compartilhado por todos os indivíduos falantes da mesma língua.
Os falantes de português, por exemplo, costumam aplicar o artigo antes de
substantivos e nunca invertem essa posição.
Quando a criança passa ao ensino formal, como a escola, usa seu conhe-
cimento linguístico para se alfabetizar. Ou seja, ela utiliza a linguagem oral
como parâmetro para as hipóteses que tem sobre o funcionamento da língua
escrita. Assim, no processo de alfabetização, haverá um confronto entre a
língua falada e a língua escrita, e o conhecimento implícito irá se tornar
mais evidente.
De forma geral, ao longo da vida escolar, os usuários da língua treinam
sua capacidade linguística nas aulas de língua portuguesa. Claro, quanto mais
se estuda uma língua, mais dúvidas surgem e maiores as possibilidades de
aprimoramento do conhecimento linguístico. O problema surge quando os
indivíduos se sentem inseguros quanto a esse conhecimento, o que os limita
a exercitar a sua capacidade de expressão linguística. Há quem crie barreiras
para escrever e nunca pratique essa forma de expressão, por exemplo. Contudo,
para desenvolver a capacidade de expressão, é preciso praticar algo fundamental
para qualquer ser humano: a comunicação. Afinal de contas, para que serve
ter capacidade linguística, se não for para se expressar e se comunicar?
Travaglia (1998, p. 18) menciona a competência textual, isto é, a “[...]
capacidade de, em situações de interação comunicativa, produzir e compre-
ender textos considerados bem formados, valendo-se de capacidades textuais
básicas que [...] seriam [...] capacidade formativa [...] capacidade transformativa
[...] capacidade qualificativa”. Para que esses objetivos sejam alcançados, é
necessário colocar-se em contato com a maior variedade possível de situações
de interação comunicativa. Assim, é papel do professor de língua materna
abrir sua aula à pluralidade de discursos.
Portanto, o conhecimento linguístico é fundamental para o desenvolvimento
da competência comunicativa, porém a capacidade de expressão depende
também de outros fatores. Ou seja, é necessário desenvolver a capacidade de
produção e de compreensão de textos nas diferentes situações de interação
comunicativa. O texto é o resultado concreto da atividade comunicativa, que
se faz “[...] seguindo regras e princípios discursivos sócio historicamente
12 Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística

estabelecidos que têm de ser considerados [...]” (TRAVAGLIA, 1998, p. 67).


Dessa forma, para aprimorar a expressão linguística, é preciso incorporar não
só um vocabulário, um conjunto de estruturação de enunciados e internalizar
um conjunto de regras, mas também refletir sobre a linguagem, formular
hipóteses e verificá-las de acordo com o funcionamento da língua.
Kock e Elias (2014) afirmam que a escrita exige do escritor uma série de
fatores: tema, objetivo, sujeito leitor, gênero textual, seleção e organização de
ideias. Ou seja, a expressão linguística vai além do uso gramatical da língua.
As autoras afirmam, ainda, que o texto não é uma forma de ação acabada,
logo, pode ser concebido como algo dependente de um contexto, concebido,
assim, como o lugar de interação entre sujeitos sociais. Daí a importância de
investigar a finalidade comunicativa.
Como se observa, a expressão linguística depende das relações que se
estabelecem entre os elementos da língua e da qualidade na articulação entre
esses elementos. Dessa forma, o contexto, a finalidade e a identificação dos
interlocutores são aspectos que interferem no desenvolvimento da capacidade
de expressão linguística.
A escrita de cada texto é um novo desafio ao escritor, porém, quanto
mais ele escreve e reflete sobre essa escrita, maiores as possibilidades de uso
eficiente dessa língua. É evidente que conhecimento linguístico contribui
para essa eficiência. Por exemplo, para que o autor estabeleça uma sequen-
ciação por meio de paráfrases, repetição e paralelismo, precisará aplicar seu
conhecimento sintático e semântico. Da mesma forma, os recursos de ordem
fonológica (p. ex., entonação, rima, metro e ritmo) e a recorrência de tempos
verbais dão fluência a uma escrita didática.
Nesse sentido, para relacionar conhecimento linguístico com expressão
linguística, é necessário que o usuário da língua reflita com base no conhe-
cimento intuitivo dos mecanismos da língua, ou seja, deve partir do que já
domina inconscientemente. Todavia, é fundamental que busque também o
domínio de uma língua que ele ainda não domina inconscientemente, visto
que, assim, é possível ampliar a capacidade de uso da língua. Essa capacidade
de uso amplia-se para a leitura. De acordo com Cagliari (1998, p. 313):

[...] para que um leitor leia e compreenda o que está escrito não basta decifrar
os sons da escrita nem é suficiente descobrir os significados individuais das
palavras. Um texto vive das relações entre as palavras e as frases em todos os
níveis linguísticos. Quando uma pessoa fala espontaneamente, constrói o que
vai dizer integrando todos esses elementos de tal modo que seu pensamento
seja expresso numa determinada língua, segundo as regras dessa língua, e
de forma coesa e coerente.
Computação gramatical: ato de fala, intenção, conhecimento linguístico e expressão linguística 13

Portanto, para relacionar competência linguística com expressão linguística,


é necessário fazer um trabalho voltado a atividades que explicitem os fatos
da estrutura e do funcionamento da língua, e outro voltado para atividades
centradas nos efeitos de sentido que os elementos linguísticos podem produzir
na interlocução. Dessa forma, oportuniza-se o desenvolvimento da capacidade
de compreensão e de expressão.
Em suma, aliar o conhecimento à expressão linguística é refletir sobre a
semântica e a pragmática da língua, questionando os significados e as situações
de uso. Essa atividade exige do falante uma preocupação com a forma de atuar
usando a língua, indo além da classificação de seus elementos linguísticos.

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
BALIEIRO, A. P. Psicolinguística. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (org.). Introdução à lin-
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CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 1994.
CAGLIARI, L. C. Alfabetizando sem o ba- be- bi- bo- bu. São Paulo: Scipione, 1998.
CORRÊA, L. M. S. Processamento linguístico e aquisição da linguagem: uma abordagem
integrada. In: BUCHWEITZ, A.; MOTA, M. B. (org.). Linguagem e cognição: processamento,
aquisição e cérebro. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2015.
CORRÊA, L. M. S.; AUGUSTO, M. R. A. computação linguística no processamento on-line:
soluções formais para a incorporação de uma derivação minimalista em modelos de
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KOCK, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2. ed. São Paulo:
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KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.
PEREIRA, V. W. Pesquisa em Psicolinguística: antecedentes, caminhos e relatos. Letras
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TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no
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Leitura recomendada
MACIEL, A. M. B. O verbo performativo na linguagem legal. In: CÍRCULO DE ESTUDOS
LINGUISTICOS DO SUL, 2008, Porto Alegre. Anais [...]. Porto Alegre: UFRGS, 2008. Dispo-
nível em: http://www.ufrgs.br/termisul/files/file869218.pdf. Acesso em: 04 nov. 2019.

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