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CASO DE PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Érika Christina Kohle

“No fundo, o preconceito linguístico é um preconceito social. É uma discriminação sem


fundamento que atinge falantes inferiorizados por alguma razão e por algum fato histórico”.
(Sírio Possenti, 2011, p.4)

De acordo com essa epígrafe e, por meio do caso relatado a seguir, pode ser observado
como a falta do entendimento de que a linguagem é viva e devido ao seu uso se transforma, e
essa transformação é sua fonte geradora de vida, pode gerar equívocos durante o processo de
ensino e aprendizagem de crianças que acabam sendo desfavorecidas por uma visão de mundo
hegemônica que tudo quer padronizar, e, assim, acaba trabalhando a favor dos interesses de
forças que, há tempos, detêm o poder.
Para participar de um projeto de alfabetização na escola, a aluna Luana (nome fictício
escolhido pela própria criança), desde o momento em que foi indicada pela professora de
língua portuguesa, foi referida pelos seus professores como uma excelente aluna, pois,
segundo eles, participava das aulas e se esforçava para fazer todas as atividades propostas,
mas por ter vindo de outro estado, mais especificamente do Piauí, falava de um modo
diferente e escrevia da mesma forma como falava, e isso dificultava o entendimento por parte
deles.
Durante os encontros para as aulas de alfabetização, disse que tentava participar
oralmente das atividades escolares, pois apresentava dificuldades de se expressar por meio de
atos de escrita, entretanto os professores diziam que não conseguiam compreendê-la e pediam
a ela para mudar o seu modo de falar para se adaptar à forma de falar deles.
Além disso, havia uma confusão por parte desses professores entre a linguagem oral e
a linguagem escrita; para eles, tratava-se da mesma coisa: como a forma de escrever dessa
aluna apresentava inúmeras inadequações, pelo fato de ainda estar no processo de apropriação
de atos de linguagem escrita, e como seus professores consideravam que a escrita depende da
oralização, eles achavam que o seu modo de falar estaria prejudicando o seu modo de
escrever.
Entretanto, durante essas aulas, foram encontradas várias crianças que falavam
exatamente do modo de falar que os professores exigiam de Luana, mas que apresentavam as
mesmas dificuldades que ela. O modo de falar dessa menina, por ser encarado como
estrangeiro, agravou o modo de os professores verem suas dificuldades de escrita.
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Entretanto, suas dificuldades nas produções dos atos de escrita eram tão numerosas
quanto as dificuldades das outras crianças participantes da pesquisa, que não apresentavam tal
variedade linguística.
Em relação a isso, convém ao professor pensar criticamente sobre esse problema e
tentar aproximar o máximo possível seu conhecimento dos conhecimentos científicos
desenvolvidos até o momento sobre essa temática; por isso, foram observados a seguir, alguns
apontamentos relacionados a esse modo de pensar que busca calar ao invés de dar voz.
Em relação a esse problema, Geraldi (2015, p. 49) afirma que a educação linguística -
e parte de sua política - deve lutar para melhor compreender as diferenças e combater
preconceitos linguísticos de qualquer ordem, aprofundando seus estudos sobre as relações de
dominação linguística. “É nesse campo do político que se situa a razão de ser do ensino da
língua materna, muito mais do que na suposta cientificidade da gramática que o sustentou no
passado.”
Foi constatado, ainda, que a vontade de diminuir as diferenças linguísticas desses
professores está arraigada a uma constante no ensino da linguagem que estima uma tradição
abrigada até mesmo nos textos sagrados,
Podemos retornar ao mito de Babel (Gênesis, capítulo 11, versículos 1 a 9)
para encontrar nosso dilema. Antes de Babel, todos se compreendiam? É o
que a representação mitológica quer que admitamos; depois do „pecado‟ do
orgulho de querer tocar a divindade pelo engenho humano, o castigo: a
diferença linguística aparece como pena imposta e repete materialmente a
expulsão do paraíso. A diferença torna presente o pecado e o castigo. Buscar
a unidade linguística seria purgar o pecado e reencontrar a felicidade
perdida. Se Babel introduz as diferenças linguísticas, também introduz outro
conceito: o de estrangeiro, cujo sentido somente pode ser composto pelo seu
inverso, aquele que é natural, aquele que pertence ao grupo. Assim, a
diferença linguística diz também quem é o estrangeiro: aquele que fala
diferente. (GERALDI, 2015, p. 117).

Nesse caso, podem ser observados dois movimentos paralelos e opostos que
acompanham o problema das diferenças linguísticas: o sonho da unidade perdida e o convívio
com a diferença. É impreterível tomar cuidado com o primeiro, porque historicamente o
aprendizado de uma língua, mesmo sendo a língua materna, com a qual se fala, se dá por meio
do estudo da gramática, modelo didático herdado do estudo do latim, que se sobrepõe a outras
possibilidades ao estabelecer uma imagem de como a língua deveria ser e enfatiza que
produzir essa unidade caberia à escolarização, na ilusão de que todos se adaptem a um só
modo de dizer e a um padrão que não se altera no tempo e nem no espaço.
Sobre isso, esclarece Ponzio:
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Na realidade, o monolinguíssimo, que é também o monologismo, não é


senão um aspecto da tendência totalitária que se exerce em relação ao
pluralismo e às diferenças, fazendo-se passar pela condição necessária de
convivência social. (PONZIO, 2010, p. 147).

De acordo com Gramsci (1985, p. 181, apud BRANDIST, 2010, p. 194) as gramáticas
normativas ambicionam abarcar todo o volume linguístico de um idioma, a fim de criar um
conformismo linguístico uniforme. Apesar de afirmarem que não podem ignorar a história do
idioma, apontam um modelo único para se tornar a “linguagem comum” de uma população.
No entanto, esse modelo compete com outras expressões já existentes (ligadas às
forças que agem continuamente sobre as gramáticas espontâneas da linguagem).
Segundo Brandist (2010, p. 195) essas gramáticas normativas encontram-se
ideologicamente saturadas, uma vez que são ligadas à língua oficial dominante limitada aos
centros locais e exerce a função de monitoração.
A carnavalização desse processo está na oposição da cultura não oficial a esse folclore
linguístico das concepções oficiais de mundo. Os modos de operar dessa cultura não oficial
são exatamente os mesmos que Bakhtin caracterizou como cultura carnavalizada, parodiando
e esvaziando as pretensões à universalidade da língua e da cultura oficiais que permanecem
[...] fossilizadas e pretensiosas. (BRANDIST, 2010, p. 195).
Portanto, o estudo da linguagem por meio do seu uso aproxima-se da sua realidade
imediata e materializa-se mais informalmente, composto de inúmeras refrações que esvaziam
as pretensões de universalidade de seu uso, tão almejadas pelas gramáticas normativas.
As discussões do Círculo de Bakhtin nomeiam os princípios hegemônicos da
gramática normativa como “palavra autoritária”, o que seria encontrado, por exemplo, nas
atividades propostas pelo “Caderno do aluno”, parte do material didático distribuído pela rede
pública de ensino paulista e usado pelas crianças participantes da pesquisa.
A palavra autoritária exige de nós o reconhecimento e a assimilação, ela se impõe a
nós independentemente do grau de sua persuasão interior no que nos diz respeito, nós já a
encontramos unida à autoridade. A palavra autoritária, numa zona mais remota, é
organicamente ligada ao passado hierárquico. É por assim dizer a palavra dos pais. Ela já foi
reconhecida no passado. É uma palavra encontrada de antemão. (BAKHTIN, 1990, p. 143).
Nessa visão monológica do discurso, é impossível aceitar as variações que se
encontram fora do padrão de perfeição linguística, pois o que se recusa a cooperar com o
padrão estabelecido é negado e excluído. Outro princípio hegemônico apontado pelo Círculo
de Bakhtin é a antítese dessa palavra autoritária e encontra-se ligada à vida ideológica
independente e inspiradora, chamada de “palavra de cada um”.
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Sua criatividade e produtividade consistem no fato de organizarem muitas outras


novas palavras e, consequentemente, novas formas de falar, independentes, que por sua vez
organizam muitas outras palavras que vêm de dentro de cada um, que interagem
intensamente, em uma verdadeira disputa com outros discursos persuasivos. Nessa luta
intensa pela hegemonia entre vários pontos de vista verbais e ideológicos formam-se as
diferentes abordagens e valores dentro de cada um de nós.
A professora alfabetizadora, que não teve problemas para compreender Luana, era,
contudo, constantemente abordada por perguntas de seus professores e das coordenadoras
pedagógicas em relação ao desempenho da oralidade dessa aluna.
Conforme Bagno (1999) é possível encontrar os meios de combate a essas formas de
preconceito, que podem ser usadas não só nas atividades pedagógicas, mas também em suas
vidas, principalmente pelos professores de língua portuguesa, que são os que mais têm
contato com os estudos sobre a linguagem e, por isso, devem ter mais conhecimento sobre
esse assunto, para poder combater atos preconceituosos que possam suceder a suas crianças
ou impedir que aconteça por parte de suas crianças em relação a outras pessoas.
No caso relatado, foi percebido que o comportamento de parte da equipe docente e da
coordenação pedagógica, provavelmente por falta de conhecimento sobre o assunto, estava
alicerçado no mito intitulado pelo professor Bagno de Mito n° 1 que diz que “A língua
portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”, visto por ele como o
maior e o mais sério dos mitos que acompanham o preconceito linguístico no Brasil, por estar
arraigado a sua cultura e por encontrar-se até mesmo nas obras de intelectuais renomados. O
autor enfatiza que até mesmo pessoas de visão crítica se deixam enganar por ele. Apesar de
ser o português a língua falada pela grande maioria da população brasileira, ele apresenta
grande diversidade, não apenas pela grande extensão territorial do país, mas também pelas
diferenças de falar de acordo com o status social de seus falantes.
As variedades não padrão do português estão presentes na maioria da população
brasileira. Além disso, “[...] é preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local
ou a uma única comunidade de falantes o “melhor” ou o “pior” português e passar a respeitar
igualmente todas as variedades da língua, que constituem seu tesouro cultural precioso”
(BAGNO, 1999, p. 51), pois todas as variedades têm o seu valor e possibilitam plenamente a
interação entre seus falantes. Existe também o preconceito contra as variedades linguísticas de
certas regiões.
Deste modo, o incentivo ao uso da norma culta, não pode ser feito de modo absoluto,
nem de modo preconceituoso. A presença das regras variáveis presentes em todas as
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variedades da língua deve ser levada em conta e até mesmo as da norma culta. Por isso, faz-se
necessário “o estudo dos fenômenos da linguagem humana e à proposição de novos métodos
de ensino, capazes de dar voz aos que, por força de tantas estruturas sociais injustas, sempre
foram mantidos no silêncio” (BAGNO, 1999, 183).
Se o caminho almejado for o da cidadania, a resposta deve ser positiva em busca de
um futuro em que o diálogo se torne constitutivo dos sujeitos únicos e livres, pois num mundo
onde as alteridades são aceitas, as ações de exclusão e de intolerância são superadas. É
necessário que, com o tempo, a criança entenda que para cada situação discursiva, uma
variedade linguística é requerida e, assim, sua compreensão do padrão culto terá início, caso
não o tenha trazido de casa.

REFERÊNCIAS

BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é e como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética. São Paulo. Hucitec, 1990

BRANDIST, G. Gramsci, Bakhtin e a semiótica da hegemonia. In: RIBEIRO, A. P. G. &


SACRAMENTO, I. (orgs.) Mikhail Bakhtin: linguagem, cultura e mídia. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010. p. 185-211.

GERALDI, J.W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores, 2015.

PONZIO, A. Encontros de Palavras. O outro no discurso. São Carlos: Pedro & João Editores,
2010.

POSSENTI, S. Preconceito linguístico. In: Observatório de Imprensa, Campinas: Unicamp. v.


274, n. dez. 2011.

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