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O preconceito linguístico em debate:

quais gramáticas descritivas usar?

Adilio Junior de Souza*

INTRODUÇÃO

Neste estudo, o trabalho de Souza (2015) é revisitado e


reformulado. Adotou-se um corpus constituído pelas seguintes
gramáticas: Gramática do português brasileiro, de Perini (2010),
Pequena gramática do português brasileiro, de Castilho e Elias (2012),
e Gramática de bolso do português brasileiro, de Bagno (2013).
Pretende-se ampliar a discussão sobre as bases em que
tais obras foram produzidas, especialmente no que diz respeito
ao lugar social de onde vieram esses autores. Focalizou-se o
preconceito linguístico, tendo em vista a hipótese de que, na língua
em uso, qualquer variedade linguística é perfeitamente adequada
à comunicação verbal, não havendo variedade, dialeto ou língua
melhor ou pior do que outra.
Durante a confecção deste artigo, surgiram alguns
questionamentos, entre os quais se destacam: o que é o preconceito
linguístico? Quais gramáticas o professor deveria utilizar em sala de
aula para discutir a língua respeitando as diferenças linguísticas?
Estas e outras questões serão aqui abordadas.
Objetiva-se: (a) discutir sobre o preconceito linguístico,
utilizando como referência a definição formulada por Bagno
(1999; 2015); e (b) refletir sobre o modo como esses instrumentos

* Universidade Federal da Paraíba, mestrando em Linguística e Pesquisador do


Grupo de Pesquisa TLB/UFPB. E-mail: adilivs.@gmail.com.

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linguísticos tratam o assunto, buscando escolher, entre elas, quais


adotar para o ensino de língua materna.
A metodologia consistiu em: i) reunir leituras sobre o
assunto; ii) coletar sínteses biográficas dos autores, assim como
excertos das obras; e iii) analisar as amostras colhidas do corpus.
Na primeira seção discute-se a definição do preconceito
linguístico; na segunda, apresenta-se a distinção entre gramáticas
prescritivas e descritivas; na terceira, reflete-se sobre o corpus
eleito.

1 O QUE É O PRECONCEITO LINGUÍSTICO?

Para iniciar a discussão, interessa conhecer o preconceito


linguístico, sua definição e como ele se instaura:

De acordo com Marcos Bagno, ‘preconceito linguístico


é a atitude que consiste em discriminar uma pessoa
devido ao seu modo de falar’. Como já dito, esse
preconceito é exercido por aqueles que tiveram
acesso à educação de qualidade, à ‘norma padrão de
prestígio’, ocupam as classes sociais dominantes e, sob
o pretexto de defender a língua portuguesa, acreditam
que o falar daqueles sem instrução formal e com
pouca escolarização é ‘feio’, e carimbam o diferente
sob o rótulo do ‘erro’ (PAIVA, 2011, p. 44).

Desse modo, pode-se entender esse preconceito como uma


atitude negativista diante do diferente. A variabilidade linguística da
língua portuguesa é conhecida; assim como qualquer outro idioma,
apresenta variações que vão desde variações históricas, geográficas,
sociais e até estilísticas. A norma culta coexiste livremente com as
outras normas vigentes, ao contrário do que ocorre com a norma-
padrão.

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[...] quero deixar claro que a norma-padrão não


faz parte da língua, isto é, não é um modo de falar
autêntico, não é uma variedade do português
brasileiro contemporâneo. Ela só aparece, e ainda
assim nunca integralmente obedecida, em textos
escritos com alto monitoramento estilístico, nos
quais, porém, já é bastante significativa a presença
das inovações linguísticas próprias da verdadeira
língua dos brasileiros (BAGNO, 2015, p. 13, grifos
do autor).

Por essa razão, eleger a norma-padrão como a única é, sem


dúvida alguma, um equívoco. Além disso, as variações estilísticas
trazem em si a ideia de diferentes modos de organização estrutural
da língua. Um mesmo falante pode se utilizar de uma linguagem
formal em uma dada situação comunicativa, e em outra, se valer
de uma linguagem informal.
De acordo com Azambuja (2012, p. 24), o preconceito
linguístico “é uma forma de censura, visto que na censura temos
sentidos que são possíveis, mas que não podem ser ditos [...] Em
nossa reflexão é o modo como se diz algo é que sofre interdição, pois
algumas formas de dizer são execradas em determinadas situações”.
Portanto, certos modos de falar são interditados e impedidos de
serem enunciados. Para a autora, esse preconceito se instaura na
tese de que não se pode falar errado.
Nas obras que produziu1, Bagno (1999; 2015) faz uma série
de afirmações sobre o que ele chamou de mitologia do preconceito
linguístico. Para o autor:

1 Na primeira, o título original era O preconceito linguístico: o que é, como se faz?


(1999), na segunda, mais recente, o título é Preconceito linguístico (2015). Nessa
segunda obra, Bagno refaz e aprofunda a reflexão sobre as implicações sociais da
língua, voltando-se para o debate, entre outras coisas, de oito mitos que envolvem a
língua portuguesa.

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Parece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma


forte tendência a lutar contra as mais variadas formas
de preconceito, a mostrar que eles não têm nenhum
fundamento racional, nenhuma justificativa, e que
são apenas o resultado da ignorância, da intolerância
ou da manipulação ideológica (BAGNO, 1999, p. 13).

A partir do que foi dito, esse linguista discute sobre outros


tipos de preconceitos existentes e, em seguida, inicia uma reflexão
sobre o preconceito linguístico, afirmando que:

Infelizmente, porém, esse combate tão necessário


não tem atingido um tipo de preconceito muito
comum na sociedade brasileira: o preconceito
linguístico. Muito pelo contrário, o que vemos é
esse preconceito ser alimentado diariamente em
programas de televisão e de rádio, em colunas de
jornal e revista, em livros e manuais que pretendem
ensinar o que é ‘certo’ e o que é ‘errado’, sem falar, é
claro, nos instrumentos tradicionais de ensino da
língua: as gramáticas normativas e parte dos livros
didáticos disponíveis no mercado (BAGNO, 2015,
p. 21-22, grifos do autor).

De acordo com Bagno não há lutas contra esse último tipo


de preconceito. Pelo contrário, parece existir certa tendência para
o fortalecimento dessa prática que fere os direitos daqueles que
sequer têm noção de que isso está acontecendo.
O posicionamento de Bagno é, por um lado, aceito pela
academia e, por outro, rejeitado por muitos gramáticos. Eis a
razão: os linguistas e toda a academia compreendem e aceitam
a variabilidade de usos da língua portuguesa, enquanto que os
gramáticos (por exemplo, Domingos Cegala e Cipro Neto) rejeitam
essa variabilidade, admitindo apenas um uso restrito da língua, ou
seja, aceitam somente a língua culta formal estilizada.

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Ainda sobre o fragmento de Bagno, percebe-se que os


instrumentos tradicionais, isto é, as gramáticas normativas com
seu caráter puramente prescritivista, impõem regras de uso, negando
todas as outras formas de uso, que não sejam as que elas estipulam.
Sabe-se que as gramáticas tradicionais “tem um caráter prescritivo
e discriminatório: para a gramática normativa, é errado todo uso
da linguagem que esteja fora dos padrões linguísticos estabelecidos
como ideias” (MENDONÇA, 2012, p. 275).
Valer ressaltar que a gramática normativa é “a mais conhecida
pelos leigos, porque é ela que adentra pela escola, veiculada por
livros didáticos e pelas conhecidas ‘gramáticas tradicionais’; ensinar
gramática costuma ser entendido como ensinar regras para usar
bem a língua” (MENDONÇA, 2012, p. 274).
De volta ao pensamento de Bagno (2015, p. 24-25), lê-se que:

O preconceito linguístico fica bastante claro numa


série de afirmações que já fazem parte da imagem
(negativa) que o brasileiro tem de si mesmo e da
língua falada por aqui. Outras afirmações são até
bem-intencionadas, mas, mesmo assim compõem
uma espécie de ‘preconceito positivo’, que também
se afasta da realidade [...].

Com base no comentário que o autor faz, entende-se que o


preconceito linguístico se instaura, primeiramente, na imagem que
o falante faz de si diante do outro. Em seguida, se transfere para
o outro e, consequentemente, para a sociedade. Dessa maneira,
os diferentes modos de falar dos sujeitos se tornam igualmente
imagens também negativas. Daí surge expressões como falar errado
ou falar feio.
A imagem que os falantes fazem da língua pode afetar a
maneira como eles se veem. As gramáticas normativas podem
fortalecer essa imagem negativista, pois “além de tentar ‘unificar’

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a língua, as nossas gramáticas normativas homogeneízam a norma


culta, higienizando-a, produzindo e difundindo uma imagem do
que ela seria, tendo por base o modelo dos considerados bons
escritores do passado” (MENDONÇA, 2012, p. 274).
Estudos ancorados na sociolinguística, por sua vez, tentam
minimizar os efeitos do preconceito linguístico sobre os falantes.
Todavia, apesar dos grandes avanços desses estudos, o preconceito
ainda persiste e perdura. Para combater o preconceito linguístico
é preciso, antes, buscar outros instrumentos que verdadeiramente
auxiliem o professor no enfrentamento deste “crime” contra o
falante e sua linguagem. Acredita-se que as gramáticas descritivas
poderão suprir essa lacuna.

2 PRESCRIÇÃO VERSUS DESCRIÇÃO

Antes de serem apresentados os instrumentos linguísticos


adotados nesse artigo, optou-se por esclarecer a diferença
entre gramática prescritiva e gramática descritiva. A gramática
normativa:

Recomenda como se deve falar e escrever,


segundo o uso e a autoridade dos escritores
corretos – gramáticos e dicionaristas esclarecidos.
(BECHARA, 2001). É sinônimo de Gramática
Tradicional, visto que normatiza e prescreve as
regras do ‘bem escrever’ (BANDEIRA, 2012, p.
38, grifos da autora).

Essa gramática tem objetivo normatizar a língua, no entanto,


grande parte dos exemplos que ela traz está relacionada à escrita,
baseada em autores clássicos da literatura brasileira, incluindo,
ainda, os gramáticos e dicionaristas (BANDEIRA, 2012). Dito de
outra maneira, ela:

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[...] é responsável por ditar as regras do bem falar e


do bem escrever. Nessa concepção, a variante oral da
língua fica em segundo plano, priorizando os fatos da
língua escrita na modalidade padrão (oficial). Essa
gramática tem um poder legislador sobre a língua,
uma vez que prescreve ao falante o uso da norma
‘culta’ (CLEMENTE, 2012, p. 1593).

Ou seja,

A gramática normativa é o tipo de gramática a


que mais se refere tradicionalmente na escola e,
quase sempre, quando os professores falam em
ensino de gramática, estão pensando apenas nesse
tipo de gramática, por força da tradição ou por
desconhecimento da existência dos outros tipos
(TRAVAGLIA, 2009, p. 32, Apud CLEMENTE, 2012,
p. 1593).

Por essa razão, isto é, por causa do desconhecimento de outros


tipos de gramáticas, as escolas costumam adotar exclusivamente o
ensino gramatical tradicional. Clemente (2012) apresenta os outros
tipos de gramáticas existentes: internalizada, implícita, explícita
ou teorética, reflexiva, contrastiva ou diferencial, geral, universal,
histórica, comparada, tradicional e a descritiva. As duas últimas são
enfocadas neste trabalho.
Diferentemente da noção de gramática prescritiva, a
gramática descritiva “é um sistema de noções as quais se descrevem
os fatos de uma língua, permitindo associar a cada expressão dessa
língua uma descrição estrutural e estabelecer suas regras de uso,
de modo a separar o que é gramatical do que não é gramatical”
(FRANCHI, 1991, Apud MENDONÇA, 2012, p. 277).
Ela prioriza uma descrição das estruturas linguísticas e,
assim:

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Descreve e registra os usos da língua em sua


sincronia (no dado momento de sua existência). Não
renega as outras variantes linguísticas, ao contrário:
“trabalha com qualquer variedade da língua e não
apenas com a variedade culta e dá preferência
para a forma oral desta variedade” (TRAVAGLIA,
2009, p. 32). A preferência pela descrição dos usos
da oralidade se pode inferir do fato de a língua
nascer na fala e depois passar à forma escrita. Nessa
concepção, a gramática é o conjunto de observações
feitas pelo linguista sobre determinada variante,
explicando o mecanismo da língua (CLEMENTE,
2012, p. 1593-1594).

Além disso,

Mattoso Câmara Jr., (2004, p.11) define como o


estudo do mecanismo pelo qual uma dada língua
funciona num dado momento (syn- [reunião],
chrónos [tempo]), como meio de comunicação
entre os seus falantes, e na análise da estrutura, ou
configuração formal que nesse momento a caracteriza
(BANDEIRA, 2012, p. 38).

Nela prevalece a descrição de estados sincrônicos da


língua. Qualquer gramática que tenha essa pretensão deverá,
necessariamente, discutir amostras retiradas do cotidiano, das
mais variadas situações comunicativas, independentemente de
serem formais ou informais. A língua deve se apresentar de modo
igualmente espontâneo e natural, refletindo o uso real.
Uma distinção elementar que se pode fazer entre essas
gramáticas é a que se segue: “1 - A gramática descritiva diz ou
demonstra ou apresenta a língua como ela é. 2 - A gramática
normativa, também chamada de prescritiva, diz como a língua
deveria ser” (MATOS, 2007, p. 13). Em outras palavras:

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Uma das observações que devem ser feitas sobre as


diferenças entre uma gramática descritiva e outra
normativa é que, além do caráter prescritivo desta
estar ausente naquela, a gramática descritiva não se
vale de critérios estéticos (bonito, elegante, fino etc.),
puristas ou quaisquer outros menos ‘científicos’. Uma
gramática descritiva deve dizer, da forma mais objetiva
possível, como é uma língua ou uma variedade, como
é usada essa língua ou essa variedade (MENDONÇA,
2012, p. 277).

De acordo com o que foi dito por Mendonça e Matos, as


gramáticas descritivas não partem de apriorismos ou imposições
de uso, mas de análises de amostras de língua viva, extraídas de
situações reais de comunicação verbal. É importante ressaltar que,
enquanto as normativas tratam da língua escrita, modalidade por
natureza conservadora, as descritivas, na maioria das vezes, se
preocupam com língua oral, ou seja, nas análises desenvolvidas é
a oralidade o objeto primordial.

3 ANÁLISES DO CORPUS
Para que se possa compreender como os autores eleitos tratam
o tema em pauta, é válido conhecer de onde partem seus respectivos
discursos. Para isso, é necessário conhecer suas filiações acadêmicas,
pois somente assim serão entendidas quais as concepções de língua eles
adotam. O posicionamento dos autores é fruto de suas bases teóricas.

3.1 Gramática do português brasileiro (2010)

MÁRIO PERINI2 – Tem graduação em Letras pela


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

2 Fonte: http://editoracontexto.com.br/autores/mario-a-perini.html.

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e doutorado pela University of Texas. É professor


voluntário da Universidade Federal de Minas Gerais,
tendo sido professor na UFMG, na PUC-Minas, na
Unicamp e nas universidades de Illinois e Mississipi.
Atua na subárea de Teoria e Análise Linguística, com
concentração em português brasileiro falado, sintaxe,
ensino de português e gramática de construções.

Perini é um autor nacionalmente conhecido e suas obras


servem para as mais variadas investigações sobre o estudo da língua
portuguesa, especialmente aquelas investigações que focalizam a
análise formal.
A Gramática do português brasileiro, nas palavras do
editor, Marcos Marciolino, “é uma promissora decorrência
das pesquisas do Autor sobre o português falado. Aqui ele se
concentra em fenômenos insistentemente negligenciados pelas
gramáticas tradicionais, que não dão conta do que acontece em
e com nossa língua” (MARCIOLINO, 2010, p. 15, Apud PERINI,
2010, p. 15).
Por isso, pode-se afirmar que essa obra é uma síntese das
principais investigações da língua portuguesa que o autor fez. Assim,
a obra se apresenta como uma gramática que se propõe a fazer aquilo
que outras não fizeram: a descrição da estrutura da gramática da
língua falada no Brasil. Portanto, essa é uma produção voltada para
uma abordagem linguística do idioma brasileiro.
Além da Apresentação (cf. 02. É preciso descrever a língua
falada e 03. Estudar a língua como ela é), os muitos capítulos dessa
gramática abordam as estruturas gramaticais da língua portuguesa,
envolvendo amostras de língua oral e linguagem formal. Há um
capítulo, em especial, o de número 01 (Nossa língua), em que Perini
trata de questões relativas à diversidade da língua portuguesa do
Brasil.
Nas palavras do autor:

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Nesse fragmento, duas questões devem ser ressaltadas: a


primeira é que em cada país ou lugar onde o português é falado,
deve-se entender que são variedades originárias de uma mesma
língua, apesar das diferenças de registros. E, por apresentar diferentes
registros, apresentam também diferentes normas.
A segunda questão é que a expressão “pessoas educadas do
Brasil”, usada pelo autor, pode trazer interpretações equivocadas. É
preciso esclarecer que as palavras de Perini, nessa fala, se referem à
capacidade que os falantes letrados têm de compreender as diferenças
ortográficas, bem com as variadas estruturas gramaticais entre o
Português do Brasil e o de Portugal. O autor também destaca a
possibilidade da compreensão de textos entre os falantes das duas
nacionalidades, mutualmente.
Perini (2010) ressalta:

Por outro lado, existem, dentro da entidade geral que chamamos


‘português falado no Brasil’, diferenças correlacionadas com
classe social e região. Certas pessoas dizem nós vai trabalhar, e
essa construção é limitada a populações de pouca escolaridade.
A variedade falada por essas populações é tão digna de estudo
quanto qualquer outra, e em seu contexto tem uma validade que
nenhuma outra tem. Mas neste livro a descrição enfoca a fala
das populações urbanas relativamente escolarizadas, e por isso
construções do tipo nós vai não serão incluídas [...] (p. 44).

Com base nessa e muitas outras passagens da mesma


obra, nota-se que a descrição que Perini faz é da língua falada,
porém somente da norma culta. Isto é:

[...] uma variedade uniforme e socialmente aceita em todo o país.


Ou, para ser mais preciso, descrevo uma espécie de compromisso
baseado na norma culta – não na norma ditada pelas gramáticas e
ensinada nas escolas, mas na norma tacitamente aceita e praticada
pela população do país [...] (p. 45).

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Com base no que é dito pelo autor, apesar de ser uma


gramática que enfoca a diversidade linguística, acaba sendo uma
obra com certas restrições de uso. Nela, pouco espaço restou para o
preconceito linguístico, já que alguns usos são excluídos das análises.

3.2 Pequena gramática do português brasileiro (2012)

ATALIBA CASTILHO3 – Licenciado em Letras


Clássicas e doutor em Linguística, foi professor em três
universidades públicas de São Paulo: a Universidade
Estadual Paulista, campus de Marília, a Universidade
Estadual de Campinas e a Universidade de São Paulo.
Atualmente, é professor sênior na Universidade de
São Paulo e colaborador voluntário na Universidade
estadual de campinas.

VANDA ELIAS4 – Doutora em Língua Portuguesa


pela PUC-SP, onde atua em cursos de graduação
em Língua Portuguesa. Realizou estudos de pós-
doutorado no IEL – Unicamp. É membro do GT
Linguística do Texto e Análise da Conversação,
da Associação Nacional de Pesquisa em Letras e
Linguística (ANPOLL), e líder do grupo de pesquisa
(CNPq) Texto, Hipertexto e Ensino de Língua
Portuguesa.

Elias produziu inúmeros artigos e, em coautoria, produziu


trabalhos variados, especialmente voltados para a produção, leitura
e compreensão de textos. Castilho, por outro lado, é um linguista
nacional e internacionalmente conhecido, consagrado estudioso da
língua portuguesa e de muitas outras áreas da linguística.

3 Fonte: http://editoracontexto.com.br/autores/ataliba-t-de-castilho.html.
4 Fonte: http://editoracontexto.com.br/autores/vanda-maria-elias.html.

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De acordo com os autores, a Pequena gramática do português


brasileiro é uma obra diferenciada, já que:

Esta não é uma gramática tradicional, de uma língua


supostamente engessada. Não oferecemos aqui, como
é usual nos manuais de língua portuguesa, respostas
a perguntas que os alunos não formularam. No lugar
disso, invertemos o jogo, começando pela formulação
das perguntas, para as quais juntos buscaremos a
resposta [...] (CASTILHO; ELIAS, 2012, p. 14).

Com esse espírito, essa gramática apresenta dez capítulos que


abordam os mais variados aspectos da língua portuguesa do Brasil.
O décimo, História e diversidade do português brasileiro é, entre
todos os outros capítulos, o que melhor retrata a discussão acerca da
variabilidade linguística do idioma brasileiro. Castilho e Elias (2012)
se dedicam a discutir a história social do português, apontando as
principais mudanças gramaticais que esse idioma sofreu. Ex.:

Imagine uma pessoa conversando com outra, ou escrevendo


para ela sobre determinado assunto. Depois de algumas palavras,
analisando sua linguagem, é possível identificar as características
sociais dos falantes (sua origem geográfica, nível sociocultural,
idade), o canal que eles escolheram para se comunicar (língua
falada, língua escrita) e o registro que selecionaram (fala
espontânea, fala formalizada) (p. 449).

Com base nestas palavras dos autores, sabe-se que os


falantes se adaptam às mais variadas situações de interação verbal,
fazendo uso de modalidades diferentes em cada uma delas. As
funções pragmáticas de uso entram em ação, e um mesmo falante
pode apresentar distintos usos, dependo do contexto ou situação
comunicativa.
Segundo os autores, é possível investigar e avaliar a
diversidade linguística, tomando como referência cinco parâmetros,

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isto é, as variações: (a) geográfica, (b) sociocultural, (c) individual,


(d) de canal e (e) temática.

Cada uma dessas variações, por sua vez, é organizada por um


conjunto de usos linguísticos considerados relevantes para sua
caracterização. Esses usos são tecnicamente conhecidos como
variantes. Com isso, entende-se por variação a manifestação
concreta das variantes, e por variedades a soma das variações
(p. 449).

Assim entendidas, algumas variedades brasileiras apresentam


determinadas estruturas que são mais ou menos estigmatizadas. Um
exemplo disso é o falar caipira, que por muito tempo foi considerado
um uso “feio” da língua. O uso frequente do -r (retroflexo) em
determinadas palavras ou em finais de verbos eram, quase sempre,
mal aceitos. Muitos falares interioranos ainda sofrem esse mesmo
preconceito.
As variações socioculturais podem ser sistematizadas com
base em duas variáveis: falantes escolarizados versus falantes não
escolarizados. Para os autores:

Analfabetos e cidadãos escolarizados não falam exatamente


da mesma forma. Analfabetos usam o português popular, ou
variedade não culta. Pessoas escolarizadas usam o português
culto, ou variedade padrão, ensinada na escola (p. 453).

É justamente esta diferença que propicia o preconceito


linguístico, já que, por desconhecer determinadas estruturas, o
cidadão não escolarizado acaba sendo maltratado ou até mesmo
excluído. Ele não domina o português culto e por isso sua fala é
frequentemente estigmatizada.
Em muitas outras passagens dessa gramática se notam estas
reflexões. E apesar de não deixarem a discussão sobre o preconceito
explícita, Castilho e Elias se posicionam contra qualquer tipo de
discriminação.

CAPA SUMÁRIO
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3.3 Gramática de bolso do português brasileiro (2013)

MARCOS BAGNO5 – Professor de Linguística da


Universidade de Brasília (UnB), escritor e tradutor,
com dezenas de livros publicados no campo da
sociologia da linguagem e do ensino de português,
além de obras dedicadas ao público infanto-juvenil,
diversas delas premiadas.

Bagno é um dos linguistas mais polêmicos da atualidade,


devido a sua militância em defesa das diferentes línguas e variedades
linguísticas. Está sempre à frente de grandes debates político-
linguísticos tanto no Brasil quanto nos países aonde vai.
Sua obra, a Gramática de bolso do português brasileiro,
apresenta-se como uma coletânea de textos críticos sobre o ensino
de língua materna. Há vários capítulos que discutem desde questões
relativas à escolha da língua até reflexões sobre o “erro” em sala de
aula (cf. 01. Por que português brasileiro? 02. Certo ou errado? Onde,
quando, por quê? 03. Português brasileiro em sala de aula e 06. Erros
a corrigir: a hipercorreção).
Bagno (2013) esclarece que:

As noções do que é certo e do que é errado no uso da


língua têm a mesma origem das outras concepções
do que é certo ou errado que circulam na sociedade: ideologias
culturais, fatos históricos, preconceitos sociais, tabus, superstições
etc. o principal argumento aqui é: muito do que hoje é tido como
certo e aceitável já foi considerado errado em tempos passados;
desse modo, muito do que hoje é tido como errado e inaceitável
pode perfeitamente bem vir a ser considerado bom, bonito e certo
no futuro (p. 12).

5 Fonte: http://editoracontexto.com.br/autores/marcos-bagno.html.

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Esse preconceito não tem razão de existir, tendo em vista que


não há fundamentos racionais ou qualquer justificativa que venha
a sustentá-lo. Isto reforça o que já foi dito antes, pois o preconceito
não tem nenhuma base, sendo somente o fruto de pura ignorância
(BAGNO, 1999).
Lamentavelmente o preconceito ainda perdura nos dias
atuais. A razão disso é que é muito difícil extinguir algo que se
instaura na língua, conforme salienta o autor:

As noções de ‘certo’ e de ‘errado’ na língua dificilmente vão


ser eliminadas da vida social e cultural. Elas são usadas como
instrumentos de escárnio ou de louvor, de humilhação ou de
valorização, de repressão ou de elogio. Apesar dos muitos avanços
conquistados, muita coisa ainda permanece intacta em muitos
lugares (p. 60-61).

Cabe à escola e aos professores que nela atuam o papel e a


árdua tarefa de enfrentar as discussões em torno do preconceito
linguístico, tendo em vista que:

[...] a escola tem que ser o lugar onde esses conceitos precisam ser
expostos e criticados [...] (p. 61).

Obviamente isso não é uma tarefa fácil. Essa obra de Bagno


é provocativa e traz outras passagens como as que foram destacadas.
As discussões sobre o preconceito são explícitas e merecem ser
debatidas dentro e fora da sala de aula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das discussões apresentadas, constatou-se que as obras


de Castilho e Elias (2012) e Bagno (2013) abordam a diversidade
de usos linguísticos, com destaque para as mais variadas formas

CAPA SUMÁRIO
O preconceito linguístico em debate: quais gramáticas descritivas usar? | 385

de comunicação oral/escrita, com emprego de linguagem culta/


coloquial. A obra de Perini, devido às restrições de usos que o autor
fez, não aborda o preconceito linguístico.
Os diferentes modelos teóricos adotados pelos autores
determinam o modo como lidam com a língua. Castilho, Elias
e Bagno são funcionalistas, por isso encaram a língua como
instrumento de interação social e todas as variedades servem ao
uso. Perini é formalista, assim, para ele, a língua é uma estrutura
e representa a expressão do pensamento, por isso retrata somente
um conjunto de estruturas e não suas variações de uso.
A obra de Castilho e Elias não trata explicitamente do
preconceito, mas de algumas construções socialmente aceitas e
outras estigmatizadas. Por outro lado, a gramática de Bagno é a que
melhor retrata o ensino de língua materna, e, além disso, discute
mais profundamente esse preconceito. É uma obra que descreve a
língua sob o olhar da sociolinguística, evidenciando as variações
linguísticas.

REFERÊNCIAS

AZAMBUJA, Elizete Beatriz. O preconceito linguístico: algumas


considerações. Revista de letras da universidade católica de
Brasília, vol. 5, n. 1, ano v, jul/2012.
BAGNO, Marcos. O preconceito linguístico: o que é, como se faz.
São Paulo: Loyola, 1999.
______. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola
Editorial, 2015.
______. Gramática de bolso do português brasileiro. São Paulo:
Parábola Editorial, 2013.

CAPA SUMÁRIO
386 | I Simpósio de Glotopolítica e Integração Regional

BANDEIRA, Joalêde. Introdução aos estudos linguísticos. São


Paulo: FTC/Ead, 2012.
CASTILHO, Ataliba Teixeira de; ELIAS, Vanda Maria. Pequena
gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012.
CLEMENTE, Thalita Fernandes. As concepções de gramática e
sua prática em sala de aula.
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CAPA SUMÁRIO

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