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O PRECONCEITO LINGUÍSTICO E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Francisca Poliane Lima de Oliveira


Doutora em Linguística Aplicada
Consultora de Língua Portuguesa do Fundamental II – MAIS PAIC

É fato que sem a linguagem a comunicação humana seria impossível e, por


esta razão, devemos nos dedicar periodicamente a reflexões acerca dela no sentido de
entender se e de que modo esse importante instrumento de realização social tem sido
utilizado a favor da sociedade. Historicamente, sabemos que o conhecimento da língua
garantia a certas classes o predomínio sobre as que não detinham esse conhecimento.
Em outras palavras, quem dominava a Norma Culta e sabia usá-la era considerado
superior e esse status, entre outras coisas, garantia a esses conhecedores permanência
entre as camadas privilegiadas.
Ainda que autores como Possenti (1998, p. 23) tenham afirmado
categoricamente que “Os dicionários e as gramáticas são bons lugares para conhecer
aspectos da língua, mas não são os únicos e podem não ser os melhores” esse contexto
linguístico criou, na sociedade, uma divisão em duas situações: os conhecedores e os
desconhecedores.
Desta maneira, o uso da língua feito pelos considerados desconhecedores
passou a ser tido como uma variante de menor prestígio e foi largamente difundida
como “errada”, conforme se pode ler em reflexão apresentada nos PCNs (1996, p.31):
Muito preconceito decorre do valor atribuído às variedades padrão e ao
estigma associado às variedades não-padrão, consideradas inferiores ou
erradas pela gramática. Essas diferenças não são imediatamente reconhecidas
e, quando o são, são objeto de avaliação negativa. Para cumprir bem a função
de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa livrar-se de vários
mitos: o de que existe uma forma “correta” de falar, o de que a fala de uma
região é melhor do que a outras, o de que a fala “correta” é a que se aproxima
da língua escrita, o de que o brasileiro fala mal o português, o de que o
português é um língua difícil, o de que é preciso “consertar” a fala do aluno
para evitar que ele escreva errado. Essas crenças insustentáveis produzem
uma prática de mutilação cultural [...]

Na tentativa de reverter alguns desses mitos, vimos, outrora, a ascensão da


burguesia trazer, ao primeiro plano, uma espécie de licença para o falar caipira, uma vez
que, de acordo com o que Bagno (2002, p.70) nos fez perceber
um grande fazendeiro que tenha apenas alguns poucos anos de estudo
primário, mas que seja dono de milhares de cabeças de gado , de indústrias
agrícolas e detentor de grande influência política em sua região vai poder
falar à vontade sua língua de “caipira”, com todas as formas sintáticas
consideradas “erradas” pela gramática tradicional, porque ninguém vai se
atrever a corrigir seu modo de falar.

Assim, neste texto, nos propomos a revisitar esses contextos atentando para
novas saídas possíveis de serem realizadas pela escola. Sabemos, com a BNCC, que à
escola cabe o papel de desenvolver outras habilidades além daquelas relativas ao
conhecimento. Temos nas competências gerais 6 e 9, por exemplo, a capacidade de
consideração das diversidades claramente expressas. Na competência 6, isso se mostra
por meio da valorização da diversidade de saberes e vivências culturais;
6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de
conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações
próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da
cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência
crítica e responsabilidade (BNCC, 2017, p.9).
Já na competência geral número 9 o respeito à diversidade se faz perceber
por meio da valorização de saberes, identidades, culturas e potencialidades, indicando-
se para isso que não haja preconceitos de qualquer natureza.
9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação,
fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos
humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de
grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem
preconceitos de qualquer natureza (BNCC, 2017, p10).
No que tange às competências específicas de Língua Portuguesa, temos a de
número 4 que expressa de forma direta a postura que se deve ter no trato dessa questão.
Assim, podemos ler que é preciso: “Compreender o fenômeno da variação linguística,
demonstrando atitude respeitosa diante de variedades linguísticas e rejeitando
preconceitos linguísticos” (BNCC, 2017, p. 85).
Isso imprime às práticas pedagógicas a tarefa de questionar a tradição
excludente e mostrar caminhos alternativos a ela. Os Parâmetros Curriculares Nacionais
(1996) mostram que o professor de Língua Portuguesa deve propiciar ao aluno um
ambiente em que este possa opinar, defender seus pontos de vista, aprendendo a
respeitar opiniões diferentes, pois só assim o aluno adquirirá segurança, dominando a
linguagem em diversas situações.
Nesse sentido, a BNCC, em nossos dias, reitera o que já vinha sendo
preconizado pelos parâmetros curriculares, ou seja, é preciso ouvir as várias vozes
considerando seus contextos de produção e respeitando seus lugares de fala. “Assim, é
relevante no espaço escolar conhecer e valorizar as realidades nacionais e internacionais
da diversidade linguística e analisar diferentes situações e atitudes humanas implicadas
nos usos linguísticos, como o preconceito linguístico” (BNCC, 2017, p. 68).
Assim, podemos nos perguntar: como tornar essas reflexões possíveis por
meio de nossas práticas escolares? Nos vários eixos de trabalho com a língua, podemos,
por exemplo, realizar em:
• Leitura: o reconhecimento das variedades da língua falada, o conceito de norma-
padrão e o de preconceito linguístico.
• Produção textual: o conhecer das diferentes funções e o perceber os efeitos de
sentidos provocados nos textos pelo uso de elementos indicativos de preconceito
linguístico.
• Oralidade: a oportunidade de discutir, no fenômeno da variação linguística, as
variedades prestigiadas e estigmatizadas e o preconceito linguístico que as cerca,
questionando suas bases de maneira crítica.
• Análise linguística: as reflexões sobre os fenômenos da mudança linguística e da
variação linguística, inerentes a qualquer sistema linguístico, e que podem ser
observados em quaisquer níveis de análise. Em especial, as variedades
linguísticas devem ser objeto de reflexão e o valor social atribuído às variedades
de prestígio e às variedades estigmatizadas, que está relacionado a preconceitos
sociais, deve ser tematizado.

A partir do que percebemos nesta reflexão, podemos compreender e


defender que o ensino, de modo geral, vem passando por transformações e o ensino de
língua - como uma ciência viva que está em constante evolução - passa por um processo
de melhoramento. Como sinalizamos no início, a reflexão sobre a língua deve ser uma
constante e deve ainda possibilitar caminhos de desenvolvimento cidadão, por isso
todas as práticas escolares que a envolvem devem estar envolvidas em propósitos
sociais de comunicação e emancipação dos alunos e alunas.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Preconceito Lingüístico: O que é, como se faz. São Paulo: Loyola,
2002.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
_____. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental.
Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP.: Mercado
de Letras, 1998.

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