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Título original: Between the Devil and Desire

Copyright © 2009 por Lorraine Heath


Copyright da tradução © 2018 por GRH.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem
autorização por escrito dos editores.

tradução: GRH
preparo de originais: GRH
revisão: Rosangela Breda, Tania Candida e Kelly
diagramação: Star Books Digital
capa: Star Books Digital
imagem de capa: Top Seller
adaptação para ebook: Star Books Digital

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

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Heath, Lorraine
Desejando o Demônio [recurso eletrônico] / Lorraine Heath [tradução de
GRH]; Rio de Janeiro: GRH, 2018.
recurso digital (Órfãos de Saint James; 2) Tradução de: Between the Devil and
Desire
Sequência de: Na Cama com o Diabo Continua com: O Nobre e a Plebeia
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide
Web
ISBN 978-00-6197-759-6 (recurso eletrônico) 1.Romance de Época. 2. Livros
eletrônicos. I. Título. II. Série.

E-book distribuído sem fins lucrativos


É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou qualquer uso comercial do presente conteúdo
Dedicatória
Para Nathan
Quando éramos muito jovens e ingênuos
Nós nos inspirávamos um no outro
Eu sempre te implicava dizendo
Que baseava meus vilões em você.
Mas querido, você foi
Sempre meu heroi..
Prólogo

Extraído do diário de Jack Dodger.


Minha mãe me vendeu quando eu tinha cinco anos. Nunca a culpei; inclusive naquela tenra idade entendia que a
fome e o medo podem levar uma pessoa a fazer coisas que jamais pensou que faria. Minha nova vida me ensinou que o
demônio vestia roupa de cavalheiro e decidi fugir, convencido que estaria muito melhor nas ruas que em uma casa
elegante em que os homens elegantes fingiam ser respeitáveis.
Não estive sozinho muito tempo. Logo me uni a uma famosa turma de meninos ladrões dirigida por um ardiloso e
descarado trapaceiro conhecido pelo nome de Feagan. Sob sua tutela, aprendi que não havia nada que não pudesse
roubar, sempre que tivesse a preparação adequada. Minhas habilidades, minha firme determinação de aprender e,
portanto, de sobreviver, eram inigualáveis, e logo ganhei seu afeto. Carinhosamente estava acostumado a me chamar
Dodger e quando fiz oito anos já passava a maior parte das noites sentado diante do fogo junto a Feagan; fumando
meu cachimbo de argila, bebendo genebra e me empapando das pequenas pérolas de sabedoria que ele compartilhava só
com os poucos a quem respeitava de verdade.
Entretanto, eu sempre cobiçava conseguir a seguinte moeda. Um dia, um cavalheiro muito elegante me ofereceu seis
peniques, em troca, eu enganaria um casal e seu filho pequeno e os levaria a um beco. O homem e sua mulher foram
assassinados, mas o menino escapou. Quando descobri no que tinha me metido, corri aterrorizado atrás do menino a
toda pressa, temendo que tanto ele como eu estivéssemos reservados à mesma sorte que seus pais. Persegui-o até outro
beco, onde por fim ficou sem forças; se agachou em um canto e começou a chorar. Não havia tempo para essas tolices.
Senti-me muito aliviado quando não me reconheceu. Suponho que foi por causa da comoção que acabava de sofrer.
Sujei-o tudo o que pude e o convenci de que eu podia salvá-lo.
O menino se chamava Lucian, mas esse nome soava muito fino, assim que o apresentei como Luke. Feagan me
deu três peniques pelo novo recruta. Não era uma soma nada ruim para um só dia, mas aquela noite não consegui
pregar o olho.
Para minha irritação e apesar de que eu só era dois anos mais velho que ele, sentia-me responsável por aquele
menino. O dia que o surpreenderam roubando, fui tão estúpido para voltar e resgatá-lo. Passamos três meses no
cárcere. Esse tempo que estivemos na prisão serviu para fortalecer nossa amizade e, a partir de então, ficamos
inseparáveis.
Até que uma noite ele matou um homem.
Luke tinha quatorze anos e estava esperando que o julgassem por esse delito, quando o conde de Claybourne
declarou que meu amigo era seu neto que estava perdido há vários anos. Soltaram-no e o deixaram sob a tutela do
conde. A boa sorte de Luke logo se transformou na minha. O ancião me adotou também. Sempre estávamos em
desavenças. Ele se esforçou muito para me transformar em um cavalheiro, mas eu preferia continuar sendo um
malandro. Parecia-me muito mais honrado.
Quando fiz dezenove anos, um advogado me informou que tinha um benfeitor anônimo. Pelo visto, esse
desconhecido tinha muitas esperanças em mim e queria me dar dez mil libras para assegurar meu futuro. Jamais
perguntei quem era, porque não tinha nenhuma dúvida de que se tratava do avô de Luke: estava convencido de que
queria desfazer-se de mim sem decepcionar seu neto.
Eu tinha vivido nas ruas tempo suficiente para saber que para ganhar dinheiro tinha que investir em vício, então
comprei um edifício e o transformei em um exclusivo clube para cavalheiros.
E assim me converti em um homem rico, superando em muito, o que estou certo que meu benfeitor, ou qualquer
outra pessoa, esperava de mim. Entretanto, pouco importava a quantidade de dinheiro que ganhasse, nunca era
suficiente. Eu sempre estava faminto pela próxima moeda. Faria o que pudesse, tudo, para tê-la.
Capítulo Um

Londres, 1851
O demônio estava em sua casa. Olívia Stanford, duquesa de Lovingdon, estava sentada junto a ele
em sua biblioteca e se debatia entre o horror e a fascinação. Aquele homem era uma criatura muito
interessante e, embora tivesse escutado muitos dos sórdidos rumores que circulavam sobre ele,
jamais o tinha visto pessoalmente até aquela noite.
Seu rebelde cabelo negro se enrolava provocativamente à altura de seus largos ombros,
manifestando a opinião que tinha aquele homem das convenções sociais. Era evidente que as duras
feições de seu rosto tinham sido esculpidas por uma vida de pecado, desobediência e excessos.
Entretanto, era muito belo; sua áspera beleza podia apanhar a uma mulher da mesma forma que a
magnificência das costas escarpadas pode deixar sem fôlego qualquer um.
Afastou o olhar do perfil que a tinha encantado desde que tinha entrado em sua biblioteca e se
encontrou cara a cara com o delicioso cafajeste Jack Dodger.
Seu antro de jogo proporcionava entretenimento a muitos homens da aristocracia. Muitas irmãs,
esposas e mães tinham escutado balbuciar centenas de referências às libertinagens que tinham lugar
nos domínios de Jack Dodger quando seus irmãos, maridos e filhos voltavam para casa a altas horas
da madrugada, completamente bêbados. Em consequência, as damas aproveitavam o chá da tarde
para trocar anedotas com a máxima discrição, e falavam da reputação de Jack Dodger e de seu
estabelecimento, por isso inclusive as mais refinadas, as que se supunham ser ignorantes de tais
coisas, estavam muito bem informadas sobre aquele libertino. As mulheres o detestavam, tanto ele
como a oportunidade que brindava aos homens de suas vidas, que em seu clube se afastavam do
bem e da respeitabilidade; entretanto, nenhuma delas podia negar a fascinação que sentiam por
alguém tão unido ao pecado.
Sentada junto a ele, Olívia não podia evitar perceber a crua sexualidade que emanava dele. Estava
certa que as mulheres o seguiriam até seu quarto sem que tivesse que dizer uma só palavra.
Distinguia com claridade o aroma de tabaco e uísque que o envolvia e, para sua eterna vergonha,
deu-se conta que estava desfrutando dessa escura e masculina fragrância. Tudo nele falava de
proibidas indulgências.
Realmente, era a obra do demônio.
Inclusive usava a marca deste perfeitamente visível na parte interior do polegar direito. Como
tinha por costume não fazer uso de maneiras precisamente refinadas, não usava luvas, e naquele
momento tinha as mãos bem abertas sobre os braços da poltrona. Embora ao se usasse mais a
prática de marcar os delinquentes, Olívia sabia que o L que Dodger tinha gravada a fogo sobre a pele
significava que o tinham sentenciado a passar algum tempo no cárcere por roubo. Ela não tinha
especial simpatia por quem se apropriava do que não pertencia legitimamente.
Apesar de seu questionável passado e da presente ocupação do homem, Olívia não podia negar a
boa qualidade de seu traje. Era evidente que era obra do melhor alfaiate de Londres. Entretanto, o
colete bordado em vermelho que usava sob a jaqueta negra era completamente inapropriado para
aquela sombria ocasião, que não era outra mais que a leitura do testamento do falecido marido de
Olívia.
Esta era incapaz de imaginar o motivo pelo qual Lovingdon tinha decidido que Jack Dodger
devia estar presente durante sua leitura. Como conhecia esse descarado? Não tinha notícia de que
seu marido tivesse ido alguma vez ao clube Dodger. Em troca, seu irmão, o falecido duque de
Avendale, tinha frequentado e muito, proporcionando a invejável oportunidade de poder contribuir
de forma ativa ao grande repertório de escandalosos rumores que circulavam entre as damas.
Mas Lovingdon sempre tinha sido um autêntico santo. Nem sequer tinha álcool em casa e,
segundo ela tinha entendido, não tinha bebido vinho nenhuma só vez em sua vida. Olívia sabia que
não se podia dizer o mesmo de Jack Dodger. Este possuía os lábios mais carnudos que jamais tinha
visto em um homem; eram de um tom muito escuro, parecia que os tivesse banhado em bom vinho,
e não tinha nenhuma dúvida que estavam acostumados a deleitar-se com todo tipo de prazeres. Era
uma boca feita para enrolar a mais virtuosa das mulheres e fazê-la presa de todo tipo de paixões
proibidas. Por que outro motivo ia perguntar-se, da forma mais inapropriada, o que ela sentiria se ele
a beijasse?
Fazia muito tempo que Olívia não pensava em beijos; talvez porque Lovingdon parecia ser
completamente contra eles. E, entretanto, ali estava imaginando aqueles lábios brincando com os
seus e tentando-a de forma que Lovingdon jamais houvesse nem imaginado.
Voltou a se perguntar por que seu marido teria querido que Jack Dodger estivesse presente
durante a leitura de seu testamento.
Mas o senhor Beckwith, o advogado do duque, que agora estava ordenando todos os papéis
frente a ele, não só insistiu nisso, mas também, além disso, acrescentou que Olívia também devia
estar presente. E ali estava. Como sempre. Fazendo frente a suas responsabilidades por muito
desagradáveis que parecessem. A devoção pelo dever tinha governado sua vida desde o dia em que
nasceu. Por esse motivo, quando tinha dezenove anos, casou-se com um homem que era vinte e
cinco anos mais velho que ela. Seu pai arranjou o casamento e uma filha obediente não ia contra os
desejos de seu pai, apesar de seus próprios apaixonados desejos.
Lovingdon tinha sido sincero do primeiro dia: estava ficando velho e precisava de um herdeiro.
E, apesar de que ela não agradava da ideia de casar-se com ele, não foi tão mau como esperava.
Olívia ganhou seu respeito e tomava todas as decisões que concerniam à residência. O duque deu
um precioso filho, mas foi incapaz de dar seu coração.
Ela estava bastante confiante em que Henry, como legítimo herdeiro, ficaria com o principal dos
bens. Esperava que o testamento estipulasse que a mansão de Londres devia ser sua residência de
duquesa viúva, porque Olívia adorava aquela casa. Entretanto, era bastante grande e, normalmente, a
residência de uma viúva era geralmente um pouco menor. Embora Lovingdon jamais comprasse
nenhuma outra moradia em Londres.
Se seu marido não tinha legado a ela a mansão, então seria seu filho quem deveria decidir o lugar
onde ela residiria; embora isso fosse quando Henry fosse o suficientemente mais velho para poder
decidir essas coisas, porque no momento tinha cinco anos e a única coisa que o interessava era que
sua mãe lesse uma história antes de dormir.
Por fim, o advogado entrelaçou os dedos e apoiou as mãos sobre os papéis, ao tempo que posava
o olhar sobre seu escasso público. Seu cabelo escuro estava salpicado de fios chapeados e seus olhos
azuis pareciam muito maiores devido aos óculos, o que dava a sensação de que poderia ver mais do
que viam outros.
— Senhor Dodger, quero agradecer que tenha encontrado tempo em sua apertada agenda para
estar aqui conosco esta noite — começou com a solenidade que requeria a ocasião.
— Vamos ao ponto, certo? Tenho um negócio a atender.
A voz de Jack Dodger era muito áspera, dava a sensação de que grande parte do dia passava
gritando até que a garganta ficasse em carne viva. Entretanto, nela se adivinhava também um
agradável tom que Olívia era incapaz de explicar. Imaginava sussurrando palavras ao ouvido de uma
mulher e tentando-a para que se deixasse levar por vergonhosos comportamentos.
— Claro, é obvio — disse o senhor Beckwith. Agarrou um grande maço de pergaminho. — O
testamento contém muita terminologia legal que, com a permissão dos presentes, não vou ler.
— Você limite-se a me dizer por que diabos estou eu aqui, para que eu possa ir.
Olívia pigarreou e Dodger a olhou com desdém; era a primeira vez que se dignava a prestar
atenção nela desde que a tinham apresentado.
— Não ponha essa cara, mulher.
Observou-a atentamente, com uma intensidade tal, que ela sentiu a necessidade de comprovar
seus botões para assegurar-se de que estivessem todos bem grampeados.
— Devo insistir em que não utilize linguagem vulgar em minha casa. Se você for falar assim, não
poderei ficar.
— Importa-me um nada se ficar ou não.
— Senhor Dodger — o interrompeu o senhor Beckwith com energia e um tom de voz que
deixava entrever que talvez também ele tivesse suas reservas sobre sua presença ali, — o duque
insistiu muito em que os dois deviam estar presentes. Vou centrar-me em seguida no assunto que
nos concerne, antes que acabe a paciência. — limpou a garganta e começou a ler:
— Eu, Sidney Augustus Stanford, duque de Lovingdon, marquês de Ashleigh e conde de
Wyndmere, me achando em pleno uso de minhas faculdades físicas e mentais, lego meus títulos a
meu legítimo filho e herdeiro, Henry Sidney Stanford, assim como as propriedades, os ativos e os
benefícios que deles se derivam.
Olívia assentiu com satisfação. Justo o que ela esperava. O testamento era uma mera formalidade.
— Para a minha leal esposa, Olívia Grace Stanford, duquesa de Lovingdon, mãe de meu
herdeiro...
Ela piscou tentando conter as lágrimas que começaram a aparecer em seus olhos e desejou que
Jack Dodger não estivesse ali escutando aquela parte do testamento. As últimas palavras que
dedicava seu marido eram íntimas e pessoais.
— Lego um fundo de fideicomisso que, bem administrado, deverá render duas mil libras ao ano
durante o resto de sua vida. Ao senhor Jack Dodger...
Olívia mal teve tempo de assimilar a decepção que sentiu ao descobrir que seu marido não tinha
deixado a casa para ela, porque centrou toda sua atenção em descobrir, por fim, o motivo de que
Jack Dodger tivesse sido chamado àquela tarde.
— O lego o resto de minhas propriedades materiais, à exceção de um objeto, com a condição de
que seja o tutor e protetor de meu herdeiro até que meu filho alcance a maior idade, ou até que
minha viúva se case e seu marido assuma esse papel. Quando se produzir alguma das duas
circunstâncias anteriormente citadas, o senhor Dodger receberá esse último objeto, cujo valor é
incalculável.
Olívia acreditou perceber um som que parecia vir de uma grande distância: teve a sensação de
ouvir o bater das asas de mil corvos abandonando a Torre de Londres como profecia da destruição
da Grã-Bretanha. Então foi consciente do rangente som do papel quando o senhor Beckwith deixou
o testamento sobre a mesa. Era impossível que o tivesse ouvido bem.
Quando seu marido caiu pela escada e sofreu um golpe mortal na cabeça, ela sentiu como as
têmporas pulsassem com força. Agora estava convencida que a profunda dor daquela inesperada
perda estava causando estragos em sua mente, e que esse era o motivo de que as palavras se
misturassem em sua cabeça e perdessem seu verdadeiro sentido. Enquanto ainda estava tentando
compreender como podia ter ocorrido tudo aquilo e como podia reconstruir o que tinha escutado
para que significasse o que devia significar, o senhor Beckwith agarrou um livro forrado em pele
negra e o aproximou de Jack Dodger.
— Este relatório contém uma lista de todos os ativos não associados aos títulos que...
Olívia observava a cena com assombrado horror, e viu Jack Dodger agarrar rapidamente o livro
de mãos do senhor Beckwith sem deixar que o homem pudesse acabar de falar sequer, abri-lo e
começar a repassar as páginas a toda pressa; Olívia ia ficando mais e mais nervosa cada vez que
passava uma página. O senhor Beckwith agarrou outro livro e o aproximou dela.
— Para sua revisão; é uma lista de todos os ativos associados aos títulos que correspondem a seu
filho.
Olívia negou com a cabeça.
— Rogo que me desculpe, mas não acabo de entender o que significa tudo isto.
— Desde que tomou posse dos títulos, seu marido levou um preciso arquivo no que foi
indicando que propriedades e ativos estão associados aos títulos e...
— Não, não. Refiro-me ao testamento; deve tê-lo lido mal. Disse que o senhor Dodger foi
nomeado tutor?
— Sim, assim desejava o duque.
— Não, Henry é meu filho. Eu sou sua tutora.
— A lei só reconhece o pai como tutor. À morte do mesmo, se o filho não cumpriu os vinte e
um anos, o pai deve indicar outro tutor em seu testamento. — O senhor Beckwith falava sem
emoção, parecia como se estivesse lendo um documento do Parlamento. — Lamento, sua
excelência, mas a decisão de seu marido é irrevogável.
— Irrevogável? — Olívia ficou de pé tão depressa que quase perdeu o equilíbrio.
O senhor Beckwith também se levantou, mas Jack Dodger ficou sentado, devorando com
ansiedade o conteúdo do registro que tinha entre as mãos. Era evidente que aquele homem não
tinha nem ideia de qual era o comportamento adequado em presença de uma dama, mas Olívia
suspeitava que às mulheres com as quais acostumava a relacionar-se dificilmente as poderia
considerar damas.
— Perdeu a cabeça? — continuou ela. — Tem que ter interpretado mal as indicações de meu
marido. É impossível que sua intenção fosse deixar que este descarado...
— Aqui põe que a residência e tudo o que há nela me pertence — anunciou Jack Dodger de
repente.
Olívia quase perdeu a compostura por completo. Não podia ser sua casa não, ela tinha trabalhado
duro para criar ali um lar.
Jack Dodger se inclinou para frente, deixou cair o livro sobre a mesa com um sonoro golpe na
madeira e se aproximou do senhor Beckwith de um modo inquietante.
— Isto é algum tipo de brincadeira?
Para surpresa de Olívia o advogado se manteve firme ante a aposta do demônio.
— Posso assegurar, senhor Dodger, que isto não é nenhuma brincadeira.
— Está me dizendo que um homem ao que mal que conheci me legou...— agarrou o livro com a
ponta dos dedos— tudo isto?
— Conhecia meu marido? — perguntou Olívia, assombrada ante aquela revelação.
Ele teve o descaramento de fazer um gesto depreciativo com a mão, como se parecesse
insignificante, como se pudesse ignorá-la sem dar mais importância da que se dá a um mendigo que
pede uma moeda.
— Sim, senhor Dodger, por isso parece, trata-se exatamente disso — respondeu o senhor
Beckwith.
— E suas dívidas? — quis saber, adotando um tom agressivo. — Suponho que também herdarei
as dívidas.
— Não há nenhuma dívida. O duque não gostava dos créditos. Pagava tudo à vista.
Essa afirmação pareceu surpreender o senhor Dodger. Então, estendeu seus compridos e magros
dedos sobre o relatório.
— E esse último objeto tem mais valor que tudo o que há listado aqui?
— Tal como se indica no testamento, seu valor é incalculável.
— Você sabe o que é?
— Sim. E permanecerá em meu poder até que chegue o momento de dar.
— Ele confiou algo de valor incalculável?
— O duque me confiava tudo, senhor Dodger. Jack pareceu refletir sobre isso.
— Um objeto de valor incalculável poderia não valer nada.
— Se eu tivesse que decidir seu valor, diria que é o mais valioso que o duque possuía.
— Maldito seja — resmungou Dodger em voz baixa com seu áspero tom de voz. — Necessito
de um gole.
Apesar do absurdo da situação, Olívia sentiu o peso de sua rígida educação e se viu obrigada a
atuar como a perfeita anfitriã:
— Quer que peça a algum servente que traga uma taça de chá? Ou talvez um pouco de limonada?
O senhor Dodger a olhou com uns olhos tão escuros como sua alma.
— Eu estava pensando em um pouco de uísque, genebra, rum. Um pouco de cada se tiver.
— Nesta casa não há álcool — respondeu ela com brutalidade. Sua indignação ia aumentando.
— Claro que não.
— Eu não gosto do tom com que se dirige para mim, senhor.
— Como se isso me importasse.
Oh, aquele homem era irritante. Então, ele fez algo muito estranho. Começou a caminhar pela
sala observando com avidez o que havia a seu redor; parecia como se fosse meter tudo nos bolsos.
Embora fosse evidente que não tinha nenhuma necessidade de roubá-lo. O tinham entregado tudo
em bandeja.
Depois de um momento, voltou a aproximar-se da mesa e observou atentamente ao senhor
Beckwith.
— Tudo o que há nesta residência é meu?
— Tudo — respondeu o advogado com ar sombrio; parecia sentir o peso dessa palavra no
coração da Olívia. — Com a condição que você...
— Sim, sim, que seja o tutor de seu herdeiro. Ao contrário da duquesa, não tenho nenhuma
dificuldade para entender os simples términos do testamento.
Olívia não podia deixar passar essa afronta, mas naquele momento não ocorreu uma resposta o
bastante contundente para pô-lo em seu lugar. Sentia-se como uma parva. Como podia ter feito isso
Lovingdon com ela? E, mais importante ainda, como podia ter feito isso a seu filho? Acaso não se
importava em que classe de homem poderia chegar a se transformar?
Jack Dodger se virou muito devagar e olhou tudo de novo atentamente; parecia estar recreando a
vista em algo magnífico.
— Acaso o duque estava completamente louco?
O ruído da bofetada de Olívia no rosto do senhor Dodger ressonou por toda a sala. Nunca antes
tinha batido em ninguém e não sabia, portanto o muito que doeria sua mão. Teve que esforçar-se
para não gritar ou demonstrar que era mais provável que fez mais danos a si mesma do que tinha
feito a ele.
— Meu marido acaba de falecer! Mostre um pouco de respeito! Como se atreve a falar assim
dele?
Jack Dodger dedicou um lento e calculado sorriso e a ela sentiu um nó na garganta.
— A duquesa tem garras. Quem ia dizer?
Olívia queria jogá-lo de sua casa, mandá-lo às ruas a que pertencia.
Dirigiu-se ao senhor Beckwith:
— Sua linguagem é vulgar e suas maneiras são atrozes. Não penso permitir que este homem seja
o responsável pela educação de meu filho.
— Isso é muito fácil de remediar, duquesa — respondeu Dodger arrastando as palavras. — Só
tem que encontrar outro marido.
— Pelo visto, não se deu conta que estou de luto. Não posso aceitar nenhum pretendente.
— Então, não terá tanta vontade de que desapareça de sua vida, duquesa. Acredite, não há nada
que uma pessoa não esteja disposta a fazer quando deseja algo com todas as suas forças.
Cada vez que a palavra duquesa se deslizava desdenhosamente de seus lábios, ela arrepiava o pelo
e tinha vontade de dar outra bofetada. Mas para não deixar se levar por essa selvagem necessidade,
obrigou-se a dirigir-se ao advogado:
— Senhor Beckwith...
— Lamento muito, sua excelência, mas se o senhor Dodger aceitar ser o tutor de seu filho, não
há nenhuma possibilidade de negociar este assunto.
— Você pode me explicar os motivos que empurraram meu marido a fazer isto?
— Faz muitos anos que trabalho para o duque, sua excelência, e jamais me permiti questionar
suas decisões. Estranha vez comentava comigo seus pensamentos e não posso saber os motivos que
o levaram a esta decisão, mas estou certo que, no que a este assunto se refere, fez o que pareceu mais
conveniente.
Se não a tivessem educado para comportar-se como uma dama em qualquer situação, teria se
posto a gritar ante aquela injustiça.
— E o que acontece se eu não aceitar ser o tutor? — perguntou o senhor Dodger.
Um momentâneo alívio renovou as esperanças que tinha Olívia de que todo aquele pesadelo
infernal desembocasse em uma solução satisfatória. Ao que parecia, o homem tinha a sensatez de ter
dúvidas e não estava tão certo se queria aceitar as responsabilidades que tinham encomendado.
— Nesse caso, o primeiro testamento ficaria anulado e entraria em vigor um segundo testamento
— respondeu o senhor Beckwith.
Olívia não se atrevia a perguntar, mas tinha que saber. Pareci pouco provável que seu marido
tivesse escolhido alguém pior que Jack Dodger, mas se este era a primeira opção do duque, qual seria
a segunda? O demônio em pessoa?
— A quem assinalou como tutor de meu filho nesse segundo testamento?
— Não estou autorizado a dizer. Respondeu o advogado com tranquilidade. — Nada deve influir
na decisão do senhor Dodger.
— Nada deve influir? E como chama você a dar tudo? Se isso não for uma influência, então não
sei o que pode ser.
— O que queria dizer é que seu marido não desejava que a pessoa que pode se converter no tutor
de seu filho possa influir no senhor Dodger.
— Mas é certo que é alguém mais apropriado, alguém familiarizado com as estritas normas
sociais da aristocracia. O que sabe o senhor Dodger da nobreza? O que sabe ele de nossos deveres e
nossas responsabilidades?
— Sei muitas coisas, duquesa — interveio Jack. — Afinal de contas, faz muito que sou muito
bom amigo do conde de Claybourne.
Ela virou-se ao ouvir o nome de Lucian Langdon.
— Outro delinquente? Um homem que cometeu um assassinato? Pode se saber como vai
tranquilizar-me isso? É impossível que ache você que está qualificado para guiar a meu filho pelo
caminho correto para a maturidade.
— O caminho correto está acostumado a ser determinado pelo lugar onde alguém se encontra.
— E o que significa isso? Você só sabe falar do pecado, senhor Dodger. Você...
As palavras se amontoaram abruptamente em sua garganta. De repente, ele estava perto, muito
perto dela, e a olhava com um ardor nos olhos que só podia ter saído das profundidades do inferno,
um ardor que provocava um involuntário calor no centro de seu ser, que fazia que tremessem os
joelhos, que umedecia as palmas das mãos e secava sua boca.
— Deveria vir me visitar algum dia — disse ele, adotando um tom baixo e deixando que seu
quente fôlego com aroma de uísque acariciasse a bochecha.
— Desculpe?
— Deveria vir visitar meu mundo de depravação. Faria tudo o que estivesse em minha mão por
recebê-la como é devido. Talvez inclusive goste.
Sua voz era tão poderosa como uma carícia e conseguiu que Olívia imaginasse que nessa adequada
recepção estariam implicadas sua boca, suas mãos...
Os olhos daquele homem deixavam muito claro as perversas coisas que faria, coisas que jamais
imaginou fazer com Lovingdon. Deveria dar outra bofetada, sabia que deveria fazer, mas parecia que
o único que era capaz de fazer era de tremer e se sentir um pouco parecido a... Aquilo era incrível,
estava sentindo desejo? Não podia ser. O que ocorria era que fazia muito tempo que não sentia a
carícia de um homem. Quando teve seu herdeiro, Lovingdon deixou muito claro que não queria
nenhum filho mais. O que precisava era um varão. Nesse aspecto, o duque e ela se entenderam à
perfeição. Os dois puseram o dever ante qualquer outra coisa. Infelizmente, Olívia tinha descoberto
que o dever era uma tarefa muito exigente.
— Pecou alguma vez duquesa? — perguntou Jack Dodger, com aquela voz estranhamente áspera
que insinuava todo tipo de paixões ocultas.
A frase só em sonhos apareceu na ponta da língua da Olívia. Perguntou-se se Jack Dodger teria feito
realidade as fantasias de outras mulheres. Não tinha nenhuma dúvida que era perfeitamente capaz...
O som de alguém limpando a garganta com aspereza sobressaltou os dois. Olívia viu como uma
rajada de irritação percorria o rosto de Jack Dodger enquanto dava um passo atrás e deslizava seu
inflexível olhar em direção ao senhor Beckwith. Durante um segundo, pareceu que o advogado se
esforçasse por não retroceder. Voltou a pigarrear, como se sua valentia residisse nesse som.
— Parece-me, senhor Dodger, que sua atitude para a duquesa não tem justificação, e estou certo
que não era o que o duque tinha em mente quando o incluiu em seu testamento.
— Pensava que você não sabia o que o duque de Lovingdon tinha em mente.
— Sei que respeitava a sua mulher, senhor, e que se sentiria muito decepcionado se você não
fizesse exatamente o mesmo.
— Está morto. Parece que já não há nada que possa decepcioná-lo.
— É desprezível — espetou Olívia antes que o senhor Beckwith pudesse responder. — É que
não sente nenhum respeito por meu falecido marido?
Ele se virou em sua direção e, de repente, ela desejou não ter aberto a boca. A verdade era que
não queria enfrentar aquele homem. Não encontrava a maneira de tirar vantagem. Tinha a sensação
que ganhar dele era algo completamente impossível. Com certeza sempre conseguia arrastar todos os
que o rodeavam até o buraco onde ele vivia.
— Eu só respeito as pessoas que ganharam meu respeito. E são poucas.
— Já imagino o que terá que fazer para ganhar seu respeito.
Em seus olhos viu uma emoção que não pôde identificar. Seria remorso?
— Em realidade, duquesa, duvido muito que possa imaginar. - Girou sobre seus calcanhares e
pôs-se a andar em direção à porta.
Podia Olívia albergar a esperança que partisse e que, ao fazê-lo, recusasse aquele ridículo
testamento?
— Aonde vai? — perguntou.
— Quero dar uma olhada na casa para determinar o que ganharei se escolher sofrer com a sua
presença. — Logo, saiu da biblioteca sem incomodar-se em olhar para trás.
Indignada, Olívia se apressou a segui-lo. Aquela casa era dela, pelo menos até que ele aceitasse os
términos do testamento. Faria o que fosse para dissuadi-lo e conseguir que recusasse. Mostraria a ele
o que era uma pessoa disposta a tudo.
Entretanto, devia admitir que Dodger tivesse acertado em uma coisa: de alguma forma, e sem que
ela se dessa conta, seu marido se tornou completamente louco.
Tendo em conta a reputação do senhor Dodger, Charles Beckwith pensou que devia seguir o
casal; entretanto, o duque tinha deixado muito claro que não podia interferir enquanto eles
solucionavam suas diferenças. Só um idiota tinha esperado que a duquesa aceitasse com serenidade
aquela ridícula escolha de tutor, e o duque não era nenhum idiota.
Beckwith suspirou e se apoiou no respaldo da cadeira enquanto esperava que voltassem e se
preparou mentalmente para o seguinte confronto com o senhor Dodger: sabia que o homem podia
ser um autêntico desafio. Tinha que conseguir cumprir com os desejos do duque sem comprometer
sua própria integridade.
Não costumava questionar a quem pagava tão bem por seus serviços, mas se perguntou se
Lovingdon teria compreendido as possíveis consequências de suas decisões. Para Charles Beckwith,
tudo aquilo só alcançaria um propósito: que tudo fosse um desastre.
Capítulo Dois

Jack Dodger ignorava por completo à viúva, que o seguia a toda pressa enquanto ele percorria a
passo rápido os corredores e cômodos da casa em busca de algo que fosse familiar, de algo que
indicasse que já tinha estado antes ali. Fazia muito tempo que sabia que nada se conseguia com
facilidade, e toda aquela situação parecia muito simples. Bom, exceto a parte de ter que relacionar-se
com a viúva. A duquesa era a definição exata do tipo de mulher que ele evitava a todo custo.
Julgava-o através de um caleidoscópio de pura indignação e não tinha problema em deixar bem claro
que não era digno de tudo aquilo.
Não se importava absolutamente que tivesse razão. Como ela estava convencida que ele era
completamente inadequado, o demônio que habitava em seu interior brigava por sair; mas Jack
preferia mantê-lo sob controle. Era a única forma de assegurar-se que ninguém voltasse a aproveitar-
se dele, de que ninguém voltasse a fazer dano, de que nunca mais teria que arrepender-se de nada.
Era evidente que a duquesa não tomou nada bem o testamento. O fogo da indignação que tinha
visto arder em seus olhos o tinha golpeado como um poderoso murro no estômago, e tinha desejado
transformá-lo em um fogo de paixão...
Maldição!
Sabia perfeitamente que não devia seguir o jogo de nenhuma mulher, sabia muito bem que não
devia revelar nada de seus pensamentos ou seus sentimentos. A viúva tinha conseguido que jogasse
toda sua lógica pela janela. Tinha começado a perder vantagem em seu próprio jogo.... Que tipo de
jogo? O que era que estava se passando ali?
Por isso tinha decidido sair da biblioteca, porque tinha aprendido que, às vezes, a retirada podia
supor uma vitória. Frequentemente, uma estratégia eficaz requeria um reabastecimento de arsenal ou
conseguir um pouco de espaço para respirar e poder pensar com claridade.
Que classe de louco era Lovingdon para ter nomeado tutor precisamente a ele? Os nobres
protegiam muito os seus herdeiros. Era absurdo que deixasse o menino em suas mãos. Entretanto,
continuava enfurecendo-o muito que a viúva se horrorizasse tanto com a ideia. Deveria aceitar os
términos do testamento, embora só fosse para irritá-la ainda mais. Mas Jack não era um homem que
apoiasse suas decisões em reações imediatas. Sempre tinha preparado bem sua estratégia e estudado
a situação de todos os ângulos possíveis. Embora naquela em concreto, o ângulo da herança
supunha uma tentação a curto prazo o suficientemente importante para nublar seu sentido comum.
Apesar de que ele tinha acumulado uma boa quantidade de dinheiro durante todos aqueles anos,
seus cofres não estavam tão cheios para que quisesse desprezar um ganho como esse. A casa era
monstruosamente grande e estava repleta de estatuetas, figuras, obras de arte, preciosos móveis
feitos à mão e algo imaginável.
Em sua mente podia escutar Feagan rindo dele debochadamente e dizendo:
— Afinal conseguiu, menino. Uma casa elegante em St. James. Quem ia dizer?
Jack nunca o teria dito.
Tinha bom olho para identificar objetos de valor e se deu conta em seguida que o duque tinha
acumulado uma autêntica fortuna. Também era evidente que a família, do primeiro duque até o
último, tinha uma grande opinião de si mesmo. Se não, por que iam ter todos aqueles retratos de
distintas etapas de suas vidas, que os imortalizavam desde seu nascimento até a velhice? Deus, a
nobreza era incrível... Como podiam pensar que alguém se interessaria em saber que aspecto tinham?
Entretanto, a julgar pelo grande número de quadros que penduravam das paredes por toda a casa,
era evidente que havia alguém a quem sim importava. Jack talvez pudesse vendê-los por uns
peniques.
A duquesa, que parecia estar lendo o pensamento, disse:
— Estou certa que quando o senhor Beckwith disse tudo da casa, não se referia exatamente a
tudo. É evidente que os retratos formam parte das propriedades associadas aos títulos.
— Como chegou a essa conclusão, duquesa?
— São retratos dos duques e de suas famílias, são os antepassados de meu filho. Não cabe
nenhuma dúvida de que formam parte de sua herança.
— Já veremos.
Era um bom argumento, mas Jack tinha decidido que deveria estudar o disforme detalhe e
memorizar todos e cada um dos objetos que apareciam nele. Não pensava deixar que ela ficasse com
nada que o duque tivesse legado a ele; pelo menos, não sem pagar um preço justo por isso. Não é
que tivesse intenção de aproveitar-se, mas tampouco era um homem de natureza caridosa.
— Pergunto-me com que recursos pagaria sua roupa — murmurou ele.
— Desculpe?
Jack parou ao deixar atrás o terceiro salão que ela quase se chocou com ele quando o fez. Sua
fragrância o provocava com a mesma intensidade com que tinha feito na biblioteca. Quando
estavam ali sentados, tinha desejado aproximar-se para deleitar-se nela. Desprendia um sutil aroma
de lavanda que não tinha nada a ver com a enjoativa essência almiscarada que utilizavam as
prostitutas para esconder o aroma de seu negócio e dos outros homens.
A duquesa demonstrava sua preocupação franzindo o cenho: suas sobrancelhas se uniam por
cima de seus extraordinários olhos cor âmbar. Aquele tom, quase dourado, como as moedas que
tanto gostavam ao Jack, tinha chamado a atenção desde o começo.
A mulher mal chegava à altura dos ombros. Era muito jovem para ser viúva. Devia ser só uma
menina quando o duque se casou com ela. Havia uma grande diferencia de idade entre os dois e era
evidente que para a duquesa aquele homem devia ter parecido um ancião. Casou-se com ele porque
o queria? Ou só se casou pelo título e os privilégios associados?
— Só me estava perguntando se sua roupa estaria no legado de seu filho — disse ele, arrastando
as palavras.
O aborrecimento se refletiu em todos os rasgos de seu rosto.
— Minha roupa, senhor, é minha. Nem você vai tirá-las.
— Não me desafie, duquesa, ou poderia me sentir tentado a demonstrar que posso tirar esses
trapos de viúva antes que possa dizer nada.
— Oh, você é um descarado.
Jack deu meia-volta e se afastou, tentando que ela não notasse o quanto ele que gostava de fazê-la
zangar. Aquilo não era muito cavalheiresco de sua parte, mas a verdade era que ele não tinha
afirmado nunca ser um cavalheiro. Jamais tinha conhecido algum que não fosse um completo
hipócrita. Era muito melhor admitir ser um cafajeste, era mais honesto. Jack não era o tipo de
homem que fingia ser algo que não era.
Voltou sobre seus passos com impaciência. Não tinha mais remédio que admitir que o duque
tinha gasto seu dinheiro com inteligência.
Amaldiçoou aquele homem ao que mal conhecia; um homem que era evidente o tinha julgado
muito bem. Jack queria possuir tudo o que via. Queria olhar e saber que era dele. Queria atirar
abaixo aquelas paredes de tijolos, as substituir por paredes de cristal, e deixar que o mundo inteiro
pudesse ver o que Jack Dodger possuía. Queria desfrutar em todo aquilo. Ele, o filho de uma
prostituta, não se tinha deixado vencer pela sociedade. Tinha superado suas origens. Tinha
conquistado Londres.
Deus sabia que assim era como se sentia ao percorrer aqueles magníficos corredores cheios de
adornos dourados e coroados por tetos pintados. E o preço que tinha que pagar em troca era
minúsculo.
Que problema poderia supor ser tutor de um menino? Embora, é obvio, a pergunta mais
importante era: seria muito irritante ter que tratar com a formosa viúva? Era justamente o tipo de
mulher que Jack detestava: santarrona, critica e sempre pensando que era melhor que os outros. Não
havia nada que gostasse mais que descer um pouco seu nariz. Talvez por isso tivesse tirado o tema
da roupa, pois era evidente que não tinha nenhum interesse em despi-la.
Aquele vestido negro que usava tinha muitos botões para que Jack se interessasse. Chegavam da
cintura até o queixo e dos braços até os cotovelos. E estava convencido que, quando não estava de
luto, sua roupa era igualmente aborrecida. Dava toda a sensação de ser uma mulher que acreditava
que a tentação era o atalho que conduzia ao inferno e que esse era um caminho pelo que não devia
aventurar-se sob nenhum pretexto. Usava presa a apagada cabeleira castanha sob uma touca de
viúva; era impossível saber o seu comprimento. Jack se amaldiçoou por perguntar-se por essas
intimidades.
Ela era duquesa e provavelmente estivesse aparentada com a rainha. Não estavam todos os
aristocratas aparentados com ela? Pelo menos, todos atuavam como se assim fosse. Em uma
ocasião, tinham tentado dar ordens inclusive em seu próprio clube, mas Jack tinha criado um mundo
no que ele era o rei e onde sua palavra era lei. Aqueles nobres pagavam uma taxa anual para poder
entrar em seu estabelecimento, onde proporcionava entretenimento e jamais os julgava por deixar-se
levar: ao contrário que a mulher que estava atrás dele. Tinha visto o julgamento em seus olhos no
preciso momento em que os tinham apresentado. Seu olhar deixava muito claro que o considerava
inferior. E não tinha passado inadvertido que ela tinha estado olhando-o enquanto estavam
sentados, estudando-o como se tratasse de uma estranha curiosidade que devesse estar na Grande
Exposição. Ele tinha evitado olhá-la a propósito e, em lugar disso, concentrou-se em estudar a sala
enquanto o advogado tomava seu tempo para preparar tudo.
Jack percorreu um amplo corredor que desembocava no vestíbulo.
Cruzou-o a toda pressa e começou a subir a escadaria de mármore negro.
— Aonde vai? — perguntou ela, que o seguia de perto.
— Já disse duquesa, quero ver tudo.
— Mas no piso de cima só tem os dormitórios.
— Para um homem como eu, e estou certo que já se deu conta, não há nenhum lugar que não
seja importante.
Esforçou-se para não rir quando a ouviu resmungar atrás dele. Deus, o que tinha visto o duque
nela? Pelo que pode deduzir, era evidente que não tinha senso de humor. Era tão rígida como o
atiçador da chaminé, embora não podia deixar de admirar a valente atitude com que brigava para
conservar o que acreditava que era dela. Aquela minúscula mulher se tinha convertido em uma
autêntica leoa ante a ideia de que Jack fosse ocupar do cuidado de seu cachorrinho. Se sua mãe
tivesse sido igual e obstinada, talvez sua infância não tivesse sido tão dura.
Ao chegar ao piso de acima, girou para a esquerda e abriu a primeira porta que encontrou. Entrou
no dormitório e pousou a vista em uma enorme cama rodeada por quatro colunas. O dossel era de
um tom muito escuro de veludo violeta. Quando a duquesa chegou por fim ao quarto, Jack se deu
conta de que estava sem fôlego e se perguntou se alguma vez teria acontecido o mesmo naquela
elegante cama. Sacudiu a cabeça para desprezar esses pensamentos. A ele o que importava se a
mulher tinha experimentado satisfação naquele dormitório?
— Este é o quarto do duque? — perguntou, surpreso ele mesmo pela voz rouca que saiu.
— Sim.
Um livro descansava sobre a mesinha de noite. O marcador de páginas aparecia por entre as
folhas; ao parecer, o duque esperava prosseguir sua leitura nesse ponto. Jack se sentiu incômodo ao
pensar nisso. Mal conhecia aquele homem; certamente, não o suficiente para que se importasse sua
morte e, entretanto, sentiu pena. Perguntou-se o que outras coisas teriam deixado o duque sem
acabar.
Jack tentou afastar de sua mente esses sombrios pensamentos e olhou a um lado, em direção a
outra porta fechada que estava junto a um sofá.
— E à sua se vai por aí? Ouviu-a tragar.
— Sim.
Assim que o duque queria tê-la perto. Jack não sabia por que se incomodava essa ideia, mas o
fazia. Olhou-a nos olhos.
— Por que os aristocratas se empenham em conservar esse absurdo costume de que o marido e a
mulher durmam em quartos separados?
Jack não acreditava ter visto nunca a uma mulher tão pálida como a duquesa, mas de repente o
rubor apareceu em suas bochechas e ele voltou a se perguntar se essa cor a teria visitado também no
leito do duque. Por que não podia deixar de imaginá-la naquela maldita cama?
— Suponho que fazem porque podem — respondeu a si mesmo com brevidade, convencido que
ela não ia fazê-lo.
Seguro que aquela mulher se metia na cama tampada dos pés à cabeça com algo parecido a uma
mortalha. Deu um passo em direção a sua porta...
— Por favor, não entre em meu quarto — pediu ela com suavidade.
A doçura de sua voz se deslizou pelas vísceras de Jack desconcertando-o. Toda a noite mostrou-
se mandona, zangada, ferida e preocupada. Ao parecer, no final tinha decidido mostrar-se total.
Talvez se tenha dado conta que não conseguiria nada dele mostrando-se tão áspera. Jack esboçou
um meio sorriso e disse:
— O que ocorre, duquesa? Acaso tem todo tipo de aparelhos desenhados para se agradar
sexualmente escondidos em seu quarto?
— Não sei do que está você falando.
Examinou-a durante um momento, contemplou seu vestido negro, sua reta atitude...
— Por desgraça, é provável que não saiba.
Jack nunca tinha gostado de inocentes. Saiu do quarto e foi andando pelo corredor.
— Todos os quartos são iguais — disse ela, uns passos atrás dele. — Não entendo por que
necessita...
Então, Jack levou o braço em direção a outra porta.
— O proíbo que entre nesse quarto — afirmou a mulher com energia.
Ele a olhou por cima do ombro e piscou um olho.
— Nunca me proíba nada, duquesa. Só conseguirá que o faça.
Entrou no quarto. Uma jovem mulher de cabelo e olhos castanhos, que evidentemente era uma
faxineira, levantou-se sobressaltada da cadeira que ocupava junto à cama. O menino que estava
deitado se sentou de repente e as mantas que o cobriam caíram sobre sua cintura; tinha o cabelo
loiro revolto e seus olhos dourados abertos como pratos.
A duquesa passou junto a Jack e entrou correndo no quarto, sentou-se na cama e rodeou ao
menino com seus braços, com ar protetor. Jack se irritou muito que ela desse por feito que tivesse
que proteger o menino dele, que esperasse que fosse machucá-lo.
— O herdeiro? — perguntou Jack com secura. A duquesa assentiu.
— Sim.
— Henry, verdade?
— Sim.
— Quantos anos tem, menino?
— Tem cinco anos — respondeu sua mãe.
— Acaso é mudo?
— Claro que não.
— Então, por que não o deixa falar? Eu fiz a pergunta a ele.
— Está aterrorizando-o.
— Ah, sim? — Jack observou o menino. Tinha a mesma compleição fraca de sua mãe e estava
igualmente pálido. Podia ver muito mais curiosidade que medo em seus enormes e redondos olhos.
— Tem medo de mim, menino?
Ele olhou à duquesa.
— Não olhe sua mãe para que te diga a resposta. Pense por si mesmo.
— Não fale nesse tom — ordenou a mulher. — Ainda não é seu tutor.
Jack não sabia se sentia inveja do menino por ter uma mãe tão protetora — um amparo que ele
teria gostado que sua própria mãe tivesse mostrado com ele, — ou compadecia dele: era evidente
que o educando daquela forma ia convertê-lo em um fraco. Aos seis anos, Jack era perfeitamente
capaz de sobreviver nas ruas graças a seu engenho, sua inteligência e a destreza de seus dedos.
Nunca tinha tido medo de arriscar-se. Tinha aprendido a esquivar com habilidade aos que queriam
apanhá-lo. Teve a sorte de ter uns pés rápidos, mas mais sorte ainda de ter uma mente rápida.
— As habilidades físicas o levarão longe, menino, mas aprender a pensar será o que te manterá
com vida — havia dito Feagan.
Tinha aprendido muitos truques que o ajudaram a ganhar segurança e isso o conduziu ao êxito;
graças a isso, converteu-se em alguém muito valente, que não temia a nada. Tinha chegado onde
estava porque tinha sobrevivido. Não tinha muito claro que aquele menino pudesse sequer soar ao
nariz sozinho. Seria essa a razão pela qual o duque tinha deixado sua educação em suas mãos?
A primeira vez que Jack viu Lovingdon foi um dia da primavera, no jardim do conde de
Claybourne. Então, deu a impressão de que o duque era um homem triste. Alguns anos depois, tinha
ido ao clube de Jack em várias ocasiões, mas nunca tinha acontecido nada muito memorável. Pelo
menos, nada que fosse memorável do ponto de vista de Jack. Teria visto o duque algo em seu
comportamento que o tivesse conduzido a pensar que seria um bom tutor para um menino que era
evidente que estava muito protegido? Jack era desconfiado por natureza, e sua mente não deixava de
alertá-lo e gritar que havia algo naquilo que não encaixava. Entretanto, era incapaz de averiguar do
que se tratava exatamente.
Virou-se e se dirigiu para a escada.
— Aonde vai? — perguntou a duquesa, ao tempo que o ruído de seus passos começava a soar de
novo atrás dele.
Deus, aquela mulher era muito rápida. Se não fosse porque Jack tinha as pernas muito longas, não
acreditava que pudesse tirar muita vantagem.
— Não é que seja de sua incumbência, mas quero falar com Beckwith.
Por que se incomodava em dar explicações? Não dava explicações a ninguém. Não o tinha feito
desde dia em que decidiu viver nas ruas.
Desceu a escada a toda pressa, com a duquesa pisando nos calcanhares como um cão de caça.
Cruzou um amplo corredor, onde tinha expostas todos os tipos de posses reunidas durante gerações,
e um lacaio uniformizado abriu a porta que dava acesso à biblioteca. Jack entrou na biblioteca e se
virou rapidamente para encarar à duquesa e deter o passo.
Ela parou em seco. Custava respirar, tinha seus olhos dourados totalmente aberto e aqueles lábios
tão deliciosos ligeiramente separados. Quando não os franzia como se passasse o dia chupando
limões, tinha uma boca que davam muitas vontades de beijar. Jack sentiu raiva ao se dar conta disso,
e ainda mais raiva, estar perguntando-se o que sentiria ao beijá-la.
— Em particular — acrescentou, e fechou a porta nos narizes dela.
O grito de raiva da duquesa transpassou a grossura da folha de madeira, provocando em Jack
uma pequena sensação de vitória. Como não confiava em que ela se conformasse, girou a chave. Era
uma sorte que o duque a tivesse deixado posta. Era evidente que estava acostumado a lutar com o
desagradável caráter de sua esposa e, provavelmente, aquele quarto fosse seu santuário de solidão.
Aproximou-se de Beckwith, que parecia completamente alheio à confusão que se apropriou dele.
Ou aquele homem era tolo ou era tão bom jogando cartas como Jack.
— Me levaram mais de quatorze anos para informarem-me de que tinha um benfeitor anônimo.
Esse é o único motivo pelo que me dignei a vir esta noite. Diga-me, era o duque de Lovingdon esse
benfeitor?
Embora nada disso tivesse sentido, essa era a única conclusão a que Jack tinha chegado para
explicar o aparente ataque de loucura do duque.
— Eu trabalho para muitos lordes e cavalheiros que possuem uma considerável riqueza, senhor
Dodger. Seu benfeitor desejava permanecer no anonimato e assim será.
— Está-me dizendo que não era Lovingdon?
— Estou dizendo que até que seu benfeitor não me dê permissão para revelar essa informação,
guardarei o segredo o melhor que possa.
— E se o socar até fazê-lo mingau? Suspeito que então já não teria tanto empenho em guardar o
segredo.
Beckwith teve o descaramento de sorrir, como se estivesse divertindo-se com tudo aquilo. Jack
não gostava que rissem dele; pior ainda, não gostava que o pusessem em evidência. Amaldiçoou
entre dentes e assinalou os informes e o testamento.
— Isto não tem nenhum sentido.
— É importante que o tenha?
— É importante que entenda por que um homem com o que falei tão poucas vezes em minha
vida considerou oportuno me dar tanto em troca de tão pouco.
— Ser tutor de um lorde do reino é uma tarefa solene e séria, senhor Dodger. Não subestime o
poder da influência que terá sobre ele ou a quantidade de trabalho que será necessária para assegurar
que o jovem se converta em um homem capaz de desdobrar todo seu potencial.
Jack riu com aspereza.
— Maldito seja, homem! Aí é exatamente aonde quero ir parar. A duquesa tem razão. Eu sou a
última pessoa que deveria ser tutor e protetor de seu filho. Detesto a aristocracia.
— Isso é uma lástima, em especial se tivermos em conta que eles são amplamente responsáveis
pelo êxito sem precedentes que você colheu. O duque não duvidava de sua capacidade para guiar a
seu filho para a maturidade. Entretanto, também era consciente de que não pode obrigar a fazer algo
que você não queira fazer. Tem vinte e quatro horas para me comunicar sua decisão. Uma vez
finalizado esse prazo de tempo, se não aceitar os términos e condições do testamento que se tem
lido esta noite, sua oportunidade de ficar com tudo isto, e com esse último objeto, passará, e entrará
em vigor o segundo testamento.
— Fala como se tudo isto não fora mais que um jogo. Beckwith sorriu com cumplicidade.
— Quem sou eu para julgar.
Jack passeou o olhar pela sala. O único lugar onde tinha visto mais livros que ali era na biblioteca
de Claybourne. Embora lesse um livro cada um dos dias que ficavam de vida, não conseguiria lê-los
todos. Só os encadernados em pele já valiam uma fortuna.
Voltou a centrar sua atenção no homem que estava tranquilamente sentado à mesa. Não parecia
inquietar-se por nada. Recebia poder daqueles a quem servia.
— O que deixa à sua viúva no segundo testamento?
— Não estou autorizado a dizer.
— Maldito seja homem, pelo menos me diga se a favorecerá um pouco mais que no primeiro. —
Para falar a verdade, Jack acreditava que era vergonhoso o que o duque tinha legado a sua esposa.
Inclusive tratando-se daquela pesada que o tinha estado perseguindo por toda a casa.
— E isso que importância tem? — perguntou o advogado.
Jack se deslizou o polegar pela mandíbula inferior. Não pensava deixar que escapasse de entre os
dedos algo muito mais imponente que algo que ele pudesse possuir. Agarrou o livro encadernado em
pele que Beckwith tinha dado fazia um momento e dedicou aquele homem o famoso sorriso
travesso pela que era tão conhecido.
— Como dou fé de que aceito os términos do testamento?
Capítulo Três

Jack pôs-se a andar por uma silenciosa rua, entre redemoinhos de névoa. Tinha pedido uma
carruagem de aluguel para ir à residência do duque. Poderia ir em busca de outro que o levasse de
volta a sua casa, mas não necessitava mais disso. Agora tinha sua própria carruagem e seus próprios
cavalos. Além de uma residência com serventes e dúvidas, muitas dúvidas. Assinou com reservas o
documento que Beckwith tinha estendido. Apesar dos intentos que tinha feito por questionar-se e
tentar convencer-se do contrário, no mesmo momento em que o advogado tinha lido os términos
do testamento, sabia que não daria as costas a tudo o que havia caído em suas mãos por sorte.
Não esperava que a duquesa se mostrasse satisfeita quando a comunicaram que tinha decidido
aceitar os términos do testamento. Assim Jack se surpreendeu muito ao vê-la assentir e dizer ao
senhor Beckwith:
— Temos que informar aos serventes.
Reuniu todos no vestíbulo e, enquanto Jack ficava ao pé da escadaria, ela subiu alguns degraus,
adotando a majestosa atitude de uma rainha. Ele pensou que estava conhecendo o aspecto que teria
um guerreiro ao final do dia, quando, depois de uma dura batalha que não tinha sido como esperava,
devia olhar nos olhos daqueles que o tinha mandado ao campo de batalha e convencê-los de que a
honra residia na mera sobrevivência. A duquesa se mostrou elegante e eloquente enquanto explicava
que a residência pertencia a Jack e que todos eles deviam cumprir suas ordens.
Os serventes não disseram nenhuma palavra. Jack supôs que quando tivesse superado a comoção
inicial, com certeza teriam centenas de perguntas. Mas tinha preferido deixá-los com a duquesa na
casa enquanto ele pensava em sua mudança de sua sorte sozinho.
Embora não se considerasse a melhor opção para ser tutor do amado filho da mulher, também
era verdade que existiam alternativas muito piores. Talvez o próprio duque formasse parte desta
categoria.
Jack estava acostumado a passear frequentemente pelas ruas que serpenteavam entre aquelas
enormes casas, tentando recordar o que um dia pensou que jamais esqueceria: a primeira casa
elegante em que tinha vivido. Naquela época, tinha cinco anos. O homem tinha prometido à sua
mãe que cuidaria bem dele. Ela parecia conhecer e confiar nele. Talvez fosse algum de seus clientes.
Só o que Jack recordava era que aquele homem deu de comer, banhou-o e o colocou na cama.
Logo, deitou-se também entre os lençóis.... Fez coisas com ele...
Começou a andar mais depressa; parecia que voltava a ter cinco anos e tinha que escapar...
Depois, o homem chorou, pediu perdão e disse que nunca voltaria a fazer...
Jack fugiu, parou ante um enorme olmo e golpeou o tronco com todas as suas forças; sentiu a
dureza da madeira na mão e a dor subiu pelo braço. Não queria voltar ali, não queria voltar a sentir-
se assustado, doído... e envergonhado.
Apesar de ter escapado completamente aterrorizado, pensou que sempre se lembraria do lugar
onde estava aquela casa. Mas Londres tinha mudado muito naqueles vinte e oito anos. Jack nem
sequer era capaz de recordar o aspecto do homem. Fazia muito tempo que não pensava nele, mas
agora se perguntava...
O que podia fazer alguém que se sentisse culpado? Podia procurar o menino de quem tinha
abusado e deixar tudo o que possuía? Seria Lovingdon o homem que o comprou? E que importância
tinha isso agora? Estava morto. Tinha deixado a ele uma fortuna. Que importância tinha que essa
fortuna fosse fruto da culpa e do arrependimento? Jack só se preocupou em acumular o dinheiro
necessário para garantir que ninguém pudesse comprá-lo. Agora, ninguém mais poderia voltar a
fazer isso. Jamais!
— Diga-me o que sabe sobre o duque de Lovingdon — disse Jack.
Desesperado por sentir o sabor do uísque na língua e aproveitando que estava na vizinhança,
decidiu passar pela casa de Luke. Só fazia uma semana que este se casou de um modo um pouco
precipitado, mas não parecia que o casal tivesse interesse em sair em lua de mel.
Seu amigo estava sentado frente a ele. A janela que ficava junto a sua poltrona dava a um
impressionante jardim: quando não estava envolto pela névoa, era uma paisagem magnífica. Luke
bebeu um gole de seu uísque. Tirou a jaqueta e usava os últimos botões da camisa desabotoados. Seu
escuro cabelo estava revolto, e Jack suspeitava que não tinha se despenteado sozinho. Entretanto, e
apesar disso, tinha o aspecto de um homem que controlava sua vida, que sabe qual é o seu lugar no
mundo e que por fim está cômodo nele. Jack não gostava de admitir, mas não tinha mais remédio
que reconhecer que Lucian Langdon usava muito bem o título de conde.
— Era muito respeitado na Câmara dos Lordes — disse Luke com solenidade. — Todo mundo
o escutava quando falava. Sua morte deixou um vazio que será difícil de preencher.
— Então, acha que era um tipo decente?
Seu amigo encolheu os ombros.
— Isso parecia. Falei muito poucas vezes com ele. Basicamente de política. Aconselhou-me que
tivesse sempre em mente o motivo pelo qual me sentia de determinada maneira com respeito a
certos assuntos. Estava acostumado a perguntar muito aos lordes mais jovens. Insistia muito em que
não devíamos nos deixar levar.
— E o que sabe de sua mulher? Luke negou com a cabeça.
— Deveríamos perguntar a Catherine. Ela conhece muito melhor que eu às mulheres da
aristocracia. Até muito recentemente, eu não me mesclava com eles.
Catherine, sua mulher, era a filha do duque de Greystone. Fazia pouco que este tinha morrido e
seu irmão, que tinha estado ausente durante a longa enfermidade de seu pai, tinha voltado a Londres
para herdar os títulos. Parecia que, ultimamente, os lordes caíam como moscas. Jack se perguntou se
o pai de Catherine teria aprovado que ela se casasse com o Conde Diabo.
— Catherine não gosta de mim. Não me ajudará — disse Jack.
— Catherine é muito generosa. Sempre ajuda às pessoas que necessitam. — Luke se inclinou para
frente. — O que está acontecendo, Jack? Desde que se foi, aos dezenove anos, sempre evitou vir à
minha casa. Só aparecia por aqui quando era estritamente necessário; parecia que tinha medo de
contrair a sífilis. E, entretanto, aqui está; justo quando ia à cama.
Ele esticou o braço para agarrar a garrafa que havia sobre a mesa e se serviu de mais uísque.
Bebeu o conteúdo de um só gole, deleitando-se com a ardente sensação que deslizou por sua
garganta e que acabaria mesclando-se com seu sangue. O problema de levantar muros era que
sempre seria muito complicado escalá-los depois, quando se necessitava da ajuda de alguém.
— Lovingdon me legou suas propriedades e seu ativo.
Luke ficou olhando como se ele tivesse se levantado e se despido ali mesmo.
— Eu reagi de uma forma bastante parecida — disse Jack. Se a viúva não tivesse ficado como
pedra, teria pensado que não tinha entendido bem as condições do testamento.
— E por que faria uma coisa assim? Ele negou com a cabeça.
— Essa parece ser a pergunta da noite, e eu não tenho nem a mínima ideia de qual pode ser a
resposta.
— Acaso o conhecia?
— Mal. Falei uma vez com ele neste jardim. Acredito que veio visitar seu avô. Então o vi uma ou
duas vezes no clube.
— Tinha alguma dívida de jogo contigo?
Jack se serviu de mais uísque e bebeu outro bom gole.
— Pelo que tenho entendido, nunca jogou, bebeu, nem solicitou o serviço de nenhuma de
minhas garotas. Limitava-se a observar. Algumas pessoas são assim: são voyeurs do pecado. Não
estou dizendo que me pareça mal.
Luke levantou as mãos.
— E deixou tudo para você assim, sem mais nem menos?
— Bom, em troca de uma pequena condição que mal vale a pena mencionar. Tenho que aceitar
ser o tutor de seu filho de cinco anos.
Seu amigo abriu os olhos de par em par e se recostou no respaldo da cadeira.
— Por que diabos confiaria a você o cuidado de seu filho?
— Obrigado pela confiança. Sinto ter incomodado você logo quando ia deitar-se.
Jack ficou de pé. A amizade que o unia a Luke estava um pouco tensa ultimamente. Apesar de
que houve um tempo em que confiaram a vida de um ao outro, agora tinham se afastado por causa
do remorso e dos segredos. Não tinha que ter ido vê-lo, mas as ruas os tinham convertido em
irmãos. Negava-se a admitir que necessitasse de ajuda, mas de repente estava desesperado para
encontrar alguém que acreditasse nele.
— Não, me interpretou mal. Eu tenho plena confiança em que seria um bom tutor. Deus sabe
que, quando éramos crianças, salvou-me a pele muitas vezes. Mas por que confiaria Lovingdon o
cuidado de seu filho a um homem ao que mal que conhecia?
Jack negou lentamente com a cabeça.
— Estou tão desconcertado como você.
— Como recebeu a notícia a viúva?
Ele esfregou a cara ao recordar o quanto tinha ardido aquela bofetada.
— Nada bem. Nada bem absolutamente, temo. — Ouviu o ruído de leves passos e se virou para
a porta.
Catherine estava de pé junto à mesma.
— Desculpem, não era minha intenção interromper. Não sabia que tinha companhia. É que
estava me perguntando por que demorava tanto.
Em vir a minha cama. Jack pensou que tinha omitido essas últimas palavras. Catherine Langdon,
condessa de Claybourne, era uma mulher linda. Como já tinha se preparado para deitar-se, tinha o
cabelo solto: sua longuíssima cabeleira tinha a mesma cor dos raios da lua. Por algum motivo, Jack se
perguntou que aspecto teria a viúva quando soltasse o cabelo, e o que sentiria se deslizasse os dedos
por ele.
— Por favor, fique conosco — disse Luke. — Jack quer te fazer algumas perguntas.
Não é verdade — pensou ele, irritado. — É você quem quer que faça algumas perguntas.
Mas ficou onde estava, porque, se saísse, daria a impressão de que ela o incomodava e, por muito
certa que fosse essa afirmação, não queria que Catherine se desse conta. Aquela mulher já tinha
muita influência sobre Luke. Não havia nenhum motivo para que acreditasse que também podia
controlar outro homem.
Observou-a enquanto se deslizava com elegância pelo quarto e se sentava na poltrona que Luke
tinha cedido. Este se sentou no braço da mesma e começou a acariciar Catherine no cabelo; parecia
que não podia evitar tocá-la quando estava perto. Tinha sido muito estranho observar como seu
amigo caía preso de seu feitiço. Luke faria tudo por ela, inclusive matar. Jack era incapaz de
imaginar-se amando tanto uma mulher; em realidade, era incapaz de imaginar-se amando uma
mulher qualquer absolutamente. O amor tornava as pessoas vulneráveis e ele não tinha nenhuma
intenção de sentir-se assim de novo.
— Jack se encontra em uma situação um pouco estranha — começou a dizer Luke. — Pelo visto,
Lovingdon legou a ele todas as suas propriedades em troca de ele aceitar ser o tutor de seu filho.
Para sua surpresa, a condessa se limitou a olhar seu marido, franzindo delicadamente o cenho.
Então se dirigiu a Jack.
— No que posso ajudá-lo?
Ao escutar sua inesperada oferta, Jack voltou a se sentar; mal sabia por onde começar. Tendo em
conta que não tinha mais remédio que relacionar-se com a jovem viúva, estava claro que quanto
mais soubesse sobre ela, mais vantagem teria em seus futuros encontros. Seu interesse era assim
simples. Não havia mais.
— Perguntava-me o que me poderia explicar sobre sua mulher.
— Olívia?
— Acaso tem outra?
— Não, claro que não. Não a conheço muito bem. Seu pai era o duque de Avendale. Tinha
dezenove anos quando se casou com Lovingdon. Para ser sincera, acredito que todo mundo se
surpreendeu um pouco que se casasse com um homem tão velho. Não acredito que tivesse nenhum
interesse em ter pretendentes. Suspeito que o casamento tinha muito mais a ver com os desejos de
seu pai que com os seus. — Deu um afetuoso golpe em seu marido na coxa. — Nem todos temos a
sorte de amar a pessoa com a que nos casamos. — Pensativa, elevou a cabeça. — Vai aceitar ser o
tutor do menino?
— É obvio.
— Isso não te oferecerá nada que você possa precisar — comentou Luke.
— A necessidade não tem nada que ver com minha decisão. Como bem sabe, jamais dou as
costas à oportunidade de ser mais rico do que sou. Além disso, agora seremos vizinhos. Herdei sua
residência de Londres.
— Mas ser tutor é uma grande responsabilidade, senhor Dodger — disse Catherine.
— Não acredito que seja tanto. Além disso, só estou obrigado a sê-lo até que a viúva se case;
então, essa obrigação recairá sobre seu novo marido.
— Conheço o suficiente à duquesa para saber que antepõe o dever a todo o resto e que se
mantém rigorosamente às estritas normas sociais. Guardará luto por seu marido os dois anos
inteiros.
— Então, dois anos e um dia depois, terei preparado um tipo que a esteja esperando com um
joelho fincado no chão.
— Vai procurar-um marido? — Catherine parecia horrorizada com a ideia.
Jack deu de ombros. Sabia que não importava o que fizesse, à mulher de seu amigo sempre
pareceria mal o que acabasse decidindo.
— Não vejo por que não. Não sou eu quem está de luto.
Além disso, tão difícil seria encontrar um novo marido para a duquesa? O dinheiro podia
comprar muitas coisas, inclusive o perdão por saltar as normas de etiqueta. Talvez à sociedade
pudesse parecer importante que uma viúva estivesse dois anos de luto, mas Jack acreditava que não
havia necessidade de que estivesse mais de duas semanas, no muito.
Uma cerimônia discreta e então poderia mandar para o campo toda a família feliz. Assim, poderia
ficar com sua preciosa residência nova para ele sozinho.

— Acorde, meu amor — disse Olívia com suavidade.


Henry piscou e abriu os olhos. Era um menino bonito: loiro como seu pai, e com os olhos de sua
mãe. Era muito curioso, sempre estava observando tudo para descobrir como funcionava cada coisa.
Lovingdon tinha dedicado muito pouco tempo a ele, mas o certo era que poucos pais o faziam.
Essa era a forma que tinham os aristocratas de fazer as coisas, e os pais acostumavam deixar a
educação de seus filhos nas mãos de outras pessoas. Talvez, porque Lovingdon tenha se envolvido
tão pouco nesse assunto, pensou que não tinha por que dar muita importância à escolha do tutor,
mas essa explicação não bastava para que Olívia conseguisse justificar sua escolha.
Ao beijar a cabeça de Henry se deleitou na doce fragrância que desprendia o menino. Não podia
deixar que o criasse um delinquente. A melhor maneira de evitar isso era levando-o o mais longe
possível de Jack Dodger.
— Preciso que se levante e se vista. Vamos para a casa de campo — disse Olívia.
A casa de campo pertencia ao pequeno. Ali estaria fora do alcance do tutor que tinham escolhido.
E quando se afastassem de toda aquela loucura, seria mais fácil pensar com claridade e encontrar
uma forma de conseguir que o senhor Dodger não tivesse nenhuma influência sobre Henry. Parecia
um homem que gostava muito de dinheiro. Talvez pudesse oferecer o do fundo de investimento que
seu marido tinha deixado a ela. Olívia faria todo o necessário — privações, sacrifícios, — para
garantir que seu filho recebesse uma educação adequada. Para ela, não havia nada mais importante
no mundo que ele.
Dirigiu-se a sua babá:
— Por favor, Helen, prepare uma mala com as coisas que Henry e você precisarão. Eu vou pedir
que tragam a carruagem. Não podemos nos demorar.
Não podia acreditar nas desesperadas medidas que a estava obrigando a tomar a morte de
Lovingdon. Seu marido só tinha cinquenta e um anos. Quando se casou com ele, já seis anos, deu a
sensação que era muito velho, mas ao morrer tinha parecido que era muito jovem, que tinha ido
muito antes do tempo. Mal tinha tido nem um momento para pensar nele e no estilo de vida que a
esperava agora que Lovingdon não estava. E, se o tivesse feito, com certeza jamais teria imaginado
que as coisas iriam tomar o rumo que estavam tomando aquela noite. Entretanto, tinha
responsabilidades e as enfrentaria da melhor maneira possível. O dever não podia dar o luxo de estar
de luto.
Assim que esteve tudo preparado, com Henry apropriadamente vestido, Olívia o tomou pela mão
e o acompanhou até a escada. Sua donzela a estava esperando no vestíbulo.
— Os lacaios já subiram nossas coisas à carruagem — disse Maggie a Olívia.
Levaram pouca bagagem, porque era imperativo que partissem a toda pressa se quisessem
conseguir escapar. Escapar. Jamais pensou que chegaria a associar essa palavra com sua vida, mas ali
estava, fugindo em plena noite como se fosse uma ladra. Se não estivesse tão cansada, possivelmente
poderia pensar em outra saída, mas naquele momento só o que queria era afastar-se de toda aquela
loucura.
— Bem. Vamos.
Entrou na noite seguindo o lacaio que levava seu filho e a outro que sustentava uma lanterna.
Desceu os majestosos degraus que a afastavam da casa da que se apaixonou. Enquanto se deixava
devorar pela escuridão da noite, sentiu uma pontada no peito. Se fosse uma mulher mais fraca,
estava certa de que sucumbiria às lágrimas, mas o pranto não mudaria a situação. Tinha que ser forte
por Henry. Tinha que protegê-lo a todo custa. Ela conhecia muito bem a que índole pertencia Jack
Dodger. Era um homem que o queria conseguir tudo da forma mais simples, sem esforçar-se.
Quando estivessem longe, não se incomodaria em ir atrás deles. Tinha conseguido a residência e
tudo o que continha e estava convencida de que isso era quanto desejava.
Apressou-se pelo caminho pavimentado, consciente de que a névoa absorvia e amortecia o som
de seus passos. Aquela noite parecia especialmente feita para escapar.
Um lacaio uniformizado abriu a porta da carruagem e a ajudou a subir. Justo quando se sentou no
luxuoso assento, percebeu uma fragrância que era familiar...
— Vai a algum lugar, duquesa?
Ao ouvir a inesperada voz de um dos sombrios cantos da carruagem, Olívia deu um grito dos que
gelariam o sangue de qualquer um. Teria continuado gritando a não ser pela irritante e escura
gargalhada que se ouviu a seguir. Agora já sabia como soava a risada de Satã, e não era um som que
convidasse a que outros se somassem à festa.
— Sua excelência? — interessou-se um dos lacaios.
— Tudo bem — respondeu Jack, ao mesmo tempo em que agarrava a lanterna das mãos do
servente e a levantava. A dourada luz iluminou a ele e os limites da carruagem. Olívia não soube
como o fez, mas conseguiu mostrar-se divertido e irritado ao mesmo tempo. E muito, muito
perigoso.
Henry, que estava na porta da carruagem, nos braços de um lacaio, gritou ao ouvir o grito de sua
mãe e logo se pôs a chorar. Olívia levou os braços para agarrá-lo e o apertou contra seu tremente
peito.
— Chist, Henry, não foi nada. Mamãe se assustou, isso é tudo. Mas este homem não te fará
nenhum mal, carinho. Prometo isso.
O menino pareceu tranquilizar-se com suas palavras, deixou de chorar e começou a chupar o
dedo. Era um hábito do que Olívia não estava particularmente orgulhosa, mas nem ela nem sua babá
tinham conseguido tirar esse costume. Entretanto, não acreditava que tivesse que preocupar-se
muito por isso naqueles momentos. Tinha preocupações muito mais importantes.
Pensou que se fosse uma pessoa que acostumasse a dizer palavrões, aquela tivesse sido uma boa
ocasião para dizer alguns. Teve a sensação de que Jack Dodger era mais alto do que tinha parecido
antes, e também muito mais sinistro. Gostava dele ainda menos que pela tarde e decidiu que já tinha
tido que aguentá-lo o suficiente por um só dia.
— O que está fazendo aqui? — inquiriu, adotando seu tom de voz mais seco; que empregava
quando descobria que algum de seus serventes não estava fazendo as tarefas que tinha atribuído.
— A pergunta é duquesa, o que você está fazendo aqui? — Deu uns golpes ao livro que
sustentava como se tratasse do Evangelho. — Esta carruagem me pertence. Está tentando me
roubar isso - Esta era a carruagem do duque.
— Como pode ser de sua propriedade? Tem o brasão do ducado!
— Acredito que tem razão. Farei que o tirem imediatamente, porque poderia provocar confusão.
— Esta era a carruagem do duque.
— Mas infelizmente para você, comprou-o com recursos não associados ao título.
— Tem lido isso em plena escuridão?
— Não, tenho-o lido na biblioteca. Tenho uma memória surpreendentemente boa. Só tenho que
ler uma coisa uma vez e é como se o arquivasse em minha mente. Mas duvido que tenha verdadeiro
interesse em meu talento, assim voltemos para minha pergunta original: está tentando me roubar?
Tenho que chamar um agente da lei?
— Não seja ridículo. Só estava levando Henry ao campo.
— Em plena noite? — perguntou ele.
— É mais fresco e é mais fácil que Henry durma durante o trajeto se viajar de noite. Como não
tenho que me preocupar com entretê-lo, a viagem é também muito mais prazerosa para mim. Por
outra parte, não estou certa do por que estou explicando tudo isto.
— Já faz muito tempo que aprendi que as pessoas dão muitas explicações quando se dão conta
de que se puseram em evidência.
— Eu não tenho feito nada errado. — Mas suas palavras soaram defensivas e fracas inclusive a
seus próprios ouvidos.
— Assim é a meu ver: sou o tutor de Henry. Se estiver no campo, não poderei protegê-lo.
Olívia poderia ter jurado que detectava certo humor em sua voz. Acaso aquele homem pensava
que tudo aquilo não era mais que uma piada e que o que tinha ocorrido essa noite só tinha o
propósito de diverti-lo? Decidiu guardar essas duras palavras, porque estava certa de que só
conseguiria irritá-lo mais.
— Como tutor, não tem por que protegê-lo de nada. Só tem que preocupar-se com seu bem-
estar, e isso pode fazer me confiando seu cuidado e deixando que o leve ao campo.
— Não estou certo de que isso seja o que mais interessa.
— Por que não?
— Está educando a um autêntico fraco. Gritou mais forte que você.
— Não estou de acordo com essa afirmação. Você nos assustou, apareceu do nada como se fosse
um canalha quando ninguém o esperava. Por que não estava esperando junto à carruagem, como
faria qualquer pessoa decente? Acredito que se escondeu de propósito para me assustar.
— Acredito que você sabe muito bem que não sou precisamente decente. — Teve o
descaramento de sorrir enquanto dava golpezinhos ao maldito livro.
— Diverte esta situação? — alfinetou ela.
— Parece-me um grande desafio. A palavra desafio ficava curta.
— Você e eu podemos chegar a um acordo. Fique com tudo. Diga que é seu tutor. Mas deixe
Henry e eu irmos.
— Por desgraça, para você, duquesa, sou um homem de palavra. Prometi me ocupar do cuidado
e da educação de seu filho e assim farei. E farei aqui, em Londres, porque meus interesses
econômicos e meus negócios estão aqui. Embora tenha razão em uma coisa: temos que chegar a um
acordo e arrumar as coisas entre nós. Sugiro que voltemos para a residência, onde poderemos falar
do tema com mais comodidade.
— São mais de dez da noite. Não é uma hora decente para visitas. Suponho que não estará
sugerindo que tem a intenção de passar a noite aqui.
— É minha casa. E eu sou o tutor do menino. Assim, sim penso me mudar para a casa.
Falava despreocupadamente de algo que era por completo inapropriado. A Olívia não coube
nenhuma dúvida de que aquele homem tinha crescido acostumado a dormir entre estranhos.
— Isto é ridículo. Você e eu não somos nem aparentados. Não podemos viver na mesma casa.
— Você é viúva, não uma mulher solteira. Não é obrigatório que tenha dama de companhia.
Embora suponha que tem muitas faxineiras que se ocupam de satisfazer suas numerosas
necessidades. Se tiver medo de sentir-se tentada a vir à minha cama, pode pedir que a vigiem.
Indignada, soltou um grito sufocado.
— É você uma besta presunçosa! Eu jamais iria a sua cama.
— E como eu tampouco tenho nenhum interesse em ir à sua, não vejo onde está o problema.
Além disso, meus negócios requerem minha atenção pelas noites, por isso o mais habitual é que
esteja em meu clube. Não ocorrerá nada indecoroso.
Olívia se negava a admitir que houvesse sentido uma pontada de despeito quando ele tinha
admitido que não despertava nenhum interesse nele. Tampouco era que queria ela gostar dele.
Entretanto, não era agradável dar-se conta de que um homem que sem dúvida alguma era
acostumado a perseguir muitas e variadas mulheres, não tinha nenhum interesse em persegui-la.
Havia se sentido profundamente ferida quando Lovingdon decidiu não voltar nunca mais à sua cama
no dia em que descobriu que estava grávida. Possivelmente os homens não a considerassem atraente.
Talvez devesse sentir consolo, agora que sabia que estava a salvo de Jack Dodger. Mas em lugar
disso, sentia uma incrível necessidade de chorar.
— Eu rogo, pelo amor de Deus, nos deixe partir.
Ele a estudou com atenção e ela se agarrou ao último vestígio de esperança, desejando que aquele
martírio acabasse concluindo a seu favor. Se aquele homem possuía só um pingo de decência, talvez
fosse suficiente...
— Temo que não possa fazê-lo.
— Por que não?
— Eu não gosto de me repetir. Ir não é o que mais interessa ao menino e eu sou seu tutor. Agora
pode escolher: ou volta para a residência andando, como faria uma dama, ou o fará sobre meu
ombro. Você decide. Mas decida-se rápido.
— Que vai me levar sobre seu ombro? Como se fosse uma prostituta qualquer.... Não se
atreveria.
— Já disse antes que se me desafiar só conseguirá que o faça. — Levou os braços para agarrá-la...
Olívia gritou, agarrou Henry com força e apertou as costas contra o assento da carruagem com tal
ímpeto que a surpreendeu que não se rompesse e acabasse caindo na parte posterior do mesmo.
— De acordo. Já entendi. É um tirano. Sou perfeitamente capaz de voltar para a casa sozinha.
— Que lástima. — Jack voltou a estender os braços para ela. — Eu levarei o menino.
— Prefiro que não o faça.
Por um momento, pareceu que tinha ferido seus sentimentos. Olívia não entendia como podia ter
feito tal coisa quando entre eles dois não existia mais que antipatia.
— Como desejar, duquesa — disse ele, adotando um tom zombador que ressonou a seu redor.
— Poderia, por favor, deixar de me chamar assim?
— Acaso não é apropriado?
— Não da forma em que você o diz.
— Possivelmente pudesse me ensinar a dizer de uma forma mais apropriada e, em troca, eu
poderia ensinar algumas coisas pouco apropriadas — respondeu ele, adotando um tom de voz muito
baixo que provocou em Olívia comichões em lugares nos quais nunca os havia sentido
— Falaremos sobre as possibilidades na biblioteca.
— Primeiro tenho que ler um conto a Henry. Não dorme se não leio para ele antes.
— Isso parece uma desculpa para o inevitável.
— Ofende-me que não acredite em minha palavra. Mas pode perguntar a qualquer um dos
serventes. Eles confirmarão que leio uma história noite. Embora tampouco necessite que eles
confirmem nada.
— Suponho que tem razão. Deveria tratá-la como igual.
— Como igual? Você é plebeu!
— Estava me referindo ao feito de que os dois sejamos ladrões. Embora deva admitir que me dei
melhor que você. Não teriam me descoberto.
— Estou convencida de que você tem uma opinião muito boa de suas habilidades. Está claro que
em algum momento o agarraram. Vi a marca que leva na mão.
— Sim, foi um golpe de má sorte. Felizmente para você, agora já não marcam os delinquentes.
Olívia não via nenhum sentido em dizer que ela não era nenhuma ladra. Como iria saber que ele
tinha herdado a carruagem? Teria que dar uma olhada na sua cópia do relatório ou estudar o de seu
filho com mais detalhe.
— É muito irritante, senhor Dodger.
— Faz parte de meu caráter. Reúna-se comigo na biblioteca quando tiver acabado de ler para o
meu protegido.
Então saltou da carruagem provocando que esta se balançasse e disse aos serventes que
continuavam ali:
— A duquesa decidiu cancelar sua viagem ao campo. Por favor, cuidem de levar tudo de volta ao
seu lugar.
Logo se perdeu na escuridão, deixando-a no que parecia uma descida em espiral ao inferno.
Capítulo Quatro

Jack bebia um uísque sentado no sofá da biblioteca; estava muito contente de ter sido previdente
e ter levado um par de garrafas da casa de Luke. Tinha planejado voltar para sua nova residência
para discutir alguns detalhes com a viúva, e decidiu que os dois necessitariam de um bom gole da
bebida do demônio para que os ajudasse a confrontar o que estava certo de que seria um árduo
processo, se queriam chegar a um acordo sobre como educar o menino. Não esperava que ela
estivesse de acordo com nada do que ele sugerisse.
Ficou completamente perplexo quando, ao chegar à residência, descobriu que estavam
preparando a carruagem para a precipitada fuga da duquesa. Fazia muito tempo que o demônio não
se apoderava de seus atos, e ele não acostumava assustar às mulheres, mas não tinha podido evitar
meter-se dentro da carruagem e esperar que ela chegasse. Infelizmente, não tinha tido pensado que
levaria o menino com ela. Irritar a duquesa era uma coisa; aterrorizar o menino era assunto
completamente diferente. Não gostava de machucar crianças. Já perdiam a inocência muito cedo.
Maldita fosse! Teria que ter deixado que levasse a menino ao campo. Limitar-se a fingir que era
seu tutor. Passou boa parte da infância fingindo ser uma coisa ou outra para enganar a alguém e
poder roubar algo. Quando se dedicava a colocar a mão nos bolsos alheios, estava acostumado a
vestir-se com um traje elegante que tinha roubado para passar despercebido entre os ricos, para
parecer um dos seus, para que pensassem que era o filho de algum deles e só estava passeando.
Todos os meninos de Feagan eram muito hábeis se misturando com o meio: sempre conseguiam
encaixar, embora não fosse verdade.
Beckwith se encarregaria de controlá-lo e de assegurar-se que cumpriria com seu dever? Não
parecia muito provável. Aquele homem tinha sobrevivido à entrega da mensagem e tinha conseguido
que assinassem os formulários pertinentes. Já tinha ganhado um bom dinheiro. Jack não tinha
nenhuma intenção de fazê-lo ganhar ainda mais. O advogado já tinha saído de suas vidas. Pelo
menos, até que chegasse o momento de reclamar aquele último objeto. Seu valor é incalculável. As
palavras ressonaram na cabeça de Jack como se cantasse um coro de anjos. Tinha tudo aquilo e
ainda havia algo mais.
Olhou o relógio que descansava sobre o suporte da chaminé e logo centrou sua atenção em uma
mesa sobre a qual havia um montão de relógios muito bem colocados. A duquesa estava há mais de
uma hora lendo ao seu filho. Que diabos estava lendo? Uma novela de Dickens?
Então teve um mau pressentimento. Olívia era uma garota muito esperta; já tinha demonstrado
ao empregá-lo tão rápido. Ele tinha conseguido cortar uma via de escape, mas poderia ter
encontrado outra.
— Maldição! — rugiu ao mesmo tempo em que ficava de pé, atirando boa parte do uísque em
seu colete favorito. Amaldiçoou a perda, bebeu o pouco que restava no copo de um só gole e saiu da
biblioteca a toda pressa.
Um lacaio que estava apoiado na parede do corredor se endireitou em seguida, temendo uma
reprimenda por sua falta de disciplina. Mas Jack se importava muito pouco como ereto pudesse estar
um homem. O que queria de um servente era que trabalhasse bem e que estivesse ali quando
necessitasse.
— Tornaste a ver a duquesa desde que subiu? — perguntou Jack.
— Não, senhor.
Voltou a amaldiçoar. Era muito provável que tivesse conseguido fugir. Lembrou-se que junto à
casa cresciam um montão de enormes árvores. Poderia ter aberto uma janela, ter passado a um deles
e logo descer até o chão sem nenhum tipo de problema. Ele mesmo já tinha feito isso um montão
de vezes quando vivia na casa de Claybourne. O ancião os tinha proibido de visitar Feagan enquanto
estivessem sob seu teto. Jack sempre pensou que se o ancião não soubesse o que ele estava fazendo,
não faria mal. E ele se negou a abandonar Feagan de tudo. Por isso tinha vivido entre dois mundos.
Em muitos sentidos, ainda estava fazendo-o.
Foi para a escada a toda pressa subindo os degraus de dois em dois. Não havia nenhum outro
servente por ali. Apressou-se até o quarto do menino, abriu a porta e estancou...
Tanto a duquesa quanto seu filho estavam nos braços de Morfeu. Jack sentiu um nó na garganta
ao recordar que houve um tempo em que também ele dormia deitado contra sua mãe. Não queria
pensar nela aquela noite, não queria pensar em tudo o que podia sacrificar uma mãe por seu filho;
não queria perguntar-se o que poderia chegar a sacrificar a duquesa. A dedicação que aquela mulher
demonstrava para seu filho o tinha pegado completamente despreparado. Ele sempre tinha
assumido que a aristocracia estava por cima das emoções. Não estava acostumado a desviar-se muito
ao julgar às pessoas ou as situações, mas nesse caso era muito possível que sim, tenha se enganado.
Deu uma olhada pelo quarto. A babá estava dormindo em uma pequena cama que havia em um
dos cantos do quarto. Jack não sabia se isso era o habitual ou se tratasse só de outro exemplo da
natureza protetora da mãe do menino. Ele não estava muito familiarizado com a maneira de
administrar uma casa. Lovingdon o tinha encomendado uma tarefa de enormes dimensões, mas
estava desconcertado ante sua determinação de levar a cabo o encargo. Voltou a centrar sua atenção
na duquesa.
Estava sentada na cama, com a cabeça inclinada em um ângulo forçado e um livro aberto sobre o
colo. O menino estava deitado junto a ela, chupando o dedo e roncando com suavidade. Uma das
mãos de sua mãe descansava sobre sua cabeça e seus dedos se perdiam nos dourados cachos do
pequeno; parecia como se achasse que podia protegê-lo em apenas tocá-lo.
Sim, deveria deixá-los partir. O que sabia ele de crianças? Era verdade que tinha protegido alguns
em algum momento; tinha o corpo cheio de cicatrizes que demonstravam isso, embora não todas
elas fossem visíveis e estava acostumado a ensinar aos outros meninos a sobreviver quando não
tinham mais ninguém que os protegesse. Em seu clube, trabalhavam vários meninos: de recados,
levavam as bebidas aos cavalheiros, ajudavam a levar as fichas de um lado a outro... Jack se
perguntou se Lovingdon viu a segurança que ganhavam esses meninos quando começavam a
trabalhar para ele. A princípio, sempre tinham medo, não confiavam em sua boa sorte e suspeitavam
dos motivos pelos quais Jack queria contratá-los. Mas em pouco tempo acabavam convencidos;
começavam a andar com a cabeça bem alta, falavam sem vacilar e começavam a entender o muito
que valiam. Seria essa a razão pela que Lovingdon ia a seu clube e não participava de suas variadas
ofertas de ócio? Teria ido ali para observar e aprender, para poder decidir quem seria o mais
indicado para preparar seu filho para o mundo?
Um descarado como Jack Dodger?
Talvez se fosse um menino da rua..., mas o filho de um lorde? Jack mal sabia por onde começar.
Então, por que não tinha aceitado a forma mais singela de eliminar aquele dilema quando a duquesa
a ofereceu? Poderia ter ficado com tudo e ter se liberado deles. Não tinha nenhum sentido que os
obrigasse a ficar e, entretanto, era reticente a deixá-los partir.
Jack voltou sua atenção para a dama em questão. Dormindo possuía uma inesperada beleza quase
etérea; parecia que todas suas preocupações tinham desaparecido em seus sonhos. Por um
momento, perguntou-se o que se sentiria sonhando. Ele nunca sonhava. Provavelmente porque não
estava acostumado a dormir. Estava obcecado conseguindo toda a riqueza que pudesse e trabalhava
até bem entrada a noite sempre que podia. Sabia muito bem qual era o verdadeiro valor do dinheiro.
Este protegia uma pessoa e graças a ele não tinha que fazer coisas que não queria fazer.
Normalmente, não tinha nenhum interesse particular em exercer a função de tutor do menino, e
se o menino não estivesse chupando o dedo, talvez não tivesse gritado mais forte que sua mãe, Jack
teria questionado seriamente a necessidade de ficar. Um pirralho não deveria estar tão assustado.
Ninguém deveria. O que era que provocava tantos medos? E como podia Jack começar a dar a
confiança que necessitava para fazer honra a seu título? Não podia fazê-lo sentando-se junto a ele
diante do fogo enquanto a genebra esquentava seu estômago e o cigarro fazia o mesmo com seus
pulmões. Estava convencido que a duquesa jamais aceitaria, o que fazia que desse vontade de pensar
mais na ideia. Fazê-la zangar poderia converter-se facilmente em seu último vício. Ela conseguia
irritá-lo por motivos que não era capaz de entender e ele prestava uma estranha atenção em alguns
detalhes sobre aquela mulher nos quais jamais pensou antes.
Colocou-se na pequena cama do menino e tinha deixado os sapatos a um lado da cama. Apesar
de usar meias, Jack pôde ver que tinha pés pequenos e delicados. Davam um ar vulnerável e ele
sentiu uma repentina necessidade de protegê-la. Embora não seria difícil imaginar que ela se oporia
rapidamente a isso. Era muito provável que ficou ali de propósito até dormir, com a esperança de
evitar outro encontro com ele. Pouca tolice. No final, todo mundo tinha que acabar enfrentando ao
demônio e pagar suas dívidas.
Ela aprenderia essa lição no dia seguinte; aquela noite a deixaria descansar com inocência, mas
não naquela cama. Se não dormisse bem, estaria de mau humor e seria muito mais difícil tratar com
ela; e já era o suficientemente difícil. Jack duvidava que jamais chegassem a ficar de acordo em nada.
Deslizou os braços por debaixo de seu corpo com muito cuidado: um à altura de seus ombros e o
outro por debaixo de seus joelhos. Estava convencido que suas costas se ressentiriam do peso, mas
quando a levantou, deu-se conta de que era tão magra como eram seus dedos quando menino os
metia nos bolsos de outros para roubá-los. Olívia emitiu um pequeno som parecido a um miado ao
mesmo tempo em que apoiava a cabeça sobre o ombro de Jack. Então, ele percebeu uma fragrância
que reconheceu em seguida: láudano. Talvez tivesse tantos problemas para dormir como ele.
Voltou a olhar o menino; estava observando-o com os olhos totalmente abertos. Jack esboçou
um sorriso, piscou um olho e disse:
— Volte a dormir. Esta noite eu me encarregarei de manter os monstros fora do quarto
O pequeno fechou os olhos. Jack saiu do quarto e percorreu o corredor até a porta da duquesa.
Por favor, não entre em meu quarto.
Suspirou. O que importava o que ela queria ou não? O que escondia ali dentro? O fato que não
quisesse que ele o visse só fazia que tivesse mais curiosidade de vê-lo. E por que motivo não
deveria? Aquela casa era dele, o que significava que, legalmente, o quarto também. Tinha todo o
direito a abrir aquela porta...
Amaldiçoou uma vez mais e se dirigiu ao quarto do senhor da casa: um dormitório que antes
pertencia ao duque e que agora pertencia a ele.
Flexionou um pouco os joelhos, para alcançar a maçaneta, girar e abrir a porta. O quarto estava
envolto em sombras, mas a luz que procedia dos abajures do corredor e a pouca que entrava pela
janela dos abajures de gás que iluminavam o caminho de entrada proporcionavam a claridade
suficiente para que pudesse intuir a silhueta da enorme cama. Aproximou-se dela e depositou Olívia
em cima com a maior suavidade possível.
Ela choramingou e logo resmungou:
— Sinto muito. Perdoe-me. Jack se agachou a seu lado.
— Por que, duquesa?
Sua resposta se limitou a um suave suspiro. Tinha uma mão perto do quadril e a outra fechada
sobre o travesseiro. Tirou sua touca de viúva — um objeto completamente absurdo— e Jack pôde
fazer melhor ideia de como era seu cabelo. Não tão castanho como tinha imaginado a princípio, mas
com um ligeiro tom mogno. Uma pequena parte do diabo voltou a visitá-lo. Com seus destros dedos
e a habilidade de um ladrão de carteira, localizou um grampo. O tirou com muito cuidado. Logo
encontrou outro, outro, e outro, até que a cabeleira ficou liberada de suas ataduras e toda sua
espessura descansou sobre a mão de Jack. Era suave e sedosa. Acariciou algumas mechas entre os
dedos. Não entendia por que sentia aquele assustador impulso de conhecer a textura de seu cabelo.
E de saber algo mais.
Aproximou a cabeça do pescoço de Olívia e, muito devagar, inalou a embriagadora fragrância de
seu perfume. Ali o aroma era mais intenso, parecia como se procedesse de um lugar secreto atrás de
sua orelha. Com que outras partes de seu corpo a duquesa provocaria um homem? Porque o
provocaria, disso estava completamente certo.
Ficou de pé e a observou. Perguntou-se quantas noites teria caído naquela cama, satisfeita e
saciada. Abraçaria depois o duque? As mulheres com as que Jack se deitava não requeriam nenhum
cuidado especial, mas pensou que seria diferente com uma mulher a quem não pagasse. Esta
esperaria algo mais que não fosse encher de moedas a palma da mão. Requereria cortesias que
enchessem seu coração.
Deu um passo atrás. Havia algo muito prazeroso em observar como dormia uma mulher em uma
cama, especialmente quando a cama era agora a sua. Jack tinha se deitado com muitas, mas nunca
parou para as observar enquanto dormiam. E estava se dando conta que uma mulher podia ser
sedutora e atraente inclusive enquanto dormia.
Virou-se e se dirigiu à porta, negando-se a deixar-se seduzir embora a dama fosse tão formosa
como era a duquesa de Lovingdon.

Jack entrou no clube e se deleitou com o meio, com os aromas e os sons. Os cavalheiros
elegantes sentados às mesas de jogo, o suntuoso aroma do bom uísque e os puros charutos. O som
dos jogos de dados e das fichas de madeira. Da sala do lado, onde as garotas dançavam com os
cavalheiros, ouvia notas de um piano; às vezes, conseguiam levá-las a um rincão e se deixavam
roubar um beijo, e outras vezes abandonavam aquela sala para entregar-se a atos um pouco menos
inocentes. Jack pagava muito bem às garotas para que entrevissem os clientes: o trato era que
dançassem com eles e fizessem companhia. Tudo que ganhassem no outro lado daquelas portas era
só delas. Ele não proporcionava prostitutas, mas tampouco julgava as mulheres se quisessem ganhar
um pouco mais, sempre e quando a decisão fosse completamente dela. Todo mundo sabia que Jack
Dodger não olhava para o outro lado se alguém tratasse mal seus empregados.
Passeou pela sala e observou as mesas e os jogadores; estudou como progredia o jogo. Advertiu o
elevado volume ambiental. Os homens ruidosos costumavam gastar mais dinheiro. Passou junto a
uma das mesas, em que estava jogando uma partida de brag. Pouco tempo atrás, Luke acostumava
passar grande parte da noite no clube, não só porque era seu sócio, mas sim porque desfrutava
muito de uma boa partida de cartas. Entretanto, desde que tinha se casado ficava em casa com sua
mulher. Jack não podia culpá-lo por isso. Catherine era um exemplar bastante delicioso.
Quando passou junto ao guichê onde compravam as fichas, o homem que estava atrás assentiu
com a cabeça e esboçou um pequeno sorriso, o que significava que o negócio ia bem. Logo, Jack se
aproximou da sala em que as garotas ofereciam consolo aos cavalheiros que não tinham tido muita
sorte com as cartas, ou que fossem diretamente os homens que decidiam que seu pecado da noite
seriam as mulheres. Parou na soleira e esperou que seus olhos se acostumassem à falta de luz. A sala
estava pouco iluminada de propósito, assim conseguiam criar uma ilusão de intimidade. Mas ali não
havia verdadeiros segredos. Se Jack quisesse, poderia chantagear todos os homens que havia entre
aquelas paredes; mas sua visão dos negócios era muito aguda para cair nesse engano. Tinha
conseguido proporcionar àqueles homens um refúgio seguro onde podiam abandonar-se aos seus
desejos. Muito cedo, tinha aprendido que uma pessoa podia chegar a dar quase tudo o que tem em
troca de um refúgio seguro.
Olhou para uma mulher sentada no colo de um homem. Prudence era a garota que mais tempo
estava com ele. A juventude estava começando a abandoná-la, mas possuía muita experiência.
Sussurrou algo ao homem com quem estava, logo levantou seu ligeiro corpo e começou a andar
provocantemente para Jack. Usava a cabeleira loira solta e o cabelo caía em cascata sobre as costas.
Nunca tinha sido pudica e ia coberta só por uma fina capa de seda.
— Olá, coração — o saudou com paquera. — Está me procurando?
Jack a olhou com atenção; seu olhar era uma mescla de apreciação pelo que oferecia fisicamente e
outro pouco de remorso. Era importante não deixar que uma mulher soubesse que não a desejava.
Era melhor conseguir que pensasse que havia outros motivos pelos quais não queria estar com ela.
— Esta noite não, Pru. Ela franziu o cenho.
— Já faz muito tempo, Jack. Não terá encontrado outra, verdade?
— Não, só estou um pouco distraído. Como vão as coisas com as outras garotas?
Prudence era a encarregada de fiscalizar às demais empregadas; cuidando para que entendessem
as regras, que sempre estivessem limpas e de que ninguém abusasse delas.
— Tudo vai bem, mas acredito que vamos perder Annie. Um dos lordes quer que seja sua amante
exclusiva.
— É isso o que ela quer? Prudence assentiu.
— É um bom tipo.
— Assegure-se de que ela entenda que ele nunca se casará com ela.
— Já sabe Jack. Todas sabem o que somos.
— O que são Pru, é só um grupo de garotas travessas. Os homens necessitam disso de vez em
quando.
Piscou.
— Pois quando você necessitar, faça-me saber. Sigo sendo sua garota.
Despediu-se dele com a mão e voltou junto ao homem que estava esperando-a. Ultimamente,
Prudence era a única mulher com a que Jack se permitia estar. Não queria que ficassem com ciúmes
umas das outras. Ele pagava Pru generosamente; não só porque era particularmente boa, mas sim
porque ela nunca esperava dele mais do que Jack era capaz de oferecer.
Afastou-se da sala onde os homens desfrutavam da companhia das garotas e percorreu de novo a
sala de jogo, saudando alguns dos cavalheiros. Já fazia um bom tempo que tinha passado a meia-
noite, mas a sala continuava cheia e o local estava muito animado. O pecado não sabia de horários,
coisa que ia muito bem a ele, que nunca tinha necessitado dormir muito.
Abriu a porta que conduzia à parte detrás, de onde ele dirigia seu negócio. Parou ante um quarto
aberto, olhou o interior e observou enquanto Frannie Darling pegava algumas precisas notas em
seus livros de contabilidade. Ela também tinha sido uma das meninas de Feagan, a única cujas hábeis
mãos podiam comparar-se com as de Jack. Ninguém tinha conseguido superar as recompensas que
conseguiam eles dois.
Tinha o cabelo recolhido em um coque, mas não estirava tanto a pele das bochechas como à
duquesa. Ela também se vestia de negro, mas não porque estivesse de luto, mas sim porque Frannie
não gostava de chamar a atenção. Em uma ocasião, Jack comprou um vestido de cor verde
esmeralda. Preferia as cores atrevidas e pensou que estaria muito bonita com ele. Frannie se
ruborizou e o agradeceu profusamente, mas pelo que Jack sabia, não o tinha vestido nenhuma só
vez. Não gostava que os homens a olhassem, mas o faziam de todas as formas. Jack estava
convencido de que todos os meninos de Feagan se apaixonaram por ela em um momento ou outro.
Nem sequer ele era imune aos seus encantos.
Frannie levantou a vista e dedicou o tímido e pícaro sorriso que ganhou o coração de tantos
meninos.
— Por fim está aqui. Esteve fora um montão de tempo.
— A reunião foi muito mais complexa do que eu esperava.
— Quer falar do tema?
— Não especialmente, mas é importante que esteja à par de algumas mudanças que podem
surgir.
— Não sei se eu gosto de como isso soa.
Entrou no escritório e olhou a seu redor. Ao contrário que na residência do duque, naquela sala
não havia muitos móveis: tão somente uma escrivaninha e três poltronas. As paredes estavam nuas.
Umas pequenas estantes sustentavam os livros de contabilidade que continham a história de seu
negócio. Junto a outra das paredes havia um sofá. Jack não sabia muito bem para que o utilizava
Frannie, pois sabia que não dormia ali. Sua cama estava em um apartamento ao que se acessava por
um corredor e uma escada na parte posterior do edifício. Ele também tinha ali um apartamento
próprio, igual à maioria dos empregados. Isso havia custado uma maldita fortuna, mas Jack sabia que
os empregados contentes não colocavam a mão na caixa.
— Por que não se senta? — disse Frannie.
Ele negou com a cabeça, deu um passo adiante e se apoiou no respaldo de pele da poltrona que
havia frente a escrivaninha de Frannie.
— Fiquei sentado grande parte da noite. — Assinalou os livros de contabilidade, abertos sobre a
mesa. Frannie era um gênio com os números. Talvez fosse porque Feagan a sentava em seu colo e a
deixava contar as bolsas e moedas que outros tinham conseguido com o passar do dia.
Possivelmente não se desse conta, mas isso a ajudou a desenvolver uma habilidade que tinha sido
muito útil a todos. — Tivemos uma noite proveitosa?
— Nossas noites sempre são proveitosas. Vai morrer sendo um homem muito rico, Jack.
Não passou despercebido a tristeza que tingia a voz de Frannie.
Sabia que não gostava da importância que ele dava ao dinheiro. Sorriu.
— Muito mais rico do que esperava. O duque de Lovingdon me legou uma fortuna.
Ela abriu seus olhos verdes de par em par.
— Por quê?
— Que me pendurem se caso eu sei. — Afundou os dedos na pele do respaldo. — Falou com ele
alguma vez?
— Por que ia falar com ele?
— Veio por aqui em alguma ocasião.
— Já sabe que evito tudo o que se passa na zona de jogo. — O bom licor fazia que seus clientes
fossem mais simpáticos que de costume e se acreditassem mais atraentes do que eram em realidade.
A zona de jogo não era um bom lugar para uma dama que não desejava a atenção dos homens.
— O avô de Luke o conhecia, lembro-me vagamente que eu o conheci na residência de
Claybourne; mostrei meu medalhão.
— Que medalhão?
Que continha uma foto em miniatura de sua mãe. A noite que ela o vendeu, o deu enquanto
dizia:
— Nunca esqueça o muito que te amo Jack.
Queria. Ele nunca soube o que tinha feito para perder seu amor. Com o tempo, deixou de
perguntar-se. Começou a empregar toda sua capacidade mental em sobreviver.
O dia que conheceu Lovingdon, Jack estava no jardim de Claybourne, contemplando o rosto de
sua mãe, absorto na miniatura. Estava tentando determinar se ela se sentiria decepcionada de que
não aproveitasse o que estava oferecendo o conde. Odiava estar naquela casa elegante. Recordava a
outra...
Jack negou com a cabeça.
— Não importa. Tinha pensado que talvez você tivesse falado com ele alguma vez na casa de
Claybourne.
— Não que eu recorde.
— Não acredito que tenha importância. O que sim é importante que saiba é que aceitei ser o
tutor de seu filho, por isso não estarei por aqui tanto como de costume.
— Por que você?
— Essa parece ser a pergunta que se faz todo mundo, e de novo tenho que dizer que não tenho
nem a mais remota ideia.
— Acredito que será um tutor excelente.
Jack riu. Apesar de ter se criado na rua, Frannie ainda via os meninos de Feagan com muita
inocência. Sempre acreditava que neles havia bondade; embora esta estivesse enterrada a tanta
profundidade que nem eles mesmos fossem capazes de encontrá-la.
— Vai explicar ao Luke sua nova situação? — perguntou Frannie.
— Já fiz. Fui à casa dele faz um momento. — Entrecerrou os olhos. — Não estou certo de que
me tenha perdoado por estar envolvido na morte de seus pais. — Só tinham passado dois meses
desde que seu amigo descobriu a verdade sobre aquele fatídico dia; aquele dia que, vinte e cinco anos
atrás, mudou a vida de todos eles.
— Não foi sua culpa. Você só era um menino. Não sabia que intenções tinham aquele homem
quando te pagou para enganá-los e que o seguissem até aquele beco.
Isso era o que Jack tinha explicado, e não era do tudo falso. Quando ocorreu, não sabia o que se
propunha aquele homem exatamente, mas sim sabia reconhecer o mal quando o tinha ante os olhos.
Entretanto, ignorou suas suspeitas porque queria os seis peniques. Jamais conseguiu livrar-se dos
remorsos. Esperava que não ocorresse o mesmo com o trato que tinha fechado naquela noite.
— Será melhor que me ponha a trabalhar. Tenho que resolver algumas coisas para, amanhã pela
manhã, poder me dedicar a pôr ordem em alguns assuntos de minhas novas posses.
— Suponho que deveria te felicitar — disse ela com doçura.
Jack era incapaz de desfazer do mau pressentimento que o perseguia.
— Melhor que me dê as condolências. — Lhe piscou os olhos um olho. — Boa noite, Frannie.
Dirigiu-se ao corredor, entrou um momento em seu escritório para pegar seu tabaco e seu
cachimbo, e seguiu andando em direção à porta que levava fora. Saiu e se deixou envolver pela noite.
A névoa era cada vez mais espessa e mal se podia ver nada. Jack se perguntou se também teria névoa
no campo. Em algum momento teria que inspecionar as propriedades de seu protegido. Poderia
resultar interessante. Ele só conhecia Londres, mas isso sim, conhecia muito bem.
Apoiou-se na parede, encheu o cachimbo, acendeu-o e começou a aspirar até que o envolveu a
agradável fragrância do tabaco. O que fumava agora era muito melhor que o de quando era um
menino. Entretanto, aquela fragrância evocava um tempo em que a vida era mais singela; o único
que tinha que fazer naquela época era conseguir certo número de bolsas ao dia.
Embora Jack não se conformasse com a seda: preferia os relógios, as jóias e todo tipo de objetos
brilhantes que se cotavam a um preço muito mais alto. Nem sempre levava recompensa ao Feagan.
Tinha conseguido seus próprios contatos. Se o avô de Luke não o tivesse acolhido, estava
convencido que teria acabado dirigindo uma turma de meninos ladrões que tivesse rivalizado em
notoriedade com a de Feagan. Essa tinha sido sempre sua meta. Queria ser o mais famoso, queria
que se escrevessem canções sobre ele e ser o protagonista de muitas lendas.
Tinha planejado passar seu futuro ensinando os meninos a roubar com mestria. E agora se
supunha que devia ensinar a um menino a ser honrado, a ser um homem íntegro que o dia de
amanhã se sentaria na Câmara dos Lordes e ajudaria a governar uma nação.
Capítulo Cinco

Henry Sidney Stanford, sétimo duque de Lovingdon, sabia que estavam esfriando a papa. Ele
odiava a papa fria, porque adquiriam uma textura viscosa e não gostava de sentir como se deslizavam
por sua garganta. Tinha medo de engasgar-se com a comida e morrer.
Ultimamente o tema da morte o tinha deixado muito preocupado.
Em realidade, não acabava de entender. Só sabia que seu pai tinha morrido e que o tinham
colocado em uma caixa muito bonita; como fazia sua babá com os brinquedos com os que ele já não
brincava. Então, não havia tornado a ver seu pai. Mas sua babá o tinha advertido que se comesse
muito rápido podia engasgar e morrer.
Não tinha nenhuma intenção de comer depressa, mas estava muito nervoso e se sentia como se
tivesse tragado a bola com a que jogava com seu pai de vez em quando. Era por culpa daquele
homem. Que estava na carruagem. Que tinha ido procurar a sua mãe a noite anterior. Agora estava
em seu quarto, andando acima e abaixo e observando tudo. De vez em quando, pousava os olhos
sobre Henry e então a bola que este tinha alojada na garganta se fazia ainda maior.
— Quanto tempo faz que é sua babá? — perguntou o homem.
— Comecei pouco depois que nasceu, milord, quero dizer..., senhor — respondeu a babá de
Henry, ao tempo que fazia uma pequena reverência.
A mãe do Henry a chamava Helen, mas o menino devia chamá-la senhora Tuppin. Entretanto,
Henry sempre gaguejava ao dizer seu nome e ela golpeava seus dedos com um pequeno pau que
tinha escondido no bolso da saia. Por isso evitava dizer o nome da babá a menos que fosse
absolutamente necessário.
Só batia quando não havia ninguém. Henry sabia que era porque ela se preocupava com ele e o
fato de que não fosse um bom menino era seu segredo. A babá não queria bater, mas não dava outra
opção. Henry tampouco entendia isso. Só o que sabia era que não queria que sua mãe soubesse que
fazia coisas pelas que a babá tinha que bater. Sua mãe acreditava que era um bom menino e, embora
não fosse verdade, queria que continuasse pensando para que continuasse querendo-o.
— Então, esse é seu quarto durante o dia? — perguntou o homem.
— Sim, senhor.
— E onde estava dormindo ontem de noite?
— No que que utiliza as noites, senhor.
— E quando mudará lorde Henry a um quarto normal?
— Não é lorde Henry, senhor. Na realidade, nunca foi até agora. Antes era lorde Ashleigh. É
obvio, agora é duque. Sua excelência.
— Claro. E quando mudará seu muito ilustre a um quarto normal?
— Quando tiver oito anos.
— Já vejo que há normas até para as crianças.
— Sim, senhor. — A senhora Tuppin observou Henry. — Nem sempre gostam delas, mas
devemos seguir.
— Você gosta das normas, Henry? — perguntou o homem.
Ele pousou os olhos no bolso da saia de sua babá onde ela guardava a vara da qual não podia
falar com ninguém e negou com a cabeça.
O homem riu.
— Bom menino. Acredito que vamos nos dar muito bem.
O homem era alto, igual o seu pai. Supunha-se que, como seu pai tinha morrido, todos deviam
vestir de negro, mas aquele homem usava um colete de um tom violeta muito escuro. Henry se
perguntou se devia explicar aquela norma.
Viu-o pegar uma cadeira, virá-la e sentar-se escarranchado no assento, apoiando as mãos sobre o
respaldo. Henry jamais tinha visto ninguém se sentar assim. Estava certo que era incorreto sentar-se
daquela forma, mas a senhora Tuppin não o atiçou com a vara. Pode ser que tivesse medo dele.
— Sabe quem sou Henry?
Ele assentiu e logo negou com a cabeça. Tinha uma ligeira ideia. Aquele homem fazia zangar-se a
sua mãe, mas ele tinha visto o modo em que a agarrava em braços, com muito cuidado. E a tinha
tocado como se gostasse tanto dela como ele mesmo gostava.
— Meu nome é Jack Dodger, mas pode me chamar Jack.
— Senhor, não pretendo me misturar, mas isso não seria adequado e o menino poderia adotar
um mau hábito — disse a senhora Tuppin. — Deveria chamar senhor Dodger e, se me permitir o
atrevimento, acredito que você deveria dirigir-se a ele como sua excelência.
— Olhe, encanto, eu não sou alguém que se atenha a muitas normas e o certo é que já adquiri
algum ou outro mau hábito. — Não deixava de olhar a Henry enquanto falava. — Já temos algo
em comum, menino. Tampouco eu gosto das normas. Seu pai me pediu que fosse seu tutor. Sabe
o que é um tutor?
Ele negou com a cabeça.
— É uma pessoa que protegerá você. Se alguma vez alguém te fizer mal, só o que tem que fazer é
me contar e eu farei com que essa pessoa nunca volte a te machucar.
Henry olhou à senhora Tuppin. Estava apertando os lábios da mesma forma que fazia quando
batia. Logo voltou a olhar para o homem.
— Sinto muito que seu pai tenha morrido— disse Jack.
— Seu p-pai também está morto?
— Provavelmente. A verdade é Henry, que eu nunca conheci meu pai. Assim olhe, já temos outra
coisa em comum. Nenhum dos dois tem pai.
— Vol-voltará algum dia?
Jack arqueou uma sobrancelha.
— Quem? Seu pai? O menino assentiu.
Jack pareceu entristecer de repente.
— Não menino, não voltará. Mas me pediu que cuidasse de você, assim se precisar de algo... —
começou a levantar.
— Um cãozinho! — espetou Henry. Jack parou.
— Quer um cãozinho?
Henry assentiu a toda pressa. Jack piscou.
— Tentarei me encarregar disso.
Quando saiu do quarto, Henry olhou à senhora Tuppin. Tinha os olhos cravados na porta e se
mordia o lábio inferior com tanta força que parecia que se estivesse concentrando muito em algo.
— Coma a papa, Henry.
Apesar de que a papa estava viscosa, fez o que tinha ordenado, porque já havia colocado a mão
no bolso.

Olívia se estirou sob os lençóis. Ainda doía a cabeça, tinha a garganta seca e ardiam os olhos. O
láudano a tinha ajudado a dormir, mas não tinha servido para aliviar as consequências do luto.
Perguntou-se quanto tempo continuaria sentindo-se daquela forma.
Então a sensação de letargia desapareceu e recordou horrorizada que se sentou ao descobrir os
detalhes do testamento de seu marido. Sentou-se rapidamente na cama e se agarrou a dolorida
cabeça com as mãos. A cabeleira caiu sobre os ombros. Quando tinha soltado o cabelo? Tinha se
deitado na cama sem fazer uma trança? Então, seus olhos pousaram nos grampos perfeitamente
alinhadas sobre a mesinha de noite.
Mas não era sua mesinha de noite. Deus..., não estava em sua cama.
Observou o quarto com crescente terror. Era o quarto de seu marido.
Antes daquela noite, só tinha entrado uma vez naquele dormitório. Foi em um absurdo intento de
seduzir ao seu marido, quem, inclusive um ano depois do nascimento de Henry, não havia tornado a
procurar sua cama. Olívia pensou que talvez não se desse conta de que estava completamente
recuperada do parto e que podia voltar fazer frente a seu dever como esposa. Mas descobriu que ele
já não a desejava. Já tinha o herdeiro que tanto queria. Tinha olhado-a com lástima e ela temia tê-lo
olhado com desespero. Não estava muito certa de como tinha conseguido armar do valor para ir
buscá-lo. Ele jamais tinha sido um homem carinhoso na cama. Talvez Olívia o tenha feito porque
uma breve carícia era melhor que nenhuma. Lovingdon nunca tinha sido um homem muito
apaixonado.
Não tinha nada a ver com Jack Dodger.
Ao pensar nisso acelerou o coração. Tinha olhado-a de uma forma... Parecia conhecer todos e
cada um de seus desejos secretos e ser perfeitamente capaz de satisfazê-los. O fogo que havia em
seus olhos a tinha feito estremecer, não de frio, mas sim pelo muito que desejava que um homem a
olhasse com desejo. Ela sempre tinha sido a boa filha, a boa esposa, a boa mãe, a boa mulher. O
dever acima de tudo. Mas de repente sentia que estava pedindo muito. O que pretendia Lovingdon
ao colocar Jack Dodger em sua vida?
E como tinha chegado ela até sua cama?
Céu santo, talvez não fosse seu marido quem havia se tornado louco a não ser ela. Não se
lembrava de como tinha chegado ali. Estava completamente vestida, embora sem sapatos. Recordava
ter tomado uma pequena quantidade de láudano para aliviar sua dor de cabeça e então ter ido ler
para Henry. Depois, supunha-se que devia reunir-se com o senhor Dodger para convencê-lo de que
o melhor para todos era que os deixasse partir para o campo. Só tinha querido uma breve pausa
antes de enfrentar a ele. Tinha fechado os olhos...
E agora estava ali.
A teria levado Jack Dodger até ali? A teria deitado ele em sua cama? Teria se aproveitado dela?
Não tinha a sensação de que ninguém a houvesse tocado. Não sentia nada anormal entre as pernas.
A verdade era que, depois de quase seis anos de não ter tido contato com nenhum homem, saberia
se tinha se deitado com um. Teria alguma pista. Como não havia nenhuma, só podia deduzir que se
o senhor Dodger a tinha levado a sua cama, não tinha ocorrido nada inapropriado entre eles. Tinha
mantido sua palavra. Quem ia dizer.
Olívia não sabia se, se sentia aliviada ou decepcionada. Que tipo de necessidade estava nascendo
nela?
Flexionou as pernas e apoiou a fronte nos joelhos. Não queria confrontar o dia que tinha pela
frente. Queria fugir. Para o campo. Um campo de erva verde e flores amarelas. Queria tirar os
sapatos e dançar descalça. Queria rir. Era incapaz de recordar a última vez que sorriu. Só tinha vinte
e cinco anos, mas ultimamente se sentia como se tivesse cem.
Queria voltar a perder-se sob os lençóis e dormir de novo para, ao despertar, descobrir que a
leitura do testamento de seu marido não tinha sido mais que um sonho. Mas o dever a chamava.
E Henry. Céu santo, e se o senhor Dodger tinha decidido tomar suas responsabilidades a sério e
tinha ido procurar Henry? Tinha que ir ver como estava seu filho. Desceu da cama e se dirigiu à
porta. Abriu-a e apareceu a cabeça para dar uma olhada. Não havia nem rastro do espantoso senhor
Dodger.
Deslizou pelo corredor em direção ao quarto de seu filho. Para seu imenso alívio, Henry estava
sentado à pequena mesa, comendo a papa do café da manhã.
— Está tudo bem, meu amor? — perguntou. Ele assentiu.
— O ho-homem disse que poderei ter um ca-cãozinho.
— O homem? Que homem? Um cãozinho?
— O senhor Dodger, sua excelência — explicou Helen. — Esta manhã esteve um momento com
o jovem duque.
A Olívia quase para coração.
— Você os deixou sozinhos?
— Não, sua excelência. Na realidade, o senhor Dodger insistiu em que ficasse para que pudesse
informar a você de algo que queria saber sobre sua visita.
— OH, muito bem. — Seu coração voltou a pulsar com normalidade - Isso é muito considerado
e inesperado por sua parte.
— Não tem nada a ver com o que eu esperava.
— A que se refere?
— Bom, não acredito que haja nenhuma só pessoa que não tenha ouvido falar de Jack Dodger. É
um homem muito famoso em algumas partes de Londres. Mas esta manhã me pareceu bastante
simpático.
— Disse palavrões?
— Não, só perguntou ao jovem duque se precisava de algo. — Sorriu. — E é obvio que
respondeu que queria um cachorrinho, porque já está pedindo-o há vários meses. O senhor Dodger
disse que tentaria encarregar-se disso.
Olívia amaldiçoou a ambiguidade daquele homem enquanto entrava na sala e se ajoelhava junto a
seu filho.
— Carinho, isso não significa que vai te dar um cãozinho.
— M-mas me disse isso.
— Suas palavras significam que talvez o faça, mas provavelmente não seja assim, porque os
passarinhos dão muito trabalho.
— Eu cu-cuidarei muito be-bem dele.
— Já sei que o faria. — Suspirou. — Falarei com ele sobre este assunto.
Henry esboçou um doce sorriso e ela o abraçou com força. Era tão bonito... Estava certa de que
mudaria muito sob a tutela de Jack Dodger.
— Agora tenho que ir vestir-me.
Foi a seu quarto e puxou da corda para chamar Maggie. Sua donzela já havia tornado a pôr em
seu lugar as coisas que tinha preparado para a precipitada fuga da noite anterior. Olívia viu seu livro
encadernado em pele sobre a escrivaninha de seu quarto. Tinha-o posto com as coisas que queria
levar ao campo porque desejava lê-lo atentamente quando chegassem ali. Aproximou-se da mesa e
abriu a tampa de pele. Tudo estava meticulosamente cotado e acompanhado de precisas descrições...
Ficou sem fôlego ao ler as palavras escritas na primeira página. Soltou um furioso grito afogado
justo quando Maggie entrava na sala.
— Sua excelência...
— Onde está o senhor Dodger? — perguntou sem vacilar.
— No salão de dia.
— Ajude-me a me arrumar, rápido. Tenho algumas coisas que dizer.

— A carruagem é de meu filho!


Jack levantou a vista da página do registro que estava lendo enquanto desfrutava de um
estupendo café da manhã. A duquesa tinha irrompido no salão, furiosa. E zangada estava
arrebatadora. Por que não se deu conta disso a noite anterior? Ou seria que um bom descanso
noturno tinha tingido as bochechas de um ligeiro rubor e levou qualquer rastro de fadiga? Desfez-se
mentalmente de seu feitiço e ficou em pé.
— Bom dia, Olívia. Dormiu bem?
— Não me fale nesse tom.
— Como? Com cordialidade? Pensei que gostaria.
— Com inocência. Não finja ser inocente. — dirigiu-se para dele golpeando seu próprio livro
com os dedos enquanto caminhava. — Ontem me acusou de tentar roubar, quando sabia
perfeitamente que a carruagem é de meu filho.
— Temo que não soubesse. Também está em meu relatório.
— Mostre então.
Ele a olhou entrecerrando os olhos.
— Não penso fazer isso.
— Está na primeira página deste livro. Se não me mostrar o seu, assumirei que mentiu
conscientemente e informarei isso ao senhor Beckwith que, sem dúvida, reconsiderará se pode dar
valor ou não a esse primeiro testamento.
Jack a levaria aos tribunais antes que pudesse fazer tal coisa.
— Mostre-me o seu... e eu mostrarei o meu — a desafiou em voz baixa.
Olívia o observou durante uns segundos; parecia ver algo mais em suas palavras e não estava
seguro de se seria muito bom que advertisse segundas intenções nele. Jack não estava acostumado a
seduzir mulheres para levá-las à cama. Pagava pelas mulheres que queria e elas só esperavam que
fosse o preço marcado. Mas com a duquesa tinha a incômoda sensação de que havia algo mais entre
eles e que isso o podia levar por um caminho que não desejava seguir.
Ela pareceu decidir-se: deixou cair seu livro sobre a mesa, abriu a coberta e assinalou a primeira
página.
— Aqui.
Jack deixou de olhar a expressão de triunfo da duquesa e pousou os olhos naquelas palavras
escritas com tanto esmero.
— Carruagem negra com o brasão do ducado. Ah, já vejo.
— E o que é que vê exatamente?
— É evidente que houve um engano. O duque listou o veículo em ambos os informes.
— Conhecendo meu marido como o conhecia, acredito que isso é impossível. Lovingdon era
meticuloso e preciso em todos os aspectos de sua vida.
— Também quando se deitava com sua mulher?
Embora o tenha olhado com fúria, o rubor tingiu suas bochechas. Estava envergonhada pela
pergunta que tinha feito ou pela precisão de sua dedução?
— Provoca-me com o propósito de me distrair. Nenhum homem decente faria uma pergunta
assim a uma mulher.
— Tal como já deixamos bem claro, a mim o decente aborrece muito.
Jack a ouviu dar golpes com o pé no chão e teve a sensação de que queria voltar a bater. Para
falar a verdade, desejava que o fizesse. Ele merecia. Em que diabos estava pensando para fazer uma
pergunta tão íntima? Que importância tinha como tratava Lovingdon a sua mulher na cama? Se Jack
não se conhecesse, pensaria que estava sentindo um pouco de inveja.
Olívia deixou de golpear o chão com o pé.
— Já mostrei o meu; agora, me mostre o seu.
— Meu relatório? — perguntou ele.
— É obvio estúpido. Acaso estamos falando de outra coisa?
— Não sei Olívia. Mas me ocorrem coisas muito mais interessantes que mostrar um ao outro que
nossos informes.
— A outra noite me enganou, senhor. Eu adoraria saber o motivo. Ele suspirou, passou algumas
páginas de seu registro e assinalou.
— Aqui o tem. Foi um equívoco honrado. Ela desceu o olhar.
— Charrete? Como pode confundir uma charrete com uma carruagem? A charrete é menor, só
cabem duas pessoas...
— Não me dei conta, pensava que era o mesmo.
— Não acredito que esteja tão mal informado, mas em qualquer caso, agora que sei que a
carruagem é de Henry, posso utilizá-lo quando me agradar sem temor a ser presa por roubo.
— Na realidade não pode. Como tutor de Henry, também sou responsável por todas suas
propriedades.
— Mas o senhor Beckwith deu o livro de registro a mim — apontou ela.
— Para que saiba o que herdará seu filho quando fizer os vinte e um anos, mas não porque tenha
recaído em você o cuidado de nenhuma dessas coisas.
Essa pequena derrota a fez fraquejar, mas Jack não desfrutou nisso. Em realidade, sabia que a
duquesa seria muito melhor tutora para seu filho que ele. Ela brigaria até a morte por protegê-lo,
enquanto que Jack só brigaria até sangrar. Entretanto, suas finanças era um assunto completamente
diferente. Duvidava muito que ela estivesse preparada para cuidar desse assunto.
— Não pode ganhar; eu tenho todo o poder.
Essas palavras pareceram reavivar as vontades de Olívia de vencê-lo.
Ficou reta e levantou a cabeça.
— É você o homem mais irritante que tive a desgraça de conhecer.
— Então, é evidente que não conheceu muitos, Olívia.
— Não recordo ter dado permissão para que se dirija a mim desse modo tão familiar.
— Ah, não? Foi você quem me pediu que não a chamasse por seu título, portanto, só posso fazê-
lo chamando-a por seu nome.
— Senhor Dodger...
— Se tivesse pai, ele seria o senhor Dodger, mas como nunca o tive, não existe nenhum senhor
Dodger. Pode me chamar de Jack.
Olívia era incapaz, absolutamente incapaz de dirigir-se àquele homem com tanta confiança. Além
disso, não tinha acreditado nem por um segundo que ele pensasse de verdade que uma carruagem
que levava o brasão do ducado fosse de sua propriedade. Conseguia tirá-la do sério com muita
facilidade. Agarrou seu registro, se virou e se dirigiu para o outro extremo da mesa, tomou assento e
deixou o livro que estava certa de que a voltaria louca antes que Henry tivesse alcançado a maior
idade. De repente, a ideia de dar as costas à etiqueta e casar-se antes do permitido, começou a
parecer muito mais atraente.
Precisava recuperar as forças antes do próximo assalto, assim, se aproximou da mesa auxiliar e se
serviu de ovos quentes, torradas e presunto; embora teve que fazê-lo com a absoluta consciência de
que o olhar de Dodger não perdia nenhum só de seus movimentos. Encolheu o estômago ao pensar
que teria que passar todo o período de luto na presença daquele homem. A dor de cabeça voltou
com força e teve que esforçar-se para permanecer de pé. Assentiu ao lacaio que esperava junto à
mesa auxiliar antes de retornar à mesa onde, um segundo lacaio, puxou a cadeira ante o atento olhar
do mordomo. Normalmente, a presença dos serventes não a incomodava, porque seu marido e ela
não costumavam falar de nada que não concernisse ao tempo.
Muito temia que não pudesse dizer o mesmo dos temas de conversa que pudesse escolher o
senhor Dodger. Talvez ela pudesse insistir em que se limitasse a falar de Henry.
O senhor Dodger se sentou com os elegantes movimentos de um predador que se posiciona à
espera da oportunidade de saltar sobre sua presa. Deu a sensação que, embora ele voltasse a centrar
sua atenção em seu relatório, nada naquele homem era como parecia. Estava completamente atento
a tudo quanto ocorria a seu redor. Todo mundo sabia que tinha sobrevivido à vida na rua, e Olívia
imaginava que sua sobrevivência se devia à perspicácia de seus sentidos. Lovingdon sempre tinha
dado a impressão de estar distraído enquanto lia o periódico. Ela estava convencida que as distrações
eram tão alheias a Jack Dodger como seguir as normas sociais.
Bebeu um gole de seu chá quente e se armou de coragem para o seguinte combate. Não é que
tivesse nenhum interesse especial, mas pelo bem de seu filho queria garantir que seu tutor
entendesse que não podia brincar com as crianças como brincava com os adultos.
— Senhor Dodger.
— Por favor, duquesa: Jack.
Seu tom zombador não deixava a mínima dúvida que não tinha nenhum respeito por seu título.
— Se insistir em que o chame por seu nome, então me verei obrigada a deixar de utilizar qualquer
apelativo para me dirigir a você. Talvez possa fazer a mim o mesmo favor — sugeriu ela, adotando
um tom inócuo.
— Mas eu gosto de chamá-la de alguma forma. Embora tenha que confessar que não me parece
que tenha cara de Olívia. Não tem algum diminutivo? — perguntou ele.
— Não. Trocando de tema... Prometeu um cão a meu filho.
Ele inclinou a cabeça para um lado. Não se incomodava em esconder o muito que estava se
divertindo.
— Está me corrigindo?
— Não me consultou sobre isso.
— Sou seu tutor. Não tenho por que discutir nada referente a seu filho com ninguém.
Oh, sua petulância a punha de cabelos em pé.
— Você tem ideia do trabalho que dá um cão?
— Bom, vi-os perseguir os ratos.
Olívia pensou que se tivesse comido algo do que tinha no prato, teria o risco de vomitá-lo.
— Além de que o tema é completamente inapropriado para o café da manhã, o que tem haver
isso com os cães?
— Que os cães perseguem os ratos. E vi o cuidado que os donos dedicam a seus cães. Tratam-
nos como se pertencessem à realeza. Assim sei perfeitamente o trabalho que dá cuidar dessas
criaturas.
— E, quando morrer, como superará?
— Comprarei outro.
Ela suspirou profundamente.
— Quando se ama alguém e o perde não se pode substituir tão facilmente.
Sentiu o peso do olhar do Jack enquanto dava uns golpes a uma página do maldito registro.
— É assim que se sente com respeito ao seu marido?
— Não penso falar sobre meus sentimentos com um homem que não duvidaria em utilizá-los
conta mim. — Levantou as mãos para dar o tema por resolvido. Jamais falaria do que sentia. —
Prometeu um cão ao meu filho, mas não o conhece. É um menino muito sensível. Devo insistir em
que, de agora em diante, consulte-me todas as decisões que pretenda tomar em relação com Henry
antes de comunicar a ele.
Ele a estudou e teve a sensação de que podia adivinhar seus sentimentos sem que ela os
expressasse; parecia tão hábil dissimulando as emoções das pessoas como esvaziando seus bolsos.
— Não pensei que se zangaria tanto. Não se preocupe, não conseguirei nenhum cão.
Voltou a centrar sua atenção no livro, como se o assunto tivesse ficado resolvido simplesmente
porque ele assim tinha decidido.
Olívia não sabia se, se sentia aliviada porque já não teria nenhum cão ou zangar-se ao ver quão
rápido aquele homem esquecia as promessas que fazia a seu filho. Quando falou sobre o assunto,
não estava muito certa de como queria que desistisse; achava que o que pretendia era que ele se
desse conta que não tinha nem ideia de como cuidar de seu filho. Ao contrário de muitas mães, ela
não queria ser uma simples testemunha da vida de seu filho. Em realidade, por sua vez ela já tinha
discutido com Lovingdon sobre a necessidade de contratar a uma babá. Olívia sabia que todos os
meninos da aristocracia eram criados por babás, mas não estava muito de acordo com essa norma.
Ela queria ter um papel mais ativo, e agora aquele homem estava ameaçando afastando-a por
completo da vida do Henry.
— Ontem à noite disse você que era uma pessoa de palavra. Jack levantou a cabeça e a olhou
desafiante.
— Sou quando me convém.
Olívia queria gritar. Estava acostumada a relacionar-se com cavalheiros, não com descarados que
mudavam de opinião conforme convinha.
— Não pode romper a promessa que fez.
— Decida-se. Quer que tenha o cão ou não?
— Eu não quero que tenha um cão, mas seria muito pior se quebrasse sua promessa. A confiança
é algo muito frágil e se o fizer estará ensinando que as promessas não têm nenhum valor.
— Normalmente não têm.
— Talvez em seu mundo, senhor Dodger. Mas no nosso não é assim.
— Jack.
Não estava prestando atenção. Por que estava se incomodando em discutir com ele? No final,
igual a todos os homens, faria o que desse vontade.
— Podemos mudar de tema?
— É obvio. Que assunto tem em mente?
— Ontem à noite tinha que me reunir com você na biblioteca...
— Assim é. Prometeu.
— Não prometi — espetou ela.
— Disse que faria. Em meu mundo, quando alguém diz que vai fazer algo, a promessa está
implícita.
Oh, palpitava tanto a cabeça que estava começando a sentir a necessidade de voltar para a cama e
esconder-se sob os lençóis.
— Tem razão. Adormeci. Sinto muito.
— Sempre toma láudano antes de ir dormir?
— Como sabe que tomei?
— Pude cheirá-lo em seu fôlego.
Um frio pavor percorreu as veias quando pensou em tudo o que implicava essa afirmação.
— Esta manhã despertei em, bom, não despertei em minha cama e não recordo como cheguei
até ali. Acaso você...? — envergonhou-se e olhou os serventes. Não parecia que estivessem
prestando atenção, mas sabia muito bem que não eram surdos. Inclinou-se para frente com a
esperança de que Dodger pudesse ouvi-la embora falasse em voz baixa, mas a mesa era muito longa.
Por que precisavam ter uma mesa tão longa naquele salão? Não estavam acostumados a receber
convidados ali.
— Acaso eu...? — insistiu ele. Ela voltou a olhar a seu redor.
— Pedimos aos serventes que se vão?
— Não acredito que haja nenhuma necessidade. Se não o entendi mal e segundo uma espécie de
código dos serventes, têm proibido falar sobre nossas coisas, inclusive entre si.
— Sim, bom... — Olívia voltou a olhar ao redor.
— Quando vi que não vinha, tal como tinha prometido, fui procurá-la.
— Já vejo. Suponho que me encontrou. Jack esboçou um lento sorriso.
— Isso mesmo. Como me pediu que não entrasse em seu quarto, não ficou mais remédio que
levá-la ao meu.
Disse como se tivesse feito algo digno de admiração. Olívia não tinha nenhuma dúvida de que ele
costumava a levar mulheres a seu dormitório cada dia; bom, cada noite.
— Aproveitou você de mim? — espetou- .
— Acredite em mim, duquesa, se tivesse feito, lembraria.
A repentina intensidade de seu olhar a desconcertou e teve a sensação de que estava imaginando
que a tinha em sua cama e que fazia coisas que seriam muito mais memoráveis que nada do que
tinha experimentado com Lovingdon. Era inquietante pensar que Jack Dodger a tinha pego em seus
braços, que a tinha apertado contra seu peito, tinha-a deitado na cama e tinha soltado o cabelo...
Porque agora já não tinha nenhuma dúvida de que ele era o culpado de ter tirado os grampos. Mas
quando imaginava deslizando-se entre os lençóis com ela...
Olívia desceu o olhar e o fixou em seu prato; queria esconder a vergonha que sentia por desejar
saber o que seriam capazes de fazer aqueles hábeis dedos.
— Depois de deixá-la na cama fui ao clube. Pergunte ao Brittles. Foi quem preparou minha
carruagem, ou o que eu pensava que era minha carruagem.
Olívia olhou o mordomo. Embora se supunha que não devia estar escutando a conversa, assentiu
brevemente. Ela se obrigou a olhar Dodger nos olhos.
— Não era necessário que me levasse à cama.
— A cama em que você adormeceu era muito pequena. Conheço muitas mulheres que se
sentiriam muito agradecidas pelo que fiz.
— Não me cabe nenhuma dúvida — replicou. — Mas eu não sou uma delas. — esfregou a testa.
— Peço que me desculpe. Não estou acostumada a ser tão difícil. — Não é que se considerasse uma
mulher difícil absolutamente, mas duvidava muito que ele fosse a acreditar. Os últimos dias forram
exaustivos, senhor...
— Jack.
Ela tragou saliva. Não queria aceitar a confiança que estava oferecendo, mas estava muito cansada
para discutir com ele.
— Jack.
— Muito bem. Não foi tão difícil, foi? — levantou-se. — Como os últimos dias foram tão
exaustivos sugiro que desfrute de um café da manhã tranquilo e, quando tiver acabado, venha à
biblioteca para que possamos falar da insólita situação em que nos deixou seu falecido marido.
Olívia o olhou com surpresa enquanto ele pegava seu livro negro e saía do salão. Era incapaz de
compreender que uma parte dela não gostasse que partisse, mas pensou que só sentia isso porque
tinha que ficar a sós com seus pensamentos.
E eram pensamentos muito estranhos. Por um momento, quando entrou no salão, teve a
sensação de que quem a recebia era seu falecido marido. Tinha sido uma visão motivada pela luz da
manhã que penetrava pelas janelas. Ela não estava acostumada a ver aquele salão tão iluminado.
Lovingdon sempre tinha preferido manter-se isolado do mundo. Pelo que Olívia sabia, antes de
casar-se com ela, jamais tinha permitido que abrisse nenhuma das cortinas e nenhuma das persianas.
Aquela tinha sido uma casa muito sombria, que fazia eco do melancólico caráter de seu dono. Tinha
chegado inclusive a pedir a Olívia que limitasse seu desejo de iluminar os cômodos que não ia com
assiduidade.
Ela tinha pensado que Jack - não, não podia pensar nele como Jack— também preferiria estar
rodeado de sombras.
Capítulo Seis

Jack estava de pé junto à janela e observava seu cuidado jardim. Seu jardim, que podia contemplar
através da janela de sua biblioteca. Tinha a intenção de estudar a fundo o registro, mas era incapaz
de concentrar-se.
Não estava preparado para as sensações que tinha despertado nele o som de seu nome na boca da
viúva. Tinham sentido o desejo de pedir que voltasse a dizer. Tinham dado vontade de aproximar-se
dela e sussurrar ao ouvido para que os serventes não pudessem ouvi-los. Queria saber por que não
queria que seu filho tivesse um cão. Queria perguntar o que sabia sobre corações partidos.
Ficou hipnotizado ao ver como a luz do sol arrancava reflexos vermelhos de seu cabelo castanho
e não tinha podido evitar lembrar-se do que sentiu a noite anterior, quando notou o peso de seus
cachos na mão. Alegrava-se muito do desdém que demonstrava, porque graças a isso ele conseguia
manter seus desejos a raia.
Apoiou o ombro no afiado marco da janela. Olívia tinha estremecido ao ouvir como pronunciava
a palavra duquesa, mas o tom que ela empregava não era muito diferente. Para Jack não passou
despercebida a censura que tingia sua voz cada vez que o chamava senhor Dodger. A viúva sabia o que
era tão bem como ele: o filho bastardo de uma prostituta, que jamais conheceu seu pai; e,
provavelmente, sua mãe tampouco chegasse a conhecê-lo muito.
Ouviu a porta que se abria, mas ficou onde estava. Os passos de Olívia eram mais audíveis à
medida que se aproximava e em seguida percebeu sua suave fragrância. Não queria nem pensar em
como seria agradável descobrir as secretas partes do corpo nas quais aplicava o perfume. Parou em
frente a ele. A maldita luz do sol se refletia em seu cabelo, provocando nele um incrível desejo de
acariciá-lo, de afundar os dedos em sua cabeleira e não fosse nem de longe tão cuidadoso como
tinha sido na noite anterior quando tirou os grampos.
— É verdade que não sabe quem é seu pai? — ela perguntou em voz baixa.
Esse tema já fazia bastante tempo que tinha falado dele e Jack não via a necessidade de voltar a
ele, embora de repente pensasse que possivelmente Olívia tinha estado pensando tanto nele como
ele nela desde que saiu da sala do café da manhã. Entretanto, suspeitava que os pensamentos da
duquesa estavam mais focados em suas faltas, enquanto que ele, muito a seu pesar, estava
começando a reconhecer seus méritos.
— Acredito que é melhor que irmos aos assuntos importantes. O que sabe da babá?
Olívia, surpresa, abriu ligeiramente seus olhos dourados.
— Helen? Veio muito bem recomendada. O duque e eu sempre estivemos muito contentes com
seus serviços. Por que o pergunta?
— O menino parece muito calado.
— Os meninos devem ser calados e saber comportar-se... Ele riu com suavidade enquanto
recordava sua infância.
— Não os meninos que eu conheci.
— Você cresceu na rua, senhor Dodger. Meu filho cresce em um lar.
— E, entretanto, ele tem medo e eu nunca tive.
— Só é reservado, igual ao seu pai.
Jack conteve a necessidade de perguntar se o duque também era reservado na cama. Por que teria
tanta curiosidade pelos detalhes íntimos de suas vidas?
Ela olhou pela janela.
— A outra noite disse que mal conhecia meu marido. Como sabia sequer quem era? Acaso ia a
seu clube?
— Algumas vezes. O que sabe de meu clube?
— Que é um lugar onde se reúnem todo tipo de descarados. Ele esboçou um meio sorriso.
— Diz como se eu obrigasse às pessoas a pecarem. E não é assim.
— Mas proporciona a oportunidade de fazê-lo.
— Vê? Seu tom de voz implica, uma vez mais, que é algo mau. Não se pode deter as pessoas que
gostam de deixar-se levar. Iriam à busca dos becos mais escuros até encontrar um local de jogo, licor
ou mulheres. Se o lugar não fosse confiável, acabariam tirando todo o dinheiro que tivessem,
inclusive embora ganhassem; possivelmente perderiam até a vida. Quando comprassem uma garrafa,
não saberiam o que esta poderia conter. Às vezes não é mais que urina. — Elevou a mão para deter
os protestos que estava certo que Olívia ia fazer ante sua linguagem. — E as garotas.... Com as
garotas poderiam contrair todo tipo de enfermidades; poderiam ficar cegos ou inclusive tornarem-se
loucos. Assim, eu proporciono a esses cavalheiros um refúgio seguro onde o jogo é honrado, o licor
é o melhor que se pode tomar e as garotas estão limpas.
— Dá a impressão de que pensa que seu comportamento é nobre.
— Tal como expliquei há um momento, não se pode deter alguém que quer deixar-se levar pelos
prazeres. Por que não posso me aproveitar das debilidades de outros? Tornei-me muito rico, e a
quem tenho feito mal? — Maldita seja! Por que estava ali explicando sua vida, suas escolhas, suas
ações? Sempre tinha sabido que muita gente desaprovava sua forma de vida, mas parecia muito bem
e isso era o único que importava. Jamais tinha se preocupado com a opinião dos outros.
— Suponho que você provoca danos sem dar-se conta — disse ela. Esse era o problema de falar
com os santarrões, que nunca escutavam.
— Seja como for, não tenho nenhuma intenção de machucar seu filho.
Olívia olhou o lugar onde, no dia anterior, havia uma mesa cheia de relógios; o duque sempre
pareceu querer fazer provisão de tempo. Agora, esse mesmo espaço estava ocupado por uma grande
variedade de garrafas e decantadores que esperavam perfeitamente alinhados ao alcance da mão.
— Trouxe álcool a esta casa — comentou. A Jack não escapou seu tom de censura.
— Mas não a obrigarei a beber.
— Jamais o faria.
— Não me cabe nenhuma dúvida.
— O que tem feito com os relógios de meu marido? — perguntou ela, com tom cortante.
Por algum motivo, Jack preferia que se mostrasse brusca com ele. Talvez fosse o incentivo que
necessitava, ou possivelmente desse modo se sentisse aliviado ao saber que não tinha nenhuma
simpatia com ele. Pensava que poderia ser muito desafortunado que entre os dois se estabelecesse
certa camaradagem. Não cabia nenhuma dúvida de que Olívia sabia que em algum aspecto não eram
iguais, mas Jack sabia perfeitamente que as diferenças entre eles eram muitas.
— Agora são meus relógios. Estão na página sete de meu registro. Pedi aos serventes os repartam
pela casa como melhor pareça.
— Uma coleção não se pode considerar uma coleção se está pulverizada por toda parte.
— Importam-me um corno os malditos relógios. O que me importa é meu maldito uísque. Além
disso, o infernal ruído que faziam estava me deixando louco.
Talvez tivesse provocado o mesmo mal ao duque, embora em seu caso estivesse claro que tinham
conseguido.
Jack inspirou profundamente para recuperar a calma, mas não funcionou, porque só o que
conseguiu foi perceber a fragrância da Olívia com maior intensidade. Ele não queria que ela o
provocasse. Queria que se casasse com outro.
— Centremo-nos nos negócios, certo? — aproximou-se de seu escritório e sentou em sua
poltrona.
Ela vacilou antes de ficar bem direita e dirigir-se à poltrona que havia frente à de Jack. Se ele
tivesse sido um homem fraco, teria se sentido intimidado pelo olhar de Olívia. Era evidente que
estava decidida a manter se firme. Jack devia reconhecer o mérito por isso, e por preocupar-se tanto
por seu filho.
— Permita-me ser sincero... — começou a dizer ele.
— Está sugerindo que não foi até agora? Em meu mundo, senhor Dodger, dá-se por feito que as
pessoas falam sempre com sinceridade, por isso suas palavras não necessitam nenhuma elucidação.
— Duquesa, está pondo a prova minha paciência — grunhiu ele.
— Pois deixe que eu leve meu filho ao campo.
Jack não tinha a mínima intenção de fazer tal coisa.
— Não nesta vida.
— Acredito que facilitaria muito as coisas.
— A mim o fácil se torna muito aborrecido. Portanto, voltemos para o assunto que nos ocupa.
Em meu clube tenho empregadas mais de duas dúzias de pessoas. Não tenho que me esforçar muito
para comandá-los, nem a eles nem ao clube. Na realidade, meu negócio funciona muito bem e com
muita eficiência. Por desgraça, não sei absolutamente nada sobre como se dirige uma casa.
Olhou-a e observou uma sutil mudança em sua expressão. Deu-se conta que talvez tivesse falado
muito e, ao fazê-lo, poderia ter cedido um poder ao que não estava disposto a renunciar.
— Enquanto que eu — disse ela com uma tranquilidade que o pôs tenso, — sei tudo sobre esse
assunto.
— Supus que assim seria. Portanto, deixarei que leve a casa como melhor agradar.
Olívia sorriu e foi o mais fascinante sorriso que já viu. Esse gesto a transformou em uma moça
despreocupada. Sentiu vontade de deslizar o polegar por seus lábios; vontade de levantar-se, rodear
o escritório e agarrá-la entre seus braços.
— Não. Nesta. Vida.
A necessidade e o desejo desabaram a seus pés. Acaso ela tinha conseguido ler seu pensamento?
— Desculpe?
Olívia se levantou mostrando a confiança de uma mulher que acaba de herdar um império.
— Não penso me ocupar de dirigir a casa. Virou-se e se dirigiu à porta.
— Então, já pode ir esquentando minha cama.
Assim que acabou de dizer isso, deu-se conta de que não estava muito certo do que estava
pensando para oferecer essa alternativa, embora fosse muito atraente. Se aquela mulher conseguisse
levar a sua cama a metade do fogo que imprimia às suas palavras, estava convencido de que
passariam uma noite inesquecível.
Ela se virou muito devagar.
— Não pode falar a sério.
— Não tenho uma alma caridosa. Hoje tem um teto, roupa e comida. O teto e a comida são
meus, a roupa ainda não tenho certeza, porque tenho que localizá-la em meu registro. Você recebe
muitas coisas de mim, duquesa, sem me dar nada em troca. Se deixar que isto siga assim, isto será
um negócio muito pouco proveitoso. Se quiser continuar vivendo nesta casa, terá que ganhar esse
privilégio.
— Ganhá-lo como se fosse uma faxineira? Ou, pior ainda, como se fosse uma prostituta? —
Sentiu que a fúria se apropriava dela. — É um bastardo.
— Segundo a lei, sou mesmo.
— Como pode ser tão insensível? Acabo de perder meu marido, minha casa e, conforme a lei,
também a meu filho. Acaso é incapaz de mostrar um pouco de generosidade?
— A generosidade não é nada proveitosa.
— Isso é o único que importa? Os benefícios?
Jack amaldiçoou entre dentes. Por que ela o estava tornando tão difícil?
Olívia tinha inclinado a cabeça de um modo acusador, parecia acreditar que podia intimidá-lo
para que mudasse de ideia. Seu cabelo castanho tinha o tom de vermelho que o tornava interessante.
Jack se perguntou que aspecto teria vestida dessa cor. O negro a fazia parecer muito pálida. Mas o
vermelho, ou o violeta, um tom escuro de violeta..., como o da realeza...
Jack negou com a cabeça. Ele jamais imaginava as mulheres vestidas.
Imaginava sem roupa, não com roupa. O que estava ocorrendo?
Abriu-se a porta e apareceu o mordomo. A biblioteca era muito grande e se compunha de várias
zonas de estar, por isso Brittles demorou um pouco em cruzá-la com seus silenciosos passos. Jack
desconfiava daquela forma tão leve que tinham os serventes de deslocar-se pela casa. Uma pessoa só
andava assim quando pretendia roubar algo.
Brittles ficou ali de pé até que Jack o olhou e então fez uma pequena reverência.
— Sinto incomodá-lo, senhor, mas um inspetor da Scotland Yard deseja falar com você. O
senhor está em casa?
— Pois claro que estou em casa, homem. Não me vê aqui sentado?
Antes que Brittles pudesse responder, a duquesa limpou a garganta para intervir.
— Dizer que não está em casa é uma maneira cortês de comunicar a alguém que não quer vê-lo.
— Pensava que em seu mundo tão cortês as pessoas não mentiam.
— Em meu mundo as pessoas não são grosseiras.
Jack queria continuar discutindo, mas não pretendia fazer Brittles esperar. Resolveria aquele
assunto mais tarde com ela. Suspeitava que passaria grande parte de seu tempo discutindo sobre o
que cada um considerava correto. Voltou a centrar a atenção no mordomo.
— Claro que o receberei.
Assim que o homem saiu da biblioteca, a duquesa se dirigiu a ele.
— O que é o que tem feito?
— Preferi não mentir dizendo que não estava em casa. Pensei que aplaudiria minha honradez.
— Não, refiro ao por que veio um inspetor da Scotland Yard. Roubou alguém? Matou alguém?
— Deu um passo para frente e se aproximou. — O que tem feito para que um inspetor da Scotland
Yard tenha que vir a esta casa? Se o prenderem...
Antes que pudesse acabar de dizer o que Jack estava certo que seria a ameaça de ir correndo dizer
a Beckwith, a porta voltou a abrir. Desta vez foi James Swindler quem entrou na sala. Jack sempre
tinha se incomodado que Swindler tivesse o misterioso dom de dar a impressão de pertencer a
qualquer lugar a que ia. Estava convencido que também se sentiria completamente cômodo
percorrendo os corredores do palácio de Buckingham.
Vestia uma jaqueta de lã bege, um colete cor nata e uma gravata de um tom muito escuro de
verde que ressaltava o de seus olhos, convertendo-os em seu traço mais chamativo. Normalmente,
vestia com muita simplicidade para não chamar a atenção. Aquele não era um desses dias.
Olívia observava o senhor Swindler como se estivesse tentando decidir se era o menor dos dois
diabos que ocupavam sua biblioteca. Jack sabia que Jim faria uso de maneiras impecáveis, assim,
ficou em pé porque de repente não estava de humor para que ele levasse vantagem sobre ele nesse
assunto...
— Duquesa, me permita a honra de a apresentar a James Swindler, inspetor da Scotland Yard.
— Inspetor.
— Swindler — disse Jack, — me permita que apresente à duquesa de Lovingdon, que enviuvou
recentemente. — E além disso é um autêntico grão em meu traseiro.
Jim fez uma reverência, sem dúvida impressionando à viúva com suas perfeitas maneiras.
Resultava surpreendente que um homem tão alto e corpulento não fosse desajeitado. Era um ou
dois centímetros maior que Jack, tanto em altura como em corpulência.
— Sua excelência — a saudou com toda formalidade e, ao fazê-lo, Jack se irritou por motivos
que nem ele mesmo era capaz de compreender. Por que tinha que se importar que tratassem à
duquesa de um modo tão encantador?
Swindler centrou seu agudo olhar verde em Jack.
— Sua nota dizia que se tratava de um assunto urgente.
— Você o chamou? — perguntou Olívia.
Jack se sentiu muito satisfeito ao ver aquela surpresa expressão em seu rosto.
— Sinto muito, duquesa. Suponho que se sentirá decepcionada agora que sabe que não veio me
prender. E uma vez concluídos os formalismos... Swindler, o que vai tomar, uísque ou genebra? —
aproximou-se da mesa em que tinha suas preciosas garrafas cheias de licor. Já não se ouvia nem um
só tic-tac.
— Ainda não é nem meio-dia, Jack — disse Swindler.
— Para um homem que não permite que os horários rejam sua vida, nenhum momento é pouco
apropriado para um gole — respondeu Jack enquanto servia um copo de uísque.
— Ao contrário de você, eu sim durmo — disse Swindler. — Passo.
— Como queira. — Retornou à mesa. — Pode retirar-se, duquesa. Jack estava a ponto de sentar-
se quando ela disse: — Tendo em conta que sou eu quem dirige sua casa, parece-me importante
ficar.
Suas palavras o deixaram imóvel quando estava a ponto de sentar-se na poltrona. Não porque o
tivessem surpreso, mas sim por quão satisfeita parecia consigo mesma; dava a sensação de acreditar
que tinha conseguido alguma vitória sobre ele. Por muito que chateasse reconhecê-lo, gostava muito
que demonstrasse estar satisfeita.... Embora tampouco planejasse animar esse estado de ânimo. Jack
se deixou cair sobre a poltrona e bebeu um gole de uísque.
— Então, assumo que escolheu ocupar-se da casa em lugar de...
— Sim, isso mesmo — respondeu a toda pressa, antes de centrar sua atenção em Swindler. Jack
não gostou que o tivesse ignorado com tanta rapidez e pensou que possivelmente queria ficar
porque Jim interessava. Perguntou-se, se aceitaria casar-se com um plebeu.
— Talvez queira um pouco de chá, inspetor — disse ela.
— Isso seria estupendo, obrigado.
Olívia se virou em direção à porta e Jack se deu conta que não tinha prestado suficiente atenção a
sua retaguarda. Tinha um traseiro pequeno. Perguntou-se em que medida contribuiria as anáguas ao
ardente aspecto de seus quadris. Por que as mulheres não usavam uma roupa que oferecesse uma
visão mais realista de sua figura?
— Chá? — repetiu Jack irritado, consciente que Olívia estava muito longe para ouvi-lo. — Desde
quando bebe chá?
— É uma distração que utilizo quando tenho que pedir explicações a damas às que não gostam
que peçam explicações.
— Não pensava que você gostasse de estar distraído.
— É para distrair a elas, não a mim. Sentem-se muito cômodas servindo o chá e então me
contam coisas que não me contariam de outro modo.
Sua técnica tinha sentido. Não era de estranhar que Swindler gozasse de uma excelente reputação;
todo mundo sabia que sempre conseguia resolver seus casos. Jack estava certo que aquele homem
poderia ganhar muito mais dinheiro se aceitasse trabalhar para ele investigando assuntos privados.
Mas ao contrário que Jack, Swindler parecia ter muito pouco interesse no dinheiro.
— Não demorarão muito em servir o chá — disse a duquesa, voltando para a biblioteca com eles
e tomando assento em uma das poltronas próximas. — Tentarei não interromper.
De repente, parecia uma jovenzinha ali sentada, na ponta da poltrona, pensando que talvez
descobrisse que Jack se colocou em alguma confusão. Ele não tinha nenhuma dúvida que adoraria
vê-lo entre as grades. Mas Jack já tinha passado por essa experiência e preferiria morrer antes que
voltar a passar por aquilo. Assinalou a poltrona que tinha diante e Swindler se sentou.
Jack se inclinou para ele.
— Esta residência pertencia ao duque de Lovingdon. Em seu testamento me legou isso. Quero
saber por que.
Swindler olhou à duquesa e a estudou durante um bom momento; logo voltou a pousar os olhos
em Jack.
— Será que ela não sabe?
— Ela ficou mais surpresa que eu. Acredito que o advogado, um tal senhor Beckwith, pode saber
o motivo, mas não deixa de repetir que não está autorizado a me dizer isso Quero que vá a sua
residência a meia-noite, sequestre-o, leve-o a algum lugar escuro e perigoso, pendure-o pelos
polegares e o golpeie até que diga que já está autorizado a me dizer.
A duquesa soltou uma exclamação e ficou de pé completamente indignada.
— Não pode falar a sério! Isso é uma barbaridade. Não penso permitir que...
— Sua excelência. — Para decepção de Jack, Swindler acabou com seu magnífico teatro. — Claro
que não fala a sério.
Olívia deu um pequeno grito, mas o reprimiu em seguida, como se acabasse de recordar que era
uma dama de alto berço.
— É um desprezível senhor.
— Vamos Olívia, onde está seu senso de humor?
— Desapareceu por completo assim que você invadiu minha vida. Jack não pôde evitar sorrir ao
ver o olhar que dedicou a duquesa.
Maldição! Estava começando a achá-la muito divertida. Olívia voltou a se sentar. Como conseguia
permanecer tão direita e rígida tanto tempo?
— Viu a opinião que tem de mim? — perguntou Jack a Swindler. — Quando anunciaram que
chegava, achou que vinha me prender.
— Não posso dizer que a culpe. Tem uma boa reputação por.., bom, por não respeitar a lei tanto
quanto deveria. — Jim levantou a mão antes que Jack pudesse protestar. — Mas não tenho muito
tempo, assim voltemos para o assunto que nos ocupa. Quando conheceu Lovingdon?
— Veio uma vez ao clube. — passou o polegar pelo contorno da mandíbula inferior. — Mas mal
nos falamos.
— Por que o importam os motivos que ele tivesse? — perguntou seu amigo. — Jamais se
preocupou de onde procedia seu dinheiro. Por que agora sim?
Jack olhou à duquesa. A julgar pela rigidez de seu rosto, era evidente que ainda não tinha o
perdoado pela brincadeira que tinha feito há um momento. Na realidade, pretendia fazê-la zangar o
suficiente para que se fosse da sala.
— Não deveria verificar o chá?
— Sei que o trarão assim que estiver preparado.
Maldição! Jack não esperava que ela estivesse presente enquanto falasse com Swindler. Pensou
em insistir para que se fosse, mas só conseguiria aumentar suas suspeitas. Além disso, talvez
precisasse escutar aquilo.
— Muito bem. — Deu um golpe no escritório, esperando não soar muito alarmista. — Tenho
que ser o tutor de seu herdeiro. Quero me assegurar que esta situação não tem nada a ver com a de
Luke.
Nos olhos de Swindler, Jack viu que seu amigo tinha entendido perfeitamente a conexão. O pai
de Luke tinha sido assassinado por seu irmão em um intento de conseguir tomar o condado. Foi o
tio de Luke quem pagou seis peniques a Jack para que enganasse seu irmão e sua cunhada e os
levasse ao beco. Tinha contratado alguns homens, que fizeram uma emboscada. As ações de Jack
tinham mudado a vida de todos eles de forma irrevogável.
— Tem motivos para suspeitar...
— O duque não tinha irmãos. Mas Beckwith me disse que tem dois primos. — Jack deu um
pedaço de papel. — O primeiro da lista é o próximo na linha sucessória e o outro primo está logo
atrás. Quero que averigue tudo o que possa sobre eles.
Swindler assentiu e meteu o papel no bolso.
Olívia voltou a ficar em pé. Acaso não podia falar sentada?
— Vai você a investigar a família de meu marido?
— Aqui há algo que não encaixa, duquesa — respondeu Jack com total franqueza. — O duque
queria que eu protegesse o Henry. Mas protegê-lo do que? De uma mãe excessivamente protetora?
Não acredito que seja esse o motivo.
Ela o olhou como se pensasse que devia se internar no hospício de Bethlem Royal.
— E você acha que os primos de meu marido assassinariam ao meu filho para tomar o título? É
isso o que está sugerindo? Querido senhor, esses tipos de coisas só passam nas novelas, não na vida
real.
— Diga-sobre o conde de Claybourne.
— Ouvi... — Piscou e se sentou de novo, como se tivessem falhado os joelhos. — Acreditei que
só eram falatórios. Já sabe como são as pessoas. Não acreditará de verdade que Henry está em
perigo?
— Não sei que mais pensar, Olívia.
Estava muito angustiada para dar-se conta da confiança com que se dirigiu a ela, ou talvez já não
parecesse suficientemente importante para ganhar sua ira. O condenado do Swindler se deu conta e
esfregou o lateral do nariz com o dedo indicador, um sinal que fazia desde sua infância para indicar
que alguém estava revelando muita informação. Swindler foi um dos meninos de Feagan, o melhor
surrupiando informação às pessoas.
— Bem — espetou Jack, irritado ante a possibilidade de que Jim pudesse pensar, por engano, que
ele se preocupava mais pela viúva do que fazia na realidade. — O que está esperando? Já sabe o que
preciso.
Como todos os meninos de Feagan, Swindler estava acostumado a Jack dando ordens; por isso
não se sentiu ofendido. Levantou-se, aproximou-se da Olívia e se inclinou ante ela.
— Duquesa, você estava a par de alguma ameaça?
Aquele homem era exasperantemente pormenorizado e se mostrava tão preocupado que era
irritante. Nunca tinha tido nenhum problema em mostrar suas emoções se acreditava que fazê-lo ia
resultar em algum benefício. Não tinha dúvida que Olívia pensaria que Swindler era maravilhoso.
Estupendo. Talvez pudesse casar-se com ele e Jack poderia endossar todo aquele desastre. Se havia
algum perigo à espreita, não restavam dúvidas que ele seria o melhor para descobrir qual era e
encontrar a maneira mais adequada de enfrentá-lo.
Olívia negou lentamente com a cabeça; parecia que não acreditava que tudo aquilo estivesse
acontecendo.
— Não, eu.... Não, não que eu saiba.
— Como morreu seu marido?
— Escorregou pela escada e sofreu um golpe na cabeça.
— Era um homem desajeitado?
— É obvio que não.
— Houve alguma testemunha que presenciasse o acidente?
— Eu vi o que aconteceu.
— Alguém mais viu como escorregava?
Olívia vacilou e Jack se deu conta que estava considerando diversas possibilidades e pensando
qual era a melhor resposta. Ela tinha visto como caía; provavelmente era a única pessoa que tinha
visto, e se alguém questionava sua palavra...
— Swindler. Escorregou — disse Jack. — A escada é de mármore; mais traiçoeira que o gelo. Eu
quase perdi o equilíbrio ontem de noite. Não acredito que sirva de nada seguir por esse caminho.
— Muito bem. — Jim se levantou. — Verei o que posso averiguar.
Alguém chamou brandamente à porta. Um lacaio a abriu e uma faxineira entrou na biblioteca
com o chá em uma bandeja.
— Oh — disse Olívia, ao mesmo tempo em que ficava em pé com um pouco de insegurança. Se
a noite anterior tinha sido um golpe para ela, Jack não queria nem imaginar que estaria sentindo
naqueles momentos. Entretanto, continuou comportando-se com elegância. — Seu chá, inspetor.
— Obrigado, mas de verdade tenho que ir. Talvez outro dia.
— Acompanharei você até a porta — disse Jack, agradecido que Olívia parecesse muito
emocionada para acompanhá-los. Seguiu Swindler até o corredor e quando estiveram o
suficientemente longe para que o lacaio não pudesse ouvi-los, disse em voz baixa: — Não estará
pensando que foi ela quem o empurrou.
— Não, embora a preocupasse que eu pudesse pensar. Não podia ser muito velho.
— Na realidade sim, era. Diria que tinha uns cinquenta anos.
— Dentro de vinte anos não achará que um homem de cinquenta seja tão velho. Por que acha
que se casou com ele? — perguntou Jim.
— Não sei. Deveria averiguá-lo? Seu amigo deu de ombros.
— Provavelmente não tenha muita importância, a menos que comecemos a suspeitar que fosse
assassinado.
— Não a imagino assassinando a ninguém.
— Conhece-a bem, verdade?
— Mal a conheço — admitiu Jack a contragosto. — Embora isso não signifique que minhas
impressões sobre ela tenham menos credibilidade. Sempre achei um motivo para decidir que bolso
valia a pena arriscar-se a roubar.
— E também há um motivo para que me tenha pedido que investigue todo este assunto por
você.
— Tem razão; mas, além disso, há outro assunto ao que eu gostaria que te dedicasse. —
Percorreram o corredor até chegar ao vestíbulo, onde não havia nenhum servente. — Tente
descobrir se o duque tinha predileção por alguma perversão.
— Perversão?
— Com meninos, para ser mais específico.
Swindler parou de repente e o olhou com surpresa. Era muito esperto, talvez fosse o mais esperto
dos meninos de Feagan. Jack sabia que ao mesclá-lo em tudo aquilo, acabaria descobrindo a parte de
seu passado que sempre quis manter em segredo, mas estava disposto a correr o risco em troca de
averiguar a verdade. Embora suspeitasse que Lovingdon não era o homem que o comprou e abusou
dele, necessitava da confirmação para enterrar as poucas dúvidas que pudessem ficar.
Jack limpou garganta.
— Já sei que nunca fui seu favorito entre os meninos do Feagan, mas me faça este favor.
Averigue se seu filho está em perigo.
— Farei algumas investigações, mas não farei por você; farei por que Frannie gostaria que o
fizesse.
— Você a ama, não é?
— Vá ao inferno. Jack riu.
— É um pouco tarde para isso, amigo. Vivo ali desde que nasci.
Continuou sorrindo enquanto voltava pelo corredor. Para ser um homem ao que tinham
encarregado com repentinas e indesejadas responsabilidades, estava de bastante bom humor. Olívia
cuidaria da casa e isso permitiria a ele dedicar-se aos assuntos que de verdade pareciam importantes.
Quando entrou na biblioteca, surpreendeu-o ver Olívia sentada à mesa, lendo seu livro de registro.
Jack o tirou e o fechou com elegância.
— Ainda está aqui?
Ela se levantou e o olhou com os olhos entrecerrados; parecia como se tivesse descoberto que
todas as páginas estavam em branco.
— Não acredito que de verdade seja um inspetor da Scotland Yard. Jack arqueou uma
sobrancelha.
— Não? E então quem é?
— Algum conhecido seu. Ficou muito claro quando ofereceu álcool. Nem por um segundo
acreditei que você seja amigo de um inspetor. Acredito que tudo isto só foi um elaborado plano para
me fazer acreditar que meu filho está em perigo e para que você me pareça mais importante do que é
em realidade.
— Com que finalidade?
Ela pareceu vacilar, mas logo o reconsiderou:
— Ainda não sei bem o que pretende conseguir com tudo isto. Talvez espere que o deixe em paz.
— O certo é que mereceria a pena tê-lo inventado só para conseguir isso.
Ela abriu a boca...
— Não, não pode levar seu filho ao campo.
— Pois então para a casa de minha cunhada. São poucas horas de distância.
— Não.
— Não pode nos prender como se fôssemos prisioneiros.
— Sim posso, pelo menos até que esteja certo que estão a salvo.
— Por que se preocupa tanto?
— Que me pendurem se caso eu sei! — grunhiu ele, enquanto se aproximava da janela. — Leve
dois lacaios. Diga que tem que vigiar o menino em todo o tempo.
Ouviu-a suspirar zangada.
— Meu mundo é muito mais civilizado que o seu. Posso assegurar que não estamos em perigo —
disse com absoluta segurança.
— Então, por que me escolheu? — Jack se virou e se deu conta que ela tinha se aproximado sem
fazer ruído. Olívia deu um passo atrás enquanto ele se esforçava por não fazer o mesmo. Que
surpresa. Quem ia dizer que aquela mulher tivesse as habilidades de um ladrão? — Por que me
escolheu? — repetiu, sem preocupar-se em esconder sua fúria e esperando que Olívia não se desse
conta de com ficava nervoso ao tê-la tão perto. Por que tinha que cheirar tão bem? Céu santo, mas
se estava de luto. Não deveria cheirar a outra coisa? — Eu estou intimamente vinculado com a parte
mais escura de Londres. Por que pensaria seu marido que seu filho necessitava de um tutor como
eu? Sei como sobreviver. Comecei a viver sozinho na rua quando tinha cinco anos. Reconheço o
perigo assim que o vejo e me é muito fácil analisar as pessoas. Se não houver nenhum perigo, por
que me escolheu?
Ela franziu seu delicado cenho e ele se obrigou a manter as mãos às costas e a agarrá-la com força
para tentar fazer desaparecer aquela preocupação.
— Você disse que meu marido tinha ido a seu clube. Foi em busca de mulheres? — entrecortou a
voz ao final da frase; parecia que tinha tido que empurrar a palavra do mais profundo de seu ser.
— Já tinha a você, para que iria procurar consolo em outra parte? — foi muito estranho que
aquelas palavras tranquilizadoras saíssem de seus lábios, mas não pareceu tão estranho como o nó
que se fez em sua garganta ao imaginá-la na cama de Lovingdon, em seu salão, em sua biblioteca, a
seu lado.
— Possivelmente não tivesse suficiente comigo — respondeu em voz baixa.
Maldita fosse! Só o que Jack sabia era que Lovingdon não brincava. Em seu clube havia um
meticuloso registro dos homens que compravam fichas e as quantidades que gastavam.
— Não ia pelas mulheres.
Olívia esboçou um triste sorriso.
— Pensei que seria um melhor mentiroso.
Por que ia importar-se que ela se sentisse infeliz? Entretanto, e por algum estranho motivo,
importava.
— Nunca o vi com nenhuma de minhas garotas. É a verdade. Jamais jogou e nunca o vi beber.
— Então, que fazia ali?
— Observava. — Aquilo parecia perverso inclusive para Jack.
— Observava o que?
Não queria dizer, não queria admitir que Lovingdon tivesse estado observando a ele. Sempre que
o olhava, dava-se conta que o duque o contemplava como se tratasse de alguma estranha criatura.
Talvez tudo aquilo fosse algum tipo de experimento. Possivelmente queria pôr um homem no topo
do mundo e ver se assim se convertia em alguém melhor. Entretanto, a ironia era que, como
Lovingdon estava morto, jamais poderia ver os resultados.
— Limitava-se a observar o que os outros faziam. E poucas pessoas gostam disso.
— Por quê?
— Porque não têm guelra de fazer nada. Terão medo dos julgamentos morais. Como você ou
ele? Vá à casa de sua cunhada e me deixe em paz. Mas não volte a pensar nem por um momento em
ir ao campo. Se me obrigar a ir procurar o menino, amargarei sua vida.
— Parece-me que posso dizer, senhor Dodger, que não acredito que fosse notar a diferença,
porque já me amarga agora.
Tão zangada como ele, virou-se e se dirigiu à porta. Ao observar o balanço daquele precioso
traseiro, Jack decidiu que teria que dizer coisas desagradáveis mais frequentemente para conseguir
que ela partisse indignada.
Capítulo Sete

Olívia reconheceu que tinha sido um erro ir visitar a duquesa do Avendale, porque agora Henry
tinha uma curiosidade feroz para visitar a Grande Exposição, depois que seu primo contou de todas
as curiosidades que tinha visto lá. Para piorar a situação, quando chegou em casa descobriu que uma
visita a esperava no salão.
Enquanto Helen levava um cansadíssimo Henry a seu quarto para que dormisse a sesta, Olívia
tirou o chapéu com véu negro e o deixou sobre a mesa do vestíbulo, para trocá-lo pela touca de
viúva que tirou antes de sair. Sentia-se como se a tivessem pegado fazendo algo que não devia fazer
e estivesse a ponto de receber uma reprimenda.
Edmund Stanford, visconde de Briarwood, tinha escolhido um momento muito inoportuno para
visitá-la. O primo de seu marido tinha sido muito amável ao encarregar-se de organizar o funeral e
os detalhes da última viagem de Lovingdon até a cripta familiar de sua casa solar, e tinha sido para
Olívia um sólido ombro no que apoiar-se. A ideia de que aquele homem pudesse assassinar Henry
para usurpar o título era ridícula.
Depois de colocar em seu lugar algumas mechas, entrou no salão.
— Lorde Briarwood, muito obrigada por nos visitar. Espero que não tenha tido que esperar
muito.
O visconde fez uma leve reverencia. Olívia viu a aparência familiar no corte de seu queixo
quadrado. Era alguns anos mais jovem que Lovingdon, mas seu cabelo moreno já estava começando
a deixar mostrar o branco. Não tinha herdado a altura da maioria dos membros da família, mas o
que faltava nesse sentido, compensava-o em amplitude; tinha uma constituição que outorgava um
aspecto intimidante.
— Só um minuto ou dois, duquesa. Para ser sincero, surpreendeu-me que estivesse de passeio.
Olívia sentiu que avermelhavam as bochechas ante aquela sutil correção.
— Fui visitar minha cunhada. Ela também acaba de enviuvar e pensei que poderia dar algum
conselho para aprender a viver com este espantoso vazio.
— Claro, desculpe minha ousadia. Não posso nem imaginar como é difícil tudo isto para você.
Suspeito que não tem você nem a mais remota ideia.
— E me permita que reitere minhas condolências por sua perda. Seu marido já descansa em paz
na cripta familiar.
— Agradeço-muito tudo o que tem feito. Não sei como poderei compensar sua amabilidade.
— Não tem importância. Prometi a Lovingdon que cuidaria de você, não sabia?
Ela não pôde evitar experimentar uma estranha sensação de desconforto. Tinha sido uma mulher
que nunca tinha respondido a seu marido e, de repente, tinha muitos homens a seu redor, pedindo
coisas e verbalizando expectativas.
Uma donzela entrou no salão com o serviço de chá. Quando partiu, Olívia e Briarwood se
sentaram ante uma pequena mesa. O visconde não era tão leve como Lovingdon e, quando se
sentou, a poltrona rangeu sob seu peso.
— Quando o duque pediu que cuidasse de mim? — perguntou ela pausadamente, enquanto
servia o chá.
— Não recordo o momento preciso. Já sabe como funcionam estas coisas. Os homens pedem
favores uns aos outros continuamente, sem esperar que cheguem a materializar-se em realidade. Vim
assim que retornei a Londres. Queria me assegurar que tudo estava em ordem. Já fez a leitura do
testamento, correto?
A mão de Olívia tremeu e a taça que sustentava tombou sobre o pratinho. Olhou Briarwood e
pôde ver a expressão de seu marido naqueles expressivos olhos verdes. O olhar de Lovingdon era do
mesmo tom de verde e transmitia o mesmo ar compungido. Quando sorria, seus olhos nunca
refletiam alegria. Era como se passasse toda a vida de luto. Teria gostado muito que tivesse aberto
seu coração, mas como a maioria dos casamentos aristocratas, seu enlace não estava apoiado no
amor.
Olívia esperou que lorde Briarwood pegasse sua taça das mãos para começar a falar.
— Sim, sim, isso mesmo.
— A quem nomeou tutor do menino?
Ela aproximou sua taça aos lábios e tomou um pequeno gole de chá.
— Para quem você acha que se inclinou?
O homem sorriu como se tivessem estado compartilhando um segredo que por fim podiam
revelar ao mundo.
— Eu sempre pensei que me escolheria. Jamais falamos dos detalhes, mas parece a escolha mais
lógica, tendo em conta que sou da família... o seguinte na linha sucessória. Quero que saiba que, para
mim, é uma honra cuidar de vocês, tanto de você como do jovem duque.
Sua presunção fez que Olívia sentisse uma repugnância difícil de explicar. Estava certa que o
visconde não tinha má intenção com respeito a Henry e, entretanto, preocupou que desse tudo
como certo. Estava se deixando influir por Dodger. Ela jamais teria albergado suspeitas se este não
tivesse semeado a semente de dúvida em sua cabeça.
— Milord, agradeço de coração seus sentimentos, muito mais do que possa parecer. Infelizmente,
meu marido escolheu a Jack Dodger como tutor de Henry.
Briarwood ficou tão surpreso que parecia que Olívia o tinha golpeado com o atiçador da
chaminé.
— O do clube Dodger?
— Sim, temo que sim.
Claramente desconcertado por aquele giro inesperado, ficou olhando fixamente, como se ela
fosse a responsável por tudo aquilo.
— Por que iria Dodger aceitar ser o tutor do filho de um lorde?
— Temo que não tenha a mais remota ideia, mas Lovingdon se assegurou de despertar seu
interesse legando todas as propriedades não associadas ao título.
Pensou que Briarwood tinha direito de saber tudo, dado que, em efeito, era o seguinte na linha de
sucessão. Se não estivesse ocupando-se dos restos mortais de seu marido, com certeza teria assistido
à leitura do testamento.
O homem negou com a cabeça e ficou olhando fixamente a taça de chá, como se quisesse
memorizar a sianinha de flores gravada na fina porcelana. Então, levantou a vista e a olhou.
— Dodger deve tê-lo chantageado.
— Chantagem? A que se refere?
— Deve ter ameaçado Lovingdon delatando-o por alguma conduta inapropriada.
Olívia considerou as possibilidades. Era incapaz de imaginar seu marido comportando-se de
forma inapropriada. E, tendo em conta a reação de Dodger, era evidente que este ficou tão surpreso
como outros ao descobrir as condições do legado.
— Impugnaremos o testamento — anunciou de repente Briarwood, adotando um tom enfático
que dava a entender que não se podia chegar a nenhuma outra conclusão e dando por feito que ela
estaria de acordo com ele. — Poderia ser um escândalo, mas não vejo outra opção. Se permitirmos
que Dodger seja o tutor de Henry, tudo isto poderia acabar em um autêntico desastre. Atreveria
inclusive a afirmar que seria uma má influência para seu filho e arruinaria sua reputação.
— O senhor Beckwith disse que o testamento era irrevogável.
— Claro que disse. Assim tem menos trabalho.
— E menos gastos para você — rugiu uma voz profunda.
Olívia se sobressaltou tanto que atirou o chá quente sobre a saia. Felizmente, usava tantas capas
de tecido que era impossível que chegasse a queimar-se. Deixou a taça e o prato sobre a mesa,
agarrou um guardanapo e começou a secar a saia e as mãos. Aquele homem tinha o irritante costume
de aparecer quando ninguém o esperava.
— Não recordo tê-lo convidado a entrar no salão, senhor Dodger.
Ele levantou as mãos daquela forma tão irritante que, segundo a experiência da Olívia, sempre
precedia a umas palavras irritantes.
— Não preciso de nenhum convite, já que este é meu salão. Boa tarde, milord.
Briarwood tinha se posto em pé e o olhava com os olhos entrecerrados; parecia confiar tão
pouco nele como Olívia.
— Dodger — respondeu finalmente.
— Conhecem-se? — perguntou ela. Jack sorriu com ar malicioso.
— Já disse, duquesa, que estou muito familiarizado com a aristocracia. — sentou-se em uma
poltrona tombando-se ligeiramente para trás e apoiando o tornozelo sobre o joelho da perna
contrária. Olívia nunca tinha visto nenhum homem sentado daquela forma tão inapropriada. —
Sente-se, Briarwood. Assim poderemos falar tranquilamente de todos os motivos pelos quais não
faremos o que acaba de sugerir.
Para surpresa de Olívia, o primo de seu marido se sentou sem pigarrear, com as costas retas e
uma postura excelente. Não queria nem imaginar as dificuldades que teria Henry se Dodger chegava
a ser finalmente a pessoa que ensinasse como devia comportar-se. Outros meninos ririam dele,
insultariam-no e não teriam nenhum respeito.
— Tal como eu o vejo — começou Dodger, — temos três motivos para não levar este assunto
aos tribunais: o custo, posto que teremos que contratar um advogado; o terrível escândalo que
provocaríamos, pois, um assunto desta natureza é evidente que geraria falatórios; e que todo este
assunto se pode arrumar muito facilmente se aceitar casar-se com a duquesa.
— C-casar-me com ela? — Briarwood gaguejou, claramente surpreso pelo comentário.
— Sim, acaso a duquesa não mencionou? Eu perderei o direito a ser tutor de Henry no preciso
momento em que ela se case com um homem disposto a assumir esse papel. Vê? Só o que tem que
fazer é casar-se com...
— Estou de luto, senhor Dodger — o interrompeu Olívia, apertando os dentes por enésima vez.
Por que custava tanto àquele homem entender um conceito tão singelo?
— Se conseguirmos uma licença especial, a cerimônia poderia celebrar-se discretamente. Lorde
Claybourne fez assim quando se casou com sua mulher, que estava de luto pela morte de seu pai. E
então poderiam ir todos ao campo. Dentro de dois anos, voltam para Londres falando de seu
irremediável amor e todo mundo esquecerá o assunto. As mulheres desculpam qualquer indiscrição
quando se cometem em nome do amor.
— Não penso ir ao campo.
— Achei que isso era o que você queria.
— Porque queria desfazer-me de você.
— Se casar, conseguirá.
— Não desejo me casar com lorde Briarwood. — Olívia olhou ao primo de seu marido. —
Desculpe-me, milord. Estou certa que não estava pensando em contrair matrimônio, e eu acabo de
enviuvar. — E esperava que se algum dia voltasse a casar-se, o dever não teria nada a ver com sua
decisão. Por outro lado, devia admitir que Dodger estava certo. Se casasse conseguiria desfazer-se
dele. Pigarreou. — Espero não ter te ofendido se considerar...
— Não, eu não tinha pensado sequer nisso. Não quero dizer que não o faria, mas até agora não
tinha pensado nesse tema. — dirigiu-se a Dodger: — Acredito que o que você pretende é nos
distrair com toda esta tolice do casamento. Como conseguiu convencer meu primo para que o
nomeasse tutor do Henry?
— Não posso receber o mérito de ter convencido ninguém. E não tenho nem ideia do motivo
pelo qual me nomeou tutor. Entretanto, pedi a um inspetor da Scotland Yard que investigue sobre o
tema. Está à par de alguma ameaça?
Briarwood pareceu mais surpreso desse comentário que da ideia de casar-se com Olívia.
— Ameaças? Que tipo de ameaças?
— Alguém que tenha ameaçado matar o menino.
— Por quais motivos quereriam matá-lo?
— Para ficar com seus títulos.
— E como eu sou o primeiro na linha sucessória, suponho que sou seu principal suspeito. Acaso
não se deu conta de que eu já tenho um título?
— Visconde. Esse não é um título muito elevado. E, além disso, você só tem um, enquanto que o
jovem Henry tem três.
— Minha classe está muita por cima da dele, senhor. E, para mim, com um é suficiente.
— Acreditava que era um homem mais ambicioso. Briarwood ficou em pé com pouca agilidade.
— Senhor, ofende-me que esteja sugerindo que em um avaro intento por conseguir mais do que
possuo pudesse empregar métodos ilícitos para ficar com algo que não me pertence. Devo ir. — Fez
uma pequena reverência em direção a Olívia. — Bom dia, sua excelência. Se me necessitar, não
duvide em entrar em contato comigo.
Ela ficou também em pé.
— Milord, rogo que desculpe ao senhor Dodger por...
— Não seja tola, Olívia — a interrompeu este com grosseria. — Não pode se desculpar por algo
que não é culpa sua. Além disso, meu comportamento não necessita nenhuma desculpa.
— Devo dizer que estamos em completo desacordo, e que me desculparei se assim o desejar. —
Mas lorde Briarwood já estava a caminho da porta.
Jack Dodger virou a cabeça e, sem levantar da poltrona, gritou:
— Um momento, Briarwood...
O visconde parou e olhou para trás, jogando faíscas pelos olhos.
— Tem razão — prosseguiu Dodger. — Se ocorrer algo ao jovem Henry, você será o primeiro a
ser interrogado pela Scotland Yard.
— Então não tenho por que me preocupar. O menino não tem nada que temer de mim.
Entretanto, não estou certo que de você vá estar a salvo. Nunca gostou de mim.
Jack se atreveu a sorrir.
— Então, assegure-se de levar dinheiro esta noite, porque logo descobrirá que no clube Dodger
já não tem crédito.
Briarwood ficou completamente vermelho e quase saem os olhos das órbitas.
— Vá ao inferno!
Dodger esboçou um sorriso que parecia indicar que estava divertindo tanto consigo mesmo
como com o visconde.
— Isso eu já fiz há muito tempo e não faça nenhuma ameaça a mim. Eu tampouco temo a você.
Briarwood amaldiçoou com aspereza e desapareceu a toda pressa. Olívia estava indignada.
— Você provocou-o de propósito!
Desprezado na poltrona, Jack deslizou o polegar pelo contorno da mandíbula.
— Por que terá tanto interesse em ser tutor de Henry? Veio vê-la para isso, concorda? Para
averiguar sobre quem tinha recaído a grande honra de fiscalizar a viagem de seu filho para a
maturidade.
Ela conteve o impulso de esbofeteá-lo.
— Pensava que talvez meu marido tivesse escolhido ele.
— Pensava ou esperava?
— Há alguma diferença?
— O que teria ganhado?
— Nem todo mundo é como você, senhor Dodger. Algumas pessoas fazem o que devem fazer
porque é o correto, e não em troca de algum benefício.
Ele se levantou muito devagar e Olívia pôde advertir o poder que transmitiam seus movimentos.
Aproximou-se muito devagar com uma expressão indecifrável no rosto.
Estava desesperada por averiguar seus pensamentos e suas intenções. Não queria recuar, mas de
repente suas fracas pernas decidiram em seu lugar. Afundou-se na poltrona e apertou as costas
contra o respaldo da mesma forma que o tinha feito na carruagem. Ele apoiou as mãos nos braços
da poltrona deixando-a completamente presa.
Não era um bom momento para perceber que ele tinha os cílios mais longos que tinha visto em
um homem. Espessos e sem um ápice de delicadeza e, entretanto, eram atraentes demais. Olívia se
perguntou se fariam cócegas na pele de uma mulher quando a beijava.
— Está sabendo que esse homem está totalmente endividado? E não só comigo. Se ele fosse o
tutor, não só seria o responsável pelo bem-estar de seu filho, também estaria a cargo de suas
propriedades. Alguém desesperado poderia não ter escrúpulos em utilizar essas propriedades em seu
benefício.
— Alguém como você? — espetou- , com a respiração entrecortada.
— Eu não estou desesperado, duquesa. Sim, sou avaro. Sim, quero que me enterre coberto de
moedas de ouro. Sim... — Levantou a mão para que ela pudesse ver bem aquela horrível marca, —
roubei no passado. Mas descobri que um homem pode ganhar mais dinheiro por meios legítimos e,
além disso, evitar ter que olhar às suas costas ao fazê-lo. E talvez a explicação do motivo pelo que
seu marido me escolheu como tutor seja assim simples. Se necessitar que alguém te guarde um cofre
de tesouro, tenha certeza que seja alguém que não necessite do que tenha dentro desse cofre.
Endireitou-se e pôs-se a andar em direção à porta.
— Você acha então que esse é o motivo pelo qual o escolheu? — perguntou ela enquanto ele
partia.
Jack parou e a olhou nos olhos.
— Não, só sei que esse é o motivo pelo que não escolheu Briarwood.
— Sua hipótese só tem sentido se assumirmos que Lovingdon dava tanta importância ao dinheiro
como você.
— No final, duquesa, só o que importa a todo mundo é o dinheiro.
Olívia observou como abandonava o salão e se concentrou em controlar os tremores que sua
proximidade tinha provocado. Durante um fascinante segundo, pensou que ia pousar aqueles
fascinantes lábios sobre os seus.
Durante um vergonhoso segundo, desejou que o fizesse.

— Em que diabos estaria pensando Lovingdon?


Rupert Stanford observava enquanto seu primo passeava nervoso de um lado a outro de sua
biblioteca. Tal como estava acostumado a fazer, Edmund se apresentou em sua casa sem convite.
Além disso, tinha o desagradável hábito de cuspir ao falar. Rupert esperava que não demorasse a
sentar-se, para que sua donzela pudesse limpar o chão quando saísse. Rupert sentia autêntica aversão
pela sujeira.
— Jack Dodger, diz? Edmund parou de repente.
— Sim, Jack Dodger. O do clube Dodger.
— Não o conheço.
— Como pode não o conhecer? É dono de um clube de jogo, o clube Dodger. Ele se refere ao
lugar como um clube exclusivo para cavalheiros, mas todo mundo sabe o que acontece lá dentro.
Rupert bebeu um pouco de brandy e conteve a necessidade de ir lavar as mãos. A presença de seu
primo sempre provocava um terrível desejo de lavar a consciência.
— Eu não jogo. Jamais estive ali.
— Agora é possível que eu não possa voltar nunca mais. Cancelou meu crédito! E tudo porque
deixei que a fúria se apoderasse de mim. Como acha que devia reagir, me diga? Não podia deixar que
me insultasse. Insinuou que queria matar o menino para ficar com os títulos.
— Não são os títulos o que você quer?
— Não, maldito seja. — Edmund se deixou cair finalmente sobre uma poltrona. — Eu esperava
que Lovingdon me nomeasse tutor, para fiscalizar...
— Sua voz foi apagando, como se resistisse a admitir o que tanto cobiçava.
— Suas finanças — acabou de dizer Rupert. — Para que uma parte de sua riqueza chegasse
milagrosamente, possivelmente de maneira acidental, a suas mãos.
Edmund o olhou. Talvez não tivessem nada em comum, talvez tivessem interesses diferentes,
mas se conheciam muito bem. Ou, pelo menos, Rupert conhecia Edmund muito bem, e tinha se
preocupado muito em que este não soubesse tudo sobre ele. Seu primo adorava viver acima de suas
possibilidades. Rupert em troca preferia fazê-lo por baixo.
— Eu não teria roubado nada, só teria tomado emprestado — respondeu Edmund com tristeza.
— Leva tanto tempo jogando esse jogo, que acredito que se esqueceu que pedir emprestado
significa que, em algum momento, tem que devolvê-lo.
Seu primo tomou todo o brandy de um só gole. Um desperdício daquele licor tão bom em vários
sentidos.
— Quantos anos têm Henry agora? — perguntou Rupert sem perder seu ar de aborrecimento. —
Não posso dizer que tenha me preocupado em manter o contato com a família.
— Cinco. Tampouco se incomodou em assistir ao funeral, coisa que me pareceu um pouco
estranha, inclusive para você.
— Acredito que não era o primo favorito de Lovingdon. Essa honra recaía sobre você.
— Motivo pelo qual pensei que me nomearia tutor de seu filho. No que estaria pensando
Lovingdon? — repetiu. — Jack Dodger poderia acabar empregando o menino em seu
estabelecimento.
— Quando cresça? Não acredito que isso aconteça nunca.
— Porque está cego. Vive encerrado em seu mundo e não vê mais à frente. Esse homem contrata
crianças para seu estabelecimento. São elas quem reúnem nossas fichas ou nos trazem a bebida.
Também tem vários meninos encarregados de limpar as botas. Ouvi dizer que tem um par delas para
cada dia da semana e que tem um menino contratado para cada par.
— Isso é um pouco estranho. Rodear-se de tantos meninos.... Não parece natural.
— Não há nada natural em Jack Dodger, asseguro isso. Mas agora que penso, é verdade que
parece ter um interesse especial por meninos. Embora essa não seja a espécie de assunto que se fala
a uma dama. Suponho que terei que ir ver o advogado.
— Tem alguma prova de que Dodger tenha abusado de algum desses meninos?
Edmund não abriu a boca, mas Rupert era consciente das ideias que estavam cruzando por sua
mente. Se primo estava acostumado a intimidar às pessoas, enquanto que o ponto forte de Rupert
era a persuasão. Possuía a língua do demônio.
— Eu teria muito cuidado iniciando um rumor que não possa provar — avisou com suavidade.
Edmund se inclinou para frente.
— Ah, mas se justo aí está a graça. Talvez eu não possa provar que é verdade, mas ele não poderá
provar que não é. E na corte dos rumores, em quem as pessoas acreditarão? Em um cavalheiro com
título ou no pecador?
Capítulo Oito

Jack tinha desejado apoderar-se da boca da Olívia com uma ferocidade que o deixou assombrado.
Ao inclinar-se sobre ela no salão, tinha esquecido momentaneamente o motivo pelo que se levantou
para aproximar-se. Briarwood tinha desaparecido de sua cabeça por completo e só o que era capaz
de fazer era absorver a fragrância de Olívia, de perder-se em seus olhos dourados, de perguntar-se o
que sentiria se pudesse conseguir acelerar a respiração, e de imaginar o sabor de seus lábios quando
os devorasse. Mas se tivesse se deixado levar por seus desejos, teria criado expectativas que não
estava preparado para cumprir. Suspeitava que a duquesa, tão correta e formal, não era o tipo de
mulher que perderia tempo com um homem com o que odiaria ter que casar-se.
Assim tinha concluído sua alegação por escrito e partiu do salão.
Mas embora tenha passado toda a tarde reunido com os homens que se encarregavam de
fiscalizar suas propriedades, tanto as vinculadas ao título como as que não estavam, não tinha sido
capaz de deixar de pensar em Olívia. Aqueles homens o deixavam examinar os livros de
contabilidade com expressão sombria. Jack garantiu a todos que conservariam seu trabalho, desde
que não encontrasse irregularidades nos registros.
E quando as sombras começaram a tomar conta da sala, doía a cabeça, tinha o pescoço e os
ombros tensos e rugia o estômago. Morria de vontade de abrir sua melhor garrafa de bordô e sentar-
se ante um bom jantar. A julgar pelo que tinha tomado o café da manhã, era evidente que o duque
tinha uma cozinheira excelente.
A porta se abriu e Brittles entrou com seus irritantes passos silenciosos.
— O jantar está servido, senhor.
— Excelente.
Seguiu o mordomo até o que imaginou que era a sala de jantar familiar. Quando chegou, viu dois
lacaios esperando para servir o jantar, com a mesa posta para uma só pessoa. Não queria admitir a
decepção que sentiu ao dar-se conta de que ia jantar sozinho.
— A duquesa não janta?
— Esta fazendo com o jovem duque em seu quarto, senhor.
— Já vejo. — Tomou assento e observou enquanto serviam um pouco de vinho e preparavam
um prato de comida. Bebeu um pouco de vinho. — O jovem duque sempre janta a esta hora?
— Não, senhor — respondeu Brittles, de pé junto a ele. — Costuma fazê-lo um pouco antes.
Era evidente que a duquesa tinha querido assegurar-se de estar ocupada enquanto Jack jantasse, e
ele estava começando a se cansar desses joguinhos. Ficou de pé, agarrou sua taça de vinho e a
garrafa e se encaminhou para a porta.
— Não gosta do jantar, senhor?
— O jantar está bom — respondeu. A companhia, entretanto, não.
Parou de repente. Companhia? Desde quando Ele precisava de companhia enquanto comia?
Além disso, quando foi a última vez que comeu sentado a uma mesa? Costumava comer em seu
escritório. Um filé de carne e uma batata eram o que necessitava para saciar seu apetite, enquanto
bolava novas formas de aumentar seus ganhos.
Mas agora não podia voltar para a mesa sem que parecesse que tinha perdido o juízo. Além disso,
a duquesa e ele tinham alguns assuntos que discutir. Podiam perfeitamente conversar no quarto do
menino.
Subiu a escada de dois em dois. Um pouco de vinho derramou por cima da taça. Parou um
momento para secá-lo e logo continuou. Percorreu o corredor e abriu a porta do quarto de Henry.
Todo mundo ficou boquiaberto; era como se Satã tivesse aparecido de repente. Jack sempre tinha
desfrutado de sua má reputação, mas estava começando a achá-la um pouco irritante.
— Não sabia que íamos jantar aqui — disse com secura. — Se soubesse, teria vindo antes.
O jovem duque estava sentado à cabeceira da mesa, com sua mãe junto a ele. A babá, que
dedicou a Jack um coquete sorriso, estava na outra ponta.
— Nós jantaremos aqui — respondeu a duquesa. — Você não. Servirão o jantar na sala de jantar.
— Pareceu-me um pouco grosseiro negar minha companhia — disse ele enquanto se sentava à
mesa, mais indicada para crianças que para adultos. Golpeou os joelhos contra a madeira, serviu mais
vinho na taça e logo se dirigiu à babá. — Seja uma boa garota e me traga um prato.
Ela se levantou e fez uma reverência.
— É obvio, senhor, com muito prazer.
Jack teve a impressão que aquela mulher estaria disposta a proporcionar muito mais que um prato
de comida se pedisse. Mas ele não tinha nenhum interesse nela, nem em nenhuma mulher cujas
expectativas fossem mais à frente do dinheiro.
Quando teve diante o frango e as verduras, começou a comer com entusiasmo.
— Temos alguns assuntos a discutir.
— Temos que falá-los aqui e agora? — perguntou a duquesa. Jack meteu uma parte de frango na
boca e o mastigou devagar.
— Se o fizermos agora, aproveitarei mais o tempo. Eu costumo resolver meus assuntos enquanto
como.
— Temo que qualquer discussão com você possa afetar gravemente a minha digestão.
— E acredita que me importa sua digestão?
— A verdade é que acredito que você só se preocupa consigo mesmo.
— Darei dez minutos de intervalo sem ter que falar comigo. A partir de então, sua digestão já
deixará de me importar.
— É um autêntico bárbaro.
— Nove minutos.
Olívia suspirou com delicadeza e o olhou com aversão. Jack pensou que no futuro teria que
assegurar-se que não envenenaria a comida. Estava pressionando muito e o certo era que não
conseguia entender o porquê.
— Doeu isso?
Jack centrou sua atenção no menino, que estava olhando fixamente sua mão. Era evidente que a
descolorida pele do interior do polegar tinha chamado a atenção. A marca era bastante feia, mas
sempre tinha parecido uma honra que o assinalassem como ladrão. Seu passado o tinha convertido
no homem que era. Não sentia nenhuma vergonha.
— Como se me metessem nas caldeiras do inferno.
O menino abriu os olhos de par em par. Eram do mesmo tom dourado que os de sua mãe. E
pelo que Jack se lembrava de Lovingdon, era evidente que o cabelo loiro tinha herdado de seu pai.
De repente, envergonhou-se de seu passado por motivos que desconhecia.
— Mas isso faz muito tempo — acrescentou.
O menino desceu o olhar e cravou os olhos em seu prato; logo, voltou a olhar Jack com
insegurança.
— O que acontece, menino?
— Já-estiveste no P-palácio de Cri-cristal?
— Não. E você?
Ele negou com a cabeça com o olhar de um cãozinho espancado. Logo olhou sua mãe.
— Henry, sinto muito, meu amor, mas já te expliquei porque não podemos ir.
— Por que não podem? — perguntou Jack.
— Sou viúva e estou de luto. Não posso sair passeando por aí.
— Pois quando convém, sim. Esta tarde saiu.
— Foi uma saída muito discreta, para visitar minha cunhada que também está de luto. Não saí
passeando por aí.
— Deixe que o leve a babá. Olívia arqueou uma sobrancelha.
— Não tem muito sentido que você diga isso, quando acredita que há perigos à espreita. Além
disso, Henry também está de luto. Não seria apropriado.
— Adora seguir as regras.
— Que eu goste ou não carece de toda importância. Tenho certas expectativas com respeito ao
bom comportamento e as cumpro.
— Então, se minhas expectativas fossem que se comportasse mal, faria tudo que estivesse em sua
mão para cumpri-las?
— Não você diga insensatezes. Ninguém se esforça para comportar-se mal. — Suspirou. — Não
entendo que necessidade tem que prolongar sua presença em nosso jantar. Sobre o que queria falar?
— Sobre meu quarto.
Se Olívia estivesse comendo, tinha certeza que teria engasgado. Ficou de pé tão depressa que Jack
se surpreendeu que não caísse da mesa ou, pelo menos, da cadeira.
— Posso falar com você no corredor?
— Se insistir.
— Insisto.
Com o que Jack estava começando a reconhecer como suas indignadas pernadas, Olívia rodeou a
mesa e se dirigiu à porta. Ele se virou e a observou. Perguntou-se o que usaria debaixo da saia. As
mulheres com as quais ele tinha intimidade usavam pouca roupa: quando um homem pagava por um
serviço, não queria ter que esforçar-se muito para conseguir o que tinha comprado. Tinha a sensação
que deitar-se com a duquesa requereria muito esforço, embora não pôde evitar pensar que
certamente mereceria a pena.
Ela parou junto à porta e olhou por cima do ombro.
— Senhor Dodger.
— Ah, sim. — Jack se levantou, caminhou até a porta e a abriu para que Olívia pudesse sair.
Ela o fez, virou-se e o olhou nos olhos antes que ele fechasse de tudo.
— Seu quarto é um tema muito inapropriado sobre o que falar diante de um impressionável
menino de cinco anos — disse.
— Acaso não sabe que durmo em um quarto?
Jack pôde ouvir como ela rangia os dentes. Era muito fácil fazê-la se zangar. Os meninos de
Feagan teriam feito muitíssimas brincadeiras.
— Imaginei que não queria falar sobre os detalhes de seu sono, a não ser sobre os meus, à noite
passada — respondeu ela.
Jack se apoiou na parede, cruzou os braços e se perguntou o que pareceria tão ofensivo nos
dormitórios; que libertinagens teriam ocorrido no seu.
— Na verdade, queria falar sobre o armário de seu marido. Preciso que alguém leve sua roupa.
Dê aos serventes. Acredito que é o que se costuma fazer, não? OH, e para que saiba, tenho uma
memória excepcional e lembro até os detalhes mais insignificantes. Assegure-se de que só se levam a
roupa.
— Há algumas coisas..., algumas coisas que um pai gostaria que ficasse com seu filho.
— Se figurarem no registro de Henry pode ficar com elas.
— Não acreditará que Lovingdon apontou nesse informe até a última das coisas que possuía? Ou
que de verdade esperava que você ficasse com tudo o que há nesta casa? Estão as cartas que escrevi,
lembranças que o presenteava. Isso não significa nada para você.
— Muito certo, mas para você sim, significam algo. Portanto, têm valor. — deu-se conta que ela
ficava furiosa e, antes que pudesse responder, disse: — Pense no valor que tudo isso tem para você.
Podemos negociar. No momento, vou ao clube, mas quero que saiba que amanhã tenho intenção de
me mudar para cá de forma oficial.
Olívia abriu ligeiramente os olhos.
— Não estará pensando em ocupar o dormitório que há junto ao meu.
— É o dormitório do dono da casa, não? E eu sou o dono.
— Então, mudarei a outro quarto.
— Para que vai se incomodar? Já disse que não penso ir à sua cama. Embora deva dizer que não
tenho objeção alguma em permitir que você venha à minha. Acaso é isso que tem em mente? Não
ser capaz de resistir a meus encantos me tendo tão perto?
— Eu não tenho medo de você e não acredito que você possua nenhum encanto. Além disso,
jamais me deitaria com um homem com o que não estivesse casada e, certamente, nunca me casarei
com você.
Jack se separou da parede. Olívia surpreendeu a si mesmo ao dar-se conta que conseguia não
retroceder.
— Acredita que vai me manter a raia com essa língua viperina que tem, e só o que consegue é que
não deixe de pensar que eu adoraria sentir como a deslizaria por minha pele.
Ela ruborizou e abriu ligeiramente os lábios. O paradoxal era que, embora Jack houvesse dito
essas palavras com intenção de desarmá-la, ao pronunciá-las tinha fraquejado. Imaginou aquela
língua deslizando por cima de seu peito...
Antes de perder o controle da situação e de si mesmo, virou-se para ir; logo parou e olhou para
trás e, esforçando-se para reprimir o repentino tremor de sua voz, disse: — Veja bem, eu não gosto
de jantar sozinho, assim seja amável e venha comigo. Se quiser, pode trazer seu filho.
Ela se sobressaltou e afastou a vista.
— O certo é que as crianças comam em seu quarto.
— Ainda não se deu conta que o correto me importa um nada?
— Ainda não se deu conta que sim me importa? Jack supôs que ela merecia uma pequena vitória.
— Como quiser. Podemos chegar a um acordo. Comerei uma vez ao dia com meu protegido:
café da manhã ou jantar, você escolhe.
— É que não está escutando? Ele não deveria comer nunca com você.
— Então, como se supõe que vou educá-lo?
— Contrataremos professores.
— Os professores não poderão ensinar as coisas que eu sei.
— Não acredito que ele precise saber o que você sabe.
— Uma refeição, duquesa. É minha última palavra. — Jack virou-se antes que ela pudesse voltar
a protestar. Olívia o fez de todos os modos, expressando sua raiva em forma de grito sufocado e,
provavelmente, também deu um pisão no chão, inclusive talvez dois.
Jack não sabia por que insistia em que comessem com ele. Talvez porque quando tinha entrado
no quarto de Henry estava sorrindo e os sorrisos tinham desaparecido assim que o viram.
O menino o tinha olhado com receio e não gostava de provocar essa desconfiança em uma
criança. Havia uma causa para isso e não acreditava que fosse por algo que ele tivesse feito. Talvez
fosse porque tinha prometido um cão e ainda não o tinha dado. A verdade era que não tinha nem
ideia de onde encontrar um vira-lata. Supunha que na rua. Tinha que pensar um pouco mais nisso.
Mas não aquela noite. Aquela noite tinha assuntos mais importantes que tratar.
Olívia não podia dormir. Era incapaz de deixar de imaginar sua língua deslizando pela pele de
Jack Dodger. O que sentiria exatamente? Que gosto teria?
Embora estivesse sozinha na cama de seu dormitório, sentiu-se um pouco estranha quando
levantou a mão e lambeu o reverso. Não acreditava que ele fosse tão sedoso, nem que tivesse um
sabor tão puro.
Se o lambesse, ele também a lamberia? Estava certa que sim. Que começaria pela ponta de seus
pés e iria subindo lentamente por sua pele, talvez se detendo um pouco na parte posterior dos
joelhos antes de continuar seu caminho para o lado interior de suas coxas...
Afastou os lençóis, desesperada para aliviar o calor que sentia de repente.
Mas não conseguiu esfriar seus pensamentos. Imaginou sobre seus quadris, aproximando-se
lentamente para seus seios. Os colheu com as mãos, como se com esse único gesto pudesse deter
aquela louca fantasia, mas em sua mente ele esboçava seu despreocupado sorriso e a obrigava a
afastar as mãos. Sua língua desenharia círculos sobre sua pele e a atormentaria até acabar mordendo
o ombro. E não se deteria ali. Deleitaria-se com o sabor de seu pescoço e, depois de ter se satisfeito,
retomaria a viagem para baixo para experimentar com outras zonas.
Sentou-se na cama. Ofegava. OH, Deus. Apertou as pernas tentando deter as deliciosas
palpitações que sentia entre as coxas. Queria descer a mão e... Céu santo. Não sabia o que queria.
Estava tremendo, presa de um desejo que jamais tinha conhecido.
Era culpa de Jack Dodger. Não deixava de falar de coisas íntimas. Incitando-a a ansiar carícias
ilícitas. Só uma... Só uma bastaria para conseguir uma doce liberação.
Levantou-se da cama, tropeçou e quase caiu ao chão; sentia uma grande debilidade nos joelhos.
Levantou-se, inspirou com força e observou a porta que comunicava seu dormitório com o dele.
Cruzando ela, chegava ao dormitório do dono da casa, o quarto onde estava a cama em que agora
dormiria Jack Dodger, sem roupa.... Estaria tão perto...
Deveria mudar-se para outro dormitório, mas se o fizesse estaria admitindo sua covardia e
deixando entrever que ele a tinha vencido. Se tivesse alguma esperança de poder neutralizar a
influência que pudesse ter aquele homem sobre seu filho, sabia que não podia render-se. Tinha que
aguentar e o enfrentar.
E, acima de tudo, dormir um pouco para estar descansada e bem preparada para o que pudesse
ocorrer no dia seguinte. Talvez um pouco de leite quente a ajudasse a conciliar no sono. Pensou em
chamar à criada, mas gostaria de dar um passeio pela casa agora que Dodger não estava. Podia fingir
que a casa era dela, que Lovingdon se preocupou o suficiente com ela para dar-se conta do muito
que adorava aquele lugar. Mas seu marido não tinha prestado muita atenção. Tinha deixado-a com a
profunda tristeza de saber que não se deram nada o um ao outro. Reprimiu as lágrimas. Como podia
sentir falta do alguém que, desde que ficou grávida, não tinha sido mais que um estranho para ela?
Mas pelo menos pensar nele a ajudava a afastar seus pensamentos de Jack Dodger. Colocou um
xale sobre os ombros e saiu do quarto.
Tinha descido a metade da escadaria quando ouviu uma risada feminina que procedia do
vestíbulo, seguida de um rouco murmúrio que em seguida relacionou com Jack Dodger. Depois de
uma hora dando voltas na cama, sentindo-se tão insatisfeita por culpa de suas insinuações, não
estava de humor para tolerar que paquerasse com as empregadas, ou de deixar que se aproveitasse
delas graças a sua nova posição. Se ela ia à cama insatisfeita aquela noite, ele também o faria.
Acelerou o passo e chegou ao vestíbulo justo quando Jack dizia a Brittles que se retirasse e o
mordomo saia. Junto a Dodger havia uma mulher cuja vibrante cabeleira ruiva fazia empalidecer
todas as cores que a rodeavam. Olívia não a conhecia, mas não tinha nenhuma dúvida do tipo de
mulher que ele levaria a casa a essas horas. E não pensava tolerar esse comportamento.
Simplesmente, não pensava tolerá-lo. E menos ainda no dormitório que estava junto ao dele.
Dodger e a prostituta se viraram para ela.
— Ah, Olívia, é um pouco tarde para estar acordada, não? — disse ele, arrastando as palavras.
Ela se aproximou.
— Não penso deixar que você traga mulheres estranhas a esta casa. Terá que levá-la a outro lugar
para saciar sua luxúria.
Ele entrecerrou os olhos e Olívia o observou enquanto apertava os dentes.
— Esta é minha casa e ela está aqui porque eu quero que esteja. Vamos nos ocupar de nossos
assuntos na biblioteca. — aproximou-se da Olívia. — Se quiser ficar para olhar, é bem-vinda. Estou
certo que verá coisas muito imaginativas e entretidas.
Antes que ela pudesse responder, a mulher golpeou o braço dele.
— Não seja mau, Jack.
— Não se meta nisto, Frannie — grunhiu ele sem deixar de olhar Olívia nem um momento.
Esta se esforçou por não afastar a vista. Era evidente que existia certa familiaridade entre os dois,
e não queria pensar que talvez a jovem não fosse só uma prostituta que ele tinha recolhido na rua
para entreter uma noite; não queria pensar que pudesse ser sua amante, alguém que costumava a
esquentar sua cama. Jack possuía uma virilidade magnética que seu marido não possuía, e Olívia
suspeitava que precisasse deitar-se com mulheres frequentemente para manter sua luxúria a raia.
Esses pensamentos provocaram um calor que subiu até suas bochechas e soube que estava
ruborizando, porque podia ver a satisfação nos olhos do Jack.
No que estava pensando quando decidiu enfrentar a ele? Estava brincando com o demônio. E era
algo muito perigoso, porque nem sequer conhecia as regras do jogo.
— Peça desculpa a minha convidada.
— Jack...
— Agora não, Frannie.
— Jack!
A mulher repetiu seu nome como se fosse uma ordem e, para surpresa de Olívia, ele obedeceu.
Retirou-se e, embora seguisse apertando os dentes, a fúria que ardia em seus olhos diminuiu.
— Deve-te uma desculpa.
— Não é verdade. O que vai pensar se trás à sua casa uma mulher a estas horas da noite?
— Não tem por que pensar que é uma prostituta.
— Bom, sua forma de se comportar quando chegamos não ajudou muito. — Deu um passo
adiante e fez uma pequena reverência. — Sua excelência, sou Frannie Darling. A contadora de Jack.
Pediu-me que dê uma olhada a estes livros.
— Frannie, não tem por que dar nenhuma explicação.
— Talvez não, mas está dando a impressão que estou aqui por motivos desonestos. Eu não
mereço isso, Jack.
Ele amaldiçoou entre dentes.
— Tem razão. Sinto muito.
Estava sinceramente arrependido e Olívia se perguntou se aquela jovem significaria mais para ele
do que estaria disposto a admitir.
— Eu não fui o primeiro em insinuar que é o que não é.
— Não, mas não tem feito nada para corrigir o mal-entendido — respondeu a senhorita Darling,
que parecia bastante irritada.
— Eu também devo me desculpar — começou a dizer Olívia— Imaginei o pior.
A jovem ruiva sorriu.
— Não é de se admirar que com o Jack ocorram estas coisas. Trabalhou duro para ganhar a
reputação que tem.
— Frannie — grunhiu ele.
— Oh, se comporte ou não cuidarei de seus livros. — Voltou a centrar a atenção em Olívia. —
Embora pareça mentira tendo em conta como vai bem, não se dá bem com os números.
— Não sou tão mau — interveio ele. Quando a senhorita Darling o olhou com surpresa, ele
murmurou: — Embora não seja tão bom como você. Podemos nos concentrar no trabalho de uma
vez?
— É obvio — respondeu a jovem. — Foi um prazer conhecê-la, sua excelência. E Jack tem
razão: estaremos encantados que fique conosco.
Olívia pareceu cair então na conta que estava de camisola e que não era um traje muito adequado
para receber visitas.
— Prepararei algo de beber.
— Isso seria ótimo, obrigada — disse a senhorita Darling.
Olívia os observou enquanto foram em direção ao corredor. Dodger parecia muito concentrado
em deixar uma discreta distância entre ele e a jovem. Olívia se deu conta que Frannie Darling era
alguém especial para ele e se perguntou o que se sentiria ao receber os cuidados de um homem tão
jovem, viril e estranhamente generoso como Jack Dodger.
Frannie Darling estava sentada na grande escrivaninha de mogno da enorme biblioteca e estudava
os livros e informes que Jack tinha dado, quase com a mesma concentração com que estudava a ele.
Ajeitado em um sofá que havia junto à janela, folheava um livro de capa negra como se estivesse
procurando a resposta a um enigma que o tinha desconcertado.
Fazia muitos anos que conhecia Jack. Tinha sido como um irmão mais velho para ela: sempre a
protegia e se assegurava que ninguém a machucasse nem ferisse seus sentimentos. Por isso a tinha
surpreendido tanto aquela noite ver que ele deixava, a propósito, que a duquesa acreditasse que entre
eles ocorria algo inapropriado. Isso a fez perguntar-se por que importaria o que a duquesa pensasse
dele e por que tinha tanto interesse em que essa opinião fosse negativa. Frannie sabia que Jack não
tinha medo de nada, mas também sabia muito bem que sempre tinha evitado qualquer situação em
que seus sentimentos se vissem implicados.
Jack jamais falava de seu passado, de suas origens ou de sua mãe, mas Feagan tinha explicado a
Frannie que está o tinha vendido.
— Imagine como se sentiria se alguém a quem se ama muito, a vendesse — comentou Feagan.
Frannie era incapaz de imaginar isso.
Também acreditava que algo terrível aconteceu a Jack quando esteve na prisão com Luke. Antes
de ir ao cárcere, estava acostumado a rir muito frequentemente e, quando o fazia, os meninos de
Feagan riam com ele. Mas quando retornou para casa depois daquele período de encarceramento, o
som de sua risada tinha mudado. Já não continha a mínima faísca de alegria.
Frannie tinha perguntado sobre isso em uma ocasião, mas ele se negou a falar sobre o que
chamou os tempos obscuros. Luke também guardava silêncio sobre o tema, mas quando via como se
olhavam um ao outro, tinha a certeza que o que tinha acontecido ali tinha afetado aos dois, tinha-os
unido para sempre e os tinha separado do resto.
Jack tinha levantado muros a seu redor e, em certo modo, Frannie tinha a sensação que
continuava no cárcere; uma prisão que ele mesmo construiu, mas uma prisão do começo ao fim.
Também se perguntou quais seriam seus verdadeiros sentimentos pela duquesa. Estava sentado
naquele sofá, com a maior tranquilidade, como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo, mas
quando ouviu que alguém batia na porta, levantou o olhar e Frannie pôde ver um rastro de ilusão em
seu rosto durante um segundo, que conseguiu ocultar em seguida. Teve menos êxito escondendo sua
decepção ao dar-se conta de que quem levava o chá e as bolachas era a serva. Frannie teve a
sensação que tinha esperado que a duquesa decidisse ficar com eles. Embora jamais o admitisse. Jack
nunca revelava nada que pudesse fazer parecer vulnerável.
Frannie bocejou e estirou os braços para eliminar a tensão. Já estava a mais de duas horas
estudando aqueles informes.
Jack, que pareceu dar-se conta que ela queria deixá-lo por aquela noite, aproximou-se e se sentou
em uma ponta da mesa.
— O que te parece?
— Não está mal. Mas tem razão; o dinheiro não está sendo investindo da melhor forma.
— Suponho que poderia investi-lo no clube.
— Não acredito que sua viúva aceite.
— Não é minha viúva.
Frannie não estava convencida dessa afirmação.
— Não é muito simpático com ela.
— Sou todo o simpático que merece.
— Mas não seria muito melhor que fosse mais simpático do que ela merece? Assim talvez
pudesse chegar a gostar de você.
— Nunca me importou o que as pessoas pensem de mim. Já sabe. Ah, aquele homem era muito
obstinado.
— Sua vida acaba de dar um giro drástico. Não posso nem imaginar a força que terá que ter para
superar a morte do marido.
Ele tamborilou com os dedos sobre a mesa, como se estivesse perdendo a paciência.
— Tentei me mostrar cordial. Frannie o olhou com incredulidade.
— Suponho que esse encontro no vestíbulo não era um de seus intentos por se mostrar cordial.
— Essa mulher não deixa de me criticar e me ofender.
— Jack...
— Frannie. — Levantou a mão. — Tratarei à viúva como melhor me pareça.
— Muito bem. Pode continuar sendo tão obstinado como queira. — Fechou o livro com força.
— Estou cansada. Levarei isto comigo. Quero examinar com mais detalhe.
Ele se afastou da mesa e se deixou cair em uma poltrona frente à de Frannie.
— Teremos que comprar uma casa.
— O que acontece com esta?
— É minha.
— Você não precisa dela. Já me disse muitas vezes que não tem nenhum interesse em se casar
nem em ter filhos.
— Isso não tem nada a ver.
— Por que queria que ela pensasse que íamos fazer travessuras aqui dentro?
— Sempre pensa o pior de mim. Não quero decepcioná-la.
— Então, sim te importa o que pense.
— Não diga tolices, Frannie. Não se dá bem.
— É absolutamente desagradável. Ele esfregou a fronte.
— Sinto muito. Estou cansado. Dormi muito pouco na noite passada, embora seja um preço
muito pequeno. O que acha da casa?
— É linda. — inclinou-se para frente, apoiou o queixo nas palmas das mãos e os cotovelos sobre
a mesa. — Feagan sempre disse que você chegaria mais longe que qualquer um de nós.
Jack olhou a seu redor.
— Na realidade não a consegui por meus próprios méritos, assim não conta.
— A maioria das pessoas aceitaria sua boa sorte e se sentiria feliz.
— Eu não confio na boa sorte gratuita. Sempre há um preço a pagar, Frannie. Sempre. —
Dedicou um travesso sorriso. — Só quero saber qual é o preço antes de ter que pagá-lo.
— Teve uma vida muito dura, Jack. Talvez tenha chegado a hora de ter boa sorte.
— Se a vida fosse assim justa... — ficou em pé de repente. — Venha, vamos ao clube. Para nós a
noite ainda é jovem.
Capítulo Nove

Na manhã seguinte, quando um cansaço sem precedentes se apoderou dele, Jack se deu conta
que deveria ter dormido quando Frannie e ele voltaram para o clube. Mas, em lugar de descansar,
tinha estado ocupando-se de um lorde ao qual tinham acusado de fazer trapaças, e logo passou uma
considerável quantidade de tempo explicando a uma das garotas que não podia pedir que matasse
um homem só porque este se cansou de seus favores. Depois, manteve uma curta conversa com o
conde de Chesney, que poderia solucionar um de seus problemas. Swindler tinha passado por ali
para informar de que a única coisa que tinha descoberto sobre os primos até o momento era que os
dois levavam uma vida muito reservada, o que, justamente, o fazia pensar que isso era motivo mais
que suficiente para observá-los mais de perto. Swindler adorava os bons enigmas. Se os primos de
Lovingdon estavam ocultando algo, ele descobriria.
Mas Jack tinha passado a maior parte da noite estudando a forma de aumentar seus lucros.
Tal como havia dito para Frannie, tinha dormido muito pouco desde que assistiu à leitura do
testamento, por isso, quando chegou à residência do duque e se deu conta do caos que havia na casa,
sentiu-se completamente exausto. Ouvia-se ruído de móveis que alguém arrastava, e chegavam gritos
de diferentes vozes: — Henry! Sua excelência! Jovem amo!
Era evidente que o menino tinha causado algum tipo de revoo. Jack não o acreditava capaz de
fazer algo que não fosse sentar-se em silêncio e comportar-se perfeitamente. Alegrava-se por ele. O
natural era que um menino fizesse alguma travessura de vez em quando.
Estava começando a subir a escada quando viu como a duquesa a descia a toda pressa.
— Oh, graças a Deus que por fim você aqui — disse ela muito apurada.
Sorriu.
— Finalmente está começando a me apreciar, né?
— Não, bufão. Henry desapareceu.
Jack tinha vontades de deitar-se, não de brincar de esconde-esconde.
— O que quer dizer com isso de que desapareceu?
— Porque não está. Quando sua babá despertou esta manhã, meu filho não estava em sua cama.
Ninguém o viu. Pensamos que talvez você o tivesse levado. Foi você?
Falava a toda pressa para poder fazer-se entender quanto antes e conseguir a resposta de Jack no
menor tempo possível. Quando se calou, ele se deu conta da preocupação que nublava a vista.
— Não.
— Então, onde está? Você acredita que o sequestraram? É tal como você suspeitava? Está em
perigo?
Jack a agarrou pelos ombros.
— Tranquilize-se, Olívia.
Ela se separou dele e quase caiu pela escada.
— Não quero me tranquilizar! Quero encontrar meu filho! O que acontece..., o que acontece se
tem feito mal? — gemeu.
— Quem iria querer machucá-lo?
— Você parecia pensar que alguém queria machucá-lo. Jack esfregou o queixo.
— Sim, sim, sim. — Era verdade que ele pensava que o menino podia estar em perigo, mas como
podiam tê-lo sequestrado enquanto estava com sua atenta babá? Bom, pelo visto não tão atenta.
Entretanto, continuava parecendo muito estranho que alguém entrasse na casa para sequestrar
Henry e houvesse tornado a sair sem que ninguém o visse. — Onde procuraram?
— Em todas as partes. Não será isto uma de suas brincadeiras absurdas ou uma de suas táticas
para me fazer entrar em razão?
— Estou fora há muitas horas. Como vou ser eu o responsável?
Jack estava começando a se cansar de sua desconfiança. Começou a subir a escada.
— Aonde vai? — gritou ela.
Olívia ofegava; era evidente que tinha estado correndo por toda a casa e que ficou sem fôlego.
Desconcertava-o ver naquele estado aquela mulher que sempre parecia ter tudo sob controle.
— Ao meu quarto, lavar o rosto para descansar um pouco assim poderei encontrar uma forma de
resolver isto.
Jack ouviu o eco das pegadas dela enquanto o seguia escada acima. Surpreendia-o muito a grande
quantidade de detalhes dela que estavam começando a ser familiares: o som de suas pegadas, sua
fragrância...
— Não o levou quando se foi?
— Claro que não. — Jack chegou ao patamar. — Pode ser que tenha ido a Grande Exposição.
Ele não tinha muita vontade de vê-la?
— Mas nunca iria só. Não saberia que direção tomar.
— É um menino, duquesa. Não precisa conhecer o caminho que conduz à aventura. Só precisa
saber o que está esperando.
Abriu a porta de seu quarto.
— Mas e se o sequestraram? — perguntou ela.
Sua voz soava ao limite da histeria. Jack sabia que a única maneira de a tranquilizar era encontrar
a seu filho.
— Pediremos ajuda ao Swindler. Esse homem pode seguir qualquer rastro com os olhos
enfaixados.
Entrou em seu quarto e se surpreendeu ao dar-se conta que Olívia entrava atrás dele. Era
evidente que o pânico anulava as boas maneiras. Se não tivesse estado tão nervosa, Jack teria
aproveitado para aborrecê-la um pouco.
Dirigia-se ao móvel onde se estava o lavatório de porcelana, quando ouviu um golpe procedente
do interior de um dos armários. Tinham procurado em todas as partes? Ou só tinham olhado nos
lugares onde esperavam que Henry pudesse estar?
Jack abriu a porta do armário e o menino pulou fora como um animal selvagem.
— Não não! Não pe-penso p-permitir eu não que-queria!
Jack agarrou o menino entre seus braços instintivamente e o abraçou, tentando acalmá-lo. Estava
de pijama e se debatia como um tigre. Era presa de um intenso medo e não deixava de gesticular.
— Tranquilo, menino.
— Solte-o. O que fez? Solte-o! — gritou a duquesa.
Jack se agachou. Com que diabos o tinha golpeado? Notou que a duquesa fez um corte em seu
rosto. Amaldiçoou em alta voz, se esquivou outro golpe e soltou o menino, que aproveitou para dar
um chute na canela.
Estupendo.
Ao Jack se acelerou a respiração e deu um passo atrás para poder localizar a arma; por fim pôde
ver que ela estava utilizando um atiçador de ferro para golpeá-lo. O menino choramingava e dizia
que sentia. A duquesa continuava olhando com ódio a Jack enquanto rodeava protetoramente ao seu
filho com um braço e mantinha o atiçador preparado na outra.
— O que tem feito?! — quis saber ela.
Jack tocou a dolorida bochecha com o dorso da mão, retirou-a e ficou olhando o sangue.
— Si-sinto— disse o menino, chorando e com as bochechas molhadas. — Não farei nu-nunca
mais. Pro-prometo-o.
— Do que está falando, menino?
Ouviu-se um som na porta. A babá tinha chegado e observava a cena com preocupação; mas Jack
não estava certo que fosse pelo menino. Parecia-muito mais provável que estivesse inquieta por si
mesmo, por ter perdido o menino. Como se chamava? Hazel? Harriet? Helen? Helen, sim.
— Eu o levarei, sua excelência — disse, aproximando-se do menino.
— Não, não o fará — espetou Jack com secura. Todo mundo ficou olhando. Pelo menos, tinham
deixado de gritar. — Não até que eu entenda o que está acontecendo aqui.
— É evidente que você o aterroriza — replicou a duquesa.
— Já me dei conta que está assustado — respondeu ele tranquilamente, quando sentia de tudo
menos tranquilo. — Quem te fez mal, Henry?
O menino negou com a cabeça com energia.
— O que acha que vou fazer? Henry voltou a negar com a cabeça.
— Deixe-o em paz — ordenou sua mãe, voltando-se para a porta com seu filho em braços.
— Não. — A ameaça deve ter sido evidente na voz de Jack, porque ela parou e o olhou aos
olhos. — Parece esquecer que sou seu tutor. E obterei a resposta a minha pergunta embora tenha
que ficar aqui todo o dia.
Jack recordou como Swindler se agachou frente à duquesa no dia anterior e, apesar de que seu
instinto o impedia de intimidar-se ante ninguém, agachou-se, colocando-se à altura dos olhos do
menino e tentou adotar uma atitude menos ameaçadora possível.
— Tem medo de mim? Henry assentiu.
— Por quê?
Henry olhou sua mãe e logo olhou à babá.
— Não procure a resposta nelas, Henry, pense por si mesmo. O que acha que vou fazer?
Ele começou a olhar os dedos dos pés.
— Lembra-se do que te disse ontem pela manhã? Lembra-se que te expliquei que seu pai tinha
pedido que te protegesse? Eu não conhecia muito bem ao seu pai, Henry, mas sei que se preocupava
muito por você, e eu não tomo nada menos o que me pediu. Disse que nunca deixaria que alguém te
fizesse mal. Então, por que tem medo de mim Jack o observou tragar saliva. Então começou a
tremer o lábio inferior.
— Queimará-m-meu o po-polegar.
— E por que ia eu fazer algo assim?
— Po-porque me esqueci e chu-chupei meu po-polegar enquanto estava dou-dormido.
Assim que despertou, tinha sentido que tinha o dedo na boca e tinha decidido esconder-se.
Aquilo estava começando a ter sentido.
— Quem te disse que eu te queimaria o polegar se o colocasse na boca?
— Minha babá — sussurrou, como se estivesse revelando um grande segredo.
Jack se levantou olhando fixamente à mulher, que de repente empalideceu.
— Eu não gosto de pessoas que aterrorizam as crianças para que se comportem bem. Está
despedida. Recolha suas coisas. Quero você fora desta casa em uma hora.
— Mas, senhor, não me ocorreu nada mais. Agora é um jovem duque. Não deveria chupar o
dedo.
— É seu dedo. Não me importa se o quer chupar até que seja adulto. Recolha suas coisas.
Helen olhou à duquesa.
— Sua excelência, tenha piedade de mim.
Olívia abriu a boca...
— Se me contrariar nisto, você também pode ir recolhendo suas coisas — espetou ele,
empregando um tom de voz tão firme que não permitia muita réplica.
Ela o olhou e, pela primeira vez, em seus olhos não se refletia aborrecimento nem ódio. Só o
horror e a profunda dor do que acabavam de descobrir. Dirigiu-se à babá.
— Tem razão. O que fez é monstruoso; é injusto para o senhor Dodger e absolutamente cruel
com meu filho. Não posso te perdoar nem te defender. Temo que o senhor Dodger foi muito
generoso te dando uma hora para recolher. Quero que o faça na metade do tempo.
Helen soltou um profundo soluço antes de dar meia volta e pôr-se a correr pelo corredor.
Jack olhou para Henry.
— Eu nunca te farei mal. Entende? O menino piscou e assentiu.
— Muito bem.
— Está sangrando — disse a duquesa.
— Não é a primeira vez que sangro. Agora quero tomar um banho, assim saia daqui.
— Senhor Dodg...
— Fora — rugiu, apertando os dentes e interrompendo o que ela ia dizer. — Porque a você,
duquesa, possivelmente sim te faça mal.
Olívia levou Henry até a saída, agarrou o pomo da porta e ficou quieta.
— Não pretendia contradizer sua decisão de despedir Helen, pensava o mesmo que você
inclusive antes que me ameaçasse.
Acaso acreditava que aquela confissão ia apaziguá-lo? Mas antes que ele pudesse pensar em uma
resposta apropriada, ela fechou lentamente a porta.
Jack tirou o lenço do pescoço de repente, rasgando-o. Não era suficiente. Aproximou-se de uma
pequena mesa que havia junto a um sofá, agarrou um vaso e o lançou contra a chaminé, rompendo-
o em mil pedaços. Tampouco conseguiu sentir-se melhor.
Ganhou a má opinião de muitos homens ao longo de sua vida, por que o incomodava tanto que
uma absurda duquesa acreditasse que era capaz de machucar seu filho? Sua opinião não importava.
Ela não significava nada para Jack. Não importava o que pensasse. Aquela mulher sempre esperava o
pior dele. No que teria pensado seu marido para nomeá-lo tutor?
Enquanto olhava fixamente o vaso que tinha quebrado, pensou nas crianças que trabalhavam
para ele e recordou aquela noite em que quase matou um homem em seu clube porque tocou em um
deles de uma forma em que nenhum homem deveria tocar um menino. Estava ali Lovingdon aquela
noite? Sabia que a debilidade de Jack era proteger as crianças pequenas?
— É assim tão simples? — perguntou a si mesmo em um sussurro.
Abriu-se a porta do quarto. Por um segundo, Jack esperou ver a duquesa e, por muito que o
desgostasse, havia sentido uma pequena pontada de ilusão; mas era seu ajudante de câmara, Stiles.
Jack o tinha conhecido na noite anterior. Não era muito mais alto que Olívia e era um homem
bastante grande. Mas continuava tendo um semblante orgulhoso.
— A duquesa me informou que você necessita de alguns cuidados e um banho.
— Cuidados?
O homem agachou ligeiramente a cabeça.
— Tem um corte, senhor.
Jack voltou a tocar a bochecha: tinha-a um pouco torcida, mas apenas manchou os dedos de
sangue.
— Estou bem.
— Posso pedir que venha um médico...
— Já disse que estou bem. Se quiser ficar trabalhando para mim, não me faça repetir as coisas.
— Sim, senhor. Já pedi às donzelas que subam a água quente. O banho estará preparado em
seguida.
— Perfeito. Quero que me prepare um banho de manhã e outro cada noite antes de ir.
— Como você desejar senhor.
— E quanto a roupa, eu não volto a usá-la até que esteja lavada e engomada.
— Sim, senhor.
Jack nunca tinha tido um ajudante de câmara. E não estava muito certo de querer ter nenhum.
— Eu não sou duque. Sei que poderia perder sua categoria se ficar a meu serviço. Se preferir ir,
escreverei uma boa carta de recomendação.
O homem levantou ligeiramente a cabeça e esboçou um pequeno sorriso.
— Obrigado, senhor, mas tive a honra de servir ao duque desde que ele era muito jovem. Sinto-
me muito cômodo nesta casa e eu não gosto das mudanças. Prefiro ficar, se não for inconveniente.
— Muito bem. Trouxe um pouco de roupa. Está na carruagem. Peça a algum lacaio que a suba.
— Sim, senhor. Necessita algo mais?
— Quando me trouxerem a roupa, me escolha uma muda. Logo, se retire. Quero dormir um
pouco e sou perfeitamente capaz de me vestir sozinho.
— Muito bem, senhor.
— Diga-me, Stiles, alguma vez estava em desacordo com o duque? Quando sorria, as rugas de
sua cara se marcavam mais.
— Algumas vezes, senhor. Era espantosamente ruim em combinar cores. Às vezes, parecia um
pavão.
— Comigo não terá esse problema. Toda minha roupa é negra ou branca, à exceção dos coletes.
— Sim, senhor. Já me dei conta que parece ter um estilo muito pessoal com os coletes.
Jack não percebeu censura em sua voz. Deu a sensação que se dariam bem.
— Sente falta dele?
— Muito, senhor.
— Me diga, Stiles, outros serventes aceitaram tão bem como você que eu seja o novo senhor da
casa?
— Acredito que reservam a opinião, senhor.
— É uma lástima que a duquesa não tenha sido capaz de fazer o mesmo — murmurou. Então
fez um gesto com a mão ao homem indicando que podia retirar-se. — Vá cuidar de seus assuntos
enquanto eu tomo um banho.
— Sim, senhor.
Stiles abandonou o quarto e Jack entrou no banheiro. Seu olhar se dirigiu imediatamente para a
porta que dava acesso ao dormitório de Olívia. Agora não estaria ali, mas no quarto de Henry.
Talvez, agora que o menino não tinha babá, sua mãe decidisse dormir ali com ele.
Tirou a jaqueta e se perguntou quantas vezes teria banhado a duquesa naquela banheira de cobre;
imaginou recostando-se nela, no quente vapor da água escorregando por suas bochechas e seu
pescoço, ao tempo que fazia que frisassem as mechas que penduravam junto ao rosto. Imaginou a
água balançando sobre seus seios, seu estômago, seus quadris, suas coxas. Imaginou ali sentada, com
os joelhos a modo de ilhas em meio da banheira.
Seu corpo reagiu imediatamente às eróticas imagens que o bombardeavam e Jack grunhiu. Menos
mal que tinha pedido a seu servente que partisse. Não necessitava público quando seu corpo estava
nesse estado.
Tirou o resto da roupa, meteu-se na água e afundou nela. Era maravilhoso. Absoluta e
malditamente maravilhoso.
Apoiou a cabeça contra a parede da banheira e fechou os olhos. Perguntou-se se encontraria com
uma crise cada vez que chegasse em casa. Teria que passar um pouco de tempo com Henry. Supôs
que deveria falar com Luke para perguntar que tipo de coisas devia saber um menino da nobreza.
Ele, por sua parte, podia ensinar como esconder-se...
Riu com uma mescla de orgulho e admiração. O pirralho já tinha feito isso bastante bem. E
também era mais valente do que ele pensava, pois tinha escolhido esconder-se na guarida da pessoa
que temia. Sim, ao que parecia, o menino tinha mais qualidades do que Jack pensava. Ainda tinha
muito trabalho pela frente para converter-se em um homem, mas inclusive a pesar da gagueira, tinha
uma boa base. Sempre que conseguisse separá-lo das saias de sua mãe.
Sua mãe. Deus, adorava observá-la quando estava zangada. Afundou-se um pouco mais na
banheira. Ninguém o tinha banhado desde que era um menino, mas imaginou Olívia deslizando um
pano úmido por seu corpo. Entretanto, como ela não estava ali, teria que fazer ele mesmo. Uma
lástima.
Suspirou profundamente. Pelo visto, não podia aguentar muito tempo zangado com ela.
Admirava sua tenacidade para proteger seu filho. Pensou que era provável que fosse uma mulher
capaz de dar muito amor. Jack se conformaria com que, de vez em quando, concedesse o benefício
da dúvida.

Olívia não queria pensar que naquele preciso momento Jack Dodger estava em seu quarto de
banho.... Banhando-se. Como ia entrar na banheira depois, sabendo que seu corpo nu havia tocado
o mesmo cobre? Por gosto, Olívia só compartilharia o banheiro com alguém a quem conhecesse
muito bem. Embora não iriam estar na banheira ao mesmo tempo, continuava parecendo algo muito
íntimo e delicioso.
Mas não era na nudez de Jack Dodger no que deveria estar pensando nesse momento. Tinha que
centrar-se em encontrar outra babá para Henry.
Estavam sentados em um sofá do quarto do menino, com este deitado sobre ela. Colocou o
polegar na mão e tinha fechado os outros dedos sobre ele, como se estivesse decidido a não o
chupar. Entretanto, se havia algum bom momento para fazê-lo, não cabia dúvida de que era aquele.
Olívia sabia que tinha que tirar esse costume dele, mas era incapaz de compreender porque Helen
tivesse empregado aquele meio tão cruel para isso. Entretanto, por muito preocupada que a tivesse
deixado a atitude da babá, não podia competir em como a tinha deixado Jack Dodger. A opinião que
tinha a respeito dele tinha mudado durante aqueles tensos momentos; tinha mudado a seu favor. Ela
já tinha recebido alguns de seus abrasadores olhares, mas jamais tinha visto tanto ardor em seus
olhos como quando olhou a Helen. Surpreendeu-a que a jovem não começasse a arder ali mesmo.
Tinha temido que Dodger se mostrasse tão cortante com Henry como era com ela. Olívia
esperava que não levasse em conta os sentimentos de seu filho, que fosse tão duro e implacável
como parecia ser com todo mundo. Realmente a tinha pego de surpresa.
Tinha julgado Jack Dodger segundo as conversas que tinha tido com outras damas. Estas tinham
falado de homens que chegavam a casa a altas horas da madrugada, cheirando a álcool e mulheres e
ela tinha dado por certo que Jack bebia muito e fornicava a todas as horas. Uma conhecida tinha
contado que seu marido vendeu suas jóias para conseguir dinheiro e poder continuar jogando, assim
Olívia tinha dado por certo também que Dodger passava muito tempo nas mesas de jogo. Tinha
visto que nunca se sentava com correção e tinha assumido, portanto que estava sempre sujo. Mas
em troca sempre o via impecável e, nesse preciso instante, estava tomando um banho.
Tinha dado por certo que era má pessoa e, entretanto, não tinha tentado brigar com ela quando o
estava golpeando com o atiçador. Limitou-se a afastar-se para que não pudesse acertá-lo, quando, e
disso estava convencida, poderia tê-la atirado ao chão sem problemas. Dirigiu-se a Henry com tom
contundente, mas tinha feito muito bem para não minar a confiança do menino e tinha conseguido
que confessasse tudo.
Olívia também pensava que era antipático, mas a mulher da noite passada, Frannie Darling, tinha
brincado com ele e inclusive tinha golpeado amigavelmente o ombro. E quando o amolado, ele nem
sequer respondeu.
Estava certa que era um homem que faria tudo por uma moeda. As finanças de seu filho estavam
em suas mãos e poderia tirar tudo; entretanto, já tinha deixado claro que não tinha nenhuma
intenção de fazê-lo. Talvez fosse uma mutreta para que ela baixasse a guarda. Se conseguisse que
Olívia confiasse nele, poderia levar uma quantidade de dinheiro ainda maior. Mas se começasse a
confiar nele, poderia também chegar a desfrutar de sua presença? Não, jamais. Só o que tinham em
comum era Henry, e eram incapazes de ficar de acordo em nada que concernisse.
Bom, em quase nada. Tinha estado completamente de acordo com ele quando decidiu despedir
Helen. Tinha sido muito vergonhoso por parte desta utilizá-lo para assustar seu filho e conseguir que
se comportasse bem. Como podia deixar de ver que a babá pudesse ser capaz de fazer tal coisa?
Teria ameaçado Henry com algo mais?
Era um menino calado e um bom menino. Na realidade, era tímido, mas Olívia sempre tinha
achado que era porque tinha vergonha da gagueira. Seu marido não tinha dado nenhuma
importância.
— É a maldição dos Lovingdon. Superará. Eu superei.
Assim Olívia tinha tentado não se preocupar com isso. Henry parecia muito com o seu pai. Tinha
o cabelo loiro da família deste mas tinha herdado o mesmo tom âmbar de seus olhos. Tinha as
pernas e os braços longos, e ela sabia que chegaria a ser tão alto como Lovingdon. Mas agora que
Dodger era seu tutor, Olívia não sabia como conseguiria chegar a ter a dignidade de seu pai.
A porta se abriu e Henry e ela se sobressaltaram. Dodger entrou no quarto. Com uma confiança
que Olívia não acreditava que nem Lovingdon possuísse.
— Vamos, Henry — disse.
O menino começou a afastar-se dela, mas Olívia voltou a aproximar-se dele.
— Aonde o leva?
— Tendo em conta que sou seu tutor, não acredito que deva nenhuma explicação; mas como é
sua mãe e não cabe dúvida que se preocupa com seu bem-estar, explicarei. Levo-o para dar um
passeio em minha charrete.
— Acreditei que ia dormir um momento.
Antes, ao sair de seu dormitório, Olívia ouviu como quebrava algo, assim tinha esperado que
Stiles saísse do quarto para falar um momento com ele e certificar-se que tudo ia bem. O servente
disse que recolheria os restos do vaso quando o senhor Dodger despertasse.
Ele a olhou com os olhos entrecerrados.
— Pensava fazê-lo, mas decidi me cuidar antes disto.
— Cuidar do que?
Ouviu-se um profundo ronrono, parecido ao som de um gato grande contemplando a sua
seguinte vítima.
— Olívia, de verdade que põe a prova minha paciência. Venha, menino.
Ela se deu conta que Henry tremia de pés a cabeça quando se afastou e ficou de pé.
— Não posso deixar que o leve a nenhuma parte sem mim — disse enquanto se levantava. —
Irei também.
— Não teria que começar a entrevistar babás?
— Pedi a uma de minhas donzelas que ocupe esse posto até que possa reunir as recomendações
suficientes.
Jack a olhou com impaciência.
— A charrete já está preparada e tenho um dia muito apertado. Não tenho tempo para esperar
que preparem a carruagem e, tal como você apontou com tanta amabilidade, na charrete só cabem
duas pessoas.
— Henry pode sentar em meu colo. Enfrentarei você com unhas e dentes se for necessário, mas
não penso deixar que o leve sem mim.
Jack a olhou como se tivesse decidido aceitar o desafio. Olívia não estava segura que não
acabassem aos murros, mas ao imaginar-se lutando com ele corpo a corpo...
— Muito bem, vamos. Rápido. Não tenho todo o dia.
Olívia agarrou Henry pela mão e se perguntou em que confusão estaria se colocando.

Henry ia sentado no colo de sua mãe. Sempre tinha gostado de passear de charrete, porque tinha
uma janela pela qual podia ver tudo. Podia observar o mundo, e era fascinante.
Embora agora que o senhor Dodger estava sentado nele, o veículo parecia muito pequeno.
Perguntou-se se sua mãe teria se dado conta da quantidade de espaço que ocupava o senhor Dodger
e de como estavam apertados. Não deixou de ver com tensa estava ela. Mal respirava. Era o mesmo
que fazia Henry quando tinha medo pelas noites: ficava quieto na cama e aguentava a respiração
como se, de alguma forma mágica, as coisas más não pudessem encontrá-lo se não respirasse.
Perguntou-se, se sua mãe teria medo do senhor Dodger. Perguntou-se, se ele deveria ter medo.
Tinha dito a ele que não o queimaria e havia dito à senhora Tuppin que não se importava se
chupasse o dedo. Isso tinha feito sentir-se muito melhor, mas também tinha feito que quisesse deixar
de chupar o polegar; por isso o tinha segurado, sob outros dedos, para evitar metê-lo na boca.
O senhor Dodger não usava cartola como seu pai, mas usava uma jaqueta negra muito bonita. E
seu colete era de cor verde escura, com botões dourados; não era o de cor violeta que usava no dia
anterior.
Parecia cansado. Inclusive tinha bocejado sem tampar a boca, o que tinha feito que sua mãe
enrugasse o nariz. Até Henry sabia que um cavalheiro devia tampar a boca quando bocejava. Mas
quando sua mãe fez aquele som para indicar quanto tinha desagradado o que tinha feito o senhor
Dodger, este piscou um olho ao Henry, como se compartilhassem um segredo. Ele pensou que o
senhor Dodger conhecia a norma sobre os bocejos, mas que tinha parecido mais divertido provocar
a sua mãe. Henry tinha a sensação que não gostava muito do senhor Dodger, mas acreditava que ele
sim gostava de sua mãe.
O veículo entrou por um caminho pavimentado e Henry viu como ante eles aparecia uma enorme
residência.
— Esta é a casa de lorde Chesney — disse sua mãe. — É muito cedo para vir visitar.
— Não viemos fazer nenhuma visita — disse o senhor Dodger.
— Então, por que estamos aqui? — perguntou sua mãe.
— Porque o jovem duque tem que o ver.
— Para que?
O senhor Dodger parecia desesperado, mas Henry teve a sensação que ele, de repente, parecia
contente. Deu-se conta que trocava a forma da boca e pensou que esboçava um diminuto sorriso.
— Porque a cadela do conde acaba de ter uma ninhada de cachorrinhos. Henry acreditou que ia
sair o coração pela boca.
— Cachorrinhos?!
O senhor Dodger o olhou e voltou a piscar um olho.
— Prometi um, não foi?
Ele não o viu mover a mão, mas de repente se deu conta que estava entregando um cartão.
— Toma, seu cartão de visita.
— São do duque — disse sua mãe.
— Sim, encontrei-os em uma gaveta da mesa. Agora pertencem a seu filho, já que ele é o duque.
Sua mãe piscou várias vezes, da mesma forma que o fazia sempre que se esforçava por não
chorar.
A carruagem parou. O lacaio desceu, abriu a porta e desdobrou os degraus. O senhor Dodger
desceu. Henry se arrastou pelo assento para descer atrás dele. O senhor Dodger se virou e alongou o
braço.
— Venha, duquesa?
Ela olhou o senhor Dodger; logo olhou Henry e esboçou um triste sorriso.
— Estou de luto. Não seria apropriado. Porte-se bem, Henry.
Ele assentiu e levantou a cabeça para olhar ao senhor Dodger. Tinha um pouco de medo e queria
segurar sua mão, mas o senhor Dodger não parecia nada assustado. Deu um tapinha no ombro que
foi quase tão reconfortante como se o tivesse pegado pela mão.
— Vamos, menino.
Henry subiu os degraus da casa atrás dele. Em seguida apareceu um mordomo.
— Mostre o seu cartão — disse o senhor Dodger.
Henry fez o que dizia. O mordomo o pôs sobre uma bandeja de prata e se foi. Ele se esforçou
por ficar bem firme, tão firme como o senhor Dodger. Tinha vontade de saltar e bater palmas. Por
fim ia ter um cachorrinho!
Pareceu passar muitíssimo momento até que apareceu um homem com uma grande barriga muito
redonda.
— Ah, sua excelência. O senhor Dodger me informou que você necessita de um cachorrinho.
— Sim, é-senhor.
O homem sorriu.
— Eu sou Chesney. Sinto pelo seu pai. Era um bom homem. Muito bom homem.
Henry sabia de que devia responder algo...
— Obrigado, lorde Chesney — disse o senhor Dodger. — O duque aprecia muito suas
condolências.
— Mas está mais interessado em meus cachorrinhos, não é mesmo, menino?
Henry assentiu rapidamente.
— Pois vamos. Tenho um quarto especial para meus collies. Trato-os como autênticos reis.
Enquanto os guiava pela casa, lorde Chesney não deixou de falar nem um momento, contando a
Henry todos os detalhes da história dos cães, mas ele mal prestava atenção. Só o que importava era
que ia ter um.
Por fim chegaram a um pequeno quarto. Em um canto, e sobre uma montanha de almofadões e
mantas, descansava uma cadela branca e negra. Junto a ela havia três pequenos cachorrinhos.
— Vá com eles, sua excelência. Toque aos cachorrinhos e diga qual é o que mais gosta.
Henry se sentou no chão e os cachorrinhos se aproximaram dele em seguida. Ele ria. Lorde
Chesney se agachou a seu lado.
— Qual quer?
Henry olhou ao senhor Dodger.
— Não me olhe. Pense por si mesmo.
Ele observou os cachorrinhos. Era muito difícil decidir-se. O que aconteceria se escolhesse
errado?
— Não existe resposta errada, menino — disse então o senhor Dodger com muita tranquilidade.
Henry agarrou o primeiro cachorrinho que tinha subido em seu colo e o abraçou.
— Este!
— Pois este — disse lorde Chesney, rindo. Seus joelhos rangeram quando ficou de pé.
Henry voltou a olhar ao senhor Dodger e viu como lançava a lorde Chesney um pequeno
saquinho, que tilintou quando aterrissou em suas mãos. Quando voltavam para carruagem, com o
cachorrinho entre os braços, Henry disse: — Custou muito.
— Na realidade, não. Além disso, acredito que com o tempo me fará ganhar dinheiro.
— Como?
— Pode guardar um segredo?
Ele assentiu, apesar de que não sabia o que era um segredo. O senhor Dodger esboçou um
grande sorriso.
— Quando tem os bolsos cheios, lorde Chesney arrisca muito mais nas mesas de jogo. Esta noite
gastará o que acabo de dar e um pouco mais, assim que o dinheiro voltará para minhas mãos.
Henry não tinha muita certeza de te entendido o que estava falando.
— E então le-levará o cachorrinho?
— Não! O cão é teu.
— Obrigado, senhor.
— De nada, menino.
Sabia que sua mãe não estaria de acordo com ele, mas pensou que o senhor Dodger era um tutor
estupendo.
Capítulo Dez

Olívia parou um momento ante a porta da biblioteca enquanto se armava de coragem para entrar.
Henry adorava seu novo cachorrinho, que tinha decidido chamar Pippin. Ela não sabia de onde
tinha tirado seu filho esse nome, mas amava tanto aquele animal que parecia que nasceram um para
o outro.
Olívia tinha pedido a uma de suas donzelas que vigiasse Henry enquanto ela ia estender ao
senhor Dodger um ramo de oliveira em forma de comida.
Dodger tinha se metido na biblioteca assim que voltaram para casa; sem dúvida para estudar os
livros de contabilidade mais a fundo. Não tinha pedido nada para comer ou beber nem tinha
chamado a nenhum dos serventes.
Já era primeira hora da tarde e Olívia recordou a grande variedade de garrafas que tinha ali
dentro, tentando não se perguntar se teria bebido e ninguém o tinha ouvido porque estava atirado
no chão, inconsciente. Parecia incapaz de pensar nele sem imaginar o pior e, por muita vergonha que
desse admiti-lo, deu-se conta que sua pobre opinião carecia de fundamento.
Apesar de sua inquietação, sabia que tinha chegado o momento de enfrentá-lo e de pôr as coisas
em ordem. Fez ao lacaio um gesto com a cabeça, inspirou fundo e entrou na biblioteca com uma
bandeja. Quando ouviu o ruído da porta fechando atrás de si, o coração deu um salto. Esperava que
Dodger dedicasse algum comentário mordaz e se surpreendeu ao ver que não estava sentado ante a
mesa, a não ser em uma poltrona, junto à janela.
Embora não estivesse precisamente sentado. Mas bem atirado sobre ele, com uma perna estirada,
o relatório contável sobre o colo, a cabeça virada de um modo um tanto estranho e os olhos
fechados. Aquele homem nem sequer dormindo parecia inocente.
Olívia avançou pelo tapete com o máximo cuidado que foi capaz e deixou a bandeja sobre a
mesa. Picou a curiosidade e se aproximou com cautela ao homem em cujas mãos Lovingdon tinha
decidido deixar a educação de seu filho. Não estava preparada para admitir que tivesse sido a melhor
escolha, mas, embora seguisse sendo receosa, estava começando a reconhecer que tampouco tinha
sido a pior.
Dodger necessitava um corte de cabelo. Perguntou-se o que se sentiria ao deslizar os dedos por
aquele cabelo tão rebelde. As mechas despenteadas deveriam dar certo aspecto de menino, mas não
havia nada nele que sugerisse a inocência da juventude. Olívia suspeitava que não tivesse sido
inocente nem de menino.
Apesar de estar dormindo, em seu rosto se desenhavam rugas que davam a entender que a dureza
da vida que tinha vivido não o abandonava nunca. Olívia reprimiu o impulso de alongar o braço e
acariciar a face. Um desejo um tanto estranho.
Sentiu-se um pouco travessa ali o olhando sem que ele soubesse.
Dodger moveu a mão e ela quase deu um grito. Tinha-a sobre uma das páginas abertas do
relatório, ligeiramente fechada e se via muito bem aquela horrível marca. Nunca tinha pensado no
muito que tinha que ter doído; só se tinha preocupado do que representava. Imaginava que não teria
devotado a mão por própria vontade. Certo que teria se defendido. Embora tivesse roubado,
merecia que fizessem aquilo? Merecia alguém?
Então olhou a ferida que tinha feito no rosto. Estava vermelha e inflamada. Tampouco tinha
merecido aquilo. Não tinha merecido sua fúria nem sua desconfiança.
Decidiu que o que merecia era descansar tranquilo. Recordou que ele se preocupou ao pensar que
ela se levantaria dolorida se tivesse ficado toda a noite na cama de Henry. Ao Dodger ia ocorrer o
mesmo, mas Olívia não podia levá-lo a cama. Entretanto, pensou que sim podia fazer que estivesse
um pouco mais cômodo. Se pudesse tirar o relatório...
Ele a agarrou pelo pulso e atirou dela para frente...
Olívia deu um pequeno grito e deteve seu avanço apoiando a mão sobre algo muito duro: o peito
de Jack Dodger. Tinha o rosto muito perto do seu e se sentia muito incômoda; por um momento,
sentiu pânico, porque em seus olhos viu uma ferocidade que suspeitava que só existisse nos campos
de batalha. A respiração dele era agitada e seu peito se movia acima e abaixo sob seus dedos. Ela
tinha golpeado os joelhos contra a poltrona e, para sua vergonha, deu-se conta que os tinha
aterrissado entre suas coxas.
Tinha medo de mover-se e medo de ficar quieta. Dodger a estava olhando como se não a tivesse
visto nunca, como se estivesse tentando decifrar como se formou até o último rasgo de suas facções.
— O que está fazendo? — perguntou com aspereza.
Ela tragou o nó que tinha formado na garganta.
— Es-estava dormindo. Queria que estivesse um pouco mais cômodo.
Ele deslizou o olhar para seus lábios e Olívia se deu conta que fazia muito tempo que não estava
tão perto de um homem, que fazia muito tempo que seus lábios não estavam tão perto de receber
um beijo. Percebeu a paixão que ardia nos olhos do Jack. Acelerou o coração, começaram a tremer
os joelhos e pensou que estava a ponto de acabar sentada em seu colo. Desejou que a aproximasse
mais dele para que aquela boca tão perfeita, aqueles generosos lábios se pousassem sobre os seus...
Então, Dodger levantou a mão que tinha livre e cobriu a bochecha com ela. Sua palma era muito
mais áspera que a de Lovingdon. Mais áspera e grande. Deslizou o polegar pelos lábios de Olívia e
logo a olhou nos olhos.
— Cuidado, duquesa — disse com voz rouca. — Eu não sou do tipo de homem que se
conforma com um beijo.
A humilhação se apoderou dela e temeu que ele pudesse ver em seus olhos o mesmo que, por sua
parte, podia ver nos seus: desejo. Um desejo que devia ficar insatisfeito, que devia consumir-se
sozinho; do contrário, seria ela quem poderia acabar ardendo para o resto da eternidade. Era muito
orgulhosa para admitir que Dodger tinha adivinhado exatamente o que queria e que era muito
covarde para tentar consegui-lo. Para proteger-se, decidiu adotar uma atitude altiva.
— Me solte senhor.
Ele a soltou de repente. Olívia perdeu o ponto de apoio e começou a cair, mas Jack a agarrou
pela mão com ambas as mãos. Com dificuldades para manter a dignidade, conseguiu levantar-se e
retroceder enquanto alisava a saia com as mãos.
Dodger inclinou a cabeça a um lado.
— O que está fazendo aqui, Olívia? Tenta me roubar o relatório?
— É certo que há um ladrão nesta sala, mas não sou eu.
— Não, não é. Então, o que quer? Ela se sentiu como uma parva.
— Brittles me disse que ainda não tinha comido, então trouxe algo.
Olhou-a de uma forma que a fez pensar que estava pensando em comer a ela. Olívia se virou,
dirigiu-se à mesa e aproximou a bandeja à poltrona.
— É cordeiro com batatas. Deveria comer.
— Deveria?
Ela limpou garganta.
— Preparei a bandeja eu mesma.
— É que não tenho serventes que se encarreguem disso?
— Está fazendo isso muito difícil.
Jack a observou e tentou não pensar em como a tinha pegado pela cintura. Não queria recordar
que despertou e a tinha encontrado em cima. O perto que tinham estado àqueles lábios dos seus e
que, com um pequeno movimento, poderia ter descoberto seu sabor. Não acostumava a negar-se
prazeres, mas aquela mulher supunha mais perigos para ele dos que estava disposto a aceitar.
— Está tentando fazer as pazes? — perguntou. Olívia o olhou por cima do ombro.
— Estou tentando ser um pouco mais amável.
— Amável? — levantou-se da poltrona, aproximou-se da mesa que havia no canto e levantou o
plugue de um dos decantadores. — Acompanha-me?
— Não, obrigado. Gosta de beber, verdade?
— Bebo desde que tinha oito anos. Não vejo nenhum motivo pelo que deva deixar de fazê-lo
agora. — aproximou-se da mesa e levantou a tampa que cobria o prato. Quando percebeu o
delicioso aroma se deu conta que estava morto de fome. Sentou-se em sua poltrona.
— Brittles diz que ontem não jantou. Costuma trabalhar sem tomar o tempo necessário para
comer? — perguntou ela.
Para imensa surpresa e prazer de Jack, Olívia se sentou.
— Não respondeu a minha pergunta.
Ele cortou uma parte de cordeiro, o meteu na boca e o saboreou.
— Trabalho durante a maior parte das refeições. O tempo que não se passa trabalhando é um
tempo durante o qual não se ganha dinheiro.
— Preocupa muito o dinheiro.
— Só me preocupo com o dinheiro.
— Esse é o motivo de que aceitasse os términos do testamento? Ele mastigou e tragou: — Sim.
— Deu um golpe no prato com a faca. — O que faz aqui? — Assinalou o prato. — Por que tudo
isto?
Olívia olhou as mãos, entrelaçadas sobre o colo; logo mudou de postura no assento antes de
voltar a olhá-lo.
— Acredito que fui injusta ao julgá-lo. Esperei o pior de você em cada situação. Acreditei que o
inspetor tinha vindo prendê-lo. Pensei que sua contadora era uma prostituta, e que tinha feito algo
para machucar meu filho. Estou tentando me desculpar e não me sai muito bem.
— Não se desculpa muito frequentemente?
— Não costumo me equivocar.
Tinha passado do arrependimento à arrogância em só um segundo. Ele a preferia assim:
desfrutava mais a vendo mostrar sua faceta lutadora. Mas inclusive escondida atrás de sua dureza,
possuía uma beleza extraordinária. Entretanto, a primeira vez que se viram, isso a Jack não foi tão
evidente. Parecia que a cada momento que passava, advertisse mais detalhe sobre ela, e esses
detalhes fizessem aumentar sua beleza. Um delicado caminho de sardas cruzava as bochechas, e ele
imaginou sob o sol, sem chapéu nem sombrinha. Pensou em sua primeira temporada em sociedade e
em todos os cavalheiros que deveriam rondar a seu redor.
— Por que se casou com ele? — perguntou.
Ela se virou para olhar as mãos, como se tivesse a resposta escrita entre os dedos.
— Era o que desejava meu pai.
— Lovingdon era bastante velho para você. Ela assentiu e o olhou nos olhos.
— Mas era amigo de meu pai. O duque necessitava de um herdeiro para seu respeitável título. E
eu era uma filha muito obediente. Fiz o que meu pai queria. Em meu mundo, senhor Dodger, as
filhas obedecem a seus pais.
— Era também uma esposa obediente? — antes que pudesse responder, ele mesmo respondeu:
— peço desculpas. Essa pergunta esteve completamente fora de propósito. É evidente que careço
das maneiras necessárias para conversar com as damas da aristocracia.
— Tendo em conta sua reputação com as mulheres, pensei que seria um grande conversador.
— Quando estou com uma mulher, minha boca está acostumada a estar ocupada fazendo coisas
que não têm nada a ver com conversa.
Ela ruborizou. Jack não sabia por que gostava tanto de fazer com que suas bochechas
avermelhassem. Desejava poder provocar esse rubor utilizando algo mais que palavras. Mas ela era
uma dama nobre e ele sabia que só por tocar uma, um homem corria o perigo de acabar ante o altar,
e não tinha nenhuma intenção de acabar ali. Além disso, não queria nada dela. Só queria que se
casasse com outro para poder tirar de cima a responsabilidade de ter que educar seu filho.
— Parecia estar muito certa que não queria casar-se com Briarwood. Olívia voltou a olhar as
mãos.
— Se alguma vez voltar a se casar, eu gostaria muito que a decisão e a escolha fossem
absolutamente minhas.
Infelizmente, essa atitude ia ser um problema para Jack, um atraso em todo o processo, e ele
queria que se casasse o quanto antes.
— E se pudesse escolher, com quem se casaria? Surpresa, levantou o olhar.
— Nem sequer pensei nisso.
— Oh, venha! Tenho certeza que durante todos estes anos houve alguém que tenha gostado um
pouco. Em algum jantar ou em um baile. Talvez dançou com ele e pensou que gostaria que houvesse
algo mais.
— Estava casada.
— Não estou sugerindo que tivesse uma aventura, porque Deus sabe que você jamais faria algo
tão inapropriado, mas pensar nisso não é nenhum crime. Estou certo que alguma vez pensou.
— Não, senhor. Jamais.
Para enorme surpresa de Jack, deu-se conta que Olívia estava dizendo a verdade. Não fantasiar
alguma vez com o proibido? Não podia nem imaginar.
— Está bem, aceitarei que é provável que nunca tenha pensado em estar com outro homem, mas
sei que gostou de alguém ou que alguém pareceu o suficientemente agradável para que tenha
desejado passar mais tempo com ele. Eu poderia me encarregar de que viesse visitá-la aqui para que
pudesse conhecê-lo melhor...
— Estou de luto.
— E não deixa de me recordar isso quando não é necessário. Sinceramente, é bastante evidente
pela roupa que leva. Por certo, está horrorosa vestida de negro. Não tem nada de cor violeta?
Ela murmurou algo ininteligível. Ele levantou a mão.
— Não importa. Nos ocuparemos de sua roupa em outro momento. Você não quer que eu seja
tutor de seu filho. Eu tampouco quero sê-lo. A solução mais simples ao nosso problema é que você
se case. E eu estarei encantado em ajudá-la em tudo o que possa. Ocuparei de trazer os possíveis
pretendentes aqui. Diga-me, de quem gosta?
— Seria completamente inapropriado que recebesse visitas de homens.
— Pois claro que é inapropriado. Por isso o faremos de uma forma muito discreta.
— Quando uma mulher está de luto, não deve convidar ninguém à sua casa.
— Não fará você, farei eu. Olívia se levantou.
— Não sei por que tentei que nos falássemos melhor.
E ele não sabia por que não deixava de tentar que não ocorresse.
— Sente-se.
Ela vacilou.
— Por favor.
Olívia assentiu e se sentou.
— Henry gostou muito de seu cão.
A mudança de tema o surpreendeu, mas ele gostou.
— Me alegro. Custou-me uma fortuna.
— Isso me disse. — Sorriu e Jack voltou a se surpreender de como jovem aquele gesto a fazia
parecer. Se fosse dela, sabia que sempre tentaria fazê-la sorrir. — Henry não estava muito seguro do
que tinha que fazer para guardar um segredo, porque na realidade não deu nada que pudesse
guardar.
— Deve ter sido uma conversa muito interessante.
— Atreveria a dizer que, na realidade, foi muito enriquecedora.
Teria que ter mais cuidado quando explicasse algumas coisas ao menino, embora tampouco
estivesse particularmente preocupado que sua mãe soubesse o que havia dito. Entretanto, não queria
que suas palavras chegassem aos ouvidos de Chesney.
— Como sabia? — perguntou ela.
Jack acabou de mastigar o bocado de excelente cordeiro e engoliu.
— Desculpe?
— Helen. A babá de Henry. Suspeitou dela desde o começo. Meu filho me disse que levava uma
vara no bolso e que batia nas mãos cada vez que a fazia zangar-se. Não disse com estas palavras,
claro, mas resumo bem o que me contou. Como sabia que o estava assustando?
Algo estava mudando entre eles, algo com o que ele não se sentia de tudo cômodo. Mas também
estava se cansando de passar todo o dia discutindo. Se tiverem que viver juntos sob o mesmo teto
até que pudesse convencê-la de se casar com alguém, o melhor seria que se dessem o melhor
possível.
— Quando era menino vivi alguns dias com uma pessoa que me fez muito mal. Quando estava
assustado, gaguejava. Sei que as pessoas gaguejam por motivos diversos, assim possivelmente uma
coisa não tenha nada a ver com a outra. Mas Henry é um menino e por natureza, e meninos não
acostumam comportar-se tão bem.
— Antes havia dito que pensava levar muito sério sua responsabilidade como tutor. As coisas
entre nós poderiam não ter sido tão complicadas se houvesse dito isso antes.
— Sinceramente, duquesa, antes de dizer essas palavras em voz alta, não acredito que nem
mesmo eu soubesse. Estou tão surpreso como você de que seu marido me escolhesse como tutor de
Henry, mas eu gosto desta casa e tudo o que há nela. E tenho intenção de conservá-la.
— Tentarei agir melhor com você; sempre que você seja bom com Henry.
Jack não tinha certeza se queria que Olívia fosse boa. Preferia-a com um pouco de fogo.
— É irmã do falecido conde de Avendale.
Ela parecia surpresa que ele estivesse a par dessa informação.
— Sim. Meu pai morreu um mês depois que me casei e meu irmão herdou o título. Recentemente
morreu e seu filho herdou o ducado. Não tenho nenhum outro familiar próximo. E você?
Não era habitual que ela contasse tantas coisas de si mesmo e Jack demorou um pouco em dar-se
conta do que estava perguntando. Quando o fez, riu e levantou o copo.
— Não. Pelo menos não no sentido tradicional da palavra.
Apurou a genebra, deixou o garfo e a faca sobre o prato e o cobriu com a tampa.
— Obrigado por me trazer a comida.
— Me alegro que tenha gostado. — Olívia se levantou. — Espero que deixe que um médico veja
sua bochecha. Eu não gostaria que infectasse.
— Suponho que tem razão. Uma cicatriz arruinaria minha atraente imagem.
— Tem tanta certeza que é atraente?
— Acaso está sugerindo que não sou?
— Estou sugerindo que é muito vaidoso de sua parte afirmar isso. — Olívia desceu o olhar e
logo voltou a olhá-lo. — Sinto ter feito mal. Pensei...
— Que o menino estava em perigo. Se alguém tiver que cometer um engano, duquesa, prefiro
que seja tal como aconteceu esta manhã.
— Você se preocupa com Henry.
— Absolutamente. Mas é meu protegido. Se ocorresse algo, me daria problemas.
Ela se inclinou sobre a mesa. O aroma de lavanda que desprendia o tentava e seus lábios estavam
tão perto...
— Não estou certa que acredito nisso, senhor Dodger.
Agarrou a bandeja e, ao fazê-lo, quase golpeou Jack no nariz. Era culpa dele, por não ter se dado
conta de que se aproximou dela enquanto falava.
— Pois pode acreditar, duquesa — disse, tentando recuperar o controle que tinha perdido.
— Não acredito que deva.
Dito isso, virou-se e se foi da biblioteca balançando os quadris.
Estava ocorrendo algo muito perigoso. Jack estava começando a baixar a guarda e isso não podia
acontecer. Podia ocorrer um autêntico desastre. Passou a vida levantando muros ao redor de seu
coração. Não pensava permitir que uma preciosa viúva os derrubasse.
Capítulo Onze

Olívia estava sentada em sua cama, com as costas apoiadas em um montão de travesseiros, as
pernas dobradas e rodeadas com os braços. Tinha os olhos cravados na ornamentada porta que dava
acesso ao quarto de vestir e se esforçava para ouvir algum ruído que indicasse que Jack estava se
preparando para ir dormir. Enjoava de vez em quando e então se dava conta que estava contendo a
respiração.
Tinha mandado entregar uma nota a última hora da tarde, para informá-la que não podia jantar
com ela e que era livre para jantar com Henry. Olívia não gostava que pensasse que podia dizer o
que podia ou não podia fazer. Também tinha sido muito interessante que tivesse escolhido não dizer
ele mesmo. Estava evitando-a? Acaso não estava satisfeito com o novo rumo que tinha tomado sua
relação para um trato mais agradável?
Não sabia o que pensar daquele homem, mas sim, estava certa de uma coisa: ele jamais entraria
em seu dormitório. Apesar de tudo o que diziam as mulheres, ela estava se dando conta que se regia
por uma espécie de código moral. Talvez fosse um código um pouco diferente do habitual, mas o
certo era que, às vezes, parecia apontar na direção adequada. Pelo menos, no que se referia a Henry.
Estava certa que se manteria fiel a sua palavra e não procuraria sua cama. Tentou ignorar o
comichão da decepção. Tampouco é que ela quisesse que abrisse aquela porta e entrasse em seu
dormitório lentamente...
Não, assim teria feito Lovingdon. Jack Dodger entraria de supetão, se aproximaria dela com ardor
e emanando virilidade por todos seus poros. Ele seria exigente, suas mãos a explorariam com ânsia,
sua língua provocaria prazer...
Gemeu baixo e apoiou a testa nos joelhos. Ele nunca cruzaria aquela porta. Era absurdo que
deixasse que aqueles carnais pensamentos corressem livremente por sua mente. Que importância
tinha que Jack estivesse dormindo no outro quarto? Estavam separados por duas portas. Olívia não
poderia ouvi-lo respirar ou dar voltas na cama. Não poderia ver seus pés descalços, quando
passeasse com sua camisa de dormir.
Levantou um pouco a cabeça e apoiou o queixo nos joelhos. Utilizaria camisa de dormir? Claro
que sim. Todos os cavalheiros a utilizavam. Mas Jack Dodger não era um cavalheiro.
Não o imaginava colocando uma camisa de dormir. OH, tinha que deixar de pensar nele. Olhou
o relógio e se surpreendeu ao ver a hora que era: passava da meia-noite. Como não parecia que Jack
tivesse chegado, supôs que estaria no clube. Tinha sido uma parva por esperar outra coisa e ter
perdido um tempo precioso aguardando-o.
Necessitava de uma distração. Decidiu ir à biblioteca e pegar um livro.
Algo que afastasse aquele homem de sua mente.
Desceu da cama, envolveu-se em seu xale e pegou a vela que tinha sobre a mesa de noite.
Continuando, deslizou-se pelo corredor, desceu a escada e se dirigiu à biblioteca. Àquelas horas da
noite já não tinha nenhum lacaio acordado. Quando abriu a porta, surpreendeu-a ver Jack sentado
ante sua mesa, lendo algo. Por que não estava no clube? E como podia ela sair sem que ele se desse
conta? Com uma crescente sensação de pânico, compreendeu que não podia fazê-lo porque já tinha
chamado sua atenção.
— Pensei que estaria no clube.
Ele negou com a cabeça, apoiou as costas no respaldo da poltrona e estirou os braços por cima
da cabeça.
— Tinha assuntos para resolver aqui.
Levantou-se; talvez tivesse decidido demonstrar boas maneiras depois de pensar melhor.
— Por que não está dormindo?
Porque não posso deixar de pensar em você, não parecia uma confissão muito prudente.
— Não consigo dormir. Pensei que um livro me ajudaria.
— Pelo o que pude experimentar, acredito que isso só funciona quando o livro é muito
aborrecido.
Olívia era incapaz de imaginá-lo lendo um livro por prazer. Imaginava que ele procurava o prazer
em lugares mais carnais. Ao pensar isso, advertiu que o rubor subia por suas bochechas e se
aproximou um pouco mais da mesa.
— Você quando dorme?
— Durmo algumas horas de vez em quando. Nunca necessitei descansar muito.
Ela observou os numerosos livros de contas que havia sobre a mesa.
— A verdade é que dedica muitas horas a seus assuntos financeiros.
— Em realidade, são seus assuntos financeiros dos que estou estudando.
Surpresa por essas palavras, ela levantou ligeiramente a cabeça.
— Por que se interessa por meus assuntos financeiros?
— Suponho que tem a ver com meus modestos começos. Olívia riu.
— Não posso imaginar que haja nada modesto em você.
Ele não pareceu ofender-se. Em lugar de zangar-se, fez um sinal em direção ao sofá que havia
junto à janela.
— Sente-se e explicarei o que pensei.
Era muito tarde, ela estava de camisola e estavam sozinhos na biblioteca. Olívia não podia
imaginar uma situação mais inapropriada... Bom, poderiam estar sozinhos em seu quarto.
Entretanto, não estava muito certa de querer partir. Sempre gostava que Lovingdon passasse um
momento em sua companhia, mas isso era porque suas visitas a afastavam da solidão. Jack não
estava oferecendo nada, e em troca era incapaz de negar a curiosidade que sentia por ele. Não tinha
nada a ver com o homem que tinha imaginado que seria e tinha muita vontade de explorar a nova
faceta de seu caráter que tinha descoberto.
Aproximou-se do sofá com toda a indiferença que pôde, embora experimentasse um leve tremor;
esperava que ele não se desse conta que estava nervosa. Sentou-se e observou como Jack se
aproximava com agilidade à mesa de canto e enchia duas taças com uma das garrafas. Segurou-as
com uma só mão e utilizou a outra para agarrar o decantador. Depois de deixá-lo sobre a mesa que
havia junto ao sofá, aproximou uma das taças a Olívia. Ela vacilou...
— É meu melhor brandy. Venha, que dano pode fazer? Não irá ao inferno por dar um pequeno
capricho.
— Acaso Deus sussurra essas verdades ao ouvido? Dedicou seu mais tentador sorriso.
— Não, é o demônio quem o faz.
— Não sei por que não me surpreende. Suponho que são velhos amigos.
— Muito bons amigos. Venha, bebê. Fará você se aquecer.
— Não tenho frio.
— Está tremendo.
— Sempre é tão observador? — Olívia pegou a taça da mão e bebeu. O líquido queimou a
garganta e os pulmões e se encheram os olhos de lágrimas.
Ele levou o braço e deu uns tapinhas nas costas; o calor que irradiava sua palma atravessou o
tecido da camisola. O que sentiria se estivessem pele contra pele? Olívia se esforçou para não
considerar as possibilidades.
— Cuidado. O brandy terá que ser saboreado, não tragado de repente.
Ela inspirou com força enquanto notava o calor no fundo do estômago. Pensou que era pelo
licor, mas possivelmente se devesse à presença dele. Sua presença era quase entristecedora, como se
fosse maior que a vida mesmo. Desde a primeira noite, Olívia tinha se dado conta que Jack Dodger
dominava cada quarto, ou cada carruagem que ocupava. Esse era um dos motivos pelos que a
inquietava. Não era um homem ao que se pudesse ignorar.
— Não esperava que apreciasse a qualidade — disse, com um fôlego, o que o fez sorrir.
— Faz muito tempo que avalio a qualidade. Por que acredita que trabalhei tanto para conseguir
me rodear dela?
Jack se sentou no outro extremo do sofá e estirou as pernas para frente. Logo, deixou cair um
braço sobre o respaldo do sofá com ar despreocupado: seus dedos estavam provocadoramente perto
dos ombros da Olívia. De repente, o sofá parecia muito pequeno e dava a sensação que não pudesse
albergar nem a uma só pessoa.
— Quando as damas falam de você, jamais mencionam sua inclinação pelo trabalho duro.
— As damas?
Olívia bebeu outro gole de brandy. Os aromas fizeram cócegas o nariz, mas a sensação não era
desagradável. Perguntou-se que outros prazeres esconderiam as demais garrafas.
— Costumam falar de você durante o chá da tarde. Ele riu como faria ante uma diversão
inesperada.
— E o que dizem de mim essas damas?
— Que conhece bem o demônio.
— E assim é. — Elevou sua taça e bebeu o conteúdo.
Ela tentou não ficar embevecida olhando o pescoço enquanto engolia. Jack não usava lenço de
pescoço, nem colete ou jaqueta, e tinha aberto alguns botões da camisa. Não desejando destruir a
camaradagem que tinham conseguido chegar, Olívia decidiu não queixar-se de seu descuidado traje,
especialmente porque não parecia descuidado. Inclusive despenteado, continuava desprendendo um
peralta atraente.
— Íamos falar de meus assuntos financeiros — recordou ela.
— Ah, sim, sua economia. Recordará que seu falecido esposo legou a você um fundo de
investimento que proporcionará duas mil libras por ano.
— Claro que me lembro.
— Acredito que, se o investir bem, posso conseguir que renda cinco mil.
— Ao ano? — Olívia pronunciou as palavras com um sussurro de incredulidade.
— Ao ano.
— Por que ia fazer isso?
— Porque assim seria muito mais fácil casar-se. — Agarrou o decantador da mesa e preencheu a
taça dela.
Olívia bebeu um gole e o observou por cima da taça. O sabor do brandy era cada vez mais
intenso.
— Parece bastante obcecado com a ideia que me case.
— Isso me economizaria muitos problemas.
— Se não queria ser tutor de Henry, por que aceitou?
— Estou certo que, embora faça pouco tempo que me conhece, já terá dado conta que não há
nada que considere desagradável se contribuir para aumentar meus ganhos.
— Depois de o observar hoje quando estava com Henry, deu-me a impressão que gosta dele.
— Claro que sim. É um menino encantador. Isso não significa que não prefira minha liberdade.
Olívia bebeu um pouco mais de brandy; e um pouco mais.... Começou a sentir-se um pouco
enjoada e subiu os pés ao sofá. Esse era seu prazer pessoal: sentar-se daquela forma tão pouco
feminina quando lia diante da chaminé de seu quarto. O brandy a fazia sentir que era o momento
perfeito para abandonar-se ao prazer.
— Pode recuperar muito facilmente sua liberdade desaparecendo de nossas vidas — recordou
ela.
— Não posso acreditar que precisamente você, que é tão propensa à obediência, esteja me
sugerindo que não cumpra minhas obrigações. — Serviu mais brandy.
— Está tentando me embebedar?
Ele riu: um som áspero e profundo que em Olívia provocou um formigamento.
— O que sabe dos prazeres do álcool?
— Sei que, em mais de uma ocasião, meu irmão voltava de seu clube sem mal poder andar.
Acredito que adoraria conseguir que caísse de joelhos, para poder difundir rumores sobre meu
escandaloso comportamento.
Os olhos de Jack se obscureceram e a observou sem piscar. Olívia teve a sensação de ter dito algo
que era intrigante. Mal moveu o braço, mas estava o suficientemente perto para poder agarrar a
trança e quando sua mão roçou o ombro, percorreu-a um prazenteiro calafrio.
Jack brincou com a ponta de sua trança e a deslizou sobre o polegar.
— Em meu negócio, aprendi a ser muito discreto, duquesa. Asseguro que ninguém sussurrará
sobre o que possa acontecer dentro desta casa. Ao contrário de suas damas, eu não gosto de
mexericar. Assim já pode embebedar-se e cair de joelhos tantas vezes como quiser.
Ela não tinha nenhuma intenção de fazer nada disso, mas não se queixou quando serviu mais
brandy. Sentia-se muito mais relaxada do que o tinha estado em muito tempo; fez girar o líquido no
interior da taça e o observou.
— E como o faria?
A pergunta pareceu surpreendê-lo.
— Fazer o que?
Olívia se perguntou em que estaria pensando ele.
— Aumentar minhas rendas anuais.
— Ah, sim. Tinha esquecido do que estávamos falando. Aumentaria suas rendas investindo o
dinheiro.
— Em algo inapropriado, suponho.
Deu-se conta que o respeito iluminava o olhar de Jack e não pôde evitar sentir-se um pouco
emocionada por ter adivinhado o que ele tinha planejado fazer com seu capital.
— Digamos simplesmente que estaria investindo em entretenimento.
Não acredito que necessite ou queira conhecer os detalhes.
Ela negou com a cabeça.
— Isso me converteria em uma hipócrita.
— Em uma hipócrita muito rica.
Olívia sorriu e bebeu outro gole de brandy. Estava decidindo que o álcool não era tão terrível
como pensava em princípio. Na realidade, era bastante agradável. E a fazia sentir-se muito feliz. Mais
feliz do que se sentiu em muito tempo.
— Na vida há coisas mais importantes que o dinheiro — disse.
— Normalmente as pessoas que dizem isso são ricas.
— Você é rico.
— Porque reconheço que é o único que me importa e me esforço por aumentar e manter minha
riqueza.
— Isso é triste. Terrivelmente triste. Não há ninguém especial em sua vida?
Por um momento, e a julgar por como a estava olhando, Olívia pensou que ia dizer que estava
apaixonado por alguém.
— Quer que invista seu dinheiro ou não? — perguntou com secura.
Parecia incorreto que investisse seu capital em coisas que ela não aceitava, mas cinco mil libras ao
ano.... Essa soma daria muita independência e era uma tentação muito grande para resistir. Terminou
a taça; por algum estranho motivo, era capaz de tolerá-lo em quantidades maiores. Assentiu.
— Esplêndido — disse ele. E voltou a servir brandy. — Agora passemos ao próximo tema.
— E qual é esse tema?
— Seu marido.
— Lovingdon?
— Não, seu futuro marido. — Jack levou a mão, agarrou os pés enquanto estirava as pernas para
frente e os colocou sobre o colo.
— O que está fazendo? — perguntou Olívia, alarmada pela intimidade, mas muito enjoada para
retirá-los.
— Oferecendo um pouco mais de comodidade.
— Acredito que está tentando me corromper.
— Com um pouco de brandy e uma massagem nos pés? OH, sim, sou mesmo o demônio.
Sorriu por cima da taça e disse:
— Isso é o que pensei a primeira noite que veio a esta casa: que o demônio tinha vindo de visita.
— E agora?
— Não estou muito certa do que deveria pensar.
De repente, sentia-se muito cômoda com ele, como se todas suas inibições tivessem
desaparecido. Pensou que inclusive seria capaz de confiar seus mais profundos e escuros segredos.
As grandes e ásperas mãos de Jack começaram a massagear a planta dos pés. Era absolutamente
delicioso. Ao olhá-lo através da névoa do licor, decidiu que era bastante atraente.
— Como não quer me dizer de quem gosta, me diga pelo menos que qualidades prefere em um
homem e eu investigarei pela zona e verei o que posso conseguir — disse ele.
Olívia não pôde evitar: riu.
— Faz que pareça muito simples.
— E não é? — Jack deslizou a ponta do polegar pelo centro da planta e ela curvou os dedos para
dentro. — Que qualidades quer que tenha seu próximo marido?
Ela negou com a cabeça. Não queria falar dessas coisas. Não queria que ele soubesse...
— Vamos, Olívia — disse com um tom de voz suave e áspero, provocando umas sensações
muito estranhas. — Como gostaria que fosse seu próximo marido?
Ela fechou os olhos e deixou que o brandy deslizasse por sua garganta. O calor da bebida pareceu
subir até sua cabeça para obrigá-la a confessar. A fazia sentir-se atrevida e valente, e não ter medo do
que desejava. Passou a língua pelos lábios e absorveu até a última gota de brandy. Quando abriu os
olhos, deu-se conta que Jack havia se aproximado dela; de fato, estava tão perto que pôde pôr umas
mechas de cabelo que tinham escapado de sua trança atrás da orelha.
— Diga-me Olívia.
— Não quero um homem que se esqueça de mim quando tiver conseguido um herdeiro. —
Agarrou a taça com ambas as mãos e a observou como se nela se estivessem projetando imagens de
seu passado. — Lovingdon o fez. Quando fiquei grávida, jamais voltou a me tocar.
Teve que fazer provisão de todo seu valor para levantar os olhos e olhar a Jack. Não esperava
compaixão de um homem como ele, e não a decepcionou nesse sentido. Não estava muito certa do
que estaria pensando, mas a julgar por como apertava os dentes, suspeitava que Lovingdon tinha
muita sorte de estar morto.
— A princípio, pensei que era porque estava grávida e talvez ele acreditasse que, se tivéssemos
alguma intimidade eu poderia perder o bebê — tentou explicar. — Pensei que quando Henry tivesse
nascido tudo voltaria a ser como antes, mas não foi assim.
Jack deslizou um dedo pela bochecha.
— Esse homem era tolo.
— A parva fui eu. Uma vez, entrei em seu quarto pensando que poderia seduzi-lo. — Aquela
noite se sentiu tão estúpida que jamais tinha confessado a ninguém, mas ali, na penumbra, enquanto
deixava que o brandy percorresse as veias, a vergonha parecia uma lembrança muito longínqua. —
Me desprezou. Tentou ser amável. Disse-me que conheceu uma mulher quando era jovem e que
quando ela o deixou levou também seu coração. Me explicou que a tinha traído e que não podia
continuar traindo-a. A verdade é que não sabia do que estava falando. Sentia-me tão humilhada que
mal o escutei.
Ficou passeando o dedo pela sensível pele do pescoço.
— Quem era essa mulher?
— Não sei. Estas coisas costumam acontecer entre aristocratas. As alianças políticas e os lucros
econômicos têm muita mais importância que os assuntos do coração. — Negou com a cabeça. —
Eu estive casada com Lovingdon durante seis anos e mal o conhecia. Dá-me a sensação que teria
que sentir mais saudades, que deveria sentir alguma dor. É verdade que tenho uma sensação de
vazio, de que falta algo em minha vida, mas acredito que já sentia isso antes que ele morresse.
O brandy tinha potencializado sua ousadia. Aproximou-se um pouco dele e sussurrou: — Nem
sequer estou certa de que alguma vez me tenham beijado de verdade.
Foi um pouco estranho ver como Jack ficava imóvel; imóvel e tenso. Olhou-a e Olívia pôde
observar como aumentava a intensidade que vislumbrava em seus olhos.
— Já te disse que não sou o tipo de homem que se conforma com um beijo.
Também a tinha advertido que não o desafiasse, porque só conseguiria que aumentassem suas
vontades de fazer algo proibido. Olívia tinha vinte e cinco anos e só a tinham beijado no altar.
Lovingdon não tinha sido um homem cruel, mas tampouco era apaixonado. Tinha tratado com
amabilidade, mas jamais tinha agitado suas emoções como o fazia Jack Dodger. Este a punha
furiosa, fascinava-a, aterrorizava-a. Conseguia despertar sua curiosidade.
Umedeceu os lábios para notar o sabor do brandy e viu como Jack obscureciam os olhos. Essa
reação estimulou seu atrevimento.
— Eu o proíbo que me beije.
— Já te disse que jamais me proibisse nada — rugiu ele.
Antes que pudesse dar-se conta, Jack tinha deslizado a mão por trás de seu pescoço e a segurava
com firmeza enquanto colava os lábios sobre os seus. Não foi delicado nem cortês, mas bem um
tanto selvagem, cegado pelo desejo de proporcionar o que tinha pedido. Olívia se rendeu a ele e não
resistiu quando sua língua conseguiu que abrisse os lábios para deslizar no interior de sua boca. Uma
espiral de calor percorreu seu corpo e derreteu os ossos como se fossem de cera. Jack só a tocava
com uma mão e a boca e, entretanto, tinha a sensação que a estivesse tocando por toda parte; por
dentro e por fora, profunda e levianamente. Como podia ser tão poderoso um só beijo e provocar
tal desejo?
Ele fechou um pouco mais a mão que tinha na nuca de Olívia; parecia que queria agarrá-la desse
modo para sempre, enquanto saqueava a boca com os lábios. Ela se perguntou se estaria percebendo
o sabor do brandy em sua língua da mesma forma que ela. De repente, sentiu esse sabor muito mais
poderoso, mais intenso, mais prazeroso. Queria absorvê-lo tudo, embebedar-se dele.
Olívia sempre tinha sido uma perita em observar o melhor dos comportamentos e, de repente,
estava se deixando levar pelo proibido e compreendendo seu atrativo. A áspera barba do Jack
abrasava sua pele, mas isso tornava tudo ainda mais prazenteiro. Envolveu-a um redemoinho de
intenso prazer. OH, ela jamais tinha experimentado nada parecido. Queria deitar-se a seu lado e
abraçá-lo. Deslizou os dedos pelo cabelo e se deixou levar por sua suavidade.
Então, ouviu um suave gemido e mal foi consciente de que procedia de seus próprios lábios.
Tinha a sensação que todo seu corpo estivesse despertando, como se todos aqueles anos não tivesse
sido consciente de que estava dormido. Por impossível que parecesse, Jack aprofundou o beijo:
parecia não poder saciar-se dela. Parecia que a desejava.
O famoso Jack Dodger a desejava? Era uma ideia muito embriagadora para contemplá-la. Seu
marido a tinha beijado no altar porque o dever assim requeria. Mas agora, por mais que tivesse sido
ela quem tinha desafiado Jack, não parecia que o dever tinha nada a ver com sua reação. Só o que ela
sentia era um poder puxador, quase incontrolável. Surpreendeu-se de sua própria reação ante as
ávidas exigências de Jack. Não queria que parasse. Não queria que nunca...
De repente, ele se separou dela, ficou de pé e a privou de sua presença. Olívia tentou alcançá-lo
com a mão antes de dar-se conta do que estava fazendo.
Jack deu as costas e, respirando com dificuldade, disse:
— Prepararei uma proposta detalhando tudo o que proponho fazer com seu dinheiro. Pode
consultar Beckwith para se assegurar de que respeitam seus interesses.
Assombrada, Olívia o olhava com incredulidade. O beijo que a tinha deixado tremendo de pés à
cabeça não significava nada para ele. Jack podia brincar grosseiramente com seus lábios e logo
levantar-se e começar a falar de assuntos financeiros. Tinha sido uma parva por deixar-se levar pela
tentação. As lágrimas ameaçaram aparecendo em seus olhos e tentou desesperadamente manter a
compostura e encontrar a melhor maneira de sair da biblioteca.
De repente, ele se virou e se inclinou sobre ela, apoiando-se no braço do sofá. Encurralou-a de
novo enquanto a olhava com uns olhos nos que brilhava uma paixão que mal que era capaz de
controlar.
— Já te disse que não sou o tipo de homem que se conforma com um beijo. Está avisada:
cobrarei o que me deve. Manterei minha promessa e não irei a sua cama, mas esteja certa que você
sim virá à minha. Deixo que escolha o momento que mais te agrade, mas faça-o.
Com uma força que fez cambalear o sofá, virou para trás e se encaminhou para a porta.
— Vou ao clube — espetou, como se tivesse perguntado aonde ia.
Mas Olívia não conseguia encontrar forças para falar. Mal era capaz de sentar-se direita. Sentia a
debilidade em todo seu corpo e os tremores a percorriam de pés a cabeça enquanto tentava respirar.
Só queria um beijo, mas tinha dado muito mais.
Fechou os olhos e a aveludada ameaça do Jack ressonou em sua cabeça. Oh, que homem tão
arrogante! Ela jamais iria a sua cama. Jamais.
Mas inclusive enquanto o pensava, temia que não fosse verdade.

Jack entrou no clube a toda pressa: era um homem com um firme propósito em mente. Pensava
que afastar-se da duquesa bastaria para aplacar seu desejo, mas tinha se enganado. Continuava
sentindo-o rugir em seu interior com desumana força e não conseguia ignorá-lo.
Pela primeira vez em sua vida queria mais do que tinha. Queria ouvir os gemidos de uma mulher
enquanto se abandonava ao prazer. Queria ser ele quem provocasse isso. Queria tocá-la de forma
que a deleitasse. Queria saboreá-la: começar por seus lábios e deslizar até os dedos de seus pés.
Abriu caminho até a sala onde trabalhavam as garotas. Ficou na porta e esquadrinhou entre as
pessoas até que localizou Prudence, que estava sentada no colo de um homem.
Jack sabia quão intenso podia chegar a ser seu olhar; sabia que podia conseguir que alguém a
sentisse e captar sua atenção. Finalmente, ela o olhou. Fez um gesto com a cabeça em direção a seu
escritório. Prudence assentiu e logo se virou para dizer algo a seu cliente: não queria que se
ofendesse ao ver que saía de repente.
Jack se apressou pelo estabelecimento ignorando a todos que o rodeavam. Em seu rosto se devia
ver que ele também queria que eles o ignorassem, porque ninguém se aproximou nem olhou em sua
direção.
Abriu a porta que conduzia aos escritórios, passou por diante de Frannie sem olhar para dentro e
se meteu em seu escritório fechando a porta com chave atrás de si. Se aproximou da parede e
desprendeu o quadro de uma mulher sentada sob uma árvore. Tirou uma chave do bolso do colete,
meteu-a na fechadura e abriu sua caixa forte. Agarrou as moedas que necessitava e as meteu em um
saquinho de veludo. Depois de fechar a caixa forte e voltar a pendurar o quadro em seu lugar, abriu
a porta do escritório.
Deixou o saquinho com as moedas em uma mesa que havia no canto do quarto para tê-lo mais à
mão e se sentou: abriu uma gaveta, agarrou um preservativo e o meteu no bolso. Essa noite só
necessitava de uma transa rápida. Seu escritório bastaria. Pru poderia voltar para seu cliente antes
que este sentisse falta dela. Levou o braço para trás e agarrou uma garrafa de uísque, serviu um
pouco em um copo e o bebeu de um só gole.
Jamais havia sentido uma necessidade tão poderosa. Era quase selvagem. Era incapaz de tirar
Olívia da cabeça. A inocência de sua petição: Proíbo que você me beije.
Embora não tinha havido inocência alguma em sua resposta.
No que estava pensando quando decidiu aceitar o desafio? Teria sido muito melhor recusá-la, ter
se afastado dela, não a provar, não ter ouvido seus doces suspiros e gemidos enquanto o prazer a
embargava. Jack tinha necessitado até a última gota de sua força de vontade para não ir mais à frente
do beijo. Havia sentido a desesperada necessidade de desabotoar aquela horrível camisola. Queria
sentir sua pele nua com suas mãos e com seus lábios. Queria tombá-la sob seu corpo e ficar em cima
dela...
É luxúria. Só luxúria. Nada mais. Mas ao pensar, temia que não fosse verdade.
Ficou de pé, agarrou o saquinho e saiu ao corredor. Iria a seu quarto, a sua cama, para poder
desfrutar de um encontro mais longo e satisfatório. Penetraria tão profundamente nela...
Os passos que ouviu não eram as que aceleravam o coração ultimamente. Observou como Pru se
aproximava dele com sua habitual roupa sensual. Mas ela não o provocava tanto como Olívia com
aqueles horrorosos vestidos negros.
A jovem agarrou o braço e pressionou seus seios — muito mais generosos que os de Olívia —
contra seu corpo de um modo muito sugestivo.
— Olá, amor, faz muito tempo que não vinha me buscar. Vamos a seu quarto?
Jack jamais havia sentido nada por ela. Não sentia nada que fosse mais à frente do plano físico
com nenhuma das mulheres às que pagava. Sempre tinha pensado que era incapaz de sentir nada
mais, que havia algo em seu interior que não permitia experimentar nenhuma emoção. Mas de
repente, o que podia oferecer aquela mulher não era suficiente.
— Jack?
Tocou sua bochecha com lástima.
— Sinto muito, Pru. Parece-me que na realidade não estou de humor. — deu o saquinho com as
moedas pelos problemas.
— Jack, não posso ficar com seu dinheiro por não fazer nada.
— Vieste. Isso é suficiente.
— Vai tudo bem? Parece diferente.
— Não poderia ir melhor. Vá cuidar de seus clientes. Ela encolheu os ombros.
— Como queira.
Prudence não se sentia mal porque ele a tinha recusado. Ela formava parte de seu negócio, como
Jack também formava parte do negócio do Prudence. Nada mais.
Nunca tinha havido nada mais em toda sua vida.
Capítulo Doze

Olívia se virou na cama e fechou os olhos para não ver a luz que penetrava por uma pequena
abertura entre as cortinas. Recordou o mal que se encontrava seu irmão quando por fim se
levantava, depois de ter passado a noite no clube Dodger. Aquilo acaso era a maldição do brandy?
Aquela terrível dor de cabeça, a garganta seca e um redemoinho de pensamentos que se deslizavam
por sua mente como a névoa?
Esforçou-se para girar a cabeça a um lado e olhar o relógio que fazia tic-tac sobre sua mesa de
noite. Os pequenos querubins que o decoravam a receberam tal como faziam cada manhã, fazendo-a
sorrir. Eram quase nove. Já estava dormindo. Jack não a tinha chamado em sua porta em busca de
companhia para o café da manhã. Talvez ainda não houvesse retornado de seus negócios noturnos.
Jack. Assaltou-a a lembrança de seus lábios abrindo caminho sobre os seus. Como o enfrentaria?
Não sabia, mas enfrentaria. O que aconteceu na passada noite tinha sido uma aberração e o brandy
tinha destruído sua moral. Olívia evitaria o álcool no futuro e deixaria perfeitamente claro que
também evitaria sua cama. Não devia nada. Ele tinha aceitado beijá-la e teria que aprender a viver só
com isso. Estava certa que não teria nenhum problema em procurar consolo em qualquer outra
parte. Por que ao pensar isso sentia uma dor perto do coração?
Procuraria consolo com Frannie? Receberia esta com os braços abertos e ofereceria o que ela
tanto temia oferecer? Teria experimentado a jovem ruiva o prazer de ver chegar a manhã deitada
entre seus braços?
Suspirou com apatia, pensando em como era estúpida era por atormentar-se assim, e se levantou
da cama. Sentia o chão frio sob os pés. Talvez esse dia não se incomodasse em colocar sapatos. Riu
pensando no aspecto que teria uma duquesa sem sapatos. Ou ela acreditou que ria, porque não tinha
ouvido nenhum som. O que ocorria?
Cambaleou até a porta que conduzia ao quarto de banho. Alguém tinha mudado de lugar aquela
maldita porta, que de repente parecia estar muito longe. Quando estava a meio caminho, deu-se
conta que se esqueceu de chamar sua donzela. Como ia se vestir sem ajuda de Maggie? Talvez
pudesse voltar para a cama, dormir um pouco mais e começar de novo um pouco mais tarde.
Mas em lugar de fazê-lo, abriu a porta do banheiro. Recebeu-a uma nuvem de vapor e, apesar de
ter muito calor, sentiu-se reconfortada.
Quando se deu conta do que ocorria, começou a sentir mais e mais calor por culpa da vergonha e
do calor.
De pé frente ao espelho, com meia cara cheia de espuma e uma navalha de barbear na mão, havia
um homem. As imagens entraram e saíram da mente de Olívia a toda pressa: costas esbeltas e
ombros largos, nádegas pálidas, arredondadas e firmes, pernas longas, coxas tensas. Estava fascinada
observando como se contraíam seus músculos ao mover-se, quando ele ficou imóvel. Olívia jamais
tinha visto nada tão delicioso.
Estava nu, completamente nu. Na zona inferior de suas costas se viam algumas gotas de água;
parecia como se tivesse se secado, mas sido incapaz de alcançá-las. Ela sentiu uma insensata
necessidade de agarrar uma toalha e deslizá-la sobre aquela pele para absorver os vestígios de seu
banho.
— Banhou-se ontem — disse com a voz entrecortada. Deu a sensação de que suas palavras
procediam de muito longe.
Olhando-a fixamente através do espelho, Jack respondeu:
— Banho-me todas as manhãs.
Pelo visto, aquele homem não tinha nenhuma vergonha. Por que não estava surpresa? Ele se
virou com o desafio no olhar e um sorriso nos lábios. Olívia não estava familiarizada com a
anatomia masculina, pois seu marido se deitou com ela da forma mais respeitosa e sempre com
camisa de dormir. Ela havia sentido, mas nunca tinha visto... E, embora o tivesse feito, não
acreditava que Lovingdon fosse tão.... Provocador. Era a única palavra que ocorria para descrever o
que Jack Dodger mostrava com tanto orgulho. Até o último aspecto dele era mais que um convite a
deixar-se levar pelo prazer.
— Céu santo! — As palavras escaparam de seus trementes lábios.
De repente, o quarto começou a girar e a escuridão se apropriou de sua visão até que já não viu
nada absolutamente.

Maldita seja!
A navalha ressonou contra o lavatório quando Jack a deixou cair e se apressou a agarrar Olívia,
conseguindo, de forma milagrosa, agarrá-la antes que se golpeasse contra o chão. Como podia ser
que uma mulher que já tinha estado casada pudesse impressionar-se tanto ao ver um homem nu?
Mas quando a agarrou entre seus braços e a cabeça dela caiu sobre seu ombro nu, deu-se conta
que seu desmaio tinha algum outro motivo.
— Meu deus, está ardendo.
Embora Olívia usasse só uma camisola de algodão, pesava menos que a última vez que a tinha
pegado completamente vestida.
Deitou-a sobre a cama e chamou à donzela, mas então vacilou. Se a jovem ia em seguida a sua
chamada, como ia explicar que estivesse nu?
Agarrou uma toalha enquanto cruzava o quarto de banho e limpou a espuma da cara enquanto
entrava em seu quarto. Colocou as calças e a camisa e se perguntou quanto tempo levaria Olívia
incubando a enfermidade. Não gostava de pensar que tinha estado amargurando a vida de uma
mulher doente, ou que talvez ele fosse o responsável por sua enfermidade. A noite anterior, ela
parecia febril de paixão; saberia se estivesse doente.
Quando acabou de abotoar e teve a camisa bem-posta, decidiu que o resto da roupa podia
esperar. Seria muito mais fácil explicar que estava meio vestido em lugar que ter que admitir que
estava nu.
A grandes pernadas, retornou ao quarto da Olívia para chamar à donzela. Ela continuava
inconsciente, mas não estava morta. Deu uns golpes no rosto.
— Livy? Venha, meu amor.
— Sinto — murmurou Olívia. — Sinto muito.
— Já pode sentir. Não deveria ter entrado sem bater na porta. — Por um glorioso segundo, Jack
acreditou que ela tinha decidido ir à sua cama. E, seu corpo, por mais que o chateasse admitir sua
debilidade, tinha reagido imediatamente ante a expectativa.
Seus suaves golpes não conseguiam que Olívia recuperasse a consciência. Esse ruído que ouvia
procedia de seu peito? Aproximou a orelha e ouviu um som áspero, mas não pareceu grave. O mais
alarmante era que podia sentir a suave pele de seus seios contra sua bochecha graças ao fino tecido
da camisola. A intimidade secou sua boca. Seus seios eram menores que os de Pru, mas o incitavam
à rebelião e mal era capaz de controlar-se.
A porta abriu e Jack se sobressaltou. Tentou ocultar a toda pressa um olhar de culpabilidade,
retomando sua atitude despreocupada.
A donzela soltou uma exclamação.
— O que está fazendo, senhor Dodger?
— Desmaiou. Tentei reanimá-la. Temos que avisar a meu médico.
— Já tem um. — A faxineira se aproximou dela e começou a dar uns golpes no rosto com os
dedos.
— Isso já tentei eu — disse Jack.
— Está ardendo. — A donzela o olhou e ele se deu conta de que, até esse momento, acreditava
que ele era o culpado de que sua senhora desmaiasse. Ou talvez o estivesse fazendo responsável por
sua febre. Ultimamente o culpavam de tantas coisas que não acreditava que uma mais tivesse
importância.
— Fique com ela. — Jack se dirigiu à porta do quarto. — Trarei um médico.
Embora ela tivesse seu próprio médico, Jack não pensava chamá-lo. Queria que a visitasse alguém
em quem ele confiasse. Não queria pensar no repentino ataque de terror que tinha experimentado ao
pensar que Olívia pudesse morrer.
Olívia despertou e viu um anjo flutuando sobre sua cama. Seu loiro cabelo encaracolado formava
um halo ao redor de sua cabeça. Em algum remoto lugar de sua mente, formou-se um pensamento:
deveria assustá-la que houvesse um estranho em seu dormitório. Mas seu sorriso era tão amável e
tão tranquilizador que só foi capaz de sorrir.
— Olá — disse ele com doçura.
— Quem...?
— Sou o doutor Graves. O senhor Dodger me pediu que viesse. Como se encontra?
Agora se lembrava. Recordava o que tinha visto.
— Ele estava nu.
— Ah, sim?
Olívia ouviu um som áspero, alguém pigarreava.
— Provavelmente estava sonhando — disse o médico. Ela se esforçou por negar com a cabeça.
— Não, nunca sonharia com ele, jamais imaginaria tão magnífico. A Olívia pareceu que o médico
tentava não rir.
— Sim, bom, temos coisas mais importantes a que nos preocupar. Dói alguma parte do corpo?
— Por toda parte. Estou muito cansada.
— Eu imagino. Quanto tempo vem sentindo-se mal?
— Sempre. Mas nunca tive tanto calor.
— Então, a febre apareceu de forma repentina. Ela assentiu, ou pareceu que assentia.
— Por que não volta a dormir? — disse o doutor Graves. Olívia suspirou e fechou os olhos.
— Henry...
— Ele está bem.
Aquele homem era maravilhoso. Sabia as respostas a suas perguntas antes que ela as formulasse.
E suas mãos a examinavam com delicadeza por toda parte. Era tão cuidadoso...
Lovingdon jamais tinha sido terno. Quando se deitava com ela, o fazia por puro dever. Nunca
havia dito nada bonito antes de fazer e nem tinha sussurrado nada depois. Às vezes, Olívia tinha a
sensação que se desculpava por impor seu corpo. Sempre ia a seu quarto, deslizava-se entre os
lençóis, logo dentro de seu corpo e depois partia deixando-a nas mãos de uma dolorosa solidão.
Sempre tão sozinha...
— E bem? — perguntou Jack quando Graves finalizou seu exame.
— Acredito que é algo parecido à gripe.
Ao Jack fez um nó na garganta ao mesmo tempo em que a donzela reprimia uma pequena
exclamação. Estava sentada em uma cadeira do quarto, em qualidade de testemunha, para assegurar-
se que não ocorria nada inapropriado. A princípio, havia-se oposto que Jack estivesse presente, mas
ele só teve que recordar que agora era ele quem pagava o salário para conseguir que se calasse. OH,
sim, o dinheiro comprava poder e uma assombrosa tendência nas pessoas a olhar para outro lado.
— Morrerá? — perguntou Jack. Graves o olhou.
— É jovem. Não posso dar fé de sua força porque está muito magra. As mulheres aristocráticas
costumam comer muito pouco. Têm os meios suficientes para comprar comida, mas não os
aproveitam. Acreditam que ter apetite é vulgar.
— Então, temos que dar de comer?
— Não acredito que queira comer, mas sim, precisará alimentar-se quando despertar. Dei um
pouco de láudano para que durma bem um bom momento. Deixarei um cataplasma que ajudará a
baixar a febre. Os banhos de água fria também ajudam, mas terá que ter muito cuidado de que não
se esfrie.
— Como não vai se esfriar em um banheiro de água fria?
— Aí está o dilema. O melhor é deixar que a enfermidade siga seu curso.
Jack começou a zangar; sentia-se impotente.
— Chamei você porque se supõe que é o melhor curando enfermidades, e só o que me pode
dizer é deixemos que siga seu curso?
— Eu adoraria que fosse de outra maneira, mas não existe cura para a doença que enfrentamos.
Sinto muito.
— É verão, pelo amor de Deus; eu acreditava que as pessoas só ficavam doente no inverno.
— É verdade que o inverno afeta um maior número de pessoas, mas as enfermidades não se vão
de férias. Esta mulher está de luto. É provável que não coma e que não durma bem. A dor acaba
cobrando seu preço.
Só quando o amor também entra na equação, pensou Jack. Significava isso que Olívia amava a
seu marido? A um marido que tinha deixado só duas mil libras ao ano? Um marido que jamais tinha
dado um beijo de verdade? Que coisas conseguiam que as pessoas sentissem amor? Como aparecia
essa emoção? Jack tinha amado sua mãe, mas após nunca tinha amado a ninguém mais. Sentia uma
terna consideração por Frannie, mas isso não era amor.
— Eu cuidarei dela — disse sua donzela.
— Não poderá fazê-lo as vinte e quatro horas do dia — espetou Jack. — Contrataremos uma
enfermeira.
— A boa notícia é que deveria passar com bastante rapidez. A febre teria que desaparecer em
dois ou três dias — interveio Graves.
Se é que desaparece, evitou dizer a seguir.
— Voltarei amanhã para ver como está. — Agarrou sua inquietante maleta negra e se dispôs a
sair.
— Volte esta noite — ordenou Jack.
— Tenho muitos pacientes...
— Eu vou te construir um maldito hospital.
— Porque perdeu uma aposta. Isso não significa que te deva nada.
O que mais incomodava a Jack era que se Luke pedisse, não só voltaria, mas também não iria.
Todos os meninos de Feagan eram mais leais a Luke que a ele. Todos tinham tido ciúmes de sua
relação com Feagan. Jack era como o filho que o homem não teve, o único em quem confiava se é
que havia algo que confiar. Todos temiam que Jack conhecesse seus mais profundos e escuros
segredos.
Infelizmente para eles, conhecia-os. Mas nunca se aproveitou disso, jamais os ameaçou revelar o
que eles desejavam manter em segredo. E, por muito tentado que se sentisse, tampouco pensava
utilizar o que sabia naquela ocasião. Tragou o orgulho e disse:
— Por favor.
— Tentarei. É quanto te posso prometer. Mas de verdade que há muito pouco que possa fazer
por ela; entretanto, posso fazer muito por outras pessoas.
Jack assentiu enquanto observava a estática silhueta de Olívia e pensava que a preferia
caminhando com energia pela casa e corrigindo-o por uma coisa ou por outra.
— Alguma vez se sente como se fosse Deus, sabendo que pode escolher a quem decide prestar
mais atenção?
— Não penso dar importância a essa pergunta me incomodando em responder.
— Sinto muito. Já sei que estou fazendo isso difícil.
— Muitas pessoas reagem assim quando alguém por quem se preocupa cai doente.
Jack olhou fixamente a Graves. Estava a ponto de negar essa afirmação, mas aquele homem tinha
um dom. Parecia que tinha a estranha habilidade de ver o interior de uma pessoa sem instrumental
médico de nenhum tipo.
— Mal a conheço — grunhiu Jack.
— Isso não significa que não se preocupe por ela. — Graves levantou a mão. — Sei. Sei. Você só
se preocupa com Jack Dodger. Encontrarei uma forma de vir esta noite. — Quando se pôs a andar
em direção à porta, parou junto a Jack e, em voz baixa, sussurrou: - Deveria abotoar as calças.
Ele foi a seu quarto resmungando. Tinha que acabar de vestir-se de todos os modos. Não estava
certo que a donzela acreditou que estava se vestindo quando ouviu um forte golpe no dormitório da
duquesa. Mas não importava o que acreditasse em ninguém. Só que importava era que Olívia ficasse
bem.
Jack estava sentado à mesa da biblioteca e se sentia satisfeito dos progressos desse dia. Fazia
muitas coisas para afastar de sua mente o estado de saúde da Olívia. Tinha contratado uma
enfermeira, uma garota chamada Colleen, para que se cuidasse dela à noite. A donzela da duquesa
tinha insistido em cuidar durante o dia. Enquanto entrevistava enfermeiras, Jack também se dedicou
a entrevistar babás. A jovem que tinha contratado para que se encarregasse de Henry se chamava
Ida. Era muito baixa, sua cabeça não chegava a ele nem na metade do peito, e isso com sapatos.
Usava o cabelo, negro, preso em um coque, e seus olhos azuis brilhavam de alegria inclusive
enquanto respondia às duras perguntas com as que Jack tentava averiguar o que pensava dos
castigos.
Não gostava de bater em crianças, disse.
— Como conseguirá que se comporte bem?
— Com carinho.
Não era um enfoque muito convencional, mas nunca tinha interessado o convencional. A garota
tinha vinte anos e sua única experiência era que tinha cuidado de seus irmãos pequenos. Mas a Jack
não passou despercebida a bondade que refletiam seus olhos, e gostou muito de como tratava Henry
e a forma em que o menino se relacionou com ela. Dava a sensação de que estava cômodo em sua
companhia e parecia entender que se havia algo que não gostava só tinha que interromper ao Jack
em qualquer momento e dizer .
Assim que teve solucionado o tema da babá, pôde concentrar-se nos assuntos financeiros.
Entretanto, de repente os números não enquadravam. Não acreditava que tivesse muito haver com
as cifras cotadas nos livros, a não ser com o fato que estava preocupado com Olívia.
À meia-noite, quando devia ir cuidar dos assuntos do clube, subiu ao quarto da doente. Como
tinha em mente o quanto ela se preocupava com a correção, deixou a porta aberta. O dormitório
estava às escuras, exceto pela luz que procedia de um abajur que havia sobre a mesa de noite. A
enfermeira ficou em pé.
— Como vai? — perguntou ele.
— Ainda tem febre. Murmura muitas coisas. Mas acredito que está bem. Irei àquele canto se por
acaso quer dispor de um momento a sós com ela.
Jack quase perguntou por que acreditava que ele queria passar um momento a sós com Olívia. Já
tinha a informação que necessitava, já podia ir. Mas assentiu antes sequer de poder pensar nisso.
— Sim, obrigado.
Agarrou o aveludado banco de diante da penteadeira de Olívia, colocou junto à cama e se sentou.
Estava tão preocupado que nem se fixou no quarto: o dormitório ao qual ela tinha pedido que não
entrasse. Deu uma rápida olhada e não viu nada fora do comum, nada que pudesse envergonhá-la ou
que pudesse querer guardar em segredo. Talvez só fosse que seu quarto era seu santuário e não
queria que um tipo como Jack Dodger o invadisse. Mas se esse era o caso, não teria que ter ficado
doente.
Pensou em segurar a mão, mas por algum motivo, esse gesto pareceu mais íntimo que um beijo.
Nem sequer sabia por que estava ali. Não podia fazer muito por ela, mas sentia a necessidade de
fazer algo. Odiava sentir que não podia controlar a situação. O som de todos aqueles malditos
relógios não ajudava...
Olhou a mesa de noite. Um relógio adornado por querubins alados marcava o passar do tempo.
Mas aquele relógio não bastava para produzir tanto escândalo. Virou-se para olhar um dos lados do
dormitório e, sobre uma mesa, descobriu todos os relógios que ele tinha tirado da biblioteca. Por
que tinham tanto valor para ela?
Virou-se de novo e a observou. Parecia tranquila. Olhou à enfermeira. Estava sentada junto à
chaminé; observou seu perfil e como se concentrava no trabalho que estava tecendo. Suspeitava que
se ele fizesse algo pouco cavalheiresco, a mulher se daria conta, mas estava o bastante longe como
para não poder ouvir os sussurros. Embora tampouco ele quisesse sussurrar nada a Olívia.
Entretanto, sim havia um montão de coisas que queria gritar. Estava causando muitos
inconvenientes. Era uma mulher muito irritante. Tinha que ficar bem, e rápido. Não podia perder
mais tempo preocupando-se com ela, e como seu filho por sua vez estava preocupado, Jack tinha
que deixar de trabalhar — momentos que não podia permitir o luxo de atirar— para tranquilizar
Henry. Jack tinha muitos assuntos que atender, tanto ali como em seu negócio. Não tinha paciência
para aquelas tolices.
Entretanto, apoiou os cotovelos nos joelhos e se inclinou um pouco para frente.
— Não tem que preocupar-se com Henry — disse em voz baixa. — Agora tem uma boa babá. A
condessa de Claybourne me ajudou a encontrá-la.
Isso também tinha sido muito irritante: ter que pedir ajuda para Catherine. Jack estava
acostumado a cuidar de seus próprios assuntos, mas não estava tão familiarizado com esse mundo
como estava com o seu. E não queria decepcionar Olívia tomando uma má decisão. Outra coisa que
era muito irritante: que se preocupasse com satisfazê-la.
— Você gostará da nova babá. Chama-se Ida. Henry gosta muito dela.
Olívia piscou e abriu os olhos. Se alguém o acusava, asseguraria que não pretendia despertá-la. A
fim de contas, se dava muito bem em mentir. Mas em realidade sim queria que despertasse, queria
comprovar por si mesmo que continuava ficando vida naqueles olhos dourados. Queria voltar a
perder-se neles.
— Como está? — perguntou.
Ela fechou os olhos um momento, parecia necessitar todas suas forças para responder.
— Cansada.
Jack pensou tocar a testa para comprovar a intensidade da febre, mas podia ver o rubor de suas
bochechas, a fina capa de suor que cobria a pele. Não tinha nenhuma dúvida que continuava com a
temperatura alta.
— Henry? — perguntou com voz rouca.
— Está bem. Está dormindo.
— Hora?
— É um pouco mais de meia-noite. Se quiser, posso te dizer a hora exata. Tem aqui todos os
malditos relógios.
Nos lábios da Olívia se desenhou um fraco sorriso.
— Dei-os... a ele.
— Você deu de presente todos esses relógios ao Lovingdon?
Ela assentiu ligeiramente. Agora entendia por que a tinha incomodado tanto que ele desse tão
pouca importância a sua preciosa coleção.
— Sempre dizia que o tempo era seu inimigo. — encheram os olhos de lágrimas. — Eu tentava
fazer ver que não era assim. Mas ele sempre dizia que havia certos assuntos que devia atender.
Assuntos que devia pôr em ordem.
— Que assuntos?
Olívia negou muito devagar com a cabeça, fechou os olhos e logo os voltou a abrir.
— Nunca me disse isso. Ele e seus segredos.
Jack não pôde evitar perguntar-se se algum desses segredos concernia. Voltou a olhar pelo
quarto. Não havia nada que fosse familiar, mas poderia ter mudado tanto como tinha mudado
Londres. O homem que o acolheu deu um quarto junto ao seu, mas Jack não acreditava que fosse
aquele.
— Sinto-o — disse ela com a voz entrecortada.
Ele a olhou de novo. Por um momento, temeu que tivesse a capacidade de ler a mente e saber
por que escura estrada se deslizaram seus pensamentos. Por isso sua voz soou um pouco mais áspera
do que pretendia quando por fim falou:
— Por que não deixa de se desculpar?
— Lovingdon. Eu o matei.
Capítulo Treze

Jack ficou olhando fixamente Olívia. Ela fechou os olhos justo depois de dizer essas palavras;
parecia como se a confissão levou a pouca força que tinha. Acaso acreditava que estava morrendo e
por isso precisava confessar? Por que teria dito algo assim? Jack não teria ficado tão surpreso se ela
se levantasse da cama, tirado a roupa e começado a correr completamente nua pelas ruas de
Londres.
Um som o assustou e, para sua grande irritação, sobressaltou-o. A enfermeira estava aos pés da
cama. É que todo mundo tinha que ser tão sigiloso naquela casa? Ia ter que obrigá-la a costurar
campainhas na roupa para poder dar-se conta que estavam se aproximando.
— Despertou? — perguntou ela.
— Um minuto.
— Deu algo para beber?
— Não.
Colleen o olhou com o cenho franzido, parecia como se tivesse confessado que estava mais
interessado em desabotoar os botões de Olívia que em seu bem-estar. A mulher se deslocou até o
outro extremo da cama, pôs os dedos sobre a testa de Olívia e está murmurou algumas palavras
incoerentes.
— Céu santo, está ardendo.
O que significava que sua confissão era produto do delírio. Poderia tê-la provocado um sonho,
um pesadelo, ou inclusive o desejo reprimido de que seu velho marido morresse para que ela
pudesse casar-se com um homem mais jovem.
Jack riu para si. Esse último era muito improvável. Agora tinha a oportunidade de casar-se com
um homem mais jovem e tinha recusado todos seus intentos por casá-la com alguém. Entretanto, o
fato de que não parecesse querer casar-se não significava que não queria desfazer-se de seu marido.
Mas assassiná-lo? Não dava o tipo de assassina.
Colleen alargou o braço para chamar à donzela.
— O que faz? — perguntou Jack.
— Vou colocá-la em uma banheira de água fria. Tenho que baixar a febre.
Ele assentiu.
— Prepara-o. Eu a colocarei na banheira.
— Isso não seria adequado.
— Ao diabo com o pudor! Ela não pode fazer sozinha e você não tem a força necessária para
levá-la. E certamente não penso deixar que o faça nenhum dos homens que trabalham aqui. Eu pago
seu salário e fará o que eu te digo. Prepara o banho.
— Sim, senhor.
Poucos minutos depois, o quarto se encheu de atividade: as donzelas corriam de um lado a outro
carregando baldes de água com gelo ante o atento olhar de Brittles. Jack se perguntou se o mordomo
dormiria com a roupa posta, porque sempre parecia estar preparado para atender qualquer problema
que surgisse. Talvez só fosse que todos se preocupassem com a duquesa e nenhum deles tinha ido
dormir.
Tirou a jaqueta e se virou para deixá-la sobre uma das poltronas que havia perto da cama. Então
viu uma cabeça loira que aparecia pela porta. Jack saiu ao corredor enquanto arregaçava a camisa. O
jovem Henry estava sentado, com as costas apoiada na parede; abraçava com força seu cachorrinho
e tinha o medo escrito nos olhos.
Era evidente que tinha ouvido a agitação e que estava esperando o pior. Jack assumiu que a noite
em que morreu o duque também deve ter produzido muito alvoroço.
Agachou-se junto a ele.
— Vai ficar bem, menino.
— Acordou, posso vê-la?
— É melhor que não; pelo menos, agora não. Ela nunca me perdoaria se você também ficasse
doente. — Jack mal teve tempo de pensar por que o preocupava fazer algo pelo que Olívia pudesse
não o perdoar.
— E se mo-morre?
— Não morrerá, prometo isso. E Jack Dodger é um homem que mantém suas promessas.
Pergunte a quem quiser.
— A quem? Jack riu.
— A ninguém que você conheça, felizmente. — deu um tapinha no ombro. — Agora volta para
a cama para que eu possa cuidar de sua mãe.
O menino assentiu e pôs-se a andar em direção a seu quarto. Ida o estava esperando na porta.
Abraçou-o quando ele chegou a seu lado e Jack se sentiu ainda mais seguro de ter escolhido à babá
adequada. Levantou-se e voltou para o quarto de Olívia.
— Já está tudo preparado — disse Colleen.
Ele se apressou a desabotoar o colete, que deixou sobre a jaqueta. Tirou o lenço. Logo se
aproximou da cama e retirou as mantas. Olívia tinha posto só a camisola. Jack a agarrou nos braços e
a levou ao quarto de banho. Vacilou. Da água não procedia o agradável vapor de costume. O gelo
flutuava na superfície. Ele sabia muito bem como era desagradável um banho de água fria. Já fazia
muitos anos que o tinham submerso em um no cárcere e o tinham esfregado sem piedade, mas não
era uma experiência que se esquecesse com facilidade.
— Senhor, é para seu próprio bem — disse Colleen com doçura.
Como se Jack fosse um homem que se preocupasse com o bem-estar dos outros...
— Está bem. — aproximou-se da banheira, inspirou com força como se fosse ele quem tivesse
que inundar-se e colocou a Olívia na água.
Olívia despertou de repente, muito assustada. Estava rodeada de calor, comodidade e segurança
e, de repente, estavam-na metendo em uma banheira de água fria. Tinha frio, muito frio. As partes
de gelo chocavam uns com outros. Ela gritou, lutou, arranhou o, tentou liberar-se, mas seu corpo
continuava sob a água e sua empapada camisola flutuava a seu redor.
— Olívia.
Alguém a agarrou pelos pulsos e a imobilizou com uma mão tão firme como o aço, enquanto
com a outra a segurava pela nuca.
— Olívia! Olívia! Quer assustar Henry?
Ela ficou imóvel olhando Jack. Naquele momento o odiava.
— Tenho muito frio.
Ele soltou os braços e segurou seu rosto. Sua mão estava quente, muito quente. Ela queria
aconchegar-se inteira dentro daquela mão.
— Já sei, mas não há outro remédio para baixar a febre, meu amor — disse ele.
Assentiu sem deixar de tremer. Jack se deixou cair ao chão e se sentou junto à banheira, como se
estar no quarto de banho enquanto ela também estava fosse o adequado. Não era e Olívia queria que
se fosse, mas também queria que ficasse.
— Pense em outra coisa — ordenou ele.
— No que?
— Nos relógios. Você gosta dos relógios? Ela assentiu tiritando.
— Comprarei um relógio por cada minuto que passe nesta banheira.
— Eu não gosto tanto.
Ele riu; a profundidade de sua risada ressonou pelo quarto.
— Me alegro que al-alguém esteja se divertindo — gaguejou ela.
— Não me divirto.
Olívia olhou ao redor. A única pessoa que havia ali além deles dois era a enfermeira. Como se
chamava? Seu nome revoava nos limites de sua mente.
A mulher deslizou até o outro extremo da banheira.
— Só um par de minutos, sua excelência. Ela assentiu. Aquilo era muito desagradável.
— Pensa no bem que se sentirá quando sair. Olívia assentiu de novo.
— Voltará a me abraçar? É muito cômodo e quente. — escapou um meio sorriso. — Não
deveria querer estar quente quando é precisamente isso o que me trouxe até aqui.
— Quando sair, tomará um pouco de sopa quente — disse ele. — Come muito pouco.
— Co-como sabe?
— Já te peguei nos braços três vezes e está muito magra.
Olívia estava certa que tinha tentado insultá-la, mas não se importava.
— Não posso mais. — segurou com força as laterais da banheira.
— Toma. — Jack pôs a mão debaixo da sua. — Segure minha mão.
— Você poderia ro-romper os ossos.
— Bom, já se soldarão. Venha, segure.
E o fez. Apertou a mão, apertou os olhos, apertou, apertou, apertou.
— Me fale.
— Sobre o que? — perguntou ele.
— Sua infância. Me conte uma anedota. Seu polegar.
— Por que está todo mundo tão interessado em meu polegar?
— O que-o que roubou?
Afastou algumas mechas de cabelo da cara com ternura.
— Nada.
— Era inocente?
— Desse delito em particular, sim. Mas era o suficientemente culpado por outros, assim pensei
que merecia o castigo.
— Tome, sua excelência — disse a enfermeira, colocando em Olívia um pano enrolado na boca.
— Tem que morder isto ou acabará mordendo a língua.
Ela obedeceu e logo disse como pôde:
— Fale.
Ele suspirou como se Olívia tivesse acabado com sua paciência, mas então disse: — Foi
Claybourne. Tentou roubar um queijo inteiro. É importante roubar coisa que possam meter em um
bolso ou que possa passar a alguém, sem que ninguém te veja. Mas ele se enamorou do queijo da
forma mais estúpida. Eu voltei atrás e tentei que o vendedor o soltasse, mas o único que consegui foi
que me agarrassem também. Foi a única vez que me pegaram, por certo.
Parecia muito orgulhoso disso. Olívia assentiu, insistindo-o a continuar. Quando ele falava, ela
podia se perder em sua profunda voz e quase esquecia a agonia pela que estava passando.
— Eu tinha dez anos. Sentenciaram a três meses no cárcere. Quando nos soltaram, voltamos para
nossa vida na rua: fomos um pouco mais sábios e um pouco mais cuidadosos. Frannie era nossa
pequena mãe. Ela é mais jovem que a maioria de nós, mas se preocupava com todos. E acredito que
já teve suficiente de banho.
— Outro minuto — disse a enfermeira.
Olívia a odiava e odiava a Jack por tê-la contratado.
— Está se pondo azul — disse ele. — Já é suficiente.
— Não, senhor.
— Já é suficiente — disse, adotando aquele irritante tom de voz que indicava que era quem
mandava.
Olívia odiava esse tom.
Adorou sentir como passava um braço por debaixo dos joelhos e outro por atrás das costas e a
levantava com um pequeno gemido. Talvez não fosse tão leve, depois de tudo.
Deixou-a sobre uma cadeira.
— Traz as toalhas.
— Eu cuidarei dela — disse a enfermeira.
Jack se afastou e Olívia pôde ver que tinha a camisa quase tão empapada como a sua.
— Vou ao clube — disse. — Peça a alguém que vá me buscar se me necessitar.
Quase recordou que necessitava que a abraçasse para dar calor, mas continuava tendo o pano na
boca e tinha medo de tirar se por acaso mordia a língua. A enfermeira estava tentando ajudá-la a tirar
a camisola e Olívia estava certa que logo se aqueceria de novo. Entretanto, não podia negar que se
sentia decepcionada de que não fosse Jack quem conseguisse.
Jack tirou a roupa molhada, decidido a abandonar a residência logo que fosse possível. Não tinha
prometido a Olívia que a abraçaria, mas não podia tirar sua petição da cabeça. Recordou-se que
estava doente, que delirava; possivelmente não fosse consciente do que dizia. Provavelmente, o
último que desejava era que ele a abraçasse.
Enquanto colocava a roupa seca, recordou sua imagem tremendo na banheira. Obrigá-la a ficar
naquela água congelada era o mais difícil que tinha feito em sua vida. Ele tinha ficado nervoso.
Tinham endurecido os escuros mamilos. Sabia que eram escuros porque eram quase visíveis através
da camisola empapada. Graças a Deus, ela estava muito doente para dar-se conta que ele não perdia
um detalhe de seu corpo empapado.
Assim que começou a resistir para que não a metessem na água, Jack teria tornado a levá-la à
cama, mas tinha prometido a Henry que não morreria, e se a enfermeira acreditava que necessitava
um banho de água fria, isso era o que ia ter. Esfregou a testa. No que estava pensando quando
prometeu isso ao menino?
Abriu a porta e saiu ao corredor.
— Ela morreu?
Jack se virou. Henry estava ali de pé, com sua camisa de dormir; parecia tão pequeno, tão
assustado.... Tinha os olhos abertos como pratos.
— Não, menino. — aproximou-se e se ajoelhou junto a ele. — Vai ficar bem. Onde está sua
babá?
— Dormindo. — Henry observou a porta e logo olhou a Jack.
— Ainda não pode vê-la. Quer se sentar um momento junto à porta de seu quarto?
O menino assentiu com a cabeça.
Jack se sentou no chão e apoiou as costas na parede. Henry subiu a seu colo e apoiou a cabeça
sobre seu peito.
— Ficará bem, menino. Ficará bem.
Ficaram ali sentados em silêncio durante um momento e, então, Jack disse: — Se quiser, pode
chupar o polegar. Henry negou com a cabeça.
— Toma. — Jack meteu a mão no bolso, agarrou seu medalhão e o deu. — Pegue. Dará boa
sorte.
Sua pequena mão se fechou ao redor do objeto.
— Conhece lorde Claybourne? — perguntou Jack. O menino levantou o olhar.
— Não.
Sua voz era muito baixa. Parecia temer incomodar a sua mãe e Jack mal o ouvia.
— Bom, suspeito que algum dia o conhecerá. Eu estive vivendo um tempo com o anterior lorde
Claybourne. Um dia, estava decidindo escapar de sua casa ou não. Estava na porta de trás,
observando meu medalhão quando seu pai se aproximou de mim.
Henry abriu seus dourados olhos de par em par.
— Isso ocorreu há muitos anos — disse Jack. — Antes que você nascesse. Ele pensou que o
tinha roubado, mas expliquei que minha mãe tinha me dado ele...
Jack recordava aquele dia como se fosse ontem.
— Darei um xelim se me deixar ver o medalhão — disse Lovingdon.
— Por que quer vê-lo?
— Faz tempo, conheci uma garota que usava um medalhão muito parecido a este.
Jack não gostava daquele homem. Não confiava em ninguém que tivesse os olhos verdes.
Recordavam a um homem que tinha feito mal há muito tempo. Mas o que podia ter de mal em
aceitar uma moeda?
— Uma coroa.
O homem sorriu.
— É um grande negociante. Trato feito.
Deu a coroa a Jack que, assim que ele a teve na mão, sentiu desejos de pôr-se a correr. Agarre o
dinheiro e corre. Mas em vez de escapar, e com a garganta tão fechada que acreditava que ia se
afogar, deixou-o observar sua apreciada posse.
O duque abriu o medalhão muito devagar e observou a pequena fotografia que continha durante
o que ao Jack pareceu uma eternidade. Logo o fechou e o devolveu.
— É um medalhão muito bonito, mas este não é o que eu conhecia. Ele guardou o medalhão e
dedicou um travesso sorriso.
— Obrigado pela coroa.
— Está pensando em fugir?
— Não acredito que isso seja de seu interesse.
— O conde te ofereceu uma oportunidade a que podem ter poucas crianças como você. Se não
quer aprender com ele, talvez queira aprenda comigo.
— Não me interessa. Além disso, engana-se. Não estava pensando em fugir. Meus amigos estão
aqui. Fico.
— Melhor para você, menino. Melhor para você.
Quando Jack acabou de contar a história, Henry tinha dormido. Recuperou o medalhão de entre
suas pequenas mãos com muito cuidado, abriu-o e observou a fotografia em miniatura de sua mãe.
Tinha o cabelo e os olhos escuros, igual a ele. A Jack sempre tinha parecido muito bonita.
Não podia deixar de pensar no homem que o tinha comprado. Teria sido Lovingdon? Isso
explicaria que o medalhão resultasse familiar. Quem o comprou estava ao seu lado quando sua mãe
deu o medalhão ao despedir-se dele.
Não, Jack resistia a pensar que o duque fosse esse homem. Tornaria-se louco pensando que havia
tocado em Livy e que era o pai de Henry.
Tinha que ter algum motivo que ia mais à frente do testamento. Mas como diabos ia saber seja ele
qual fosse? E por que tinha a sensação de que era importante averiguá-lo? Deveria esquecer-se do
tema, mas era incapaz de deixar de suspeitar que algo não ia bem e que estava passando por cima de
algum aspecto muito importante.
Lovingdon havia dito a Olívia que tinha que encarregar de resolver um assunto. Jack se
perguntou se também teria herdado essa missão. Entretanto, ainda não sabia do que se tratava.
O tempo passava devagar. Às vezes, Olívia tremia de frio e outras vezes acreditava que ia arder
do calor que tinha.
Jack não voltou a ver como estava. Ela assumiu que ele tinha perdido o interesse quando se deu
conta que sobreviveria e continuaria ali para ficar com a casa. Sentia espantosamente a falta Henry,
mas sabia que o assustaria vê-la tão fraca.
Cada manhã e cada noite, o médico angélico ia ver como estava. Graças a suas visitas, ela podia
seguir a conta dos dias que passavam. À terceira noite, a febre começou por fim a ceder e o doutor
Graves pareceu muito satisfeito quando ao chegar pela manhã a encontrou sentada na cama.
— Não é meu médico habitual — disse ela.
Estava exausta, mas se encontrava muito melhor. Acabava de tomar um banho e usava uma
camisola limpa. Tinham mudado a roupa da cama. As janelas estavam abertas, a luz do sol iluminava
o quarto e o aroma da enfermidade tinha desaparecido de tudo.
— Não, não sou. Sou um amigo de Jack Dodger — respondeu ele.
— Parece muito respeitável para ser amigo dele. O médico sorriu.
— Conheci quando era um menino.
— Você também cresceu na rua?
— Sim.
— Como aprendeu a ser tão compassivo? Ele a olhou entrecerrando os olhos.
— O que quer me perguntar na realidade é por que o senhor Dodger não aprendeu a sê-lo?
— Não acredito que vocês se pareçam muito.
— As crianças não podem ter o luxo de poder escolher sua infância, mas não posso queixar das
amizades que fiz durante a minha. Resultaram-me muito úteis.
Olívia estirou de um fio que saía do edredom.
— É que nem sequer se incomodou em preocupar-se com como me encontro.
— Oh, asseguro que está preocupado. — ria como se alguém tivesse explicado uma piada muito
boa. — Cada vez que venho vê-la, me submete a um extenuante interrogatório sobre sua saúde.
Para subtrair veracidade a suas palavras, Olívia disse:
— Não veio ver-me. — Parecia uma menina tola que pouco tinha a ver com ela mesma.
— Não seria apropriado, verdade?
Como se o apropriado o tivesse detido em outras ocasiões. Para falar a verdade, não tinha detido
a nenhum dos dois.
— Quero que fique na cama um par de dias mais para recuperar forças — disse o doutor Graves.
— E o que acontece com Henry?
— Ele está bem. Poderá vê-lo dentro de dois dias.
— Preferiria vê-lo agora.
— Dois dias. — Sua voz era firme e não admitia discussão.
— Todos as crianças de rua são iguais de mandões?
— Assim é. — Agarrou sua maleta negra. — Agora, devo ir enfrentar o grande inquisidor.
Olívia o observou enquanto saía do quarto. Logo, olhou para onde estava sentada a enfermeira.
— Acredita que posso me sentar um momento junto à janela?
— O médico disse que fique na cama.
— Mas estou certa que me sentar tranquilamente junto à janela servirá para o mesmo propósito.
Colleen deixou seu trabalho a um lado.
— Suponho que não pode fazer muito dano.
Foi pior do que Olívia tinha imaginado. Doíam os músculos e rangiam os ossos. Se não soubesse
o que tinha passado, pensaria que tinha envelhecido cem anos. Apoiou-se em Colleen e quando
chegou junto à janela e se sentou, ficou sem fôlego.
— Oh, Meu deus, não sei se conseguirei voltar para a cama.
— Se não poder, chamaremos o senhor Dodger para que a leve.
Olívia notou como ardiam as bochechas de vergonha, e embora se queixasse que ele não tivesse
voltado para seu quarto desde a primeira noite, não podia passar por cima do fato de que não teria
que ter estado ali nem sequer então. Não queria que tudo aquilo ocasionasse um montão de
escandalosas fofocas.
— Não teria que ter estado aqui. Não é apropriado.
— Comportou-se como um autêntico cavalheiro.
A Olívia pareceu perceber algo em sua voz, como se a enfermeira se ofendesse em nome do Jack.
— Conhece-o bem?
— Apenas o conheço. Ouvi falar dele, é obvio, mas não o tinha visto nunca até que comecei a
trabalhar para ele. Por muito que me surpreenda, tenho que admitir que tenho muito boa opinião
desse homem.
Olívia se tornou para trás e olhou pela janela. Estava muito cansada para discutir ou fazer mais
perguntas. Perguntou-se se Jack gostaria de Colleen e se o fato que tivesse estado em seu quarto teria
mais a ver com a enfermeira que com ela. Acaso agora que a tinha beijado se cansou? Sentia-se um
pouco estranha, preocupando-se por isso, especialmente porque não tinha nenhum interesse em que
Jack prestasse nenhuma atenção.
Viu como o doutor Graves subia a sua carruagem. Era bastante bonita. Olívia não esperava.
Perguntou-se como teria chegado a ter coisas tão bonitas.
Era mais fácil comer sentada em uma poltrona, assim que se tomou uma tigela de caldo. Até que
começou a comer, não se deu conta de como faminta estava.
Não ficou na poltrona muito tempo. Talvez uma hora. Logo voltou para a cama com muito
cuidado e ficou dormindo em seguida. Quando despertou de novo tinha escurecido. O abajur da
mesa de noite projetava uma luz tênue. Obedeceu a Colleen e tomou um pouco mais de caldo.
Depois voltou a cair no sono profundamente.
Quando tornou a despertar, o abajur estava aceso, mas Colleen estava deitada em uma pequena
cama e roncava com suavidade. Olívia olhou o relógio. Eram quase nove. Henry estaria dormindo.
Odiava pensar que teria ido dormir todas aquelas noites sem que ninguém lesse para ele. Nem
sequer tinha uma babá adequada.
Franziu o cenho. Havia dito alguém que já tinha babá? Tinha uma vaga lembrança... Não,
provavelmente não. Não queria nem imaginar o tipo de mulher que contrataria Jack. O doutor
Graves havia dito que ficasse um dia mais na cama, mas já ficou tudo o que podia. Estava
desesperada por ver Henry. Aquele era o momento perfeito, porque estaria dormindo e não teria que
preocupar se por acaso a visse. No dia seguinte passaria um pouco de tempo com ele e leria. Ele
gostava muito que lessem para ele.
Afastou a roupa de cama e esse singelo gesto a deixou completamente esgotada. Perguntou-se
quanto tempo passaria até que estivesse curada e recuperasse as forças. Seu xale estava aos pés da
cama. Envolveu-se nele e andou descalça até a porta; parecia uma menina fazendo algo que não
devia. Era muito consciente que se Colleen despertasse a corrigiria e insistiria em que voltasse para a
cama. E era o que pensava fazer, assim que tivesse visto que Henry estava bem e de que alguém
estava cuidando de vigiá-lo.
Abriu a porta e saiu ao corredor. A casa estava tão tranquila como esperava. A porta do quarto de
Henry estava aberta e, enquanto se aproximava, ouviu um murmúrio. Parou na soleira e deu uma
olhada dentro. Era evidente que continuava tendo febre e que continuava delirando, porque, sentado
em uma cadeira, com os cotovelos apoiados nas coxas e um livro entre as mãos, estava Jack Dodger
lendo a seu filho.
Jamais tinha visto Henry tão interessado. Estava sentado na cama junto a um estranho vulto que
havia sob os lençóis. Não queria nem pensar que pudesse estar dormindo com seu cão.
Jack chegou a certo ponto da leitura e Henry o interrompeu para dizer: — Dodger. Esse é seu
nome. Jack levantou o olhar do livro.
— Sim.
Henry o observou um momento e enrugou sua pequena frente.
— É como Artful Dodger?
— Que tolice! Há muitíssimas crianças assim na rua. Sabe o que é um dodger?
Henry negou com a cabeça. Olívia nunca o tinha visto tão animado e com tão pouco medo.
— Um dodger é alguém a quem se dá muito bem em esquivar de seus perseguidores. — Jack
moveu o corpo de um lado a outro, para trás e logo para frente. — Quando agarra algo e o
perseguem, você tem que esquivar. É uma honra que o chamem assim. Acredito que o senhor
Dickens sabia muito bem quando escreveu esta história.
— Você foi bom esquivando?
— O melhor.
OH, ali estava aquela atitude tão presunçosa, mas Olívia mordeu a língua porque não queria
alertá-los de sua presença. Henry não tinha gaguejado nenhuma só vez.
— Ensinará a mim? — perguntou então. Jack pareceu pensar um momento.
— Não acredito que seja uma habilidade que necessite nenhum lorde, mas não vejo nenhum mal
nisso.
— Agora?
— Não. — Jack riu. — Quando sua mãe estiver o bastante forte para poder sentar-se no jardim.
Agora será melhor que durma. Se sua mãe souber que deixei que ficasse acordado até tão tarde,
estarei a escutando até o fim de meus dias.
Henry riu. Olívia não se lembrava da última vez que tinha ouvido um som tão doce. Continuou
rindo até que esteve deitado na cama. O vulto que havia sob os lençóis se moveu e de repente
apareceu o nariz do cão. Deitou-se junto a Henry.
— Fecha os olhos e lerei um pouco mais até que durma — disse Jack.
Henry obedeceu, mas o certo era que sempre acostumava a fazê-lo. Entretanto, havia algo na
forma em que olhava Jack, o modo em que respondia tão rápido, na camaradagem que parecia ter
nascido entre eles.... Pelas reações de seu filho, Olívia podia assegurar que via Dodger quase como a
um herói.
O que tinha ocorrido enquanto ela estava doente?
Ouviu a voz de Jack prosseguindo com a história e ela voltou a deslizar-se pelo corredor até seu
quarto, contente que ninguém a tivesse visto. Não sabia muito bem o que pensar de tudo aquilo.
Por um lado, parecia terrivelmente mal que Jack pudesse usurpar seu lugar, tendo tanta atenção
de Henry, mas por outro lado parecia que não podia ser mais correto.
Capítulo Quatorze

A manhã seguinte, Olívia despertou ao ouvir uns sons que procediam do quarto de banho. Era
evidente que estavam preparando o banho de Jack. Uma imagem se desenhou em sua mente, uma
imagem que tinha estado tentando não recordar. Jack Dodger completamente nu. Não podia ter
escolhido um momento mais oportuno para desmaiar. Era estranho, mas graças a isso pôde
conservar um pouco de dignidade. Se tivesse dado meia volta e se escondido no quarto, ele teria rido
dela. E se tivesse ficado olhando-o fixamente para conseguir que fosse Jack quem partisse
envergonhado, provavelmente ainda seguiriam ali. Ou, pior ainda, possivelmente Olívia tivesse ido à
cama dele.
O banheiro ficou em silêncio e Olívia imaginou Jack metido na banheira, com a água quente
balançando-se contra seu corpo. Teve o estranho desejo de entrar naquele quarto, encher as mãos de
sabão e as deslizar lentamente por seu peito e seus ombros. Por suas costas e seus braços. Aquele
homem a atraía de formas que não deveria, a fazia desejar comportar-se de forma incivilizada. Ela
sempre tinha sido boa e, de repente, estava-se começando a perguntar que dano poderia fazer que
começasse a ser má.
— Está acordada.
Olívia, perdida em seus licenciosos pensamentos, sobressaltou-se ao ouvir a voz. Esqueceu-se da
enfermeira.
Colleen sorriu com calidez e pôs a mão na testa.
— A febre não voltou. Assim que o senhor Dodger acabe de banhar-se, pedirei que preparem um
banho para você.
Olívia assentiu, encantada ao pensar que se meteria na banheira justo depois de que Jack a
utilizasse.
— Não acredito que necessitem mais de meus serviços — acrescentou Colleen, ao tempo que
tocava a campainha para chamar a donzela.
— Muito obrigada por cuidar de mim. Tem que ter muito valor para arriscar a própria saúde
cuidando de outras pessoas.
— Eu gosto de ajudar. E tive a oportunidade de conhecer doutor Graves. Segundo os rumores, o
senhor Dodger está construindo um hospital. Eu adoraria poder trabalhar ali.
Jack estava construindo um hospital? Aquele homem era uma fonte inesgotável de surpresas.
— Não sei se poderei influir em algo, mas darei boas referências de você.
Colleen fez uma reverência.
— Obrigada, sua excelência, é muito amável.
Olívia não se sentia amável. Estava desejando que Jack acabasse de banhar-se. Embora pensou
que ele tinha muita pele por lavar e pareceu compreensível que demorasse tanto. Era tão alto como
Lovingdon, mas muito mais corpulento; entretanto, não tinha nem um grama de gordura. Tinha um
corpo estilizado e firme. Olívia só tinha visto a figura masculina nua em uma estátua e inclusive
então o pudor tinha evitado que se recreasse muito nela. Havia custado muitíssimo afastar os olhos
do corpo de Jack.
Sua donzela chegou em seguida e Colleen se foi. Olívia não sabia como se inteiraria Maggie de
quando o banheiro ficaria livre. Mas afinal retiraram a água de Jack e prepararam a banheira para
Olívia. Era um autêntico prazer poder sentar-se na água quente e deixar que levasse a dor de seus
músculos. Sentia-se muito fraca, mas não acreditava que fosse recuperar as forças pensando tanto
nisso.
Assim que esteve vestida, começou a sentir-se um pouco mais ela mesma. Observou seu vestido
negro no espelho e, pela primeira vez desde que enviuvou, desejou poder usar algo com um pouco
mais de cor. O negro não ressaltava suas feições. Jack tinha razão, mas doía que houvesse dito.
— Trago uma bandeja? — perguntou Maggie. Olívia negou com a cabeça.
— Não, prefiro descer e tomar o café da manhã no salão. Tenho bastante fome. Temo que
estaria me trazendo bandejas toda a manhã.
Além disso, tinha chegado o momento de enfrentar de novo ao demônio e esperava poder fazê-
lo sem imaginá-lo nu.
Apesar de que seu ritual sempre incluía uma visita ao quarto de Henry antes de nada, decidiu que
primeiro precisava comer. O entusiasmo de seu filho poderia atirá-la ao chão se não recuperasse
primeiro as forças. Desceu a escada agarrando-se com força ao corrimão; parecia ficar sem fôlego a
cada passo. Quando chegou ao vestíbulo, só o que queria era voltar para a cama. Tomou um
momento para armar-se de coragem; logo ficou bem direita e entrou no salão.
A imagem que a recebeu roubou as poucas forças que ficavam. Jack estava sentado à cabeça da
mesa, com um colete de cor azul marinho. É obvio, estava repassando seu livro, que parecia ter-se
convertido em seu material de leitura preferido. Mas não foi isso o que a deixou gelada.
Foi a imagem de seu filho sentado junto a ele. Henry também tinha um relatório com tampas
negras junto a seu prato, o qual era um pouco estranho, porque ainda não sabia ler. Quando Jack
passava uma folha de seu livro, ele passava também uma do dele. Era comovedor e desconcertante
ao mesmo um tempo. Se seu filho estava tão disposto e encantado de imitar um ato tão inocente,
estaria igual de aberto a imitar outros atos não tão inócuos? Nem sequer estava certa de que ela
mesma servisse como exemplo de bom comportamento.
De vez em quando, ouvia-se um golpe. As pernas de Henry eram muito curtas para alcançar o
chão, e ele as movia e dava patadas à cadeira.
Olívia estava assombrada de que Jack não parecia se importar com esses constantes golpes,
especialmente quando havia dito que o som de seus relógios era insuportável. Jamais teria pensado
que fosse um homem com muita paciência com as crianças e, entretanto, parecia ter muita; pelo
menos com Henry.
Olívia não tinha consciência de ter feito nenhum ruído, mas de repente, Jack levantou a vista e
esboçou aquele travesso sorriso que ela tinha chegado a reconhecer como o gesto prévio a algum
comentário suscetível de acender sua fúria.
Ficou de pé.
— Vá, Olívia, que surpresa tão agradável.
Depois de ter compartilhado a intimidade de um beijo, por não mencionar que o tinha visto
como veio ao mundo, Olívia se surpreendeu daquele recebimento tão cavalheiresco. Acaso ia fingir
que entre eles não tinha ocorrido nada inapropriado?
Antes que pudesse decidir como tomar aquele giro inesperado, Henry se levantou da cadeira.
— Mami!
O menino correu pelo salão e se lançou contra suas pernas. Se não a tivesse rodeado com seus
bracinhos, Olívia poderia ter caído ao chão. Mas ao fazê-lo, ajudou-a a manter o equilíbrio. Ficou de
joelhos e o abraçou. Cheirava bem e deu a sensação que estava muito forte, ou possivelmente é que
ela estava muito fraca. Afastou-se um pouco dele e o observou.
— Céu santo, acredito que cresceu!
Nem tanto em centímetros como em confiança. Henry levantou o polegar.
— Já não chu-chupo isso mais.
— Então, já é um menino grande, verdade? Ele assentiu.
— Venha, vamos. Sua mamãe precisa comer muito, muito.
Olívia não se deu conta que Jack se aproximou, mas de repente tinha sua mão sob o cotovelo e a
estava ajudando a ficar outra vez de pé.
Estudava-a com aqueles olhos escuros e ela não estava certa de que gostasse do que estava vendo.
— Por que não se senta? Eu te prepararei um prato de comida.
— Sente-se a meu lado — disse Henry com entusiasmo.
Antes que Olívia pudesse responder que o apropriado era que ela se sentasse ao outro extremo da
mesa, Jack disse: — Nenhuma das pessoas que há neste quarto dá a isso a mínima importância.
Oh, mas Olívia sim o fazia. Importava-se o que ele pensasse. Seguiria sentindo que devia algo?
Ou por causa de sua enfermidade teria decidido perdoar a dívida?
Seu filho a agarrou pela mão e a acompanhou até a cadeira, como se o comentário do Jack tivesse
resolvido a questão. Assim que estiveram sentados, Henry disse: — Estávamos pre-preocupados
com você.
Talvez Henry estivesse, mas duvidava muito que Jack se preocupou absolutamente. Entretanto,
gostou de pô-lo em evidência.
— Ah, sim?
O menino assentiu.
— Estivemos sentados junto a seu quarto durante horas e horas. Inclusive pelas noites.
— Estivemos? Refere a você e ao senhor Dodger? Henry voltou a assentir, sorriu e sussurrou: —
É nosso segredo.
Quando o prato apareceu diante de Olívia, ela se sobressaltou um pouco.
— É evidente que me esqueci novamente de explicar o que é um segredo — disse Jack em voz
baixa ao ouvido, provocando um calafrio. Afastou-se dela e voltou para seu lugar à cabeceira da
mesa. — Teria que ter dito que não se encontrava bem antes de desmaiar.
Pelo visto, ele pensava comportar-se como se o brandy, o beijo e seu pequeno encontro no
quarto de banho não tivessem acontecido nunca. Olívia faria o mesmo, porque de repente se sentia
presa de uma mescla de emoções. Queria ou não queria que fosse considerado com ela?
Sinceramente, não sabia.
— Pensava que era pelo luto. Sinto muito todas as moléstias que te tomaste para garantir minha
sobrevivência.
— Foram completamente egoístas, asseguro isso.
— Porque me necessita para que me encarregue da casa?
— Porque necessito que se case. Os homens não costumam mostrar-se muito abertos à ideia de
casar-se com uma mulher que não respira.
Soava muito exagerado, mas pelo menos, tendo em conta que continuava pensando em casá-la,
Olívia se convenceu de que teria perdido interesse em convencê-la de que fosse à sua cama. Debatia-
se entre o alívio e a decepção.
— Tal como já falamos em anteriores ocasiões, senhor Dodger, o que você necessita não é
necessariamente o mesmo que eu desejo.
— Já disse alguma vez que eu adoro os desafios?
Ela o olhou. Os escuros olhos do Jack escondiam um alertador brilho enquanto dizia: — Talvez
deveria me esforçar em conseguir te convencer de que o que eu preciso é o que você deseja.
Olívia sentiu uma pontada de esperança. Possivelmente não tivesse perdido o interesse, depois de
tudo.

Olívia estava deitada em um sofá perto do jardim, enquanto observava como Henry tentava
ensinar ao seu cão a pegar um pau. Embora na realidade era a babá quem o pegava enquanto o cão
ignorava continuamente as ordens do menino e se limitava a brincar de correr pela erva. Era uma
tarde anormalmente cálida e Olívia se sentia estupendamente bem sob o sol.
Jack tinha ido há um momento e, embora normalmente ela empregava esse tempo em fingir que
a casa era dela, já não era tão agradável imaginá-lo fora de suas vidas. Continuaria querendo casá-la?
Ou na realidade se esforçava tanto por parecer despreocupado para proteger-se a si mesmo, porque
em realidade se preocupava muito?
Aquele homem era um enigma e Olívia estava começando a pensar que resolver o quebra-cabeça
de Jack Dodger poderia ser um desafio muito prazenteiro.
Henry se aproximou correndo e se sentou a seu lado, com o cenho franzido e o olhar sério.
— Não quer fazê-lo.
Ela afastou alguns cachos loiros da testa.
— Talvez seja muito jovem, Henry. Na realidade, é só um cachorrinho.
Possivelmente quando crescer um pouco esteja mais disposto a aprender.
— O senhor Dodger poderia ensinar. Ele pode fazer tudo.
— É um homem muito ocupado. Não acredito que tenha tempo para seu Pippin.
Ele assentiu lentamente; parecia estar esforçando-se por aceitar a verdade daquelas palavras.
Então abriu os olhos de par em par, ficou muito contente e começou a saltar.
— Voltou!
Olívia olhou por cima de seu ombro e viu que Jack se aproximava deles. Levava três caixas de
madeira.
— O que traz? — perguntou Henry.
— Henry, é de má educação perguntar isso — o corrigiu Olívia.
O menino tomou uns segundos para parecer arrependido antes que um sorriso voltasse a
iluminar o rosto.
— Pensei que como sua mãe já se recuperou, deveríamos celebrar — disse Jack, agachando-se
junto a ela.
Olívia se esforçou por mitigar a alegria que sentiu ao escutar essas palavras e o muito que gostava
de tê-lo perto. Era muito consciente de sua familiar e provocadora fragrância e teve que agarrar uma
mão com a outra e as apoiar sobre seu colo para evitar alongar o braço e deslizar os dedos por suas
frisadas mechas; apesar de estar tão despenteado como Henry, estava muito longe de parecer
infantil. Não, não havia nada que resultasse nem remotamente infantil em Jack Dodger.
Deixou as caixas sobre seu colo e dedicou um sorriso.
— Importa-se?
— Não, claro que não. — parecia lamentável desfrutar tanto de qualquer atenção que dedicava.
Jack chamou à babá e, quando se aproximou, disse:
— Sei que quer ver isto.
Ida se sentou no chão, sem se importar absolutamente em manchar a roupa.
Olívia não queria nem pensar que talvez Jack tivesse começado a interessar-se por Ida enquanto
ela estava doente. Sabia que acostumava cortejar várias mulheres de uma vez. Por que queria
significar mais para ele do que significava? Seria porque ele estava começando a significar para ela
muito mais que ser o tutor de seu filho?
— Sabem o que é um caleidoscópio? — perguntou Jack enquanto pegava a primeira caixa de
madeira.
— Não, senhor — disse Henry, ao mesmo tempo em que Ida negava com a cabeça.
Jack olhou Olívia e arqueou uma sobrancelha. Ela assentiu.
— Embora na realidade nunca vi nenhum.
— Então, você vai ter uma surpresa. — Animou ao Henry a que ficasse diante dele, dando as
costas. Mas o pequeno era muito curioso e, assim que esteve em seu lugar, virou-se para ver o que
ocorria. Jack sorriu divertido, abriu a caixa e tirou um cilindro. — Até aqui está claro. Agora tem que
olhar por este lado — disse, assinalando o buraquinho, — e ir girando o outro extremo para que o
que está vendo vá mudando.
Guiou a mão de Henry para ensinar a agarrá-lo e girá-lo. O menino riu encantado. Deu um salto.
— Quero ir olhar o Pippin.
Jack, rindo de evidente satisfação ao ver a reação do Henry, deu uma caixa a Ida.
— Para você.
A jovem sorriu com alegria.
— Vá, obrigada senhor. Será melhor que vá ver o que faz o jovem duque. — levantou-se e correu
atrás de Henry, quem, incapaz de conseguir que Pippin estivesse quieto, tinha decidido ir olhar as
flores.
— Eu gosto da babá — disse Olívia em voz baixa. Jack a olhou com os olhos brilhantes.
— Vá! Isso significa que o inferno estará congelado quando chegar ali. E eu não gosto muito do
frio...
— Suponho que está sugerindo que pensou que esse abominável lugar se congelaria antes que eu
estivesse de acordo contigo em algo.
— Exato.
— Preocupa-se acabar ali?
— Preocupar-se com coisas que não se pode mudar é uma perda de tempo.
— Ainda não é tarde, sabe? Se a partir de agora se esforçasse por ser muito, muito bom...
Ele riu e ela se deu conta que estava começando a gostar da aspereza daquele som, que removia
algo em seu interior.
— Ser muito, muito bom me aborreceria mortalmente. — piscou e deu um golpe na caixa. —
Abre a tua.
Tremeram um pouco as mãos de tão nervosa que ficou ao pensar que ia receber um presente.
Agora entendia como se sentiu Henry, e por que tinha sido incapaz de estar-se quieto. A alegre
risada de seu filho ressonava por todo o jardim e Olívia se perguntou que maravilhas teria
encontrado.
— O teu é um pouco diferente — disse Jack, deslizando os dedos pelo comprido e escuro
cilindro de madeira. Guiou o extremo mais comprido para ela. — É feito com pedaços de cristais de
cores, mas a maioria são vermelhos e violeta. Quando o fizer girar, conseguirá formar distintas
imagens.
Quando Olívia o levantou para olhar através do buraquinho, passou um braço por cima do
ombro e pousou uma mão sobre a que ela tinha na parte giratória, como se necessitasse ajuda para
fazer algo tão simples. Uma semana atrás, talvez o tivesse afastado. Agora acolhia sua cercania como
se fosse uma manta em uma fria noite de inverno.
A bochecha de Jack quase roçava a sua; parecia acreditar que se aproximasse o suficiente poderia
chegar a ver o que estava vendo.
— Você gosta? — perguntou em voz baixa.
Olívia não estava certa que se estava referindo-se ao caleidoscópio ou à forma em que
virtualmente a estava abraçando. Em ambos os casos, a resposta era a mesma.
— Muito.
Quando voltou a cabeça, deu-se conta que seus lábios estavam a escassos centímetros dos de
Jack. Tendo em conta a loucura que os havia possuído a última vez que se beijaram, ela pensou que
era mais prudente não cortar essa distância.
— Quer dar uma olhada?
O olhar de Jack parou em seus lábios antes de inclinar-se um pouco para frente em direção ao
caleidoscópio. Continuava tendo a mão sobre a sua e o aproximou do olho.
— Estas cores recordam a você — murmurou ele. — Fogosos, apaixonados.... Cada giro revela
uma nova faceta.
— Não acredito que eu seja tão interessante. Ele virou para trás.
— Então não se dá conta de suas virtudes. Como se encontra? Está o suficientemente bem para
dar um passeio pelo jardim?
— Contigo?
Jack a observou. Não estava certo de que ela acolhesse sua companhia com agrado, mas
necessitava resposta a algumas perguntas e o jardim parecia o melhor lugar para isso. Esperava que
seus presentes a tivessem feito baixar a guarda.
— Sim, prometo que farei uso do melhor dos comportamentos.
E assim seria. Ele se sentiu muito mal quando Olívia ficou doente. A princípio se perguntou se o
que tinha feito ele na noite anterior a que desmaiasse, tentá-la com brandy e logo dar um beijo, a
lembrança do qual ainda tinha o poder de fazer reagir a seu corpo, teriam tido alguma incidência
sobre sua saúde. Não podia perguntar ao doutor Graves sem explicar o que tinha feito. Não estava
envergonhado, mas não era um homem que acostumasse a contar a ninguém suas intimidades.
— Como deferência a sua recente enfermidade, prometo que o melhor de meu comportamento
será bom. Estava pensando que não te viria mal me ter perto se por acaso volte a desmaiar.
— Não acredito que vá fazê-lo. Entretanto, estarei encantada de passear em sua companhia.
Palavras que Jack jamais pensou que ouviria dela. Não estava seguro do que pensava sobre sua
nova camaradagem. Só sabia que as coisas tinham mudado entre os dois. Embora não sabia se, se
devia ao beijo, à enfermidade ou, simplesmente, à aceitação de que agora um formava parte da vida
do outro. Continuava querendo que Olívia se casasse, mas também continuava desejando quase de
forma incontrolável tê-la em sua cama.
Enquanto ela guardava o caleidoscópio, ele ficou em pé. Quando esteve preparada, Jack a ajudou
a levantar-se e, assim que esteve de pé, soltou a mão. Abraçá-la não o ajudaria a conseguir o que
necessitava nesse momento.
— Já viu todo seu jardim? — perguntou Olívia.
Era a primeira vez que se referia a alguma parte da casa como se realmente pertencesse ao Jack.
Por fim parecia ter compreendido que tudo era dele e se perguntou se ela teria aceitado as condições
do testamento.
— Em realidade, sim — respondeu. — Eu gosto muito dos jardins.
— Eu teria afirmado que os consideraria frívolos.
Acompanhou-a para o estreito e serpenteante caminho empedrado que os afastaria do lugar onde
Ida e Henry continuavam explorando seus novos brinquedos. Ali havia abundantes sebes e flores
que proporcionavam certa sensação de privacidade.
— Eu cresci nas ruas, que estão sujas e cheias de gente, ali não há nada que se pareça
absolutamente a prados verdes, nem se veem as cores vibrantes nem se cheiram as agradáveis
fragrâncias de um jardim. Assim sim, eu gosto muito dos jardins. Além disso, minha mãe vendia
flores, assim estar perto delas me faz lembrar isso.
— Que estranho, jamais pensei que tivesse mãe.
— Por muito surpreendente que resulte, até o filho de Satanás deve ter uma mãe.
Ela voltou a cabeça para olhá-lo.
— Às vezes tem tão má opinião de si mesmo que me surpreende. Ele sorriu.
— Por que acha que eu possa considerar uma desvantagem estar aparentado com o demônio?
Olívia revirou os olhos.
— Já imagino que não. Que Deus benza a sua mãe por te suportar.
— Na verdade não o fez. Não durante muito tempo, ao menos. Vendeu-me quando eu tinha
cinco anos.
A compaixão e o horror apareceram nos olhos de Olívia e ele se amaldiçoou por ter revelado essa
informação tão pessoal. Não sabia no que estava pensando para ter confessado aquilo. Só tinha
contado ao Luke. E, é obvio, Feagan também sabia. Feagan sabia tudo.
— Não me olhe assim, Olívia. Isso foi faz muito tempo.
— Por que faria uma coisa assim?
— Não sei. Mas sei que fiz algo que a desgostou.
— Não imagino que pudesse fazer algo que provocasse que ela reagisse dessa forma tão cruel.
— Bom, sim, suponho que há muitas coisas que você não pode imaginar. O mundo do que eu
provenho é muito diferente deste.
— A quem te vendeu?
— Isso já não importa.
— Estou certa que não entendeu bem suas intenções.
— É muito difícil não entender algo quando um saquinho com as moedas troca de mãos frente a
seus olhos. — Jack estava começando a ficar na defensiva. — Troquemos de tema, sim?
— Sim, claro, não pretendia remover seu doloroso passado.
Jack se amaldiçoou de novo interiormente por ter contado tanto. No que estava pensando para
fazer algo tão estúpido?
— Me disseram que está construindo um hospital para o doutor Graves. É muito mais caridoso
do que imaginava — disse ela.
— Não sou. Perdi uma aposta. Olívia abriu os olhos como pratos.
— Apostou que construiria um hospital? Ele deu de ombros.
— E o que ia construir para você?
— Um botequim. Ela riu.
— É obvio. Qual era a aposta?
— Luke, lorde Claybourne, sempre tinha amado Frannie. Eu sabia que queria casar-se com ela.
Uma noite, o doutor Graves mencionou que apostava que Luke se casaria com lady Catherine
Mabry. E eu, que sempre estou disposto a ganhar um pouco de dinheiro fácil, disse que aceitava a
aposta. Luke se casou com Catherine três semanas depois. Agora estou obrigado a construir esse
hospital.
— Como sabia?
Jack voltou a encolher de ombros.
— Todos os meninos que nós criamos sob a tutela de Feagan temos muita habilidade para a
dedução. Neste caso, Graves foi mais hábil que eu.
— Desculpe, quem é Feagan?
— Era o mentor que dirigia nossa turma de meninos ladrões.
— Claybourne era um dessas crianças? — perguntou Olívia.
Ele assentiu.
— E também Graves, Swindler e Frannie.
— A noite que nos conhecemos, disse que você respeitava a poucas pessoas...
— Eles são esses poucos. Apesar de seus inícios, conseguiram abrir caminho.
— Igual a você.
— Não fui mau.
Estavam passeando por uma zona do jardim onde as floridas roseiras cobriam a cerca. A grande
abundância de rosas desprendia uma fragrância tão entristecedora que Jack já não podia desfrutar do
perfume de Olívia. Também estavam fora do alcance dos ouvidos de qualquer pessoa, estivesse esta
dentro ou fora da casa.
Enquanto caminhavam, ele olhava a Olívia com a extremidade do olho e esperou pacientemente
que ela deixasse de pensar nele. Viu-a deixar de franzir o cenho. Seus olhos adquiriram um suave
brilho e em seus lábios se desenhou um fraco sorriso enquanto contemplava as maravilhas do
jardim.
— E me diga... por que matou seu marido?
Olívia parou e o olhou fixamente. Estava convencida que não o tinha ouvido bem.
Ele esboçou um indulgente sorriso.
— Disse quando estava com febre.
De repente começou a sentir náuseas.
— Quem o ouviu?
— Só eu.
O jardim começou a girar a seu redor. Não estava caminhando, mas Olívia deu um tropeção. Jack
a agarrou pelo cotovelo.
— Vem. Sente-se aqui — disse, acompanhando-a para o banco de ferro forjado que ela mesma
tinha mandado pôr ali. Normalmente, proporcionava uma grande paz e alegria sentar-se nele.
Olívia se deixou cair sobre o banco. Era pequeno e, por estranho que parecesse, queria que Jack
se sentasse ao seu lado e a abraçasse. Em vez disso se agachou frente a ela da mesma forma em que
o tinha feito o inspetor Swindler; parecia que aquela postura tinha o poder de provocar confissões.
— Estava delirando quando o disse? — perguntou ele.
Jack estava oferecendo uma singela forma de escapar daquele apuro e, se o peso de todo o
assunto não a seguisse atendendo, possivelmente a teria aproveitado. Mas não o havia dito a
ninguém e era muito difícil, tão difícil, viver com isso.... Piscou para conter as lágrimas que
queimavam os olhos e negou com a cabeça.
— Conte-me. - insistiu ele com delicadeza.
— Acreditará que sou uma criminosa.
Jack meteu a mão no bolso, tirou um lenço e o estendeu.
— Sou muitas coisas, Livy, mas não sou nenhum hipócrita. Fiz coisas muito piores das que terá
feito você.
Ela agarrou o lenço, secou as lágrimas e sorveu pelo nariz.
— Chamou-me assim quando estava doente.
— Pareceu-me um bom momento para fazê-lo. Ela tragou com força e voltou a sorver pelo
nariz.
— Ninguém me chamou de outra forma que não seja Olívia, pelo menos quando me chamaram
por meu nome. Chamaram-me sua excelência, claro, e duquesa, mas nunca Livy. Eu gosto muito...
Estou divagando.
O olhar de Jack era muito penetrante e ela teve a sensação de que ele podia ver o interior de seu
coração.
— Se por acaso for mais fácil, me deixe te dizer que não acreditei nem por um momento que o
assassinasse, em qualquer caso, não com premeditação.
— Mas está morto por minha culpa.
— Como pode ser isso?
Olívia apertou o lenço e logo o alisou.
— Íamos a um jantar. Henry parecia estar especialmente inquieto, assim eu me tinha tomado um
pouco mais de tempo para me arrumar, para ver se nesse momento se tranquilizava, por isso
estávamos atrasando. Lovingdon disse que era difícil de acreditar que eu perdesse tanto tempo,
como obcecada que estava com os relógios. Ele não acostumava dizer coisas desagradáveis e suas
palavras não me sentaram bem.
Doía inclusive recordá-las. Os relógios sempre tinham sido para ele. Sorria quando dava de
presente algum e dizia: — Agora tenho mais tempo.
Mas não o tinha. Não tinha tido o suficiente.
— Agora entendo perfeitamente que o assassinasse — disse Jack. Ela franziu o cenho.
— Não ria de minha dor. Jack trocou de postura.
— É que me incomoda. Eu não gosto de ver-te sofrer.
— Quem ia pensar que isso te importaria? Acredito que há uma faceta muito desconhecida de ti
que só compartilha com poucos.
— Não a compartilho com ninguém.
Jack entrelaçou as mãos com força. Olívia viu a tensão da pele de seus nódulos e se perguntou se
estaria se esforçando por não tocá-la. Pelo visto, quando a situação o requeria, os dois podiam ser
extremamente fortes.
Naquele momento não havia nada que ela desejasse mais que deixar-se abraçar pelo Jack, mas
este se manteve distante.
— Assim chegavam tarde... — insistiu ele. Olívia assentiu.
— Descemos a escada a toda pressa e nesse momento me pareceu ouvir Henry chorar. Dei meia
volta para ir ver o que acontecia e Lovingdon me agarrou pelo braço. Disse-me que não o fizesse.
Que o menino estava bem. Mas eu continuava zangada pelo estúpido comentário que tinha feito
sobre os relógios, assim puxei o braço para que me soltasse, e quando o fiz...
OH, Deus, podia vê-lo com tanta claridade... Cada segundo pareceu durar eternamente. A
surpresa no rosto de seu marido. Seus braços agitando-se. Seu pé medindo o degrau que esperava
encontrar ali, procurando o equilíbrio... sem encontrá-lo.
— Caiu de costas. Eu tentei agarrá-lo, mas já estava caindo e ouvi aquele terrível som, como se
rompesse um ovo gigante... E então ficou ali, imóvel.
De repente, Jack parecia impreciso e Olívia se deu conta que o estava olhando através de um véu
de lágrimas.
— Assim, como vê, foi minha culpa.
Ele conseguiu arrancar o lenço das mãos e, com muita ternura, com muita mais ternura da que ela
jamais acreditou que pudesse possuir, secou-as lágrimas.
— Não foi sua culpa — disse Jack muito devagar. — Foi um acidente.
— Foi tão absurdo. Ele nem sequer queria ir a esse jantar, mas era com a rainha. O príncipe e ela
celebravam o êxito da Grande Exposição. Você provavelmente não saiba, mas ninguém rechaça um
convite da rainha.
Através da corrente de lágrimas Olívia viu que ele esboçava meio-sorriso.
— Muito temo que nunca precisarei saber nada a respeito das normas de etiqueta relativas à
realeza.
Ela soltou uma pequena gargalhada e soluçou.
— Provavelmente não. — soluçou outra vez. — Quer escutar algo absurdo?
— Não me importaria rir um pouco.
Como Jack tinha deixado de secar as lágrimas, ela agarrou o lenço e secou as que ficavam.
— Agora parece uma tolice, mas quando leu o testamento, pensei que você foi meu castigo.
Pensei que talvez Lovingdon sabia que eu acabaria sendo a causa de sua morte e por isso tinha
redigido aquele ridículo testamento para me castigar.
— Entendo que se sentisse assim.
— É que foi algo tão inesperado.... Não quero que pareça que não agradeço o que me legou, mas
eu sempre tinha tido a esperança de que me deixaria a casa. Já sei que é muito grande para uma
viúva, mas quando vim viver aqui era tão sombria... Ele nunca deixava que entrasse a luz. Só tinha
uma quarta parte dos serventes que necessitava. Todo o resto da casa estava desatendido. Eu mudei
tudo. Para ser sincera, tomei como uma traição que deixasse ela a você e, além disso, nomeasse a
você, um conhecido libertino, tutor de nosso precioso filho. Simplesmente, foi muito. Temo que
paguei contigo minha decepção e minhas frustrações. Sinto muito.
— Desculpa-se muito, Livy. Tinha todo o direito do mundo em estar zangada. Minha reação
tampouco foi precisamente boa.
— É que não sei no que estava pensando Lovingdon. Suponho que nunca saberemos. —
Suspirou. — Sinto falta dele, mas não tanto como provavelmente deveria. Eu estava muito sozinha.
Às vezes desejaria não ter sido tão boa filha. Desejaria ter me rebelado e ter fugido com o homem
que eu tivesse escolhido. Com o jardineiro talvez.
— Estava apaixonada por um jardineiro?
Ela riu porque, de repente, ele parecia estar escandalizado. Jamais teria imaginado Jack
escandalizando-se ante nada.
— Só estava pondo um exemplo ridículo. Na realidade, nunca houve ninguém especial. —
Entrelaçou as mãos e as olhou. — Por certo, tinha razão: Lovingdon era muito minucioso em tudo
o que fazia. Mas não me arrependo de ter me casado com ele. Quando olho o Henry, sinto-me
agradecida. Só desejaria não o ter matado.
— Não o fez. O que o matou foi sua própria estupidez. Ela negou com a cabeça.
— Sempre me sentirei culpada. Se tivesse o amado mais ou não tivesse mimado tanto o Henry....
Já sei que o mimo. Mas é que tenho que derramar meu amor em algum lugar.
— Se te faz sentir um pouco melhor — disse ele em voz baixa, — suspeito que, nos apoiando no
que agora sabemos sobre a Helen, com certeza que sim ouviu chorar ao Henry.
Se pensava que isso ia fazê-la sentir melhor...
— Está tentando me absolver de minha culpa, e agradeço sinceramente, mas por desgraça, isso
só serve para demonstrar que além de uma terrível esposa, também sou uma mãe espantosa.
— Não pode se culpar por não saber de Helen. As pessoas que gostam de machucar as crianças
têm muita habilidade para esconder.
— A pessoa que te machucou escondia?
— Sim, acredito que sim.
Olívia não tentou pressioná-lo para que contasse mais detalhes, embora morria de vontade de
saber absolutamente tudo sobre ele. Secou as lágrimas pela última vez antes de devolver o lenço.
— Vais contar a seu amigo da Scotland Yard?
— Você não o matou, Livy. Se quiser, podemos pedir ao Swindler que nos dê sua opinião, mas te
dirá exatamente o mesmo que eu.
Olívia se levantou muito devagar.
— Dizem que confessar é bom para a alma. A verdade é que me sinto um pouco melhor.
Obrigada..., Jack.
— Foi um prazer, Livy.
Ele não fez nenhum gesto de voltar para a casa. Seu olhar deslizou até os lábios dela, que se
perguntou se estaria pensando em outros prazeres.
— Quando entrou no quarto de banho... — começou a dizer ele.
— Não sabia que estava dentro — o interrompeu ela, ansiosa por detê-lo antes que falasse muito.
— Pensei que talvez vinha me pagar o que me deve.
— Não acredito que te deva nada. — Olívia tinha ficado sem fôlego e começava a ter calor de
novo. — Você aceitou meu desafio com todas as limitações.
— Então, voltamos a estar em paz?
— Parece ser que assim é.
Ele dedicou um sedutor sorriso.
— É estranho que não o pareça.
Antes que ela pudesse rebater sua afirmação, Jack estendeu o braço.
Olívia se deu conta que estava oferecendo uma trégua.
Enquanto voltavam para a casa, caiu na conta de que quanto mais tempo passava em sua
companhia, mais perigoso era para seu coração.
Capítulo Quinze

Ele era um homem paciente por natureza. Também estava acostumado a ser um homem
precavido, mas ultimamente estava começando a se aborrecer.
Estar no clube de jogo sabendo que não seria bem-vindo se tirasse o chapéu seu propósito,
resultava bastante.... Emocionante.
Os jogos de dados não o interessavam. Tampouco tinha nenhum interesse em jogar cartas. O
quarto em que estavam as mulheres parecia aborrecido. E tampouco tinha obtido nunca nenhum
prazer no álcool.
Mas as crianças.... As crianças eram outra coisa.
Se desaparecia um menino da rua ninguém se dava conta. Mas ali alguém poderia notá-lo.
Especialmente se aquele maldito inspetor Swindler andasse farejando pelo local.
A chave estava em tomar o tempo necessário até determinar qual era o menino adequado e,
então, passar à ação.

Olívia sabia que devia levantar-se e começar o dia. Mas em vez disso, permitiu-se o luxo de ficar
onde estava, escutando como se banhava Jack. Durante os quatro dias transcorridos desde que
superou sua enfermidade, deu-se conta que ele a observava com atenção; parecia estar observando se
estava preparada para confrontar algo, e isso a incomodava um pouco. Talvez tivesse contado sua
confissão ao Swindler e acabasse na Scotland Yard. Cada manhã, Jack perguntava como se
encontrava, queria saber o forte que se sentia e a submetia a uma inquisição que ela imaginava muito
similar à que teria sofrido Graves. De repente, sentiu compaixão pelo médico. Estava tão ansiosa
por saber por que Jack estava tão preocupado por sua saúde, que no dia anterior pela manhã havia
dito: — Encontro-me tão bem como antes de me pôr doente. Ele se limitou a responder: — Me
alegro de ouvi-lo.
Olívia se perguntou se a partir de então voltaria a tentar que fosse à sua cama. Jack tinha
demonstrado um comportamento particularmente exemplar desde seu passeio pelo jardim. Jantavam
juntos todas as noites, sua relação tinha tomado um definitivo giro para a cortesia, e cada vez custava
mais recordar por que se havia oposto em um princípio a que fosse o tutor de seu filho.
Quando se fazia o silêncio no quarto de banho, Olívia ficava um momento mais onde estava,
tentando não o imaginar vestindo seu atraente corpo. É obvio, quanto mais tentava não o imaginar,
mais imaginava.
Assustou-se ao ouvir uma repentina chamada na porta. Mal tinha tido tempo de sentar-se na
cama quando se abriu a porta do banheiro e Jack entrou em seu quarto. Olívia sufocou um grito e
aproximou os lençóis ao peito.
— O que está fazendo aqui?
— Estive postergando isto até que estivesse recuperada e pudesse vir conosco quando chegasse o
dia apropriado. Henry quer ir a Grande Exposição.
— Já sei que quer ir, mas...
— Vamos hoje. Nós gostaríamos que viesse conosco. Hoje as entradas valem só um xelim; é um
dia dedicado às classes baixas. Deste modo, os membros das classes altas, que são uns esnobes, e
neste caso os desculpam porque em realidade nos vem muito bem, não têm que respirar o mesmo ar
que os pobres. Os que visitarão hoje a exposição não são o tipo de gente com o que costuma se
relacionar, portanto, é muito improvável que a reconheçam.
— Lançou um pacote sobre a cama. — Para que esteja mais tranquila, trouxe-esta roupa. Com ela
não chamará a atenção. Vamos em meia hora.
Jack fechou a porta antes que pudesse objetar nada. Olívia agarrou o pacote, desfez o nó e tirou
um montão de roupa usada: uma jaqueta, uma camisa, calças, sapatos e uma boina. Estava
insinuando que se vestisse como um menino?
Agarrou as calças, desceu da cama e se dirigiu para a porta para falar com o Jack. Aquilo era
completamente inapropriado...
Mas não tão inapropriado como o beijar.
Mas acaso um pouco de mau comportamento desculpava um pouco mais? Parou e observou a
roupa com mais cuidado. Apesar de estar um pouco usada, continuava cheirando a limpo. Jack, que
se banhava duas vezes ao dia e, conforme tinha contado sua lavadeira, queria que lavassem sua roupa
muito mais frequentemente que qualquer homem, tinha proporcionado roupa limpa. Aproximou as
calças à cintura e deixou pendurar as pernas das calças por diante de seu corpo. Eram o
suficientemente longo e também pareciam ser o bastante largo.
Não queria pensar no muito que devia tê-la observado para ter podido escolher com tanta
precisão a roupa que ficaria bem. Não sabia se, se inquietava ou sentia-se adulada, se agradecer ou
xingá-lo. Não tinha nenhuma dúvida que ele esperava, mas bem o último. Com certeza estava
aguardando do outro lado da porta com um montão de argumentos preparados para responder.
Deu um indeciso passo atrás enquanto sopesava suas opções. Para falar a verdade, tinha tanta
vontade de ver a Grande Exposição como Henry. Mas isso de vestir-se como um menino...
Escapou a risada e tampou a boca com a mão. A mera ideia a fazia sentir-se despreocupada,
jovem e intrépida. O que podia ter de mau? Quem ia se inteirar?
Considerou as possibilidades. O problema seria o cabelo. Conseguiria ocultá-lo se o trançasse
bem, o prendia com firmeza à cabeça e colocava sob a boina.
— Não, não posso — sussurrou. — Não posso.
— Por que não? — perguntou uma tênue voz parecida com a sua. Procedia de um rincão remoto
de sua mente. Talvez estivesse perdendo a cabeça. Falar sozinha era preocupante, mas responder a
suas próprias perguntas era uma autêntica loucura.
Ouviu um golpe na porta do quarto de banho.
— Está preparada? — perguntou uma voz grave.
— Não.
— Está apresentável?
— Não.
— Pois resolva, porque, vou entrar.
— Não.
O descarado abriu a porta, olhou a seu redor e a observou atentamente.
— Venha, Livy, sabe que quer fazê-lo.
Ela, que se sentia estranhamente vulnerável quando ele estava em seu quarto, apoiou um de seus
pés descalços sobre o outro.
— A quem prejudicará se fizer? — perguntou Jack. Cruzou a soleira da porta, apoiou-se na
parede e cruzou os braços em sinal de desafio.
Não vestia seu habitual traje feito a medida e o comprido casaco de pano que usava não eram de
sua largura. Eram um pouco grandes e o fazia parecer um homem qualquer. Ela ainda não se deu
conta do pouco comum que parecia Jack. Pensou que se não tivesse sabido nada dele e o tivesse
conhecido vestindo seus habituais trajes, poderia tê-lo confundido tranquilamente com um
aristocrata. Desprendia certo ar de homem com título e inclusive aquela roupa monótona e apagada
não acabava de apagá-lo. Resultava um pouco estranho não ver nele o clássico toque de cor.
— A quem prejudicará se não fizer? — perguntou a seguir, como se não esperasse que ela
respondesse a sua primeira pergunta.
Olívia olhou a roupa estendida sobre sua cama.
— Henry recordará durante muitos anos a Grande Exposição. Não quer que recorde que você
estava ali com ele? — perguntou Jack.
— Isso não é justo. Além disso, o que acontece se alguém me reconhece?
— Ninguém olha o rosto das pessoas pobres. Com essa roupa parecerá um indigente.
— E então, de onde se supõe que terei tirado dinheiro para comprar a entrada?
Ele suspirou.
— Ninguém vai perguntar isso. Venha, Livy, escolhe fazer o indevido por uma vez em sua vida.
Quase recordou que o tinha beijado, e isso era muito indevido, mas tendo em conta que ele não
tinha feito nenhuma só referência a seu encontro do passeio pelo jardim, suspeitava que, ou queria
esquecê-lo, ou tinha decidido que não significava nada absolutamente. Depois de chegar a essa
conclusão, tentou não se sentir decepcionada.
Jack a estava tentando; conseguia que parecesse muito fácil abandonar seu pedestal de moral
irrepreensível. Mas em realidade o que estava pedindo que fizesse não era tão terrível. Seria agradável
poder sair de casa e fazer algo com Henry...
— Suponho que poderia fazer coisas piores.
— Tendo em conta que há um homem em seu quarto e que está de camisola — piscou um olho,
— o que estou sugerindo tampouco é tão atrevido.
Se houvesse dito isso antes de beijá-la, Olívia teria pensado que estava tentando ofendê-la, mas
agora acreditava que só o que pretendia era tomar o cabelo e fazê-la rir para que se desse conta do
absurdo era seu dilema.
— Se for ao inferno por culpa disto...
— Eu também estarei ali. Prometo-te que dançarei contigo — assegurou.
Ela percebeu algo em seu tom de voz e em seu olhar que a fez pensar que dessa vez não estava
tirando o sarro e a assaltaram umas vontades absurdas de pôr-se a chorar. Possivelmente ainda não
tivesse superado de tudo a enfermidade, ou talvez se devesse, simplesmente, a que reconhecia que
tinha muito medo de estar sozinha.
Se pensasse muito no que Jack estava pedindo, poderia acabar acovardando-se. Levantou o
queixo e fez um gesto com a mão.
— Vá. Tenho que me vestir.
Ele deu um rápido sorriso antes de desaparecer atrás da porta e fechá-la. OH, Olívia desejava que
não tivesse feito aquilo, que não tivesse aquele brilho de prazer. Sua imagem tinha provocado uma
imprevista rajada de emoção que se apropriou de seu coração. Era maravilhoso sentir que podia
fazer feliz a um homem; saber que ele queria estar com ela.
Felicidade. Estava experimentando uma felicidade muito superior a que tinha sentido em
qualquer outro instante de sua vida.
Quando agarrou o pomo da porta para sair do quarto, era incapaz de recordar nenhum outro
momento em que se houvesse sentido tão emocionada.

Aquela roupa tinha sido um engano, um terrível engano. Jack era incapaz de deixar de olhar a
preciosa silhueta do traseiro de Olívia enquanto faziam fila para entrar em Palácio de Cristal. Devia
ter pedido a sua donzela que enfaixasse o peito, porque a via tão plaina como uma tabela. Ou talvez
só fosse pela largura da jaqueta. Aquela curta jaqueta que permitia ver perfeitamente como a calça
marcava o traseiro.
Pareciam três amigos em busca de aventuras. Bom, ela e Henry tinham aspecto de ser um par de
crianças, Jack parecia mais com seu pai. Também se sentia como seu pai: velho e cínico. Antes,
nunca tinha importado a visão pessimista que tinha da vida, mas quando se deu conta da curiosidade
que embargava a Olívia e ao Henry inclusive antes de entrar no edifício, sentiu-se muito velho.
Jack jamais tinha visto tanta alegria nos olhos de Olívia. Não parava de agachar-se e falar com
Henry e de assinalar coisas a um lado e a outro. Embora sabia que não devia, Jack desejava que ela
compartilhasse tudo aquilo com ele, que tocasse o braço, que ficasse nas pontas dos pés e
sussurrasse ao ouvido tudo isso que parecia emocioná-la tanto.
Continuava estando deliciosa inclusive com aquela roupa. Continuava parecendo uma pessoa de
classe alta. Poderia se sujar as bochechas e passar graxa na ponta de seu precioso narizinho e seguiria
sem parecer que pertencesse à pocilga da que tinha saído Jack. Se alguém desse um empurrão, como
acabava de ocorrer a ele, ela se desculparia ou enrugaria o nariz da maneira que fazia quando algo a
incomodava. Olívia não...
Maldição!
Meteu a mão no bolso do casaco e olhou rapidamente ao seu redor.
Não viu nenhum ladrão.
— Maldito seja!
— Ouça amigo, cuida sua linguagem, que aqui há uma dama.
Jack se virou e olhou o homem que tinha falado. Era bastante velho e sua mulher era muito
pouco atraente, mas parecia que ele se preocupasse com ela, que fossem um casal de verdade.
— O que ocorre? — disse alguém com voz rouca.
Ele voltou a cabeça muito devagar em direção a Olívia.
— O que ocorre? — repetiu ela, com uma voz que acreditava que se parecia com a de um
menino, quando em realidade não se parecia em nada.
Se não fosse porque estavam tentando que ninguém se desse conta do engano, Jack não teria
deixado passar aquela oportunidade para tomar o cabelo.
— Roubaram-me. — Era terrível que fosse precisamente ele quem tivesse que reconhecer algo
assim.
— O que levava? — perguntou, sem dar-se conta que a preocupação havia devolvido a
normalidade a sua voz. Em consequência, o homem e a mulher que esperavam atrás deles arquearam
as sobrancelhas.
— Um medalhão que continha um retrato de minha mãe.
— Por que levava algo de tanto valor...?
— Sempre o levo comigo — respondeu ele com secura, deixando muito claro que não queria que
ninguém o recordasse quão tolo tinha sido. — Tinham tentado roubar isso uma meia dúzia de vezes,
mas sempre fui o bastante rápido para pegar o safado. — deu vontade de voltar a amaldiçoar, mas
não queria acabar brigando com o homem que tinha atrás. Talvez fosse mais velho, mas também era
muito mais corpulento e tinha uns enormes punhos que sabia que podiam fazer bastante dano. Se
estivesse sozinho, poderia escapulir facilmente, mas o preocupava que Olívia ou o menino levassem
um golpe que devesse receber ele.
— Então o roubou alguém tão hábil como você — afirmou ela em lugar de perguntar.
Jack esteve a ponto de dizer a verdade, de contar que a habilidade do menino pouco tinha que ver
com aquilo, porque o certo era que ele se distraiu olhando-a. Quem fosse que estivesse à espreita,
teria se dado conta que não estava prestando atenção e o teria identificado como um alvo fácil. Mas
decidiu que aquela confissão incomodaria a ambos.
— Para ele não tem nenhum valor. Terá que empenhá-lo. Já o encontrarei.
Olívia se aproximou de Henry, que estava entre eles dois como uma inocente barreira, e tocou o
braço de Jack. Apesar do casaco e da camisa, sentiu o calor da palma de sua mão como se nada
separasse seu corpo da pele de Olívia. Se não soubesse qual era o motivo daquela temperatura, Jack
poderia pensar que ela ainda tinha febre. Ou talvez fosse ele quem a tivesse. Queria sair correndo;
queria aproximar-se mais de Olívia.
— Sinto — disse ela com tranquilizador sussurro que penetrou o compacto muro de Jack.
— Não é sua culpa; fui um tolo. — Tinha a boca seca e a voz entrecortada. Que diabos teria feito
pensar que era uma boa ideia que saíssem juntos? Acaso tinha perdido completamente a cabeça?
Naquele momento, desejava-a mais do que a tinha desejado a noite em que a beijou. Sua inocente
falta de consciência sobre o desejo que provocava o atormentava.
— Tem outro retrato de sua mãe? — perguntou ela.
— Não. Não foi nada. Não é importante. — Embora na realidade Olívia não estava movendo a
mão, ele sentiu como se o estivesse fazendo, como se estivesse acariciando os ombros e o peito. ele
podia imaginar vividamente; desejava-o com uma ferocidade que podia levá-lo a perdição.
— Por que não abrem as portas? — perguntou zangado.
Olívia retirou a mão ao olhar em direção ao edifício de cristal. Jack queria agarrá-la e segurá-la
com força e não a soltar nunca. Tinha perdido a cabeça. Já não tinha nenhuma dúvida.
— Parece que já o têm feito. Vejo um pouco de movimento ali diante.
Olívia o olhou e sustentou o olhar; por um terrível momento, pensou que ela se estava dando
conta da confusão que provocava. De repente, Jack desejava muito mais do que podia ter. Queria
levá-la ali no dia em que ia a elite da sociedade. Queria colocar sua roupa feita a medida e poder vê-la
vestindo uma cor que não fosse o negro. Queria que apoiasse a mão no braço e saber que seria a
inveja de todos, porque ela ia junto a ele.
— Venha! Venha! — gritou Henry.
Jack se deu conta que a fila começou a mover e que ele não se deu nem conta.
— Será melhor que comecemos a prestar atenção.
Olívia sorriu com doçura, como se compreendesse sua tortura. Logo alongou o braço e agarrou
Henry pela mão.
— Não se separe de mim.
Jack não sabia se estava falando com seu filho ou estava dizendo a ele, se teria se dado conta que
de repente queria sair correndo. Entretanto, não se separou dela. Ficou ali absolutamente
convencido que não encontraria nada naquele edifício feito de cristal e metal que o fascinasse tanto
como a mulher disfarçada de menino que caminhava a seu lado.
De repente, advertiu as olhadas e a curiosidade que estavam despertando, devido à atitude de
Olívia, que falava e se comportava como uma mãe, não como um menino. Então, ela, que também
pareceu dar-se conta do interesse que tinha suscitado, olhou ao seu redor.
Logo olhou para Jack e ele viu o pânico em seu rosto ao dar-se conta que as pessoas estavam
começando a prestar atenção nela e a advertir que não era nenhum menino. Antes que pudesse
tranquiliza-la assegurando que não tinha nenhuma importância, Olívia disse: — Maldito seja! — com
o tom de voz grave que parecia que adotaria um jovem.
— Maldito seja! — repetiu Henry.
Olívia não teria horrorizado tanto se Jack a tivesse pego entre seus braços e a tivesse beijado ali
mesmo. Então começou a rir e teve que tampar boca.
— Olhe essa língua! — disse o homem que tinham atrás.
A mulher que o acompanhava abriu os olhos de par em par.
— Eu não acredito que seja um menino, Jonah. O que está acontecendo aqui?
Jack agarrou Olívia pela mão.
— Vamos.
Ela agarrou a mão do Henry e se afastaram da fila.
— Vamos perder nosso lugar — disse Olívia; embora não parecia estar zangada.
Jack seguia notando os restos da risada em sua voz.
— Conseguiremos um melhor — disse ele, levando-os para frente.
— Não estará pensando em roubar o lugar de alguém?
— Já te disse que faz muito tempo que não faço isso. — Olhou-a e sorriu. — O de roubar.
Jack não queria ir até o princípio da fila porque seria muito evidente. Mas queria que estivessem
mais perto do que estavam. Então viu um homem, uma mulher e uma menina. Jack se aproximou
deles puxando Olívia e Henry.
— Quantos são? — perguntou Jack ao homem.
— E a você o que importa?
— Pagar-te-ei uma boa quantia se levar sua família ao final da fila — disse.
— Está louco. Estamos aqui das cinco da manhã...
O homem ficou olhando o dinheiro que Jack tinha deslizado na mão sem que se desse conta.
Logo, levou a vista e cravou os olhos nele.
— Obrigado, chefe. — dirigiu-se à mulher e à menina. — Vamos.
— Eu não...
— Sai da fila agora mesmo — disse, empurrando à mulher, antes de mostrar o que tinha dado
Jack.
Ela abriu os olhos como pratos, apoiou a mão no braço de seu marido e se foram muito
contentes.
— Pensava que íamos tentar passarmos despercebidos — disse Olívia, enquanto Jack os ajudava
a ficar na fila.
— Perdemos essa oportunidade quando você tentou não chamar a atenção.
— O que queria que fizesse?
— Exatamente o que tem feito. Teria que ter feito isto muito antes.
— Quase estamos lá — gritou Henry, nervoso, enquanto puxava a mão de Jack e saltava.
Sim, quase estavam. E Jack já estava desejando que aquele dia não acabasse nunca.
Olívia nunca tinha prestado muita atenção às massas. Não formavam parte de seu mundo. E
agora que estava se mesclando com toda aquela gente, dava-se conta que não pareciam tão diferentes
dela. Jack passava completamente despercebido, mas sabia que era porque estava se esforçando por
fazê-lo. Sem conhecê-lo, tinha pensado que procedia da escória da sociedade, mas estava claro que
aquele não era seu lugar. Olívia acreditava que seu lugar era exatamente o que ocupava.
Não era apropriado que, sendo um menino, fixasse-se em outro homem, mas naquele momento
parecia o mais natural. Sabia quando Jack ia sorrir antes que o fizesse, porque primeiro via aparecer a
picardia em seus olhos; logo, essa picardia se convertia em um sorriso. Não ria muito
frequentemente, mas quando o fazia a deixava sem fôlego. Quando não estava muito seguro de si
mesmo ou estava pensando algo que o preocupava, esfregava o contorno da mandíbula. Quando
falava, sempre parecia muito seguro de si mesmo, mas Olívia estava começando a suspeitar que
havia momentos nos que não estava e que esse gesto o ajudava a recuperar a confiança. Não sabia
como tinha conseguido detectar esse lado tão vulnerável de sua personalidade, mas o tinha feito.
Estava encantada observando como explicava coisas ao Henry: levantava-o para que pudesse ver
os objetos expostos de um melhor ângulo e o sentava sobre seus ombros quando o menino se
cansava de caminhar. Suspeitava que nada disso teria acontecido se tivessem decidido ir qualquer
outro dia. Então, Henry teria que ter-se comportado de acordo com sua posição e seu título. Ou
talvez não tivesse havido diferença. Possivelmente Jack tivesse mostrado que não devia se importar
o que pensasse as pessoas.
Sim, isso era muito mais provável. Se não se casasse, não encontrasse um marido que usurpasse a
posição de Jack como tutor de Henry, não cabia nenhuma dúvida que este cresceria sem temer as
opiniões de outros. Olívia não estava segura que isso fosse tão mau.
De toda a arte, os inventos e demais maravilhas que se podiam admirar na Grande Exposição, o
que mais fascinou ao Henry foi a enorme locomotiva.
— Alguma vez andou de trem, menino? — perguntou Jack. Henry, com os olhos totalmente
abertos, negou com a cabeça.
— Pois assim é como chegaram aqui a maioria destas pessoas. Em trem. Antes que existisse,
teriam demorado dias e dias em chegar a Londres. Imagine o que teriam perdido.
— Você andou alguma vez em trem? — perguntou Olívia. Tinha intenção de seguir falando
como um menino, mas estava tão encantada com tudo o que estava vendo, que tinha esquecido. O
certo era que ninguém prestava atenção. Havia muitas maravilhas que chamavam a atenção de todos
que os rodeavam e ninguém se fixava naquele trio vestido daquela forma tão estranha.
Jack negou com a cabeça.
— Eu nunca saí de Londres.
— Nenhuma vez?
Ele encolheu os ombros, despreocupado.
— Por que ia querer sair de Londres?
— O campo é muito diferente. Estou certa que terá uma grande surpresa quando viajarmos ali.
Ele esfregou o queixo.
— Quando formos, claro.
— Não terá medo...
— Claro que não — replicou, interrompendo-a. — É só que eu gosto muito de Londres. Nunca
tive necessidade de ir a nenhum outro lugar.
— Como pode sabê-lo se nunca o fez?
— Simplesmente, sei.
— Pois não o entendo.
— Como sabe que não desfrutaria se te deixasse levar pelo desejo? — perguntou ele com ardente
descaramento.
Olívia ficou em silêncio; Jack arqueou uma sobrancelha e seu lento sorriso que começava em seus
olhos, desceu até refletir-se também em seus lábios.
Ela sabia perfeitamente o que estava dizendo com aquele olhar. Como podia repreendê-lo por
julgar o que não tinha experimentado se ela era culpada do mesmo? Olívia nunca tinha pecado e, por
muito que a envergonhasse reconhecê-lo, estava começando a se dar conta que jamais tinha desejado
de verdade a seu marido. A princípio, pensava nele antes de adormecer, sentia falta dele e se sentia
sozinha quando ele abandonava sua cama. Não ansiava vê-lo pelas manhãs durante o café da manhã.
Nunca tinha pensado que as demoras sem ele se fizessem muito longas, e as noites em sua
companhia, muito curtas.
Não pensava nele com desejo. Suspeitava que se não andasse com muito, muito cuidado, poderia
acabar desejando muito mais que um beijo dos lábios de Jack.
Olívia agarrou Henry pela mão.
— Acredito que já nos entretivemos aqui o suficiente. Henry olhou para trás.
— Poderemos ir em tre-trem?
— Algum dia, menino.
Ela advertiu a promessa na voz de Jack.
O sol já se escondia quando a carruagem parou em frente à residência. Tinham comido na zona
de cafeteria da exposição, onde se servia uma grande variedade de refrescos. Olívia não acreditava
que nenhum deles gostasse de jantar, o qual estava muito bem, já que Henry ficou dormindo.
Jack desceu da carruagem com elegância, apesar de ter Henry pendurado de seu corpo como um
macaco, rodeando o pescoço com as mãos e a cintura com as pernas. Enquanto se aproximavam da
mansão, Olívia se deu conta que enchiam os olhos de lágrimas ao contemplar aquele alto e robusto
homem levando a um menino que confiava cegamente nele. Não podia negar que o que estava
começando a sentir por Jack era assombroso em sua vastidão e aterrador em sua intensidade.
Queria estar com ele de formas que sabia que não deveria. Formas escandalosas, formas
pecaminosas. Devia apelar a toda sua determinação para resistir a algo que sabia que acabaria em
desastre. Não podia abandonar toda sua educação para passar uma noite de paixão na cama de um
homem com o que não estava casada, um homem que queria casá-la com outro... Só uma insensata
se exporia entrar por esse caminho.
Henry não moveu nem um dedo quando entraram na casa e começaram a subir a escada. Estava
completamente esgotado. Olívia conhecia muito bem essa sensação. Ela também apreciaria um
banho quente e poder ir à cama bem cedo.
Ida os recebeu no quarto do menino.
— Como está o jovem duque?
— Arrebentado — respondeu Jack enquanto deixava Henry na cama com uma ternura que
surpreendeu a Olívia. Depois de todo aquele tempo, seguia surpreendendo-a que Jack demonstrasse
tanta consideração com Henry.
— Já me encarregarei de trocá-lo — sussurrou Ida. — Vão tranquilos. Olívia se inclinou e beijou
a testa de seu filho.
— Boa noite, meu amor. Seguiu Jack até o corredor.
— Não tenho forças para jantar.
Ele a olhou com preocupação nos olhos.
— Foi um dia muito duro?
— Foi perfeito. Só estou cansada. Se não se importar, entrarei primeiro no quarto de banho.
— Eu tenho que ir. E a verdade é que vou vestido à perfeição para o lugar ao que vou.
— Aonde vai?
— Quero procurar meu medalhão.
— Acha que terá sorte?
— Acredito que sei onde o empenharão. Encontrarei. Tinha tanta segurança... Segurança em
tudo.
Olívia pôs uma mão no braço.
— Muito obrigada pelo dia de hoje.
Ele agarrou o queixo e fechou a outra mão sobre sua nuca. Ela ficou sem fôlego ao pensar que
talvez fosse dar um ardente beijo antes de ir solucionar seus assuntos.
O olhar de Jack deslizou por seu corpo: começou nos pés para acabar posando-se em seus olhos.
— Devo confessar que não esperava que estivesse tão deliciosa com calças.
Olívia começou a enjoar.
— Não posso acreditar que consiga me fazer desejar ser o tipo de homem que se conforma com
um beijo.
— Suponho que poderia proibir isso.
Ele esboçou um meio sorriso; parecia diverti-lo o vergonhoso desejo de Olívia.
— Que dano poderia fazer? — perguntou então com aquela escura voz que provocava um
estranho comichão por dentro. — Só aumentaria sua dívida.
Ela não se incomodou em corrigi-lo para explicar que não pensava pagar o que ele acreditava que
devia. Nunca iria a sua cama. Por muito que a ideia estivesse começando a agradar, agarraria a sua
deliciosa moralidade. Por mais que ele estivesse aproximando seus lábios aos seus, e, embora ela
estivesse pondo nas pontas dos pés para recebê-los.
No fim de contas... só era um beijo.
Mas o que sentiu parecia ser mais que um beijo. Do preciso momento em que sua boca tocou a
de Olívia, ela se perdeu nas sensações que provocava. Deu-se conta que ele tentava manter seu
apetite sob controle, de que estava se dominando; parecia ter medo de não poder refrear-se naquela
ocasião e não poder conformar-se com nada que não fosse tê-la sob seu corpo.
Mas o beijo foi tão maravilhoso como o primeiro. Uma parte de Olívia que parecia estar muito
longe dali foi consciente que tinha caído a boina. Enquanto ela deslizava os braços pelas costas de
Jack até chegar a seus ombros, e ele a estreitava entre seus braços, o cabelo da Olívia se desprendeu
ao seu redor. Aquele homem tinha tanta destreza nos dedos como nos lábios. Conseguia distraí-la
com tanta facilidade que no final só o que importava era ele.
O quarto de Jack estava tão perto.... Se a agarrasse nos braços, Olívia não sabia se teria a força de
resistir. Possivelmente acabasse abrindo aquela porta ela mesma.
Não, não, tinha que ser forte. Tinha que conformar-se com aquele beijo que estimulava seu
desejo. Os dois deviam conformar-se com isso.
Então, Jack variou o ângulo de sua boca e aprofundou o beijo: começou a explorá-la com a língua
e a incitá-la para que fizesse o mesmo. Estreitava-a contra seu corpo e dessa vez não havia entre eles
nenhum obstáculo em forma de capas de tecido ou anáguas. Em realidade, apenas os separava um
pouco tecido muito fino. O corpo de Jack respondeu com uma ferocidade que Olívia não precisava
imaginar. Sabia exatamente como era porque as imagens de Jack nu no banheiro a bombardeavam e
avivavam o fogo que sentia crescer em seu interior.
Ouviu uma áspera súplica e temeu que tivesse escapado de seus lábios.
Ele se retirou com a respiração entrecortada. Então se deu conta que estava virtualmente
enredada em seu corpo. Desceu os braços imediatamente e deu um passo atrás.
— Tem-me completamente enfeitiçado — ofegou ele. — Advirto isso, duquesa, temo que esta é
a última vez que posso me conformar só com um beijo.
Depois de dizer isso, virou-se e se foi em direção à escada. Ela fechou os olhos e se recostou
contra a parede.
Aquela advertência era injusta. Agora Olívia esperaria com impaciência seu próximo encontro.

Jack desceu de sua charrete e inalou o fétido aroma que o tinha acompanhado durante boa parte
de sua infância. Não voltava muito frequentemente por aquelas ruas, mas quando o fazia sempre
tinha a sensação de voltar para casa.
Que tipo de triste vida levava para que fosse entre toda aquela porcaria onde se sentia mais
cômodo? Agarrou o saco de estopa da carruagem e o jogou ao ombro. Sabia que se a charrete ficasse
ali, quando retornasse não restariam nem as rodas.
— Vá e volte dentro de uma hora — ordenou ao chofer.
— Sim, senhor.
Jack pôde ver o alívio no rosto do homem antes que os cavalos começassem a mover. Ninguém
queria ficar ali, nem sequer os que viviam naqueles ruinosos edifícios. Já era muito tarde e,
entretanto, ainda ficavam algumas crianças na rua. Quando se dava conta que se mostravam muito
interessadas em sua pessoa e se aproximavam muito, metia a mão no bolso e atirava algumas moedas
entre a sujeira para que se afastassem dele.
Ao final, chegou à casa que procurava. Era difícil abrir a porta porque não estava presa com todas
as dobradiças. O interior era escuro e sombrio, e ali dentro o fedor da decadência era, se pudesse,
mais denso. Começou a subir os degraus: sabia muito bem quais estavam quebrados, quais rangiam e
quais devia evitar. Naquela zona de Londres as coisas não melhoravam. Jack descobriu que em um
dos degraus havia um buraco novo quando afundou o pé. Conseguiu tirar a bota enquanto
amaldiçoava e seguiu subindo com um pouco mais de cuidado. Quando chegou ao final da escada,
dirigiu-se a um escuro passadiço, esquivando com atenção tudo o que, apesar de não poder ver,
sabia que era lixo.
Assim que saísse daquele lugar, queimaria a roupa que usava. Era a única forma de assegurar-se
que não levava dali nenhuma enfermidade ou algum inseto: piolhos, pulgas, insetos que se
arrastavam... Sempre tinha odiado a sensação de ter pequenos insetos pelo corpo.
Quando chegou à porta do final do corredor, chamou três vezes, esperou um segundo, chamou
duas vezes, esperou e voltou a chamar três vezes mais. Ouviu como alguém arrastava os pés do
outro lado da porta, que rangeu e se abriu muito devagar. Apareceu um rosto sujo e enrugado. O
que tinha sido um arbusto de cabelo de um vermelho tão vibrante como o de Frannie, agora estava
pálido e quase branco. A longa e escassa barba também era branca. Um sorriso apareceu nos
murchos lábios, deixando a descoberto um montão de dentes podres.
— Vá, mas não é meu Dodger. — Fez um gesto com os dedos torcidos, convidando-o a entrar.
— Entra, menino. Vejamos o que o traz para o velho Feagan.
Jack entrou na imunda estadia e recordou um tempo em que dormia no chão da mesma, como
um cão, deitando-se contra quem fosse que dormisse junto a ele para oferecer e receber calor. Quase
nunca se deitava com fome. Feagan sempre se ocupou em dar de comer à suas crianças. De nada
servia um menino desnutrido.
— O que traz? O que traz? — perguntou o homem enquanto se aproximava da desmantelada
cadeira aproximada a uma velha mesa. Em cima da mesa ardia uma vela que, do pescoço de uma
garrafa, iluminava um pouco o quarto.
Jack podia ver perfeitamente a pálida nata branca que empanava os olhos de Feagan. Desceu o
saco do ombro, deixou-o sobre a mesa e tirou quatro garrafas: dois de uísque e dois de rum.
Feagan voltou a rir.
— Oh, meu Dodger. Sempre foi muito bom com o Feagan.
O mentor de Jack tinha o costume de referir-se a si mesmo em terceira pessoa. Esse era um dos
motivos pelos que ele nunca acreditou que Feagan fosse seu verdadeiro nome: parecia como se
nunca deixasse de recordar a si mesmo e a outros quem era. Não era estranho que os habitantes
daqueles lugares se transladassem a outras zonas de Londres e trocassem o nome se alguma vez os
prendessem. Feagan só tinha falado uma vez de seu passado, e era uma história que Jack sabia que
levaria para a tumba.
Abriu uma garrafa e serviu um pouco de uísque na estilhaçada taça que o ancião aproximou com
mão tremente; a mão que a tantos tinha ensinado como deslizar em lugares estreitos sem que
ninguém os visse.
— Teria que vir comigo e viver em um dos apartamentos de meu clube.
O homem tomou um gole e passou a língua por seus lábios para não desperdiçar nenhuma gota.
— E que bem poderia fazer isso ao Feagan?
Jack se sentou em uma cadeira que estava em frente à de Feagan.
— Teria comida, estaria quente e desfrutaria de boa companhia. Inclusive te daria crédito para
que pudesse jogar.
— Sempre foi mais generoso do que as pessoas acreditavam.
— A generosidade não tem nada a ver com isto. Eu não gosto de ter que andar entre o lixo cada
vez que quero falar contigo.
— Você é o único que vem para ver-me. — inclinou-se para frente. — Como está minha querida
Frannie?
— Está bem.
— Casou-se?
— Não.
Negou com a cabeça com pesar.
— Devia ter cuidado melhor dela.
— Todos teriam que tê-lo feito. — Frannie foi obrigada a entrar no negócio da prostituição
quando tinha doze anos. Luke tomou como algo pessoal matar o responsável. Olívia o consideraria
um assassino; Jack não. Alguns cães mereciam ser sacrificados.
— Mas ela não é o motivo pelo que está aqui.
— Não. — Jack suspirou com força. — Roubaram-me meu medalhão.
Feagan riu a gargalhadas e tossiu; parecia que a diversão fosse asfixiá-lo.
— A você? Você sempre foi o melhor!
— Estava distraído.
O ancião dedicou um ardiloso olhar.
— Isso não é muito próprio de você. Ela deve ser realmente preciosa...
Jack não tinha nenhuma intenção de falar de Olívia. Era uma dama muito refinada para que
Feagan imaginasse naquela fossa séptica.
— Já sei que já não trabalha com crianças, mas você sabe quem me roubou isso, e suspeito que
segue tendo mão no mercado negro. Pagarei cem libras se o encontrar.
Era uma quantidade enorme, mas aquele medalhão era a posse mais apreciada de Jack; talvez
fosse a única coisa que o importava mais que o dinheiro.
Feagan esfregou a boca com a mão.
— Isso é muita gentileza. Farei algumas perguntas. — Entrecerrou os olhos. — Se não fosse
você, pediria a metade adiantada.
Ele apoiou a mão em uma das garrafas.
— Trouxe-te algo que valoriza mais que o dinheiro.
— Isso é verdade.
Jack jogou a cadeira para trás e ficou em pé.
— Vemo-nos logo.
— Com certeza que sim, meu Dodger. Com certeza que sim.
Observou aquela pocilga uma vez mais e recordou que houve um tempo em que sua meta na vida
foi ter uma turma de meninos ladrões mais conhecidos que a de Feagan. Chateava-o muito não saber
quem era seu benfeitor. Se não fosse por ele, inclusive apesar dos ensinos do avô de Luke, Jack sabia
que teria voltado para aquela asquerosa vida para levar uma existência marginal ligeiramente melhor
que a de Feagan.
Capítulo Dezesseis

Jack estava ensinando Henry a ser escorregadio, ágil, rápido... Em definitivo, aprender a se
esquivar de seus perseguidores.
Olívia, sentada no terraço, observava como seu filho caía pela erva; não sabia como aceitar aquilo.
Supunha que não era nada de mais, sempre que Jack não estivesse ensinando a melhor forma de
colocar a mão nos bolsos alheios sem que ninguém se desse conta.
Naquele jogo em particular utilizavam uma bola, mas Olívia não entendia muito bem o que
representava a bola ou como se brincava. Não acreditava que soubessem nem os próprios jogadores.
Só se divertiam agarrando-a, correndo com ela entre as mãos e evitando que o outro os apanhasse.
Era um jogo muito pouco digno para que participassem dele homens adultos, especialmente quando
um deles era nobre. O conde Demônio, para ser exato.
Antes daquela tarde, Olívia não tinha tido a oportunidade de conhecer Lucien Claybourne em
pessoa. Tinha o cabelo escuro e os olhos chapeados, e era tão diabolicamente atraente como Jack.
— Deve ser algo ao que brincavam quando viviam na rua — comentou Catherine, a condessa de
Claybourne.
Estava sentada à mesa junto à Olívia, vestida também completamente de negro devido à recente
morte de seu pai. Seu marido e ela tinham chegado pouco depois que Jack saísse com Henry ao
jardim, para desfrutar do que estava se convertendo no ritual de todas as tardes. Em questão de
poucos minutos, Claybourne tinha seguido o exemplo do Jack e tirou a jaqueta, o lenço e o colete;
logo, arregaçou a camisa para poder correr com toda liberdade pela erva e tentar apanhar o Henry,
que ia de um extremo a outro com a bola entre as mãos, tentando que não o apanhassem.
Quando via que não o conseguiam, parava e começava a saltar, agarrava a bola e presumia:
— Ganhei! Ganhei!
Logo começavam tudo novamente. O cachorrinho também brincava: perseguia Henry por toda
parte e às vezes fazia tropeçar aos homens, que riam. Olívia era incapaz de recordar quando tinha
presenciado tanta felicidade em seu jardim antes de então.
— Acha que era assim como aprendiam a evitar que os agarrassem quando roubavam algo? —
perguntou Olívia, imaginando que a bola podia simbolizar uma fogaça de pão ou um melão.
— Possivelmente. — A condessa riu um pouco e logo parou em seco— É provável.
Não parecia que a ideia a preocupasse absolutamente. Em sua voz se adivinhava um pouco de
melancolia; dava a sensação de que ao pensar na infância de seu marido, desejasse que tivesse sido
diferente. Durante um tempo, muitos dos membros da aristocracia não acreditavam que Luke fosse
o legítimo herdeiro ao título, mas então ocorreu algo que os fez mudar de ideia. Embora Olívia não
estava muito à par dos detalhes.
— Eu não duvidei nem um momento — havia dito Lovingdon um dia que por acaso falaram do
tema. — Se parece muito ao seu pai para não ser seu filho.
— Viemos visitá-la faz alguns dias, mas nos disseram que estava doente — disse Catherine com
um tom de voz muito mais depravado— Alegro-me que já esteja recuperada.
— Obrigada. Encontro-me muito melhor. — Olívia conhecia a condessa, mas nunca tinham sido
grandes amigas e, evidentemente, não pensava dizer que estava tão bem que inclusive tinha ido
visitar a Grande Exposição.
— Suponho que boa parte de sua enfermidade se pode atribuir à surpresa de saber que o senhor
Dodger ia se converter no tutor de seu filho.
Olívia voltou a cabeça para olhar Catherine. Não viu censura em seu olhar, só cumplicidade.
Entretanto, não tinha nenhuma necessidade dela. Jack estava demonstrando quão idôneo era para
esse posto de uma forma bastante admirável.
— Se por acaso te serve de consolo — continuou Catherine, — nós também escolheremos Jack
como tutor para nossos filhos.
Olívia ficou boquiaberta.
— Não nomearão tutor ao seu irmão? — Não nomearão tutor ao duque de Greystone?.
Catherine negou com a cabeça.
— Sterling esteve muito tempo fora. E agora que por fim retornou, tenho a sensação que mudou
muito. Embora não posso explicar por que. Além disso, Claybourne não o conhece nada e não se
sentiria cômodo pensando que Sterling pudesse converter-se no tutor de seus filhos. Ele confia em
Jack Dodger. Pelo visto, o senhor Dodger salvou sua vida em mais de uma ocasião.
Olívia bebeu um pouco de chá enquanto se perguntava o que teria acontecido. Teria sido no
cárcere? Por que Jack não tinha contado nada disso? Não pensava pedir para Catherine que o
explicasse. Por estranho que parecesse, Olívia se sentia incômoda ao recordar as especulações que
tinha escutado da boca de outras damas enquanto tomavam o chá da tarde, ávidas de compartilhar
os últimos cochichos que tinham chegado a seus ouvidos. Tinham falado de Jack como de uma
curiosidade, não como de um homem. Agora que podia vê-lo com a perspectiva adequada, dava-se
perfeita conta de que aquela atitude tinha sido muito grosseira.
Olívia já não queria fofocas, queria saber a verdadeira história de sua vida e queria escutá-la de
seus próprios lábios. Ultimamente, pareciam ter chegado a uma boa camaradagem. Todas as manhãs
tomavam o café da manhã com Henry e pelas noites jantavam os dois a sós. Perguntava coisas sobre
ela: o que gostava de ler, que obra preferia ver no teatro, como tinha ido o dia. Entretanto, explicava
muito pouco de si mesmo. Uma dessas noites, Olívia chegou à conclusão que talvez quisesse formar
uma ideia dela mais ajustada possível para que fosse mais fácil encontrar um bom pretendente para
ela.
— Que opinião você tem do senhor Dodger? — perguntou.
Catherine deixou de olhar os homens e o menino que brincavam de correr pela erva e pôs os
olhos sobre Olívia.
— Se te for sincera, devo admitir que quando o conheci eu não gostei. Comportou-se de uma
forma muito insolente e tem uma opinião excessivamente negativa da nobreza. Mas confio em
Claybourne e em seu bom julgamento. Em realidade, também cabe a possibilidade de que não me
preocupe, porque estou convencida que será Luke quem educará nossos filhos. Não sei por que, mas
estou certa que quando uma pessoa passa uma infância tão dura, sua vida adulta só pode estar cheia
de felicidade.
Catherine falava como uma mulher loucamente apaixonada por seu marido.
Olívia sentiu uma pontada de inveja. Não podia imaginar nada mais maravilhoso na vida que estar
casada com o homem do que está apaixonada; bom..., e que seu marido correspondesse a esse amor.
Observou Jack correr pela erva. Era tão atlético como ela gostava. Observá-lo era fascinante e
esperava que sua acompanhante não se desse conta do tanto que ele chamava sua atenção.
Jack agarrou Henry e o levantou por cima de sua cabeça enquanto ria, contente. Henry,
encantado, ria deste modo a gargalhadas e Olívia sorriu. Ela tinha crescido em um ambiente muito
formal e se casou com um homem que também era. Jamais tinha posto em interdição que o
comportamento devesse ser calmo, reservado e adequado. Agora era quando realmente estava
começando a se dar conta que a risada era tão embriagadora como o brandy.
Também se deu conta que aquele momento brindava uma grande oportunidade para saber mais
coisas sobre Jack sem ter que bombardeá-lo com perguntas que ele evitaria responder, fazendo
ornamento de sua astúcia habitual.
— Já sei que isto é muito inapropriado porque estou de luto e não deveria convidar a ninguém —
disse Olívia, olhando Catherine, envergonhada, — mas vocês gostariam de jantar esta noite
conosco?
— Tendo em conta que eu também estou de luto, seria muito inapropriado que aceitasse.
— É obvio. Eu só...
Catherine, com seus olhos azuis brilhantes, levou o braço e estreitou a mão de Olívia.
— Mas estaria encantada. Para ser sincera, acredito que todas nossas normas sobre o período de
luto são absurdas.
Olívia deixou escapar uma gargalhada. Ao que parecia, Claybourne tinha sido tão má influência
para Catherine como Jack estava sendo para ela.
— Além disso, vou fazer uma proposta ainda mais inapropriada. Dado que somos todos amigos
e nosso jantar será íntimo e particular, nos esqueçamos da roupa de luto, de acordo? — propôs
Catherine.
— Tem certeza?
— Só estaremos nós, quem vai notar? Para te ser justa, estou farta do negro.
Olívia sorriu.
— Estupendo.
Jack custava muito em acreditar que Olívia tivesse convidado Luke e Catherine para jantar com
eles.
— Bom, não enviei um convite formal — replicou com petulância quando ele a olhou
interrogativo.
Pelo visto, a pequena duquesa não era tão reticente a saltar as normas de etiqueta, sempre e
quando a ideia fosse dela. Agora que estava recuperada de tudo, ele deveria esforçar-se para
convencê-la de que sua obrigação era ir para sua cama. Estava impaciente por desafiá-la, mas tinha
tido que ser paciente enquanto esperava que recuperasse as forças. Na realidade, acreditava que
deviam santificá-lo a conta da benevolência que tinha demonstrado.
— O que quer beber? — perguntou a Luke.
Catherine e ele acabavam de chegar. Tinham ido a sua casa para vestir-se para o jantar. Jack se
sentia nu junto a Luke, que tinha posto seus melhores ornamentos. Ele nunca tinha investido nesse
tipo de roupa, pois sabia que nunca iria a bailes nem a jantares, o que parecia estupendo. Jack
despertava a curiosidade da aristocracia, mas esta preferia manter as distâncias.
Catherine usava um vestido de cor verde esmeralda. Olívia ia ter um enfarte quando entrasse ali e
visse que a condessa não vestia luto. Sorriu ao pensar que por fim não seria o único que receberia as
reprimendas de Livy.
— Sirva-me o que tenha — disse Luke. — Já sei que só tem o melhor.
Jack olhou a Catherine.
— Condessa?
— Nada, obrigada.
Luke segurou a mão de sua esposa, a aproximou dos lábios e beijou os dedos. Estava
perdidamente apaixonado. Jack nunca permitiria que uma mulher tivesse tanto poder sobre ele.
— Ultimamente há coisas que não caem muito bem — comentou Luke. Jack serviu um pouco de
vinho do porto em duas taças.
— Deveria pedir a Graves que desse uma olhada e se assegurar que não está incubando o mesmo
que teve Olívia. Foi muito desagradável.
— Não disse a ele? — perguntou Catherine.
— Disseme que não queria que ninguém soubesse. Pelo menos ainda não.
— O que? O que eu estou perdendo? — perguntou Jack.
— Está grávida — disse Luke.
Jack se surpreendeu que os botões do colete de seu amigo não saíssem disparados pelo quarto.
— Como pode saber tão cedo? Só estão casados.... Ah! — Aquilo explicava a íntima e apressada
cerimônia que celebraram apesar de Catherine estar de luto. Jack levantou o copo. — Parabéns aos
dois.
— O que celebramos?
Jack se virou na direção à voz de Olívia e ficou gelado.
Viu-a entrar no quarto com um tímido sorriso nos lábios e usando um vestido violeta; tal como
ele tinha imaginado, estava arrebatadora. O objeto deixava a descoberto o pescoço, os ombros e um
perfeito decote. Usava o cabelo preso em um elaborado penteado que só deixava uns cachos
pendurando por um dos lados.
De repente, pareceu sentir-se incômoda e deixou de olhar ao Jack.
— Não me olhe com essa cara de surpresa. Catherine e eu pensamos que não aconteceria nada
por nos esquecer do luto durante uma noite entre amigos.
— Não. — Jack pigarreou para que não parecesse que alguém o estava estrangulando. — Não
tem nada. Está preciosa.
Essas palavras foram completamente inadequadas. Ele não possuía o encanto de Luke para as
reuniões sociais. As mulheres com as que Jack se relacionava não precisavam escutar elogios, mas,
céu santo, Olívia os merecia. Até o último que seu fraco cérebro fosse capaz de inventar.
Ela ruborizou.
— Obrigada. Lembrei que me perguntou se tinha algum vestido violeta. Bom... parece que
estamos celebrando algo.
— Sim. — Jack deu sua taça e serviu outra para ele. Logo fez um gesto a Luke com a cabeça. —
Faça você as honras.
Seu amigo sorriu com satisfação.
— Catherine dará à luz a meu filho.
— O seu herdeiro — corrigiu Catherine.
— É igual. Estou muito contente.
— OH, é maravilhoso — exclamou Olívia.
Jack viu que seus olhos se enchiam de uma sincera alegria. Teria se sentido também feliz quando
descobriu que era ela quem estava grávida? Se conseguisse que se casasse de novo, ficaria contente
ao saber que esperava um filho de seu novo marido? E por que de repente tinha vontades de
quebrar algo?
— Parece-me incrível que já saiba — continuou dizendo Olívia.
— O doutor Graves confirmou — disse Catherine, e agora foi ela quem ruborizou.
— Também é seu médico? — perguntou-Olívia. — É um homem fantástico. Foi quem se
ocupou de mim quando estive doente.
— Surpreende-me que tivesse tempo, agora que trabalha também para a rainha — comentou
Luke.
Olívia abriu os olhos de par em par.
— É o médico da rainha?
— Um deles. — Jack se serviu mais do porto. — Graves diz que é uma hipocondríaca.
— Não deveria falar da rainha desse modo — o corrigiu Olívia.
Aquela mulher jamais deixaria de corrigir suas maneiras. Por algum motivo, essa noite isso o
incomodava mais do habitual. É que era incapaz de aceitá-lo com suas imperfeições?
— Não se preocupe. A próxima vez que vá a uma audiência com ela não mencionarei nada. — O
comentário de Jack soou descortês inclusive aos seus próprios ouvidos, mas era plenamente
consciente de que enquanto eles três seriam bem-vindos no palácio de Buckingham, o jogariam a
chutes.
Fez-se um silêncio incômodo. Não queria estragar o jantar de Olívia, mas ao mesmo tempo tinha
muitas vontades de que Luke e Catherine se fossem para poder tê-la para ele sozinho.
— Diga-me, Luke, o que te parece Henry? Dá muito bem o de escapulir-se, verdade? —
perguntou Jack, tentando voltar para a normalidade.
— Certamente. Impressionou-me muito. Nunca pensei que veria alguém com tanta habilidade
como você.
— Logo o ensinarei a desenvolver agilidade com os dedos.
— Não vai se converter em nenhum ladrão — disse Olívia com severidade.
— Não me atreveria nem a sonhar. Mas uns dedos ágeis podem servir para muitas coisas.
Antes que ninguém pudesse acrescentar nada, Brittles entrou e anunciou:
— O jantar está servido.
Jack ofereceu o braço a Olívia, aproximou-se dela e sussurrou:
— Com um pouco de sorte, poderei te demonstrar as utilidades às que me refiro antes que tenha
acabado a noite.
Ela sufocou um pequeno grito e ele riu.
— Não se surpreenda tanto, Livy. Cedo ou tarde terá que render contas ao diabo, e eu prefiro
que ocorra mais cedo que tarde.

Ao que parece, o período de adiamento tinha chegado a seu fim. Olívia se surpreendeu ao dar-se
conta que não estava tão decepcionada como deveria.
O brilho dos olhos de Jack quando ela entrou na biblioteca a tinha adulado até limites
inimagináveis. Teve a sensação que ele sentia vontade de cruzar a sala com desespero, agarrá-la entre
seus braços, e dar um beijo que a convencesse que não queria fazer outra coisa que ir a seu quarto.
Inclusive nesse momento, Jack não tirava os olhos de cima. Estava sendo um péssimo anfitrião:
ignorava seus convidados e não se esforçava por conversar. Ela estava muito emocionada dele
prestando tanta atenção, a preocupava não poder mantê-lo à raia quando os Claybourne se fossem.
Entretanto, o que mais medo dava era que não estava certa de querer mantê-lo a raia.
Apesar de que ninguém parecia incômodo devido à falta de conversa — para falar a verdade, a
Claybourne e a Catherine parecia diverti-los
bastante com a situação, — Olívia era muito consciente que uma boa anfitriã não devia permitir
que o silêncio reinasse em sua mesa.
— Faz uns dias conheci Frannie. Pareceu-me uma mulher encantadora.
— Jack dedicou um sombrio sorriso e ela desejou não ter entrado por aquele atalho.
— Também eu gosto muito dela — disse Catherine, que de repente parecia consciente da tensão
que se respirava. — Construiu um orfanato e espera poder inaugurá-lo muito em breve.
— Está esperando que cheguem os móveis — acrescentou Claybourne. — Acredito que quando
isso ocorrer, perderá todos os seus meninos, Jack.
Olívia ficou dura. Teria sido Frannie amante de Jack? Jack tinha filhos? Tragou saliva para tentar
desfazer o nó que tinha na garganta.
— Que meninos?
Jack olhou Claybourne com o cenho franzido, como se tivesse revelado algum escuro segredo.
— Só são algumas crianças.
— Seus filhos? — atreveu-se a perguntar isso? Aquela não parecia sua voz.
Jack esboçou um irônico sorriso.
— Não. Eu me esforço muito para não aumentar a população de Londres. São meninos da rua,
órfãos.
— Tem órfãos em seu clube? — Olívia não sabia se o aplaudia por sua generosidade ou
mostrava-se escandalizada ao saber que permitia que crianças estivessem naquele ambiente.
— Não os tenho ali como se fossem posses. Ganham seu posto no clube. Estou seguro que
recordará que eu acredito que as pessoas têm que ganhar o teto que têm sobre a cabeça e a comida
com a qual enche o estômago. Assim que os acolho e dou um trabalho. Desse modo evito que os
recrute alguém com más intenções ou que acabem no cárcere. Na realidade não é nada. Eu necessito
que alguém faça certas tarefas e eles são muito capazes de o fazer.
Jack falava como se sentisse obrigado a explicar-se, mas Olívia estava muito agradecida por todas
aquelas explicações porque, graças a elas, podia vê-lo sob uma nova luz. Aquele homem era um
autêntico caleidoscópio. E não era verdade que suas ações não significassem nada. Preocupava-se
muito mais que ela pelos órfãos. Sentia que estava dando toda uma lição de humildade. Também
pensou que sua preocupação por outras crianças ajudava a explicar a boa relação que tinha com
Henry e que, talvez, isso o tivesse preparado muito bem para ser seu tutor.
— Foram eles que o ajudaram a conseguir a roupa? — perguntou ela. Ele elevou o copo em sua
direção.
— Sim.
Olívia se deu conta que estava deixando fora da conversa a seus convidados. Estava sendo uma
terrível anfitriã.
— Jack trouxe um pouco de roupa para que Henry brincasse com ela.
— Além disso... — disse ele, ao parecer muito orgulhoso de si mesmo, — fomos a Grande
Exposição e Livy e Henry se disfarçaram de crianças de rua.
— Ah, sim? — Catherine não parecia nada escandalizada. — E o que se sente usando calças em
público?
— Na realidade é bastante.... Libertador.
— A verdade é que eu acredito que usamos muitas capas de roupa.
— Eu também — disseram os dois homens de uma vez. Olívia e Catherine riram como meninas.
— Sabe? — disse Claybourne levantando o copo e observando seu vermelho conteúdo, — é
possível que Lovingdon te escolhesse como tutor de Henry devido ao amparo que oferece às
crianças que trabalham para você.
Olívia se surpreendeu ao ouvi-lo dizer isso, porque por sua mente tinha cruzado o mesmo
pensamento.
— Já pensei, mas me parece um motivo pouco sólido. Embora já não estou seguro de que
importância tem.
Mas Olívia não pôde evitar perguntar-se se continuava tendo importância. Pensaria nisso mais
tarde. No momento era muito consciente de que gozava da atenção de Jack. Ele voltou a levantar a
taça em sua direção, insinuando um brinde silencioso e uma promessa que acelerou o coração de
Olívia.
Antes do jantar, pensou que gostaria de ter companhia, que gostaria muito de uma distração e
esquecer-se do luto durante um momento, mas de repente estava ansiosa para ver partir seus
convidados. Queria passar um momento a sós com Jack antes que fosse ao clube.... Porque estava
certa que iria. Ele sempre ia ao clube.
Sentia-se incapaz de entreter ninguém. Ao estar de luto, tinha passado muito tempo só e nem
sequer tinha alguma anedota que contar. Entretanto, estava desfrutando da companhia e era
agradável ter visita, para variar.
Quando Claybourne e Catherine se foram, estava mais cansada do que esperava. Jack ficou junto
a ela na escada principal, observando como partia a carruagem de seus convidados.
— Não posso acreditar que o conde Demônio tenha estado jantando em minha casa — disse
Olívia, enquanto Jack fechava a porta. Claybourne não tinha sido bem-vindo na casa de seus pais e
tampouco na de seu irmão.
— Qualquer dia terá convidado toda a turma de Feagan para jantar sem se dar conta.
Olívia duvidava muito, mas não queria ser grosseira. No fim de contas, eram os amigos do Jack.
— Nenhum de vocês dá a impressão de ter crescido na rua.
— O avô de Claybourne contratou professores para nós. Estava decidido a que ninguém se desse
conta de nossas origens. Não queria que envergonhássemos ao seu neto.
— Tiveste uma infância muito peculiar. — Chegaram à escada e Olívia olhou para cima, receava
retirar-se.
— Vem tomar um pouco de brandy — propôs Jack em voz baixa. — A ajudará a dormir.
— A última vez que bebi brandy me levantei doente.
— Então te servirei um pouco de uísque.
Olívia notou que se excitava ao pensar que poderia voltar a beijá-la.
Desejava-o desesperadamente. Não pôde evitar assentir.
Dirigiram-se à biblioteca sem tocar-se. Assim que o lacaio fechou a porta, Jack a agarrou entre
seus braços colou-a em seu corpo e aproximou a boca a seus lábios. A Olívia sentiu vontade de rir
de contente que ficou ao ver sua impaciência. Jamais se havia sentido desejada, mas Jack parecia
estar faminto, faminto dela.
Seus lábios desenharam um ardente caminho pelo pescoço da Olívia.
— Estava me voltando louco sentado a essa mesa, tentando manter uma agradável e bastante
aborrecida conversa, quando só no que podia pensar era no muito que queria te degustar em lugar
do frango.
Possivelmente não fosse o mais poético dos elogios, mas ela gemeu e facilitou o acesso a seu
pescoço.
— Vem para a minha cama, Livy.
— Não.
— Beijarei você dos pés a cabeça. Beijarei em lugares aos que duvido que Lovingdon chegou a
tocar.
O calor abrasava todo o corpo de Olívia fundindo os ossos; surpreendeu-se de que não
dobrassem os joelhos. Sim. Sim. Sim.
— Não.
Conseguiu empurrar a palavra do mais profundo de sua alma, uma alma que se negava a transigir.
Separou-se dele e negou também com a cabeça, dando por feito que necessitaria algo mais que
palavras para convencer a ambos.
— Não. Não posso, Jack. Não posso.
Ele passeou o olhar por seu corpo muito devagar.
— E eu não posso te beijar sem querer mais.
— Sinto muito.
Jack tocou-a no rosto.
— Não se desculpe, Livy. Se eu fosse um cavalheiro como é devido...— em seus olhos se refletiu
o arrependimento — Mas não sou. Aceitaria pelo menos dar um passeio comigo pelo jardim?
— Eu adoraria. — A ver se assim conseguia criar coragem para voltar a proibir que a beijasse.

Olívia esperou no terraço enquanto Jack ia pedir a um lacaio que acendesse as tochas para
iluminar o caminho. Uma parte dela se arrependia já de tê-lo recusado na biblioteca. Sentia-se muito
tentada a abandonar-se aos seus desejos, mas não era fácil esquecer toda uma vida de educação
moral. Queria ser um bom exemplo para Henry e, talvez, de algum jeito, um bom exemplo também
para Jack. Este parecia acreditar que uma pessoa podia fazer tudo quanto quisesse. Mas Olívia sabia
que se cedesse, perderia seu respeito. Suspeitava que ele só estivesse brincando com ela, que só o
que pretendia era incluí-la em sua longa lista de conquistas.
Assim que o lacaio entrou na casa, Jack ofereceu o braço. A noite era linda. A névoa ainda não
tinha feito ato de presença. Olívia não se preocupava com o gélido vento, porque sempre que Jack
estava perto dela se sentia incrivelmente cálida, como se a paixão que sentia por ele fervesse sob a
pele.
— Ultimamente esteve me fazendo muitas perguntas sobre o tipo de homem que eu gostaria de
ter por marido — se atreveu ela a dizer.
— Já decidiste o que quer? Ou, melhor ainda, com que lorde prefere se casar?
Olívia se esforçou por não pensar na decepção que sentia ao saber que ele seguia pensando em
desfazer-se dela. Embora não deixava de repetir que a queria em sua cama, suas palavras
confirmavam que só queria era ter uma aventura.
— Em realidade, não, mas sentia curiosidade por saber o que quer para si mesmo.
— Eu não penso me casar nunca.
— Nenhuma vez?
— Por que te surpreende tanto? Você é a pessoa que melhor entende as graves dificuldades que
teria para encontrar uma mulher que me quisesse como marido.
— Se te propor a mudar...
A grave e sombria gargalhada de Jack interrompeu suas palavras, deslizou-se por seu corpo e
pareceu fundir-se com as sombras que rondavam pelo caminho.
— Não tenho nenhum interesse em mudar.
— Sou incapaz de compreender por que alguém escolheria por vontade própria uma vida
solitária, regida pelos prazeres, em lugar da vida que pode oferecer um casamento e uma família.
— Pois me deixe que demonstre isso.
Jack deslizou o braço pela cintura para aproximá-la ao mesmo tempo em que a afastava do
caminho. Seus lábios pousaram sobre os seu com um apetite que a surpreendeu. Por impossível que
parecesse, aquele beijo era mais íntimo, mais exigente, mais persuasivo que o anterior. Consumiu-a e
abrangeu todos os aspectos de seu ser, até que o mundo deixou de existir para ela. Uma das longas
mãos do Jack parou em sua nuca e começou a desenhar um sedutor caminho por suas costas. Olívia
sentiu afrouxarem seus joelhos, agarrou-se com força aos ombros de Jack e se apertou contra seu
corpo para não perder o equilíbrio. Ele rugiu sem separar a boca de seus lábios e há levou um pouco
mais para as sombras, até que ela sentiu a fria parede de tijolo contra suas costas. Entretanto, não
serviu para aliviar a ardente febre que percorria seu corpo.
Estava louca de desejo e não pôde evitar agarrar o rosto de Jack com a mão. Não era suficiente.
Queria sentir sua pele sob as gemas dos dedos, mas não podia permitir-se pedir mais, nem se deixar
levar pelo que tanto desejava. Estava certa de que ele podia sentir como o desejo fervia sob sua pele,
do mesmo modo que ela sentia como esse mesmo desejo esticava os músculos de Jack quando
deslizou o joelho entre suas coxas.
Aquela pressão era uma autêntica delícia e avivava as chamas de sua paixão. Olívia jamais tinha
experimentado um desejo de tal intensidade. Nunca havia sentido o formigamento de suas
terminações nervosas sob a pele, suplicando mais, suplicando algo tão difícil de alcançar, algo que ela
mal podia compreender. Mas ela sabia que estava desejando, sabia que tinha os meios e o
conhecimento necessários para levá-lo até sua máxima expressão.
Gemeu quando a boca de Jack se afastou de seus lábios para desenhar um ardente atalho por seu
pescoço. Ela jogou a cabeça para trás, presa do êxtase, dando permissão para que pudesse saboreá-la.
— Vem para a minha cama — disse ele com a voz entrecortada.
— Não posso. — Suas palavras estavam tintas de uma profunda decepção.
Olívia esperava que ele parasse, que a liberasse daquela tortura, mas o que fez Jack foi deslizar a
boca um pouco mais para baixo e passear seus lábios e sua língua por sua clavícula, entretendo-se no
vale que se formava na base de seu pescoço. Como podia um gesto tão pequeno gerar tanta
debilidade em seu corpo, ao mesmo tempo em que provocava tanto agrado?
Então, Jack puxou para baixo o sutiã do vestido e o triunfante rugido provocou uma satisfação
tão desenfreada que foi incapaz de reclamar pelas liberdades que estava tomando. Logo pousou os
lábios em um dos seios de Olívia e de repente a pressão que estava imprimindo com a coxa entre
suas pernas não bastou. Olívia ouviu seu próprio gemido aflito, e se deu conta que deslizava os
dedos por debaixo da jaqueta para afundá-los em seus ombros e que começava a esfregar o quadril
contra o corpo de Jack.
— Chist, chist, tranquila, meu amor. Tudo ao seu devido tempo — murmurou ele.
Devido? Aquilo era completamente indevido. Era pecaminoso e perverso, mas Olívia jamais
havia se sentido tão mulher. Tinha perdido qualquer resto de controle. O bom julgamento era um
conceito que ficava muito longe.
Olívia se deu conta do movimento sob sua saia pouco antes de sentir os dedos de Jack
deslizando-se por suas coxas. Gemeu, agarrou-o pelo queixo e o guiou outra vez para seus próprios
lábios, para silenciar com sua boca a escura risada de Jack. Estava tomando aquilo como uma vitória
sobre ela? Ou só estava encantado de vê-la tomar a iniciativa e de ter conseguido provocar sensações
que por fim Olívia era incapaz de controlar?
Os hábeis dedos dele abriram caminho através de sua roupa até perder-se entre seus cachos
íntimos, e então insistiu com habilidade a ela responder a seus requerimentos. Era um ladrão, e
estava roubando o pouco poder que ficava para resistir. O corpo de Olívia se esticou e palpitou.
Então, começou a sentir um prazer que jamais tinha experimentado antes e que a tentava,
sussurrando a promessa do que estava por chegar.
— Vem para a minha cama — rugiu ele.
— Não.
Olívia teve que esforçar-se para não tornar a chorar. Sabia o muito que desejava o que ele podia
oferecer e amaldiçoou sua implacável força de vontade.
Notou o movimento, embora soubesse que os dedos de Jack não tinham abandonado nem um
momento seu baile sobre aquela sensível zona de seu corpo. Com a mão que tinha livre, Jack agarrou
a mão de Olívia e a guiou para baixo, até colocá-la sobre seu volumoso e quente pênis. Guiou-a para
que o tocasse de uma forma íntima, para que o acariciasse enquanto ele a acariciava a ela, enquanto o
prazer da Olívia viajava para o descontrole.
Jack deslizou um dedo dentro do corpo dela, logo dois... ao tempo que pressionava o polegar
sobre sua pele torcida e a acariciava com intimidade, provocando sensações incrivelmente doces...
Quando ela alcançou o clímax, ele pressionou os lábios sobre seu pescoço, seu corpo tremeu e o
rugido que emitiu ressonou a seu redor enquanto sua cálida semente se vertia sobre a mão de Olívia.
Jack se deixou cair sobre ela, com a respiração agitada.
Quando Olívia começou a recuperar a consciência do lugar onde se achavam, os tremores
seguiam percorrendo-a. Ao dar-se conta do que acabava de acontecer no jardim, alagou-a a
vergonha. Vergonha por sua falta de controle e aborrecimento com ele por ter feito aquilo. Além de
fúria consigo mesma por ter permitido, por tê-lo animado, por ter apertado o corpo contra o seu em
lugar de ter ido.
— OH, Deus. — Por fim, Olívia encontrou a força para afastá-lo. Ele cambaleou.
— Livy...
— Não, não. — Então se pôs a correr em direção à casa, subindo o espartilho, ignorando os
restos da doce liberação de Jack e reprimindo as lágrimas que ameaçavam nublando os olhos.
A dor a atormentava. Enquanto esteve casada, jamais experimentou nada que se parecesse com
aquelas cúpulas de paixão que acabava de alcançar. Jack Dodger ganhou sua reputação à força. Os
rumores eram certos: era o demônio. Mas aquela noite a tinha levado ao céu.
Agora, Olívia arderia no inferno.
Capítulo Dezessete

Jack ficou sentado em um banco: sabia que teria que ter ido atrás dela. Mas Olívia se recuperou
imediatamente, enquanto que ele mal podia aguentar-se em pé, incapaz de persegui-la. Pensou em ir
procurá-la assim que tivesse recuperado o controle, mas o que ia dizer? Tinha ouvido chorar. Acaso
ela esperava que se desculpasse? Jack não se arrependia de nada. Embora, para ser sincero, isso não
era de tudo verdade. Preocupava que estivesse desgostada. Quanto a ele, estava completamente
aterrorizado.
Jamais tinha reagido assim com uma mulher. Nunca tinha desejado mais agradar a ela que ele. E
agora se sentia condenadamente vulnerável.
Queria meter-se na cama de Olívia, aproximar-se dela e pedir que o abraçasse.
Qual era seu maldito problema?
O sexo era seu negócio. Sua meta sempre tinha sido satisfazer suas necessidades físicas e logo
procurar a seguinte fonte de prazer.
Mas ela não formava parte de seu negócio e, por muito que odiasse reconhecê-lo, o que tinha
acontecido entre eles não tinha sido só sexo.
Deveria ir ao clube, retornar pela manhã e fingir que aquela noite não tinha existido.
Ou podia embebedar-se, ir para a cama, levantar-se pela manhã com uma terrível dor de cabeça e
fingir que aquela noite não tinha existido.
Mas sim tinha existido e não acreditava que fosse a esquecê-la jamais.

Olívia despertou com a cabeça sob o travesseiro, ardência nos olhos, o nariz tampado e um
pouco enjoada. Se não soubesse a verdadeira causa, pensaria que estava adoecendo de novo. Mas
sabia a verdade. Tinha ocorrido quão mesmo quando, sendo só uma menina, seu cão morreu e
chorou até dormir. Como podia ter deixado que Jack tomasse aquelas liberdades com ela? Embora,
na verdade, havia algo que a inquietava muito mais: como podia ser que queria que ele o fizesse? E
queria. Jack tinha conseguido roubar a força de vontade. Agora teria que descer para tomar o café da
manhã e enfrentar a ele. Como poderia olhá-lo nos olhos sem recordar cada uma das deliciosas
perversões que tinha levado a cabo em seu corpo?
Virou-se e gritou ao ver Jack aos pés da cama. Levantou-se a toda pressa e apoiou as costas no
montão de travesseiros.
— Prometeu que jamais viria a minha cama.
— E cumpri minha promessa. Estou a uns cinco centímetros dela.
Sua voz não tinha seu habitual tom jocoso. Ia completamente vestido e, entretanto, Olívia se
sentia intranquila. Talvez fosse pela forma em que ele a olhava, fixamente, como se não houvesse
nada do que envergonhar-se, ou porque ela sabia que aquele homem não só conhecia seu corpo, mas
também como reagia a suas carícias. Desceu o olhar e começou a estirar um fio da colcha.
— O que faz aqui?
— Me olhe, Livy.
Era muito difícil, mas não se deixou intimidar. Olhou-o com desafio e se surpreendeu ao não ver
nem rastro de triunfo nos olhos dele. Ela esperava que desfrutasse de seu vergonhoso
comportamento. Mas em vez disso, Jack Dodger, aquele homem arrogante, seguro de si mesmo e
crédulo, parecia estar — se atrevia a pensar? — arrependido.
— Não estou acostumado a perder o controle quando estou com uma mulher.
Ela desceu a vista e a fixou sobre aquela maravilhosa boca que passeou por seu pescoço,
acariciando sua pele com seu quente fôlego, enquanto...
— Desejo você, Livy. Desejo como jamais desejei nenhuma mulher, e isso não é algo que me seja
fácil de reconhecer. Sei que você não está acostumada a esse tipo de comportamento.
Olívia pensou que o comentário era um grande eufemismo.
— Mas não me desculparei por isso — prosseguiu ele. — O que posso fazer é te prometer que
jamais voltará a acontecer.
Depois de dizer isso, virou-se e abandonou o quarto.
Olívia não estava muito certa de querer que mantivesse sua promessa.
Durante os dois dias seguintes, os dois se esforçaram por evitar um ao outro ou talvez fosse
Olívia a que não deixava de encontrar desculpas para estar em outra parte da casa sempre que
acreditava que Jack estava por ali. O café da manhã não era especialmente difícil, porque Henry
sempre estava ali para amortecer o golpe. Olívia se sentava no outro extremo da mesa e observava
Jack com dissimulação, enquanto ele respondia às mil perguntas que o menino fazia: todas
começavam com por que.
O jantar era um pouco mais complicado. A noite anterior tinham falado do tempo, e Olívia
sentiu vontade de chorar. Transformaram-se em um par de educados estranhos. Jack já não tirava
sarro nem provocava ou flertava com ela.
E Olívia sentia falta...
Da janela de uma das salas do piso de cima, ela observava enquanto Jack tentava apanhar Henry
durante seu clássico jogo das tardes. Henry alardeava, como de costume, e Jack ria. Era incrível o
bem que se davam. Era quase como ver duas crianças brincando...
Mas Jack não era nenhum menino. Embora Olívia suspeitasse que agora a vida fosse para ele
muito mais despreocupada que quando vivia na rua, também acreditava que tinha muitas mais
responsabilidades.
Ela só o conhecia por sua vida ali. Mas tinha outra muito distinta, e queria vê-la.
Jack tinha pedido a carruagem um pouco mais cedo que de costume. Não queria ficar mais tempo
na casa. Os jantares com Livy se tornaram insuportavelmente estranhos.
Ela voltava a observá-lo como se estivesse exposta em alguma parte. Falavam de como estava o
jantar; e isso quando falavam. A maior parte do tempo, ele evitava olhá-la, porque não queria que se
desse conta do quanto a desejava.
Depois do jantar, ela se retirava a seu quarto e ele ia à biblioteca. Estava sentado ante seu
escritório, afogando seu desejo em uísque quando Brittles entrou.
— Sua carruagem está preparada, senhor.
Jack assentiu e acabou o copo. Quando passou por diante da escada, pensou em subir, entrar no
dormitório de Livy e romper sua promessa de não ir a sua cama. Mas quando dava sua palavra, o
fazia de verdade. Era o único gesto honrado ao que podia aferrar-se.
Um lacaio abriu a porta. Jack saiu da casa, decidido a fazer o que fosse para tirá-la da cabeça.
Utilizaria Pru se fosse necessário, embora a ideia provocasse um estranho vazio. Apressou-se
degraus abaixo ignorando a névoa. O tempo encaixava muito bem com seu estado de ânimo.
Outro lacaio abriu a porta da carruagem.
— Senhor.
Jack o saudou assentindo com a cabeça, subiu um dos degraus da carruagem, e, quando se apoiou
para dar-se impulsiono, percebeu uma fragrância que era familiar...
— Vai ao clube?
Ao ouvir a voz que o tinha enfeitiçado, sobressaltou-se e golpeou a cabeça na a porta.
— Maldição!
Deixou-se cair para dentro e se sentou no banco.
— Que diabos está fazendo aí?
Olívia não pretendia pegá-lo tão de surpresa. Embora fizesse um bom castigo, por aquela
primeira noite, quando deu aquele susto de morte.
— Quero ir contigo.
— Não diga tolices. As únicas mulheres que permito entrar em meu clube são as que estão
dispostas a oferecer certos serviços aos homens. Acaso é isso no que está pensando? Se for assim,
posso te oferecer inclusive um alojamento.
Olívia deveria saber que ele não aceitaria fácil, mas não pensava em desistir.
— Tendo em conta que é o proprietário, estou certa que poderá fazer uma exceção.
Jack se acomodou em um lado da carruagem. Olívia podia sentir seu intenso olhar sobre ela.
— Por quê?
— Sei que é um bom tutor para Henry e que tem muito bom olho para os negócios. Quero ver
seu negócio.
As sombras impediram que Olívia visse como ele movia a mão e, de repente, notou que a
deslizava por debaixo de seu véu e acariciava a bochecha com o polegar.
— Por que, Livy?
— Não quero que haja segredos entre nós, Jack.
— E o que se passa se você não gostar do que vê?
Os sentimentos que tinha por ele poderiam se dissipar como a névoa da manhã.
— Disse que não se sentia envergonhado de seus negócios.
Jack se aproximou e de repente, sua boca estava junto à sua bochecha.
— E isso que importância tem, Livy?
Ela engoliu com força.
— Preocupo-me com você muito mais do que deveria. Passo incontáveis horas pensando em ir à
sua cama. E não posso. Simplesmente, não posso. Não sem uma clara compreensão do homem que
é. — Apoiou a mão no peito dele e sentiu o rápido batimento de seu coração sob os dedos. — Seu
negócio é para você uma grande parte de sua vida. Tudo o que ouvi sobre esse lugar são puros
falatórios. Quero saber a verdade.
— Eu já te disse a verdade.
— Quero ver. Imagino que não será um lugar muito iluminado. Vou vestida de negro. Meu
chapéu tem um véu negro. Teriam que ter a vista muito boa para me reconhecer, e se todos seus
clientes bebem tanto como bebia meu irmão, parece-me que é muito improvável que se lembre de
mim.
Ouviu-o suspirar.
— Não posso te deixar entrar pela porta principal. Provocaria muita curiosidade e, se alguém te
reconhecer, sua reputação ficará completamente destruída.
— Suponho que terá uma porta traseira. Jack a observou durante um momento.
— Não poderá explicar nada do que veja no clube às mulheres com as quais toma o chá. Jamais
poderá revelar o nome das pessoas que veja ali dentro.
— Não o direi a ninguém.
— Falo muito a sério, Livy. Meus clientes pagam extremamente bem para manter suas
indiscrições em segredo, e essa confiança que depositam em mim é vital para o êxito do negócio.
— Juro que não direi nada a ninguém.
— Com certeza que me arrependerei disto — murmurou ele, enquanto fazia um sinal ao chofer
para que pusesse a carruagem em marcha.
Olívia mal podia acreditar em como estava emocionada. Seu comportamento ia contra tudo o que
tinham ensinado, estava a ponto de fazer algo que estava absoluta e irrevogavelmente errado, mas
não podia evitar aferrar-se à crença de que tinha que conhecer a fundo um homem antes de
sucumbir à tentação. Era uma razão um pouco absurda, mas não podia negar que Jack provocava
sentimentos muito intensos que ela jamais tinha experimentado.
Foram até o clube absolutamente em silêncio, embora, inclusive na escuridão, Olívia podia sentir
o penetrante olhar dele.
— Aí está — disse Jack por fim, e ela olhou pela janela para ver seu clube pela primeira vez.
Não tinha tão mau aspecto como tinha imaginado. Ao contrário, estava muito cuidado. As
colunas brancas e os lacaios uniformizados davam uma luxuosa aparência que Olívia não esperava.
— Esse que está entrando é Greystone?
— Não.
— Pois parece...
— Você não viu ninguém entrar aí. Esse é o jogo que vamos jogar, Livy. Não ouvirá nada. E Por
Deus que não explicará nada.
— Os lordes devem confiar muito em você.
— Confiam-me muitos de seus segredos. Talvez eu não seja tão respeitável como Beckwith, mas
sei como manter silêncio. Além disso, pagam-me muito bem e eu, em troca, pago muito bem a meus
empregados, para me assegurar de que ninguém use trapos sujos alheios.
A carruagem rodeou o clube e parou junto à porta de atrás. Jack estendeu a mão a Olívia depois
que ele desceu.
— Está certa que quer fazer isto?
— Absolutamente.
Jack riu com suavidade.
— É como uma menina a quem alguém oferece um caramelo. Quando ela saiu da carruagem, ele
a aproximou de si.
— Fique perto de mim até que entremos.
Olívia ouviu alguns homens cantar; desafinavam. Bêbados, pensou. E logo ouviu pessoas corriam
pelo beco. Acelerou-se o coração. Uma luz iluminava a porta traseira. Jack colocou uma chave na
fechadura e entrou em seguida.
A primeira coisa que a surpreendeu foi que o corredor cheirava a limpeza. Havia várias portas
fechadas e uma aberta.
— Estes são os escritórios. — Fez um sinal com a cabeça indicando um deles. — Frannie
trabalha aí.
— Está aqui agora?
— Provavelmente.
— Deveria ir saudá-la.
— Isto não é uma visita de cortesia.
— Seria grosseiro por minha parte não o fazer. Ele revirou os olhos.
— Está bem.
Jack a acompanhou até a porta. Olívia voltou a surpreender-se: apesar de os móveis pareciam de
boa qualidade, não havia muitos. Frannie estava anotando algo em um dos livros contáveis.
Levantou a cabeça e abriu seus olhos verdes de par em par.
— Vá, olá. Que surpresa.
— Queria ver um clube de jogo — resmungou Jack.
— E a trouxeste? Que interessante. — Frannie se levantou da cadeira. Olívia elevou uma mão
com acanhamento.
— Não quero te incomodar. Só queria dar uma olhada. Devo admitir que estou surpresa que
tudo esteja tão limpo e ordenado. É muito eficiente.
— É coisa de Jack. Não pode suportar que as coisas não estejam limpas. Acredito que é porque
quando era menino andava sempre muito sujo.
Olívia pensou no tanto que se banhava e em como insistia em não usar nenhum objeto de roupa
que não estivesse toda engomada.
— Só vou deixar que dê uma olhada rápida — interveio Jack, agarrando Olívia pelo braço.
Depois de despedir-se de Frannie, ela deixou que a guiasse para uma escada que explicou só
podiam subir os empregados.
— Tem algum pretendente?
— Céu santo, não. Tem pouco interesse nos homens.
— Mas deseja casar-se.
— Não acredito. E isso é só o que vou dizer sobre esse assunto. Os motivos de Frannie são coisa
dela.
Quando subiram a escada, Jack a conduziu por um estreito corredor. Depois, abriu as cortinas e
saíram a um balcão oculto nas sombras. Olívia se surpreendeu ao ver como tudo era elegante. As
paredes pintadas de verde escuro, emolduradas por fitas de seda de madeira esculpida. Mas o que a
cativou foi a atividade que bulia no piso de abaixo. Havia mesas de jogo repartidas por toda a sala.
Alguns homens jogavam a cartas e outros jogos de dados. Um par de clientes tinham garotas
sentadas no colo, mas inclusive elas eram muito bem vestidas.
A fumaça dos cigarros formava uma neblina que cobria toda a cena. Olívia viu que todos os
copos estavam cheios com licores de diferentes tons de âmbar, alguns mais claros, outros mais
escuros; e em outros casos transparente, mas estava certa que não era água. Os meninos vestiam
uniformes de cor violeta e levavam coisas aos cavalheiros. O lugar não era tão escandaloso como ela
tinha imaginado. Em realidade, em alguns casos, era inquietantemente silencioso.
Olívia conhecia a maioria dos lordes. Por que não estavam em casa com suas esposas?
— Acreditava que teria mais... Garotas — disse por fim.
— A maioria está em outra sala. Pode vê-la dali.
Guiou-a de novo pelo corredor e voltou a abrir as cortinas que davam a outro balcão secreto. Ela
vacilou, não estava certa se queria ver aquele desenfreio, mas picava muito a curiosidade. Assim que
viu a sala se sentiu um pouco decepcionada. A maioria dos presentes não fazia mais que conversar.
Pôde ver alguns beijos e alguma provocação, mas não era a orgia que esperava.
— Parece decepcionada — disse Jack ao ouvido.
— Não, eu..., sim. Acreditava que seriam mais travessas. Ele esboçou um sombrio sorriso.
— E são. Mas nessas salas não pode olhar, a menos que tenha convite.
— Convite?
Jack encolheu os ombros.
— Alguns homens gostam que os olhem, assim temos um quarto para olhar.
— Por que gostam que os olhem?
— Suponho que acreditam que têm algo a ensinar.
— Oh. — Olívia negou com a cabeça. — Prometi a mim mesma que não julgaria ninguém, mas
eu não gosto que utilize às garotas, que as obrigue a...
— Eu não as obrigo a fazer nada que não queiram fazer. Eu só as pago para que façam
companhia aos cavalheiros e um pouco de conversa, para que dancem com eles, talvez um beijo... O
que fazem em seus dormitórios é assunto delas e o que ganham é para elas.
— Mas você aprova esse tipo de atividade.
— Vão fazer de todos os modos, Livy. Em um beco, em algum quarto que nem estará limpo nem
será seguro. Aqui, pelo menos, nem os clientes nem as garotas têm nada do que preocupar-se.
— Mas por que têm que estar aqui?
— Porque os cavalheiros acabam se sentindo sozinhos. E um homem contente gasta mais
dinheiro. Já viu suficiente?
Olívia se deu conta que nesse momento não ia ganhar aquela discussão, mas talvez com o
tempo...
Assentiu.
— Acredito que sim.
Quando estiveram na carruagem, a caminho de casa, perguntou:
— Como conseguiu abrir um negócio?
— Quando tinha dezenove anos, Beckwith veio ver-me. Pelo visto, tinha um benfeitor anônimo,
ele me deu dez mil libras. Utilizei-as para comprar o edifício.
— Quem era?
— Não sei. Era anônimo.
— Mas terá alguma suspeita. Não seria esse tipo? Feagan?
— Não. Ninguém se torna milionário colocando a mão nos bolsos alheios.
— E quem mais podia ser?
— Sempre acreditei que foi o avô de Luke. Não nos dávamos muito bem e pensei que viu como
uma maneira eficaz de livrar-se de mim. Como um bom investimento.
— Imagino que seria muito obstinado para ele.
— Eu sempre acredito que minha forma de fazer as coisas é a melhor. — Jack riu. — Por um
momento, a noite em que se leu o testamento, pensei que se tratava de Lovingdon. Mas perguntei a
Beckwith e me disse não sei que tolice de guardar o segredo de meu benfeitor.
— Por que Lovingdon ia fazer algo assim?
— Por que ia me deixar suas propriedades não associadas ao título?
— Se foi ele, acho que encontrará a informação em seus arquivos.
— Que arquivos?
— Meu marido sempre anotava tudo. Cada vaca que comprava, a comida dos cavalos, os
serventes que contratava, cada salário que pagava. Era obcecado com seus arquivos. Agora penso
que talvez o fazia para saber quais coisas estavam associadas ao título e quais não. Se quiser posso te
mostrar.
— Não acredito que encontre nada, mas acho que não me fará nenhum dano dar uma olhada.
A origem de seu negócio e arquivos. Olívia falava dessas coisas enquanto sua fragrância cativava a
Jack.
— O que achou do clube? — perguntou ele.
Fez-se o silêncio entre os dois enquanto as rodas da carruagem estralavam sobre a rua.
Então, ela disse:
— Não é tão pecaminoso como eu esperava.
Jack passou o braço por trás de Olívia, deslizou o polegar por debaixo do véu e passeou por seu
rosto.
— Parece decepcionada.
— O que? Não. — Então riu com acanhamento. — Um pouco, imagino. Se quiser saber a
verdade esperava encontrar orgias, atitudes lascivas e barbárie. Mas em troca todo parecia muito
civilizado.
— Os cavalheiros só vão lá para passar um tempo tranquilo.
— É uma pena que não haja algum lugar parecido para as mulheres.
— E o que fariam ali? Servir diferentes tipos de chá e falar das qualidades de cada um?
— Jogaríamos cartas — respondeu Olívia com aspereza e Jack se deu conta que a tinha ofendido.
— Poderia ter alguns homens atraentes nos servindo e nos prestando atenção que nossos maridos
não nos prestam.
Jack deixou de mover o polegar.
— Aqui têm alguém disposto a te dispensar todos os cuidados que não te dispensava seu marido
e você não para de afastá-lo.
Então ele levantou o véu, aproximou os lábios a sua boca e amaldiçoou sua própria debilidade.
Tinha jurado que não se conformaria com um beijo. Mas de repente parecia uma tortura passar tanto
tempo sem nem sequer isso. Alegrou-o muito sentir que devolvia o beijo com o mesmo ardor. Jack
sabia que o desejava. De onde tirava, pois, as forças para não deixar de dizer que não?
Rebater tantos anos de comportamento adequado era tarefa para um homem que tivesse muito
mais paciência que ele, que queria o que desejava assim que se dava conta do que desejava. Jack
imaginava que para ela seria frustrante não poder corrigir todos aqueles anos de mau
comportamento por parte dele.
Talvez Olívia estivesse exercendo alguma boa influência afinal. Sabia que estavam aproximando
da casa e que alguns dos serventes estariam ainda levantados, assim tomou cuidado de não desfazer
o penteado nem desabotoar o sutiã. Essa vez não tomou liberdades que pudessem deixá-la sem
fôlego.
Limitou-se a deslizar os lábios por seu pescoço até que chegou a sensível zona debaixo da orelha
e sentiu o batimento do coração de seu pulso sob sua língua.
— Vê? Também posso ser civilizado. Diga-me que não quer que nada.
— Já não sei o que quero. Quando me faz estas coisas não posso pensar.
— Isso diz tudo, concorda? Seu lugar é... — Jack parou com as palavras junto a mim na ponta da
língua — em minha cama.
O desejo desapareceu e em seu lugar, Jack sentiu uma imperiosa necessidade de fugir.
Capítulo Dezoito

Jack estava junto à janela de seu quarto e observava a noite. O que estava acontecendo? Quando
tinha começado a pensar que Livy pertencia?
Ele jamais poderia casar com ela. Nunca poderia dar a ela respeitabilidade. Casar com ele a
diminuiria aos olhos da sociedade. Talvez pudesse tê-la durante dois anos, enquanto estava de luto,
mas logo teria que deixá-la partir; ela e Henry. Jack conseguiria esse último objeto de valor
incalculável e, com o tempo, se esqueceria deles.
Mas no momento não podia pensar em outra coisa que não fosse em Olívia.
Quando a porta que dava ao quarto de banho foi aberta, seu coração acelerou e se virou muito
devagar. Olívia estava ali, com sua camisola, o cabelo solto, seus pequenos pés descalços, roçando o
tapete com os dedos, com as mãos entrelaçadas junto ao corpo e uma inquietação evidente no rosto.
— Não estou muito certa de como tenho que fazer isto — disse muito devagar. — Não sei o que
tenho que fazer para te seduzir.
— Me seduzir? — Jack riu a gargalhadas e quando viu a dor no rosto dela se aproximou em
quatro largos passos e agarrou seu suave rosto entre suas ásperas mãos. — Livy, esteve me
seduzindo desde a primeira noite. — Beijou a testa. — Sua resistência é muito excitante. — Beijou-a
na têmpora. — Fascina-me seu caráter. — Beijou a bochecha. — O amor que demonstra por seu
filho é emocionante. — Pousou os lábios sobre a ponta de seu nariz. — Sua risada é encantadora.
— Deu um beijo no canto da boca. — Seus olhos me hipnotizam e seus beijos têm o poder de me
pôr de joelhos.
Observou-a enquanto as dúvidas que dançavam em seus olhos dourados se convertiam em
convicção. Olívia esboçou um pícaro sorriso.
— Proíbo que faça amor comigo.
Jack sentiu a boca secar ao escutar essas palavras. Jamais tinha feito amor com uma mulher,
embora tivesse se deitado com muitas. O sexo tinha sido satisfatório. Mas fazer amor.... Não sabia
por onde começar. Entretanto, era um presente que ela merecia. Era justo o que ele desejava dar.
Olívia não se parecia com nenhuma das mulheres que conhecia. Tinha ido buscá-lo sem esperar
receber dinheiro. O que estava oferecendo a ele era muito mais valioso que qualquer coisa que
pudesse dar.
— Já te avisei, amor, que nunca me proibisse nada. Só fará com que eu deseje mais.
E assim que disse isso, colou seus lábios sobre a boca dela com toda a ternura que foi capaz. Mas
a ternura era uma coisa estranha para ele. Assim que percebeu o sabor da Olívia, o apetite que tinha
mantido a raia, tomou o controle com uma ferocidade que o surpreendeu. Queria ver com claridade
o que a roupa e as sombras tinham negado.
Sem deixar de beijá-la, agarrou-a e a levou até a cama nos braços e logo a pôs de pé junto a ela.
Ela perdeu o equilíbrio e Jack a aproximou de seu corpo para que pudesse apoiar-se nele.
Olívia já havia sentido o poder de sua paixão no jardim. Entretanto, continuava assombrando-a
que esta pudesse ser tão potente e que pudesse debilitá-la com tanta facilidade. Estava tão febril que
parecia que estava ficando doente. E tremiam suas pernas. Se Jack não a estivesse rodeando com
seus braços teria acabado desabando no chão.
Deslizou os braços ao redor dos ombros dele e enredou os dedos no espesso cabelo, um cabelo
que de repente não parecia tão longo. Queria afundar o rosto nele e pensou que talvez o fizesse
antes que acabasse a noite.
Jack deixou de beijá-la e passou os lábios pelo contorno da mandíbula; parecia que não queria
abandonar seus lábios, que não queria estar longe da boca da Olívia. Ela levantou o queixo para dar
melhor acesso a seu pescoço e soltou um pequeno gemido. As aveludadas carícias de Jack a
provocavam.
— Ah, Livy, Livy... — Sua voz soava grave e sedutora, e Olívia estava disposta a segui-lo a todos
os pecados onde a guiasse.
Sentiu como Jack deslizava os lábios por cima de seus ombros e então recordou que aquele
homem tinha os dedos de um ladrão e mãos extremamente ligeiras. Tinha desabotoado todos os
botões, do pescoço até o estômago e ela nem se deu conta. E agora a camisola estava escorregando
pelos ombros, deslizando até o chão.
Por um momento, pensou que deveria sentir a necessidade de se cobrir, mas só no que podia
pensar era nas maravilhosas sensações que Jack estava provocando com a boca em seus seios:
degustando, lambendo, chupando. E nem um momento deixava de sussurrar que era linda,
incrivelmente linda.
Sem prévio aviso, agarrou-a nos braços e a deitou na cama. Assim que suas mãos abandonaram o
corpo dela, começou a tirar a roupa, desfazendo-se a toda pressa de cada um dos objetos até que não
foram mais que um montão no chão.
Olívia nem teve tempo de apreciar seu magnífico corpo, porque Jack em seguida apoiou um
joelho na cama e se aproximou como um enorme felino predador, certo que sua presa não podia
escapar.
Ela não queria escapar. Recebeu-o com os braços abertos e começou a tocar o que naquela
longínqua manhã só tinha podido ver no quarto de banho. Era um homem jovem e seu corpo
refletia a força da juventude. Músculos firmes, pele macia. E flexibilidade.
Deitou-se junto a ela e pôs sua mão marcada sobre o quadril da Olívia: um gesto que parecia
carregado de uma simbologia infinita. Levantou-se um pouco e a beijou no estômago, fez o caminho
até seus seios, beijando a parte interior de um deles, depois do outro, prestando a mesma atenção a
cada um. Olívia pensou que deveria ter estado mais preparada para o prazer que começou a sentir.
Acaso o proibido aumentava o prazer? Seria o sabor do pecado que a fazia ser tão consciente do
despertar de seu corpo? Ou era simplesmente que aquele homem possuía a destreza do diabo e o
poder de provocar tal prazer?
Olívia afundou os dedos nos ombros e nas costas. Abraçou-o com força enquanto ele devorava
seus seios. A incipiente barba roçava a sensível pele e aumentava seu deleite. Aproximou o quadril
ao corpo do Jack.
Passou a mão pelo quadril e seguiu por suas coxas até entre suas pernas, para deslizar os dedos
intimamente...
O prazer aumentou ainda mais e Olívia ofegou.
Jack levantou a cabeça para observá-la. Deslizou um dedo no interior de seu corpo, provocando
outro gemido. Ela apertou as pernas para apanhar sua mão ali ou talvez para animá-lo a continuar.
— Quero te olhar, Livy — sussurrou ele com aspereza. — Quero ver o que me negou na
escuridão do jardim. Deixe, meu amor. Deixe-me ver.
Ela negou com a cabeça com energia, mas Jack não deu trégua. Voltou a pousar a boca sobre
seus seios enquanto fazia magia com os dedos. Quando ela estava perto, muito perto do clímax, ele
parou para situar-se entre suas coxas e tomar posse de seus lábios como se pertencessem. Sua língua
investigou e explorou como se já não conhecesse cada íntimo ponto, enquanto Olívia devolvia o
beijo com mais descaramento de que tinha demonstrado na vida. Adorava seu sabor, adorava a
fragrância que desprendia o corpo masculino, estimulada pela paixão que ambos desprendiam. A
pele de Jack estava quente sob seus dedos, parecia puro veludo umedecido por uma fina capa de
suor.
Ele se ergueu sobre ela e se não o conhecesse tão bem como o conhecia, teria se assustado com a
expressão que viu em seu rosto. Era algo quase animal, bárbaro.
Sentiu como se aproximava e ficou tensa.
— Chist, chist, devagar — ele sussurrou ao ouvido dela.
Olívia não estava certa se ele dizia essas palavras para ela ou para si mesmo.
Jack deslizou a mão pelo lado de seu corpo e por cima de seu quadril, e, rodeando as coxas,
incitou-a a abrir mais as pernas.
Então, Olívia sentiu como ele deslizava em seu interior, delicioso centímetro a centímetro. A
plenitude de Jack abria caminho e incrementava seu prazer. Quando pensou que já não podia aceitar
mais, ele levantou um pouco o quadril, mudou ligeiramente de postura e se enterrou nela por
completo fazendo-a arquear as costas sob a deliciosa sensação do peso de seu corpo.
— Oh, Deus — sussurrou Olívia.
Jack entrelaçou os dedos com os seus e pôs as mãos a ambos os lados da cabeça, ao mesmo
tempo em que arremetia contra ela sem compaixão. O corpo de Olívia se movia ao compasso que
ele marcava, o prazer a percorria dos pés a cabeça e aumentava sua intensidade à medida que suas
capitalistas investidas a moviam, não só a ela, também a cama.
Os gemidos de Jack ressonaram junto ao ouvido de Olívia, com aspereza e satisfação, e ela podia
escutar seus próprios gemidos em resposta. O prazer se fez virtualmente insuportável. Queria fechar
os olhos, mas ele era tão bonito, era tão prazeroso contemplá-lo: apertava os dentes e a olhava com
fogo nos olhos. Olívia jamais havia sentido tal conexão com ninguém.... Sabia que fossem onde
fossem, estavam indo juntos.
Jack era um demônio, tentava-a, exigia sua rendição com cada uma das fibras de seu corpo. E ela
se rendeu, não só com seu corpo, mas também com seu coração e sua alma.
Ele gritou e começou a empurrar mais profundamente, tão profundamente que Olívia se
perguntou como sobreviveria...
Então chegou o êxtase e seu corpo se esticou ao redor de Jack, arqueando-se debaixo dele,
sentindo como alcançava um prazer tão intenso que nunca imaginou possível. Não ficou mais
remédio que fechar os olhos enquanto o êxtase percorria todo seu ser. O último que pensou antes
de perder-se no esquecimento foi que tinha subestimado os benefícios de estar com um homem cuja
vida estava dedicada ao prazer.
Apoiado no cotovelo e deitado junto de Livy, Jack tentava não pensar no que acabava de
acontecer. Jamais tinha experimentado nada tão intenso nem tão gratificante. O momento que
tinham compartilhado no jardim empalidecia comparado com a realidade de ter podido possuir
Olívia em sua cama. Vê-la chegar ao topo à luz das velas tinha potencializado seu próprio prazer.
Não queria enganar-se com respeito ao ocorrido. Talvez a quisesse para divertir-se um pouco,
mas Livy pertencia à nobreza enquanto ele não era mais que lixo. Jamais poderiam ter nada mais que
aquilo. E ao pensar nisso, começou a sentir uma inesperada e aguda opressão no peito.
Nunca antes se sentiu parte de algo ou de alguém. E depois do muito que se esforçou para
manter as distâncias, essa proximidade o aterrorizava. Ela tinha conseguido derrubar seus muros. Se
pensasse muito nisso durante muito tempo, acabaria recolhendo sua roupa e sairia para não voltar
jamais.
Preocupava-se tanto com Olívia como suspeitava, isso era exatamente o que devia fazer. Partir
agora que já a havia possuído. E esforçar-se para encontrar um marido adequado. Mas em vez disso,
deslizou o dedo com imprudência por entre os seios, secou o suor acumulado entre eles e disse:
— Não vai dormir agora, vai?
Ela negou com a cabeça, muito lentamente, sobre o travesseiro.
— Isto é muito bom.
Ele riu devagar, enquanto deslizava os dedos por seus ombros. Jack pensou que jamais deixaria
de ter vontades de tocá-la.
— Pelo que vi nas respostas de seu corpo, está claro que investi muito bem meu dinheiro.
Olívia franziu o cenho.
— Paga por isso?
— Sempre. — encolheu os ombros. — Exceto esta noite.
— Por quê?
— Por que faço ou por que não fiz esta noite?
— Não, por que paga.
Como podia explicar sem parecer insensível?
— Porque nunca quis confusões amorosas. Para mim sempre foi um assunto prático. Algumas
vezes mais prazerosas que outras. — E algumas recompensas eram intangíveis.
— Se deitou antes nesta cama? — Jack não sabia por que tinha feito aquela pergunta nem por
que o interessava a resposta.
— Só uma vez. Quando você me trouxe.
Olívia segurou seu rosto com a mão. Ele colocou a mão sobre a dela e aproximou os lábios a sua
palma para beijar.
Livy se pegou a ele. Jack levou então o braço e afastou o lençol que ela tinha sobre o quadril.
Olívia acabou de afastá-lo com o pé até que nada separava seus corpos nus.
— Já sei que não deveria te falar de outro homem, mas quero, preciso que saiba que jamais senti
com ele o que senti contigo.
Jack não sabia o que responder, assim voltou a beijar a palma da mão e logo beijou os dedos.
— Sempre era muito impessoal, coisa que me surpreendia muito, porque, na realidade, é um ato
muito pessoal. E eu jamais me dei conta que devia gostar. É um homem extraordinário, Jack
Dodger.
Ele voltou a ficar sem palavras. Agachou a cabeça procurando seus lábios com intenção de voltar
a possuir seu corpo com um pouco mais de paciência desta vez, com uma busca de prazer mais
relaxada.
Olívia acariciou seu peito vacilante, como se acreditasse que ia se quebrar. Jack se afastou um
pouco para trás e a observou. A pergunta continuava ali, uma pergunta que jamais tinha podido
responder, porque tinham arrancado a resposta quando era só um menino.
— Como isto parece uma experiência nova para você, acredito que deveria saber que não me vou
me quebrar e que não há nenhuma parte em mim que não tenha permissão para explorar.
O olhar de Olívia passeou por todo seu corpo e ruborizou. Deslizou a mão para baixo, fechou-a
sobre seu pênis e ele não pôde reprimir um gemido de satisfação.
Jack a beijou enquanto deitava de barriga para cima para dar completo acesso a suas explorações.
Com cada movimento, as mãos de Olívia adquiriam maior confiança. Tocava-o, acariciava-o.
Deixou de beijá-lo nos lábios para cobrir o peito de beijos. Deslizou a língua por cima de seu duro
mamilo e o corpo de Jack se agitou. Então, ele enredou as mãos em seu cabelo para aproximá-la
mais a seu corpo e a animou com doces palavras e suaves gemidos.
Quando já não podia suportar mais, colocou-a em cima dele de forma que ficou escarranchada
sobre seus quadris, com os cabelos caindo sobre seus ombros como uma cascata.
— Não me olhe assim — disse ele.
— Não acredito que isto seja adequado.
— Meu amor, nada que temos feito esta noite é adequado. — Sua intenção tinha sido provocá-la,
mas se arrependeu daquelas palavras assim que as disse, porque viu como a vergonha começava a
aparecer em seus olhos. — Livy, não.
Ela levantou a cabeça e o olhou.
— Não se arrependa disto.
Olívia negou com a cabeça, mas Jack se deu conta que o dano tinha sido feito. Deslizou os dedos
por seu cabelo e a aproximou de seu peito para abraçá-la.
— Nunca contará a ninguém, jura? — sussurrou ela, ao fim de um momento.
— Não.
Olívia levantou a cabeça e apoiou o queixo em seu peito.
— Não me arrependo do que ocorreu entre nós, mas uma pequena parte de mim sabe que está
errado.
Penteou o cabelo com os dedos.
— Como pode estar errado se for o que duas pessoas desejam?
— Mas nunca haverá nada mais que isto entre nós.
— Sinceramente, eu tampouco acredito, mas isso não significa que não possa ser muito, muito
bom enquanto dure.
Com a mão afundada em sua preciosa cabeleira, virou a cabeça e pousou os lábios sobre sua
boca. Deu um profundo beijo e se perguntou como diabos ia conseguir deixá-la partir quando
chegasse o momento.
Capítulo Dezenove

— Provavelmente, isto seja inútil — disse Livy.


Estavam no escritório, um pequeno quarto em que Lovingdon tinha armazenado todo tipo de
livros de contabilidade, arquivos e jornais. Olívia tinha explicado a Jack que o duque estava
acostumado a fechar-se ali durante horas.
— Datam de muitos anos.
Jack levantou o olhar de um livro de contabilidade que continha os movimentos do ano em que
Beckwith foi vê-lo. Livy estava sentada em um sofá, perto da janela, e o sol projetava um halo a seu
redor. Ele nunca tinha acreditado em anjos, mas não podia negar que ali sentada, tinha uma
aparência bastante angelical. Não parecia uma mulher a que havia possuído com ardente paixão
naquela mesma manhã, antes de chamar sua donzela.
— Embora não encontremos nada, tenho que admitir que estou fascinado por toda esta
informação. Eu adoro ver a flutuação do número de serventes que contratou, os salários que pagava,
os benefícios que recebia de suas distintas propriedades.... Inclusive os investimentos que fazia. Já sei
que tenho a informação atual, mas sempre é aconselhável estudar as práticas passadas.
Olívia esboçou uma careta e se estremeceu.
— Não irá ler tudo isso, irá?
— Possivelmente sim.
Ela olhou a seu redor e observou todos os livros que havia nas estantes e empilhados no chão.
— Aqui há muita desordem. Pergunto-me o que fazia aqui.
— Talvez fossem seus predecessores os que deixaram toda esta desordem e ele estivesse
tentando arrumar.
— Talvez. Suponho que agora tudo isto pertença a Henry. Jack inclinou a cadeira para trás.
— E como chegaste a essa conclusão, duquesa? Dedicou um áspero olhar.
— Porque muitos destes livros se referem a propriedades ducais.
— Mas estão em minha residência. Pense no valor que acha que têm.
Negociaremos.
— Não pode falar a sério.
Jack se levantou, aproximou-se dela e apoiou as mãos sobre o respaldo do sofá, deixando-a
completamente apanhada.
— Muito a sério. E acredito que esse livro que tem nas mãos vale um beijo.
Ele apagou sua risada pousando os lábios em sua boca; na realidade, estava dando ao livro muito
mais valor do que na realidade tinha. Olívia devolveu o beijo com a mesma paixão e o pesado livro
escorregou de seu colo e caiu justo sobre o pé de Jack.
— Maldito seja! — murmurou, afastou movendo seu acidentado dedo e pensando que era uma
sorte não ter quebrado.
Agachou-se para pegar o livro que tinha caído e enrijeceu; seu olhar ficou preso em umas palavras
escritas com precisão com uma elegante caligrafia.
Agarrou o livro muito devagar e se sentou junto à Olívia.
— Jack? O que foi? Parece que tenha visto um fantasma.
Ele pôs o dedo sob as palavras e Livy se aproximou para poder ler melhor.
— Emily Dawkins? 15 de junho de 1815. Contratada como faxineira aos doze anos. Cinco
guineus. O que foi?
— É o nome de minha mãe.
Olívia o ajudou a procurar nos livros. Parecia completamente obcecado. Não podia culpá-lo, mas
a preocupava vê-lo tão ensimesmado.
— Jack, talvez não se tratasse dela. Nem Emily nem Dawkins são nomes pouco habituais.
Ele fechou o livro.
— Não encontro nenhuma nota da que possa deduzir quando se foi. Alguém tem que saber algo.
— Isso foi há trinta e seis anos. A maioria dos serventes já não está aqui, e os que estão... Não
acredito que se lembre de uma faxineira. — Pôs a mão sobre a do Jack. — Por que trocou o nome?
— Porque não queria que me encontrasse o homem ao que me vendeu. — Esboçou um amargo
sorriso. — Troquei de nome várias vezes até que decidi por Dodger.
— Continuo sem poder entender porque te vendeu. No jardim me disse que fez algo para perder
seu amor. O que fez?
— Não sei. Quando me deu o medalhão me disse: Nunca - Nunca esqueça o muito que te amava, Jack.
Amava. — Negou com a cabeça. — Tinha-me amado, mas já não me amava.
— Eu não estou muito convencida disso.
— Sei muito bem o que ouvi, Livy.
— Era um menino, Jack. — Ele abriu a boca e ela firmou os dedos em seus lábios. Foi um
engano, porque começou a beijá-los - Escute.
Ele assentiu sem deixar de beijar os dedos.
— Se você tivesse me jogado de casa, eu teria dito ao Henry: Nunca esqueça que te amo. Porque eu
seguiria mandando meu amor de qualquer lugar ao que você tivesse me mandado. E porque
esperaria voltar a vê-lo. Mas se pensasse que jamais tornaria a vê-lo, talvez houvesse dito amava.
Acha que podia estar doente? Possivelmente inclusive.... Morrendo?
Jack ficou imóvel, com os dedos do Livy ainda sobre os lábios.
— Lembro que tinha tosse. — ainda segurando a mão, mas a deixou cair sobre seu colo. — Céu
santo, Livy. Todos estes anos pensei que queria se desfazer de mim, que a tinha decepcionado por
algum motivo. — Soltou-a, levantou-se e se aproximou da mesa. — Ela parecia conhecer aquele
homem...
— Podia ser que ele também fosse servente na casa dos Lovingdon?
— Não, não era nenhum servente. E tinha uma casa muito grande.
— Talvez não saiba nunca, Jack.
— Swindler sempre desfrutou com as provocações. Acredito que esta noite levarei alguns destes
livros a ele.
Olívia ajudava Henry com um quebra-cabeça de madeira enquanto Ida estava na cozinha,
tomando uma xícara de chá. Quando a porta do quarto abriu, Jack não entrou, mas ficou na porta,
apoiado no marco e com os braços cruzados sobre aquele peito que ela havia coberto de beijos na
noite anterior. Olívia se perguntou se seu coração pulsava tão rápido como o seu.
Jack tinha ido ao clube pela manhã cedo e não havia voltado a tempo de tomar o café da manhã.
— Houve sorte com os livros? Ele negou com a cabeça.
— Frannie e Swindler estão examinando.
— Quer que te ajude a procurar um pouco mais?
— Talvez mais tarde.
— Então, porque veio? Se interessar pelos progressos de eu protegido? — perguntou Olívia.
— Não exatamente — respondeu Jack pesarosamente.
— Quer falar comigo?
O sorriso dele que prometia todo tipo de prazeres proibidos.
— Não exatamente — repetiu.
— Tenho que adivinhar?
Jack descruzou os braços, entrou no quarto, agachou-se e colocou em seu lugar a última peça do
quebra-cabeça.
— Acabou-se. Vocês gostariam de sair?
Olívia o olhou e, antes que ela pudesse falar, pôs um dedo debaixo do queixo, como se fosse
fazer cócegas.
— Já sei que está de luto — disse, — mas é muito improvável que alguém te veja no lugar ao que
quero que vamos.
— E que lugar é esse?
— A ferrovia.
Henry abriu os olhos de par em par.
— Com uma locomotiva?
— Naturalmente.
Olívia olhou o Jack e franziu o cenho. Como podia convencer aquele homem que não dissesse
nada diante de Henry até que houvesse conversado com ela? Agora Henry se desiludiria se não
fossem. Ou ela se veria obrigada uma vez mais a colocar aquela roupa de menino.
— Centenas de pessoas viajam de ferrovia todos os dias — assinalou.
— Isso mesmo, mas agora tenho um vagão particular, e as únicas pessoas que viajarão nele
seremos você, Henry, Ida e eu. Assim estará separada das massas.
— Comprou um vagão de trem?
— É uma maneira de ver.
Oliva o olhou entrecerrando os olhos.
Jack suspirou como se estivesse perdendo a paciência.
— Um de meus clientes me devia muito dinheiro. Fiquei com o vagão em troca de liquidar a
dívida, o qual foi um estupendo acordo para ele, porque o vagão vale menos do que me devia.
— Pensei que fosse muito melhor negociador.
— Pensei que a diversão que podia nos proporcionar bem valia a pena.
— Mas temos que chegar até esse vagão de ferrovia — assinalou Olívia.
— Iremos depressa. Além disso, as pessoas que te conhecem não estão acostumadas a andar de
trem.
— Aonde vamos?
— A Brighton. Desceremos lá, molharemos os pés no mar e voltaremos para casa.
— Vai sair de Londres? — perguntou ela. Ele encolheu os ombros.
— Não acredito que vá gostar de nada do que veja, mas tenho um pouco de curiosidade.
— Por favor, mami — disse Henry. Parecia ter tanta vontade...
Olívia nunca tinha andado de trem e estava tão emocionada ante a perspectiva como seu filho,
mas o que mais a atraía era que estaria com Jack a primeira vez que ele saía de Londres. Quando pela
primeira vez visse o mundo que se estendia além daquela cidade. Inspirou com força.
— Está bem.
Quando viu a satisfação nos olhos de Jack, Olívia teve a sensação de que estava cedendo muito
mais do que tinha pedido.
Jack foi fiel à sua palavra e os levou até o vagão de trem a toda pressa. Seu lacaio deu uma cesta
cheia de comida que poderiam comer pelo caminho ou em um piquinique junto ao mar. Olívia tirou
o chapéu com véu e olhou a seu redor para admirar aquele vagão de trem que parecia mais elegante
que a casa de muitas pessoas.
— A quem pertencia antes este vagão? — perguntou ela.
— Não me lembro.
Dedicou um duro olhar e a recordou com os olhos que devia guardar seus segredos. Olívia foi
amável e decidiu esquecer o assunto.
O vagão estava muito bem equipado e tinha um sofá vermelho no centro, mas não se parecia
com nenhum sofá que ela tivesse visto antes. Tinha um respaldo curvilíneo e uma zona para sentar-
se a ambos os lados do mesmo. Pensou que tinha muito sentido, porque assim não tinham que girar
todo o sofá quando as vistas eram melhores no outro sentido.
Havia duas poltronas acolchoadas a cada lado das janelas em ambas as laterais do vagão. Tiveram
as cortinas fechadas enquanto esperavam na estação. Olívia se sentou em uma das poltronas,
enquanto Jack, que usava um colete vermelho que fazia jogo com a decoração do vagão, sentava-se
em outra com Henry em seu colo. Ida se sentou em uma das poltronas da outra janela.
Jack estava muito atraente, embora na verdade sempre estava. Olívia surpreendeu o natural que
parecia para Henry estar sentado com ele. Seu filho não tinha nenhuma reserva a respeito de seu
tutor. Jack tinha ganhado sua confiança, mas o certo era que também ganhou a dela. Naquele
momento, estando ali com Jack, teve uma sensação de família que jamais tinha tido com Lovingdon.
Jack levantou um lado da cortina e olhou para fora.
— Há um montão de bolsos esperando que alguém os esvazie. Todo mundo tem pressa e está
distraído; só pensam na ferrovia e em conseguir um assento. Vá, se a ferrovia tivesse existido quando
eu era menino, poderia ter me apropriado de um montão de carteiras.
— Mas agora já não rouba, porque entendeu que é errado — apontou Olívia.
— Não, eu não...
Ela pigarreou. Jack franziu o cenho, olhou-a e depois a Henry, que o estava observando
completamente encantado.
— Tem toda razão. Dei-me conta que estava errado.
— Me ensinará? — perguntou o menino.
Olívia estava surpresa da rapidez que tinha desaparecido a gagueira de Henry. Não sabia se
atribuía o mérito ao cão ou ao Jack. Talvez os dois tivessem algo a ver.
— Não, menino. Tal como muito bem disse sua mãe, isso é errado. Entretanto, sim, posso te
ensinar a ter uns dedos hábeis. Nunca se sabe quando poderiam te ser úteis.
Antes que Olívia pudesse dizer algo, soou o apito e o vagão começou a deslizar sobre as vias.
Jack voltou a centrar sua atenção no mundo que se estendia fora das janelas. Em seguida abriu as
cortinas e ela se deu conta que já não se via a plataforma. O trem avançava.
Henry subiu por cima de Jack e ficou de joelhos sobre seu colo para colar o nariz à janela. Tinha
ido várias vezes à casa de campo de carruagem, mas nunca tinha prestado muita atenção à paisagem.
Em troca, havia algo no trem que o fascinava.
— É uma vista muito diferente de Londres — disse Jack.
— Não posso acreditar que não tenha saído nunca da cidade — comentou Olívia.
— Conheço Londres e estou muito cômodo ali. Nunca tive nenhum motivo para sair.
— Por que agora?
— Porque pensei que talvez Henry goste de conduzir um trem. O menino soltou uma
exclamação e se virou para olhar ao Jack.
— Posso conduzi-lo?
— Durante uma das paradas te levarei até a locomotiva. O maquinista está esperando.
— Não é um pouco pequeno para isso? — perguntou Olívia.
— Estará bem. Ida estará com ele, e o maquinista o ajudará a manter a direção correta.
— Não posso acreditar que deixe que um menino...
Jack piscou.
— Livy, não há nada que não possam comprar algumas moedas.
— E você onde estará?
— Eu voltarei e contemplarei a paisagem com você.
Jack não pôde evitar pensar que era muito estranho olhar pela janela e não ver nada além de
campos verdes. Não havia casas, edifícios, escuridão nem sujeira. Não esperava que gostasse tanto.
Tinha que reconhecer que inclusive se pôs um pouco nervoso ao pensar que deixaria para trás o que
conhecia. Embora não pensava admitir ante ninguém que não fosse ele mesmo. Jack não sabia o que
proporcionava aquela viagem. Só sabia que queria fazer.
O apito soou e o trem começou a diminuir a marcha.
— Já vejo a seguinte estação — exclamou Livy.
— Muito bem — disse Jack. Levantou-se com Henry pego a seu corpo, como uma espécie de
trepadeira. — Em seguida volto. Vamos Ida.
— Tem certeza que não acontecerá nada? — perguntou Olívia.
— Completamente.
Ela ficou de pé e beijou Henry no rosto, envolvendo Jack em sua doce fragrância.
— Comporte-se bem, Henry.
— Sim, mamãe.
Jack saiu à plataforma e segurou a porta para que Ida passasse. Cruzaram o vagão descoberto,
onde os pobres, expostos aos elementos, viajavam por um quilômetro e meio. Um pouco mais
adiante, os serventes corriam pelos vagões de segunda classe para atender as necessidades de seus
senhores, que viajavam nos vagões de primeira.
— É muito generoso de sua parte me deixar viajar em seu vagão, senhor — disse Ida.
— Tolices. Eu não acredito que as pessoas que trabalham para mim sejam inferiores em nada.
— Tenho que dizer que os serventes comentam que jamais trabalharam para alguém tão refinado,
senhor.
— Bom, já veremos o que diz depois de ter subido a uma locomotiva.
— Mas eu tenho muita vontade. Morro de vontade de contar a meus irmãos.
Jack viu o maquinista, que os esperava junto à locomotiva. O homem passou os dedos pelo
escuro bigode; parecia querer se certificar que o deixava limpo.
— Senhor Gurney, este é o duque de Lovingdon. O homem fez uma leve reverencia.
— Sua excelência, está preparado para conduzir meu trem?
— Sim, senhor.
— Sua babá, Ida, ficará com ele.
O senhor Gurney tocou o chapéu.
— Senhora.
— Senhor.
Jack pensou que nunca antes tinha visto ida ruborizar-se.
— Voltarei a procurar o menino quando chegarmos à próxima estação.
— Muito bem, senhor — disse o maquinista.
Jack os deixou na locomotiva e observou como Henry abria os olhos como pratos. O preço do
vagão e ter pagado por aquele privilégio extra tinham parecido um pouco caros quando decidiu, mas
nesse momento pensou que havia valido a pena.
Enquanto voltava para seu vagão particular, foi deslizando coroas nos bolsos que ia encontrando.
Sim, uns dedos hábeis tinham muitas utilidades. Só lamentava era não estar ali para ver a cara que
poriam ao descobrir a inesperada moeda.
Abriu a porta de seu vagão, entrou e sorriu quando viu Olívia sentada no sofá.
— Aí é exatamente onde a imaginei quando adquiri o vagão.
Deixou a jaqueta em uma das poltronas e começou a desabotoar o colete.
— O que está fazendo? — perguntou Livy.
— Aproveitando o tempo que temos para ficar sozinhos antes que cheguemos à próxima parada.
— Não diz a sério.
— Jamais em minha vida falei mais a sério. — Lançou o lenço de pescoço sobre a poltrona sem
dar-se conta que escorregava pela jaqueta e caía ao chão.
O apito soou e o trem começou a cambalear sobre os trilhos.
— Suponho que um beijo ou dois... — começou a dizer ela.
— Já te expliquei mil vezes que eu não sou o tipo de homem que se conforma com um beijo.
— Mas... aqui?
— Ninguém pode nos ver. Ninguém nos ouvirá. É nossa pequena sala particular. A única
diferença é que vai sobre trilhos.
— Mas se move muito.
— Assim será mais divertido. — aproximou-se dela rindo e começou a mordiscar a orelha. —
Não sei por que discute comigo. Sabe que quer também.
— Sim quero — suspirou ela. — Sim quero. Mas minha roupa.... Suas duas palavras favoritas.
— Ninguém saberá.
Jack não podia acreditar que, a primeira vez que a viu, pensasse que tinha muitos botões para
incomodar-se em desabotoá-los. Tendo em conta o delicioso corpo que se escondia debaixo, o
esforço valia a pena, e graças à habilidade de seus dedos conseguia desabotoá-los muito depressa.
Não pensava tirar toda a roupa, porque não acreditava que tivessem tempo. Mas sim podia afrouxar
alguns laços para poder agarrar um seio e deslizar o polegar por aquele precioso mamilo escuro.
Com a boca sobre os lábios de Olívia: estava encantado em como ela abria a boca e deixava que sua
língua brincasse com a sua.
Enquanto a recostava um pouco no sofá, se deu conta que os dedos dela tinham adquirido tanta
habilidade como os seus, porque não se deu nem conta que tinha desabotoado os seus botões até
que começou a tirar a camisa.
— Não temos tempo para tirar isso tudo, meu amor — murmurou, antes de voltar a beijá-la.
Então, Jack desceu a mão e subiu a saia até que ficou ao redor de seu quadril. Deslizou os dedos
por sua coxa deleitando-se naquela aveludada sensação. Então subiu um pouco até o preciso lugar
onde aguardava sua calidez feminina.
Ela gemeu e se arqueou debaixo de seu corpo. Jack desabotoou as calças, liberando sua ereção
com um rugido.
A roupa não era nenhum obstáculo para Olívia, e Jack em seguida notou como deslizava as mãos
por sua pele. Nenhuma mulher o havia tocado como fazia ela, como se apreciasse como ninguém
cada centímetro de seu corpo. Uma noite, tinha beijado-o desde seus grandes e horríveis pés até a
feia cicatriz que tinha o rosto: uma lembrança da manhã em que Olívia o atacou com um atiçador.
Não importava por onde começasse a beijá-lo, sempre se detinha ali, e Jack se perguntou se aquele
sempre seria seu destino final, se aquela cicatriz seria um aviso de um tempo durante o que a
confiança entre os dois não tinha sido fácil, um tempo em que ele pensava que não chegariam a
alcançá-la.
Agora, era incapaz de recordar os motivos pelos que tinha sido tão reticente a haver algo entre
eles. Em alguns sentidos, parecia como se tudo isso tivesse ocorrido anos atrás; em outros, parecia
que eram só algumas horas. Tendo em conta a grande quantidade de irritantes relógios que tinha, o
tempo deveria ser a única coisa que permanecesse estável entre os dois, mas tudo parecia querer
mudar.
A opinião que tinha dela, o desejo que sentia por ela.
Normalmente, não era um homem impaciente. Na rua tinha aprendido que as maiores
recompensas se colhiam com paciência, mas tinha sentido muitíssimo em esperar que chegasse o
momento de levar Henry e Ida à locomotiva. Agora estava com a Olívia, os dois sozinhos, e o
tempo voltava a escapar.
Estava suplicando que a possuísse. Sua modesta Livy, sua formal Livy, estava animando-o para
que chegasse até o final. Naquele sofá onde mal havia espaço e Jack teve que pôr as pernas dela ao
redor de sua cintura e apoiar um pé no chão para poder dar um impulso e conseguir o ângulo
necessário, mas por fim pôde se deslizar em seu interior e sentir aquela cálida e sedosa umidade.
Investiu com força; o movimento do trem sussurrava nos limites de sua mente e proporcionava
um ritmo que ele aceitou em seguida. Por algum motivo, pensou nas pessoas que viajava no vagão
descoberto. Com os lábios sobre a boca de Livy para absorver seu grito enquanto seu corpo se
esticava, pulsava e palpitava ao redor de seu membro. Foi quanto necessitava. Jack se estirou para
trás e um intenso prazer quase doloroso o percorreu de pés a cabeça. Com Olívia sempre conseguia
mais do que tinha tido, mais do que tinha conhecido.
Com ela tudo era diferente. Tudo era melhor.
Quando apoiou o rosto em seu ombro ouviu o apito do trem, que indicava que logo chegariam a
próxima estação.
— Maldita seja.
A mão de Livy descansava junto a sua bochecha, lassa, como se não restasse nenhuma gota de
energia.
— Não sei se isto foi uma ideia muito boa ou um muito ruim — disse ela.
Jack se levantou e logo se agachou para roubar um rápido beijo.
— Uma boa ideia.
Olívia estava sentada sobre uma manta e observava como Henry, descalço, aproximava-se do mar
para molhar os pés e logo saía correndo de novo, enquanto Ida o vigiava.
— Teríamos que ter trazido o Pippin — disse Olívia.
— Traremos da próxima vez— respondeu Jack.
Estava deitado junto a ela, apoiado sobre um cotovelo e desfrutando de uma taça de vinho. Fazia
pouco que acabaram a comida e Jack estava decidido a não ter que carregar o vinho de volta para
casa.
— Por que não queria que tivesse um cão? — perguntou. Olívia observou a manta.
— Quando era menina tinha um cachorrinho. Amava-o muitíssimo. Uma manhã, me levantei e
estava morto. Eu não tinha consolo. Sempre pensei que meu irmão o envenenou.
— Avendale?
— Sim. Claro que naquela época não era Avendale. Embora sempre fosse um abusado. Não
posso dizer que me entristecesse que morreu. Entretanto, chorei. Não passo bem quando alguém
morre. — Olhou Jack. — E já que estamos nos fazendo perguntas pessoais, por que se preocupa
tanto com dinheiro?
— Perguntar por um cão não me parecia tão pessoal.
— O dinheiro é tudo para você — insistiu ela.
— Na realidade, não é, porque se fosse assim, não teríamos o vagão particular para poder escapar
de vez em quando.
— Mas sim que te parece muito importante.
— É obvio. Para os que crescemos sem ele, o dinheiro é muito importante. Permite se proteger
das pessoas que querem te fazer mal.
— Quem quer fazer mal a você?
Ele deu voltas ao vinho em sua taça.
— Agora ninguém mais poderá me fazer mal alguma vez. — Olhou para o mar, onde Henry
estava tentando malhar a Ida, que ria. — O pai dele prestava muita atenção nele.
— Não. No dia que nasceu, me agradeceu por ter dado um herdeiro, mas agora me dou conta
que provavelmente estava me agradecendo porque já não tinha que voltar para minha cama.
Jack virou a cabeça para olhá-la.
— Não diz a sério.
— Acredito que sim. Ao olhá-lo com a perspectiva adequada, custa-me pouco me dar conta que
era um homem muito triste.
— Eu pensei o mesmo quando o conheci. Olívia o olhou surpresa.
— Conheceu em seu clube?
Jack agarrou a mão e beijou os dedos.
— Não, faz muitos anos, no jardim dos Claybourne. Acredito que eram amigos e tinha ido visitar
Luke.
— Parece-me que conhecia todos os lordes.
— Isso não é estranho?
— Não, na realidade não. Do que falaram?
— Eu estava pensando em deixar Claybourne e viver por minha conta.
Ele me convenceu que não o fizesse.
— Por que você queria partir?
— Aquele ancião, o avô de Luke, exigia perfeição. Era muito exigente, muito mais do que Feagan
foi. Naquele momento, eu não apreciava nada do que tentava me ensinar e suspeito que Henry
tampouco apreciará nada do que eu ensine.
Olívia olhou seu filho.
— Deitar-se no chão e brincar?
— A tirar da vida o que puder enquanto puder.
Ela voltou a olhar para ele e afastou o cabelo da testa.
— Acredito que essa é uma filosofia admirável.
— Vá, há algo em mim que te parece admirável? Então, o inferno não será mais que puro gelo
quando chegar ali.
Olívia se inclinou para ele e disse:
— Quando voltarmos, Henry irá dirigir novamente? Jack esboçou um lento e sensual sorriso.
— Suponho que poderei fazer alguma coisa.
Capítulo Vinte

— Eu gosto de seu vestido — disse Jack enquanto mordiscava a orelha de Livy na biblioteca. —
Estou impaciente para tirar isso.
Faria-o assim que acabasse o jantar. Já fazia quase uma semana de sua breve viagem de trem, e
embora Livy vestisse de negro durante o dia, cada noite, antes do jantar, surpreendia-o com um
vestido diferente. Ele sempre esperava sua aparição, ansioso e adorava vê-la sem o rigoroso luto.
Aquela noite o vestido era vermelho. Estava arrebatadora. Jack pensou que no futuro só deveria
comprar roupa dessa cor. Deslizou os lábios pelo pescoço de Olívia. Ela gemeu e o som ameaçou
debilitando a intenção que tinha Jack de deixá-la ter posto o vestido pelo menos durante o jantar.
— Acredito que os serventes estão começando a murmurar — disse ela.
— Pago o suficiente para que não digam nenhuma palavra, nem sequer entre eles.
Jack jamais se expôs a pagar alguém para que não falasse, mas para a Olívia a discrição era muito
importante. Era incrível como, de alguma forma, o que era importante para ela estava começando a
ser importante também para ele.
Olívia se inclinou para trás.
— Não fomos muito discretos.
— Lamento discordar. Só o que sabem é que de noite não se veste de negro. Eu não te persegui
pela casa, embora deva confessar que pensei muitas vezes. Talvez esta noite não vá ao clube e
quando os serventes forem dormir...
Ela o golpeou no ombro.
— Falo a sério, Jack. O que começou sendo uma noite de indiscrição se converteu em algo que
está me consumindo. Não estou me comportando como uma viúva.
— Em público sim. Em particular não é assunto de ninguém.
Olívia deslizou os dedos com doçura sobre a cicatriz que ele tinha no rosto.
— Suponho que me preocupa pensar que Lovingdon mereceria um pouco mais de mim, agora
que morreu.
— E você merecia muito mais dele quando estava vivo. Esse homem não te valorizava. —
Deslizou a boca por cima do ombro nu de Olívia. — Tem que admitir que esse não é um de meus
defeitos.
O suave gemido dela o incitou. Não havia nada que fazer. Não podia esperar até depois do jantar.
Agarrou-a nos braços e a sentou sobre a escrivaninha.
— O que faz? — perguntou Olívia com a respiração agitada e rodeando-o com os braços. —
Logo virão nos avisar que o jantar está preparado.
— Eu tenho apetite de outra coisa — sussurrou. — Acredito que informarei Brittles que esta
noite não vamos jantar. Já comeremos na cama mais tarde. O que te parece?
— Estupendo. Absolutamente...
Alguém bateu na porta. Olívia sufocou um grito e, enquanto descia da escrivaninha, afastou Jack
com tanta força que este quase caiu. Agarrou-a pelo pulso para que ambos pudessem manter o
equilíbrio.
— Relaxe — ordenou.
— Quem pode ser? É muito cedo para jantar.
— Não tenho nem ideia.
Soltou-a e a observou divertido enquanto ela recuperava a compostura. Entretanto, apesar de seu
esforço, continuava parecendo uma mulher a que tinham estado a ponto de fazer o amor
apaixonadamente. Pelo bem e a comodidade de Olívia decidiu que era melhor não mencionar. As
coisas tinham mudado muito desde aquela primeira noite, quando o divertia tanto provocá-la.
Olívia umedeceu os lábios e levantou o queixo.
— Estou preparada.
Jack se dirigiu para a porta.
— Entre.
Brittles abriu a porta.
— Lorde Briarwood...
— Me fez esperar muito — rugiu o primo de Lovingdon enquanto entrava na biblioteca sem
deixar que Brittles acabasse de anunciá-lo devidamente.
O mordomo pareceu escandalizado. Jack fez um gesto com a mão para que se retirasse e Brittles
assentiu, fechando a porta atrás de si.
Briarwood olhou Olívia com desdém.
— Teria que ter imaginado que se converteria em sua prostituta.
O punho de Jack impactou na mandíbula de Briarwood fazendo-o cair sobre o tapete com um
satisfatório golpe.
— Eu que você tentaria cuidar das palavras.
O visconde esfregou a mandíbula e o olhou do chão.
— Sim, conheço muito bem sua reputação. Já sei que cuida muito bem de seus trabalhadores.
— Diz como se isso fosse um defeito — interveio Olívia.
— Este homem é um descarado, sua moral é questionável. — cambaleou até que conseguiu ficar
em pé; então esquivou de Jack até ficar frente a Olívia. — Só o que procura é pôr todo mundo a seu
nível. Olhe-se. Está de luto e parece uma prostituta da rua.
— Será melhor que retire essas acusações agora mesmo ou voltará a sentir meu punho — disse
Jack.
— Assim é como você resolve as coisas, não é mesmo? — Briarwood não se esforçou para
esconder seu desprezo. — É um bárbaro. Não tem nem ideia de como se comporta um homem
civilizado.
— Suponho que o fato de que esteja tendo dentes é um claro indício que sim sei me comportar
— respondeu Jack.
O outro virou e se dirigiu a Olívia.
— Está par que tem crianças em seu clube?
— Para falar a verdade, sim, sei. Dá a eles um emprego e um lugar seguro onde viver. Uma
atitude admirável de sua parte.
— Não é natural que um homem tenha tanto interesse por crianças.
— Que insinua? — perguntou ela.
— Estou preocupado pelo bem-estar de Henry. Dizem que Dodger abusa deles.
— Dizem? Estou convencido que esses rumores procedem de você — disse Jack. — Deveria ir...
— Jamais fez mal ao Henry — o interrompeu de repente Olívia.
— Está certa que saberia se o fizesse?
Ela olhou Jack e este pôde sentir o peso da dúvida em seu olhar; sabia que estava recordando que
não havia percebido que Helen batia em seu filho.
Olívia assentiu com brutalidade.
— Sim, se o fizesse, saberia. E sei que nunca faria.
A convicção de suas palavras aliviou a pressão que sentia no peito de Jack.
— Não poderá por dúvidas em seu coração, Briarwood. Não sei o que tenta conseguir com essas
falsas acusações...
— O menino não está a salvo aqui. Stanford está de acordo comigo.
— Rupert Stanford? — perguntou Olívia.
— Sim. Meu primo e eu estamos indignados; a Scotland Yard está nos investigando. O inspetor
não encontrará nada inapropriado relacionado com nenhum de nós, embora não se possa dizer o
mesmo de você, Dodger. A duquesa aqui presente é uma prova. — Voltou a dirigir-se a Olívia. —
Olhe o que fez com você.
Jack agarrou Briarwood pelo braço.
— Vá agora mesmo. Ela levantou a mão.
— Espere. Deixe que se explique.
— Não tem nada importante que...
— Então me deixe escutá-lo.
O visconde conseguiu soltar o braço e ajeitou a jaqueta, enquanto Jack se debatia entre seguir
insistindo em que se fosse ou dar a Livy a oportunidade de demonstrar... o que? Que acreditava nele
e não em Briarwood? Por outra parte, ele precisava saber o que se estava enfrentando.
— Este homem conseguiu que se esqueça do lugar que ocupa na sociedade — disse Briarwood.
— Está de luto e, entretanto, se veste de vermelho. Não está casada com ele, mas daqui posso ver
perfeitamente as zonas de sua pele por onde deslizou sua áspera barba. Se foi capaz de fazer com
que você, uma mulher de moral irrepreensível, aceite sua pecaminosa forma de vida, imagine o que
poderá fazer com um menino tão impressionável como Henry. Só me preocupo com seu filho, que
receba a educação adequada para um lorde. Eu posso me encarregar disso. E se não me apoiar neste
assunto, irei aos tribunais, irei ao Parlamento. Céu santo, irei à rainha se for necessário. Mas minha
consciência não permitirá que me mantenha à margem e deixe que este demônio...
— Não acredito que tenha nenhuma outra alternativa — o interrompeu Jack com tranquilidade.
Tanto o visconde como Livy voltaram a cabeça para olhá-lo.
— Pode aduzir todas as boas intenções do mundo e todas as preocupações pela perfeita e
moralmente correta educação de Henry que queira, Briarwood, mas tanto você como eu sabemos
que no fundo deste assunto só o que tem é seu dinheiro. Não deixarei que me chantageie.
O outro ficou direito.
— Asseguro, senhor, que só me preocupo com o bem-estar do filho de meu primo. Arruinarei
seu bom nome...
— Tal como você mesmo apontou em tantas ocasiões, eu não tenho um bom nome. E minha
reputação significa para mim menos que meu dinheiro. Ameace quanto quiser, não penso pagar
nada.
Briarwood estava perdendo a compostura e Jack não tinha nenhuma dúvida que tinha acertado
totalmente com o motivo que o tinha levado a visitá-los.
— Amanhã pela manhã irei ver Beckwith. Se mudar de ideia...
— Não mudarei — respondeu Jack. O visconde olhou então a Olívia.
— Pense bem. Juntos podemos arrumar tudo isso. Abandonou o quarto sem dizer uma palavra
mais.
— Isto é uma chantagem? Isso é o que está fazendo? — perguntou ela em voz baixa.
Jack a olhou.
— Sim.
— Por que não paga e acaba com esses depravados rumores?
— Suas acusações são falsas. Se pagasse, estaria dando crédito e só o que conseguiria seria que
viesse me pedir mais. Isto acabaria se convertendo em um círculo vicioso e ao final não teríamos
nenhuma saída.
— Mas o que acontecerá se começar a arejar minhas indiscrições?
— Não ganharemos nada pagando.
— Ganharemos seu silêncio.
— Não penso deixar que me chantageie.
— Briarwood pensava que você tinha chantageado Lovingdon. Acreditava que esse era o motivo
pelo que te nomeou tutor de Henry.
— Ao que parece, o visconde tem uma estranha facilidade para enganar-se.
— Você não gosta do visconde.
— Não muito.
Olívia observou Jack durante um momento e logo disse:
— Sei que jamais faria mal ao Henry.
— Me alegro. — aproximou-se e ela se esquivou. Ao que parecia, tinha estado prestando mais
atenção do que ele acreditava, enquanto ensinava Henry as melhores formas de esquivar a alguém.
— Mas... — Olívia começou a falar e logo parou.
— Mas?
Virou-se para olhá-lo nos olhos.
— Mas quanto a mim, por muito que me incomode admitir, Briarwood tem razão. Meu
comportamento foi abominável.
— Livy...
— Não. Já sei que tem o poder de me convencer do contrário. Se me tocar ou me beijar, seguirei
você a qualquer lugar ao que queira me levar. Olhe-me. — Levantou os braços. — Faz apenas um
mês que estou de luto e aqui me tem vestida de vermelho. Deitando-me com um homem com o que
não estou casada. Pelo amor de Deus.... Olhe o que fizemos no trem!
— Livy, isso é exatamente o que ele pretendia, te fazer vacilar, conseguir que duvidasse de mim.
Assim só dá crédito a sua postura.
— Seduziu-me para fortalecer a tua?
Jack se virou, aproximou-se de sua mesa e se serviu um copo de uísque.
— Não penso responder essa pergunta.
— Significo algo para você ou só sou uma aventura?
— Está caindo em sua armadilha.
— Já tenho caído muitas vezes na tua, não? O que estamos fazendo Jack?
De verdade ela esperava que ele respondesse? De verdade acreditava que Jack sabia? Sim, era uma
aventura, mas também era algo mais e ele não sabia como definir sua relação. Era incapaz de
imaginar sua vida sem ela. Mas tampouco podia imaginar-se o reconhecendo.
— Ainda quer que me case com outro?
Queria? Só de pensar que outro homem pudesse tocá-la, ficava feito uma fúria. Jack nunca tinha
tido nenhum problema em compartilhar às mulheres. Por que ela? Por que não podia suportar a
ideia de que estivesse com outro?
— Então, o que? — perguntou Olívia como se estivesse cansando de esperar a que ele
respondesse a uma pergunta relativamente singela. — Considera-me sua amante? Não acredito.
Temo que Briarwood tenha razão: esqueci quem sou. — Ouviu-a tragar saliva. — Jack, amanhã eu
gostaria de levar Henry para o campo — disse com toda tranquilidade.
— Não.
— Por favor, não me obrigue a ir sozinha.
Sozinha. Ela ia deixá-lo com ou sem Henry. Deus.... Que tivesse tanta vontade de desfazer-se
dele para ir sem seu filho já dizia tudo. Olhou-a por cima do ombro. A tristeza que viu em seu olhar
quase o fez cair de joelhos. Tristeza e arrependimento. Jack tinha ensinado-a a desfrutar dos prazeres
imediatos, tinha animado a entregar-se a eles sem pensar no custo. Agora, Olívia estava pagando um
preço muito mais alto do que ele jamais pagaria.
— Vou ao clube. — Passou junto a ela e logo parou. — Quero que Henry e você tenham ido
antes que volte amanhã pela manhã. E leve o maldito cão.
Estava quase na porta quando ouviu o primeiro soluço. Teve que recorrer a toda sua força de
vontade para não se deter.

Henry não estava nem a metade emocionado ante a ideia de ir ao campo do que Olívia esperava
que estivesse. Porque Jack não ia com eles e Henry o adorava.
Ela não podia culpá-lo. Quando queria, podia ser realmente encantador e parecia tratar muito
bem com seu filho. Seria por todos aqueles meninos que tinha no clube?
Estava sentada em uma cadeira, junto à cama de Henry, e lia sem ver o que lia; não conseguia
despertar o interesse do menino e o motivo não era que estivesse cansado. Olívia sabia que não
estava. Cada vez que ouvia um ruído na casa, voltava a cabeça em direção à porta do quarto, como
se estivesse esperando, desejando, que aparecesse Jack e dissesse que não tinha que ir para o campo.
Tinha amado seu pai a metade do que parecia amar Jack?
Fechou o livro. Henry a olhou com culpa. Olívia não acreditava que pudesse dormir e, se não
dormisse, pela manhã estaria de mau humor quando fossem de viagem.
— Acho que vou sair e passear pelo jardim — disse. Já estava escuro, mas ainda não era muito
tarde. Ela tampouco tinha vontades de dormir e não queria estar sozinha. — Você gostaria de vir
comigo?
O menino assentiu.
— Posso levar o Pippin?
Olívia já nem se lembrava da última vez que Henry tinha gaguejado.
— Claro. — dirigiu-se a Ida. — Vamos dar um passeio pelo jardim.
— Em seguida o prepararei, sua excelência.
Poucos minutos depois, Henry e ela passeavam pelo jardim. Tinham acendido algumas das tochas
e o caminho se via o suficientemente bem.
— Acredito que Pippin gostará do campo, não? — perguntou. Podia ver seu filho assentir.
— Por que Jack não vem conosco?
— Tem muito trabalho a fazer aqui. — agachou-se diante dele. — Henry, tem que entender...
Uma sombra emergiu da escuridão.
Capítulo Vinte e Um

Maldição! O que pretendia que ele fizesse? Declarar amor eterno? Pedir sua mão em casamento?
Céu santo, mas se ela era uma duquesa. Olívia atuava como se esquecesse de quem era ela e quem
era ele. Jack não tinha esquecido. Não poderia limpar suas origens nem com todo o ouro do mundo;
jamais conseguiria que casar-se com Olívia fosse aceitável.
Tampouco é que ele tenha pensado em se casar.
Entretanto, era incapaz de imaginar a casa sem Olívia. Não podia aceitar não ouvir o eco de seus
passos aproximando-se pelo corredor para comentar com ele uma coisa ou outra. Nem que seu
perfume, procedente de seu quarto, deixasse de assaltá-lo através do quarto de banho; não podia
imaginar que deixasse de estar recostada no outro travesseiro de sua cama. Não queria pensar nos
jantares em silêncio, a ausência de risadas, a falta de sorrisos.
Ele, que sempre tinha desejado só a próxima moeda, agora desejava algo mais. Uma mulher.
Pensou que daria todo seu dinheiro em troca de um só de seus sorrisos.
Alguém bateu na porta de seu escritório e Jack franziu o cenho. Não queria companhia, mas
antes que pudesse dizer a quem quer que fosse que não estava em casa — miúda desculpa tola, — a
porta se abriu e Swindler entrou no escritório.
— Frannie me disse que te encontraria aqui.
Sem dúvida, depois de passar um bom momento falando com ela. Jack não sabia por que aquele
homem não se decidia de uma vez declarar seu amor a ela, pedir que se casasse com ele e acabar
com tudo aquilo de uma vez.
Por outro lado, talvez ele tivesse que perguntar o mesmo com respeito à Olívia. O que seria pior
que podia acontecer? Que dissesse não e ele a mandasse ao campo.
— Está bem? — perguntou Swindler.
— Claro. — Jack pegou um copo. Encheu-o de uísque, deixou-o frente a Jim enquanto ele se
sentava, e logo voltou a encher o seu. — Chega um pouco tarde para me informar que Briarwood
está fazendo correr rumores sobre mim.
— Sinto muito, mas há muitas coisas que tive que investigar ultimamente e você não é o único
que me paga um salário.
— Deixe seu trabalho e trabalhe só para mim em exclusividade. Eu te pagarei mais que a
Scotland Yard.
— Muito obrigado, mas eu gosto de meu trabalho. Jack encolheu os ombros.
— Diga-me, o que é que sabe? Soube algo de minha mãe?
— Não acredito que vá averiguar nada sobre esse assunto. Mas quanto ao outro que me pediu,
sobre se Lovingdon tinha alguma afeição perversa...
Houve algo na voz do Swindler que fez que Jack se sentasse mais direito em sua poltrona.
— Sim?
— Não encontrei nada sobre ele, mas seu primo não me dá boa impressão.
— Briarwood?
— Rupert Stanford. Parece um recluso. Segundo sua donzela, à única faxineira que tinha até que
a despediu há dois dias, tinha virtualmente escravizado-a; pelo visto, é obcecado com limpeza.
Esteve com ele durante quase vinte anos. Diz que durante esse tempo acolheu uns doze meninos.
Sempre de um em um. Aparentemente, com a intenção de encontra uma casa adequada. De repente,
um dia, quando a mulher chegava para trabalhar, o menino já não estava. Ela sempre pensou que
Stanford tinha completado sua promessa e que tinha encontrado algum lugar onde viver.
— E poderia ser assim — respondeu Jack, apesar de não se sentir muito cômodo com tudo
aquilo.
— Poderia tê-lo feito, sim. Não tenho nenhuma prova do contrário, mas me parece preocupante.
— Talvez devamos fazer uma visita.
A casa não era particularmente grande, mas era vagamente familiar. Seria o lugar que tinha estado
procurando quando esteve percorrendo as ruas sem rumo? Jack recordava de casa muito maior, mas
para um menino da rua, o menino que ele foi um dia, uma casa como aquela teria parecido um
autêntico palácio. Swindler bateu na porta.
— Não parece que haja ninguém — comentou.
— Quero vê-la por dentro.
A luz de um dos abajures que ardiam na entrada projetou um tênue brilho no rosto de Jim, que
olhou a Jack arqueando a sobrancelha. Ele ficou olhando fixamente até que seu amigo suspirou.
— Quer fazer você as honras ou as faço eu? Jack tremia as mãos.
— Faça você.
— Seu condutor e seu lacaio...
— São discretos.
— Isso espero.
Swindler rebuscou em seu bolso até que encontrou suas ferramentas. Jack se agachou um pouco
para encobrir com seu corpo aquela ação ilegal. Então, ouviu o clique e a porta se abriu com um
sinistro rangido.
Entraram na casa e os recebeu um intenso aroma de sabão e a cera para móveis. Acenderam um
fósforo. Swindler encontrou um abajur e se aproximou para acendê-lo.
— O que é o que estamos procurando exatamente? — perguntou.
— Um dormitório.
— Pois suponho que estará no andar de acima.
Jack assentiu e se dirigiu à escada. Jim o seguiu. O abajur que este levava projetava um brilho
horripilante: parecia perseguir as negras sombras da casa e ir revelando as coisas uma a uma. Para
Jack nada era particularmente familiar.
Então chegaram ao patamar do piso de acima. Só havia quatro portas.
Jack abriu a segunda da direita.
E de repente voltou há ter cinco anos: sentia falta da sua mãe, mas estava iludido ante a
perspectiva de ter uma cama onde dormir. Era inverno. Um fogo ardia na chaminé e o quarto estava
quente e acolhedor. Sua mãe tinha começado a falar muito sobre ir a um lugar chamado céu. Jack
decidiu que aquele quarto devia ser esse lugar.
— Vamos tomar um banho, certo?
Jack fechou os olhos ante as lembranças. Stanford teria conhecido sua mãe quando trabalhava em
casa dos Lovingdon? Esforçou-se para lembrar...
— Senhorita Dawkins?
Ela agarrava Jack pela mão. Era de noite e estavam na rua. Virou-se e fez uma reverência.
— Senhor Stanford.
— O que temos aqui?
—É meu filho. Jack.
— Jack? Jack? Está bem?
Abriu os olhos ao ouvir Swindler e entrou no quarto.
— Conversaram. Eu não podia ouvir o que diziam. Levou-nos a um botequim, onde comemos
um maravilhoso bolo de carne. Continuaram conversando. Ele a segurava pela mão todo o tempo.
— Do que está falando? — perguntou Jim.
Ele negou com a cabeça. Não podia explicar o inexplicável, mas recordava que, quando se foram,
Stanford deu à sua mãe o saquinho de moedas e ela deu a Jack o medalhão. E então Stanford o tinha
levado ali.
Aproximou-se da chaminé, agachou-se e observou o buraco que tinha utilizado para escapar. De
algum modo, conseguiu afastar as partes de carvão e queimou os pés e as mãos ao subir. Essa foi a
primeira lição que aprendeu sobre o que uma pessoa podia chegar a fazer se quisesse algo com
vontade suficiente. Ele teria passado por qualquer sofrimento para fugir dali.
Virou-se e observou a cama com quatro colunas, decoradas com elaboradas parreiras esculpidas
na madeira. Quando recordou o que tinha acontecido ali, revolveu o estômago.
Voltou onde estava Swindler, pegou o abajur e o jogou sobre a cama.
As chamas devoraram a colcha em seguida.
— Céu santo! Ficou louco? — perguntou Jim. Jack já estava de caminho à porta.
— Temos que encontrar Stanford.
Voltaram para o clube, embora não tão rápido como ele tivesse querido, porque Swindler insistiu
em alertar à brigada anti-incêndio para que pudessem sufocar o fogo antes que se estendesse além da
residência de Stanford. Jack se consolou pensando que, pelo menos, tinha conseguido destruir
aquela cama.
— Suponho que é consciente de que não posso prendê-lo — disse Jim quando chegaram ao
escritório de Jack.
— A sodomia é contra a lei.
— Mas não tenho ninguém que confirme.
— Eu confirmarei.
Swindler afastou o olhar, como se de repente se sentisse muito incômodo. Jack supôs que uma
coisa era suspeitar de algo e outra muito diferente era ter a confirmação.
— Acredito que o melhor será que nós mesmos solucionemos — disse o inspetor muito devagar.
— Já fizemos outras vezes. Estou certo que terá algum enforcamento imerecido programado.
— Faria um intercâmbio de prisioneiros? E não acha que alguém se daria conta?
— Poderia acertá-lo até que ficasse irreconhecível. Sei que te produziria bastante satisfação.
Jack assentiu.
— A verdade é que sim.
A porta se abriu de repente e Thomas Lark, um dos meninos de mais idade que ajudavam na sala
de jogo, entrou a toda pressa.
— Thomas, deveria bater na porta — disse Jack.
— Sim, senhor, já sei, mas um cavalheiro acaba de trazer isto e disse que era urgente.
Jack agarrou envelope do menino. Dentro encontrou uma mensagem que acelerou o coração.
Senhor Dodger, por favor, volte para a residência imediatamente.
Ocorreu uma desgraça e necessitamos urgentemente do senhor.
Seu leal servente, Brittles
— Graças a Deus que já chegou, senhor — disse o mordomo a toda pressa assim que Jack
entrou na residência, junto a Swindler.
— O que acontece?
— É a duquesa, senhor. Desapareceu.
— Isso é tudo? Ia levar Henry ao campo. Suponho que não pôde esperar até manhã pela manhã
para desfazer-se de mim...
— Não, senhor, Henry está aqui.
Jack endureceu.
— Ela não iria sem o menino.
— Exato, senhor. Ela e seu filho estavam passeando pelo jardim quando, segundo o jovem
duque, apareceu alguém dentre as sombras. Ele conseguiu escapar, mas quando conseguimos
entender o que tentava nos dizer, pois gaguejava como nunca, a duquesa tinha desaparecido.
— Onde está Henry agora?
— Em seu quarto, senhor.
Jack correu escada acima, consciente que Swindler e Brittles o seguiam de perto. Pela primeira
vez, os passos de seu amigo policial não eram silenciosos. Jack não gostou nem de pensar.
Entrou a toda pressa no quarto de Henry. Ida estava sentada em uma cadeira de balanço com o
menino no colo, que abraçava ao seu cão. Henry saltou ao chão e Pippin o fez atrás dele. Antes que
Jack pudesse reagir, o menino percorreu a curta distância que os separava e abraçou suas pernas com
força.
— Eu fiz o que me ensinou. Esquivei-me — murmurou, com a cara apertada contra as coxas de
Jack.
Ele se agachou e abraçou ao pequeno.
— E fez muito bem, Henry.
— Cre-creio que levou a mamãe. — foi para trás com as bochechas cheias de lágrimas. — Te-
teria que ter en-ensinado a mamãe a é-esquivar.
— Sim teria que ter feito. Sabe quem a levou? Henry assentiu rapidamente com a cabeça.
— O primo Rupert. Papai me disse que nu-nunca fosse a nen-nenhum nenhum lugar com o
primo Ru-rupert.
Sabia o duque o que Jack acabava de descobrir? Era Rupert Stanford a pessoa de quem devia
proteger o Henry? Se Lovingdon tinha visto como protegia os meninos de seu clube, tudo
encaixava. Mas não poderia ter deixado alguma maldita mensagem?
— Te machucou? — perguntou Jack. Henry negou com a cabeça.
— Mas quando saí correndo ouvi mamãe gritar. Acho que bateu nela.
Não teria que ter es-escapado.
— Não, não, você fez tudo o certo, porque assim agora só tenho que preocupar com sua mãe e
não por você.
— Salvará ela?
— É obvio. — Embora não tivesse nem ideia de onde devia começar.
Graças a Deus, Swindler estava ali com ele.
— Senhor, não quero interromper — disse Brittles, sustentando um envelope no que figurava o
nome do Jack. — Mas acabam de trazer isto.
Arrancou o envelope das mãos e o abriu. A mensagem era clara e concisa.
Tenho à duquesa. Vem sozinho e me traga cem mil libras antes da alvorada ou morrerá. Estaremos no piso de
cima, última esquina.
Jack conhecia muito bem a endereço que leu ao pé da nota. Conhecia aquelas ruas de cor.

— Onde estamos? — perguntou Olívia.


Estava sentada no chão, em um canto de uma sala, com as mãos atadas às costas. Estava se
esforçando muito para não se deixar superar pelo medo. Alguém tinha dado um golpe na cabeça e
despertou ali. A boca tinha sabor de láudano e tinha a mente imprecisa. Queria dormir, mas sabia
que havia um motivo pelo que não devia fazê-lo.
— Na pior zona de Londres. — O áspero sussurro procedia de outra dos escuros cantos. Ali,
junto à janela, Olívia podia distinguir a silhueta de um homem na penumbra. Na sala ardia um só
abajur que não ajudava a ver nada. Iluminava muito mais a ela que a ele. — Aqui é muito mais fácil
resolver qualquer assunto pouco apropriado. Disse ao senhor Dodger que me traga cem mil libras
ou morrerá.
Olívia percebeu em sua voz que falava completamente a sério. O pânico ameaçou apoderando-se
dela.
— Se não fizer o que pedi, matarei você e depois irei atrás de seu filho.
— Não, Henry não. — Recordou que Henry estava com ela. — Onde está?
— Esse maldito menino conseguiu escapar.
Olívia se sentiu aliviada. Recordava vagamente ter visto Henry correndo. Jack não se separaria de
suas preciosas moedas por ela, mas não tinha nenhuma dúvida que protegeria Henry.
— Dodger não virá — disse.
— Sim virá.
Olívia começou a rir, mas tentou controlar-se para não parecer uma histérica.
— Pediu dinheiro a ele. É a única coisa da qual jamais se desprenderá.
— Então, você pagará as desafortunadas consequências.
De repente, moveu-se rapidamente e se agachou a seu lado. Olívia sentiu algo inquietantemente
frio sob o queixo.
— É uma pistola? — sussurrou.
— Sim, e tenho muito boa pontaria. Seu tempo terminará à alvorada. Então, para seu assombro,
o reconheceu.
— Stanford? Rupert Stanford?
— Surpreende-me que se lembre de mim. Seu marido não era muito amigo de me receber em sua
casa.
— Por que está fazendo isto?
— Porque o tutor de seu filho esteve me investigando, e estão saindo à luz certos assuntos que eu
não desejava tornar públicos. Preciso escapar e não tenho o dinheiro necessário para fazer.
— Por isso me sequestrou?
— Vi como te olhava quando a levou ao clube. Sim, eu também estava escondido. Tem alguns
meninos muito bonitos trabalhando para ele, mas tanto Dodger como seus empregados os vigiam
como se fossem as malditas joias da coroa. E os meninos têm tanta confiança em si mesmo que é
muito difícil enganá-los. Mas estou certo que poderei encontrar o que preciso no lugar aonde vou.
— Céu santo, é um monstro!
— Sim, sou.
Afastou-se dela. Olívia tentou fazê-lo tropeçar com suas pernas, mas ele se esquivou com
facilidade.
— Tome cuidado, duquesa. Não costumo machucar mulheres, mas poderia fazer uma exceção.

Jack conhecia aquelas ruas como a palma de sua mão. Ali viviam muitos homens maus, mas
também muitos homens bons. Levava cem mil libras em um saco que segurava com firmeza com
uma mão e uma lanterna na outra enquanto caminhava entre os detritos da sociedade sem nada que
temer, pois levava uma faca na bota, uma pistola no bolso e, na mão do saco, uma bengala que
ocultava uma espada.
O sequestrador havia dito que fosse sozinho. Não havia dito nada para que fosse desarmado, o
qual fez pensar que Rupert Stanford não estava muito familiarizado com aquelas zonas de Londres.
Conhecia-as o bastante bem para escolher um lugar onde reunir-se com alguém, mas não tanto para
saber que ali a maioria das pessoas andava armada. Ou talvez soubesse muito pouco sobre Jack e
não tinha ideia de onde se estava colocando.
Jack não era nenhum parvo. Não achava muito provável que Stanford fosse deixá-los partir com
vida uma vez que tivesse seu dinheiro.
Nas ruas havia luz suficiente para que pudesse ver quem o seguia com apenas virar um pouco a
cabeça. As sombras sempre tinham sido muito boas amigas e aquela noite não era uma exceção.
Serviam para esconder perfeitamente Luke e Swindler, a uma discreta distância. Graves e Frannie
passeavam sem esconder-se, fingindo que era um casal em busca de um lugar para entregar-se a uma
aventura ilícita. Quando Jack os tinha necessitado, a turma do Feagan tinha respondido à sua
chamada.
Por fim chegou ao edifício abandonado; parecia que is cair assim que soprasse um pouco de
vento. Quando fazia mal tempo, as pessoas se refugiavam entre suas paredes, mas nas noites claras
não valia a pena arriscar-se. Seria muito difícil chegar ao terceiro piso sem ser visto. Jack supôs que
essa era a ideia.
Penetrou no interior com muito cuidado; os ratos fugiam ante ele. Jack sabia que voltariam.
Sempre voltavam. Elevou a lanterna e olhou a seu redor.
Nunca tinha estado naquele lugar, mas de todos os modos era familiar. Ali havia pouca diferencia
entre um edifício e outro.
Começou a subir a escada. Os degraus rangiam sob seus pés. Não tinha nenhum sentido tentar
não fazer ruído. Subiu a toda pressa com o coração acelerado.
— Livy!
Não ouviu nada. Podia estar amordaçada, ou morta; podia...
— Jack!
Cambaleou. Sentiu-se tão aliviado que quase falharam as pernas, ao mesmo tempo em que recebia
uma injeção de energia. Apressou-se escada acima; só parou quando alcançou o patamar e foi em
direção ao corredor. Viu que de uma das salas saía uma luz tênue. Podia ser um truque, assim
diminuiu a marcha e começou a levantar a lanterna para poder ver melhor.
— Livy!
— Estamos aqui!
Ela e Rupert Stanford. Nem podia suportar pensar que aquele bastardo a havia tocado, mas se
esforçou para controlar sua fúria, pois devia manter a cabeça fria.
Avançava devagar, com cautela.
Livy estava de pé, em um canto. Aguardava junto à janela, ao lado de Stanford, e Jack se
perguntou se este teria estado observando para ver como chegava. Não importava. Não teria visto
nada.
Assim que entrou na sala, um fedor assaltou a Jack. Qualquer outra pessoa o teria considerado
uma fragrância. Era um aroma muito perfumado, indubitavelmente masculino, mas Jack sentiu
revolver o estômago quando o surpreenderam as lembranças: esse aroma deslizando junto a ele na
cama quando era um menino, para oferecer consolo antes de machucá-lo.
Levantou a lanterna e viu o brilho nos olhos que o olhavam, pareciam os olhos de um rato saindo
de uma boca de lobo. Jack ficou paralisado. Pensava que estava preparado para o encontro, mas de
repente voltava a ter cinco anos, estava muito assustado e se sentia envergonhado.
Esforçou-se para se concentrar no presente.
— Rupert Stanford.
— Diz como se me conhecesse.
— E nos conhecemos. Minha mãe era Emily Dawkins.
— É Jack Dawkins? — Stanford riu. — Que pequeno é o mundo. Mudou o nome..., que esperto.
Eu farei o mesmo agora que meu intrometido primo e seu desconfiado inspetor descobriram meu
negócio.
— Negócio? Chama de negócio abusar de crianças?
Ouviu como Livy se sobressaltava ao escutar essa revelação.
— Meu primo me contou tudo sobre você e os meninos que tem. Acredito que nos parecemos
muito...
— Eu não tenho nada a ver contigo — rugiu Jack. — Eu os protejo.
— Tal como fiz contigo. Sua mãe estava morrendo, a pobre. Eu dei algumas moedas para facilitar
as coisas para ela e te acolhi para que não tivesse que preocupar-se com você. Mas conseguiu
escapar. Foi o único que conseguiu fugir.
Havia algo na voz daquele homem... Jack sabia que quanto mais tempo conseguisse que ele
falasse, maior seria sua vantagem. Tinha que dar tempo aos outros para que ocupassem suas
posições.
— O único? Esses meninos continuam vivendo com você? — Jack não tinha visto nenhuma
prova disso.
— Em meu jardim — respondeu Stanford com nostalgia.
— Matou-os?
— Eu adoraria ficar e falar, mas nós temos que ir.
— Não vai levar Livy.
— Ela é meu seguro de vida. Deixe o saco aí e se jogue a um lado.
Jack deu dois passos e emitiu um estridente assobio. Ouviu-se um estrondo e o vidro da janela
arrebentou.
Stanford girou a cabeça e Jack teve a ocasião que procurava para se jogar sobre ele, afastar Livy e
atirá-lo ao chão. Lutou para tomar a pistola, mas aquele homem, apesar de ser velho, era
surpreendentemente forte e ágil. Brigaram e rodaram pelo chão. Jack tentou agarrar a arma...
Uma explosão estalou na noite quando a pistola disparou e Jack sentiu o fogo ardendo em seu
peito, enquanto o cálido sangre deslizava por seu colete favorito.
Olívia acabava de cair ao chão quando ouviu o disparo da pistola e os dois homens ficaram
imóveis.
— Oh, Deus, Oh, Deus. Jack.
De repente, alguém entrou pela janela. Antes que ela pudesse gritar, ouviu: — Tranquila, sou eu,
Swindler.
Depois do ruído surdo de pesados passos no corredor, entraram duas longas sombras seguidas de
uma terceira menor. Frannie cruzou o quarto e abraçou Olívia.
— Está bem?
Ela assentiu e sussurrou.
— Jack?
Frannie começou a soltar os nós da corda que atava as mãos.
— Jack — disse Swindler com dureza.
Olívia olhou enquanto um homem se levantava. Reconhecia muito bem aquela silhueta,
reconheceria em qualquer lugar.
— Jack?
— Estou bem — respondeu muito sério, enquanto se agachava junto ao primo de Lovingdon.
Ouviu-se uma respiração pesada, um ofego.
— Jack, tenho que ver como está — disse o doutor Graves, e Olívia se deu conta que era um dos
homens que tinha entrado com Frannie. O outro era Claybourne.
— Não — se opôs Jack. Stanford tossia e tinha arcadas.
— Os meninos. Quantos havia? — inquiriu Jack.
— Você... o primeiro.
— E depois de mim? Quantos? Maldito seja!
— Não.... Sei.
— Matou-os? Enterrou-os em seu jardim? É isso o que estava sugerindo antes?
Mas de Rupert Stanford não saiu nenhum outro som.
— Responda-me, bastardo.
— Está morto — disse o doutor Graves com ar sombrio.
Jack ficou em pé muito devagar. De repente, tinha os braços ao redor de Olívia e a abraçava com
tanta força que ela mal podia respirar.
— Pensei que não viria.
— Mas é claro que vim — respondeu ele.
— Ele me disse que tinha te pedido cem mil libras.
— Teria dado tudo, Livy. Teria dado tudo para poder te recuperar.
Jack e Olívia voltaram em seguida a casa, enquanto Swindler e outros ficavam para solucionar o
assunto de Rupert Stanford e informavam o acontecido à Scotland Yard. A primeira coisa que fez
Olívia foi subir a escada a toda pressa, ir ao quarto de Henry e abraçá-lo.
— Sabia que ele te salvaria — disse o menino.
Envergonhou-a ver a inquebrável fé que tinha em Jack, quando ela tinha demonstrado ter tão
pouca. Jamais voltaria a cometer esse engano. Aquela noite tinha cometido muitos e tinha intenção
de corrigir todos.
Começou a pensar em como solucionar tudo aquilo, enquanto tomava um maravilhoso banho
para tirar a sujeira que havia trazido consigo daquelas ruas. Depois da experiência da noite, pensou
que no futuro tomaria um bom banho cada dia. Desejava que Jack estivesse com ela naquela noite,
que fosse ver como se encontrava, mas quando viu que não o fazia, vestiu a camisola e foi buscá-lo.
Encontrou-o sentado em uma poltrona da biblioteca, com os cotovelos apoiados nas coxas e um
copo nas mãos. Junto a ele, havia uma garrafa esperando para cumprir com seu encargo e apagar a
lembrança daquela traumática experiência.
Olívia caminhou descalça sobre o tapete, ajoelhou-se diante dele e segurou seus braços.
— Sou incapaz de imaginar como se sente.
— Não, acredito que não pode. Antes desta noite, não sabia o nome do homem que me acolheu,
mas agora sei que era Stanford. Não sei se alguma vez soube quem era ou é que simplesmente o
esqueci. Já são quase trinta anos. Suponho que devia conhecer minha mãe. Ela sabia quem era,
confiava nele. Deveriam ter se conhecido quando ela trabalhava aqui. Deixou a seu cuidado
pensando que com ele estaria a salvo. Na primeira noite... — Olívia o ouviu tragar com força, —Me
deu banho, vestiu e me pôs na cama e logo deslizou sob os lençóis junto a mim. Tocou-me de
formas que um homem jamais deveria tocar um menino.... Fez coisas que não só fizeram estragos em
meu corpo, mas também em minha alma.
— Céu santo, Jack. — Olívia o acariciou no rosto e tentou consolá-lo, mas ele não a olhava.
Estava perdido em seu passado.
— Depois chorou e prometeu que jamais voltaria a fazer isso. Na noite seguinte, me dei conta
que era um mentiroso. Na terceira noite escapei.
As lágrimas abrasaram os olhos da Olívia.
— Não pode se culpar por nada do que ocorreu. Só era um menino inocente. Alegro-me que
esteja morto.
Ele negou com a cabeça.
— Há mais, Livy. Já te expliquei que Luke e eu fomos presos. Quando te condenam, passa seus
dias preso em um cárcere para crianças. Mas antes disso, antes que se celebre o julgamento, prendem
você em um calabouço com homens adultos. Havia três deles.... Uns tipos asquerosos. Jogaram o
olho em Luke, mas ele se defendeu. Deus, só tinha oito anos, mas não deixou de brigar nem um
segundo. Deixaram a cara dele feita um mapa. Pensei que iam matá-lo. Eu em troca já sabia o que
queriam e já tinha sobrevivido a isso antes.
Céu santo, não — pensou Olívia. — Por favor, não.
— Ofereci-me em seu lugar. — Falou com a voz estrangulada.
— Oh, Jack. — Apertou as mãos e pousou os lábios sobre elas enquanto as lágrimas deslizavam
por seu rosto até seus lábios.
— Foi pior do que me lembrava. Ou possivelmente só fosse que aqueles homens eram mais
malvados. Naquela noite, algo se rompeu em meu interior, Livy. Tudo deixou de me importar; só
queria sobreviver, e acabei me convencendo que se conseguisse dinheiro suficiente, sempre estaria a
salvo. Mas por dentro continuava quebrado. Até que te conheci. Você conseguiu que voltasse a
sentir de novo. Você e Henry. Encheram minha vida de alegria. De gargalhadas e sorrisos. Mas
também há dor nisso. O que sentia cada vez que estava contigo, aterrorizava-me, Livy. Não queria
aceitar. Lutei contra isso com todas minhas forças, mas esta noite me dei conta que se acontecesse
algo, se você morresse, voltaria a quebrar e desta vez ficaria quebrado para sempre. É uma maneira
segura de viver, mas é uma vida que não merece a pena ser vivida. Te amo, Livy. Sei que não sou
digno de seu afeto...
— Que não é digno? Não conheço um homem mais digno que você.
— Eu procedo das ruas.
— Agora vive em St. James. Talvez começasse vivendo nas ruas, mas não conheço ninguém que
tenha conseguido o que você conseguiu. É um homem de recursos que não deve nada a ninguém.
Tem um coração generoso. Já sei que você não gosta de escutar, mas é verdade. Henry te adora. E,
maldito seja, eu também. Te amo, Jack, com todo meu coração e com toda minha alma. Errei ao
escutar Briarwood. Dei-me conta disso quando estava naquele espantoso lugar. Recordei todos os
momentos passados contigo e com Henry.
— Engana-se, Livy. Briarwood tinha razão.
— Não...
Jack pôs um dedo nos lábios.
— Chist. Ele tinha razão. Corrompi você. Acaso não se deu conta do que acaba de dizer? Agora
inclusive amaldiçoa.
Olívia riu.
— E a terra não se afundou sob meus pés. Jack segurou seu rosto.
— A primeira noite te disse que não há nada que uma pessoa não esteja disposta a fazer quando
deseja com todas suas forças. — Soltou um profundo e doloroso gemido. — Quero que você e
Henry sejam meus para toda a eternidade. Case-se comigo, Livy.
— Oh. — Olívia não esperava aquilo. Estava preparada para passar o resto de seus dias como sua
amante, mas converter-se em sua mulher? — Oh.
— Isso é um sim ou um não?
Ela riu divertida.
— Acredito que o correto seria que você estivesse com um joelho em terra e eu sentada.
— Você e sua maldita etiqueta — respondeu ele, negando com a cabeça ao tempo que esboçava
um malicioso sorriso.
Olívia pousou as mãos em ambos os lados de seu rosto.
— Sim. Casarei contigo encantada.
— Faremos uma marca no calendário. Um dia depois que acabe seu período de luto...
— Não seja tolo. Casarei contigo amanhã.
— Acredita que as damas de Londres a perdoarão por corromper desse modo as normas sociais?
— É obvio. Terei uma valiosa informação de primeira mão que compartilhar à hora do chá. Com
certeza me perdoarão em seguida para saber tudo o que eu sei sobre o delicioso cafajeste Jack
Dodger.
— Delicioso Cafajeste?
— É assim que se referem a você.
— Não sei se estou de humor para ser um delicioso vagabundo esta noite, mas eu gostaria muito
de dormir abraçado com você.
Enquanto aquela noite estava com ele na cama, Olívia pensou que não sabia se aquela tinha sido a
intenção de Lovingdon, mas, uma vez morto, tinha conseguido dar o que tinha sido incapaz de
oferecer em vida: felicidade, paixão e amor.
Capítulo Vinte e Dois

— Briarwood.
— Céu santo, já disse que não estava em casa. Não sabe o que significa isso?
Jack entrou um pouco mais no escritório do visconde depois de ignorar os intentos do mordomo
de evitar que entrasse na casa. O quarto cheirava a licor barato e suor rançoso. Briarwood, sujo,
estava atirado de qualquer maneira sobre o sofá: tinha a camisa manchada e tirou a jaqueta, o colete
e o lenço de pescoço.
— Quero saber se alguma vez ouviu falar de Emily Dawkins — disse Jack.
Briarwood revirou os olhos.
— Não.
Ele insistiu. Se Stanford a conhecia...
— Trabalhou na residência dos Lovingdon há trinta e seis anos. O homem cravou os olhos em
Jack.
— Eu então tinha dez anos. Como ia preocupar-me com os serventes?
— Stanford a conhecia.
— Ele tinha doze anos mais que eu. Talvez tivesse algum interesse por ela. — Grunhiu. —
Embora não parece muito provável. Pelo visto, preferia meninos. A Scotland Yard esteve aqui esta
manhã. Encontraram ossos em seu jardim. Céu santo! Ossos pequenos. Ossos de crianças. Centenas
de ossos. A família está afundada.
E o que acontecia com as famílias dessas crianças?
Jack podia apreciar claramente o desespero no rosto de Briarwood, um homem que sempre
antepôs seus interesses a todo o resto.
— Beckwith também esteve aqui. Pelo visto herdei uma casa que alguém tentou incendiar.
Stanford não tinha dinheiro para poder arrumá-la e tendo em conta que eu tampouco tenho, para
que me serve uma casa queimada?
— Eu a comprarei — respondeu Jack, sem pensar sequer nas consequências. Podia acabar de
destruir a mansão e construir ali o hospital de Graves. Um hospital em memória desses meninos que
não tinha conseguido se salvar.
Briarwood se levantou.
— Por quanto?
— Quando estiver sóbrio, falaremos dos detalhes, e também de como pode recuperar o controle
sobre seu hábito de jogar.
— Eu não gosto de você, Dodger.
— Eu tampouco gosto de você. O visconde assentiu.
— Me alegro que estejamos de acordo em algo.
— Tampouco estaria mal que cessassem os rumores.
— Considere-os mortos. Embora tampouco é que tenha mais alternativas. Rupert Stanford é o
nome que estará na boca de todo mundo durante os próximos dias. Não posso culpar meu primo
por ter te nomeado tutor do Henry. Por muito má reputação que tenha, estou começando a me dar
conta que é muito melhor que Stanford ou eu.
Jack aceitou os elogios com elegância e se limitou a dizer: — Depois falaremos. — Então partiu.
A cerimônia devia ser íntima e particular; só tinham convidado a uns poucos escolhidos.
Quando Jack, Olívia — que usava um singelo vestido cor marfim— e Henry chegaram à igreja,
seus convidados estavam esperando junto aos degraus da entrada principal.
— Estamos muito contentes que tenham vindo — disse Livy, saudando todos: Luke e Catherine,
Graves, Swindler e a doce Frannie.
— Isto eu tenho que ver com meus próprios olhos — respondeu Luke. — O famoso Jack
Dodger casando-se. Com certeza será a fofoca de toda Londres.
— Esperamos poder mantê-lo algum tempo em segredo — interveio Jack. — Afinal, Livy está de
luto.
— Como se alguma vez tivesse se preocupado pelas normas sociais — exclamou Graves.
— Tem razão. Nunca gostei muito delas. — Piscou um olho ao Henry, que ia ser o padrinho de
Jack e estaria junto a ele no altar. O menino levava o anel no bolso de sua jaqueta.
— Estou muito contente por você, Jack — disse Frannie, dando um beijo no rosto. Ele pôde
perceber a verdade de suas palavras no brilho de seus olhos verdes.
— Deveríamos entrar para celebrar a cerimônia — propôs Livy. Quando Jack ofereceu o braço,
perguntou: — Nervosa?
— Absolutamente. Estou muito feliz para estar nervosa.
Quando começaram a subir os degraus, algo que se movia junto ao edifício chamou a atenção do
Jack.
— Esqueci uma coisa. Em seguida te alcanço. Se não se importar, te ocupe de entrar para ver se
está tudo em ordem.
— Vai tudo bem?
— Sim, é que tenho que resolver uma coisa. — Deu um rápido beijo nos lábios. — Volto logo.
Quando a porta se fechou atrás dos convidados, ele desceu os degraus e virou a esquina da igreja.
— Olá, meu Dodger. Tenho um presente para você — disse seu velho mentor, com voz rouca.
Feagan estava apoiado em sua bengala e na palma de sua deformada mão descansava o medalhão de
Jack.
Este, que de repente sentia uma estranha opressão no peito, agarrou a preciosa oferenda e
observou o retrato de sua mãe. Parecia muito jovem; suspeitava que muito mais do que Olívia era
naquele momento. Na verdade, era uma menina. Entretanto, agora seria como se estivesse com ele
na cerimônia.
— Obrigado, Feagan. Mas neste momento não tenho o dinheiro que te devo.
O homem fez um gesto com a mão.
— Ora. Não se preocupe com isso. A próxima vez que venha à minha casa, me traga uma garrafa
de genebra.
— Como soube onde me encontrar?
— Fui-me inteirando de coisas pelo caminho.
— Deveria entrar.
— Não. Deus e eu... Deixamos de nos levar bem quando levou o amor de minha vida. Não
quero que pense que o perdoei, porque não o tenho feito.
— Frannie me disse uma vez que acreditava que você fosse seu pai.
— E o que você disse?
— Nada.
— Sempre foi bom guardando segredos.
— Porque aprendi do melhor. Feagan riu.
— Assim é, menino. Assim é. Espero que você e sua esposa sejam muito felizes. — virou-se para
ir.
Jack o chamou:
— Feagan, pelo menos deixe que minha carruagem te leve para casa.
— Não. Eu gosto de andar. — ele piscou um olho. — Nunca se sabe as coisas que pode
encontrar pelo caminho.
Jack observou como partia andando tranquilamente; aquele dobrado e curvado homem que, em
muitos sentidos, tinha sido como um pai para ele.
A cerimônia não foi tão espetacular como o primeiro casamento de Olívia, mas enquanto
pensava na cerimônia escovando o cabelo ante a penteadeira, não encontrou nem uma só falha.
Henry tinha sido o padrinho de Jack. E depois, quando os viu juntos com as cabeças próximas,
conspirando, as lágrimas tinham aparecido em seus olhos. Jack prestava ao menino mais atenção do
que Lovingdon tinha prestado enquanto vivia.
Uma pequena parte dela não podia evitar lamentar tudo o que não teve com seu primeiro marido.
Não estava muito certa do por que pensava, mas acreditava que ele estaria contente por ela e que
aprovaria seu casamento com Jack. Tendo em conta que o tinha nomeado tutor de seu filho e que
tinha legado uma parte tão grande de seu patrimônio, era evidente que tinha muito boa opinião dele.
Entretanto, pensou que teria sido melhor se Lovingdon tivesse contado a debilidade de seu primo.
Deu-se conta que às vezes era impossível saber tudo de alguém, mas esperava que Jack não
guardasse segredos tão importantes e que seu casamento fosse muito diferente do primeiro.
Quando se levantou, não pôde evitar sorrir ao pensar na vaporosa camisola que usava. Deixava
pouco à imaginação. Cruzou o quarto, abriu a porta do quarto de banho e se sobressaltou ao
encontrar-se ali com Jack.
— Ia te buscar — disse ele. — Estava cansado de esperar. — Inclinou a cabeça a um lado. —
Embora agora me dê conta que valeu a pena.
Agarrou-a nos braços e a levantou do chão. Olívia riu divertida.
Perguntou-se se aquelas paredes teriam ouvido alguma vez tantas risadas.
— Sou perfeitamente capaz de andar.
— Prefiro te levar nos braços. Assim posso julgar seu peso.
— Que romântico.
— Deveria pesar mais. Estaria mais saudável, e quero que esteja saudável durante muito tempo.
— Teria que me comprar vestidos novos.
— Terá que fazê-lo de todos os modos. Encontrei sua roupa incluída em meu relatório.
Ela voltou a rir.
— Não é verdade.
— Sim é. Vou tirar isso tudo e terá que andar nua pela casa.
— Se esqueceu de que temos serventes e um menino?
— Maldito seja!
Olívia deslizou a rosto pelo pescoço de Jack.
— Mas te prometo que ficarei completamente nua quando estivermos só nós dois.
— Suponho que terei que me conformar com isso.
Deixou-a sobre a cama, onde ela ficou de joelhos e começou a desabotoar os botões da camisa.
— E você? — perguntou. — Vai me fazer trabalhar para poder ver o que tanto eu gosto?
Quando por fim conseguiu desabotoar todos os botões, Jack tirou a camisa.
— Não. Prometo que eu também estarei nu.
Ele acabou de tirar a roupa em poucos segundos e logo tirou uns momentos para contemplar a
camisola de Olívia antes de acrescentá-lo ao montão de roupa. Ela não sabia para que se incomodou
tanto em ficar provocadora, mas gostava de saber que Jack estava tão ansioso por despi-la.
— Não serão necessários dois dormitórios — disse ele, enquanto sua boca se deslizava por seus
ombros. — Neste quarto há lugar de sobra para sua penteadeira e qualquer outra coisa que queira.
Redecore toda a maldita casa.
— De acordo. — Naquele momento ele poderia ter pedido o que fosse e ela teria aceitado. Olívia
o acariciou nos ombros e nas costas. Pensou que jamais se cansaria daquilo, ou de estar com ele.
Não podia imaginar viver sem Jack ou que, ao ficar grávida, tivesse que renunciar àqueles encontros.
— Não me deixará nunca, promete? — perguntou.
Ele levantou a cabeça, olhou-a e Olívia pôde ver a paixão em seus olhos. Provocava isso,
conseguia que a desejasse tanto como ela o desejava.
— Por que me pergunta isso? — inquiriu Jack.
— Se ficar grávida...
A cálida boca dele interrompeu o que queria dizer. Aproximou suas mãos à cabeça da Olívia e a
agarrou enquanto devorava seus lábios, saboreava-a profundamente e a animava a fazer o mesmo.
Quando deixou de beijá-la, ela teria ficado sem respiração a não ser pelo apetite que viu nos olhos de
Jack.
— Tanto se estiver grávida ou não, passará todas as noites em minha cama, entre meus braços.
Existem maneiras, querida.... Há muitas maneiras de fazer as coisas.
Sorriu e Olívia viu a perversão e uma escura provocação em seu gesto. Logo, Jack se colocou
entre suas coxas e deslizou a boca até seus seios para beijá-los: primeiro um e logo o outro. Olívia
esperava que voltasse a subir e que deslizasse em seu interior, mas seguiu descendendo. Pousou as
mãos nas costelas enquanto beijava o estômago, antes de seguir baixando mais e mais.
— OH, Meu deus — exclamou Olívia sem fôlego. — O que está...?
— Chist. — Só era um som, mas prometia o êxtase.
Abriu um pouco mais as pernas e aproximou a boca a seu ninho de cachos. Ao sentir sua língua
pela primeira vez, Olívia quase caiu da cama. Levantou os braços e se agarrou ao travesseiro, mas
Jack continuou com seus pecaminosos prazeres e o travesseiro deixou de ser suficiente.
Olívia estremeceu e enterrou os dedos no cabelo dele. Sabia que deveria afastá-lo, mas então se
deu conta que estava aproximando-o mais de seu corpo. Aquela intimidade só podia compartilhar
com um homem ao que amasse. E o amava.
Estava completamente certa de que o que estava fazendo era pecado, e se não o fosse, deveria
ser. Porque era deliciosamente perverso. Jack conhecia um monte de maravilhosas formas de deixar-
se levar, e Olívia dispunha de toda uma vida a seu lado para aprender todas e descobrir novas formas
de dar aprazer a ele.
Colocou o travesseiro sobre a boca para sufocar seus gemidos. Jack o tirou.
— Quero te ouvir — ofegou.
E Olívia estava certa de que o fez. Retorcia-se debaixo de Jack e ouvia seus próprios gemidos
quase sem fôlego, consciente que escapavam de seus lábios. Abraçou-o com força enquanto se
balançava ao fio de um intenso prazer. Jack sabia quando acariciá-la, quando devia chupá-la, quando
parar, quando deslizar a língua dentro de seu corpo. Tentou-a e a provocou. Aquele homem tinha
uma imensa habilidade com os dedos, mas também com a boca. Roubou a força, a capacidade de
resistir.
Então, Olívia começou a gritar seu nome e, antes que o último dos estremecimentos a tivessem
percorrido, Jack se afundou em seu interior. Olhava-a fixamente ao mesmo tempo em que balançava
os quadris contra ela, e suas fortes investidas conseguiram que as sensações de prazer começassem a
crescer de novo. Olívia deslizou as mãos por suas costas e agarrou as nádegas para animá-lo a
continuar.
Ele aproximou os lábios de sua boca e bebeu dela com avidez, e essa vez, quando Olívia gritou,
capturou o som deixando que o áspero rugido que arrancou o êxtase se mesclasse com os gritos de
Livy. Então se deixou cair apoiando-se nos cotovelos, para evitar que todo seu peso descansasse
sobre Olívia. Ela deslizou as pontas dos pés pelas panturrilhas de Jack e as mãos por suas costas.
— Oh, é um demônio. E estou muito contente que seja — sussurrou sem energia.
Ele riu satisfeito.
— Você é tudo que poderia desejar. E estou muito contente que seja.
Jack despertou com a incrível sensação de que sua esposa o estava provocando, mordiscando a
orelha. Sua esposa, um término que jamais pensou que associaria a sua pessoa. Estava descobrindo
que Olívia era uma mulher insaciável, e pensou que não podia pedir mais.
Rugiu e se equilibrou sobre ela, provocando que gritasse e risse ao mesmo tempo.
— Pensei que não ia despertar nunca — disse Livy. Beijou o nariz, a testa e o queixo.
— Acredito que não dormi tão bem em toda minha vida. Claro que, ontem de noite, me secou.
— Já não tenho inibições. Tem-nas feito desaparecer todas.
— Que sorte a minha.
Deslizou as mãos por seu corpo, agarrou-a pelo quadril e a empurrou para si deleitando-se na
sensação de seu corpo nu contra o seu. Jack pensava que não havia melhor sensação que estar pele
contra pele, e a nudez tinha a vantagem de revelar tudo o que entesoura um homem. Se fosse rei,
proibiria que as pessoas usassem roupa... Bom, excetuando os coletes de cores berrantes.
— Temos que nos levantar — murmurou Olívia, enquanto beijava uma sensível zona atrás da
orelha.
Ele se esfregou contra seu quadril com ar brincalhão.
— Será que não percebeu? Eu já estou levantado.
A gargalhada dela ressonou a seu redor e penetrou no coração de Jack.
Cada vez que escutava aquele som queria estar em seu interior.
— Claro que notei, mas...
Afastou-se dele e se levantou da cama sem incomodar-se em pegar um lençol ou a colcha. Olívia
tinha se convertido em uma exibicionista. Jack voltou a sentir um homem com sorte.
— Volte aqui. Todo o resto pode esperar um pouco mais — disse. — Expliquei a Henry que esta
manhã serviria a ele o café da manhã na cama, e a nós também.
— Isso é o que conspiravam ontem?
— Pensei que tinha que começar a ensinar que, quando um cavalheiro consegue a sua dama, tem
que dedicar a maior atenção em particular que seja possível.
— Muito bonito. Infelizmente, ontem mandei uma nota ao senhor Beckwith informando de
nosso casamento. Respondeu-me que esta manhã viria te trazer esse último objeto. Não quero que
nos encontre na cama.
Jack a agarrou pelo braço e puxou até que Olívia caiu entre seus braços e conseguiu ficar em cima
dela.
— Não me importa nada esse último objeto. Pode ficar com ele.
— Não tem curiosidade?
— O que importa o que for? Nada do que possa me dar, tem agora mais valor que você. Poderia
me tirar tudo que, enquanto posso ter você, não me importaria.
Os olhos de Livy se encheram de lágrimas. Jack esperava não ver lágrimas de tristeza em seus
olhos muito frequentemente, mas as lágrimas de felicidade tinham outro brilho e essas sim esperava
as provocar muitas vezes.
— Não é um homem que diga coisas bonitas muito frequentemente, Jack, mas quando as diz,
chega ao mais profundo da alma.
— Eu não acredito no romantismo, Livy, mas por ti tentarei fazer um esforço, embora não sei se
possuo essa habilidade.
— Te amo tanto...
Jack se perguntou se essas palavras ficariam enterrando-se em seu coração sempre com tanta
profundidade e provocando aquela sensação de absoluta satisfação. Agarrou a mão de Olívia e deu
um beijo na palma, no pulso, no cotovelo...
Com um suspiro de rendição, ela murmurou:
— Não tenho a força necessária para resistir a você. O proíbo que faça amor comigo antes que
chegue Beckwith.
Rindo ante o desafio, Jack procedeu a demonstrar, uma vez mais, que não era o tipo de homem a
quem podiam dar ordens.
Capítulo Vinte e Três

Jack havia dito a verdade a Livy. Já não importava aquele último objeto. Naquele momento não
era mais que uma chateação, porque significava que não poderiam passar toda a manhã fazendo
amor louca e apaixonadamente.
Beckwith entrou na biblioteca com sua carteira de pele e fez uma pequena reverência.
— Lady Olívia, senhor Dodger, felicidades por seu recente enlace.
Jack sabia que, ao casar-se com ele, Livy perdia o título de duquesa. Entretanto, continuava
surpreendendo-o ouvir que alguém a chamasse
Lady, uma honra que ela herdava de seu pai. Mas Olívia havia dito que estava muito contente
com o novo lugar que ocupava na vida e ele faria tudo quanto estivesse em sua mão para que jamais
tivesse que lamentar.
— Obrigado, senhor Beckwith — disse, enquanto apertava a mão de Jack como se de repente
necessitasse reafirmação.
— Apreciamos muito que tenha encontrado um pouco de tempo para vir nos ver, tendo em
conta sua apertada agenda — disse Jack. — Como nós também estamos bastante ocupados, será
melhor que acabemos com este assunto o mais rápido possível, tudo bem?
— É obvio. Posso? — O advogado assinalou a mesa.
— Claro. Tudo que acelere sua visita...
Olívia deu um golpe no braço e Jack a olhou com o cenho franzido.
— O que?
— Está sendo muito pouco hospitaleiro. Senhor Beckwith, gostaria de tomar um pouco de chá?
O homem esboçou um tênue sorriso.
— Não, obrigado. Não demoraremos muito em resolver isto.
Aproximou-se da escrivaninha e começou a colocar as coisas que ia tirando de sua carteira sobre
a mesa. Jack e Olívia se sentaram nas poltronas que tinham ocupado a noite que Beckwith leu o
testamento. A única diferença era que agora estavam segurados pela mão. Jack aproximou a mão de
Olívia de seus lábios e beijou os dedos. Assim que o advogado se fosse, pensava levá-la à cama. Ou
possivelmente à mesa e depois à cama. Sabia que ela ia se escandalizar assim que soubesse que ele
havia dito aos serventes que não podiam entrar em um quarto sem chamar e receber permissão para
entrar.
Jack não podia acreditar o que tinha ocorrido em tão pouco tempo. Sempre tinha querido ter as
rédeas de sua vida, mas não podia negar que, de alguma forma, outras pessoas estavam influindo em
seu curso. Se Lovingdon não o tivesse nomeado tutor de Henry, jamais teria conhecido Livy. Só por
isso, devia eterna gratidão ao duque.
Beckwith deixou sobre a mesa alguns documentos e um pequeno saquinho de veludo. Entrelaçou
as mãos ao tempo que as apoiava sobre os papéis. Pigarreou.
— As condições do testamento foram satisfeitas com seu casamento. Portanto, agora devo ler a
parte do testamento que ocultei. — Pegou uma folha de papel e voltou a pigarrear.
A Jack Dodger, batizado como Jack Dawkins, querido filho de Emily Dawkins, deixo minha mais valiosa posse,
meu relógio de bolso de ouro. Eu o recebi de meu pai que, por sua vez, recebeu-o do pai dele.
Jack observava perplexo enquanto o homem abria o saquinho de veludo e tirava um relógio de
ouro, com uma pesada corrente do mesmo metal. Deixou-os com muito cuidado em cima da mesa,
justo frente a Jack. Inclusive àquela distância, este pôde apreciar o fino artesanato do objeto e o
ligeiro passo das agulhas que deixavam escapar o tempo.
Estreitou a mão de Olívia e levou a que tinha livre para pegar o relógio...
Mas quando faltavam apenas uns centímetros para alcançá-lo, parou. Negou com a cabeça e
voltou a apoiar as costas na poltrona enquanto cravava os olhos em Beckwith.
— Não teria que ter me deixado isso. Teria que ter deixado a seu filho.
— Acredito que fez isso, senhor Dodger.
Jack notou o sobressalto de Livy e teve a sensação que ficava sem ar. Era consciente que Olívia
apertava sua mão com tanta força que quase fazia mal e de que estava olhando, mas ele não podia
olhá-la, ainda não.
Soltou a mão de Olívia e, apesar de seus esforços para controlar seus nervos, deu-se conta que
tremia o pulso quando pegou o relógio. Vacilou um momento e então o abriu. Em seu interior, na
parte oposta à esfera, havia um retrato que era muito familiar. Olhou Beckwith com incredulidade e
depois a Olívia, que enrugava a testa preocupada.
— É minha mãe.
Tinha a voz rouca, tão rouca e áspera como quando gritou que não o abandonasse.
O advogado ficou em pé para dar a entender que seu trabalho estava feito.
— O duque me confiou todos seus segredos. — Dedicou um rápido olhar a Olívia e se voltou a
centrar em Jack. — Espero que entenda que você teria feito o mesmo que eu. Se tivesse sabido que
iriam se casar, teria informado um pouco antes deste assunto. Mas diga o que for, o que aqui se
revelou hoje não sairá deste quarto a menos que você queira. — Agarrou um envelope e o deu a
Jack. — Não li esta carta, mas é dirigida a você.
Ele pegou o envelope que oferecia.
— Senhor Beckwith, por curiosidade, eu gostaria de saber a quem tinha nomeado o duque tutor
de Henry no segundo testamento.
O homem pareceu incômodo pela primeira vez.
— Temo que não exista um segundo testamento. O duque insistiu em que eu dissesse que existia.
Talvez conhecesse melhor a seu filho do que cabe pensar.
— Tomou muitas precauções por algo que poderia não ter acontecido — grunhiu Jack, pouco
surpreso do aborrecimento que tingia sua voz. A gelada surpresa que acabava de averiguar estava
começando a derreter e em seu lugar estava crescendo uma fúria selvagem.
— Sabia que ocorreria antes do que ele desejava — respondeu Beckwith solene. — O duque
estava morrendo de um câncer para o que não existe cura. Espero que não pareça insensível de
minha parte, mas a queda proporcionou uma morte rápida que, sinceramente, acredito que preferia.
Pelo menos, conseguiu conservar uma dignidade que sua enfermidade teria roubado.
— Nunca me disse nada — murmurou Olívia.
Jack pôde perceber em sua voz que lamentava que Lovingdon escolhesse passar sozinha sua dor.
— Não queria preocupá-la — respondeu Beckwith.
— Mas eu era sua mulher.
— Acredito que queria economizar dor. Disse-me em muitas ocasiões que tinha por você grande
carinho.
Mas carinho não era amor. Fez-se o silêncio. Olívia era incapaz de imaginar o que Jack estaria
sentindo. A raiva que sentia por seu primeiro marido aumentava com cada movimento da agulha
daquele relógio. Lovingdon não tinha sabido apreciar o que tinha.
Jack estreitou a mão, esperando que ela entendesse com aquele simples gesto que em seu
casamento não teria segredos, que compartilhariam todos e cada um dos aspectos de sua vida.
— Se não me necessitarem para nada mais, me despedirei de vocês. — Beckwith fez uma
pequena reverência e partiu.
O silêncio não se foi com ele. Ao contrário, fez-se mais pesado, mais denso. Por fim, Olívia girou
a mão e entrelaçou seus dedos com os de Jack.
— Sinto como se me tivesse atropelado uma carruagem. Não posso imaginar como você deve se
sentir. Não tinha nem ideia de que era seu pai? — perguntou em voz baixa.
— Não. — Jack passeou o olhar pelo precioso rosto de sua esposa, convencido de saber a
resposta à pergunta que ia fazer, antes que ela respondesse. — E você?
Livy negou com a cabeça muito devagar.
— Não tinha nem ideia. Fui casada com ele durante seis anos e não o conhecia absolutamente.
Tenho vontades de me zangar com ele, de bater por não me ter dito nada disto. Estava morrendo e
eu não sabia de nada. Mas isso era tão típico de nossa relação.... Jamais compartilhou nada comigo.
Para ele não fui mais que uma espécie de ventre para parir.
— Não diga isso, Livy. Era tolo e não se deu conta da incrível mulher que tinha a seu lado.
Ela sorriu com suavidade.
— Aqui está, me consolando quando deve estar absolutamente desolado pelo que acaba de saber.
— Assinalou o envelope. — Vai ler?
Ele tragou com força e assentiu.
— Mas aqui não. Preciso estar sozinho. Logo te contarei o que tem.
Olívia tomou seu rosto entre as mãos e deslizou o polegar por cima de seus lábios.
— Não tem que me dar explicações, Jack Dodger. Ele ficou em pé, e deu um beijo na cabeça.
— Te amo, Livy — sussurrou.
Saiu da biblioteca e percorreu o corredor até chegar à porta que dava ao terraço. Gostava muito
dos jardins, porque ali sempre se sentia mais perto de sua mãe. Dirigiu-se ao banco que havia entre
as roseiras e se sentou. Abriu o envelope muito devagar e tirou a carta.
Querido filho:
Sempre tive grandes esperanças postas em ti. O fato de estar lendo esta carta, é uma prova que julguei corretamente
seu caráter. Nisso se parece com sua mãe. Ela possuía todas as qualidades das que eu careço.
Sua doce mãe servia nesta casa quando eu me apaixonei por ela. Só tinha quinze anos quando descobriu que
esperava um filho, meu filho. E eu tão somente tinha dezessete anos, era jovem e estúpido. E fraco, incrivelmente fraco.
Não tive a coragem de enfrentar os desejos de meus pais e, o que é muito mais imperdoável, não tive o valor de
permanecer junto à minha preciosa Emily quando ela enfrentou à censura da sociedade com a cabeça bem alta para
poder te trazer ao mundo. Para proteger meu nome, jamais disse a ninguém quem era o pai de seu filho. Tal era sua
admirável força. Jogaram-na de casa para que buscasse a vida como melhor pudesse, e eu não fiz nada para evitar
aquela injustiça.
O dia que te conheci na casa dos Claybourne, não podia acreditar na sorte que tinha tido, que o destino me
houvesse devolvido o meu filho. Naquele momento, era maior e mais preparado e não podia deixar passar aquela
oportunidade. Observei de longe a impaciência que demonstrava ante os ensinos do ancião Claybourne, e me dei conta
que não ficaria ali muito tempo, que era muito independente e que logo ia querer viver por sua conta. Por isso me
converti em seu benfeitor anônimo; anônimo porque continuava sem ter a coragem de enfrentar você e os pecados que
cometi no passado.
O que mais desejava no mundo era reconhecer que era meu filho. Em uma ocasião, fui ao seu clube com esse
propósito em mente. Mas por fim, temendo ver refletido em seus olhos a repugnância por meu horrendo comportamento,
permaneci fiel a meu caráter e continuei sendo um covarde.
Não tenho nenhuma dúvida que sob sua tutela meu segundo filho adquirirá a força que faltava a seu pai.
Não espero que tenha uma boa opinião de mim. Não espero que pense em mim absolutamente, mas se por acaso
minha lembrança passar por sua mente de vez em quando, espero que entenda que vivi toda minha vida sem sentir
mais que arrependimento, e talvez esse tenha sido meu castigo. Meu único desejo é que Deus, em sua infinita
misericórdia, conceda-me quando morrer o que minha covardia me negou em vida: um lugar ao lado de sua mãe. Não
mereço isso, mas por isso o chama misericórdia. Graças a esta, perdoa-se até o pior dos pecados.
Sinceramente teu, Lovingdon

Jack viu que nem sequer então tinha conseguido assinar a carta como seu pai. Mas sabia que não
era um título que Lovingdon ganhou, e tentou consolar-se pensando que o duque não tinha tirado
importância a essa honra.
— Agora posso ver como são parecidos — disse Olívia muito devagar. Jack a olhou.
— Acredito que é difícil perceber, porque você é muito moreno e ele era muito loiro, mas às
vezes, quando entro em seu quarto e te vejo ali, parece-me estar vendo ele.
Jack não sabia o que responder a isso. Não estava de tudo preparado para falar do assunto e não
sabia se estaria algum dia.
— Está bem? — perguntou Olívia. — Está aí sentado quase uma hora.
A Jack não tinha parecido tanto tempo. Tinha a sensação que se não tinha passado nada de
tempo.
— Suponho que deveria ter trazido um de seus relógios.
— Ou o relógio de seu pai. Jack negou com a cabeça.
— Ele não era meu pai. — Voltou a negar com a cabeça tentando recusar a verdade. — Minha
mãe só tinha quinze anos quando me trouxe ao mundo. Passei toda a vida pensando que era uma
prostituta. Ele fez isso. Foi por culpa de sua covardia, de sua falta de coragem.
Fez um gesto com o braço assinalando a residência.
— Sabe o que era que Beckwith estava insinuando? — Não esperou que ela respondesse. — A lei
não permite que um homem se case com a viúva de seu pai.
Olívia empalideceu.
— Não tinha pensado nisso.
— A parte positiva é que não tenho nenhuma intenção de reclamar a filiação. Para mim, esse
homem era mais bastardo que eu. — inclinou-se para frente, apoiou os cotovelos nas coxas e a
cabeça nas mãos e enrugou a carta. — Beckwith disse que guardaria o segredo, mas e se alguém
descobrir? Nosso casamento poderia ser declarado nulo e nossos filhos bastardos. Será que alguma
vez acabará a dor que provocou Lovingdon com sua atitude?
Olívia se ajoelhou frente a ele, agarrou as mãos e as separou da cara.
— Olhe para mim — ordenou.
Custava tanto olhá-la nos olhos.... Tudo era muito mais fácil quando pensava que seu pai era um
estranho, um homem que tinha pagado em troca de ter o privilégio de passar a noite com sua mãe.
— Não me importa — disse Livy com supremo carinho. — Não me importa que anulem nosso
casamento. Quanto a nossos filhos, serão educados com muito amor e os ensinaremos a rir das
normas sociais quando não convierem. Terão suas fortes convicções, Jack, e a força de vontade de
sua mãe. Todos honraremos sua memória. Era uma mulher extraordinária. Estaria encantada de tê-la
conhecido. Ela me deu um tesouro. Te amo, Jack Dodger. Te amo com todo meu coração e com
toda minha alma. Se tiver que viver contigo sem ser casada, assim será. Farei sem nenhum remorso e
com muitíssimo orgulho de saber que me escolheu para ser a mulher que estará ao seu lado. E
quando for ao inferno, estarei encantada em dançar contigo.
Jack agarrou-a pela cintura até sentá-la em seu colo. Pousou os lábios sobre sua boca e se deleitou
em seu doce néctar. Como podia aquela extraordinária mulher amá-lo, desejá-lo? Como podia olhar
seu passado e, apesar de saber que era um bastardo, um menino da rua, um ladrão, apreciá-lo pelo
homem em que se tornou?
Afastou-se e a olhou nos olhos.
— Você é o só o que me importa, Livy. Você e Henry. — Jogou a cabeça para trás. — Céu santo,
é meu irmão! — riu. — Esse é o motivo pelo que Lovingdon me nomeou seu tutor.
— Acredito que nossa árvore genealógica será um autêntico labirinto.
— Rodeou-o com os braços e apoiou a cabeça em seu ombro. — Tudo parece estar tão mal...
— Só importa é que te amo. E que amo Henry também. Desde que o conheci, reconheci algo
nele que me afetou de uma forma especial.
Olívia levantou a cabeça.
— Acredito que será melhor que não diga até que seja mais velho. Acho que é muito pequeno
para entender todas as ramificações.
Jack assentiu; estava de acordo com ela. Além disso, Henry era tão pequeno que certamente se
esqueceria de seu pai.
— Provavelmente, o que vou dizer possa soar um pouco desagradável, porque tiveste uma vida
muito difícil, mas essa vida foi que te transformou no homem ao que amo. E se Lovingdon tivesse
reconhecido você oficialmente, jamais teria podido me casar contigo.
Jack sorriu.
— Teríamos encontrado uma forma de fazê-lo, Livy. Os rebeldes sempre conseguem.
Epílogo

Extraído do diário de Jack Dodger:


O nome que me puseram ao nascer foi Jack Dawkins, amado filho de Emily Dawkins, filho bastardo de Sidney
Augustus Stanford, duque de Lovingdon, marquês de Ashleigh, e conde de Wyndmere, um homem que se preocupou
mais pela linhagem de seus títulos do que com minha mãe ou comigo.
Ainda não o perdoei por permitir que expulsassem minha mãe de sua casa, e duvido muito que jamais chegue a
professar alguma estima a ele. Acredito que foi uma autêntica bênção não ter crescido sob sua tutela. Jamais foi um
pai para mim. Essa honra o teve outra pessoa.
Feagan era um delinquente que foi condenado à forca. Que conseguisse escapar e viver até a velhice foi uma sorte
para ele e para mim. Ele foi quem me ensinou a roubar sem que ninguém visse; ensinou-me a sobreviver tentando fazer
o menor dano possível a outros enquanto os roubava. Deu-me uma família e fez me sentir seguro. Ele foi meu pai em
tudo o que era importante.
Quando tinha cinco anos, minha mãe me deixou aos cuidados de outro homem. Mal recordo o último inverno que
passamos juntos, o inverno que mudou minha vida. Ela começou a ter uma profunda e ruidosa tosse que nos fazia
passar as noites em claro. Manchava os lenços de sangue e comia muito pouco. Sei que ela sabia que estava morrendo e
tentou me proporcionar o melhor cuidado que pôde; e devia pensar que o primo de meu pai era a melhor alternativa.
Morreu antes que chegasse a primavera e a enterraram em uma tumba para pessoas pobres; com um pouco de sorte,
sem saber a verdade sobre o demônio que tinha me acolhido.
Custou um pouco, mas à turma de Feagan se dá muito bem em encontrar informação. Acabamos descobrindo onde
estava enterrada e Graves, que era ladrão de tumbas desde menino, encarregou-se do assunto.
Minha mãe descansa agora onde deveria ter descansado sempre, junto ao homem que amava. Não posso evitar
pensar que o amava, porque, em sua tumba, Graves encontrou um medalhão muito similar ao que me deu, com um
retrato em miniatura do duque.
Não vou muito visitá-la porque a cripta dos Lovingdon está na casa de campo, que pertence legalmente a meu
jovem meio-irmão e enteado. Mas pago ao jardineiro para que leve flores todos os dias. Mandei construir uma estufa
para que também tenha flores no inverno.
Lembro que minha mãe me disse uma vez que vendia flores porque era a única forma de tê-las em sua vida
durante um momento, e por muito triste que parecesse ter que separar-se delas, valia a pena pela alegria que ofereciam
pelo pouco tempo que as desfrutava.
Já sei que pode soar arrogante, mas eu gosto de pensar que se pode dizer o mesmo de mim: que enquanto estive com
ela fui uma alegria e não uma carga.
Livy encontrou um diário entre as coisas do duque. Diz que nele se fala do amor do duque por uma jovem
faxineira, um amor tão profundo que dificultou muito a ele poder pensar em ter outra mulher em sua vida. Ela pensa
que se o ler, entenderei melhor a força e os sacrifícios que deve fazer a aristocracia, e que acabarei respeitando ao meu
pai por sua lealdade ao dever e seu desejo de cumprir as expectativas que outros tinham postas nele.
Talvez tenha razão, mas não estou preparado. Eu acredito que um homem tem que olhar a si mesmo primeiro
para saber que caminho deve escolher, e que cada homem, do mais pobre até o mais rico, tem que tomar decisões difíceis
na vida. Eu conheci a pobreza e a riqueza. Cada forma de vida tem seus problemas e cada uma tem suas
recompensas. As pessoas que merecem meu respeito são as que não estão influídas pelo lugar que ocupam na vida ou a
quantidade de moedas que têm no bolso. São fiéis a si mesmos e aos que rodeiam apesar do bem, ou mal, que os tenha
tratado a vida. Não estou completamente convencido que o duque tivesse sobrevivido na rua. Todos nós estamos
condicionados por nosso passado. Eu acredito que sou um homem melhor graças ao meu. Sem lugar para dúvidas,
meus filhos viverão melhor que eu, mas eu cuidarei que aprendam a olhar os pobres cara a cara.
Não acredito que Henry se converta no clássico lorde; afinal, eu sou seu tutor. Guardei o relógio de bolso para
poder dar a ele quando for maior de idade. Parece o mais correto. Porque no fim, ele tem boas lembranças de seu pai e
eu não.
Livy já não acredita que eu fosse a pior opção. Está satisfeita. Eu diria que agora que sabe que sempre vou querer
e proteger seu filho, a todos seus filhos; está mais que satisfeita. Se posso dizer que tenho alguma boa qualidade é esta:
protejo com unhas e dentes o que é meu.
Não acredito que jamais reclame publicamente a filiação de Lovingdon. Se o fizesse, poria em interdição a
legitimidade de meu casamento com Livy. E eu jamais a abandonarei. Nunca o faria nem pelo nome nem pela fortuna
de ninguém.
Lembro um tempo em que desejava a próxima moeda, um tempo em que teria feito tudo para consegui-la. Agora,
só o que desejo são meus momentos com Livy. Minha esposa é o verdadeiro tesouro de minha vida. É a pessoa que
possui meu coração, minha alma e, para toda a eternidade, meu amor.

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