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EXPERIÊNCIAS

TROCAS DE

LEITURAS E
VIDAS

ORG.

Ailce Margarida Negreiros Alves (Gmells)


Edimara Ferreira Santos (Gmells)
Maria Neuza da Silva Oliveira (Gmells)
Isabella Caroline dos Santos Barros (GEPEPs)
Renata Matos de Souza (GEPEPs)
Luciana de Barros Ataide (GEPEPs)

ISBN: 978-65-84530-06-5
Organizadoras:
Ailce Margarida Negreiros Alves (Gmells)
Edimara Ferreira Santos (Gmells)
Maria Neuza da Silva Oliveira (Gmells)
Isabella Caroline dos Santos Barros (GEPEPs)
Renata Matos de Souza (GEPEPs)
Luciana de Barros Ataide (GEPEPs)

I COLÓQUIO DE GÊNERO E LITERATURA NA AMAZÔNIA:


trocas de experiências, leituras e vidas
11 e 12 de novembro de 2021

EDITORA EXPRESSÃO FEMINISTA


SETEMBRO/2022
LIVRO DE RESUMOS EXPANDIDOS

Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará


Grupo de Estudos e Pesquisas Escritoras Paraenses (GEPEPs)
Grupo de Estudos Mulheres, Emancipações e Literaturas (Gmells)

I COLÓQUIO DE GÊNERO E LITERATURA NA AMAZÔNIA:


trocas de experiências, leituras e vidas
11 e 12 de novembro de 2021

Organizadoras:
Ailce Margarida Negreiros Alves (Gmells)
Edimara Ferreira Santos (Gmells)
Maria Neuza da Silva Oliveira (Gmells)
Isabella Caroline dos Santos Barros (GEPEPs)
Renata Matos de Souza (GEPEPs)
Luciana de Barros Ataide (GEPEPs)

Comissão Científica:
Ailce Margarida Negreiros Alves
Edimara Ferreira Santos
Fabíola de Fátima Igreja
Luciana de Barros Ataide
Márcia do Socorro da Silva Pinheiro
Maria Aparecida Cruz de Oliveira
Maria Neuza da Silva Oliveira
Mírian Cristina dos Santos

EDITORA EXPRESSÃO FEMINISTA


SETEMBRO/2022
FICHA
CATALOGRÁFICA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Colóquio de Gênero e Literatura na Amazônia (1:2022:São Luís, MA)


I Colóquio gênero e literatura na Amazônia [livro eletrônico] : trocas de experiências, leituras
e vidas / organização Ailce Margarida Negreiros Alves...[et al.]. -- São Luís, MA : Editora
Expressão Feminista, 2022. PDF.

Outros organizadores: Edimara Ferreira Santos, Maria Neuza da Silva Oliveira, Isabella
Caroline dos Santos Barros,Luciana de Barros Ataide. Bibliografia.
ISBN 978-65-84530-06-5

1. Amazônia - Aspectos sociais 2. Diversidade sexual 3. Gênero e sexualidade 4. Identidade


de gênero 5. Literatura brasileira I. Alves, Ailce Margarida Negreiros. II. Santos, Edimara
Ferreira.
III. Oliveira, Maria Neuza da Silva. IV. Barros, Isabella Caroline dos Santos. V. Ataide,
Luciana de Barros. 22-115709 CDD-305.3

Índices para catálogo sistemático:


1. Diversidade sexual : Relações de gênero: Sociologia 305.3

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


APRESENTAÇÃO

A diversidade de fronteiras e de culturas existentes no espaço amazônico é um


elemento que merece destaque. Assim, estabelecer um diálogo entre os saberes locais,
regionais e nacionais através da investigação científica e da interdisciplinaridade com
áreas afins, foi o propósito do I Colóquio Gênero e Literatura na Amazônia: trocas de
experiências, escritas, leituras e vidas. Assim, a proposta de diálogo aqui se amplia para
o debate sob a ótica da pluralidade e do respeito às diferenças.
Nesse sentido, a finalidade do evento foi promover a discussão sobre a pesquisa, a
extensão e o ensino nas áreas de Literatura, Cultura, Sociedade e Gênero junto à
comunidade acadêmica da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa),
pesquisadores de outras instituições de Ensino Superior e docentes da Educação Básica.
A proposta foi uma iniciativa dos Grupos de Pesquisas centrados nos estudos
sobre literatura e gênero: Grupo de Estudos e Pesquisas Escritoras Paraenses (GEPEPs),
vinculado ao Instituto de Estudos do Xingu (IEX) e do Grupo de Estudos Mulheres,
Emancipações e Literaturas (GMELLS) vinculado ao Instituto de Ciências Humanas
(ICH), ambos da Unifesspa.
O evento foi realizado nos dias 11 e 12 de novembro de 2021 e contou com
palestra, roda de conversa e grupos de trabalhos ao longo de sua programação. A
conferência de abertura intitulada Escritoras Paraenses na Escola: enfoque científico na
Educação Básica, da Profa. Dra. Eunice Ferreira dos Santos, inspirou reflexão sobre a
ausência de escritoras paraenses nas escolas do Pará e como os currículos das escolas e
das universidades precisam, também, ser revistos para inclusões desses debates.
A roda de conversa Literatura na Amazônia: escritas e vivências com as escritoras
Paloma Franca Amorim e Monique Malcher problematizou sobre a (re)construção do
lugar de fala de autoras paraenses e de suas escritas na cena literária nacional.
As comunicações orais constituem espaço relevante na programação deste evento por
possibilitarem a apresentação, o debate e a reflexão de pesquisa/extensão/ensino,
proporcionando um ambiente favorável a troca de conhecimentos e afetos. Neste
sentido, o evento contou com dois Grupos de Trabalhos: GT1 Estudos sobre Literatura,
Mulher e Sociedade na Amazônia e GT2 Estudos sobre Feminismos, Diversidades e
Literaturas Insurgentes, recebendo cerca de 23 (vinte e três) trabalhos apresentados de
diversas instituições brasileiras.
Para os Anais da 1ª edição do Colóquio Gênero e Literatura na Amazônia foram
enviados 15 (quinze) trabalhos, que temos o orgulho de apresentar os textos completos e
apresentados organizados em ordem alfabética do primeiro nome da autora ou autor.

Marabá-Pará, 11 e 12 de novembro de 2021


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ISBN 978-65-84530-06-5

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 3
MULHERES, E O DEBATE ACERCA DAS RESISTÊNCIAS FEMINISTAS À
MINERAÇÃO NO SUDESTE DO PARÁ ............................................................................... 5
A MINERALOGIA OU A MINERALIDADE NAS POÉTICAS DO SUDESTE DO PARÁ
................................................................................................................................................ 10
NEM TUDO O QUE PARECE É: Uma (re)leitura do conto Zeus ou a menina e OS ÓCULOS,
de Maria Lúcia Medeiros ........................................................................................................ 14
RELAÇÕES SIMBÓLICAS DE PODER NOS POEMAS “AUTOSSABOTAGEM” E “VOO”
DE JOZIANEFERREIRA DA SILVA ................................................................................... 18
RELATO DE EXPERIÊNCIA EM EXTENSÃO: PROJETO ‘DAS MARGENS AO
CENTRO’ DANDO VOZ E VISIBILIDADE À PRODUÇÃO LITERÁRIA DE MULHERES
NEGRAS................................................................................................................................. 23
AS NARRATIVAS DE NÓS: OS CONTORNOS DE GÊNERO PELAS LINHAS
LITERÁRIAS ......................................................................................................................... 26
EM MEIO A MATINTA PEREIRA E HALLOWEN: PROBLEMATIZANDO A
INVISIBILIDADE DA CULTURA AMAZÔNICA NO ESPAÇO FESTIVO ESCOLAR NA
CIDADE DE BELÉM DO PARÁ .......................................................................................... 30
CARTAS DE/PARA MULHERES NA ZINE SEGREDO..................................................... 34
A POÉTICA DO EROTISMO FEMININO NOS POEMAS “SE”, DE ADALCINDA
CAMARÃO E “SE TU VIESSES VER-ME...”, DE FLORBELA ESPANCA ...................... 38
A VOZ DA NOVA MULHER EM ÁGUA VIVA ................................................................. 45
ENTRE DORES, AMORES E DORES: (RE)EXISTÊNCIA FEMININA EM FLOR DE
GUME ..................................................................................................................................... 48
A RECEPÇÃO CRÍTICA DE ZORA NEALE HURSTON PELO MOVIMENTO NEGRO DO
HARLEM RENAISSANCE ................................................................................................... 52
PRODUÇÃO E JULGAMENTO DE FEMINICÍDIOS EM CRUZEIRO DO SUL/ACRE:
ANÁLISE DOCUMENTAL E INTERSECCIONAL DE SENTENÇAS .............................. 57
A HORA DA ESTRELA: A personagem Macabéa e o corpo disciplinado ............................ 60
O MITO DO BOTO E VIOLÊNCIA SEXUAL DE MULHERES NA COMUNIDADE DA
MISSÃO ................................................................................................................................. 64
Sobre os Grupos de Pesquisas ................................................................................................. 68
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MULHERES, E O DEBATE ACERCA DAS RESISTÊNCIAS


FEMINISTAS À MINERAÇÃO NO SUDESTE DO PARÁ

Ailce Margarida Negreiros Alves1


Thyelle Gonçalves Oliveira2

RESUMO: Este trabalho objetiva refletir sobre feminismos, a partir das práticas das mulheres, em
estratégias de resistência, em defesa da vida e dos territórios pressionados pela mineração, no sudeste do
Pará. Partimos da escuta dos debates com mulheres pesquisadoras, estudiosas e lideranças de coletivos e
Movimentos Sociais em rodas de conversas. As bases foram: SEDESOL; INDESOL; AGUA Y VIDA
(2017); OLIVEIRA (2021) SEABRA (2021). Os resultados afirmam a relevância das reflexões;
aprofundam temas necessários: corpo território, ecofeminismo, violências proprietárias.

Palavras-chave: Mulheres; Resistência a mineração; Sudeste do Pará “Feminismos”.

INTRODUÇÃO

Os debates que enfatizam as lutas das mulheres, tem avançado significativamente, provocado pela
capacidade mobilizadora das mulheres em movimentos sociais e organizações diversas, numa incidência
questionadora da ordem patriarcal. Esse grande movimento, constituído pelas mulheres na sua
diversidade, provoca a ampliação dos olhares sobre a organização das mulheres, reconhecendo as mais
variadas resistências das mulheres numa perspectiva ampliada de feminismos, ou feminismos plurais. Se
há uma diversidade de mulheres, há múltiplas estratégias de organização em defesa da vida e do território.
Elas ocupam ruas, praças, ocupações urbanas e no campo estão efetivamente nos acampamentos e
assentamentos, comunidades diversas, nas lutas sociais diversas, e neste caso, naquela da Reforma
Agrária.
Assim as mulheres na sua diversidade estão exigindo reconhecimento, respeito, valorização e
direitos como trabalhadoras, cidadãs, mães, cuidadoras e como sujeitas de direitos, e ainda incidindo
subversivamente nas várias instâncias de uma sociedade patriarcal, violenta, que a invisibiliza, discrimina,
desvaloriza e mata.
O processo formativo realizado através de rodas de conversas, colocaram na mesa de debates
outros olhares como importantes parâmetros de compreensão de um contexto vivenciado pelas sociedades
amazônicas, e especialmente as mulheres afetadas pelos megaempreendimentos, como aquelas de Canaã,
Parauapebas e Marabá.

1
Mestra em Ciências Sociais, Professora da UNIFESSPA/ Faculdade de Educação do Campo. Integrante do Grupo de Estudos
e Pesquisas Mulheres, Emancipações e Literaturas/ GMELLS
2
Estudante do último semestre do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, Auxiliar de Pesquisa do INESC, no Projeto
Mulheres Amazônidas.
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As rodas de conversas mobilizaram vários coletivos de mulheres, com foco no debate da questão
mineral e seus impactos na região Amazônica, em especial os efeitos sobre as mulheres, seus corpos e
suas vidas, seus territórios. Entre os temas abordados não poderia faltar a discussão sobre mulheres e
natureza, tendo como centralidade o papel das mulheres na luta pela terra e território, a permanência nos
acampamentos e assentamentos dessas redondezas, mulheres essas que vivem também na e da floresta,
em realidades de grande vulnerabilidade, ameaças, pressões, pobreza, a violência e outros.

OBJETIVOS

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o debate acerca dos feminismos e resistência das
mulheres à mineração, tendo como base o recente debate realizado no processo formativo realizado pelo
INESC (Instituto de Estudos Sócioeconômicos), em parceria com a UNIFESSPA /Faculdade de Educação
do Campo junto a diversos coletivos de mulheres atuantes no sudeste do Pará e que estão no front das
lutas em defesa dos corpos, portanto, da vida e dos territórios no sudeste do Pará.

REFERENCIAL TEÓRICO

O trabalho tem como base a contribuição de uma leitura das relações sociais econômicas e culturais
a partir do ecofeminismo (SEDESOL; INDESOL; AGUA Y VIDA, 2017); corpo território (SEABRA, 2021)
bem como reflexões sobre violências proprietárias. Nesta última, Oliveira (2021, 23) afirma que “tramas
da violência econômica e financeira contra as mulheres” apontam para as múltiplas dimensões da
violência patriarcal produzidas e aglutinadas pelo entrelaçamento da política, da economia e da cultura.”
Elemento relevante para o contexto em pauta.
Conta ainda com as reflexões de Davis (2006); sobre categorias como classe, gênero raça/etnia,
afirmando seus entrelaçamentos. Questões fortes no contexto da América Latina e Amazônia, onde muitas
populações indígenas, negras, camponesas estão em conflito com os megaempreendimentos, que se
impõem, e acentuam os índices em formatos diversos de violências contra mulheres racializadas, pobres,
periféricas.

METODOLOGIA

O trabalho é resultante de uma escuta virtual, num processo formativo e de profunda reflexão,
produzido pelo INESC (Instituto de Estudos Sócioeconômicos), em uma importante
parceria com a UNIFESSPA (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará), a partir da FECAMPO
(Faculdade de Educação do Campo), e a CPT (Comissão Pastoral da Terra/Marabá). Portanto, o trabalho
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se baseia em provocações de outros olhares que partem da perspectiva latino-americana, ecofeminismo,


de feminismos comunitários.
A formação foi feita em plena pandemia e com todo o cuidado com a vida, respeitando os protocolos
de saúde. Os diálogos, debates, trocas se deram em 4 rodas de conversas virtuais, pela plataforma zoom.
Esses diálogos serviram de base para a sistematização e reflexões deste trabalho. A riqueza dos debates
vem das contribuições de professoras, pesquisadoras e lideranças comunitárias que trataram de formas de
organização e estratégias de resistência das mulheres em regiões onde os megaempreendimentos se impõe,
produzindo riqueza para fora e pobreza para dentro, e com isso acentuando a vulnerabilidade, a violência,
expulsão dos territórios, entre outros. As contribuições provocaram debates sobre ecofeminismo, corpo
território, violências proprietárias – refletindo sobre processos de pobreza, exclusão e endividamento das
mulheres.

RESULTADOS

A difícil realidade das mulheres que vivem em territórios afetados pela mineração foi alvo do
diálogo, até porque as prefeituras arrecadam um grande volume de recurso oriundo da Compensação
Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), mas não se vê investimentos sociais que modifiquem a
realidade de um amplo conjunto das populações desses municípios minerados, em especial, as mulheres.
No centro dos debates os municípios de Marabá, Parauapebas e Canaã dos Carajás, com maior volume de
recursos da CEM.
Foram 4 rodas de conversas em salas virtuais pela plataforma zoom, reunindo aproximadamente
30 mulheres de Marabá, Canaã dos Carajás, Parauapebas, Rondon do Pará, São Félix do Xingu, Nova
Ipixuna, Açailandia-MA. São lideranças e dirigentes de Organizações e coletivos que atuam em
comunidades e grupos diversos.
Os diálogos estabelecidos com as diversas mulheres dos coletivos convergiram para a relevância
do debate deixando claro que os conceitos e categorias mobilizados nas rodas de conversas, também
contribuem na reflexão sobre os processos de enfrentamento à mineração construídos pelas mulheres no
sudeste do Pará, suas estratégias cotidianas de resistência em defesa da vida e dos territórios.
Dada as ameaças a vida, a pressão aos seus territórios, a pobreza, a violência, e a certeza de que
esse contexto se impõe por determinação da lógica do capitalismo patriarcal, através de
megaempreendimentos, especialmente da mineração, as mulheres têm constituído estratégias diversas de
resistências e defesa da vida e dos territórios, de forma coletiva. Para entender melhor, tanto o contexto
agressivo a vida e a natureza, resultante da exploração mineral, realizada pela Vale, e particularmente as
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formas de resistências criadas pelas mulheres em coletivos, conceitos como ecofeminismo, corpo
território, violências proprietárias se revelam importantes. SEABRA, afirma que:

A sobrecarga de trabalho reprodutivo e de cuidados e as múltiplas formas de violência,


como as sexuais, são, ademais, efeitos das reconfigurações provocadas pela economia
hegemônica nos territórios.
Estes são processos de espoliação, cercamento e apropriação, que, desde distintos
corpos-territórios no Maranhão e no Pará, são sentidos e vividos como aprisionamento
e encarceramento territorial (SEABRA, 2021; 47).

As reflexões propostas pelo ecofeminismo soma feminismo e ecologia, tem postura crítica e
associa a desvalorização das mulheres e a desvalorização da natureza como resultante do sistema
capitalista patriarcal, regime que se traduz num modelo econômico extremamente violento e destruidor
da vida (SEDESOL, INDESOL, AGUA Y VIDA, 2017), discussões acumuladas pelos coletivos de
mulheres latino-americanas e pertinentes as diversas realidades enfrentadas no sudeste do Pará, que tem
presente fortemente o debate de corpo território. Para (OLIVEIRA, 24): “... neoliberalismo, na sua forma
contemporânea, o ataca diretamente no sentido de interromper os ciclos de reprodução social e, assim,
produzir controle, disciplina e sujeição.”. Na mesma linha, outra pesquisadora refletindo sobre as
violências que afetam as mulheres, diz:

“Essas violências afetam com especial perversidade mulheres que atuam na defesa dos
territórios e da vida e sofrem com os ataques sistemáticos dos agentes da devastação.
São essas mulheres que atualizam, assumindo todos os riscos, as estratégias coletivas e
comunitárias de solidariedade e cuidados para com as vidas humanas e não humanas...”
(SEABRA, 2021, 35).

Percebe-se a centralidade do modelo capitalista na produção de Commodities, e nesta parte da


Amazônia paraense brasileira, vimos se materializar de forma intensiva a exploração e a exportação deste
produto, o que tem implicado numa perversa lógica da acumulação por espoliação (MALHEIRO,
MICHELOTTI, SABINO, 2020) e desapropriação, e não importa a vida, e a natureza, é matéria de
especulação e produção de lucro. No caso das comunidades camponesas, são comuns liminar de despejo
das famílias que vivem em áreas de acampamentos, no aguardo do governo para a assentar as famílias.
O modelo econômico em curso na Amazônia e no sudeste do Pará tem permitido a reapropriação
privada e violenta de terras expulsando as famílias de seus territórios. O cinismo desse modelo se apropria
dos bens comuns e outros recursos naturais, o que tem provocado desequilíbrio ambiental e climático,
além da pobreza e violência, principalmente para as mulheres. Ulloa (2016), citada por Seabra (2021, 30),
observa que as análises de contextos extrativistas são potencializadas ao articular gênero, território e meio
ambiente às violências vivenciadas por mulheres, assim como às suas estratégias de enfrentamento a estas
situações.
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Outra questão discutida nas rodas de conversas foi: violências proprietárias como uma resultante
da intervenção econômica e política do neoliberalismo. Assim:

... a violência econômica neoliberal não designa apenas a destruição dos modos de vida
e da natureza, nem a perseguição, a morte e a despossessão que engendra.
Compreendemos que, na sua dimensão financeira e especulativa, a violência capitalista
se volta contra o sujeito (ou a existência), sendo também especialista em colocar em
dúvida (ou em descrédito) a humanidade das pessoas, a sua dignidade e o seu
merecimento de atenção e cuidado. A relação entre o “ser” e as oportunidades
econômicas é um vínculo poderoso para se pensar os atravessamentos raciais da
economia contemporânea. (OLIVEIRA, 2020, 24).

As provocações da autora citada se somam as preocupações de Movimentos Sociais e coletivos de


mulheres presentes na roda de conversa, por trazerem de forma contundente muitos elementos dessa
realidade vivida pelas mulheres.

REFERÊNCIAS

SEDESOL; INDESOL; Agua y Vida: Mujeres, Derechos y Ambiente AC. Defensa del território Corpo -
Tierra. Apuntes Ecofeministas. San cristóbal de Las Casas, Chiapas, México, 2017. Disponível em
https://aguayvida.org.mx/wp-content/uploads/media/documents/2017/11/apuntes-ecofeministas-para-la-
defensa-del-territorio-cuerpotierra.pdf
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 2016. São Paulo, Boitempo. Congilio, Célia e Dos Reis, Iara
Fernandes. 2020.
MALHEIRO, Bruno Cezar; MICHELOTTI; Fernando, SABINO Thiago Alan Guedes. Aqui o
capitalismo não parou. Espoliação e brutalidade em tempos de pandemia: o que a Amazônia tem a
dizer? Disponível em: https://periodicos.uff.br/geographia/article/view/43041/24512. Acesso em 20 de
novembro de 2020.
OLIVEIRA, Tatiana. Uma Leitura (Eco) feminista sobre a CFEM. In OLIVEIRA (Org.) Mulheres
Amazõnidas: Ecofeminismo, Mineração e economias populares. INESC: Brasília-DF. P.12-31.
Disponível em https://www.inesc.org.br/wp-
content/uploads/2020/12/inesc_MulheresAmazonidas_20jul20211.pdf
SEABRA, J, E. Corpos-Territórios no enfrentamento a megaprojetos extrativistas: formas de (r)existir e
viver a partir dos territórios de Abya Yala. In OLIVEIRA (Org.) Mulheres Amazõnidas: Ecofeminismo,
Mineração e economias populares. INESC: Brasília-DF. P.33-61. Disponível em
https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2020/12/inesc_MulheresAmazonidas_20jul20211.pdf
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A MINERALOGIA OU A MINERALIDADE NAS POÉTICAS DO


SUDESTE DO PARÁ

Airton Souza de Oliveira3


Fábio Fonseca de Castro4

RESUMO: Este resumo apresenta o resultado de uma investigação a respeito da espoliação mineral e de
sua ligação com a poética no sudeste do Pará. Visto que a questão mineral nessa região tem contribuído
para ampliar e dinamizar a exploração das riquezas naturais nas Amazônias, causando crises sistêmicas
não somente de ordem econômica, mas social, cultural e histórica. Contudo, por meio das literaturas,
principalmente da poesia é possível perceber que há um certo movimento de front que interroga toda essa
relação de exploração.

Palavras-chave: Poéticas amazônicas; Mineralidade; Projeto Grande Carajás; Serra Pelada e Sudeste do
Pará.

INTRODUÇÃO
Ao pensamos as Amazônias como territorialidades de dimensões múltiplas, marcadas por
complexas diferenças coloca-se em questão o ilusório equilíbrio fundamentado pelo que Ana Pizarro
denomina de categorização absoluta e provocando dessa forma uma espécie de cisão no jogo homogêneo
presente na perspectiva imbricada na própria categorização absoluta. Com isso, entre as principais
questões iniciais que se põem diante de nós, ao pensamos, por exemplo, a questão mineral nas Amazônias
destacam-se essas: como romper essa categorização absoluta em relação à exploração das riquezas
minerais nas Amazônias? É possível fazer com que os corpos atingidos diretamente por essa exploração
transformem em sublevação suas experiências disruptivas, suas dores? De imediato, faz-se necessário
ressaltar que é muito difícil responder essas questões, principalmente porque elas apontam para a relação
mais perversa e douradora, assentada na ideia de progresso e, também de nação, dentro das Amazônias.
No entanto, perante essas interrogações, é possível pensarmos criticamente como é compreendido o
projeto de exploração, submissão e dominação nas regiões amazônicas.
Assim, diante dessa possiblidade, o corpus analítico desse artigo é composto de dois poemas que
refletem a respeito da questão mineral na região do sudeste do Pará. Esses poemas, conforme veremos,

3
Licenciado em História (Uniasselvi), Licenciado em Letras (Unifesspa), Mestre em Letras (Unifesspa) e Doutorando no
Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia – PPGCOM, pela Universidade Federal do Pará. E-mail:
(souzamaraba@gmail.com) – Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9024-0715
4
Doutor em Sociologia pela Universidade da Sorbonne (Paris V Descartes) (2004). Mestre em Antropologia e Estudo das
Sociedades Latino-Americanas pela Universidade de Sorbonne-Nouvelle) (2000). Mestre em Comunicação pela Universidade
de Brasília (1995). Graduado em Comunicação-Jornalismo pela UFPA (1990). Professor associado da Universidade Federal
do Pará. Pesquisador no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PPGDSTU), do
Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea, UFPA), no Programa de Pós-graduação Comunicação, Cultura e Amazônia
(PPGCOM) e na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Pará (UFPA). Orcid: http://orcid.org/0000-0002-
8083-1415
11

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foram publicados entre os anos de 2000 a 2015, e eles estão diretamente ligados a extração do ouro, em
Serra Pelada, e de maneira implícita ao Projeto Grande Carajás. A partir da análise ficou evidente que
utilizando a linguagem como experiência simbólica e de ressignificação da realidade é possível interrogar
não somente a ideia de categorização absoluta nas Amazônias, mas provocar rasuras na sedimentação da
esfera econômica, hierárquica e supostamente hegemônica dentro da exploração mineral na região do
sudeste do Pará.
É preciso destacar que em relação ao título deste artigo o termo utilizado – mineralogia – é aqui
ressignificado simbolicamente como uma espécie de metonímia. No entanto, é imprescindível destacar
que a mineralogia é a ciência responsável por estudar as estruturas moleculares, cristalinas, as
propriedades físicas e, principalmente a gênese dos minerais.

OBJETIVOS

Um dos principais objetivos é compreender como a mineração impacta também no fazer poético,
resultando em uma espécie de poética mineral na região do sudeste do Pará. Desse modo observa-se que
a poética mineral nas Amazônias não está ligada apenas aos aspectos de denúncia, mas é ação que
intersecta passado, presente e futuro, como um lugar de front. Assim, é possível concluir que a poética
mineral no sudeste do Pará são as falas dos despossuídos que já não creem no falacioso progresso que
espolia as territorialidades e os amazônidas.

REFERENCIAL TEÓRICO

O referencial teórico está ligado diretamente à historiografia local, principalmente a que trata a
respeito da história do garimpo de Serra Pelada e do Projeto Grande Carajás. Além isso, os estudos
teóricos das literaturas emergentes e do pensamento crítico da América Latina, entre os quais podemos
citar Pizarro (2006), Malheiros (2015), Nunes (2000) e Trocate e Zonta (2015). Vale destacar que esses
referenciais teóricos são imprescindíveis para compreendermos a relação entre a história e a escritura que
traz como elemento a questão mineral no sudeste do Pará.

METODOLOGIA

O processo metodológico se deu a partir da escolha sistemática dos corpus de análise, que foram
os poemas “a montanha foi moída”, do poeta Charles Trocate e o poema “Progresso”, de Ademir Braz. A
sistematização da análise parte dos elementos diretamente ligados a questão mineral em Serra Pelada e o
Projeto Grande Carajás, ambos que iniciam no período que da década 1970, embora especificamente Serra
Pelada tenha sido descoberta em 1980.
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Por conta disso, o processo interpretativo mantém uma relação intrínseca com a história desses
dois grandes empreendimentos mineral, levando em consideração os aspectos ficcionais dos poemas
analisados e suas relações com a própria realidade da questão mineral no sudeste do Pará.

RESULTADOS

Parte da poesia produzida no sudeste do Pará atravessa o corpo da própria história local. Assim, a
força expressiva contida na palavra dessa poética consubstancia dinâmicas que esgarçam, de maneira cada
vez mais tênue, o processo simbólico e a sua relação com a própria realidade, fazendo com que a poética
mineral seja compreendida como ação não somente estéticas, mas, sobretudo, ética. Nesse caso, parte da
poesia escriturada na região traz em si o assinalamento de percursos que margeiam esteticamente a
história.
A primeira e importante estratégia que pudemos observar de imediato nas poéticas minerais é que
elas trazem à tona um eu que fala, sobretudo em nome de uma coletividade, e que vem presentificada na
voz poética dentro dos poemas. Com isso, o jogo simbólico, através do uso de figuras de linguagem, como
por exemplo, a ironia, reformula outras possíveis articulações de compreensão da exploração mineral na
região sudeste do Pará.
Os poemas ligados diretamente à questão mineral no sudeste do Pará contribuem não apenas para
denunciar esse processo de espoliação das riquezas naturais na região, mas para nos mostrar que é possível
aproximar ficção e realidade, como procedimento de front. Eles fazem reverberar a história, como
passado, e o presente como realidade.
Assim, é possível concluir que os poemas minerais nas Amazônias são mais que simples poemas-
denúncias. Eles são parte das vozes dos que foram subalternizados pelo processo de exploração mineral.
São poemas que corporifica a falsa verdade sobre o falacioso discurso a respeito de um suposto progresso
nas Amazônias. Como vimos no poema “a montanha foi moída” o corpo deixa de ser apenas carne e ossos,
para ser mineral, e resistir a barbárie.
Os dois poemas inserem-se numa temporalidade crítica que indaga a respeito das territorialidades
amazônicas: o tempo da vivência – ou seja, o tempo da experienciação do mundo da vida pelos sujeitos
sociais que eles tematizam, os amazônidas dessa Amazônia mineral – questiona, indaga e confronta o
tempo assimétrico da “categorização absoluta” (PIZARRO, 2006), imposta pelo processo de
ressignificação da Amazônia necessário ao capitalismo global e ao Estado nacional brasileiro, em seu
processo de territorialização das Amazônias.
REFERÊNCIAS

BRAZ, Ademir. Rebanho de Pedras & Esta Terra. Marabá – Pará. Grafecort, 2003.
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ISBN 978-65-84530-06-5

HALL, Stuart. Da diáspora. Tradução: Adelaide La Guardia Resende; Ana Carolina Escosteguy; Cláudia
Álvares; Francisco Rüdiger e Sayonara Amaral. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Hölderlins Hymnen “Germanien” und “Der Rhein”. 2ª ed., GA 39. Frankfurt
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MALHEIRO, Bruno Cezar Pereira. Territórios e saberes em disputa: por uma epistemologia da
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Editorial Iguana, 2015.
MATTOS, Maria Virgínia Bastos de. História de Marabá. Marabá – Pará. Fundação Casa da Cultura de
Marabá - FCCM, 2013.
MUTRAN FILHO, Aziz. Retalhos de Poesias. Marabá – Pará. Grafecort, 2000.
NUNES, Benedito. Heidegger e a poesia. In: Natureza Humana 2(1):103-127, 2000.
PIZARRO, Ana. O sul e os trópicos – ensaios de cultura latino-americana. Niterói – Rio de Janiero.
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SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Rio de Janeiro. Record, 2019.
TROCATE, Charles. 1993. Marabá – Pará. Editorial Iguana, 2015.
TROCATE, Charles (Org.). Iguana Reflexão Amazônica – número 1 - 2015. Marabá – Pará. Editorial
Iguana, 2015.
TROCATE, Charles. Quando as armas falam, as musas calam. Marabá – Pará. Editorial Iguana, 2017.
TROCATE, Charles (Org.). Poema mineral. Marabá – Pará. Editorial Iguana, 2018.
ZONTA, Marcio; TROCATE, Charles (Orgs.). A questão mineral no Brasil – Vol. 1. Marabá – Pará.
Editorial Iguana, 2015.
ZONTA, Marcio; TROCATE, Charles (Orgs.). A questão mineral no Brasil – Vol. 2. Marabá – Pará.
Editorial Iguana, 2016.
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NEM TUDO O QUE PARECE É: UMA (RE)LEITURA DO CONTO ZEUS


OU A MENINA E OS ÓCULOS, DE MARIA LÚCIA MEDEIROS

Aletéia Patricia da Silva Silva

RESUMO

A partir da (re)leitura do conto Zeus: ou a menina e os óculos (1988), de Maria Lúcia Medeiros (1942-
2005), discorreremos sobre o subjetivismo da personagem principal. Informação que é essencial para
entender o quanto a literatura pode apresentar faces que dependem da desmistificação de fatos subjetivos,
que estão na obra aparentemente de forma inocente, mas que, diante dos acontecimentos reais, podem
ressignificar-se. Para este estudo,recorremos as reflexões de Móises (2001), Benjamin (1994) e Tupiassu
(2002).

Palavras-Chave: Maria Lúcia Medeiros. Conto. Análise literária.

INTRODUÇÃO

A situação das universidades, dos materiais a serem trabalhados como os livros didáticos, também
começaram a ser pensados em prol de uma nova mentalidade social que se estabelece. A questão da
literatura é relativa, pois quando restrita a público específico, correo risco de seccionar outras leituras.
Talvez seja interessante pensarmos em literatura numa totalidade e, acessível para apreciação de leitores
em suas diversas modalidades. Uma dessas modalidades chama-se literatura infantil, que para algumas
pessoas pode ter uma abordagemsomente de cunho lúdico, cuja personagem principal está ligada as suas
fantasias e a leituraé restrita a um único universo. Independente do que venha a ser para alguns, o que é
perceptível é a curiosidade e o desejo do conhecimento e da reflexão.
Diante disso, pensamos que é necessário compreender que a literatura é um objeto estimulador do
subconsciente tanto para quem escreve quanto para quem lê, não obstante, ela necessita que o seu subjetivo
seja enriquecido com as experiências de cada um dos atoresque constituem este processo. Walter Benjamin
destaca que um dos atores deste processo éo narrador, pois em se tratando de subjetividade ele fala que as
características deste narradorprecisam ser vistas há certa distância, para que percebamos todas as suas
nuances. Outro grande escritor que retrata sobre a literatura, especificamente infantil, é Monteiro Lobato,
que deixa claro a intenção do narrador, pois personifica seus personagens, de forma humana,de modo a
mostrar sua intenção para que possa ser rapidamente desvelada.
A partir desses aspectos mostrados a respeito do “criador” literário é que destacamos a contista Maria
Lúcia Medeiros, no seu primeiro livro Zeus: ou a menina e os óculos, 1988, em específico, o conto de
mesmo nome, representa neste espaço literário, aspectos que contemplam a proposta deste trabalho.
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OBJETIVO

Discorrer sobre a importância literaria enquanto objeto estimulador do subconsciente enriquecido


com as experiências dos atores que constituem esse processo, mais especificamente por meio do conto de
Maria Lúcia Medeiros (1942-2005), Zeus: ou a menina e os óculos (1988), discorrendo sobre a
intencionalidade de seus contos por meio deMóises (2001) e Benjamin (1994) e a subjetividade de seus
personagens que refletem um pseudo universo da literatura infantil, embebecido em suas experiências e
memórias afetivas,em busca do seu eu, lançadas por Tupiassu (2002) e Medeiros (2006).

REFERENCIAL TEÓRICO
A pesquisa foi pautada em Walter Benjamin, Clarice Lispector, e autores regionais como, Benedito
Nunes, Amaralis Tupiassu e, é claro, Maria Lúcia Medeiros, que emprestaram seus arcabouços de
conhecimento, para comprovação de conceito e conclusõesliterárias. Por meio da simplicidade da palavra,
autores e conhecidos de Maria Lúcia Medeiros são unânimes em dizer que a mesma colocava em palavras
tudo aquilo que tinha como verdade em sua vida. Utilizamos aqui o conto “Zeus ou a menina e os óculos”,
da escritora Maria Lúcia Medeiros, que demonstrou que uma leitura não precisa ser extensa para que
contenha muitos personagens, nem um mundo glorioso com castelos e vilões. E porque não dizer, nos trazer
para um universo simples, partilhando o olhar dela, que também jáfoi uma garotinha cheia de anseios e
expectativas.
Uma leitura descompromissada pode ser interessante e produtiva, sem o compromisso acadêmico,
“ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um
relatório” (BENJAMIN,1994, p.205).
Antes que penetrasse neste universo só seu a menina se despia do objeto ocular, “[...]antes de tomar
posse do cenário desejado, dispensava o uso dos óculos, enceguece-se, relegaà obscuridade o indesejável,
institui a abstração ou a desmaterialização do que recusa ver, para que seu mundo se construa de acordo
com os seus projetos [...] (TUPIASSU, 2002, p. 29). Ela consegue fazer da miopia um mundo fantástico,
que poderia ser reescrito da forma que ela quisesse, para isso bastava tirar os óculos e ver da forma e da
cor que desejasse.

Maria Lúcia Medeiros talvez fosse tão irrequieta quanto sua personagem, em uma desuas palestras
ela admite que se coloca tal qual sua personagem [...] “busquei o compartilhamento da minha dor na
literatura. Busquei a explosão da alegria ou aquilo que clandestinamente eu escondia ou protegi[a] do
outro. Busquei na literatura” [...] (MEDEIROS, 2006).
E assim buscando arquétipos diante das situações, Maria Lúcia Medeiros se transporta para uma
história real – fictícia que poderia ser a vida de qualquer pessoa passandopor dificuldades; por meio de uma
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leitura, ela nos induz a procurar uma saída simples e, o mais interessante, demonstrar que nem tudo o que
vemos é na verdade o que parece ser!

METODOLOGIA
Para esta pesquisa utilizamos os seguintes passos metodológicos:
a) pesquisa bibliográfica;
b) resgate de entrevista por meio de recortes de jornal como aporte para elucidar nuances de sua
personalidade e características de sua literatura;
c) por último, análise do comportamento de seu personagem, neste caso, a menina e os óculos,
como processo de descobrimento de facetas de uma vida real.

[...] A pesquisa bibliográfica é meio de formação por excelência e constitui oprocedimento


básico para os estudos monográficos, pelos quais se busca o domínio do estado da arte sobre
determinado tema. Como trabalho científico original, constitui a pesquisa propriamente dita
na área de ciências humanas [...] (CERVO, 2007, p.61).

RESULTADOS ALCANÇADOS
Maria Lúcia Medeiros é uma grande escritora, seus textos são permeados desegmentos emotivos.
É assim que analisando suas narrativas percebemos que característicastão comuns se tornam sentimentos
latentes, sentidos que saltam a sua narrativa por nos remeter a realidades, que são veladas por
comportamentos subjetivos. É com a intenção de revelar estes comportamentos, que começaremos a
discorrer sobre algumas características inerentes a “Zeus e ou a menina e os óculos”, pois percebemos que
diante do texto é onde serevelam todas as nuances deste personagem e, também, em que desponta outros
aspectos que não estejam dentro de um universo inocente que obviamente imaginamos ser, de uma
literatura infantil.
Figura 1: Capa do livro Zeus ou a menina e os óculos, por Valdi Sarubbi.

Fonte: Google Imagens


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No texto de Maria Lúcia, “Zeus ou a menina e os óculos”, vislumbramos em um primeiro


momento, uma literatura “aparentemente infantil”, justamente por conta da imagemque nos é transmitida.
Porém, se nos depararmos com as tessituras do conto de Maria Lúcia Medeiros, encontramos
comportamentos que aguçam uma dualidade nada previsível, onde o “mundo adulto” sobrepõe-se a esse
universo trivial da infância.
É interessante que saibamos a real importância deste elemento ficcional nos textos. O surgimento
deste acontece por meio das narrativas e suas descrições, ele pode estar onipresente ou não nessas
histórias. Atentemos para a forma como Maria Lúcia apresenta asobras lidas, e também as definições
diante de sua simplicidade, que é uma das característicasda autora. Além de colocações sobre estética do
poema, encontradas no ensaio, percebemosque talvez dentre os vários poemas que possa ter lido, este
tenha uma identificação maior para a escritora.
Para Medeiros, os atributos que compõem a palavra Zeus talvez estejam associados à destreza de
sua personagem, vislumbramos a relação da palavra contida no título “Zeus” com a narração, para que
fiquem claros os caminhos percorridos pela autora no conto.
De que forma o olhar da criança é observado a partir da personagem Zeus? Esta inquietação nos
desperta para um melhor entendimento dos aspectos psicológicos e inconscientes do narrador,
proporcionando um olhar crítico-reflexivo diante do mundo real. A partir de uma obra fictícia e
contemporânea, que é “Zeus ou a menina e os óculos”.

REFERÊNCIA

BENJAMIN, Walter. Magia e Ética, arte e política: ensaios sobre literatura e história dacultura. 7ª
Ed. São Paulo-SP: Brasiliense, 1994.
CADEMARTORI. Ligia. O que é literatura infantil? Coleção primeiros passos 163.Editora
brasiliense.
CERVO, Amado Luiz.. Pedro Alcindo Bervian da Silva, Roberto da Silva. MetodologiaCientífica.
6ª ed.São Paulo: Pearson Prentice Hall.2007.
MEDEIROS, Maria Lúcia. Zeus ou a Menina e os Óculos. 1ª Ed. Editores: RoswithaKempf. São
Paulo - SP, 1988.
NUNES, Benedito, O Drama da Linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. 2ª Ed. Editora:Ática.
2006.
MOISÉS, Massaud. A criação Literária, Prosa I: fôrmas em prosa, conto, novela, romance.18º edição.
Editora: Cultrix LTDA. 2001. São Paulo –SP.
TUPIASSU, Amarílis. A ficção de Maria Lúcia Medeiros: Leituras. Belém-Pa: SECULT,2002.
. Escrita literária e outras estéticas: Linguagens, estudos interdisciplinares emulticulturais,
1. Organizadora – Belém: Unama, 2006.
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RELAÇÕES SIMBÓLICAS DE PODER NOS POEMAS


“AUTOSSABOTAGEM” E “VOO” DE JOZIANE FERREIRA DA SILVA

Aline Lima Pinheiro5


Shara Pereira Farias6

RESUMO: Este trabalho tem o propósito de analisar na obra “Carta à felicidade” da escritora paraense
Joziane Ferreira da Silva os poemas “Autossabotagem” e “Voo” atentando para as formas como as
representações simbólicas das relações de poder são internalizadas e constituem na subjetividade do eu lírico
enquanto um sujeito dual, que quer viver as experiências da vida e é reprimido. Na análise são consideradas
as contribuições de Bourdieu (2019), Beauvoir (2016) e Perrot (2019). O eu lírico apresenta problemas
relacionados gênero considerando às relações de poder simbólico o constitui, indicando as dimensões do
apelo à passividade a que as mulheres submetidas.

Palavras-chave: feminino, mulher, relações de poder, gênero.

INTRODUÇÃO
Joziane Ferreira da Silva é mulher negra, socióloga, mãe e escritora. O livro “Carta à Felicidade e
outros poemas” é sua primeira publicação. Traz as vozes de mulheres emdiferentes contextos. Os poemas
analisados neste trabalho apresentam um eu lírico que se reconhece “mulher habitada” por outra mulher e
vive o conflito entre a liberdade de construira própria história, o reconhecimento da capacidade e força
em potencial suficiente para realizar, mas é frustrada pela repressão de uma voz, que é “OUTRA
MULHER” que a habita.
A questão que emerge desse conflito pode ser analisada pelas condições as quais as mulheres foram
submetidas historicamente, na sociedade patriarcal orientadas/controladas pelos discursos que estabelecem
a hegemonia masculina e atribui papéis, lugares, formas de comportamento às mulheres.
A análise é realizada pelas considerações de Perrot (2019) reconhecendo que osdiscursos sobre o
feminino foram construídos no sentido de reprimir a mulheres da livre expressão de desejos e a confinando
no espaço doméstico. Bourdieu (2019) reconhece as relações de poder que emerge nos discursos e
constituem a hegemonia masculina. E Beauvoir
(2016) analisa a passividade das mulheres como parte da sua educação/formação patronizando um
comportamento silencioso, passivo para as mulheres. A análise foi construída no processo de interpretação
do poema compreendendo as relações com as concepções estabelecidas, de acordo com a metodologia de
pesquisa conhecida por análise de conteúdo.

5
Graduada em Letras – UFPA; especialista em Políticas de Igualdade Racial – UFPA; especialista em Planejamento
implementação de gestão EAD – UFF; especialista em Linguística e Literatura – FAEME; mestranda do POSLET – UNIFESSPA.
E-mail: pinheiro.alinee@gmail.com
6
Graduada em Letras – UFPA; especialista em Abordagens Culturalistas: saberes, identidades e diferença cultural da/na Amazônia
– UNIFESSPA. E-mail: sharavictor08@gmail.com
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OBJETIVO GERAL
Analisar as relações simbólicas de poder que emergem no eu lírico ao se reconhecer mulher habitada
por duas mulheres com forças contraditórias.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Analisar o conflito estabelecido pelas forças contraditórias que atuam no eu lírico; Investigar
as relações entre essas forças apresentadas materializadas em dizeres como“tesoura de jardineiro” e “atira
uma pedra ao mar”; Conhecer as possíveis origens dos discursos internalizados e materializado nas vozes
do eu lírico.

REFERENCIAL TEÓRICO
A análise dos poemas é realizada a partir da contribuição de Perrot (2019), que analisa na história
das mulheres a relação entre mulheres e espaço afirmando que as mulheres sempre foram confinadas ao
espaço interno, enquanto os homens ao externo. Todo espaço em que a mulher circula, diferente do
doméstico a apresenta como “desonrada” “uma vergonha”. No trecho:

“É preciso proteger as mulheres, ocultar sua sedução. Cobri-las de véus. “Uma mulher em
público está sempre fora do seu lugar”, diz Pitágoras. “Toda mulher que se mostra de
desonra” escreve Rousseau a D’Alembert. O que se tema: as mulheres em público, as
mulheres em movimento (PERROT, 2019, p. 136).

Perrot indica a diferença entre o homem e a mulher no espaço público, pois para os homens, o fora,
a circulação, o movimento é lugar da honra, para a mulher é desonra. É importante ressaltar que as privações
da circulação feminina foram marcadas no discurso e ematos, como a proibição de viajar e hospedar-se em
hotéis desacompanhadas de seus esposos. Eainda:

A cidade, representada como a perdição das moças e das mulheres, lhes permite, com
frequência, libertar-se das tutelas familiares pesadas, de um horizonte de aldeia sem futuro.
Conseguem modestas ascensões sociais, escapam a uniões arranjadas para realizarem
casamentos por amor. A cidade é o risco, a aventura, mas também a ampliação do destino.
A salvação (IBIDEM, p. 136)

É esse aspecto dual, paradoxal que representa o discurso dos poemas analisados. Os poemas de
Joziane Ferreira da Silva apresentam essa mulher que possui em si e desejo da salvação que está no espaço
fora pode proporcionar ao mesmo tempo em que reconhecemtodo o risco, toda a privação.
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O reconhecimento da mulher como ser fechado em si, passiva, para Beauvir (2016) é baseado em
uma noção biológica segundo a qual do óvulo fechado, passivo a espera do espermatozoide. Essa noção
serviu de base para o mito da passividade feminina, ancorado em discurso que modelavam o comportamento
das mulheres.
A autora realiza uma investigação com elementos biológicos para refutar essa noção e reconhecer ao
final que a passividade está ligada ao aparato discursivo que educa as mulheres para assumir esse
comportamento.
A voz da mulher que habita o eu lírico, nos poemas analisados, é responsável pela regulação e
controle pode ser entendida pelas relações de poder, segundo Bourdieu (2019) trata-se de uma forma de
violência simbólica, segundo autor “a dominação masculina encontra assim reunidas todas as formas de
seu pleno exercício” concebendo as relações genéricas e divisões de tarefas favoravelmente aos homens e
engendrando em tais condições que são reconhecidas como naturais, objetivas, quando na verdade são
subjetivas,androcêntricas. O discurso é um fundamental nessa relação, pois forma as consciências e tornam
as mulheres as responsáveis pela sua própria regulação:

E as próprias mulheres aplicam a toda realidade, e particularmente as relações de poder


que se veem envolvidas, esquemas de pensamento que são produtos da incorporação da
relação de poder e que se expressam nas oposições fundadoras de ordem simbólicas
(BOURDIEU, 2019, p. 62).

A revelia das proibições, as mulheres circulam, saem da sua condição, reconhecem a relação de
opressão estabelecida. Encontramos na história das mulheres com frequência, rebeldes, progressistas,
aventureiras, ativistas, é fato que estamos no século XXI contabilizando inúmeras conquistas e
reconhecendo o longo processo que temos a alcançar pela insatisfação com a emancipação conquistada e a
certeza de que ainda há muito a fazer.

METODOLOGIA
A metodologia usada neste trabalho é baseada na análise do conteúdo construindo apor meio da
interpretação de conteúdos textuais considerando uma prática metodológica que envolve a compreensão,
interpretação, inferência orientada de forma a reconhecer os sentidos simbólicos do conteúdo investigado.
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RESULTADOS

Os poemas são dispostos a seguir:

Autosabotagem

A mulher que habita em mim quer saltar


de ponta a cabeça e mergulhar na vida.
A outra que também mora em mim, a puxa de volta,
e atira uma pedra ao mar,
que é o meu coração e diz:
pare, não vá, veja o quanto é fundo,
vais se afogar. (IDEM, 6)

Voo

A mulher que habita em mim anseia por voar chegar até


o céu dançar nas nuvens nelas se deitar escorregar
e rolar para lá
e para cá A mulher que
habita em mim anseia por voar a Outra,
que também habita em mim possui uma
tesoura invisível dessas de jardineiro quando eu abro
as minhas asas prontas para
o voo ela vem e corta
as minhas penas que pena
ela corta
as minhas penas. (IDIDEM, 73)

O eu lírico inicia os versos, nos dois poemas, da mesma forma declarando ser uma mulher habitada
por outra. Uma quer viver plenamente as experiências e a outra a reprime.No mesmo ser, existe duas
forças contraditórias, o desejo de direciona-se à vida, à liberdade, expresso nos verbos “querer”,
“mergulhar” e “voar” indicando impulso para experiências, enquanto a outra mulher é direcionada à
primeira, com o propósito de reprimi-la.
O eu lírico é uma mulher que convive com essa contradição, internalizada na sua própria consciência.
Ao mesmo tempo em que se sente impelida a viver as experiências do espaço externo, sente-se reprimida
para permanecer no interno.
A OUTRA, o ser repressor, funciona como regulador das ações. Ora, tanto em “Voo” como
“Autossabotagem” há regras que limitam essa locomoção, e estão internalizadas, fazem parte da sua
consciência, não é uma voz externa. De acordo com a análise é possível afirmar que a “tesoura de jardineiro”
assim como a “pedra que a atira ao mar” são materializações dosinstrumentos de repressão que foram
internalizados pelo eu lírico, possivelmente são trazidosà consciência advindos dos discursos construídos
para educação/formação/modelação das mulheres, pois orientam um modelo de comportamento feminino
que encerram a mulher nos espaços internos, a impedindo de sair.
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REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e violência simbólica. 16ª edição.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.
BEAUVOIR, S. D. Segundo sexo: a experiência vivida. Tradução de Le Deuxième sexe. 3.ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, v. 2, 2016.
MORAES, Roque. Análise do conteúdo. Revista Educação: Porto Alegre, v 22, p. 7-32, 1999.PERROT,
Michelle. Minha história das mulheres. 2ª edição. São Paulo: Contexto, 2019
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RELATO DE EXPERIÊNCIA EM EXTENSÃO: PROJETO ‘DAS


MARGENS AO CENTRO’ DANDO VOZ E VISIBILIDADE À PRODUÇÃO
LITERÁRIA DE MULHERES NEGRAS

Aline Pires de Morais7

RESUMO: Considerando que, ao longo da história, a mulher negra escritora realizou uma caminhada
marcada pela invisibilidade, ocupando um espaço de marginalidade na produção literária brasileira, o
presente relato tem como objetivo apresentar as experiências advindas do desenvolvimento do projeto de
extensão, ainda em andamento, “Das margens ao centro: dando voz e visibilidade à produção de mulheres
negras”, o qual é desenvolvido pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Mato Grosso – Campus
Campo Novo do Parecis, sob coordenação da professora Aline Morais e tem como objetivo promover, por
meio de círculos de leitura e debates mediados, a leitura de textos literários produzidos por mulheres negras,
anelando retratar a crucialidade das mulheres negras escritoras e conjeturar sobre a produção literária
feminina negra no cenário brasileiro.

Palavras-chave: Autoria negra; Literatura; Mulheres.

APRESENTAÇÃO
Promover e incentivar a leitura de obras literárias de autoria feminina negra constitui-se como uma
maneira de garantir voz e visibilidade à produção literária dessas mulheres dentro dos espaços escolares e
não – escolares, garantindo um processo de formação que tenha como base o antirracismo, por isso a
promoção de ações que visam difundir a produção literária desse grupo são fundamentais, uma vez que,
além de possibilitar a prática da leitura e o desenvolvimento de habilidades leitoras, ainda traz ao centro, a
produção literária de um grupo que sempre foi silenciado.

METODOLOGIA
O presente relato tem como objetivo apresentar as experiências advindas do desenvolvimento do
projeto de extensão, ainda em andamento, “Das margens ao centro: dando voz e visibilidade à produção de
mulheres negras”, o qual é desenvolvido pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Mato Grosso –
Campus Campo Novo do Parecis, sob coordenação da professora Aline Morais e tem como objetivo
promover, por meio de círculos de leitura e debates mediados, a leitura de textos literários produzidos por
mulheres negras, anelando retratar a crucialidade das mulheres negras escritoras e conjeturar sobre a
produção literária feminina negra no cenário brasileiro.
As ações do projeto foram organizadas por meio de uma agenda mensal que contempla a realização
de um encontro, que acontece de forma on-line em razão da pandemia do COVID-19, mediado por uma

7
Professora doutora em Estudos Literários do Instituto Federal do Mato Grosso – campus Campo Novo do Parecis.
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autora ou estudiosa da literatura negra que realiza a mediação com os inscritos. Cabe destacar aqui, que a
seleção do corpus de leitura deu-se em razão do apagamento a que essas escritoras foram relegadas durante
grande parte da história. O público-alvo do projeto é a comunidade em geral, em especial alunos da rede
pública de ensino e pessoas que se interessem por conhecer e debater a literatura brasileira produzida por
mulheres negras. Além disso, uma das etapas do desenvolvimento das atividades compreende promover a
formação continuada dos professores de educação básica acerca da temática que contemple a importância
de trabalhar a representatividade por meio da literatura infanto-juvenil e seus personagens.

RESULTADOS ALCANÇADOS

Winnie Bueno afirma que “Numa sociedade estruturalmente racista, onde ferramentas ideológicas
são articuladas para cercear a subjetividade dessas mulheres, a escrita é um importante instrumento de
autodefinição” (2020, s.p), daí que ao escolhermos a produção de escritoras negras estamos propondo um
resgate histórico de uma escrita que foi silenciada ao longo do tempo e que, nos últimos anos, têm ganhado
força devido a potência que traduz, como completa Bueno “a escrita de mulheres negras fez possível que
essas mulheres escrevessem em voz própria suas narrativas e trajetórias [...] encontraram na escrita formas
de falar sobre mulheres de maneira complexa, viva, sincera e não estereotipada.” (2020, s.p) Diante disso,
percebe-se a necessidade de que haja um incentivo à leitura, e a opção por textos literários produzidos por
mulheres negras é uma maneira de tornar conhecido reflexões importantes para a história do ser humano,
além de promover a disseminação dos saberes da mulher negra e estimular a circulação dessas obras fazendo
com que ocupem lugares de destaque e alcancem um número maior de leitores que, frequentemente, não
procuram esse tipo ode texto e/ou desconhecem as publicações das autoras escolhidas. Para que a leitura de
textos com autoria feminina negra possa ser estimulada é necessário que no processo de formação de leitores,
os mesmos tenham acesso a essa produção, objetivo que se pretende viabilizar com a execução desse projeto
ao trazer essas vozes periféricas para o centro.
Ademais, cabe ressaltar que a lei 10.639/2003 estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-
Brasileira", mas na verdade o que vemos são ações isoladas em datas específicas que não atendem o proposto
no documento que sinaliza para o trabalho com a história e cultura afro-brasileira cotidianamente nos
currículos escolares, por isso esse projeto pretende viabilizar que a temática esteja presente no dia-a-dia dos
alunos participantes por meio das vozes negras femininas que contam muito da história e fazem ressoar a
luta do seu povo por meio de narrativas literárias.
Vale ainda pensarmos que a literatura escrita por mulheres negras representa a história de um povo
e o histórico de lutas que permeia a constituição identitária desse povo, e ao nos determos nas narrativas
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desse povo estamos contribuindo para dar visibilidade a tudo que ficou silenciado por tanto tempo e
rompendo com padrões que foram por muito tempo idealizados.
Portanto, pensar a escrita das mulheres negras é pensar na possibilidade de refletir a sociedade
contemporânea em seus meandros, possibilitando aos sujeitos leitores conhecer os saberes produzidos por
essas mulheres para, assim, romper com os estigmas sociais que marcaram e marcam a história desses povos
que viveram e continuam vivendo à margem. Daí a urgência de pensarmos em ações que possam colaborar
e garantir visibilidade a essas vozes, e uma das formas de que isso aconteça é pela promoção da leitura dos
textos produzidos por essas escritoras efetivado pela circulação de seus saberes que ganham expressividade
por sua produção literária.
Como o projeto ainda está em desenvolvimento, espera-se que, ao final, os envolvidos ampliem seus
conhecimentos sobre literatura feminina de autoria negra, almeja-se que aumente o interesse dos
participantes pelos textos de escritoras negras e que o hábito da leitura como prática social seja efetivado. A
mensuração dos resultados será qualitativa, uma vez que estaremos atentos à participação dos inscritos,
procurando estimulá-los a seguirem participando dos processos, além disso, ao final os relatos de
experiência serão formas de validar os impactos provocados pelas ações desenvolvidas ao longo do projeto.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm Acesso em: 18/05/2021
BRASIL. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03 / Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. 236 p. (Coleção Educação para todos)
BUENO, WINNIE. A literatura pode reverter a desvalorização do olhar das mulheres negras no
Brasil [https://www.crb8.org.br/a-literatura-pode-reverter-a-desvalorizacao-do-olhar-das-mulheres-negras-
no-brasil/]. Acesso em 18/05/2021.
CASTRO, Tamara. Mulheres negras na literatura. Disponível em:
[https://www.cenpec.org.br/tematicas/mulheres-negras-na-literatura]. Acesso em 22/05/2021.
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AS NARRATIVAS DE NÓS: OS CONTORNOS DE GÊNERO PELAS


LINHAS LITERÁRIAS

Fabrícia Vellasquez Paiva8


Brenda Cristina da Silva e Silva9

RESUMO: Este resumo expandido tem como finalidade apresentar os resultados alcançados pelo Curso de
Extensão “Em linhas narrativas de mulheres: infinitos contornos de gênero”, que aconteceu no mês de junho no ano
de 2021, vinculado à Universidade Federal Rural do Rio deJaneiro (UFRRJ) e pensado a partir das experiências
do Projeto de Extensão “De linhas, outras histórias e novas memórias: espaços, temas e sujeitos possíveis à contação
e à criação de livros em literatura infantojuvenil”. Para tal, foram analisados os trabalhos entregues pelas
participantes – e pelo participante – do Curso, em que, usando de uma ou mais formas literárias, as participantes
deveriam elaborar um memorial de como percebia o debate de gênero, partindo, também, dos conteúdos expostos
nas aulas, na sua trajetória de vida.

Palavras-chaves: Literatura. Gênero. Sociedade. Extensão.

INTRODUÇÃO
O presente resumo expandido buscou versar sobre o Curso de Extensão “Em linhas narrativas de
mulheres: infinitos contornos de gênero”, que foi elaborado e executado no âmbito do Projeto de Extensão
“De linhas, outras histórias e novas memórias: espaços, temase sujeitos possíveis à contação e à criação
de livros em literatura infantojuvenil”.
Para tal, foram apresentados: os objetivos do curso, as demandas analisadas para a sua elaboração,
o processo metodológico e os resultados obtidos a partir dos encontros. Bem como a apresentação dos
principais referenciais teóricos abordados e/ou utilizados ao longode todo o processo.

OBJETIVOS
O Curso tem como objetivo principal, por meio das narrativas de obras literárias escritas por
mulheres e das trocas de experiências nos relatos das palestrantes, disseminar o debate sobre gênero e
sexualidade, a partir do olhar da mulher sobre as mulheres.
Dessa maneira, o Curso pretendeu, pelas obras trabalhadas e pelas produções autorais das(o)
participantes, fomentar o debate sobre novos caminhos possíveis de reflexão e de denúncia de violências
e de silenciamentos, por meio da escrita literária.

REFERENCIAL TEÓRICO
Buscando reforçar a importância de uma experiência estética e crítica (BAKHTIN, 2003;

8
Doutora em Educação. Docente da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, campus Seropédica. E-mail:
fabriciavellasquez@yahoo.com.br.
9
Acadêmica do curso de Serviço Social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, campus Seropédica.E-mail:
cristina.brends@gmail.com.
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ADORNO, 2013) com a linguagem, considerando, especialmente, a literatura como arte – em suas
narrativas verbais e não verbais – e a construção de outras vivências e novas memórias (BENJAMIN,
1987), a partir da compreensão de que o uso das histórias por meio das obras literárias se fundamenta em
uma noção mais ampliada de arte (BARTHES, 1987;1996) próxima a uma história contada que não apenas
envolve o leitor, mas que o considera, pela aproximação com o objeto livro, o próprio autor do texto lido
(SISTO, 2001),o Curso foi fundamentado no diálogo entre os autores aqui citados com autoras do passado
e do presente.
Dentre as obras de literatura selecionadas para abrir e encerrar os encontros do Curso, estavam
trechos de: “O livro das garotas audaciosas” de Andrea J. Buchanan; “Histórias de ninar para garotas
rebeldes” de Elena Favilli e Francesca Cavallo e “Quarto de despejo: diáriode uma favelada” de Carolina
Maria de Jesus que foi, também, uma das autoras homenageadas ao longo do Curso.

METODOLOGIA
A metodologia do Curso foi pensada de forma a mesclar as narrativas do passado com as narrativas
do futuro, em um espaço em que todas as mulheres se percebam como autoras desuas próprias histórias.

Dessa forma, os encontros que aconteceram nas noites de terça-feira e de quinta-feira, eram iniciados com
uma contação de história, que introduzia o tema proposto para aquele momento, que era seguida pela
contação das mulheres palestrantes que narravam as suas percepções do ser mulher em sociedade, a partir
de suas vivências. Cabe destacar que a palestrantes convidadas ocupam diferentes posições sociais e
títulos acadêmicos – sendo elas mulheres mães, docentes, doutoras, mestres, graduandas, militantes; das
Ciências Sociais às Ciências Ambientais e Florestais –, reforçando, assim, não apenas o caráter
interdisciplinar que o Curso – bem como o Projeto ao qual se vincula – se propõe, mas, também, os
diferentescontornos do ser mulher na sociedade e as diferentes formas de dizê-lo.
Reconhecida recentemente como Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRJ), em novembro de 2020, e uma das grandes homenageadas do Curso, a autora Carolina
Maria de Jesus traz em suas palavras, elementos importantes para, a partir das contações dos trechos
selecionados, fomentar o debate acerca das influências da Questão Social para o reconhecimento do ser
mulher em sociedade e como nos reconhecemos diante desse debate. Para além, as contações possibilitam
que as participantes percebam que, tão importante quanto o (se) reconhecer mulher – ou mulheres, no
plural de um/a mesmo/a sujeito/a – também o é a forma de dizê-lo: os discursos importam tanto ou mais
do que a própria identidade que resiste e que persiste, apesar de.
Dessa forma, a avaliação final é pensada de maneira a fomentar a escrevivência decada uma,
apontando a narrativa literária como terreno solo dizer o ser mulher, nas letras das mulheres que ainda são
anônimas. A avaliação final é, portanto, dividida em duas construçõesde narrativas pessoais, a saber: um
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diário pessoal, em que os/as estudantes relatam o processo de cada encontro, trazendo os conceitos
trabalhados e suas percepções pessoais/vivenciais sobre o assunto; e um texto-memorial, verbal e/ou
imagético, em qualquer forma de narrativa literária, em que o/a participante irá expressar suas reflexões e
vivências, boas ou ruins, dianteda condição de ser mulher, e/ou de perceber o que é ser mulher no modelo
de sociedade em que vivemos.

RESULTADOS
Ao longo do Curso, a partir dos relatos das participantes nas trocas de cada encontro,já era
possível notar como as múltiplas narrativas de mulheres despertavam em cada uma das mulheres
presentes, novas percepções de como a violência de gênero pode se manifestar na sociedade e tal
percepção se concretiza, especialmente, nos textos-memoriais produzidos por essas mulheres. Essas
produções são, portanto, escrevivências que em muito se aproximam dotexto de Carolina Maria de Jesus,
que nos possibilitam perceber os diferentes contornos da violência de gênero, através da catarse que a
escrita narrativa nos permite.
Foram encaminhadas ao e-mail oficial do Curso dez produções finais, entre diários e memoriais,
entre elas, duas produções de um participante que se reconhece enquanto homem cis-gênero. Suas
produções são escritas a partir das trocas proporcionadas pelos encontros e de suas memórias de sua mãe.
Outra produção que mescla as vivências daquela que escreve com as memórias de outra(s) mulher(es), é
aquela que narra um caminho de cuidado, de estudos e de maternidade que passam de mãe para filha.
Em uma das produções percebemos, de forma direta e clara, o que a escrita narrativa de nós por
nós nos permite: em uma poesia que se constrói em fragmentos de memórias, a autora faz do seu texto-
memorial um espaço de denúncia das tantas violências e abusos que sofreu em diferentes momentos de
sua vida. Ela encontrou, na narrativa literária, um espaçode liberdade e refúgio, em que as suas palavras
encontraram o caminho para denunciar os seusabusadores e mostrar as suas feridas que, aos poucos, se
cicatrizam, apesar de.
À vista da análise das produções finais das/o participantes, notamos a importância e a fundamental
contribuição que o uso da Literatura, e da escrita de si, como instrumento de debate e de reflexão sobre as
expressões da Questão Social, em especial no que diz respeito àquelas que envolvem o debate de Gênero
e as violências às quais as mulheres são submetidasdiariamente, pode proporcionar para debates e para
reflexões de gênero na sociedade. Encaminhamos, para tanto, a possibilidade de que as ações sobre a
temática consigam se estabelecer de forma contínua e formativa nos ambientes acadêmicos e sociais.

REFERÊNCIAS
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ADORNO, Theodor. Teoria estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2013.BARTHES,
Rolland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1996.
. Leitura. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987.
BAKHTIN, Mikhail. A Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história dacultura –
Obras Escolhidas I. 3a Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
SISTO, Celso. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Chapecó: Argos, 2001.
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EM MEIO A MATINTA PEREIRA E HALLOWEN:


PROBLEMATIZANDO A INVISIBILIDADE DA CULTURA AMAZÔNICA
NO ESPAÇO FESTIVO ESCOLAR NA CIDADE DE BELÉM DO PARÁ

Holdamir M. Gomes10

RESUMO: A contribuição deste trabalho ensaístico se dispõe a problematizar a invisibilidade da cultura


amazônica na dinâmica festiva do espaço escolar na cidade de Belém do Pará. Objetiva analisar a prática
pedagógica escolar, em momentos festivos, como mediadora de construção identitária. Contextualizando a
problemática, a questão se reporta a comemoração de uma cultura estrangeira, precisamente o Halloween,
em duas escolas belenenses, em detrimento da não valorização da cultura amazônica, em solo amazônico.
Traz o personagem mitológico da Matinta Pereira que perfeitamente se adequaria a festa das bruxas. Põe
luz no debate do silenciamento e da invisibilidade da cultura regional e simbólica no espaço escolar.
Analisa a prática pedagógica escolar como mediadora de construção identitária. A metodologia possui
natureza qualitativa, exploratória, integrada à técnica de pesquisa bibliográfica e descritiva, com base
empírica. A análise é subsidiada, bibliograficamente, com aporte teórico e contribuições centrais dos
seguintes autores visitados: Vera Maria Candau (2001), Nilma Lino Gomes (2007), Theodor Adorno
(2008). A partir das análises e digressões apresentadas, os resultados informam da necessidade de melhor
discutir a temática, defendendo a afirmação do pertencimento identitário amazônico, ao trazer a cultura
amazônica para dentro do ambiente escolar, inclusive nos momentos festivos, sobretudo em solo
amazônico. Igual modo enxerga a necessidade da construção de pontes dialogais entre culturas, em busca
de novas sínteses.

Palavras-chave: Cultura. Identidade. Amazônia. Prática pedagógica.

INTRODUÇÃO

A presente discussão remete a invisibilidade da cultura amazônica no espaço festivo escolar. A


fim de contextualizar a problemática, apresentamos o status quaestionis, que se reporta a comemoração de
uma manifestação cultural estrangeira – Halloween (festa das bruxas), em duas escolas belenenses, uma da
rede pública e outra particular de natureza confessional, ocorrida no segundo semestre do ano de 2019,
antes da pandemia.
Sendo uma festividade de pouca tradição em solo amazônico, mas que vem ganhando espaço nos
últimos tempos, discute-se a não valorização da cultura no espaço comunitário escolar amazônico, ante os
personagens mitológicos do folclore local, como o Curupira, a Caipora, o Saci-Pererê, o Mapinguari e,
especialmente, a bruxa lendária da Matinta Pereira. Figuras que se adequariam perfeitamente à festa
temática.
Certamente, a discussão transita por complexas problematizações e relações imbricadas num
panorama interpretativo que contempla diversas categorias teóricas: pós-colonialismo, aldeia global,

10
Mestrando no PPGCITI – Programa de Pós-Graduação em Cidades, Identidades e Territórios da UFPA. E-mail:
hdamirmg@gmail.com
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multiculturalismo, cultura híbrida, subalternidade, etc., cada uma com fundamentos e argumentos teóricos
específicos. Contanto, a metodologia possui natureza qualitativa, exploratória, integrada à técnica de
pesquisa bibliográfica, tendo uma diretriz ensaística. Cujo cerne é problematizar e provocar com a temática,
até porque o ensaio “[...] não começa com Adão e Eva, mas com aquilo que se deseja falar; diz o que a
respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer”
(ADORNO,2003, p. 17).

ANÁLISE DOS DADOS

O universo amazônico é múltiplo em todos os sentidos. Fecundo berço de muitas lendas que fazem
parte do imaginário e da identidade amazônica. Conforme Oliveira (2003, apud VASCONCELOS, 2010,
p. 33), a concepção identitária amazônica é plural, híbrida: “[...] não existeuma cultura, uma identidade
amazônica no singular. [...] As diferentes manifestações culturais trazem marcas do híbrido e da
mestiçagem e reconhecem as presenças indígenas, africanas, libanesas, nipônicas, entre tantas outras”.
No que interessa ao presente estudo, contextualizando a problemática ocorrida no segundo
semestre do ano de 2019, antes da pandemia (A.P.), realizou-se uma animada e barulhenta festa escolar do
Halloween – Dia das Bruxas –, em dois conhecidos colégios na cidade de Belém, sendo um deles da rede
pública de ensino e outro particular, de ordem confessional. O evento, com decoração nas cores laranja e
preto, com direito a abóbora recortada em formato de rosto e iluminada internamente com lanterna, além
de festa à fantasia com máscaras, maquiagens e figurinos assustadores, tornou-se um evento exitoso.
Contudo a temática sombria de bruxas, monstros, dráculas, duendes, fantasmas e personagens
caricatos foram importados de uma cultura estrangeira. Utilizou-se de uma expressão imaginária distante,
quando poderia se compor de personagens do folclore amazônico local.
Perfeitamente adequável seria a figura da bruxa lendária amazônica nominada de Matinta
Pereira2, nome aportuguesado de antigo mito indígena, que dialogaria perfeitamente com figurinos de
bruxas, monstros e realidades assustadoras. Incorporando recursos sonoros como o assovio misterioso e
agourento do pássaro, que não é pássaro, mas um ser mítico, e que causa arrepio e temor nas comunidades
amazônicas (CASCUDO, 2001).
Em desdobramento, questionando da razão de não compor uma festa com a Matinta Pereira, a
qual melhor representaria e valorizaria a cultura amazônica, um professor e um coordenador pedagógico,
de colégios distintos, deram como resposta: o primeiro, que o alunado e seus pais poderiam não aceitar; o
segundo, que referida proposta iria contrariar o planejamento pedagógico adotado.
Entrevê-se, nessas respostas, o substrato de intricadas análises sobre as complexas relaçõesentre
cultura e educação. Dentre as várias vias analíticas dialetizadoras, tem-se que a opção ao prestigiar culturas
distantes são ecos de um processo de apagamento da memória simbólica local, de supressão das ricas
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diversidades culturais e sociais de um povo. Como processo artificial ou intencional é certo ser estrutural,
e assim construtor do silêncio e da invisibilidade. Pois, conforme Maurice Halbwachs (1997), num
momento que não se fala, nem se reporta a essa memória patrimonial e cultural, ela vai aos poucos perdendo
o sentido, realidade anunciadora de sua morte aonão dialogar mais com o presente.
De antemão, tem-se que as práticas pedagógicas e conteúdos curriculares interferem no universo
simbólico, na formação da consciência cultural e identitária de jovens e crianças amazônicas, na medida
em que “[...] um dos grandes trunfos da legitimação da escola tem sido o seu papel de formadora de
identidades, sejam estas individuais, sociais e, principalmente, culturais” (CANDAU, 2008, p.26). Havendo
a necessidade de “[...] construir práticas pedagógicas que realmente expressem a riqueza das identidades e
da diversidade cultural presente na escola e na sociedade” (GOMES, 2007, p. 25). Sobretudo em solo
amazônico que se constitui uma densa, rica epeculiar teia de relações sócio-ambientais-simbólicas. São
marcas ou máculas históricas que caracterizam o tratamento dado a Amazônia até a presente data. Povos e
saberes que foram historicamente subalternizados, duramente subjugados, silenciados e invisibilizados ao
longo dos séculos.
E a instância escolar amazônica que poderia ser uma forma de (r)existência e também de
resistência, se transforma em um espaço de reforço e fortalecimento do discurso dominante. É essa, em
síntese, a costura inquieta e problematizadora levantada nestas breves linhas. Em que a escola amazônica é
também chamada a refletir sobre o seu papel, não podendo ter uma consciência vaga, frágil e incipiente do
que é e fazer educação em uma região diferenciada, onde as ruas são os rios, onde os mitos, figuras lendárias
povoam o imaginário popular.
Refletindo a esse respeito, certamente reverter esse silenciamento e defender a afirmaçãodo
pertencimento da identidade amazônica, certamente demanda complexos esforços, mas pode começar de
forma simples, no chão das nossas instâncias escolares – transmudando as festas escolares de Halloween
em festa da Matinta Pereira11.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações finais deste trabalho trazem mais perguntas que respostas. Atem-se a uma
temática intricada e que se projeta para diversos campos de análises. O esforço aqui concentrado, contribuir
com o debate na construção da identidade amazônica a partir do espaço escolar festivo, traz a necessidade
da admissão e valorização dos conteúdos e referenciais simbólicos culturais da região a partir de práticas,
planos e projetos pedagógicos que os contemplem.

11
Matinta Pereira – velha bruxa do folclore amazônico, que durante as noites se transforma em um pássaro agourento que
pousa sobre os telhados e somente cessa de assobiar quando o dono da casa oferece café e tabaco, sob pena de um mal ou
morte acontecer na casa
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De acordo com as notas expostas, implica-se reconhecer que a escola não é neutra, ela media a
construção da identidade cultural dos seus alunos. Ao não reconhecer as especificidades sócio-histórico-
culturais locais, dá lugar a uma cultura unificadora de identidades e culturas, embotando o nível de
sentimento e pertencimento identitário,

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.


CANDAU, Vera Maria. Nas teias da globalização: cultura e educação. In: CANDAU, Vera (org.). Sociedade,
educação e cultura. 2a. ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 2008.
CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. São Paulo, Global Editoras, 2001.
GOMES, Nilma Lino. Diversidade e Currículo. In: MOREIRA, Antonio Flávio; CANDAU, Vera Maria.
Indagações Curriculares: currículo, conhecimento e cultura. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Básica, 2007.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
VASCONCELOS, M. E de O. Identidade cultural de estudantes rurais/ribeirinhos a partir das
práticas pedagógicas. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal do Amazonas, Faculdade de Educação, Manaus, 2010.
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CARTAS DE/PARA MULHERES NA ZINE SEGREDO

Lorena Dias12

Resumo: Evidencio nesse trabalho a escrita de mulheres diversas, da região norte do país.Precisamente 13
escritoras que “ousaram escrever” e organizar seus escritos na zine Segredo, editada e organizada pela
escritora paraense Monique Malcher. O desenho dessaobra é coletivo, afetivo e feminista. A importância
da escrita na vida de cada escritora é atravessada em diversos ângulos. A zine é dívida em duas partes, na
primeira temos os poemas e na segunda as cartas. Diante dos múltiplos dizeres expressos na Zine, o recorte
utilizado para esse trabalho é a segunda parte, por conter o elo de intimidade e promoveruma conversa
com as leitoras/escritoras. O objetivo é analisar os dizeres e as urgências presentes nas escritas dessas
mulheres, enquanto um chamado para a construção coletivadas mulheres.
Palavras-chave: Cartas; Escrita; Escrita de Mulheres

INTRODUÇÃO

A escrita sempre foi um território contestado13, utilizo aqui um dos conceitos trazidos pela
professora e pesquisadora Regina Delcastagnè14. O lugar do dizer é legitimado ou deslegitimado
dependendo dos recursos econômicos e das posições sociais que o individuo ocupa na sociedade. Os
recortes de classe social não são os únicos para pensarmos a literatura, outras intersecções são necessárias
para pensarmos a literatura feita por mulheres no nosso país.

OBJETIVOS

Nesse exercício de leitura e diálogo com as cartas presentes na Zine Segredo, repensei os lugares
da escrita e das nossas vozes, enquanto mulheres, partindo de um lugar ainda invisível pelos poderes
públicos que é a região norte do país, o Pará. A importância da zine Segredo convoca as mulheres que
mantém seus escritos engavetados, amedrontadas pelas críticas que foram construídas pela sociedade
branca-hetero-cis-patriarcal. Proponho uma nova mirada para os dizeres das mulheres escritoras
contemporâneas que estão espalhadas por Belém, pelos interiores do estado do Pará, as quais precisamos
conhecer.

12
Graduada em Letras Português/Português (FURG), Mestranda em Letras no Programa de Pós- Graduação em História da
Literatura (FURG).
13
É difícil pensar a literatura brasileira contemporânea sem movimentar um conjunto de problemas, que pode parecer
apaziguado, mas que se revelam em toda a sua extensão cada vez que algo sai de seu lugar.Isso porque todo espaço é um espaço
em disputa, seja ele inscrito no mapa social, ou constituído numa narrativa. Daí o estabelecimento das hierarquias, às vezes,
tão mais discretas consigam parecer: quem pode passar por esta rua, quem entra neste shopping, quem escreve literatura, quem
deve se contentar em fazer testemunho. (DALCASTAGNÉ, 2012 p.07)
14
É professora titular de literatura brasileira da Universidade de Brasília e pesquisadora do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea.
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REFERENCIAL TEÓRICO

A primeira parte da zine, intitulada “revele-se” apresenta de forma breve cada umadas escritoras que
compõem a zine: Brenda Almeida, Camila Cravo, Camila Mendes, Dayane Ferreira, Deyse Abreu,
Gabrielle Du Lírios, Laiane Guedes, Luana Lima, Maria Flor da Terra, Mayara La-Roque, Rafaela
Oliveira, Rita de Cássia, Winnie Buendía. 13 mulheres que caminham juntas com/para a construção
poética do dizer. “Cartas para umaescritora” é o título da segunda parte da zine. Nesse segundo momento
temos uma preocupação com a outra que escreve, que lerá as cartas, como é possível perceber no título
da primeira carta, escrita por Brenda Almeida, que menciona:

“para ti mesmo, não podia ser outra Cecília Meireles questionava a potência das palavras
frágil como o vidro e mais que o aço, poderosa. Sabia apenas que todo o sentido
principia à vossa porta, que com letras se elabora a liberdade das almas. E foi a ti, minha
cara operária das letras, a incumbência de alçar o mais profundo oceano do ser de
alguém, um lugar inóspito para outras ciências. Apenas as artes conseguem burlar os
códigos mais incessíveis e revelar o segredo que mora ali. (...)” (ALMEIDA,2020 p.39)

Nos escritos íntimos forjados pelas cartas, encontramos os atravessamentos das leituras que
formaram as escritoras, as influências literárias que cultivaram o gosto pela poesia e pela escrita. Brenda
designa a escritora de modo particular, enquanto “operária das letras”, ela possibilita pensar no trabalho
da escrita de forma ativa e nos inúmeros subterfúgios que atravessam o reconhecimento do trabalho da
escritora, principalmente em um país que não valoriza a literatura e as artes de modo geral.
Na carta escrita pela Camila Mendes, é possível identificar o olhar de intimidade para as
leitoras/escritoras, já que ela inicia como um bilhete “oi mana, quanto tempo, hein?! Desde aquele dia
chuvoso em Belém, em que trocamos cafés e cigarros, devaneando sobre nossas aspirações” ela finaliza
com um poema que diz, “papel e caneta/coração e sentimento/ expõe esses teus planetas/ pros buracos que
aqui reconheço/ o quetens a perder/ se não o livramento daquelas que de ti se alimentam. a ti desejo
palavras.”(MENDER,2020 p.40) a carta recorre aos diferentes gêneros para motivar a sua leitora/escritora
a persistir na escrita.
A carta da escritora Laiane Mendes também recorre ao olhar de profundidade. Ela intitula a carta
de “Algum dia do mês de janeiro” analiso a tentativa da memória de reconhecer o momento exato do
encontro com a sua leitora/escritora como um grau de importância daquele fato, ela menciona “Sempre
que quiser dizer um não, diga. Dizer simquando se quer dizer não, faz um mal danado e convenhamos não
temos mais idade paraesses pequenos atrasos” (MENDES, 2020 p.41). Ela revela um olhar atento para as
problemáticas em volta do corpo da mulher que sofre diariamente a violência no quinto pais que mais
mata mulheres no mundo.
A escrita da Mayara La-Roque inicia com “para ti, mulher, que escreves” seguindocom a data e o
local. Assim como na carta da Brenda, há um intertexto de uma outra escritora, a Olga Savary, e de um
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escritor o Pablo Neruda. A beleza da carta tecida pela escritora provoca um deslocamento poético
construído de forma cuidadosa, ela diz:

“diante daqueles que tentam te calar/ escreves porque são tantos os que querem te
silenciar/ e não é fácil custa lapidar a própria voz/ mas é esta mesma cavalga há eras
galopando multidões em teu peito/ falanges milenares acesas/ mas velozes que o tempo
deste mundo corroído/ é então que escreves, enquanto o mundo desaba (...)” (LA-
ROQUE, 2020 p.43)

A carta configura um espaço do sensível no processo da escrita, ela se insere nelecomo escritora.
Nesse sentido, Mayara convoca as escritoras a seguirem o caminho da escrita como um gesto de existência
e de travessia de si mesma. Da mesma forma, a cartada Winnie Rodrigues pede para a sua leitora/escritora
que ela não pare de escrever, ela menciona, “olá minha amiga, escrevo para pedir que não pares tua escrita
(..)” (ROGRIGUES,2020, p.45) esta é a única carta que inicia com um pedido expresso para as mulheres
não deixarem as escritas engavetadas, que as mulheres sigam escrevendo demaneira autônoma.
A carta/poema da escritora Camila Cravo possuí aspectos autobiográficos erecorre ao uso dos
versos enquanto uma ferramenta para dizer a sua leitora/escritora que,“Nunca te faltarão palavras/ e se
eventualmente te faltarem/ com apenas um olhar as palavras preencherão o papel/ com tudo aquilo que
você pensou” (CRAVO, p.45 2020) a carta dela explora os recursos da contação de histórias, da poesia
oralizada e permite umaleitura sensível.

METODOLOGIA

A análise partiu da leitura da zine Segredo, a qual foi resultado do curso de autopublicação para
escritoras promovido pelo Sesc Ver-o-peso em Belém do Pará (2020). Oprojeto gráfico e a edição foi feita
pela escritora, colagista, pesquisadora Monique Malcher. As fotos que estão presentes na zine foram
tiradas pela Carol Abreu. O ponto de partida da Zine é o endereçamento, que diz “Para todas as mulheres
que cansaram de guardar segredo sobre sua escrita. Para todas as mulheres que estão prestes a revelar a sua
potência. Para as que ainda não conseguiram, mas irão.” Segredo ilustra como a escrita das mulheres foi
vista por muito tempo longe dos cenários literários. A força da escrita trazida pela zine está presente nas
vozes de mulheres despidas de vergonha e insegurança.

RESULTADOS

Nas cartas analisadas evidenciei a importância que a escrita representa e é para muitas mulheres
no norte do país e a escrita coletiva provoca uma abertura do sensível eda necessidade de escuta de outras
mulheres. A escrita para essas escritoras é um lugar da afetividade, elas aproximam a vida do escrever,
do ser e estar no mundo. O chamado das escritoras através das cartas representa um desejo infinito de
reescrever as suas histórias e redefinir o poético e o ficcional.
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REFERÊNCIAS

DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos (orgs.). Espaço e gênerona literatura
brasileira contemporânea. Porto Alegre: Zouk, 2015.
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Rio de
Janeiro, Vinhedo: Editora da UERJ, Horizonte, 2012.
RAMOS, Tânia. Começar de novo: a escrita feminina na zona do afeto. In: DALCASTAGNÈ, Regina;
LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos (orgs.). Espaço e gênerona literatura brasileira contemporânea. Porto
Alegre: Zouk, 2015.
Segredo. Disponível em: https://issuu.com/moniquemalcher/docs/zine_segredo. Acesso em: 03/11/2021.
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A POÉTICA DO EROTISMO FEMININO NOS POEMAS “SE”, DE


ADALCINDA CAMARÃO E “SE TU VIESSES VER-ME...”, DE
FLORBELA ESPANCA

Josilma de Aguiar Lima15


Luciana de Barros Ataide16

RESUMO: O presente estudo tem como proposta analisar elementos que representam o erotismo
transfigurados na escrita de Adalcinda Camarão e Florbela Espanca a partir da composição de dois poemas
que têm, entre si, traços de escrita semelhantes. O poema “Se”, de Adalcinda Camarão trabalha com o tema
do amor que deseja, pois está relacionado ao outro, logo, há a presença da erotização e da sexualidade. No
poema de Florbela Espanca “Se tu viesses ver-me...” notamos também essa chama que envolve o desejo, o
erotismo e a sexualidade. Portanto, para o desenvolvimento desse estudo será feita uma reflexão dirigida por
considerações, especialmente, de Octávio Paz na obra A dupla chama: amor e erotismo (1994). Outras
referências podem também ser utilizadas para a melhor contextualização dos poemas em estudos.

Palavras-chave: Florbela. Adalcinda. Poesia.Erotismo.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto das reflexões construídas ao longo dos encontros do Grupo de Estudos e
Pesquisas Escritoras Paraenses (GEPEPs), vinculado ao Curso de Letras, da Faculdade de Letras e Educação,
da Universidade Federal do Sul e Sudeste doPará, coordenado pela professora Luciana de Barros Ataide.
Durante todo o ano de 2021o Grupo se dedicou às leituras e reflexões dos textos literários produzidos pela
escritora Adalcinda Camarão por meio do Projeto Pesquisa em Literatura de Autoria Feminina doEstado do
Pará: estudos da poética do tempo e do espaço na poesia de Adalcinda Camarão.

Durante o mês em que foram estudados os poemas que fazem parte da coletânea Folha, publicada
em 1979, foi possível perceber traços da presença da sensualidade nos poemas de Adalcinda e, em vários
momentos, um erotismo se fazendo presente na construção do eu-poético, manifestado pelo desejo do
encontro com o outro/o amado/o corpo desejado. O poema “Se”, chamou a atenção pela semelhança com o
poema “Se tu viesses ver-me...” de Florbela Espanca. Apesar de serem dois poemas com estrutura/forma
diferentes, o tema e a maneira como esse tema é trabalhado têm grande semelhança, inclusive em relação a
alguns recursos linguísticos utilizada.

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Graduanda em Letras – Língua Portuguesa, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Integrantedo Grupo de Estudos
e Pesquisas Escritoras Paraenses (GEPEPs).
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Professora do Curso de Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa, na Universidade Federal do Sul eSudeste do Pará,
coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Escritoras Paraenses (GEPEPs).
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ISBN 978-65-84530-06-5
Adalcinda Magno Camarão Luxardo nasceu no Estado do Pará, em Muaná, na Ilha de Marajó e foi
uma escritora de grande destaque no século XX, no Estado do Pará.Apesar de não ter tido notoriedade no
cenário nacional brasileiro, tem uma considerável produção literária que começou a chegar ao público nos
anos de 1930, com publicações em periódicos e com publicações de coletâneas na segunda metade do século
XX. Os poemas de Adalcinda que apresentam a temática da erotização podem ser encontrados emdiversas
coletâneas publicadas ao longo dos anos de 1940 a 1995. A abordagem sobre otema do erotismo é feita por
meio de uma representação suave da sexualidade em um tom singelo, discreto e distante do vulgar e/ou
pornográfico.
Florbela Espanca, nasceu em Vila Viçosa, em Portugal e foi também uma escritorade destaque na
primeira metade do século XX. Apesar de ter enfrentado duras críticas, especialmente por tratar dessa
abordagem sobre os desejos femininos, deixou uma notória produção literária e também uma influência
importante para a conquista do espaço da literatura de autoria feminina tanto em Portugal quanto em outros
países. Assim como ospoemas de Adalcinda, os poemas de Florbela não trazem o aspecto do vulgar e/ou do
pornográfico, mas um erótico como traço da feminilidade, do desejo, da sexualidade quetambém é condição
da mulher. E foi exatamente esse teor erótico o maior responsável pelas críticas e até mesmo rejeições
sofridas por Florbela Espanca.
Mesmo com uma exposição bem breve sobre essas duas escritoras, percebemos oquanto são duas
grandes referências importantíssimas para o fortalecimento da literaturade autoria feminina.

OBJETIVOS

A partir das reflexões propostas por Octávio Paz (1994) no que se refere ao erotismo como parte da
integralidade do ser humano, logo, como representação de uma experiência humana, o presente estudo tem
como objetivos:
• Identificar, nos poemas “Se”, de Adalcinda Camarão e “Se tu viesses ver-me...”, de Florbela Espanca,
as semelhanças no trabalho com o tema do erotismo feminino;
• Identificar a relação do tema do erotismo com os elementos da natureza na composição dos dois poemas
propostos para estudo.
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REFERENCIAL TEÓRICO

Desde os textos fundadores da literatura ocidental que o tema do erotismo vem sendo discutido e
abordado em estudos literários, mesmo que se trate de um tema com diferentes abordagens em cada época,
a depender dos costumes de cada período. LucianaRosar Fornazari Klanovicz, no artigo “Erotismo e mídia:
pontos de partida para uma análise histórica” (2009) disse que a abordagem sobre erótico está ligada a uma
construção sociocultural e às experiências de cada época. Para a historiadora, o erótico “é um sistema
alternativo àqueles campos da sexualidade, do desejo e do gênero” (KLANOVICZ, 2009, p. 3). Diz ainda
que o erotismo é social e cultural e se internaliza nas relações sociais, logo, é constantemente reinventado.
O poeta José Paulo Paes, na obra Poesia erótica em tradução (2006) por sua vez,separa o erotismo
de pornografia. Enquanto a pornografia busca o sensorial da carne, o erotismo está ligado ao intelecto. Em
contrapartida, Octávio Paz, na obra A dupla chama:amor e erotismo (1994) traz uma reflexão que muito
auxilia na análise dos dois poemas propostos neste estudo. Paz faz uma abordagem diferenciando o erotismo
da sexualidade.Para ele, o amor está no extremo oposto do sexo e o erotismo fica entre esses dois elementos,
por sua vez, relacionado à inventividade e aos corpos. Octávio Paz diz ainda que enquanto o amor é
refinamento, o erotismo é transfiguração e é essa transfiguração podemos perceber nos poemas de Adalcinda
e Florbela.
O poema “Se”, de Adalcinda Camarão faz parte da coletânea intitulada Folha, publicada em 1979,
mas para este estudo utilizaremos a Antologia Poética de AdalcindaCamarão, publicada em 1995. Nesse
poema, podemos observar a presença da sexualidadee do desejo que envolve o erotismo. Esse mesmo recorte
pode ser observado no poema de Florbela. O poema “Se tu viesses ver-me...”, de Florbela Espanca, foi
publicado pela primeira vez em 1931, na coletânea Charneca em flor. Para este estudo utilizaremos a
coletânea Sonetos, publicada em 1997, da qual o poema estudo faz parte. No poema de Florbela, assim como
no de Adalcinda, podemos observar o erotismo como uma particularidade da atividade sexual, não
representando, portanto, o ato sexual em si, masapenas remetendo a esta prática.

METODOLOGIA

Florbela foi uma das mais notáveis escritoras da literatura portuguesa e deixou uma literatura
marcada por várias características temáticas como confessionalismo,erotismo, panteísmo, femininalidade.
Essas características estéticas de Florbela podem também ser percebidas em grande parte das produções
literárias de Adalcinda Camarão. Adalcinda teve e continua tendo pouca notoriedade na representação
literária brasileira, mesmo sendo uma das mais reconhecidas da literatura paraense.
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São, portanto, duas escritoras com produções que merecem estudos, pesquisas, leituras e reflexões
e, por isso, este estudo se voltará para a análise do teor erótico que, apartir da ideia de sublimidade como
traços do amor e da sensualidade, representam os desejos femininos de forma a romper com as
invisibilidades e com os silenciamentos impostos à voz da mulher, especialmente no que se refere à temática
do desejo. Nesse sentido, a metodologia utilizada consiste em, através do diálogo com estudiosos que têm
estudos sobre o tema do erotismo, analisar as figuras de linguagem, as escolhas lexicais e a utilização de
elementos da natureza como representação do erótico, atentando-se paraalguns pontos comuns entre os dois
poemas.
Vejamos como se configuram esses elementos no poema “Se” (1995), de Adalcinda:

Se tu chegasses agorinha mesmo


Que diria minha mão à tua mão
-Nossa boca branquinha de surpresa,
Nosso peito enrugado de paixão?

Quem falaria primeiro e qual seria


A primeira palavra silabada?
Que pensaria eu do teu regresso...
Que pensarias tu da velha amada?

Como seria o abraço ou beijo ou gesto


Que explicasse a razão do inusitado?
Ficarias de pé e eu, desmaiada?
Perderia a voz amnesiado?

Se tu chegasses agorinha mesmo


Era como chegando do trabalho:
O beijo, o longo abraço, a mesa antiga
Depois o leito e o sono agasalho.

Se fosse primavera a flor tremia.


Se fizesse verão o sol cegava.
Se outono, a folha seca florescia.
Se inverno, a neve em sol se debulhava!

Ah se chegasses! – tu que não me esperas!


Mas se em vez da esperança que consome
Eu não reconhecesse quem tu eras
Nem tu, sequer, lembrasses o meu nome?
(CAMARÃO, 1995, p. 210)

É possível, a partir do poema de Adalcinda, traçarmos um paralelo entre a distinção que Paz faz sobre
sexualidade e erotismo. Para o estudioso, o sexo é sempre o mesmo, mas o erotismo se relaciona à invenção
e a uma variação incessante. Na terceira estrofe do poema, percebemos construções ligadas ao erotismo na
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expectativa de como seria o abraço, o beijo ou até mesmo um gesto, ou seja, como os amados se comportariam
um na presença do outro; como cada um agiria nesse momento. Nesse sentido, notamos uma espécie de
invenção no imaginar da cena; em como os amados agiriam. Isso significauma espécie de comportamento que
envolve uma variação de gestos, de atos, de falas, decomportamentos. Já na estrofe seguinte, na quarta estrofe,
nota-se um ato que se repetiria:o beijo, o abraço, o leito e o sono. É como se os gestos, ou a sequência deles,
como eles seriam; tudo isso estaria envolvido ao imaginário, ao desejo contemplado e vivenciado em cada
detalhe do encontro do eu poético com a pessoa amada. A certeza existe no ato sexual que aconteceria, ou
seja, o mesmo que se repete, mas os atos até chegar a esse momento ficam no imaginário. Há certeza de cada
ato, mas há um imaginário misteriosoque envolve a expectativa de como cada ato se desenrolaria.
Agora, vamos ao poema “Se tu viesses ver-me...” (1997), de Florbela Espanca:

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,


A essa hora dos mágicos cansaços,

Quando a noite de manso se avizinha,


E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha


A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,


Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...


Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti... (ESPANCA, 1997, p. 123)

Apesar de uma estrutura diferente, o poema de Florbela também apresenta os elementos que
envolvem sexualidade e erotismo, o imaginário e a expectativa de como seria o encontro com a pessoa amada.
Na primeira estrofe do poema florbeliano, há a expectativa do encontro com a pessoa amada no fim do dia.
Notamos também o imaginário que se desenha no envolver-se do eu poético nos braços da pessoa amada. Na
estrofe seguinte notamos atos já conhecidos como o sentir do sabor da boca, o barulho dos passos, o sorriso,
os abraços, os beijos, as mãos unidas. Notamos, assim como no poema de Adalcinda, a distinção entre o sexo
e o erotismo de que fala Octávio Paz (1994).Enquanto na primeira estrofe se relaciona ao imaginário, ao
inventivo do desejo, à expectativa do erotismo envolvido no encontro e no envolvimento dos braços; a
segundaestrofe traz informações da sexualidade que está ligada a atos já antes vivenciados. Então,notamos
que mais uma vez há certeza do sexo, mas há um mistério de como sedesenvolverá cada ato; há a expectativa
de como cada ato se desenvolveria até chegar nosexo, propriamente.
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Nos dois poemas, o jogo do erotismo se faz ainda mais latente na relaçãoestabelecida entre com os
elementos da natureza: no poema de Adalcinda, na penúltima estrofe, o imaginário do desejo que está na
expectativa da chegada da pessoa amada se mistura aos elementos da natureza de forma que, independente
de qual estação do ano fosse, tudo seria mais intenso, mais marcante, teria mais vida, mais força, mais
vitalidade.Se o encontro ocorresse na época das flores, estas tremeriam; se ocorresse em pleno sol, este
cegaria; se ocorresse em época de folhas secas, estas floresceriam e se ocorresse emépoca de neve, esta se
debulharia em sol. Notamos o quanto de erotismo se faz presente na simbologia de expressões que se
relacionam aos elementos da natureza como: tremer, cegar, florescer, debulhar, ou seja, por meio de
expressões que denotam ação e intensidade.
Essa relação também se faz presente no poema de Florbela. Na última estrofe quando o eu poético
relaciona a si mesmo com os elementos da natureza, comparando a boca com um cravo ao sol, percebemos a
sedução, o envolvimento, a erotização. Há aindaa confirmação dos olhos que se fecham de desejo e os braços
que vão em direção à pessoaamada.
É possível notar, portanto, que nos dois poemas, apesar de terem estrutura diferente, escritos em
épocas e locais diferentes, vozes femininas diferentes, têm o tema do erotismo desenvolvido de maneira
muito semelhante. Os dois poemas são marcados, logo no início, pela conjunção “SE”: “se tu chegasses”;
“se tu viesses”. E a condição da presença da pessoa amada é a presença também do erotismo envolvido no
encontro. Essa escolha lexical estabelece, nos dois poemas, uma mudança do eu poético condicionada à
presença da pessoa amada. A escolha lexical pode ainda ser observada na figura de linguagem que prevalece
na construção dos poemas: o jogo sinestésico.
Em “Se” de Adalcinda, há a confusão de sentidos entre “o dizer das mãos”, misturando a audição
com o tato; há a união dos corpos em abraços, beijos, leito e sono ligada à mudança dos elementos da
natureza, misturando tato e visão. No poema “Se tu viesses ver-me...” de Florbela, o sabor da boca se mistura
ao ruído dos passos e do riso, confundindo paladar, audição e tato. Notamos que até mesmo a escolha pela
sinestesia éum traço de semelhança entre os poemas.
Dessa forma, notamos as fronteiras da sexualidade e do erotismo, conforme nos fala Paz (1994). De
um lado há a presença da sexualidade na erupção do desejo da presença para que o ato sexual aconteça; do
outro lado, há o entregar-se do eu poético nafantasia erótica que se faz presente na expectativa do encontro,
o que alimenta aimaginação e a fantasia.

RESULTADOS
Abordagens acerca da erotização vai de encontro ao entendimento social de moralidade, de
religiosidade, do que é socialmente aprovado. Quando se trata de uma representação do erótico apresentado
por mulheres, esse processo de reprovação é ainda mais latente, pois envolve uma desconstrução sobre o
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Eterno Feminino, ou seja, a desconstrução de um conceito imutável de mulher e mais, ainda, a


desconstrução de um padrão feminino moldado pelas leis da sociedade patriarcal que delimita o que é ser
mulher, tolhendo-lhe a liberdade de tornar-se mulher, como diria Simone de Beauvoir, naobra O segundo sexo
(1980).
Assim, para o entendimento do conceito de erotismo e sua aplicação nos poemas“Se”, de Adalcinda
e “Se tu viesses ver-me ...”, de Florbela foi necessário apresentar as considerações de Octávio Paz (1994) no
que se refere ao encontro erótico que começa com a visão do corpo desejado de forma a apresentarmos o
desejo, o erotismo, a sexualidade como algo que é inerente também à condição feminina porque é inerente
ao que é humano. São dois poemas escritos por duas mulheres que trazem em suas construções a
representação do desejo expresso na expectativa do encontro com a pessoaamada. A presença dos corpos, os
toques, a visão, os aromas, são elementos que povoamo imaginário da construção poética e que desenham
tanto o envolvimento erótico dos poemas quanto à referência, mesmo indireta, à sexualidade.
Apesar de este estudo trazer apenas uma pequena análise, podemos notar um erotismo envolto em um
processo de encenação da feminilidade, da sedução e da espera;uma espera que significa experienciar, mais
uma vez, os beijos, os toques dos corpos, a completude e realização do desejo e da sexualidade por meio da
encenação erótica. Notamos dois poemas que rompem com os silenciamentos impostos à mulher, à escrita
feminina, às manifestações do desejo, sendo, portanto, dois poemas transgressores que contornam as
interdições dos tabus sociais no que se refere à sexualidade feminina.

REFERÊNCIAS

BATAILLE, George. O erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM,1987.
CAMARÃO, Adalcinda. Antologia poética. Belém: Cejup, 1995. ESPANCA, Florbela. Sonetos. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1997
PAES, José Paulo. Poesia erótica em tradução. – São Paulo: Companhia das Letras,2006.
PAZ, Octavio. A dupla chama. Tradução Wladir Dupont – São Paulo: Siciliano, 1994.
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A VOZ DA NOVA MULHER EM ÁGUA VIVA

Luily Magalhães Cruz17


Orientador: Dr. Luis Heleno Montoril del Castilo18

RESUMO: Por meio de Água Viva é possível enxergar a voz da nova mulher que se constitui em uma
sociedadedos anos 70. Com o objetivo de relacionar a nova mulher e o que ela quer com a personagem de
Clarice, explanar-se-á o conceito de nova mulher, a pintora como nova mulher por meio do discursoanálogo
ao contexto histórico brasileiro; e a relação que o amor tem na ressignificação e formação danova mulher.
Este é o resultado parcial de uma pesquisa a qual o método foi a revisão qualitativa bibliográfica, que se teve
como principal fundamentação teórica a obra Água Viva, de Clarice Lispector (1973) e A nova mulher e a
moral sexual, de Alexandra Kolonttai (2011), a fim de analisare relacionar criticamente a formação da nova
mulher em relação à personagem protagonista clariceana. Logo, como resultado parcial, observou-se que
essas novas mulheres surgiram para romper a superioridade masculina na sociedade, vivem diante de
sentimentos dicotômicos acerca deideologias enraizadas nelas e, desde então, questionadas. A pintora de
Lispector é um retrato dessa nova mulher, que busca a ressignificação do ser e entende que para isso precisa
morrer.

Palavras-chave: Nova mulher, ressignificação, amor.

INTRODUÇÃO

Clarice Lispector é uma das poucas mulheres visibilizadas no cânone literário brasileiro. Com o
surgimento da crítica feminista literária, buscou-se recuperar os aspectos feministas nas obras de autoras
esquecidas e canonizadas. Com base nisso, Água Viva remete-nos à busca de uma mulher porsua descoberta
pessoal a partir do seu lugar social e profissional, desvinculado do amor. A obra foi publicada nos anos 70,
o que nos possibilita fazer uma análise baseada na mentalidade social de tal período histórico e nas influências
feministas que o Brasil recebia.
A pintora, personagem protagonista, representa, para este trabalho, a imagem da nova mulher,conceito
abordado por Kolontai (2011), isto é, uma personalidade em formação, que busca descontruir conceitos
ensinados desde a infância, que a colocam em posição inferior. Um lugar de submissão social, destinada ao
ambiente doméstico e à romantização de um amor que a limita.
Assim, este é o resultado parcial de uma pesquisa sobre a obra clariceana, com fundamentaçãoteórica
principal sobre a obra A nova mulher e a moral sexual, de Alexandra Kolontai (2011). A partirdessa, outras
relações foram analisadas mediante outros textos. Nesse sentido, o lugar social da mulher na história e na
literatura teve como fundamentação as obras de vozes masculinas, de Dabhoiwala (2013) e Watt (2010), que
apresentam críticas sobre a inferioridade da mulher diante dasociedade e da construção literária. Além disso,

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E-mail: luilymag.c@gmail.com
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E-mail: heleno@ufpa.br
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a obra histórica sobre o movimento feminista no Brasil, de Ana Alice Costa (2005), foi fundamental para que
se pudesse compreender o estado mentalda população brasileira, sobretudo feminina, a respeito da inserção
do movimento no país.
Logo, a pesquisa foi divida em dois momentos: a apresentação da pintora, relacionando-a ao contexto
social e cultural brasileiro, e ao conceito de nova mulher. Em seguida, trabalhar-se-á a concepção de amor
para essa nova mulher e como isso é evidenciado pela pintora na obra clariceana.

OBJETIVOS
O objetivo geral deste trabalho é fazer a relação histórica e social da personagem clariceana ao
conceito de Kolontai e aos objetivos dessa nova mulher. Para isso, visa-se à explicação do conceito,
caracterizando-o à pintora mediante o contexto sociocultural do Brasil nos anos 70, à avaliação da relação
do amor como construção social no psicológico de uma nova mulher em formação.

REFERENCIAL TEÓRICO
A obra principal deste trabalho foi Água Vida (1973), de Clarice Lispector. A protagonista foi
comparada ao conceito de Alexandra Kolontai, em sua obra A nova mulher e moral sexual (2011). Para uma
análise mais sociocultural, utilizou-se como referência bibliográfica a obra O espelho de Clarice: Uma
abordagem da poética do feminino na obra de Clarice Lispector, de Passos (2006) a fim de compreender
aspectos femininos na poética da obra; As origens do sexo – uma história da primeira revolução sexual, de
Dabhoiwala (2013), e A ascensão do romance, de Watt (2010), que auxiliaram uma pesquisa histórica,
tornando possível diferenciar aspectos ideológicos entre novas mulheres e outras mulheres, além de uma
avaliação sobre a posição dessas mulheres na literatura.

METODOLOGIA
Para alcançar os objetivos dessa pesquisa, foi necessária uma análise bibliográfica qualitativasobre
textos teóricos para compreender o contexto sociocultural e suas influências sobre o comportamento social
a interpretação do texto. Além disso, utilizou-se da metodologia de análise comparada entre a personagem
clariceana e o conceito de Kolontai.

RESULTADOS
A produção deste trabalhou possibilitou uma reflexão sobre o processo de libertação da geração de
mulheres do final dos anos XX e como isso reflete na educação das mulheres do século XXI. A partir da
leitura da obra literária clariceana, associada ao conceito de nova mulher da Alexandra Kolontai, foi possível
notar a representação do amor para essa geração de mulheres, que conflituam entre o que lhes foi ensinado
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pela geração anterior e as novas ideias pregadas pelos ideaisfeministas. Diante disso, foi possível perceber
que é um processo doloroso, mas necessário para um mundo mais equitativo entre mulheres e homens,
sobretudo no contexto amoroso.

REFERÊNCIAS

COSTA, Ana Alice Alcantara. O movimento feminista no Brasil: dinâmicas de uma intervenção política.
Disponível em:https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/download/31137/18227/106408 Acesso em 20
de out. de 2021.
DABHOIWALA, Faramerz. As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual.
Tradução: Rafael Mantovani. São Paulo: Globo, 2013.
KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. [SI] Editora Rocco, 1973.
PASSOS, Marlon Marcos Vieira. O espelho de Clarice: Uma abordagem da poética do feminino na obra de
Clarice Lispector. Salvador: 30º Encontro Anual da ANPOCS, 2006.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
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ENTRE DORES, AMORES E DORES: (RE)EXISTÊNCIA FEMININA EM


FLOR DE GUME

Paula Fernanda Pinheiro Souza19

RESUMO: O texto tem como objetivo analisar as vivências feminina de Silvia, personagem principal dos
contos “Suas sandálias me cabem?”, “As palavras por debaixo da porta”, “Anis” e “Alecrim para dizer não
fique aqui” do livro Flor de Gume, da escritora paraense Monique Malcher. A partir de intelectuais
feministas, como bell hooks (2019), Djamila Ribeiro (2019) e Oyèrónké Oyěwùmí (2021), compreende-se
que essa mulher – criança, adolescente e adulta - é marcada por violências e cicatrizes, que as chegam por
meio de uma cultura patriarcal, que impõem padrões e comportamentos a serem seguidos e subalternizam
sua real identidade, contudo, conclui-se que ela subverte essas regras que a oprime e constrói sua
(re)existência.

Palavras-chave: Vivências femininas; Flor de Gume; (Re)existência.

INTRODUÇÃO

Bell hooks (2019) chama a nossa atenção para o fato de que “precisamos saber mais sobre
maternagem e paternagem feministas, sobre como, na prática, podemos criar nossas crianças em ambientes
antissexistas e, o mais importante, precisamos saber sobre que tipo de pessoas as crianças educadas nesses
lares se tornam” (HOOKS, 2019, p. 114). Lares como esses, contudo, infelizmente, ainda são raros em nossa
sociedade. Nesse sentido, muitas mulheres, cotidianamente, enfrentam violências patriarcais praticadas por
seus companheiros em seus lares, juntamente com suas crianças. A opção por utilizar o termo “violência
patriarcal” ao invés de “violência doméstica” neste trabalho se deve a atenta e potente observação de hooks
(2019), a teórica explica sobre como essa postura visa lembrar que a violência doméstica está ligada a
opressão sexista.
Diante do exposto, ao compreender a relação entre violência doméstica e a violência patriarcal e após
a leitura do livro de contos Flor de Gume de Monique Malcher (2020), sobretudo, dos contos “Suas sandálias
me cabem?”, “As palavras por debaixo da porta”, “Anis” e “Alecrim para dizer não fique aqui”, surgiu a
pretensão de analisar, com base em teorias feministas, como as vivências da personagem e narradora Silvia
são marcadas por imposições patriarcais.

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Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal de São Carlos. E-mail:
pinheiropaula178@gmail.com
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OBJETIVOS

GERAL:

Analisar as vivências de Silvia em quatro contos do livro Flor de Gume, da escritora Monique
Malcher.

ESPECIFÍCOS
Verificar como os discursos patriarcais ferem as vivências feminina da personagem; analisar como a
colonização dos corpos femininos é vivenciada pela personagem; compreender como a narradora-
personagem reescreve sua (re)existência.

REFERENCIAL TEÓRICO
A partir de intelectuais feministas, como bell hooks (2019), Djamila Ribeiro (2019) e Oyèrónké
Oyěwùmí (2021), serão analisadas as violências patriarcais contra o corpo e vivência feminina da
personagem Silvia e a sua luta pela (re)existência como mulher no mundo.

METODOLOGIA
Os quatro contos selecionados para análise têm em comum a relação abusiva entre pai e filha; e as
consequências dessa relação na vida dela. Desse modo, eles foram analisados de forma conjunta, para poder
compreender como Silvia vivenciou as violências na infância e adolescência; e como ela passou a lidar com
tais traumas na vida adulta.

RESULTADOS
No tópico “O sofrimento não é desastre natural, ele é arquitetado por quem tem poder”: discursos
patriarcais e vivências femininas analiso as vivências de Silvia no âmbito doméstico. Nesse momento,
verifica-se que o primeiro conto, “Suas sandálias me cabem?” é impactante para quem tem consciência do
patriarcado, mas muitas vezes não percebe a sutileza com que as ideias sexistas nos chegam desde muito
cedo. Silvia, que narra suas vivências, inicia o conto falando da sua vontade de menina em estabelecer laços
com o pai na infância, mas logo revela a dificuldade que sentia em tentar ter essa conexão que jamais foi
possível.
Ao descrever como o discurso do pai era construído, por meio de um jogo em que ele demonstrava
ternura e dominação, a personagem revela como ele a enclausurava; e como a ensinou o que era o amor de
uma maneira totalmente deturpada, em que agressão, posse e dependência emocional eram características
inerentes ao amar, ou seja, tudo aquilo distante de amores saudáveis, pois o amor em culturais patriarcais
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sempre esteve ligado “a paradigmas de dominação e submissão, em que o pressuposto era de que uma pessoa
daria amor e a outra o receberia” (HOOKS, 2019, p.147).
Os contos mostram como o patriarcado faz com que nós mulheres deixemos de nos amar a cada dia.
Todo machismo e violência são propagados pelo pai de Silvia, representante legítimo do patriarcado; que
consegue distorcer a percepção da filha sobre ela mesma, fazendo ela não se sentir uma pessoa suficiente;
além de contribuir para que ela enxergue a mãe como inimiga e, portanto, alguém que não se podia contar;
o pai reforçava isso constantemente com frases como “tua mãe nunca te quis, mas eu vou te amar pra sempre”
(MALCHER, 2020, p. 18).
Para justificar a violência patriarcal que cometia, ele descrevia a esposa como uma mulher
desequilibrada e se aproveitava disso para ferir a filha, que via a mãe ser agredida e se sentia pequena e
impotente diante da situação. Assim, normalizava violência física e emocional dentro de casa e negava
aquelas mulheres qualquer tipo de amor.
No tópico “O que meu corpo gordo tinha feito de errado?”: a cruel colonização do corpo feminino
mostro como o pai dominava o corpo da filha. Oyěwùmí (2021) explica que ocidentalmente a colonização
conferiu aos homens o poder de dominar os corpos das mulheres, pois as viam como geneticamente
inferiores. De acordo com hooks (2019, p. 35), foi com o movimento feminista que houve incentivo para que
nós parássemos “de ver nosso corpo como propriedade do homem”, pois antes disso a dominação de nossos
corpos era normalizada.
O pai a tinha como sua propriedade e, consequentemente, o seu modo de ser era ditado por ele, que
impunha uma identidade pré-estabelecida a filha; além disso, ele tinha o preconceito por ela ser uma menina
gorda e, assim, a torturava tentando modificá-la a todo custo: “Meu pai um dia me fez passar limão nas
pernas para que clareasse minha “sujeira” da virilha. O que meu corpo gordo tinha feito de errado?”
(MALCHER, 2020, p. 19). Então, o pai era o maior responsável a impor para filha padrões estéticos e
comportamentais de feminilidade que a sociedade patriarcal criou para dominar nós mulheres.
Por fim, no tópico “Monstro sou eu, os monstros são lindos”: subvertendo regras para o (re)existir
feminino, apresento como Silvia realiza seu processo de (re)existência. Em sua fase adulta, a personagem se
descreve como monstro, que na cultura ocidental é uma criatura anormal e com defeitos físicos e morais; ela,
contudo, enfatiza que os monstros têm beleza, ou seja, ela reescreve o significado do termo quando associa
ao seu modo de ser, que foge a padronizações, sobretudo, sexistas. Silvia ao se denominar como monstro vai
na contramão do que a cultura patriarcal eurocêntrica impõe sobre “monstruosidade”; assim rompe com o
que lhe é imposto socialmente e mostra que uma mulher poder ser o que ela quiser.
Em meio aos traumas da infância, que a fere fisicamente e psicologicamente, a personagem busca
mais do que sobreviver, ela reivindica o seu próprio viver - processo doloroso, mas necessário. Silvia, como
explica hooks (2019), entendeu que não existe amor sem justiça e “que o verdadeiro amor é fundamentado
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em reconhecimento e aceitação, que o amor combina com cuidado, responsabilidade, comprometimento e


conhecimento”; logo, ela internalizou “que o amor tem o poder de nos transformar e nos dar força para que
possamos nos opor à dominação” (HOOKS, 2019, p.150).
Além disso, o “falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir” (RIBEIRO, 2019,
p. 64). Nesse sentido, Silvia ao narrar suas vivências assume o seu lugar de fala para poder existir novamente.
Desse lugar, ela representa muitas de nós que não se localizam no centro legitimado pela sociedade capitalista
e colonialista, mas que se encontram nas bordas e sentem no corpo e na alma o fardo que nos é imposto
cotidianamente, cuja saída satisfatória é criarmos estratégias para nossa (re)existência feminina. Apesar da
personagem parecer desabrochar sozinha, ela carrega consigo memórias e lutas coletivas de outras mulheres
que a auxiliam a resistir.
Silvia, portanto, é uma forte representante feminista e longe de querer propor uma interpretação
romântica dela: uma menina que passa por inúmeros problemas e enfim alcança a felicidade; busquei analisá-
la, bem como ela foi criada por Monique Malcher, pautada na realidade de mulheres que possuem traumas a
serem superados e cuja resistência para viver é constante. Por fim, ressalto a relevância de dar destaque a
(re)existência dela, isso porque muitas mulheres passam por processos parecidos, já que a nossa sociedade
sexista nos impõem moldes opressores desde muito cedo.

REFERÊNCIAS
HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos
tempos, 2019.
MALCHER, Monique. Flor de Gume. São Paulo: Pólen, 2020.
OYĚWÙMÍ. Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: Construindo um sentido africano para os discursos
ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala. São Paulo: Pólen, 2019.
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A RECEPÇÃO CRÍTICA DE ZORA NEALE HURSTON PELO


MOVIMENTO NEGRO DO HARLEM RENAISSANCE

Paulo Valente20

RESUMO: Este trabalho retoma o romance da escritora estadunidense Zora Neale Hurston, Seus olhos viam
Deus (1937), a fim de discutir o modo como a crítica literária coetânea à sua primeira publicação leu o
romance. Em especial, pensamos o texto Between Laughter and Tears (Entre risos e lágrimas), assinado por
Richard Wright, crítico negro do movimento Harlem Renaissance, ao qual Hurston é comumente também
associada. Nossa leitura destaca como o intelectual acusa mais que analisa ou lê o romance de Hurston,
apontando o que considera falhas estruturais e faltas à causa negra norteamericana, mostrando-se, por vezes,
ressentido por não encontrar o que buscava num romance de autoria negra.
Palavras-chave: Seus olhos viam Deus; Zora Neale Hurston; violência de gênero; recepção crítica, Harlem
Renaissance.

INTRODUÇÃO

O Harlem Renaissance foi um movimento artístico e político estadunidense que preconizou, a partir
da década de 1920, a retomada e solidificação de uma cultura negra no território estadunidense, como forma
de opor-se a um perfil artístico e intelectual que tratou de invisibilizar outras formas de existir e produzir
naquele país que não fossem brancas. É, pois, ainda no período das Leis de Jim Crow, as quais
institucionalizaram a segregação racial oriunda da escravatura negra, que grandes nomes de personalidades
negras se destacaram nas artes plásticas, teatro, política, intelectualidade e literaturas, como Zora Neale
Hurston e Richard Wright, como oposição política, combativa, de resistência.
Um dos princípios do movimento preconizava que a arte e a Literatura deveriam cumprir um papel
social de elevação da figura da personagem negra, colocando-a, não raro, em posição de combate e vitória
nessa espécie de guerra racial imposta pelo Estado e pelas políticas segregacionistas. Assim sendo, emerge
também um círculo de críticos de arte e críticos literários com acesso a jornais de grande circulação nacional,
os quais certamente furaram a bolha segregacionista, e que produziam um perfil de texto que colaborasse
com uma leitura que deveria reforçar um ideal ilibado de personagem negra.
Richard Wright é um desses críticos, dos mais lembrados do movimento por pautar as suas leituras
por tais princípios sociais, e por entender que a Literatura deveria sempre apresentar personagens negras sem
falhas, seguras e vitoriosas. Tendo isso em mente, a leitura que produz acerca do romance de Hurston se
resume a diminuir a sua importância, cobrando da autora uma postura que não parece ter sido a adotada por

20
Doutorando em Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura, da UFSC, Linha de pesquisa em Crítica
Feminista e Estudos de Gênero. Foi professor substituto de Literatura da Universidade Federal do Pará e da Universidade do
Estado do Pará.
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ela, uma vez que as suas personagens são falhas, humanizadas; e a diegese tampouco parece ser pautada
exclusivamente pela questão racial, mas sim, pela interseccionalidade raça/gênero, ainda que este termo
possa soar anacrônico a uma obra da década de 1930.
Zora Neale Hurston, negra, romancista e antropóloga de formação, oriunda do sul do país ainda mais
racista, do estado do Alabama, produz ampla obra científica e literária. Estudante de Franz Boas, seus textos
sempre destacaram uma leitura sobre o papel da mulher negra na formação histórica do país e da zona do
Caribe, com os quais tenta compreender e demonstrar como essa atriz social se insere em sociedades racistas,
sexistas e machistas, nesse lugar de encontro de opressões.
A sua obra acaba por passar alheia aos manuais de literatura canônica dos EUA, e mesmo entre
aqueles que se dedicaram a estudar a produção negra do país, Hurston não parece ter tido grande relevância,
vide as críticas que sofreu mesmo entre os críticos negros do Harlem Renaissance. Sua morte se dá em
completo anonimato, por exemplo, sem direito a uma lápide com seu nome.
Somente uma década após a sua morte, este problema, esta falta de identificação, ou seria negação de
sua identidade e contribuição ao país, seria parcialmente resolvido com a pesquisa da escritora Alice Walker,
ao publicar o trabalho In Search of Zora Neale Hurston, elaborado a partir de suas inquietações acerca da
obra e da vida da escritora, ignorada mesmo em uma universidade voltada à história intelectual de mulheres,
como a em que estudava Walker àquela altura.
É pertinente questionar como uma autora com tão extensa e importante obra passou ignorada pela
crítica literária? Ainda, como mesmo no movimento ao qual fora filiada, havia o quase completa apagamento
de sua importância e negação de sua obra? Como a crítica literária pode-se voltar contra quem segue além
dos seus ditames?

HARLEM RENAISSANCE E A NEGAÇÃO DE HURSTON

Como já dito no tópico anterior, havia uma busca por um perfil de personagens negras ilibadas, por
uma narrativa negra, que desse o protagonismo às histórias e à memória negra naquele país extremamente
racista. Não raro, essas personagens obedeciam a um ideal também de gênero, ou seja, são personagens
masculinas, são histórias protagonizadas, via de regra, por homens que, em combates também raciais,
sobressaem-se, mostram-se elevados e assumem o signo da superioridade moral e física. Em síntese, o
Harlem Renaissance preconizava um ideal masculino combativo, superior, do espaço público, um vitorioso,
transferindo, dessa forma, o símbolo da masculinidade, geralmente associada à branquitude, às personagens
masculinas negras.
Hurston opta por dar voz e protagonismo a personagens femininas, invadindo o lar dessas
personagens, a sua intimidade, mostrando como na dinâmica social e heterossexual dessas personagens, com
certa frequência, a mulher negra sofre além da segregação racial e do racismo, as violências de gênero
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também de seus companheiros negros. Evidência, pois, que nem no ambiente ‘seguro’ de um lar estão elas a
salvo da violência em função de suas identidades.
Seus olhos viam Deus, de 1937, único romance traduzido ao português da autora, narra o
deslocamento da protagonista Janie Mae Crawford, desde a adolescência até passados os 40 anos, e suas
relações amorosas nos três matrimônios que contrai. É no interior dessas relações conjugais, permeadas pelo
poder e marcadas pelos silenciamentos e pelas violências, que a narradora nos leva a observar, como
testemunhas de seu relato, como a personagem central enfrenta as dificuldades de ser uma mulher negra em
um relacionamento heterossexual, mesmo quando casada com companheiros negros, os quais surgem
inseguros, também violentados em sua negritude nos espaços públicos que ocupam, porém, que não hesitam
em serem igualmente agressivos e violentos, algozes de sua companheira.
Dito isso, a narradora-protagonista do romance fala desse outro lugar de silenciamento discursivo,
toma a voz para si e conta as suas lutas e ainda evidencia uma dinâmica intrarracial de preconceito e
violências, desenhando personagens masculinas ora fracas, ora violentas, seja de que forma for, opostas ao
ideal preconizado por críticos como Richard Wright.
A recepção crítica contemporânea que os intelectuais negros do movimento Harlem Renaissance
dispensaram à obra de Hurston, em especial, a crítica Between Laughter and Tears (Entre risos e lágrimas),
assinada por Richard Wright, parece ressentida por não encontrar o ideal de personagem negra idealizado.
Há uma parcela da crítica que chega a acusar a obra de Hurston de não ser negra o suficiente. O que falta a
sua obra para ser negra o suficiente? Um protagonista masculino negro heroico? Isso, de fato, não há!
Wright ainda acusa o romance da prática criminosa de blackface, além de supostamente ser
divertimento barato a um público branco, que em nada dialogaria com a realidade negra e os anseios de uma
audiência negra que gostaria de se ler nas páginas romanescas do período, em situações que enaltecem a sua
história e tradição.

A senhorita Hurston voluntariamente continua em seu romance a tradição que foi imposta ao
negro no teatro, isto é, a técnica de menestrel que faz o "povo branco" rir. Seus personagens
comem e riem e choram e trabalham e matam; balançam eternamente como um pêndulo naquela
órbita segura e estreita em que a América gosta de ver o negro viver: entre risos e lágrimas.21
(WRIGHT, s.p, 1937)

Excetos como este de Wright demonstram uma parcialidade declarada em sua análise, quando se
compara com o modo como o referido crítico lia obras assinadas por escritores homens do mesmo período.

21
Miss Hurston voluntarily continues in her novel the tradition which was forced upon the Negro in the theatre, that is, the
minstrel technique that makes the "white folks" laugh. Her characters eat and laugh and cry and work and kill; they swing like a
pendulum eternally in that safe and narrow orbit in which America likes to see the Negro live: between laughter and tears.
(Tradução minha do Inglês)
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Destacamos, em seu texto, a tentativa de afastar o romance de Hurston do que seria uma literatura engajada,
negra, aproximando-a a um público acostumado a rir deste tipo de produção, a branquitude.
A crítica segue por uma ideia quase perturbadora de suas personagens como se fossem hipertrofias
de uma equivocada ideia da negritude estadunidense para o olhar e deleite branco, simples perpetuação de
estereótipos para agradar a uma audiência sedenta por rir dos trejeitos negros, e faltasse certa autenticidade
racial.
Em geral, seu romance não é dirigido à pessoa negra, mas a um público branco cujos gostos
chauvinistas ela sabe satisfazer. Ela explora aquela fase ‘esquisita’ da vida da/o negra/o, a fase
que evoca um sorriso deplorável nos lábios da raça ‘superior’.22 (s.p, 1937, grifos meus)

Outro ponto é o uso constante de ‘senhorita’, que, somadas às críticas em tom professoral e
paternalista, pode ser lido como uma forma de tentar reduzir Hurston a partir de seu gênero e ao fato de não
ser casada. Em suma, como se apenas ‘ousasse’ escrever daquele jeito sobre uma personagem masculina por
não ter quem a repreendesse, papel que caberia ao crítico.
Em comparação, ao citar na mesma resenha o romance These Low Grounds, de Waters Turpin, Wright
oferece-lhe um tratamento mais formal e com certa comiseração, mesmo quando pretende apontar os seus
“defeitos como escritor”, como em: “os defeitos de Turpin como escritor são os de um homem honesto que
tenta desesperadamente dizer algo; mas Zora Neale Hurston carece até mesmo dessa desculpa. A varredura
sensorial de seu romance não traz nenhum tema, nenhuma mensagem, nenhum pensamento.23 (s.p, 1937,
grifos meus).
Encontramos uma busca por uma espécie de negritude ideal que Wright acusa Hurston de não
alcançar, talvez em função ou de seu gênero, ou de seu estado civil, não fica muito claro, mas certamente,
uma falha que comprometeria a qualidade da obra e sua plena filiação ao movimento ao qual ele pertencia.
A crítica Cheryl A. Wall, no seu livro Women of the Harlem Renaissance (1995), aponta que Hurston
teria sido, efetivamente, um nome solitário no movimento, ao extrapolar as diretrizes que ignoravam as
relações interpessoais e intrarracias no seio das famílias heterossexuais compostas por casais negros.
Zora Neale Hurston, em suma, escreve um romance que privilegia, décadas antes do termo ter sido
cunhado por Kimberlé Crenshaw, um olhar interseccional acerca da vivência e das experiências de uma
protagonista negra, a qual sofre os percalços e violências tanto no ambiente público quanto no privado, e
aponta sem subterfúgios e sem receio da crítica reacionária as cenas de violências morais e físicas que Janie
experimenta, e não hesita em criar três personagens masculinas negras, as quais reproduzem paradigmas de
uma masculinidade hegemônica (cf. Connell, 1995), herança do mesmo sistema-mundo que produziu o

22
In the main, her novel is not addressed to the Negro, but to a white audience whose chauvinistic tastes she knows how to satisfy.
She exploits that phase of Negro life which is ‘quaint’, the phase which evokes a piteous smile on the lips of the ‘superior’ race.
23
Turpin's faults as a writer are those of an honest man trying desperately to say something; but Zora Neale Hurston lacks even
that excuse. The sensory sweep of her novel carries no theme, no message, no thought.
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racismo como forma de organização do ocidente e manutenção da modernidade europeia e colonialidade nas
américas e no sul global.
Por fim, a autora estadunidense experimenta uma violência de gênero vinda também de seus
companheiros intelectuais negros que não compreenderam que a crítica contra a violência de gênero é tão
política e urgente quanto a crítica contra o sistema racista em que estavam inseridos e contra o qual lutavam,
não perceberam que, como salienta Audre Lorde, não pode haver hierarquia de opressões, não há uma
opressão mais urgente contra a qual lutar, todas devem ser enfrentadas.

REFERÊNCIAS

CONNELL, R. Políticas da Masculinidade. Educação e Realidade. Vol. 20, n. 2, 1995, p. 185-206.


WALL, Cheryl A. Women of the Harlem Renaissance. Indiana: Indiana University Press, 1995.
WRIGHT, Richard. Between laughs and tears. Disponível em:
<https://www.dentonisd.org/cms/lib/tx21000245/centricity/domain/490/richard%20wright%20on%20hurst
on.pdf: acesso em 30 de janeiro de 2022.
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PRODUÇÃO E JULGAMENTO DE FEMINICÍDIOS EM CRUZEIRO DO


SUL/ACRE: ANÁLISE DOCUMENTAL E INTERSECCIONAL DE
SENTENÇAS

Ronilton Bruno Nobre Honorato24


Flávila Barboza D’avila25
Leonísia Moura Fernandes26

RESUMO: O presente relato de experiência tem por intuito apresentar os resultados iniciais da pesquisa
vinculada ao programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica pela Universidade Federal do Acre
(Ufac) - Campus Floresta, acerca dos feminicídios de mulheres acreanas, principalmente no Vale do Juruá.
Como se sabe, o Brasil é o 5º país que mais mata mulheres, apesar dos esforços de movimentos sociais e
conquistas em relação à institucionalização da Lei Maria da Penha e a inclusãoda qualificadora do feminicídio
pela Lei nº 13.104, de 2015, a cultura patriarcal e violenta sobre os corpos das mulheres impulsiona e perpetua
as mortes violentas de mulheres em razão da discriminação de gênero. Vale ressaltar os aspectos singulares
em relação às violências que atingem as mulheres amazônicas. Nos casos analisados pela pesquisa, o
contexto da realidade acreana influi de maneira direta nos feminicídios e na inibição das denúncias, visto que
a região é caracterizada como distantedos centros econômicos, sendo o transporte tanto por via rodoviária
quanto área de alto custo para a população do estado e as instituições distantes da área rural. Ademais, as
relações históricas e o entendimento dos papéis de gênero perpetuam comportamentos abusivos e violentos
considerados " normais" para a sociedade acreana. Dessa maneira, as mulheres que vivem no contexto rural,
como nos ramais - regiões de difícilacesso -, enfrentam problemas de infraestrutura, saneamento básico,
desmatamento e tráfico. Tornando, desse modo, custoso o deslocamento aos órgãos judiciários,
principalmente o alcance às delegacias, normalmente, situadas nos centros urbanos. Além disso, quando se
analisa os entraves sofridos pelas mulheres indígenas, na maioria das vezes, estão relacionados: o
distanciamento dos órgãos, a não aderência das leis aos contextos e realidades originárias, além dos órgãos
não disporemde profissionais, tradutores e/ou intérpretes para a realização dos atendimentos. É a partir desse
raciocínio que entendemos a necessidade de uma análise interseccional para que seja possível o estudo das
violências que atingem as mulheres da Amazônia acreana. A fim de que se possa observar os momentos,
singularidades, as formas e os espaços históricos da construçãoe perpetuação dessas mortes violentas de
mulheres acreanas. Ademais, além da análise dos feminicídios ocorridos no Estado do Acre, pretende-se com
a pesquisa o estudo sobre as sentenças e aplicação da qualificadora. Esse esforço tem por intuito a construção
de um material documental para ser possível analisar os dados quali-quantitativos das mortes violentas contra
mulheres acreanas. Assim, o caso discutido de M.F.C27, uma mulher não branca, pobre e habitante da região
rural da cidade do interior do Acre, Cruzeiro do Sul.

Palavras-chave: Feminicídio; Amazônia Acreana; Mulheres Amazônica.

24
Bacharelando do curso de Direito pela Universidade Federal do Acre (UFAC) – campus Floresta, integrante do coletivo
Banzeiro Decolonial e pesquisador na linha de “Diferenças compartilhadas na vida e morte de mulheres: feminicídios sob
costuras epistemológicas interseccionais integrativas.
25
Graduanda do 9º período em Direito pela Universidade Federal do Acre (UFAC), estagiária do Instituto Fronteiras e membro
do grupo de extensão Banzeiro Decolonial, pesquisa na linha de "Produção e julgamento de feminicídios em Cruzeiro do
Sul/Acre: análise documental e interseccional de sentença.
26
Professora de direito na Universidade Federal do Acre (UFAC), campus Floresta. Doutoranda em direito na Universidade de
Brasília (UnB). Militante feminista do Instituto Mulheres da Amazônia (IMA)
27
O nome da vítima e do réu foram abreviados para preservar suas identidades, embora o documento de sentença seja público.
58
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METODOLOGIA

Utiliza-se como metodologia a pesquisa bibliográfica e o estudo de caso para análise das sentenças
de feminicídios ocorridos no estado do Acre, em específico, no município de Cruzeiro do Sul. Ressalta-se a
dificuldade de encontrar documentos produzidos sobre esses crimes, pois, normalmente, quando o
feminicídio é consumado, apenas verifica-se a existência de arquivosgenéricos disponibilizados pelos órgãos
oficiais ou alguma notícia vinculados aos jornais locais ( PASINATO, 2011; CAMPOS, 2015).
Ademais, a pesquisa parte de um olhar interseccional para abordar as realidades das mulheresacreanas.
O termo interseccionalidade foi cunhado por Kimberlé Crenshaw (2002), com base na lutade mulheres negras
contra o sistema cis-hetero-patriarcal branco e europeu. De acordo com a autora Akotirene (2019, p. 31)
análise interseccional demanda uma orientação geopolítica. Assim interliga- se a proposta do presente
trabalho que tem por intuito construir um estudo sobre as formas, os fatores, especificidades e causas do
feminicídio na Amazônia acreana, visto que o estado se configura com um dos maiores índices de feminicídio
no Brasil.

RESULTADOS

A morte violenta das mulheres amazônicas atravessa especificidades que por diversas vezes não são
consideradas e nem abordadas nos estudos sobre violência contra mulheres no Brasil. Acarretando, desse
modo, o silenciamento e a falta de dados sobre o feminicídio de mulheres nortistas.
Ademais, a contrução das relações históricas e a percepção do papel das mulheres do Estado do Acre
acabam nutrindo comportamentos e ações violentas consideradas “normais” e naturalizadaspela população
acreana.
As mulheres que vivem na Amazônia acreana possuem realidades diversas que não são analisadas
pelos dados ou órgãos oficiais. O difícil deslocamento, a dificuldade na comunicação e o distanciamento dos
órgãos interferem diretamente no atendimento e apoio às vítimas que acabam desistindo de procurar auxílio
nessas instituições.
Dessa maneira, é fundamental que se aborde as experiências e as realidades das mulheres queestão
afastadas desses grandes centros urbanos para que as memórias e histórias não se percam em meros números
processuais.

REFERÊNCIAS

1ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE CRUZEIRO DO SUL. Poder Judiciário do Estado do Acre.


Sentença nº 0001454-44.2019.8.01.0002. Relator: Juíza Adamarcia Machado Nascimento. Cruzeiro do Sul,
AC, 20 de outubro de 2020. Sentença. Cruzeiro do Sul.
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019. 113 p.
59
ISBN 978-65-84530-06-5

CAMPOS, C.H de. Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-feminista. Sistema Penal & Violência,Porto
Alegre, v.7, n.1, p. 103-115, jan-jun, 2015.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação
racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, [S.L.], v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.
FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0104-026x2002000100011. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?lang=pt. Acesso em: nov. de 2021.
GADELHA, Alcinee. Homem que tentou matar ex com facão no interior do AC é condenado a mais
de 16 anos de prisão. G1, 2020. Disponível em:
https://www.google.com/amp/s/g1.globo.com/google/amp/ac/acre/noticia/2020/11/04 /homem-que-
tentou-matar-ex-com-facao-no-interior-do-ac-e-condenado-a-mais-de16-anos-de-prisao.ghtml. Acesso
em: 28 jun 2021.
NASCIMENTO, Aline. Acre tem a maior taxa de feminicídios do país, aponta estudo: dados são do
monitor da violência, divulgados nesta quinta-feira (5). 2020. Disponívelem: . Acesso em: 04 de nov . 2021.
PASINATO, Wânia. 'Femicidios' e as mortes de mulheres no Brasil. Cadernos Pagu (37), p. 219-246,
julho- dezembro, 2011.
60

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A HORA DA ESTRELA: A PERSONAGEM MACABÉA E O CORPO


DISCIPLINADO

Silmara Pereira de Almeida28


Edimara Ferreira Santos29

RESUMO: Este artigo apresenta a personagem Macabéa, protagonista do romance A Hora da Estrela (1977),
da autora Clarice Lispector (1920-1977), sob o viés do corpo disciplinado, buscando, dentro da obra, elementos
que categorizam este corpo como disciplinado em face de um sistema injusto, patriarcal e opressor. Além
disso, analisamos os acontecimentos vivenciados pela personagem central na obra como marcas que
caracterizam e categorizam um corpo passivo à disciplina. Para aprofundar tais percepções de análise,
procuramos as discussões propostas por reflexões de Xavier (2007), Medeiros (2008) e Bourdieu (2002) acerca
das representações literárias do corpo feminino, fomentando, assim, novos debates e (re)leituras relacionadas
a esta temática.
Palavras-chave: Clarice Lispector; A Hora da Estrela; Macabéa; O corpo disciplinado

INTRODUÇÃO
A participação da mulher escritora na literatura brasileira se deu de forma lenta e árdua, tendo em vista
que, por muito tempo vigorou o pensamento de que a mulher era dotada de despreparo para as letras. Os
discursos construídos pela sociedade patriarcal era o de que, por se tratar de um sexo inferior, a sua capacidade
para a literatura também o seria. Criadas para serem prerrogativas dos homens, as mulheres que almejavam
ser mais do que donas de casa e anjos do lar sofreram muitas discriminações, e não possuindo nem a
independência financeira e nem a intelectual estas mulheres não tinham oportunidade para avançar em sua
carreira de escritora. Somente a partir da segunda metade do século XIX impulsionadas pelo movimento
feminista é que a escrita de mulheres passou a se disseminar.
No Brasil estes estudos surgiram somente na segunda metade da década de 80, quando grupos de
pesquisadores passaram a se reunir e desenvolver estudos relacionados ao tema. Atualmente, graças aos
esforços e trabalho arqueológico de pesquisas acadêmicas e grupos de estudos, podemos observar que os
estudos literários sobre a literatura de autoria feminina ganharam um novo significado, visto que, nota-se um
crescente aumento de trabalhos, seminários, congressos que provocam a disseminação destes estudos e os
resultados alcançados por esta literatura.

OBJETIVOS
Este tem como objetivo analisar as marcas encontradas na trajetória de vida e nas relações familiares e
sociais da personagem Macabéa inseridas no livro A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector (1920-

28
Graduada em Letras – Português, pela Universidade do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). E-mail: silmara.jc1@gmail.com
29
Professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: edimara@unifesspa.edu.br
61

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1977), para perceber, dentro da narrativa, quais são as marcas que esta personagem traz em seu corpo que nos
permite caracterizá-la como um corpo disciplinado. Além disso, observar e discutir sobre a representação do
corpo enquanto local de manifestações sociais, culturais, históricas e políticas, dentro de uma sociedade
marcadamente patriarcal e controladora.

REFERENCIAL TEÓRICO

A respeito da pesquisa realizada em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, destacamos a necessidade


de verificar e analisar como a sua obra revela, a partir das relações familiares e sociais, como um corpo é
disciplinado, inserido em uma sociedade estruturada para controlar e oprimir as mulheres. Para estas reflexões,
tomamos como base o trabalho de Xavier (2007), que aponta as principais questões para compreender como
os corpos na literatura são disciplinados.
Nesta trilha dos estudos relacionados ao corpo como objeto carregado de significação social, podemos
citar os estudos de Pierre Bourdieu, com o livro intitulado A Dominação Masculina (2002), em que nos
apresenta algumas concepções relacionadas às oposições entre os sexos, os quais estão sobrecarregados de
determinações antropológicas.
Para o debate sobre a configuração da mulher na literatura, Zolin (2005), apresenta como “Clarice
Lispector é quem abre uma tradição para a literatura da mulher no Brasil” (ZOLIN, 2005, p. 277).

METODOLOGIA
Para esta pesquisa realizamos os seguintes passos metodológicos: a) realizar o levamento bibliográfico
dos estudos realizados sobre a obra A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector (1920-1977); b) pesquisar
se algum desses estudos aponta a temática do corpo disciplinado como elemento central; c) realizar um estudo
da construção histórica da presença e do lugar das mulheres enquanto escritoras e críticas literárias na literatura
brasileira; d) por fim, organizar uma análise profunda da obra A Hora da Estrela (1977), tomando como base
a temática do corpo disciplinado nas relações familiares e sociais de Macabéa, personagem central desta obra.

RESULTADOS
A presente análise está voltada para a personagem Macabéa, protagonista do romance A Hora da
Estrela, tendo como foco principal a sua corporalidade, bem como a discussão sobre a presença das marcas de
um corpo disciplinado. Nesse sentido, consideramos o corpo como local de manifestações culturais, políticas
e sociais, sendo que sua representação pode contribuir para a percepção das práticas sociais que cercam os
sujeitos. Segundo Elódia Xavier (2007), o corpo disciplinado tem como característica principal a carência,
sujeitando-se às mais diversas imposições, ou seja, trata-se de um indivíduo que nada questiona, apenas
obedece.
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Em se tratando do corpo enquanto local de manifestações sociais, Medeiros (2008) nos conduz ao
encontro com Macabéa sob o prisma de sua corporalidade, em que, de acordo com a autora, “[...] pobre,
nordestina, migrante, disciplinada sob os preceitos de uma educação impositiva, sobretudo para com a mulher,
Macabéa traz em sua manifestação corporal as marcas ideológicas dessa repressão” (MEDEIROS, 2008, p. 1).
Macabéa vive em uma sociedade, mas não se reconhecer nela. Ela não se questiona sobre os
acontecimentos à sua volta. A figura feminina dentro do romance de Clarice Lispector é delineada como um
indivíduo sem poder de voz e que aparenta estar em conformidade com tudo o que acontece à sua volta. Ela
não reage, não reclama, apenas obedece. A obediência da personagem está enraizada na criação que recebera
da tia, a qual, de acordo com Medeiros (2008): “[...] embora falecida, exerce sobre a moça uma força
coercitiva” (MEDEIROS 2008, p.1).
Propensa à disciplina, Macabéa apenas reproduz o que ouve na Rádio Relógio, como no trecho a seguir:
“[...] outra vez ouvira: Arrepende-te em Cristo e Ele te dará felicidade. Então ela se arrependera. Como não
sabia bem de quê, arrependia-se toda e de tudo. O pastor também falava que a vingança é coisa infernal. Então
ela não se vingava” (LISPECTOR, 1998, p. 37-38). Para Xavier (2007), a “Macabéa é uma personagem
passível ao adestramento. Até mesmo os anúncios que coleciona dão a tônica dessa passividade, ela que está
sempre disposta a obedecer” (XAVIER, 2007 apud MEDEIROS, 2008, p. 2).
Ainda de acordo com Xavier (2007), o fato de a personagem em questão adorar anúncios a ponto de
colecioná-los é devido à linguagem manipuladora, característico da publicidade, pois Macabéa, enquanto
corpo dócil e “adestrado”, é mais uma vítima do apelo consumista.
Culturalmente marginalizada, sem acesso ao conhecimento, a bens materiais e destituída de afeto, não
questiona os acontecimentos bons ou ruins da vida, achava que era feliz; que não reclamar era um sinal de
obediência, pois “[...] não compete ao corpo disciplinado questionar os procedimentos” (XAVIER, 2007, p.
62).
Nas primeiras páginas do romance, o narrador já adianta ao leitor que sua personagem é alguém que
não questiona nem mesmo a respeito da sua própria existência, em que o seu viver é vazio, sem objetivos a
alcançar: “Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a
tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada e em cheio no chão” (LISPECTOR, 1998, p. 15).
No que concerne ao corpo disciplinado, Foucalt aponta: “os métodos que permitem um controle
minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma relação
de docilidade e utilidade são chamados disciplina” (FOUCALT apud XAVIER, 2007, p. 58). Reiteramos que,
em Macabéa, a disciplinaridade da jovem é uma consequência da “formação” que recebeu de sua tia, em que
o vazio existencial da personagem, ou seja, a sua carência, é sustenta pela cega obediência, como podemos
observar no trecho: “Ela rezou automaticamente em agradecimento a Deus, só estava repetindo o que
aprendera na infância” (LISPECTOR, 1998, p. 55).
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Tais comportamentos da personagem a tornam “pura criatura, obra de outros” (GOTLIB, 1995). A sua
obediência à disciplina é que sustenta sua vida vazia, conforme o trecho: “[...] só precisava dos outros para
crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela” (LISPECTOR, 1998,
p. 38).
Em virtude da sua obediência, outra característica perceptível no romance é que a sua vida era
tragicamente um fracasso. Podemos acrescer ainda a sua falta de perspectivas para com o seu futuro, ou seja,
Macabéa não demonstra nenhuma preocupação com sua vida vindoura, “[...] aperta-se um botão e ela acende.
Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica e
que ela era um parafuso dispensável” (LISPECTOR, 1998, p. 29).
A partir disso, podemos verificar um certo conformismo com tudo o que a cercava; chegando a causar
cólera em Rodrigo S.M, que adentra o interior da personagem. Ela não reage, não reclama, não vai à luta, é o
retrato de milhares de mulheres que vivem numa sociedade tecnicista e que, culturalmente, acostumaram-se a
calar-se e apenas obedecer. Xavier (2007) aborda que “[...] a existência de Macabéas tem a ver com todo o
sistema social do qual nós fazemos parte. O narrador sente-se na obrigação de revelar essa realidade: porque
há o direito o grito. Então eu grito” (XAVIER, 2007, p. 56). Além de fornecer concretude, a personagem
também aponta para um social que exige solução.
Além de sinalizar um corpo disciplinado, a personagem também é delineada como um corpo marcado
pela insuficiência, uma vez que foge aos padrões intitulados femininos, como no trecho: “[...] pois até mesmo
o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação” (LISPECTOR, 1998, p. 28).
Assim, os comportamentos, as marcas de controle na vida e nas atitudes de Macabéa são representações da
sociedade brasileira do início do século XX, ainda, marcada profundamente pelo patriarcado que reverbera
nas linhas do romance de Clarice Lispector.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand,
2002.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice Lispector uma vida que se conta. Ed. Ática São Paulo, 1995.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MUZART, Zahidé Lupinnacci. A ascensão das mulheres no romance. In: A escritura no feminino:
aproximações. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2011. p. 17-27.
MEDEIROS, Lígia Regina Calado de. Macabéa: um corpo como metáfora de uma existência que dói em Clarice
Lispector. Florianópolis, 2008.
XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007.
ZOLIN, Lúcia Osana. A literatura de autoria feminina no contexto da pós-modernidade. In: IPOTESI. v.13. n. 2,
p. 105-116, jul./dez. 2009.
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O MITO DO BOTO E VIOLÊNCIA SEXUAL DE MULHERES NA


COMUNIDADE DA MISSÃO

Thaila Bastos da Fonseca 30

RESUMO: O presente trabalho coloca em evidência as violências engendradas no contexto do mito do Boto,
uma vez que esta narrativa mitológica é real e vivente, carregada de verdades vividas pelas mulheres vítimas
do patriarcado. Neste sentido, esta pesquisa se justifica na tentativa de revelar as realidades do contexto
amazônico, moldado na estrutura patriarcal, e teve como principal objetivo comprovar que o mito do boto foi
construído para esconder o sexo proibido de homens casados e casos de incestos, fatos recorrentes e alarmantes
na região Amazônica. Utilizamos como suporte para a discussão os autores: Bourdieu (2002); Eliade (2016) e
Torres & Barros (2017). A metodologia empregada centrou-se na História Oral e as sujeitas da pesquisa foram
as moradoras antigas da Comunidade da Missão, situada na cidade de Tefé-AM. As entrevistas foram
realizadas com 5 mulheres que passaram pelas experiências e/ou acreditam nas histórias de encantamento.
Como principal resultado, inferimos que o mito do Boto foi construído para ocultar a verdadeira identidade
dos pais biológicos das crianças conhecidas como os filhos do boto e da violação, colocando em destaque a
violência e os abusos sexuais contra mulheres e crianças.

Palavras-chave: Mito do Boto; Violência; Mulheres.

INTRODUÇÃO
O mito é vivente e com sua verdade podemos desvendar e denunciar as realidades e temas obscuros
que foram silenciados, sobretudo, no período colonial. Desse modo, Eliade (2016), destaca que o mito não é
definitivamente uma teoria irreal ou uma criação fantasiosa: o mito é uma “realidade viva”, porque é vivido
pela sociedade e por isso é considerado verdadeiro por está estritamente relacionado à realidade das pessoas.
Deste modo, uma das trevas ou obscuridade que percebemos no mito do boto é a vertente da dominação que
reabilita virilidade e a sedução (feitiço), assentada na cultura patriarcal ocidental.
Neste sentido, o patriarcado é marcado pela dominação masculina e isso de assenta no mito do boto,
posto que, este animal utiliza de seu poder dominador e enfeitiçador para atrair e perseguir mulheres, inclusive
as casadas. Este cetáceo, não aceita ser negligenciado, pois seu objetivo é exclusivamente a obtenção da sua
satisfação sexual. Assim, a moradora 9 relatou que quando era criança:

Acompanhava minha avó porque ela era parteira, pra onde ela ia eu ia. Certo dia, ela foi
chamada para fazer um parto de uma mulher que há dias vinha sofrendo. Minha avó me botou
dentro da canoa e fomos a remos até a comunidade onde ela morava. Chegando lá, a mulher
gritava feito bicho e a barriga dela fazia um reboliço que eu nunca tinha visto na vida. Fiquei
com muito medo porque nunca tinha visto um parto tão sofrido como daquela mulher. Estou
agora com sessenta e oito anos, mas essa imagem nunca saiu de minha cabeça. Quando a
criança nasceu, por Deus do céu e por essa luz que está me aluminando, a criança era tudo

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Graduada em Letras Língua Portuguesa CEST-UEA; Graduada em Letras Língua Inglesa pelo PARFOR/CEST-UEA; Especialista
em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e suas Literaturas CEST-UEA; Mestra em Ciências Humanas PPGICH-UEA;
Integrante do Grupo de Pesquisa (NEPAM) e Professora Supervisora do PIBID/CAPES/UEA e Professora de Língua Inglesa
(SEDUC/TEFÉ) thailabastos@yahoo.com
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menos gente. Ela tinha da cintura pra cima formato de pessoa, mas da cintura pra baixo era de
boto. A mulher quase morre. Foi horrível e todos na comunidade diziam que era castigo porque
quando o marido dela ia pescar ela dava confiança para outros machos. Mas eu tenho certeza
que essa mulher foi encantada sim pelo boto. A criança ficou viva pouco tempo, até hoje eu
me lembro do seu choro, mas logo depois não vingou morreu e enterramos no fundo do roçado.
(2017)

Quando é confirmado que o filho que a moça espera é do boto, como é o exemplo da narração acima,
ela é perdoada e volta a viver com a família, sendo aceita com seu filho, por todos na comunidade. Desse
modo, nem a moça como a família tem a honra ferida e manchada, inclusive as mulheres casadas, porque a
criança é reconhecida como filho do encante. Em contrapartida, muitas dessas gravidezes aconteciam sem o
consentimento das mulheres, pois se trata de uma “pulsão sexual avassaladora, com investida cega e abrupta,
pois o homem não aceita a rejeição e resolve essa pulsão de forma agressiva e rancorosa” (TORRES &
BARROS, 2017, p. 12).
Para a autora, quando o homem se sente rejeitado pelo fato de a mulher não querer realizar seus desejos
sexuais, ele se revolta, faz com que recaia sobre ela sua ira “difamando-a e repudiando seus atos e tudo o que
é relacionado a ela” (Torres, 2009, p.89). No caso do boto, quando é rejeitado, ele lança uma carga sobrenatural
negativa sobre a fêmea, seu objeto de seu desejo, fazendo-a sofrer com tonturas e muitas dores na cabeça e
durante o parto. Esse feitiço implica também em visitas de espíritos de boto durante a noite, que atormenta a
mulher em sonhos alucinantes podendo levá-la à loucura.
O mito do boto revela temáticas que encobriam a luxúria e lascividade de homens que utilizavam da
situação patriarcal para praticar relações fora dos laços matrimoniais e incestos. Esta narrativa engendra fatos
históricos e reais como é o exemplo da narrativa a seguir em que a moradora 8 em entrevista, narrou:

Minha mãe era professora e ela me contava que as pessoas contavam a lenda do boto para
amedrontar as mulheres. Mas ela disse que acontecia muita coisa errada e triste, as mulheres
fugiam de casa e iam tentar uma nova vida em Tefé, trabalhando nas casas alheias em troca
muitas vezes de apenas um prato de comida. E quando perguntavam ao pai o porquê da filha ter
ido embora, o pai dizia que era por causa de macho. Mas não era nada disso, tinha homem muito
ruim naquela época. Homens que “mexiam” com as próprias filhas, a senhora sabe o que “tô”
querendo dizer. Mas isso do boto não é lenda não, foi criado para esconder o verdadeiro pai dos
filhos dessas mulheres. Diziam que era culpa do pobre do boto, onde já se viu minha filha, um
boto fazer filho igual a gente “num” tem como não. Eu só sei que minha mãe falava que muita
das vezes o pai das crianças eram os próprios tios, ou o avô. Às vezes, as famílias entregavam
os filhos do boto para ajudarem os padres na igreja como coroinhas. E era pior, porque a senhora
pode imaginar o que acontecia né... É por isso que eu não gosto desse negócio de viver socado
dentro de igreja, é de desconfiar. Nunca deixei meus filhos largados no mundo e nem pra
ninguém cuidar, pois como minha mãe me contava, muito coisa ruim acontecia, cruz credo.
(2017)

Percebemos nesta narrativa a supremacia androcêntrica, pois “a violência se institui por intermédio da
adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante” (BOURDIEU, 2002, p. 23), pois a força
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masculina dispensa justificativa, tendo em vista que a visão androcêntrica foi se impondo de forma
naturalizada que as pessoas concebem como natural.
Assim, na tentativa de se livrar dos lares patriarcais, as mulheres fugiam de casa em busca de uma vida
melhor, trabalhando em casas de pessoas piedosas, que com “imensa compaixão”, as pagavam com comida.
É óbvio que na tentativa de fuga, as mulheres eram culpadas, pois a moça de família que se “preza”, não teria
coragem de abandonar seus laços familiares, para aventurar na cidade de Tefé. A mulher era inferiorizada
constantemente, pois se permanecesse em seu lar era violada, mas neste caso, como teve coragem, ao escapar,
sofria represálias também, sendo que o motivo da fuga era seu “macho”. Portanto, a força da dominação é
justificável porque é inaceitável, que uma filha que foge de casa retorne, e isso se naturalizou, pois já não é
digna deste lar, pelo fato de ter envergonhado a “honra da família”, com isso, a sociedade predominantemente
com visão masculina, cobra do dominante esta ação.
Compreendemos também que o mito do boto foi criado para encobrir o sexo proibido e a violação
ocorrida contra mulheres pelos próprios pais ou irmãos assim: “homens que “mexiam” com as próprias filhas,
a senhora sabe o que “tô” querendo dizer. Mas isso do boto não é lenda não, foi criado para esconder o
verdadeiro pai dos filhos dessas mulheres”. Neste sentido, Torres & Barros destacam que: “neste caso é para
acobertar o sexo proibido e encobrir o sexo praticado por sacerdotes católicos, missionários, que vieram para
a Amazônia realizar trabalho de cristianização” (2017, p. 10). Na realidade, para a entrevistada, esta narrativa
que foi se constituindo na imaginação de seus narradores, e atravessou gerações, foi criada para encobrir a
verdadeira identidade dos pais dos chamados filhos do boto, ou melhor, filhos da violação.
Desse modo, Torres & Barros (2017) destacam que com o advento de instituições religiosas, tais como
os jesuítas e carmelitas, em prol de propagar a fé cristã do verdadeiro Deus na Amazônia, sinalizou para o
aumento de clérigos e as sexualidades contidas e proibidas. “Trata-se da doação de meninas por seus pais a
colonos portugueses em troca de alguma quinquilharia, por um lado, e a prostituição de moças por assim dizer,
em troca de melhor sobrevivência na sociedade colonial” (TORRES & BARROS, 2017, p. 7). Este aspecto,
identificamos na fala da entrevistada, pois ela nos revela que “Às vezes, as famílias entregavam os filhos do
boto para ajudarem os padres na igreja como coroinhas. E era pior, porque a senhora pode imaginar o que
acontecia né”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao interpretar o mito do Boto, foi possível perceber os vestígios e as violações contra mulheres na
Amazônia profunda. Posto que, identificar esta temática nessas narrativas implica perceber uma historicidade
própria e autêntica dos povos da Amazônia e compreender os reais motivos que levaram a configuração
mitológica deste animal como opressor de mulheres vítimas do patriarcado. O registro escrito dessas histórias
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é relevante, pois ao relatarem eventos passados, os narradores realizam também uma espécie de documentação
das ações que vão se constituindo através das memórias no presente.
O mito tem seu poder de “verdade” e é fundamental traduzir as verdades culturais que cada ser humano
carrega consigo, ou melhor, colocá-las em evidência. O mito do boto é revestido de fatos e de uma sexualidade
latente e viril assentada na teoria patriarcal, onde a supremacia androcêntrica e a submissão feminina são
fortemente evidenciadas e de natural aceitação. As narrativas sobre o Boto, como animal sagrado e sedutor de
mulheres apresentam elementos obscuros que eram silenciados por aqueles que os praticavam.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro, 2002.


ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2016.
TORRES, Iraildes Caldas. Arquitetura do poder; memória de Gilberto Mestrinho. Manaus: Edua, 2009.
______. Ritual pagão do Boto na Amazônia brasileira: feitiço e gravidez. Manaus-UFAM, 2017.
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SOBRE OS GRUPOS DE PESQUISAS

Grupo de Estudos e Pesquisas Escritoras Paraenses (GEPEPs)

Criado em outubro de 2019, o Grupo de Estudos e Pesquisas Escritoras Paraenses (GEPEPs),


coordenado pela professora doutora Luciana de Barros Ataide, tem como objetivo se debruçar sobre as
produções literárias de autoria feminina do Estado Pará, por meio de um resgate memorialístico, de maneira a
fazer um estudo aprofundado das obras de autoria feminina em diálogo com outras produções literárias.
Pretende-se, com isso, fomentar o debate acerca da escrita de autoria feminina do Estado do Pará, em seus
contextos de produção, sem descuidar do elemento estético dos textos estudados com intuito de enriquecer as
discussões sobre as representações literárias das mulheres paraenses.
No ano de 2020, o Grupo trabalhou com o projeto "Resgate de textos de escritoras do século XX: corpo
e memória nas letras de Eneida de Moraes" teve como objetivo fazer uma revisitação do espaço literário
paraense em busca de obras produzidas pela escritora Eneida de Villas Boas Costa de Moraes, com intuito de
trazer essas produções para as discussões acadêmicas, fomentando pesquisas e estudos, de maneira a
proporcionar maior visibilização das obras eneidianas. Eneida foi uma escritora que muito influenciou não
apenas a produção literária feminina no Estado do Pará, mas também a participação da mulher na vida pública
e social.
Dos estudos desenvolvidos durante o ano, resultaram três trabalhos: A Literatura de Eneida de
Moraes como Instrumento para Educação Etnico-Racial: um Estudo do Conto “Boa Noite, Professor”,
publicado no caderno de resumos do I SIMPÓSIO CURRÍCULO E CULTURA: encontros antifascistas,
realizado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Política e Currículos Pós-Críticos (GEPEP); A
Ecologia de Saberes e Práticas Culturais na Literatura de Eneida de Moraes apresentado no V
COLÓQUIO INTERNACIONAL DE LITERATURA E GÊNERO / II COLÓQUIO NACIONAL DE
IMPRENSA FEMININA, realizado pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e o artigo intitulado
Identidade e Cultura na Crônica “Banho de Cheiro’, de Eneida de Moraes, publicado no periódico
Afluente: Revista de Letras e Linguística, da Universidade Federal do Maranhão.
O ano de 2021 o Grupo trabalhou com o projeto "Estudos da poética do tempo e do espaço na poesia
de Adalcinda Camarão" que teve como objetivo fazer uma revisitação do espaço literário paraense em busca
de obras produzidas pela escritora Adalcinda Magno Camarão Luxardo, com intuito de trazer essas produções
para as discussões acadêmicas, fomentando pesquisas e estudos, de maneira a proporcionar maior visibilização
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das obras produzidas pela escritora. Apesar do considerável número de produções, são quase invisíveis o
número de estudos e pesquisas dedicados às produções literárias de Adalcinda.
Das atividades desenvolvidas durante o ano, resultou a organização do I Colóquio de Gênero e
Literatura na Amazônia, em parceria com o Grupo de Estudos, Mulheres, Emancipações e Literaturas
(Gmells) e o trabalho intitulado A Poética do Erotismo Feminino nos Poemas “Se”, De Adalcinda
Camarão e “Se Tu Viesses Ver-Me...”, de Florbela Espanca, apresentado no referido colóquio e é parte
deste caderno de resumos expandidos.
O GEPEPs, atualmente, é composto por sete pesquisadoras e mantém a agenda de encontros mensais
para discussão das obras lidas e disponibiliza algumas ao público externo. O acesso a um pouco das produções
literárias das escritoras estudadas pode ser feito por meio do acompanhamento do Podcast Escritoras
Paraenses: https://anchor.fm/gepeps-escrita e pelo blog https://gepepsiex.blogspot.com/.
O Grupo está vinculado à Faculdade de Letras e Educação, da Universidade Federal do Sul e Sudeste
do Pará/Unifesspa. Para o ano de 2022, o GEPEPs traz o projeto “A mulher na sociedade de classes: uma
leitura de narrativas da escritora Lindanor Celina” que tem como objetivo construir discussões sobre a
condição feminina no sistema capitalista. A preocupação será, a partir das leituras de narrativas de Lindanor
Celina, observar o processo de marginalização das mulheres na sociedade de classes, desmistificando a ideia
de que é o sistema capitalista o responsável pela inserção feminina no mundo econômico. Para isso, o principal
referencial teórico que irá conduzir essa travessia discursiva será a obra A mulher na sociedade de classes:
mito e realidade (2013), da socióloga Eleieth Safiotti.
Contato com o GEPEPs pode ser feito através do e-mail: gepeps.escritorasparaenses@gmail.com

Grupo de Estudos Mulheres, Emancipações e Literaturas (Gmells)

O Grupo de Estudos Mulheres, Emancipações e Literaturas (Gmells) surgiu em junho de 2020, no


início do período da pandemia da Covid-19, a partir de algumas provocações: de que modo as pesquisadoras
de diferentes áreas do conhecimento dialogam com a literatura de mulheres indígenas, negras e LGBTQIA+?
Como pensar essas literaturas a partir das nossas pesquisas e leituras teóricas de diferentes áreas do
conhecimento?
O objetivo central do Gmells é o de realizar a análise do movimento histórico de invisibilização de
obras, de escritoras e de cenas literárias; do recente movimento de emergência de escritoras contemporâneas
que vem (re)formulando os debates e as reflexões; e de um fazer literário que problematiza e tensiona a História
e a Crítica Literárias na efetivação da construção de literaturas anticoloniais, anticapitalistas e antirracistas,
como observa Françoise Vergès.
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Diante dessas questões e objetivos, do interesse comum de suas participantes em discutir e pluralizar
temáticas como Gênero, Feminismo, Literatura, Formação de Leitoras/Leitores e Professoras/Professores e
das limitações impostas pela pandemia da Covid-19; é que o Gmells foi criado.
Tal identidade visual teve como a ideia apresentar as perspectivas de três mulheres que viveram/vivem
em diferentes tempos-espaços, tendo nos territórios da escrita, do conhecimento e da (re)existência, pontos de
encontros entre passado-presente-futuro. As mulheres e intelectuais escolhidas foram: Eneida de Moraes
(1903-1971), escritora paraense que foi presa política em 1936, na Era Vargas; Dinalva Oliveira Teixeira
(1945-1974), conhecida como Dina; única mulher da Guerrilha do Araguaia a alcançar um posto de comando;
e, por fim, Conceição Evaristo (1946-), escritora negra contemporânea de destaque na cena literária brasileira
e projeção internacional.
Por conta do cenário pandêmico, no ano 2020, realizamos a primeira atividade do Gmells totalmente
online, com o projeto intitulado Diálogos Literários, que contou com 4 (quatro) edições de lives com
escritoras, professoras, pesquisadoras e intelectuais brasileiras. Atualmente, esse projeto está se encaminhando
para a sua quinta edição, com o objetivo de estabelecer um espaço de escuta, interação e movimentação dos
debates e das pesquisas.
A avaliação do grupo e dos diversos participantes dos diálogos com as autoras, foi muito positiva,
afirmando a importante contribuição no aprofundamento das reflexões sobre as diversas realidades
vivenciadas no contexto do campo brasileiro, necessárias para melhor compreensão dos elementos e
contradições que determinam questões como racismo, violência de gênero, o patriarcado, os feminismos além
da necessária e urgente perspectiva de uma formação decolonial. Elementos impactantes numa proposta de
formação de professores do campo e da cidade, reafirmando a relevância da necessária ação de extensão da
Universidade. Tudo isso motivou a continuidade.
Dando continuidade às nossas ações, no ano de 2021, iniciamos a segunda atividade, com o projeto de
extensão intitulado Literaturas de Mulheres, Prática de Leituras e Formação de Professores, vinculado à
Faculdade de Educação do Campo, voltado para educadores que atuam em diversos territórios rurais e urbanos,
com o objetivo de contribuir a partir da literatura com provocações que levem a problematizar os diversos
processos e relações vivenciadas pelos sujeitos na sua diversidade. Com isso, acreditamos ser possível
reinventar processos de ensino aprendizagem no âmbito das Escolas do Campo, tanto com leituras de textos
literários, quanto com a promoção de debates mais amplos junto aos alunos dessas escolas.
A terceira atividade do Gmells correspondeu à elaboração, organização e realização dos minicursos
online propostos ao longo do projeto. Por um lado, essa atividade reflete a necessidade de ampliar as
metodologias em sala de aula de professoras/professores da região Sul e Sudeste do Pará e de outras regiões.
Por outro lado, é possível considerar que as temáticas surgidas nos minicursos são caminhos possíveis para
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construir o reconhecimento das histórias de vida, dos saberes e das “escrevivências” de professoras e
professores da região.
A realização dos minicursos mobilizou pesquisadoras, professoras, educadoras, educadores de diversas
instituições brasileiras, como USP, UFMG, UNB, PUCRS, UFPA, UFJF, PUCRGS, UFSB, UFU, UFF,
UNESP – Campus Assis, UNAMA, Unifsp, SEMED Eldorado do Carajás, SEMED Marabá, IFCE – Campus
Camocim, Unifessp, ISERJ, IFPA-CRMB, Escola Estadual-IEPIC/RJ/Niterói, UFRGS, UERJ, UNESP FCL
Assis, UEPB, UNIMONTES, UFC, IFRJ, Unincor, UFSC.
Ainda por conta da pandemia que nos encontramos desde março de 2020, as nossas atividades em 2022
ainda serão online, com a realização de aulas online abertas no intuito de estabelecer momentos de leituras,
reflexões, provocações e debates sobre os múltiplos feminismos, como: feminismo negro, ecofeminismo,
feminismo comunitário, feminismo camponês, feminismo na literatura, feminismo indígenas.
O Gmells, atualmente, é composto por 12 (doze) pesquisadoras de diferentes áreas do conhecimento,
como: Educação, Ciências Sociais, Geografia e Letras. Essa pluralidade, diversidade e interdisciplinaridade
de conhecimentos e afetos atravessam os nossos olhares teóricos, epistêmicos e literários, no intuito de
incentivar a continuarmos a debater sobre literaturas que estão às margens do processo histórico literário e
sobre os processos, contextos, conceitos e perspectivas do pensamento feminista.
Por fim, a experiência desse percurso de construção do Gmells e andamentos de nossas atividades
durante a pandemia tem nos levado a refletir que a literatura, ao longo da história, tem sido reinventada,
afastando-se de sua posição canônica e de seu papel colonizador, apresentando-se como espaço de múltiplas
produções, a partir da diversidade de expressões de escritoras, pesquisadoras, professora e intelectuais de
diferentes regiões do Brasil. Apesar de a literatura ter sua origem colonial, há um movimento contemporâneo
de (re)construção de outras epistemologias no debate teórico literário, de descolonização do cânone literário e
das pluralidades de vozes, o que pode estar indicando a nós, por um lado, uma possível ruptura para com a
tradição literária, e, por outro lado, a (re)existência de uma literatura historicamente apagada, silenciada e
invisibilizada.

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