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Os capítulos são de inteira responsabilidade dos autores.

A396a Alguns olhares do Sul: antropologia, etnografia, e análise de conflitos e crises no


século XXI / Organizadores Santiago Álvarez, Carlos Abraão Moura Valpassos. —
Campos dos Goytacazes, RJ: EDUENF, 2023.

Ebook (118 p.)

Formato: PDF.
ISBN 978-65-87726-27-4

1. Antropologia. 2. Etnografia. 3. Conflitos sociais – Séc. XXI. 4. Problemas sociais.


5. Crises – Séc. XXI. 6. Etnologia. I. Álvarez, Santiago II. Valpassos, Carlos Abraão
Moura.

CDD 320.905

Editora Chefe: Revisão ABNT:


Katia Valevski Sales Fernandes Letícia Cunha Braga

Conselho Editorial: Capa e projeto gráfico:


Leonardo Rogério Miguel Larissa De Paula Viana Souza
Maura Cunha
Sérgio Arruda de Moura Diagramação:
Claudia Lopes Prins Larissa De Paula Viana Souza
Roberto Trindade F. Junior
Ana Bianca Rocha Miranda Ilustração da capa:
Larissa De Paula Viana Souza
Revisão de língua portuguesa:
Letícia Cunha Braga Catalogação:
Henrique Barreiros Alves

EdUENF
Editora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
E-mail: eduenf@uenf.br
www.uenf.br/extensao/editora
Av. Alberto Lamego, 2000 – Parque Califórnia – Campos dos Goytacazes/RJ – CEP: 28013-602
Ao professor Arno Vogel, por suas contribuições
aos estudos antropológicos sobre conflitos e
situações de crise.
Prefácio

É uma honra prefaciar este livro, que contribui para o rico trabalho de internacionalização do
conhecimento. Coordenada por pesquisadores com excelente formação, a obra coloca em diálogo
artigos que resultam de estudos realizados principalmente na América Latina, convidando-nos a
pensar, a partir de diferentes experiências, as formas como os conflitos e as crises são vivenciados
nas sociedades contemporâneas.
O primeiro desafio que nos propõem é reconsiderar o timing dos processos de crise que podem
resultar de conflitos mais ou menos duradouros. Percorrendo diversos objetos empíricos, os
autores problematizam as diversas formas pelas quais sociedades, indivíduos e grupos vivenciam o
que vem sendo definido como crise e propõem ferramentas analíticas para pensar os cenários em
que as situações problemáticas se tornam duradouras; ao mesmo tempo, criam formas de ordens
próprias e específicas em contextos de tensão e confusão.
As propostas de interpretação que aqui encontraremos estimulam a reflexão epistemológica
sobre os efeitos sociais de certos processos, recorrentes em diferentes sociedades, e nos convidam
a pensar para além das concepções de ordem baseadas em hierarquias morais que implicam
uma temporalidade limitada em estados de crise. Longe de considerar que conflitos e crises são
transitórios, este livro inova ao apresentar realidades cuja temporalidade pode se desdobrar,
orientando formas criativas de viver em e com ambientes instáveis.
O espírito comparativo da compilação merece reconhecimento especial. Os conceitos que
tecem as etnografias aqui reunidas permitem pensar a multiplicidade de formas como as pessoas
resolvem, convivem, suportam e recriam situações desafiadoras e observam como cada sociedade
oferece as oportunidades necessárias para isso.
Santiago Álvarez e Carlos Abraão Moura Valpassos destacam a relevância do paradigma
incontornável que Victor Turner oferece para o tratamento dos objetos analisados neste livro, e
suas obras são repetidamente evocadas, explícita e implicitamente. Esse antropólogo, cujo rigor
no estudo dos rituais virou escola, teve notória influência no Brasil, principalmente naqueles que
conseguiram dialogar com ele por ocasião de suas visitas ao Museu Nacional. Inspirados por ele,
formaram-se profissionais que deram atenção especial aos processos rituais. Entre eles, Roberto
DaMatta, que tanto contribuiu para a antropologia brasileira através da pesquisa e do ensino.
Doutorando sob sua orientação no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Arno Vogel enfrentou, juntamente com outros colegas, a árdua tarefa de traduzir a obra de Turner
para o português.
Como muitas vezes se afirma, traduzir é trair de certa forma, uma vez que os passos necessários
para tornar inteligíveis pensamentos historicamente situados em outra língua incluem um certo
grau de traição dos significados originais. E, nesse mesmo ato, quem o faz assume o desafio
criativo de interpretar o pensamento alheio sob os parâmetros culturais da língua para a qual é
traduzido. Que tarefa antropológica! Nesse sentido, vale a pena reconhecer o empenho de Arno
Vogel nessa missão, traduzindo vários capítulos e revisando a primeira versão em português de
“Floresta de Símbolos” (2005) e “Dramas, Campos e Metáforas” (2008). Fascinado pela riqueza
de sua obra, Arno Vogel elucidou antropologicamente uma gama de situações atravessadas por
rituais, crises, religião, política, deixando-nos um legado importantíssimo sobre a recepção e
apropriação da obra de Turner no Brasil. Mas, além disso, com sua incomparável sensibilidade
para ensinar, soube transmitir essa potência teórica em suas aulas. Com paixão e alegria, formou
Prefácio

jovens pesquisadores que tiveram a honra e o prazer de serem destinatários das cativantes aulas
universitárias que, com muita generosidade, ofereceu aos públicos brasileiro e argentino em
FLACSO, UNB, UFF, UENF e UNaM.
Este livro é certamente uma homenagem sensível a quem serviu de limiar de acesso (ou
passagem) à contribuição etnográfica e teórica de Victor Turner. Jamais serão listadas as situações
formais e informais no campo acadêmico em que Vogel traduziu Turner. O reconhecimento que
sua maestria merece nos aproxima de Jorge Luis Borges, quando, em seu livro “La Cifra” (1981),
afirma que:

[...] Da série de fatos inexplicáveis que são o universo ou o tempo, a dedicatória de um livro
certamente não é a menos misteriosa. É definida como uma dádiva, um presente. Com exceção
da moeda indiferente que a caridade cristã deixa cair na palma da mão do pobre, todo dom
verdadeiro é recíproco. Quem dá não se priva daquilo que dá. Dar e receber são iguais. Como
todos os atos do universo, a dedicatória de um livro é um ato mágico. Também pode ser definido
como a forma mais agradável e sensível de pronunciar um nome.

“Olhares do Sul” pronuncia o nome Arno Vogel, e com este dom reconhece e retribui a imensurável
dedicação intelectual e espiritual de um verdadeiro professor.

Brígida Renoldi
Posadas, 18 de novembro de 2022

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Índice

Conflitos e crises: um preâmbulo teórico e metodológico ....................... 08


Santiago Álvarez e Carlos Abraão Moura Valpassos

A espera como uma situação de crise: a situação liminar dos ex-


guerrilheiros das FARC em Belén de Bajirá (Colômbia) .......................... 18
Santiago Álvarez e Pedro Pablo Torres Palacio

A crise de representatividade das Associações de Moradores e os (re)


arranjos entre velhos e novos atores da política local no contexto da
implementação do PAC e da UPP em uma favela do Rio de Janeiro ....... 27
Juliana Blasi Cunha

Crise e agência: estratégias de trabalho dos motoristas de Uber em um


contexto de recessão econômica ............................................................. 40
Facundo Guadagno

A crise das lojas “históricas” no Chiado (Lisboa) ..................................... 51


Daphne Assis Cordeiro

No seu devido lugar: disputas simbólicas em torno do Vão Livre do MASP 64


João Gilberto Belvel Fernandes Júnior e Gabriel Hardt Gomes

Problemas Públicos, engajamentos políticos e conflitos no desastre de


2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção ............................. 77
Maria Suellen Timoteo Correa

“Depois da Cataguases, o rio não dá mais”: acidentes socioambientais


na bacia do Paraíba do Sul como dramas sociais na pesca artesanal ....... 95
Fernanda Pacheco da Silva Huguenin e Silvia Alicia Martínez

O rio Muriaé e a pesca com paris: conflitos ambientais no Sudeste


Brasileiro ................................................................................................ 106
Matheus Pereira de Andrade e Carlos Abraão Moura Valpassos
Conflitos e crises: um preâmbulo
teórico e metodológico

Santiago Álvarez1
Carlos Abraão Moura Valpassos2

Apresentamos aqui diversos olhares e perspectivas antropológicas recentes que tratam de


diferentes situações de crises e conflitos. Os artigos reunidos neste livro foram apresentados no
Grupo de Trabalho “Antropologia Política das Situações de Crise”, por nós coordenado e realizado
no âmbito da Reunião de Antropologia do Mercosul (XIII — RAM), em Porto Alegre, no ano de
2019. Tratava-se, pois, da retomada de uma discussão iniciada na Reunião de Antropologia do
Mercosul de 2015, realizada em Montevidéu, quando articulou-se o debate entre pesquisadores
que se apropriavam de conflitos e de situações de crise como oportunidades para reflexão e análise
de etnografias no Grupo de Trabalho intitulado “Antropologia do Conflito e das Situações de Crise”
— oportunidade em que esteve conosco na coordenação o professor Arno Vogel.
Em ambos os encontros, reuniram-se pesquisadores, com diferentes perspectivas teóricas e
metodológicas, voltados para o debate sobre contextos de crise e conflito. A este grupo acrescentamos
o trabalho de Facundo Guadagno, “Crise e agência: estratégias no trabalho de motoristas de Uber
em um contexto de recessão econômica”. Fizemos isso movidos por nosso interesse em crises
geradas pelo surgimento de novas formas de trabalho e para dar a este livro uma perspectiva mais
abrangente de estudos em diversos espaços nacionais. Dessa forma, além de artigos baseados no
Brasil, acabamos apresentando casos de Portugal, Colômbia e Argentina.
Os artigos apresentam as dificuldades próprias da tradução de experiências de campo em textos
etnográficos. Nesse processo, a mera experiência de campo, quando submetida à reflexão de
antropólogas e antropólogos, transforma-se em experiência singular, no sentido destacado por
John Dewey (2010), quando converte-se, enfim, em texto de caráter etnográfico.

A experiência ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo com as condições


ambientais está envolvida no próprio processo de viver. Nas situações de resistência e conflito,
os aspectos e elementos do eu e do mundo implicados nessa interação modificam a experiência
com emoções e ideias, de modo que emerge a intenção consciente. Muitas vezes, porém, a
experiência vivida é incipiente. As coisas são experimentadas, mas não de modo a se comporem
em uma experiência singular. Há distração e dispersão; o que observamos e o que pensamos,
o que desejamos e o que obtemos, discordam entre si. [...] Em contraste com essa experiência,
temos uma experiência singular quando o material vivenciado faz o percurso até sua consecução.
Então, e só então, ela é integrada e demarcada no fluxo geral da experiência proveniente
de outras experiências. Conclui-se uma obra de modo satisfatório; um problema recebe sua
solução; um jogo é praticado até o fim; uma situação, seja a de fazer uma refeição, jogar uma
partida de xadrez, conduzir uma conversa, escrever um livro ou participar de uma campanha
1
Doutor em Antropologia Social pela London School of Economics and Political Science. Professor na Universidad
Nacional Arturo Jauretche. E-mail: alvaresantiago@hotmail.com
2
Doutor em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor no Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense e no Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da
Universidade Estadual do Norte Fluminense — Darcy Ribeiro. E-mail: valpassos@gmail.com
Conflitos e crises: um preâmbulo teórico e metodológico

política, conclui-se de tal modo que seu encerramento é uma consumação, e não uma cessação.
Essa experiência é um todo e carrega em si seu caráter individualizador e sua autossuficiência.
Trata-se de uma experiência (DEWEY, 2010, p. 109-110).

Para transformar as experiências primordiais, muitas vezes fragmentadas e caóticas, antropólogos


e antropólogas aplicam conceitos e teorias que auxiliam na reflexão, promovendo explicações e
significados. Não devemos esquecer, no entanto, que esse processo ocorre em momentos e contextos
determinados. Tendo isso em vista, “contrariamente à ideia de fixação fotográfica que a construção
etnográfica supõe (um processo marcado pela distância), o campo, ao contrário, se move e continua a
mover-se de um modo que se poderia definir como cinematográfico” (ÁLVAREZ, 2011, p. 88).
As reflexões socioantropológicas sobre os conflitos e seus significados são antigas e estão presentes
já nos primeiros passos das Ciências Sociais. Durkheim e Simmel dedicaram-se à temática, embora
atribuíssem aos conflitos diferentes implicações, ressaltando sua importância para a compreensão
das dinâmicas sociais.
Na Antropologia, foi com a Escola de Manchester, sobretudo nos trabalhos de Max Gluckman
e Victor Turner, que os estudos sobre conflitos atingiram seu apogeu. Max Gluckman, diante da
incapacidade do estrutural-funcionalismo para compreender a complexidade dos processos de
transformação social, foi levado a buscar alternativas. Nesse sentido, tornaram-se centrais as
análises situacionais, bem como a reflexão e a aplicação do que Gluckman chamou de “extended-
case method” (método de casos desdobrados), tal como exposto no hoje famoso trabalho sobre a
inauguração de uma ponte na Zululândia.
O método e as ideias de Gluckman representavam um momento de transformação das abordagens
antropológicas. A ênfase nos conflitos e nas análises processuais, que incorporavam dimensões
históricas e afastavam as preocupações sobre o estabelecimento da ordem e da manutenção das
estruturas sociais, no entanto, ainda estavam em um estágio de lapidação. Tal como nos recorda
Arno Vogel (2006):

[...] ainda que Gluckman tenha sido o fundador da escola de Manchester e um grande
articulador da heterodoxia manchesteriana, poderíamos dizer que a abordagem
processualista se consolida efetivamente, e se encarna de modo exemplar, na antropologia
de Victor Turner (VOGEL, 2006, p. 3).

Em seu artigo intitulado “O material etnográfico na Antropologia Social inglesa” (1961),


Gluckman recupera o uso realizado por diferentes antropólogos sobre os “dados” etnográficos. Ao
abordar sua própria produção textual e sua metodologia, destaca que ainda preponderava uma
preocupação com a apresentação da morfologia social, o que posteriormente seria pensado como
uma abordagem que ainda priorizava aspectos estruturais e estáticos da vida social:

Eu mesmo utilizei uma série complexa de acontecimentos, principalmente da cerimônia


de inauguração de uma ponte recém-construída, para ilustrar até que ponto os zulus e os
brancos participavam de um único sistema social e para desarmar o ataque de Malinowski
a Fortes e Schapera pela adoção desse ponto de vista. Chamávamos esses acontecimentos
complexos de situações sociais e usávamos a ação de indivíduos e de grupos nessas situações
para exibir a morfologia da estrutura social. Mas nosso objetivo ainda era a apresentação da
morfologia social (GLUCKMAN, 1961, p. 67).

O “extended-case method” continuaria a ser lapidado em diversos textos etnográficos elaborados


por diferentes pesquisadores da Antropologia Social inglesa. Todavia, o próprio Gluckman destaca
que “[...] o método só atinge sua excelência, na minha opinião, no estudo de Turner sobre os

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Santiago Álvarez e Carlos Abraão Moura Valpassos

Ndembu da Rodésia do Norte” (ibidem, p. 72). Gluckman se refere aos dramas sociais de Victor
Turner, e, nessa perspectiva, fica evidente que, mais que um conceito ou uma abordagem de
caráter teórico, os dramas sociais constituem uma metodologia de pesquisa que se desdobra desde
os tipos de acontecimentos observados até o modo como eles serão apresentados e representados
no texto etnográfico.
O drama social, desse modo, pode ser pensado como uma metodologia da ação, algo que
transcende as estruturas estáticas sem desconsiderar a existência de normas e práticas consolidadas,
mas destacando as incongruências da vida, os antagonismos, as crises e os conflitos. Como observa
Cavalcanti (2020):

A antropologia de Victor Turner traz consigo o gosto pela sujeição ao vivido, uma expressão
de Claude Lévi-Strauss. Porém, com Turner, a suposta sujeição transforma-se com o vivido,
em uma espécie de redenção pela imersão na experiência vital de um agora pleno de tensões
e desdobramentos futuros, coletivamente experimentado. Uma antropologia encharcada de
finitude, de impossibilidades e contradições, de profunda empatia pelo sofrimento humano
(communitas e ritos de aflição) (CAVALCANTI, 2020, p. 27).

Os dramas sociais nos colocam diante da ação humana. Através deles observamos as pessoas
e os grupos sociais nas dinâmicas da vida, articulando passado, presente e futuro em processos
contínuos de representação e simbolização. O “social” ganha vida, e as mudanças, as crises e os
conflitos são destacados. A vivacidade dos dramas sociais está associada ao seu foco na ação, e
isso pode ser evidenciado quando lembramos de um trecho da orelha de apresentação da edição
brasileira do livro “Do ritual ao teatro: a seriedade humana de brincar”, de Victor Turner (2015),
quando Marco Antonio da Silva Mello e Felipe Berocan nos recordam que:

Em seu vigor intelectual e atitude criativa e ousada diante do conhecimento, o autor


[Victor Turner] ressalta que, entre a ciência evocada pelo pai engenheiro e a arte encarnada
por sua mãe atriz, encontrou ‘um meio-termo, ao inventar uma unidade de descrição e
análise’ que chamou de drama social, evocando assim a dimensão existencial da ação. Essa
unidade lhe permite estabelecer um foco narrativo sui generis a partir do qual inspeciona
interessadamente as ações e suas formas expressivas, consciente de que todas as formas
literárias e dramatúrgicas – incluindo as etnografias – apresentam o ponto de vista de
um autor, muito embora nem sempre haja um narrador explícito capaz de evocar, unir,
apresentar e conferir sentido a uma história. Tal como Shakespeare em sua comédia Much
ado about nothing (1598), Turner busca explorar todas as reverberações inesperadas do
significado a partir de falas e ações de personagens que, enredados em histórias, constituem
essa ‘unidade de descrição e análise’ independente de um narrador, de cujos olhos ou voz
apreendemos a narrativa e suas inter-ações. Pois, tal como bem definiu Raphael Bluteau
em seu Vocabulário português e latino (1728), ‘drama, ou obra dramática, é um gênero de
poesia em que o poeta não fala, mas faz falar várias pessoas (TURNER, 2015).

Enquanto unidade de descrição e análise, o drama social se constitui como um método


(méthodos), um caminho a ser trilhado desde a observação até a apresentação daquilo que foi
observado, ou seja, algo que se faz presente desde o trabalho de campo até a formulação do
texto etnográfico, onde as ações e as perspectivas dos atores são privilegiadas. Para Victor Turner,
que se adiantou a várias das novas direções que distinguem a Antropologia contemporânea, a
etnografia é essencial para a prática antropológica, e as teorias são relevantes quando iluminam
a realidade social. O autor não crê em conceitos estáticos, mas sim em realidades móveis e não
desprovidas de um certo caos. Ademais, ele as pensa como aplicadas a dados que tampouco são
ordenados em uma realidade sistemática que os agrupa. Como afirma Bruce Kapferer (2019),

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Conflitos e crises: um preâmbulo teórico e metodológico

para Turner “a mudança é a circunstância dada que caracteriza a vida (não a estagnação); a crise
é, ao mesmo tempo, sua condição e sua força impulsora” (KAPFERER, 2019, p. 1-2). Os dramas
sociais de Turner estão em contínuo processo e deixam de lado a ideia estática da estrutura, pois
“a estrutura deve estar sempre em processo, tendendo à entropia... restrita e limitada nas sempre
contingentes e mutáveis circunstâncias da existência” (ibidem, p. 1-2). É esta percepção de uma
realidade cambiante, em constante movimento, que nos leva a seguir considerando os conceitos e
métodos de Turner adequados para iluminar os fatos da sempre mutável vida social.
Neste livro estão reunidos trabalhos sobre conflitos sociais e situações de crise. Compreendemos
as crises como momentos de aguda reflexão, componentes cruciais dos dramas sociais, em que as
experiências são contempladas, pensadas e discutidas. Arno Vogel recorda a preferência de Victor
Turner por uma frase de Hegel: “O trágico não é o conflito entre o correto e o incorreto, mas sim
entre o direito e o direito”. Desse modo,

Na sociedade há conflitos, não porque esteja doente nem sofra de algum surto patológico,
mas porque nela existem direitos distintos, mas de igual legitimidade, que são invocados
ao mesmo tempo. Portanto, frequentemente o conflito é o resultado de tais incongruências
normativas. Em outras palavras, qualquer sociedade é, a princípio, disruptiva (VOGEL,
2006, p. 4-5).

Esses direitos divergentes, verdadeiros paradigmas em oposição, com frequência compõem


o cerne dos dramas sociais. São reivindicados, apresentados, defendidos ou questionados nos
movimentos conflitivos, constituindo-se, pois, como valiosas questões para aqueles que se dedicam
à reflexão intensiva sobre a vida social. Tal como sintetiza Luis Fernando Botero Villegas (2010):

Quando os interesses e atitudes de pessoas e grupos ficam em óbvia oposição, então, segundo
Turner, os dramas sociais podem ser isolados e submetidos a uma minuciosa descrição. Os
dramas sociais, assinala, podem ser isolados para seu estudo em sociedades em todos os
níveis de escala e complexidade, sobretudo em situações políticas (VILLEGAS, 2010, p. 1).

Susann Ullberg (2013), ao discutir a problemática dos desastres e das inundações de modo
específico, faz referência ao termo cunhado por Veena Das (1996) como “eventos críticos”, para
fazer alusão a situações que produzem novos modos de ação e redefinem as categorias sociais
existentes. Nesses eventos críticos, “as pessoas envolvidas e afetadas por um desastre interpretam
como um momento liminar de estresse e perda que interrompe a vida cotidiana. Em muitos casos,
devemos ver as crises como o contexto mais que no contexto” (ULLBERG, 2013, p. 20).
A excepcionalidade do contexto é posta em dúvida por alguns autores e nem sempre é algo
linear. Como afirma Sergio Visacovsky (2019):

[...] eventos ou situações que sob certas circunstâncias podem ser vistos como excepcionais,
sob outras podem assumir um caráter ‘normal’ integrando-se ao marco das expectativas
da vida cotidiana. Uma grande quantidade de pesquisas etnográficas demonstrou que a
incerteza e a insegurança podem ser o estado normal das coisas, como no caso das populações
que vivem em condições extremas de pobreza, durante conflitos armados, ou morando em
ambientes com altos níveis de poluição (ULLBERG, 2013). No lugar de um signo de “crise”
como uma “divergência da vida normal”, a sensação de incerteza pode resultar em uma
experiência comum em muitos contextos (VISACOVSKY, 2019, p. 16).

Compreendemos que, nesses casos, em que a incerteza é normalizada, não nos encontramos
com uma crise em sentido estrito, mas sim em uma situação que permanece no tempo e é, assim,

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Santiago Álvarez e Carlos Abraão Moura Valpassos

naturalizada. A crise, para nós, supõe uma questão atual, uma situação que produz tensões e,
por isso, deve ser solucionada — ou, melhor dizendo, ter uma solução buscada — pelos atores
sociais presentes.
Na Argentina, Sergio Visakovsky desenvolveu o conceito turneriano de crise. Em sua introdução
a “Estados Críticos: la experiência social de la calamidad” (2011), ele reavalia a contribuição de
Victor Turner para o estudo das situações de crise:

Turner transferiu este modelo processual dos ritos à vida social como um todo, formulado
o conceito de drama social. Este conceito foi em grande medida o resultado da erupção na
antropologia britânica de perspectivas mais interessadas nos conflitos constitutivos da vida
social, no lugar de um estado de exceção; também da adoção de um enfoque mais dinâmico e
não estático das sociedades; finalmente, de uma forte influência da literatura e da dramaturgia
como modelos a partir dos quais pensar a ação social (VISACOVSKY, 2011, p. 28).

Cabe destacar, ainda, o impacto que as ideias e abordagens de Victor Turner tiveram na
Antropologia brasileira. O trabalho seminal de Roberto DaMatta intitulado “Carnavais malandros
e heróis” (1997) é o exemplo mais evidente da influência das ideias de Turner no Brasil. É preciso
enfatizar, no entanto, que as ideias reverberaram e se fizeram presentes em outros trabalhos
reconhecidos, como “Galinha d’Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira” (VOGEL;
MELLO; BARROS, 1998), “Gente das areias: história, meio ambiente e sociedade no litoral
brasileiro” (MELLO; VOGEL, 2004), “Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito” (MAGGIE,
2001), “Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile” (CAVALCANTI, 1994), “De que riem os boias-
frias? Diários de antropologia e teatro” (DAWSEY, 2013) e “Pescadores de Itaipu: meio ambiente,
conflito e ritual no litoral do estado do Rio de Janeiro” (KANT DE LIMA, 1997).
Essas menções, todavia, não esgotam os trabalhos influenciados diretamente por Victor Turner;
elas apenas assinalam os textos que, nos caminhos antropológicos percorridos pelos organizadores
deste livro, fizeram-se mais evidentes. A listagem seria muito mais extensa se nos propuséssemos
a uma revisão exaustiva sobre o impacto de Victor Turner na América Latina, e, ainda mais, se
nos ocupássemos das produções de gerações mais jovens de antropólogos e antropólogas que se
dedicaram a diferentes formas de reflexão e análise de situações de crises e conflitos.
Victor Turner nos inspirou a organizar Grupos de Trabalho dedicados à discussão de trabalhos
sobre contextos de crises e conflitos em duas edições da Reunião de Antropologia do Mercosul. Ele
também se fez presente na própria condução dos trabalhos etnográficos dos organizadores deste
livro (VALPASSOS, 2018; VALPASSOS, 2021; ÁLVAREZ, 2020).
É importante frisar que muitas outras abordagens conceituais e metodológicas sobre conflitos
sociais e situações de crise hoje se manifestam nas Ciências Sociais. Nossa opção por destacar as
contribuições de Victor Turner se deu em virtude da influência que elas exerceram em nossos
percursos etnográficos. Nesse sentido, iniciar este livro recuperando um pouco das discussões
promovidas por Turner é uma forma de recuperar o histórico do trabalho que promoveu a
organização deste livro, direcionando nosso olhar para os aspectos conflitivos e críticos da vida
social. Nos interessa, em particular, o contraste entre os casos apresentados. Sublinhamos, pois, a
importância da reflexão comparativa, dispondo frente a frente diferentes casos etnográficos onde
são evidenciadas tensões e clivagens em distintos contextos sociais (ÁLVAREZ; GUGLIELMUCCI;
PALACIO, 2022). Tal como expressa Adam Kuper (1980):

Os avanços na antropologia atual ocorrem através do desenvolvimento de novas técnicas de


observação, do refinamento de modelos existentes, da definição de novos interesses e, sobretudo,
pelo contínuo jogo entre novos e velhos estudos, isto é, por comparação (KUPER, 1980, p. 37).

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Conflitos e crises: um preâmbulo teórico e metodológico

Nesse sentido, pensamos que a produção etnográfica de Turner, mais do que um arcabouço
conceitual, direciona para uma temática de pesquisa: os conflitos e os diferentes contextos de
crise. Pois, como indicou Gluckman (1980, p. 63), “a teoria é apenas um dos lados da ciência:
o outro lado, igualmente importante, é o tipo de dados que se submete à análise teórica”. Desse
modo, quando reunimos os textos aqui dispostos, notamos a relevância dos contextos de crise
e dos conflitos na produção de etnografias que, justamente por seu enfoque, são obrigadas a
tratar do dinamismo, da variação, da inovação e das transformações da vida social. Pretendemos,
então, apresentar como antropólogos e antropólogas contemporâneos, em diferentes contextos
de pesquisa, tomaram conflitos e situações de crise como objeto de reflexão. Acreditamos que
esta coleção de ensaios, resultante de etnografias elaboradas em diversas situações e contextos, é
“boa para pensar”, para discutir metodologias e práticas em chaves comparativas. Tais contextos
conflituosos, para além de criarem reflexões sobre abordagens antropológicas atuais, são também
uma amostra de alguns dos desafios da contemporaneidade: os conflitos ambientais, as questões
políticas urbanas e territoriais, bem como as adversidades impostas por um sistema econômico
de escala global. Buscamos, então, entender o enfoque e o marco teórico de cada um dos autores
junto com o contexto volátil de conflitos e crises que intentam registrar.

***

Os artigos apresentados neste volume são parte de uma crescente produção de etnografias
contemporâneas sobre situações de crise e de conflito. Explicitam diferentes perspectivas
e aplicações de análises fundamentadas na observação de conflitos e crises. Nesse sentido, os
capítulos podem ser lidos tanto como trabalhos sobre situações de crise e conflito quanto como
textos focados nessa discussão, mas que compõem debates mais amplos. Os desastres ambientais,
a crise de comércios tradicionais, as transformações econômicas e a pesca artesanal são alguns dos
exemplos dos temas tratados.
Em “A espera como uma situação de crise: a situação liminar dos ex-guerrilheiros das FARC
Belén de Bajirá (Colômbia)”, Santiago Álvarez e Pedro Pablo Torres Palacio nos mostram a situação
dos ex-guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia que vivem em um campo
concebido como provisório, onde, como costuma acontecer com o provisório, a persistência
dessa realidade está transformando-a em algo permanente. Trata-se de uma situação liminar de
“espera que dura para sempre”, uma verdadeira “situação de crise” ainda não resolvida que nos
leva a pensar sobre a história recente da Colômbia e os possíveis desdobramentos dos conflitos
armados no país.
“A crise de representatividade das Associações de Moradores e os (re)arranjos entre velhos e
novos atores da política local no contexto da implementação do PAC e da UPP em uma favela
do Rio de Janeiro”, de Juliana Blasi Cunha, discute como foram implementadas importantes
políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro no contexto de preparação da cidade para sediar
megaeventos internacionais, como a Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016. A partir da
crise de representatividade das associações de moradores de duas favelas vizinhas, o texto discute
as antigas e mais recentes mediações entre o poder público e o narcotráfico, descrevendo a forma
como velhos e novos atores da política local se colocaram nesse processo, disputando o monopólio
da interlocução com o poder público. Trata-se de uma reflexão etnográfica sobre os desafios que a
implementação dessas políticas colocou aos já estabelecidos arranjos da vida política local.

13
Santiago Álvarez e Carlos Abraão Moura Valpassos

Facundo Guadagno, em “Crise e agência: estratégias de trabalho dos motoristas de Uber em um


contexto de recessão econômica”, discute como novos processos econômicos alteram a forma como
são produzidas as relações trabalhistas e, consequentemente, como tais relações são concebidas
pelos atores. Surge, nesse ínterim, a reflexão sobre o conceito de “economia colaborativa”, quando
diversos atores compartilham recursos. Guadagno se pergunta então que relação existe entre a
instabilidade macroeconômica e o desempenho no trabalho dos motoristas de Uber. Nesse caso, os
motoristas têm que realizar uma dupla adaptação: por um lado, adaptarem-se a uma nova forma
de trabalho, por outro, enfrentarem uma nova crise econômica.
Daphne Assis Cordeiro reflete sobre “A crise das lojas ‘históricas’ no Chiado (Lisboa)”. É o único
texto que apresentamos que investiga um caso fora da América Latina. Todavia, não se trata de
um tema alheio à nossa realidade, pois também na América Latina os processos de gentrificação e
de transformação abrupta do espaço urbano afetam a vida das pessoas que moram nessas áreas.
Nesse caso, a especulação imobiliária no centro histórico de Lisboa produz o fim de numerosos
comércios de muitos anos. Debate-se o conceito de “comércios tradicionais” e a disputa legal para
que eles, “autenticamente portugueses”, sejam levados em consideração como patrimônio a ser
resguardado. Trata-se, pois, de um contexto de desafio para os empresários desses negócios que
devem se adaptar às novas regras e condições ou fechar.
As disputas políticas em torno dos espaços urbanos também estão presentes no trabalho de
João Gilberto Belvel Fernandes Júnior e Gabriel Hardt Gomes. No capítulo intitulado “No seu
devido lugar: simbolizações e disputas em torno do Vão Livre do MASP”, abordam diferentes
usos e sociabilidades desempenhadas no Vão Livre do Museu de Arte de São Paulo. Ali, em uma
das regiões mais famosas e valorizadas da cidade de São Paulo, apresentam-se construções de
sentido do lugar, que é disputado por diferentes grupos justamente pelo reconhecimento de sua
importância simbólica para a cidade. O texto de Belvel e Hardt nos leva a uma reflexão sobre
algumas das disputas e das diferentes apropriações e significações do espaço citadino.
O trabalho de Maria Suellen Timoteo Correa, “Problemas Públicos, engajamentos políticos e
conflitos no desastre de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção”, nos coloca diante
de uma catástrofe classificada acriticamente pelos meios de comunicação como “natural”. Assim,
a cidade de Nova Friburgo foi afetada pelo “maior desastre natural do Brasil”, ocasionado por
chuvas intensas que produziram deslizamentos de terra e pedra. O fenômeno impactou diferentes
municípios do estado do Rio de Janeiro (Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis, entre outros),
deixando mais de 900 vítimas. A autora está interessada em desnaturalizar o desastre que atingiu
Nova Friburgo. Timoteo Correa trabalhou com foco na construção social dos riscos e em sua relação
com a estrutura social, desenvolvendo, ademais, o conceito de vulnerabilidade como um padrão
histórico. Desse modo, a autora nos leva a considerar a catástrofe de 2011 como um “evento
crítico”, seguindo o conceito de Veena Das.
Fernanda Pacheco da Silva Huguenin e Silvia Alicia Martínez, em “Depois da Cataguases, o rio
não dá mais”: acidentes socioambientais na bacia do Paraíba do Sul como dramas sociais na pesca
artesanal”, tratam da situação de invisibilidade como situação premente das mulheres envolvidas
na pesca artesanal. A partir do desastre ambiental da Indústria Cataguases de Papel, no rio Paraíba
do Sul, as autoras observam as consequências do desastre 15 anos depois desse fenômeno, em uma
pesquisa que se desenvolveu entre as populações pesqueiras de sete municípios do norte do estado
do Rio de Janeiro: São Francisco de Itabapoana, Campos dos Goytacazes, São João da Barra, Macaé,
Quissamã, Cabo Frio e Arraial do Cabo. O trabalho, nesse sentido, trata dos efeitos de um desastre
ambiental ao longo do tempo e, também, em uma ampla área territorial.

14
Conflitos e crises: um preâmbulo teórico e metodológico

Em “O rio Muriaé e a pesca com paris: conflitos ambientais no Sudeste Brasileiro”, Matheus
Pereira de Andrade e Carlos Abraão Moura Valpassos abordam diferentes perturbações ecológicas
sofridas pelo rio Muriaé. Em um primeiro momento, tratam do drama social ocasionado pela atividade
de mineração na região e um despejo de milhões de metros cúbicos de rejeitos de bauxita no leito
do rio Muriaé; em um segundo momento, é discutida a pesca com “paris”, uma técnica tradicional,
transformada em prática ilegal de captura na década de 1980. Através desses dois debates, os
autores articulam os diferentes processos de degradação ambiental e a forma como o Estado
opera de modo desigual na fiscalização ambiental de uma região afetada historicamente por uma
economia de plantation, marcada por aspectos coloniais, e pelo crescimento urbano desordenado.
A partir das questões abordadas, entendemos este livro como um movimento inicial para reunir
antropólogas e antropólogos da América do Sul dedicados ao empreendimento etnográfico sobre
contextos de crises e conflitos. Nesse sentido, identificamos a prevalência de autores e autoras
do Brasil e da Argentina como um problema a ser superado em momento posterior, uma vez que
pensamos esta publicação como um convite para que novas e novos pesquisadores, de diferentes
nacionalidades, somem-se na troca de perspectivas e abordagens promotoras de um auspicioso
olhar comparativo sobre as questões candentes que caracterizam a América Latina.

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17
A espera como uma situação de
crise: a situação liminar dos ex-
guerrilheiros das FARC em Belén
de Bajirá (Colômbia)

Santiago Álvarez1
Pedro Pablo Torres Palacio2

“Enquanto esperava a infusão ferver, sentado ao lado do fogão de barro em atitude de expectativa
confiante e inocente, o coronel teve a sensação de cogumelos e lírios venenosos crescendo em suas
entranhas. Era outubro, uma manhã difícil de se locomover, mesmo para um homem como ele, que
sobrevivera a tantas manhãs como aquela. Por cinquenta e seis anos - desde o fim da última guerra
civil - o coronel não fizera nada além de esperar. Outubro foi uma das poucas coisas que veio.”
Gabriel García Márquez, El Coronel no Tiene Quien le Escriba

Introdução
O objetivo deste artigo é discutir o significado de uma situação particular de espera vivida por ex-
integrantes das FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias do Exército Popular da Colômbia) em um
acampamento temporário denominado Espaço de Treinamento Territorial e Reincorporação (ETCR).
Visitamos o referido acampamento como parte de uma investigação mais ampla chamada “Observação
e Análise Crítica do Processo de Paz na República da Colômbia entre as FARC-EP (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia — Exército do Povo) e o Estado Colombiano”3. Essa investigação visou
contrastar uma macroanálise do processo de paz colombiano com microinvestigações que nos permitiriam
analisar as repercussões dos acordos em nível local. Nesse âmbito, fomos responsáveis por desenvolver
uma análise aprofundada da área geográfica Urabá, Bajo Atrato, localizada e espacialmente interligada
entre os departamentos de Chocó e Antioquia, muito próxima à fronteira Colômbia−Panamá. Nessa área,
foi desenvolvida a observação etnográfica específica, que constitui o objeto deste texto e decorreu durante
o mês de fevereiro de 2018, quando iniciamos o nosso trabalho de campo.

1
Doutor em Antropologia Social pela London School of Economics and Political Science. Professor na Universidad
Nacional Arturo Jauretche. E-mail: alvaresantiago@hotmail.com
2
Mestre em Antropologia Social pela Universidad Nacional de General San Martín — Argentina IDES/IDAES/UNSAM.
Professor ocasional na Universidad de Antioquia — Colômbia. E-mails: politho@hotmail.com e pedro.torres@udea.
edu.com
3
Projeto realizado com recursos da Secretaria de Ciência e Tecnologia através do UNDEF, Universidade de Defesa
Nacional, Argentina.
A espera como uma situação de crise: a situação liminar dos ex-guerrilheiros das FARC em Belén de Bajirá (Colômbia)

Figura 1 – Mapa de área territorial de Urabá́, Bajo Atrato e Darién Chocoano4

Fonte: Defensoria do Povo de Colômbia (2017).

Propomos discutir um caso específico: a situação de expectativa angustiada de ex-guerrilheiros


das FARC à espera da resolução dos acordos de paz como exemplo de uma “situação de crise” que
expressa um “drama social” (TURNER, 1980). É possível considerar esta situação específica de
espera constante, que implica uma certa passividade, como uma situação de crise onde se colocam
tensões e conflitos?
Para analisar a desmobilização da guerrilha, visitamos um antigo acampamento das FARC
localizado na divisa entre os departamentos de Chocó e Antioquia. Esses campos foram oficialmente
nomeados nos Acordos de Havana como “Espaços Territoriais de Treinamento e Reincorporação”
(ETCR). Nossa visita aconteceu após a entrega das armas. Os ex-guerrilheiros, indefesos,
aguardavam sinais do Estado colombiano e estavam em um estado liminar. Eles não eram mais
combatentes, mas também não haviam se reintegrado totalmente à vida civil.
Para tentar entender esse estado particular de procrastinação indesejada, tomamos o conceito
de “drama social”, que ocorre em uma “situação de crise” ou conflito. Esse conceito foi utilizado

4
Urabá é composta por nove municípios do departamento de Antioquia, que são: Mutatá, Chigorodó, Carepa,
Apartadó, Turbo, San Pedro de Urabá, Necoclí, San Juan de Urabá e Arboletes. O Bajo Atrato é formado pelos
municípios de Riosucio e Carmen del Darién no departamento de Chocó, e o Darién Chocoano é formado pelos
municípios de Unguía e Acandí.

19
Santiago Álvarez e Pedro Pablo Torres Palacio

por Victor Turner, por exemplo, em “Dramas, fields and metaphors” (1974). De acordo com o
autor, as situações de crise ocorrem em estados de equilíbrio instável (TURNER, 1974; 1980).
Comumente essas situações são contidas por certos mecanismos formais e informais, adaptativos
e reformistas, que tendem a variar desde conselhos pessoais, arbitragens internas, mecanismos
legais e até mesmo a realização de rituais. Essas situações ocorrem em processos de mudança e são
expressas de forma dramática. Discutiremos se essa situação de expectativa social em que a ação é
momentaneamente interrompida pode ou não ser abrangida pela estrutura conceitual turneriana.
De outra perspectiva, o sociólogo Javier Auyero nos mostra como a “espera” pode se tornar um
mecanismo de poder. Auyero, em sua obra “Os Pacientes do Estado” (AUYERO, 2013; DAMÍN,
2014), estuda os pobres que vão aos serviços sociais ou usam o transporte público nos subúrbios
de Buenos Aires. Para ele, em certas circunstâncias, fazer os pobres esperarem é uma ferramenta
de controle do poder (AUYERO, 2013; DAMÍN, 2014). Isso não significa que Auyero considere os
pacientes do Estado apenas como sujeitos passivos: “Eles fazem o que podem, como podem, para
obter recursos do Estado em um campo, em um ambiente em que os limites estão implícitos, mas
claramente marcados” (DAMÍN, 2014, p. 409).
Discutiremos, então, a relevância desse conceito em um caso que é, à primeira vista, diverso,
mas que tem, com essas circunstâncias particulares descritas, elementos em comum território
Urabá−Bajo Atrato foi, ao longo do século 20, atravessado por conflitos internos e violências.
Historicamente, permaneceu, até tempos recentes, isolado do resto da Colômbia. Por estar em uma
área estratégica de fronteira com a República do Panamá, com conexões entre os oceanos Atlântico
(Mar do Caribe) e Pacífico, e por estar coberta pela exuberante vegetação de uma floresta tropical
úmida (STEINER, 2000), ela foi desejada por diferentes grupos armados.
A área tornou-se um espaço significativo de luta armada, entre o Estado colombiano, as FARC,
os paramilitares — apoiados pelo narcotráfico e outros grupos guerrilheiros, como o Exército
de Libertação Nacional (ELN) — e, no devido tempo, o Exército Popular de Libertação (EPL)
(STEINER, 1993; 1994). Neste artigo, pretendemos descrever a situação de ex-guerrilheiros das
FARC em um acampamento em Urabá, Chocoano. Nossa intenção é ilustrar as características
particulares da espera por esses ex-combatentes após a implementação dos acordos de paz, em uma
área geográfica notadamente afastada do centro do país e, há cerca de cinquenta anos, marcada
como um espaço de disputa5.

A visita ao acampamento dos ex-guerrilheiros das FARC


Depois de uma longa jornada, que incluiu várias mudanças de transporte por estradas difíceis,
chegamos a Belén de Bajirá, município disputado há mais de uma década pelos departamentos
de Antioquia e Chocó. Lá, entramos em um veículo de três rodas, uma motocicleta com chassi,
que nos levaria até o acampamento das FARC. Já eram dez da manhã quando, infelizmente, um
dos pneus furou e tivemos que esperar sob um sol infernal, até que outro transportador informal
aparecesse e, finalmente, levasse-nos ao nosso destino.
Na entrada do acampamento, encontramos um espaço que havia sido utilizado, cerca de sete
meses antes de nossa chegada, pela Organização das Nações Unidas (ONU) para o processo de

5
Não podemos deixar de explicar, para quem é apresentado à história colombiana, que as FARC-EP, em mais de meio
século de existência, passaram a ser reconhecidas como uma das maiores e mais poderosas guerrilhas; cerca de quatorze
mandatos presidenciais ocorreram na Colômbia e várias negociações com grupos rebeldes em armas, até a assinatura do
acordo de paz entre essa guerrilha e o governo nacional (SARMIENTO, 2015; UGARRIZA; AYALA, 2017).

20
A espera como uma situação de crise: a situação liminar dos ex-guerrilheiros das FARC em Belén de Bajirá (Colômbia)

entrega de armas, mas que foi posteriormente desmontado. O restante foi ocupado pela polícia
colombiana. A presença dessa força de segurança não é isenta de ambiguidades: por um lado,
exerce controle sobre as ex-FARC e, por outro, protege-as do ataque de outras forças inimigas
armadas irregulares e ativas, como os paramilitares ou a guerrilha do ELN. Devemos ter ido um
pouco mais longe, antes de chegarmos ao acampamento propriamente dito.
Anteriormente, em um grande edifício de madeira, havíamos encontrado uma delegação de
noruegueses. O Estado da Noruega é um dos garantidores do processo de paz, e nesse dia uma
delegação estava em visita de inspeção. Continuamos por cerca de trezentos metros e chegamos ao
local onde vivem os ex-integrantes das FARC. A população está alojada em grandes barracões pré-
fabricados em um material muito leve, como um papelão ondulado, e com telhados, de alumínio
ou zinco, que não conseguem isolar o calor projetado pelos inclementes raios solares. No exterior
de quase todos esses espaços, foram pintados desenhos paisagísticos, grafites e frases que aludem
à esperança e evocam, ao retratarem seus rostos, ex-integrantes das FARC que morreram em
tempos de confronto armado, inclusive o dos poços. Como o ilustre ex-chefe da guerrilha, Manuel
Marulanda Vélez (também conhecido por Tiro Fijo), fundador mítico e líder da organização. Dentro
do quartel fazia mais calor do que fora (a referência é necessária, pois, apesar de termos estado em
“terra quente” durante dias, o acampamento parecia um fogo envolvente).
Os ex-guerrilheiros tentaram, sempre que possível, melhorar o local, colocando canteiros de
flores e canalizando as águas estagnadas numa zona baixa e pantanosa. Na verdade, o acampamento
está localizado em uma área próxima ao leito inundável do rio Curvaradó, afluente de um dos
principais rios da Colômbia, o Atrato. As chances de ser inundado por uma enchente são altas.
Os ex-guerrilheiros dedicam uma parte considerável de seus esforços à construção de uma escola
para as quinze crianças que nasceram no assentamento, consequência do aumento da natalidade
causado pela “deposição” de armas e pela convivência mais aberta entre os colegas.
Estimamos que não haja mais de duzentos ex-guerrilheiros no campo, talvez até menos. A situação
é manifestamente precária: recebem ajuda alimentar do governo, que os abastece semanalmente,
mas não se sabe quando essa ajuda pode ser suspensa ou mesmo interrompida definitivamente.
Oficialmente, esse acordo não deveria existir para além do primeiro dia de maio de 2017 ou
do dia número cento e oitenta, contado a partir de primeiro de dezembro de 2016, uma vez que
essa é a data oficial em que o Congresso da República ratificou o acordo de paz. Aquele primeiro
de dezembro foi formalmente chamado de “Dia D”. Na verdade, campos como aquele em que
estávamos foram criados especificamente para desenvolver o processo de depor as armas. Sua
continuidade no tempo não estava prevista. Seu futuro é um ponto de interrogação angustiante.
Voltando a Victor Turner, diante da permanência daquele campo no tempo, não nos encontramos
com a espera como uma “ordem” ou “estrutura social”, mas sim diante de uma situação de
equilíbrio instável, que expressa as tensões de um determinado momento das lutas pelo poder.
Nesse sentido, a situação dos ex-guerrilheiros é de extrema liminaridade: eles não são mais
guerrilheiros, não carregam mais armas nem percorrem várias áreas geralmente montanhosas e
de selva. No entanto, eles não foram totalmente incorporados à vida civil. Eles permanecem unidos
como uma comunidade temporariamente sedentária e, nesse limbo, sem poder dar um passo à
frente, perdidos na transição.
Turner (1974) argumentou que a liminaridade pode ser definida como um tipo de fronteira
tecida entre uma ordem social que deixou de existir e um novo estado (ou ordem social) que
ainda não existe. Assim entendida, a liminaridade, neste caso dos ex-guerrilheiros das FARC,
está representada na crise que enfrentam enquanto esperam, ou seja, pela forma dramática
como observamos que a espera se desenrola naquele campo. Para que se resolvam os acordos

21
Santiago Álvarez e Pedro Pablo Torres Palacio

de Havana, essa espera, por si só, constitui um tipo particular de crise, já que a própria crise se
materializa nas condições em que aguardam. Poderíamos afirmar, nesse sentido, que a crise é a
espera, e a espera é a crise.
Uma das ex-autoridades das FARC no assentamento, o Comandante Patricio, levaria-nos a
entender, com maior precisão, essa situação não resolvida e crítica, durante a extensa e detalhada
entrevista que tivemos com ele. Encontramos Patricio em um daqueles quartéis que ficam no
acampamento, no caso, em uma área aberta, semelhante a uma churrasqueira, usada para reuniões.
Havia várias pessoas do campo discutindo com funcionários do governo, por isso nos mudamos
para um quartel fechado, onde fizemos a entrevista.

Conversando com Comandante Patricio


O comandante, ex-militar e atual oficial político da comunidade, é um jovem na casa dos trinta
anos, com a cabeça raspada, mas com uma barba rala e não barbeada. Ele veste uma camiseta
branca e jeans. Mostra-se formalmente cordial, mas sempre mantendo distância. Fica em silêncio
por um longo tempo no início, esperando que esgotemos nossa apresentação e, só então, ele
começa a falar de forma vagarosa. Em seus gestos, em sua atitude, em seus modos, ele nos lembra
outros quadros político-militares das FARC. Ele se expressa com um discurso articulado, mas ao
mesmo tempo calculado e sempre, do nosso ponto de vista, fechado (informalmente diríamos que
há uma “linha baixa” em seu discurso).
O ex-comandante Patricio nos conta como está a situação no local. Alguns colegas, depois que
os acordos foram assinados, foram se reunir com suas famílias. Outros foram para outras áreas
do país em busca de melhoria nas condições de suas vidas civis, e alguns tentaram retornar à
luta armada. Em outras áreas do país, alguns camaradas se juntaram ao ELN ou às Forças de
Autodefesa, e um pequeno grupo formou uma dissidência das FARC, “embora esse caminho não
tenha sido muito bom para eles”, diz Patricio. Segundo ele, “o grosso das FARC continua unido”.
Nesse discurso coerente, e ao mesmo tempo fechado e impermeável, Patricio afirma que as FARC
nunca quiseram o confronto: “Sempre buscamos a paz e estivemos dispostos a fazer concessões.
Como organização armada, sempre defendemos a solução política e fizemos, ou tentamos, acordos
com vários governos. Levantamos isso no VI Congresso e foi ratificado no VIII. Antes da morte do
Comandante Manuel, esse caminho foi aprovado”6.

Apostamos tudo na procura de um acordo através do diálogo, da deposição de armas.


Nas reuniões de Oslo, as FARC aprovaram o processo de paz, e o décimo congresso da
organização o aprovou por unanimidade. Começamos com o cessar-fogo unilateral para
levar esse processo a uma conclusão bem-sucedida. Depois que a cessação bilateral foi
decretada, os paramilitares continuaram na ofensiva e nos territórios ocupados. Apesar
disso, continuamos em nossa linha de desmobilização temporária, avançando para as
zonas de desmobilização. Antes mesmo de sairmos desses territórios, os paramilitares
já os ocupavam. Esse tem sido um dos principais inconvenientes do processo. Quanto à
dissidência, quanto aos que voltaram ao caminho das armas, nós, agora como partido político
das FARC [Fuerza Alternativa Revolucionaria del Común], não encontramos justificativa,
estamos caminhando nessa direção sem retroceder. O acordo era: “vamos cooperar para
fazer o trânsito”. Chegamos aqui para entregar nossas armas e nos reintegrar à vida civil e
não vamos recuar. Pode não haver garantias, mas não há outra opção senão o caminho da
paz. Vamos exigir, no quadro da legalidade, que seja cumprido, mas não vamos voltar às
6
Em referência a Manuel Marulanda Vélez, “Tiro fixo”, líder histórico e fundador das FARC (nota dos autores).

22
A espera como uma situação de crise: a situação liminar dos ex-guerrilheiros das FARC em Belén de Bajirá (Colômbia)

armas. Que tudo seja feito diante dos olhos do mundo, que o mundo saiba o que fomos, o
que somos e o que continuaremos a ser. Nós, como ex-combatentes, sabemos que esta luta
não foi fácil na guerra e também não será fácil na política. Sempre apontamos ao governo
as violações do acordo. Do governo, há quem diga que não concorda com todo o acordo, nós
também não. Há cinquenta e três anos, lutamos sem contar os outros anos em que começou
a violência contra o povo colombiano. Nesse cenário, as FARC surgiram em 1964. Levemos
em consideração o desaparecimento do M19 e o extermínio de nossos camaradas da UP
(União Patriótica). Nesse processo, queríamos que o mundo estivesse presente: chegamos
a propor que os Estados Unidos tivessem um delegado. Deixe-os vir e ver. Não finalizamos
nem mesmo vinte por cento do acordo. Reforma rural e restituição de terras: seis por cento;
questão política: doze por cento; entrega de armas: sessenta por cento. Tudo isso depois de
um ano de assinatura do acordo. Existem “enseadas” na selva, mas, diante do avanço dos
paramilitares, não podemos procurá-las. No entanto, demos ao governo as coordenadas
para o fazer. Aqui no Chocó, estava programado para entrar em vigor, em fevereiro (2018)
e, olha, nada. As organizações internacionais estão nisso, então não podem nos culpar!

Dois homens que fazem o papel de acompanhantes de Patricio nos acompanham, a distância,
durante a entrevista. Eles não nos ouvem, embora olhem constantemente para Patricio e para o
que acontece ao seu redor. Ambos trabalham para uma entidade de segurança do governo e foram
ex-combatentes das FARC.

A regulamentação do acordo não se concretizou. Apesar de um decreto, o Congresso


transformou tudo em uma lavagem de retalhos. Existem atores dentro do governo [na época
da entrevista, o presidente Santos ainda estava no poder] que querem obter a vantagem
que não foi obtida na guerra ou nos acordos. A solução para o problema das safras ilícitas
demorou cerca de seis meses para sair e não foi respeitada. Mas muitas coisas foram
materializadas a partir do acordo. Estamos prontos para o diálogo, mas eles continuam nos
matando. Temos trinta e cinco camaradas mortos desde que assinamos o acordo. Ex-colegas
dissidentes também foram mortos. Os dissidentes ocorrem porque perdem a confiança no
processo. Estamos preocupados com a segurança, não apenas para todos os ex-combatentes,
mas para toda a população rural. Nosso povo não teve uma reincorporação, a maioria ainda
está em lugares transitórios, como nós.

Sobre o processo de devolução de terras, Patricio conta:

A restituição de terras não está progredindo. Muitos territórios estão nas mãos de empresários,
e não foi possível restaurá-los. Os terrenos onde estamos agora, estes cerca de dez hectares,
estão em processo de restituição de terras, assim como a maioria dos milhares de hectares
desta zona de Bajo Atrato, apesar de praticamente todos os terrenos circundantes serem
imprescritíveis e inacessíveis, porque fazem parte de territórios coletivos, sejam indígenas
ou afrodescendentes. Nosso objetivo é buscar garantias para nossa população. Estamos
amarrados, queríamos organizar comissões pedagógicas para explicar o significado dos
acordos de paz, mas não podemos voltar aos territórios. Temos vindo para assinar o ato de
submissão ao governo, mas não podemos sair e regressar aos territórios. O governo deve
garantir a segurança, mas [isso] ainda não foi efetivado. Eles enganam a população, dizem-
lhe: “Eles partiram e deixaram-nos em paz”. Mas os aldeões não podem vir aqui, e nós não
podemos ir lá. Por quanto tempo vamos esperar?

A esta altura da entrevista, Pedro Pablo teve que fazer uma pausa de alguns minutos ao ver que
Santiago estava sem fôlego, devido ao calor envolvente, que quase triplicou de intensidade dentro
do quartel fechado, onde Patricio fez uma pausa cordial e nos divertiu.

23
Santiago Álvarez e Pedro Pablo Torres Palacio

Temos que fazer uma reconciliação entre todos nós. Somos todos seres humanos e temos o
direito de nos expressar e pensar. Ao pensar, não somos inimigos. Quando não há garantias,
cada um escolhe o caminho que considera mais conveniente. Se você não começar a assumir
o respeito pelas regras [...] Vamos unir forças com base no respeito mútuo. Há um discurso
do governo: “Viaje e faça política”. Mas existem muitos municípios onde você não pode
ir. Não temos candidatos localmente. Para Chocó ainda não foi possível. [...] O candidato
mais escolhido, que prevíamos para esta área, foi finalmente inscrito em Antioquia por
falta de garantias de participação e, sobretudo, garantias de segurança. A 57ª Frente das
FARC estava concentrada aqui. Todos viemos aqui, todos finalizamos o processo, não houve
desentendimentos. Alguns procuraram familiares e amigos para ver que expectativas podem
cumprir. Tentamos dar um treinamento de reingresso, mas não temos quem o faça. Agora
estamos sentados aqui esperando a conta básica do governo [remessa]. Vamos esperar dois
anos de braços cruzados?

A formação de casais entre ex-combatentes e o nascimento de filhos, impossível ou quase


impossível em sua anterior vida nômade na selva, é um fenômeno vivido com grande esperança:

Os filhos são filhos de companheiros ou ex-combatentes. Este ano já nasceram seis crianças,
e há três acompanhantes grávidas. A validação de uma escola é processada pelo Conselho da
Noruega e pela ONU. Já foi construído um viveiro, mas ainda não entrou em funcionamento.
Temos dezoito filhos e em breve chegaremos a vinte e cinco crianças entre a pré-escola e o
ensino fundamental.

O ex-comandante está preocupado com o que está acontecendo na região:

El Chocó é bastante complicado. O ELN, que praticamente nunca havia estado nesta área
de Bajo Atrato, também chegou e ocupou espaços abandonados pelas FARC. Carmen del
Darién não estava ocupada e agora está completamente dominada pelos “paras”. Ainda
não está à vista uma política governamental eficaz. Como posso ver o futuro? Vai depender
do esforço de todos os colombianos, todos temos que fazer a nossa parte. Álvaro Uribe
sempre apostou na guerra. Ele quer impor suas reivindicações a outro governo. A pior
situação de violência foram os oito anos de Uribe. Vamos ver como vão as eleições. Agora
estamos aqui, esperando.

Devemos ter em conta que, desde a assinatura do acordo de paz, até dois meses depois que
conversamos com Patricio, ou seja, a partir de 2 de abril de 2018, foram registrados 68 assassinatos
de ex-integrantes das FARC na Colômbia, incluindo 18 familiares e 6 desaparecimentos de ex-
combatentes, de acordo com o relatório oficial do Secretário-Geral das Nações Unidas. Em 26 de
dezembro de 2018, os assassinatos chegaram a 85, de acordo com a Missão de Verificação das
Nações Unidas na Colômbia7.
Em 31 de julho de 2019, a Fundação Ideias para a Paz (FIP) e o último relatório da Missão de
Verificação da ONU registraram 123 assassinatos de ex-combatentes e parentes de ex-combatentes
das FARC-EP, especificado pela FIP que as FARC afirmam que os assassinatos totalizavam 132 em
31 de julho de 2019.

7
Os dados sobre os 68 assassinatos estão na página 4 do relatório em: https://colombia.unmissions.org/sites/default/
files/n1808244.pdf; sobre os 85 assassinatos na página 11 do relatório em: https://colombia.unmissions.org/sites/
default/files/n1845595.pdf.

24
A espera como uma situação de crise: a situação liminar dos ex-guerrilheiros das FARC em Belén de Bajirá (Colômbia)

Conclusões
A sensação que a visita àquele acampamento, formalmente denominado Espaço de Treinamento
e Reincorporação Territorial, deixou em nós foi a de uma espera constante. Os ex-guerrilheiros são
homens e mulheres acostumados à vida nômade, a se defenderem e a sobreviverem na selva. No
campo, eles são sedentários, concentrados à força em uma área, como em uma espécie de cerca,
onde o exército e a polícia os controlam e ao mesmo tempo os protegem dos ataques do ELN ou
dos “novos” paramilitares que rondam os arredores8.
Seguindo Turner, não nos encontramos neste caso com a espera como “ordem” ou “estrutura
social”, mas sim perante uma situação que expressa as tensões de um determinado momento
de lutas pelo poder. Há uma passividade compulsória e forçada que dificilmente pode esconder
frustrações profundas. Nesse sentido, a situação dos ex-guerrilheiros é de extrema liminaridade:
eles não são mais guerrilheiros que vagam pelas montanhas, mas ainda não se incorporaram
plenamente à vida civil. Não conseguiram terminar essa passagem, se pensássemos em termos
de rituais que o “depor as armas” seria um momento de “separação” da “desagregação” da vida
guerrilheira. Seria necessário desenvolver plenamente a agregação ou “reincorporação” neste caso
à vida civil. As ex-FARC permanecem em uma situação liminar9.
A chave para essa espera está nas mãos do Estado colombiano e sob a liderança do governo
do país. A demora pode ser entendida no sentido que Auyero (2013) propõe, como exercício de
controle desenvolvido pelo poder do Estado, só que, neste caso, não se aplica a pessoas em situação
de pobreza, mas sim a ex-combatentes que decidiram renunciar aos seus braços. Ex-combatentes
que são considerados pelo governo como os derrotados da longa luta. Essa situação nos remete
diretamente ao romance de Gabriel García Márquez, “O coronel não tem quem lhe escreva” (2003).
Nele, o autor nos conta as desventuras de um velho coronel liberal que havia assinado um acordo
de paz depondo as armas. Depois do assassinato de seu filho, sua única esperança era que o Estado
colombiano lhe concedesse a pensão a que tinha direito, conforme o acordo.
Essa situação de crise levará a algum tipo de ação corretiva que, finalmente, levará à
reintegração dos ex-membros das FARC à vida civil? Nós podemos apenas elucubrar sobre isso.
É preciso levar em consideração que, em todo o país, 132 ex-combatentes das FARC-EP e suas
famílias já foram mortos. No presente caso em análise, presumimos que alguns deixarão o campo
para se juntar a outros grupos guerrilheiros, ou mesmo paramilitares, e outros retornarão à vida
civil por conta própria. Enquanto isso, os ex-guerrilheiros passam a maior parte dos dias e das
noites esperando as decisões de seu ex-inimigo, o Estado, sem poderem se reintegrar totalmente
à sociedade colombiana.
8
Em abril de 2017, o Sistema de Alerta Rápido do Escritório do Ombudsman emitiu um relatório alertando sobre os
riscos de violações maciças dos direitos humanos e do direito internacional humanitário na área de Bajo Atrato. Em
relação aos ex-combatentes das FARC, o relatório afirma: “O fortalecimento de um cerco militar da AGC [como grupo
armado ilegal pós-desmobilização das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), que se autodenominam Autodefesas
Gaitanistas, é de particular preocupação. Colômbia – AGC] ao redor do Ponto Veredal Transitório da Flórida, Brisas,
onde estão agrupados os combatentes das FARC-EP em processo de desarmamento e a afetação das comunidades
locais. O monitoramento realizado pelo Sistema de Alerta Precoce da Ouvidoria permite constatar que, até abril
de 2017, a disputa entre AGC e ELN na margem oeste do rio Atrato produziu a concentração da referida guerrilha
no Truandó e parte do Domingodó bacia do rio, enquanto os AGC são encontrados principalmente nas bacias de
Salaquí, Cacarica e parte da bacia do rio Domingodó” (p. 8-9, Nota de Acompanhamento nº 004-17, Ouvidoria, 27
de abril de 2017).
9
Rosana Guber, em “De Chicos a Veteranos” (2004), mostra-nos como o não reconhecimento dos ex-combatentes
argentinos nas Malvinas os mantém em estado liminar entre as categorias de meninos e veteranos sem poderem
fazer a passagem de uma para a outra.

25
Santiago Álvarez e Pedro Pablo Torres Palacio

Bibliografia
AUYERO, Javier. Pacientes del Estado. Buenos Aires: Eudeba, 2013.

DAMÍN, Nicolás. El Estado, la Espera y la Dominación Política en los Sectores Populares:


entrevista al sociólogo Javier Auyero. Salud Colectiva, v. 10, n. 3, p. 407-415, 2014.

Defensoría del Pueblo de Colombia. Nota de Seguimento, p. 8-9, n. 004-17, 27 abr. 2017. Informe
Espacios Territoriales de Capacitación y Reincorporación. Reincorporación para la paz.

FUNDACIÓN IDEAS PARA LA PAZ. La Reincorporación Económica de los Excombatientes de las


FARC Retos y Riesgos a Futuro. Série Notas Estratégicas, n. 9, 2019.

GUBER, Rosana. De Chicos a Veteranos. Buenos Aires: IDES-Editorial Antropofagia, 2004.

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Fundación Cultura Democrática, 2015.

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Jimeno. Conflicto Social y Violencia: notas para una discusión. Bogotá: IFEA, p. 63-71, 1993.

STEINER, Claudia. Héroes del Banano en el Golfo de Urabá. In: SILVA, Renán. Territorios,
Regiones, Sociedades. Bogotá: CEREC, 1994.

STEINER, Claudia. Imaginación y Poder: el encuentro del interior con la costa en Urabá, 1900–
1960. Medellín: Editorial Universidad de Antioquia, 2000.

TURNER, Victor. Dramas, Fields and Metaphors: symbolic action in human society. Ithaca:
Cornell University Press, 1974.

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UGARRIZA, Juan Esteban; AYALA, Nathalie Pabón. Militares y Guerrillas: la memoria histórica
del conflicto armado en Colombia desde los archivos militares, 1958-2016. 2. ed. Bogotá:
Universidad del Rosario, 2017.

26
A crise de representatividade das
Associações de Moradores e os
(re) arranjos entre velhos e novos
atores da política local no contexto
da implementação do PAC e da UPP
em uma favela do Rio de Janeiro

Juliana Blasi Cunha1

Introdução
Em março de 2011, reuniões comunitárias passaram a ser organizadas pelo Capitão da
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de duas favelas vizinhas, localizadas na Zona Sul do Rio de
Janeiro. Os nomes das favelas em questão não serão revelados, assim como os nomes de pessoas
citadas neste artigo são fictícios, buscando preservar suas identidades. Em 2007, o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) havia ali começado suas obras de (re)urbanização; em 2010,
a UPP também passou a atuar nessas favelas. Fazia parte ainda desse pacote o processo de
regularização urbanística e fundiária. Tal “pacote” de urbanização conjugado com a militarização
foi chamado por Cavalcanti (2013) de “PACificação”. Num contexto de preparação da cidade para
sediar megaeventos internacionais, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, a
resolução do problema “favela” tornou-se foco de uma série de iniciativas do poder público.
Segundo o Capitão da UPP dessas favelas vizinhas, as reuniões que ali estavam sendo realizadas
eram uma forma de “aproximação” para “conhecer melhor a comunidade”, tomar conhecimento de suas
principais demandas e encaminhá-las na busca por soluções. Em uma dessas reuniões comunitárias, tal
Capitão convocou um representante da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) para que prestasse
esclarecimentos aos moradores e às lideranças locais a respeito dos “decretos de uso e ocupação do
solo”, que, então, estavam sendo implementados nas duas favelas. O convite à SMU já havia sido feito
pelo presidente de uma das duas Associações de Moradores das favelas. A reunião de esclarecimento, no
entanto, acabou se realizando apenas após o convite feito pelo Capitão da UPP.
Logo no início dessa reunião, o conflito entre lideranças locais e os 2 presidentes das Associações
de Moradores das 2 favelas em questão tornou-se evidente através de suas falas e acusações. Tal
situação revelou a crise de representatividade dessas Associações de Moradores, seja diante dos
moradores locais, seja do poder público. No aparato teórico-metodológico desenvolvido por Victor
Turner (2008), a crise — segunda etapa do drama social — seria um momento de aguda reflexividade
que traz à tona alianças, conflitos, lealdades e arranjos que estariam submersos na dinâmica
organizacional mais ampla. As reuniões comunitárias articuladas em torno da implementação das

1
Doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo. E-mail: jblasicunha@gmail.com
A crise de representatividade das Associações de Moradores e os (re) arranjos entre velhos e novos atores
da política local no contexto da implementação do PAC e da UPP em uma favela do Rio de Janeiro

políticas em questão trouxeram para a esfera pública uma série de eventos conflitivos através dos
quais, aos poucos, evidenciaram-se as divergências de perspectivas, os conflitos de interesses e
também as alianças dos atores que estavam em jogo nesse processo.
Ao longo do meu trabalho de campo — realizado, de forma exploratória, em 2008 e,
sistematicamente, entre 2011 e 2013 —, acompanhei uma apertada agenda de reuniões
comunitárias ligadas a esse processo, que foram analisadas como “arenas públicas” (CEFAÏ, 2009).
O material etnográfico decorrente dessas reuniões permite pensar também como essas lideranças
com trajetórias, interesses e perspectivas tão distintos atuaram, ora competindo, ora cooperando,
buscando negociar, produzir acordos e assegurar objetivos diante dessas políticas públicas. Tais
reuniões podem ser pensadas como:

[...] arenas de troca e de conflito, de cooperação e de competição, de invenção de soluções


a problemas, de negociação de convenções coletivas e de composição de racionalidades
múltiplas. Estas “anarquias organizadas” não têm um objetivo, uma estratégia e uma
ideologia. Elas são atravessadas por ambiguidades e, às vezes, por contradições. Elas podem
perseguir diversas finalidades não compatíveis entre si e ser confrontadas com os dilemas da
escolha dos meios em relação aos fins (CEFAÏ; VEIGA; MOTA, 2011, p. 35).

A crise em questão coloca em xeque o papel desempenhado pelas duas Associações de Moradores
naquele processo, fazendo-nos pensar nas antigas e mais recentes mediações entre o poder público
e o narcotráfico. A história recente dessas duas associações de moradores bem ilustra a “berlinda”
na qual se encontram muitas delas desde a década de 1990, levando a pecha de coniventes com
o tráfico de drogas ou de submissas ao Estado. O presente artigo tem como objetivo discutir os
desafios, as rupturas e as continuidades que a implementação dessas políticas públicas colocou aos
já estabelecidos arranjos da vida política local. Mais especificamente, procura descrever a forma
como velhos e novos atores da política local se colocaram nesse processo, disputando o monopólio
da interlocução com o poder público.

Breve apresentação das políticas em questão


De uma maneira geral, partindo do pressuposto de que as favelas são isoladas e autônomas,
a perspectiva dessas políticas públicas é a de que esses locais devem ser integrados à cidade dita
formal. A intervenção pela qual as favelas em questão passaram engloba as obras de infraestrutura
e reurbanização do Programa de Aceleração do Crescimento, a instalação de uma Unidade de
Polícia Pacificadora e um processo de regularização urbanística e fundiária.
O PAC foi oficialmente lançado nessas favelas com a presença do então presidente da República
— Luíz Inácio da Silva — e outras autoridades em novembro de 2007. Desde então, ali foram
construídos pelo PAC um elevador panorâmico e dois prédios para, em suas unidades habitacionais,
realocar moradores das duas favelas que tiveram de deixar suas casas devido às obras físicas que
envolveram, por exemplo, alargamento de ruas e construção de praças.
Ao longo desse período de atuação do PAC, houve também investimentos em “acessibilidade”,
recapeamento de ruas e na rede de esgotamento sanitário e de água. Muitas das metas propostas
no projeto inicial, no entanto, não foram concluídas ao fim de 2009, tal como previsto no projeto
inicial, PAC 1. As obras retomaram em fins de 2011, quando o chamado “PAC 2”, além de dar
início ao processo de remanejamento de famílias para alargamento de ruas, anunciou também o
início da construção de mais algumas unidades habitacionais.

28
Juliana Blasi Cunha

Além do PAC, em novembro de 2009, foi instalada uma UPP para atuar nessas favelas. As
UPPs tinham como objetivo anunciado a “recuperação” desses territórios, através do fim do
controle armado ali exercido pelos narcotraficantes. Essa política não se apresenta como uma
solução que extinguirá o narcotráfico, mas sim anuncia buscar controlar o armamento ostensivo
dos narcotraficantes e seu, consequente, domínio sobre os territórios. A chamada “pacificação”
é frequentemente apresentada ressaltando uma radical mudança de orientação na atuação
da polícia, isto é, passando-se de um “policiamento de confronto” para um “policiamento
comunitário”, ou de “proximidade”.
Em 30 de novembro de 2009, o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia
Militar do estado do Rio de Janeiro “invadiu” essas favelas e, um mês depois, foi ali instalada
uma base da chamada Unidade de Polícia Pacificadora. Desde que a UPP foi instalada no local,
moradores e policiais (atores que historicamente mantêm uma relação conflituosa) passaram a
conviver cotidianamente no mesmo território. Para além disso, agentes da UPP começaram a atuar
não mais apenas em atividades de repressão ao crime, como também em atividades relacionadas
a diversas esferas da vida social do lugar, tal como a esportiva, a cultural e ainda a política.
Apesar de uma notável diminuição dos antigos índices de homicídio nessas favelas e na cidade
em geral, algumas questões, como a participação policial em diversas esferas da vida social desses
moradores, devem ser consideradas nesse debate.

A reunião e a publicização do conflito


A reunião de esclarecimento com o funcionário da SMU, organizada pelo Capitão, ocorreu em
um auditório em um prédio de uma dessas favelas. No palco desse auditório, em uma mesa, estava
sentado ao centro o Capitão, à sua direita o funcionário da SMU e à sua esquerda os presidentes
das duas Associações de Moradores: Tiago (favela 1) e Raquel (favela 2). Na plateia do auditório,
estavam moradores e lideranças das duas favelas, totalizando aproximadamente sessenta pessoas.
O Capitão abriu a reunião saudando a todos e logo passou a palavra ao funcionário da Prefeitura,
que fez inicialmente comentários gerais sobre os decretos. Logo em seguida, a palavra foi passada
pelo Capitão ao presidente da Associação de Moradores da favela 1:

Eu tenho lá na Associação o mapa com o projeto da SMU, mas só que o pessoal não está se
conformando com a coisa de ter que parar as suas obras e com o limite de gabaritos. Área de
risco aqui não tem. A Geo-Rio veio aqui e viu que já está tudo certo aqui. Agora não adianta
ficar me desacatando e dizendo que eu estou associado com a Prefeitura. A Associação não
resolve mais esses problemas. Nós agora temos que respeitar a lei. Vocês têm que perguntar
e reclamar com eles que estão aqui agora. Antigamente o governo não estava presente,
então era a Associação que decidia. Agora, não é mais assim. Acham que a Associação
pode resolver, e não é bem assim [...]. Estamos lutando para transformar num bairro, então
vamos ter que nos adaptar.

Na sequência, a palavra foi passada à Raquel (presidente da Associação de Moradores da favela


2), que clamou por explicações e disse que a comunidade estava apavorada, pois só se falava em
remoções. A seguir, o Capitão retomou a palavra, passando-a aos moradores e às lideranças locais
e ressaltando que estes deveriam se inscrever para fazer uso da palavra e respeitar o tempo de
dois minutos. Quando o Capitão delimitou o tempo de dois minutos para a fala de cada morador
e liderança, o descontentamento foi geral. Muitos balançaram a cabeça, fizeram comentários com
colegas ao lado e gesticularam, num claro sinal de desaprovação ao tal pedido do Capitão.

29
A crise de representatividade das Associações de Moradores e os (re) arranjos entre velhos e novos atores
da política local no contexto da implementação do PAC e da UPP em uma favela do Rio de Janeiro

Mesmo não concordando com o tempo delimitado pelo Capitão para a realização de suas falas,
muitos moradores e lideranças expuseram suas dúvidas e cobraram informações do funcionário
da SMU sobre as obras embargadas, as casas interditadas e o gabarito. Interessa aqui, no entanto,
ressaltar a intervenção feita por Sandro, importante liderança da favela 1, que se dirigia não ao
funcionário da SMU, mas sim ao Tiago, presidente da Associação de Moradores. Sandro tem 40
anos, é nascido nessa favela e atuante em uma importante ONG local. Sandro estava sentado nas
cadeiras localizadas logo à frente da plateia e, quando recebeu o microfone, ficou de pé, levantou
a sua mão direita e, apontando-a para Tiago, em tom de deboche, deu início à sua fala:

Alô, alô, Tiago! Essa é para você! Você falou uma coisa aí que me preocupa muito! Ele disse
que a Associação de Moradores perdeu a sua força e que agora é tudo com a Prefeitura.
Capitão, eu quero te passar o seguinte: a comunidade, ela tem que ter eleição, entendeu?
Isso que está acontecendo hoje é porque a Associação de Moradores não passa a informação
para a comunidade, principalmente essa coisa dos decretos aí do urbanismo. Eu já ouvi
duas vezes o Tiago falando assim: “Quem manda aqui agora sou eu e o Nogueira”. A
nossa comunidade tem que ter eleição presidencial, sim, porque a gente tem o direito de
querer ter outro representante. Se a Associação de Moradores não presta mais para nada,
então fecha a porta das duas Associações. Não é governo que está mandando agora, como
disse o Tiago? Então não existe mais Associação?! As informações não chegam porque a
Associação não faz o trabalho de comunicação. O que interessa para a gente, o alto-falante
da Associação não avisa. Então, tem alguma coisa errada aqui. Aí, quando Tiago reclama
que a gente diz que ele está fazendo o jogo do governo… O que importa é que a nossa
comunidade tem que ter eleição, sim! Teve na favela 2 e aqui tem que ter também. A gente
quer outro representante. O Tiago já fez a parte dele... um excelente trabalho, mas hoje
a Associação de Moradores não pode ser só Tiago aqui e a Dona Raquel lá! Tem que ter
um colegiado, porque tem muita coisa importante acontecendo no morro, e a comunidade
tem que acordar, sair de casa e participar. Então, se a Associação de Moradores perdeu
sua força, então fecha a porta e não existe mais. Ou o governo vai falar diretamente com
o morador, ou vai colocar um representante, ou a Associação vai fazer a parte dela de
comunicar para acabar com essa bagunça que o morador não sabe de nada. Então, eu
peço eleição no morro. E tem uma galera querendo fazer um movimento “Fora Tiago”, e
eu estou dentro desse movimento. Falou!

Sandro conduziu sua fala em forte tom de deboche, mas, ao mesmo tempo, passando bastante
seriedade no que estava dizendo. Após encerrar sua fala, Sandro foi aplaudido por muitos
moradores e lideranças presentes nessa reunião. Tiago logo pegou o microfone para se defender,
quebrando a ordem de fala da reunião — a essa altura, já havia se dispersado com os comentários
e as risadas da plateia sobre a fala de Sandro. Enquanto Tiago buscava se explicar, muitos foram
se levantando querendo encerrar a reunião naquele tom que havia sido deixado por Sandro. O
Capitão, no entanto, tentou retomar a reunião, mas conseguiu apenas encerrá-la, agradecendo a
presença de todos e, sobretudo, a do funcionário da SMU.
A fala de Sandro destaca alguns importantes pontos sobre a situação na qual se encontrava
a política local dessas duas favelas. Semanas antes, o presidente da Associação de Moradores,
Tiago, havia caminhado pelo morro, junto com o técnico da Prefeitura (SMU) e a policiais da
UPP, ajudando a localizar casas e moradores para que autos de interdição e obras embargadas
fossem entregues, de acordo com os parâmetros previstos nos novos decretos de “uso e ocupação
do solo”, que começavam a ser ali aplicados. Por essa e outras atitudes do Tiago, ele vinha sendo
frequentemente acusado de estar “fechado com a Prefeitura”, fazendo nada mais “pela comunidade”.
Além dessa habitual acusação ao Tiago, Sandro acrescentou ainda que ele não repassava
informações para os moradores e as lideranças, monopolizando, assim, a interlocução e a negociação

30
Juliana Blasi Cunha

com o poder público. Segundo Sandro, moradores e lideranças não se sentiam representados por
Tiago e gostariam de eleições para que pudessem eleger outro presidente, uma vez que ele estaria
“fechado com a Prefeitura”, “fazendo o jogo do governo” e, dessa forma, não representando as
demandas da comunidade.
Na verdade, Sandro questionou o atual formato da Associação onde Tiago monopoliza
informações e o diálogo com o poder público, ressaltando a importância da existência de um
colegiado para acompanhar tudo que estaria acontecendo ali. Sandro colocou em questão, assim,
o atual papel da Associação de Moradores, uma vez que, na fala de Tiago, “agora quem manda
é a Prefeitura”. Se quem manda é a Prefeitura, qual seria a função atual da Associação? Sandro
solicitou a participação de moradores e lideranças nesse processo e pediu eleições para que
pudessem eleger outro representante e um colegiado.
A fala de Sandro sobre a necessidade de eleições e de um colegiado ressalta a crise de
representatividade da Associação de Moradores e chama atenção, sobretudo para a disputa entre
essas lideranças e a Associação pela interlocução e administração de projetos sociais e políticas
que ali já atuam e os que estão por vir. Além disso, a fala revela ainda outro problema: o da
legitimidade do cargo de Tiago. Sandro questionou tal legitimidade, uma vez que, segundo ele,
não houve eleição como na Associação de Moradores da favela 2.

A mediação das Associações de Moradores


entre o poder público e o narcotráfico
Segundo contam algumas lideranças locais, após a entrada da UPP, no ano de 2010, eleições
foram realizadas na Associação de Moradores da favela 2, mas não na da favela 1. Diferentemente
da Associação de Moradores da favela 1, a da 2 foi acusada de suspeita de “envolvimento com o
tráfico” local, sendo essa a razão apontada para a realização da eleição lá após a entrada da UPP.
Nas palavras do próprio Tiago:

Logo quando o comandante, o Capitão, chegou aqui, ele falou: “Tiago, eu queria conversar
com você. Você fica à vontade, que a Associação daqui está livre de qualquer problema. Eu
vim do serviço de inteligência e eu sei de tudo que está acontecendo aqui.” Então, ele é
um cara correto. Eu gostei dele, gostei. Aí ele: “Eu não quero que você me dê informação
nenhuma. Só vim te avisar que a Associação da favela 1 está isenta, não tem nenhum processo
contra ela nem contra você. Agora a de lá (favela 2) está sob investigação, entendeu? E
vocês podem ficar à vontade. O que precisar, está aqui (sic) meus telefones e tal”.

Já em relação à Associação de Moradores da favela 2, segundo conta uma antiga liderança local,
a abordagem do Capitão teria se dado em outros termos:

O Capitão chegou aqui dizendo que tudo pertencia ao tráfico. Os meninos (tráfico)
fizeram uma reunião comigo e outros líderes daqui querendo que a gente assumisse a
Associação. Só que eu disse não, porque eu achava que tinha que ter eleição mesmo. Eu
achava que a gente tinha era que mostrar para ele que não era bem assim. Eu falei para
eles (traficantes): “Vocês são como autoridade da comunidade, mas infelizmente quem
bate de frente somos nós. Quem bota a cara somos nós! Então, é a questão da confiança.
Ou eles (poder público) confiam ou não confiam. Essa que é a grande verdade. Tem que
ser democrático”. E aí tiveram (sic) as eleições, e apareceram três chapas. A da Raquel
ganhou, e ela voltou para a Associação.

31
A crise de representatividade das Associações de Moradores e os (re) arranjos entre velhos e novos atores
da política local no contexto da implementação do PAC e da UPP em uma favela do Rio de Janeiro

A fala “Vocês são como autoridade da comunidade, mas infelizmente quem bate de frente
somos nós. Quem bota a cara somos nós.” remete ao papel de mediação que lideranças
locais e Associação de Moradores acabavam recorrentemente tendo que desempenhar entre
o narcotráfico e o poder público ou ONGs. A fala chama atenção para o “trabalho sujo” que
lideranças e Associação de Moradores acabam realizando como interlocutores, ou como aqueles
que “botam a cara”, na mediação das negociações entre o poder público ou ONGs e o tráfico de
drogas. Miranda e Magalhães (2004) analisam essa mediação, enfatizando que essa é a maneira
que os atores externos encontram para manter distância do tráfico, passando a impressão de que
o contato não existiu:

A mediação faz com que, como por milagre, a ilegitimidade do contato se quebre. O fato
de alguém que é técnico ou representante de ONG estar negociando com uma liderança
permite que, por meio de um artificio cruel, aja como se todas as consultas fossem legais e
legítimas. Admite-se que a liderança estabeleça relações com representantes do tráfico. É
como se o fato de ser morador (a) eliminasse as barreiras entre legal e ilegal que são válidas
para as outras pessoas (MIRANDA; MAGALHÃES, 2004, p. 52).

A situação descrita acima nos faz pensar sobre os diferentes níveis de “envolvimento com o tráfico”
que distinguem a atuação da Associação de Moradores das favelas em questão, fazendo com que
uma tenha sido considerada “isenta” e outra colocada “sob investigação”, após a entrada da UPP nas
duas favelas. É difícil perceber o limite entre o que seria uma relação considerada inevitável entre a
Associação e o narcotráfico e o ponto no qual tal limite é extrapolado, deixando de ser aceita pelos
moradores e pelo poder público. No momento em que o limite é ultrapassado, a relação passa a ser
percebida por esses como “envolvimento com o tráfico” ou, em alguns casos, chega mesmo a incorrer
naquilo que, no âmbito jurídico, é classificado como “associação para o tráfico”.
Logo no início do trabalho de campo, Tiago se mostrou disponível para uma conversa quando
o procurei. Falei um pouco sobre a pesquisa, e ele tratou de conduzir a conversa, introduzindo
ele mesmo os assuntos sobre os quais queria falar. Logo no começo da conversa, Tiago falou
abertamente acerca do tipo de relação que estabeleceu com o narcotráfico ao longo dos 20 anos
que trabalhou na Associação de Moradores dessa favela, como colaborador e presidente:

Eu sempre vivi balanceado com eles (tráfico). Tem que ter jogo de cintura, né? Eu cheguei
a brigar com o chefe, e depois estava tudo certo. Então, você vê que a gente chegou numa
época aqui que tinha que ter revólver! Então, a gente encarava os caras de igual para igual.
Só que, quando virou facção, aí mudou muito! Aí não tinha mais como ser de igual para
igual porque aí era execução na hora. E aí foi onde (sic) que eu entrei com o jogo de cintura,
entendeu? Mas eu nunca deixei me levar por nada. Aí o Caveirinha, do Comando Vermelho,
que era o dono de tudo aqui, puxou 17 anos de cadeia. Eu nem o conhecia, porque ele era de
lá. Ele não era daqui. Dominou tudo aqui, mas ele era da favela 2. Nessa época, o Comando
Vermelho tomou tudo. Aí esse cara, o Caveirinha, deram 10 favelas para ele. Então ficou
essa daqui e mais outras [....] Aí eles vinham aí, e eu tinha que ficar negociando com eles.
Só que é o seguinte, eu não posso deixar estabelecer dentro da Associação e tal. E a coisa
importante é que eu não aceitava dinheiro. Eu nunca aceitei. Eles viam que meu trabalho
era dedicado à comunidade e não mexia com o negócio deles, então eles achavam que eu
não devia sair. Aí terminava o meu mandato de três anos, eu marcava uma assembleia para
ver se aparecia alguma chapa, e não aparecia ninguém! E eu tinha que renovar e continuava
na frente da Associação.

Ao longo de sua narrativa, Tiago fez questão de enfatizar que não era mais um entre os tantos
presidentes de Associação de Moradores que havia sido “porta-voz” do narcotráfico. Ele ressaltava,

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Juliana Blasi Cunha

como vimos, que “eles apareciam aí, e ele tinha que ficar negociando com eles”, mas sem deixá-los
se “estabelecerem dentro da associação”. O presidente destacava uma importante competência ao
exercício de seu cargo: o seu “jogo de cintura”. Isso lhe permitia reconhecer a autoridade do tráfico
e com ela negociar, mas sem se submeter totalmente a ela, possibilitando sua articulação também
com o poder público. Essa estratégia lhe possibilitava a manutenção de uma “boa relação” com os
dois atores e a mediação entre eles, quando necessária. Segundo conta:

Não é que eles (tráfico) obrigavam o cara a seguir e fazer tudo o que eles queriam. O que eles
queriam é que as pessoas dessem as informações para eles, entendeu? Eles se consideravam
como autoridade e, na realidade, eles eram autoridade. Mas isso eu falava com o governo,
por isso eles me dão credibilidade até hoje, porque eles têm o serviço de inteligência deles e
sabiam como eu fazia as coisas aqui. Eu conversava com o governo e explicava, entendeu?
Quando o Garotinho foi o governador, eu estive umas três vezes com ele no Palácio. Eu fui
para resolver uns problemas, pedir umas coisas e aí eu falava com ele: “Governador, eu
conheço você (sic) como governo e tal, mas a autoridade na comunidade é o tráfico. Eu
reconheço eles (sic) como tráfico. O senhor vai me desculpar...” Eu tinha que ser sincero com
eles! E aqui eu falava com os meninos também. E eles também me respeitavam. Eles não
entravam armados aqui (na Associação); se viesse conversar comigo qualquer coisa, deixava
um cara ali. Controlava tudo aqui... todas as entradas do morro tinham as pessoas deles que
queriam saber quem que ia e vinha e tal... E a Associação tinha que dar satisfação de tudo.
E eu achava que eles não estavam errados, não. Eles que comandavam, mas eles também
não pressionavam, não. Então, tinha um ou outro aí que se exibia no meio de cento e tantos
homens. E eu tentava resolver os problemas com quem queria se exibir, mas eu tentava
resolver eu e ele pessoalmente. Eu não pedia favor a eles, porque, se você pedir favor a eles,
fica devendo a vida toda. Então, eles me ofereciam: “Chefe, se alguém se exibir aí, qualquer
coisa você me fala.” Mas eu nunca fiz pedido e resolvia direto com o cara.

Tiago conversava com o governador, assim como também conversava com os traficantes, por
isso estabelecia e mantinha uma boa relação com os dois. Pedir ou mesmo aceitar dinheiro ou
favores dos traficantes locais é, no entanto, visto por Tiago como algo extremamente negativo
no desempenho do cargo de presidente da Associação de Moradores. “Estar em dívida” com
os traficantes locais poderia obrigá-lo a fazer concessões e tratá-los com certas regalias, que
comprometeriam sua credibilidade diante do poder público e da comunidade.
Na análise de Tiago, assim como na de pesquisadores que estudaram a relação entre Associações
de Moradores e narcotráfico, como Alvito (2001) e Rocha (2009), ao aceitar favores e, sobretudo,
dinheiro, os presidentes das associações em geral caracterizariam seu “envolvimento com o tráfico”,
perdendo a possibilidade de preservar certa autonomia em seu mandato. A dívida implicaria em
uma retribuição dos favores e uma explicitação do estreitamento dessa relação entre eles, que, em
geral perpassa visitas na cadeia e “passeios” junto com o “dono do morro” pela favela.
Ao publicizar a relação com os traficantes locais, através de visitas na cadeia e outras regalias,
os presidentes das Associações perderiam a confiança de moradores e lideranças locais, bem como
do poder público, em alguns casos, dificultando a chegada de programas do governo. As palavras
de uma antiga liderança da favela 2 vão, nesse mesmo sentido, destacar que grande parte do
problema estaria na demonstração pública da relação estabelecida entre Associação e traficantes:

A Associação não pode ficar em conjunto com o tráfico. A Associação tem que ter sua
autoridade. Lida com o tráfico? Lida com o tráfico! Mas, para a comunidade, tem que
ser a Associação. Não pode ser abertamente, não... Então, só o presidente que atende os
moradores, porque os caras não podem ficar de frente! Não é legal. Assim perde a confiança
legal também de muitos políticos.

33
A crise de representatividade das Associações de Moradores e os (re) arranjos entre velhos e novos atores
da política local no contexto da implementação do PAC e da UPP em uma favela do Rio de Janeiro

Tiago possuía a competência ou “jogo de cintura” necessário para mediar a relação entre o
poder público e o narcotráfico local, o que lhe garantiu seu cargo na Associação por vinte anos.
Para ser um mediador, é necessário, portanto, algum tipo de vínculo com os dois lados. Ele
reconhecia a autoridade do tráfico, mas dizia que, através de uma certa distância em relação a ele,
teria conseguido atuar não de forma totalmente autônoma, mas sem uma submissão completa e
irrestrita a ele. Sem posicionar-se declaradamente a favor de um lado e contrário ao outro, ele foi
se articulando e ganhando confiança e credibilidade pelo seu trabalho; não apenas com o poder
público, mas também com o narcotráfico, que acabava por reconhecer a importância da “boa
relação” que Tiago mantinha com o Estado para a entrada de políticas públicas na favela.
Relacionar-se e negociar com o narcotráfico faz-se, portanto, necessário ao desempenho do
cargo de presidente da Associação de Moradores. Aceitar favores e dinheiro do tráfico implica um
estreitamento de relações e a publicização desses vínculos, o que traz problemas à execução de sua
função, como a perda de confiança do poder público. Essa desconfiança do poder público acaba
indo contra os interesses dos próprios traficantes, uma vez que inviabiliza a entrada de recursos
e obras na favela, que a eles interessam buscar controlar. Contraditoriamente, o “papel sujo” de
mediação entre tráfico e poder público que à Associação resta fazer pode acabar tornando-se fonte
da perda de sua representatividade.
A relação entre as Associações de Moradores e o tráfico de drogas é tema de muitos trabalhos,
os quais frequentemente atribuem a crise de representatividade das Associações à coação que
suas lideranças sofrem pelos bandos de traficantes nas diversas localidades. Zaluar (2000), por
exemplo, ressalta que os traficantes são consultados sobre todas as atividades da Associação,
“como se os traficantes fossem os atores políticos que não podem deixar de ser consultados para
a execução dessas atividades. É preciso ter a permissão deles, sob pena de sofrer represálias que
inviabilizariam essa execução” (ZALUAR, 2000, p. 362).
Vasta é a bibliografia (SILVA; LEITE, 2004; MIRANDA; MAGALHÃES, 2004; ALVITO, 2001;
LEEDS, 1998) que trata de como a representação política nas favelas vem sendo dificultada pelo
crime violento. A submissão dos presidentes das Associações ao controle exercido pelo tráfico
comprometeria a legitimidade da atuação desses líderes tanto diante do poder público, que passa
a enxergá-los como “porta-vozes” do tráfico, como diante da comunidade, que desacredita da
atuação de seus representantes e se afastam da vida associativa na favela. Machado da Silva
(2004), a respeito da formação de ação coletiva em contexto de “sociabilidade violenta”, chama
atenção para a ausência de negociação:

Todos os agentes obedecem apenas porque sabem, pela demonstração de fato em momentos
anteriores, que são mais fracos, com a insubmissão implicando necessariamente em
retaliação física. No limite, pode-se dizer que não há fins coletivos nem subordinação; todas
as formas de interação constituem-se em técnicas de submissão que eliminam a vontade e
as orientações subjetivas de demais participantes como elemento significativo da situação
(SILVA, 2004, p. 40).

O caso dessas duas favelas vizinhas nos obriga a refletir sobre essa articulação, frequentemente
estabelecida na bibliografia, entre a crise de representatividade das Associações e o domínio do
tráfico nessas localidades. No caso da atual crise de representatividade da Associação de Moradores
da favela 1, não é pelo “envolvimento com o tráfico” que o presidente está sendo acusado e
desacreditado pela comunidade. A acusação que Tiago vem, rotineiramente, sofrendo por parte
dos moradores é a de estar “fazendo o jogo da Prefeitura”, não expondo suas demandas nem
buscando assegurar seus objetivos.

34
Juliana Blasi Cunha

Durante todo o tempo em que esteve à frente da Associação de Moradores da favela 1,


Tiago parece ter “jogado dos dois lados” com maestria, articulando-se com o poder público e o
narcotráfico na medida certa de lhe possibilitar desempenhar sua função. Com a entrada da UPP
e o encapsulamento do tráfico local, no entanto, Tiago parece ter pendido mais para o lado do
poder público e, com isso, vem perdendo pontos com os moradores e lideranças locais por não
mais “brigar pela comunidade e nada fazer por ela”.
Não entrarei em detalhes sobre a atuação de Raquel, presidente da Associação de Moradores
da favela 2, e do tipo de relação que a ela foi possível estabelecer com o narcotráfico local. Dentre
algumas acusações feitas a ela, aqui enunciarei apenas uma, por ser uma das mais recorrentes e
parece ajudar a pensar no fato de essa Associação ter ficado “sob investigação” quando ocorreu a
entrada da UPP. Segundo contam alguns informantes, Raquel fora vista algumas vezes andando
pela comunidade com a tropa do “dono do morro”. O passeio de Raquel ao lado do “dono do
morro” pela favela foi apontado por alguns como um exemplo da explicitação da relação que ela
mantinha com o tráfico, a qual se distinguia da de Tiago.
Tiago não imaginou, no entanto, que caminhar pela comunidade junto com o funcionário da
Prefeitura e os policiais da UPP, mostrando a localização das casas a serem interditadas e das
obras embargadas, também abriria margem para uma crise em sua credibilidade; não com o poder
público, mas sim diante de moradores e lideranças locais. Ao caminhar pelo “morro” ao lado do
funcionário da Prefeitura e dos policiais da UPP, Tiago, assim como Raquel ao passear com o “dono
do morro”, tornou pública a relação de proximidade que mantinha com um dos lados dessa relação
de mediação. No caso de Tiago, o poder público, a quem acreditava que deveriam obedecer.
A publicização da proximidade de Raquel em relação ao narcotráfico trouxe uma crise de
representatividade da Associação diante do poder público. Já a publicização da proximidade de
Tiago em relação ao poder público abriu outra crise, mas essa de legitimidade diante de moradores
e lideranças locais. Não é apenas o controle amplamente exercido pelo tráfico que enfraquece,
portanto, a Associação de Moradores e a formação de ação coletiva nas favelas. Dizer isso não
significa negar a imposição e coação que o tráfico exerce sobre as Associações em diversas favelas,
mas apenas ressaltar que é preciso levar também em consideração na análise o processo mais
complexo no qual muitos presidentes e outras lideranças locais passaram a atuar sob a “lógica
da parceria” com o Estado. Há um processo a ser considerado nas análises sobre a crise de
representatividade das Associações que envolve o fato de muitos presidentes terem se tornado
gestores de projetos governamentais.
Alguns pesquisadores têm chamado atenção para essa “lógica da parceria” como fator de
importante relevância a ser considerado na análise da crise de representatividade das Associações
de Moradores. O narcotráfico vem aos poucos deixando de ser, na literatura corrente, a única chave
de interpretação desse cenário. Rocha (2009) destaca que a relação política entre poder público e
favelas se conformou ao padrão de parcerias para a execução de projetos. Ao estudar uma favela
que possui uma modalidade específica de estabelecimento do tráfico, intersticial e subterrâneo,
Rocha (2009) destacou outros fatores para o “silenciamento” dos moradores.
O chamado esvaziamento das Associações de Moradores, na análise de Silva e Rocha (2008),
estaria perpassado por dois fatores: perda de legitimidade devido a relações com o tráfico e
transformação do seu papel político, com um deslocamento da representação política à gestão
de projetos sociais. A dissertação de mestrado de Araujo Silva (2013) também argumenta que a
compreensão dos impactos do tráfico de drogas sobre o associativismo exige a interpretação de
transformações políticas muito mais complexas, que justapõem a lógica de parcerias à gramática
da violência urbana.

35
A crise de representatividade das Associações de Moradores e os (re) arranjos entre velhos e novos atores
da política local no contexto da implementação do PAC e da UPP em uma favela do Rio de Janeiro

Conclusões
O que aconteceu nessas duas favelas suscita a pergunta sobre qual seria o papel da Associação
de Moradores na vida política da favela. Com a entrada das UPPs e do PAC, ao Estado interessou
ter a Associação como parceira, e é isso que vemos representado, por exemplo, nos convites feitos
aos presidentes para se sentarem à mesa nessas reuniões junto com o Capitão e em muitas outras
junto com a equipe do PAC. A fala de Tiago, sentado no palco do auditório ao lado do Capitão, do
funcionário da SMU e de Raquel, na reunião descrita no início deste artigo, reforça tal questão:

A Associação não resolve mais esses problemas. Nós agora temos de respeitar a lei. Vocês
têm que perguntar e reclamar para eles que estão aqui agora. Antigamente, o governo não
estava presente, então era a Associação que decidia. Agora não é mais assim.

Ao mesmo tempo em que se fala em crise de representatividade das Associações de Moradores,


faz-se necessário destacar que essa perda de espaço ocorre no âmbito das políticas locais, no qual
as lideranças e os moradores não mais se sentem por elas representados. Já o poder público segue
considerando e acionando os presidentes dessas Associações como os principais representantes e
interlocutores locais. Cavalcanti (2013), em seu artigo sobre implementação do PAC e da UPP em
Manguinhos, fala de um processo ao qual chama de “PACificação”:

O fato de as associações de moradores terem-se tornado internamente desacreditadas não


diminuiu a posição estratégica que ocupam no atual cenário político. Os presidentes dessas
entidades continuam a ser os principais mediadores na implementação de políticas públicas
nas favelas. [...] Mesmo que a legitimidade perante moradores seja questionável, nem
Estado e nem tráfico podem prescindir dessa instância mediadora na implementação de
políticas sociais (CAVALCANTI, 2013, p. 219).

As Associações tiveram importante papel de mediação com o tráfico quando ocorreu a entrada
do PAC e de outros programas recentes nessas favelas. Com a entrada também da UPP, após a
apuração da situação da Associação da favela 2 acerca de eleições, as duas Associações seguiram
sendo, frequentemente, acionadas como os interlocutores principais da comunidade pelo poder
público, na ocasião de todo e qualquer anúncio de novo programa público, ou inauguração de
obras que ocorreram nas duas favelas. Os presidentes das duas Associações foram frequentemente
convocados a participar e a sentar com funcionários dos programas nas reuniões realizadas pela
equipe do PAC, pelo capitão da UPP e, mais tarde, pela UPP social, mantendo, assim, o papel de
destaque na interlocução com o poder público. Tais políticas foram inicialmente implementadas,
portanto, através da mediação das Associações de Moradores, instituições que acabaram passando
por uma crise de representatividade diante de moradores e lideranças locais.
É diante de moradores e lideranças locais que as Associações de Moradores perderam espaço
na vida política local. Após o simbólico “passeio” de Tiago pelo “morro” com o funcionário da
Prefeitura e policiais da UPP indicando a localização das casas a serem marcadas, muitos moradores
intensificaram o processo através do qual atribuíram uma série de acusações a ele, não mais
reconhecendo sua representatividade política. No início da tensão relacionada à implementação
dos decretos “de uso e ocupação do solo”, em abril de 2011, não foi com Tiago, por exemplo,
que muitos moradores procuraram se articular em busca de explicações e soluções para a crítica
situação que então vivenciavam.
Nesse mesmo período, após a entrada da UPP e o início da realização de reuniões comunitárias
pelo Capitão, muitas lideranças locais, antigas e novas, passaram a buscar, retomar e, em alguns

36
Juliana Blasi Cunha

outros casos, conseguir conquistar seu espaço na vida política local. Algumas lideranças antigas,
que haviam se afastado da política local por não aceitarem submeter-se ao controle do tráfico,
naquele momento, sentiam que essa era uma oportunidade e até mesmo obrigação de retomarem
suas atividades e seu espaço na vida associativa local. Outras lideranças antigas não tinham chegado
a se afastar da política local, mas, naquele momento, sentiam também necessidade de articulação
para combater o discurso de um “vazio institucional”, frequentemente evocado pela polícia sobre
a vida associativa local.
Nas primeiras reuniões comunitárias realizadas pelo Capitão da UPP, além de alguns
poucos “moradores comuns” com alguma demanda ou reclamação a ser feita, era comum ver
representantes de quase todos os grupos locais, programas sociais do governo e ONGs ali já
existentes representando suas instituições. Além de antigas lideranças, esse foi um período em
que também apareceram pessoas novas na vida política local, buscando apoio ou recurso para
desenvolverem ou se engajarem em algum dos programas sociais do governo ou em ONGs. A
atuação dessas lideranças locais traz importantes contribuições para pensar a perda de legitimidade
das Associações de Moradores, a insurgência dessas lideranças e toda a disputa que se desenrola
entre elas na tentativa de protagonizar a vida política local no contexto de entrada da UPP.
Com a entrada da UPP e as suspeitas levantadas pelo Capitão do envolvimento da Associação
de Moradores e da vida associativa local em geral com o narcotráfico, Seu Ferreira percebeu
uma oportunidade ou até mesmo obrigação de voltar à cena política local. Seu Ferreira queria se
reaproximar desse âmbito, mas buscava um distanciamento da Associação de Moradores da favela
2, sobre a qual recaía uma série de acusações de “envolvimento com o tráfico”. Em suas palavras:
“Temos que nos organizar porque o Capitão chegou aqui dizendo que todo mundo era bandido.
Tudo que tinha na comunidade era da malandragem”.
Seu Ferreira participou de todas as primeiras reuniões organizadas pelo Capitão. Foi nesse
período que estabelecemos nossos primeiros contatos; nessa ocasião, era comum ouvir muitas
lideranças desconfiadas sobre o propósito daquelas reuniões. Algumas falas de lideranças em
conversas informais foram muito marcantes por mostrarem bem toda a desconfiança e o temor
que a população local sentia em relação à polícia:

Até que me prove o contrário, para mim, todo policial é filho da puta. Eu não vou participar
de reunião nenhuma até saber o que eles querem! Pode até ser gente boa, e esse Capitão
parece educado mesmo, mas eu não vou à reunião nenhuma, não.

Outra liderança, numa clara crítica à interferência da UPP na vida associativa local, colocou:
“Agora, é o Comando Azul que não deixa a gente falar! Mas eu vou falar!” A fala dessa liderança
destaca o descontentamento de alguns em relação à interferência que a UPP vinha exercendo
na vida política local. Tal interferência foi vivenciada por algumas lideranças locais como uma
substituição do domínio exercido pelo Comando Vermelho.
Já Seu Ferreira e outras lideranças, no entanto, encaravam tais reuniões realizadas pelo Capitão
como uma oportunidade de se apresentarem e mostrarem quem são para o Capitão e para o poder
público em geral. A ideia dele e das outras lideranças era a de se mostrarem na esfera pública como
interlocutores legítimos, ou não envolvidos com o tráfico, evitando que a interlocução com o poder
público ficasse centralizada nas mãos do Capitão e das duas Associações de Moradores. O grande
temor deles era em relação ao papel que o Capitão vinha assumindo na cena política local. Nas
palavras de Seu Ferreira para outras lideranças, antes de uma das reuniões iniciais com o Capitão:

37
A crise de representatividade das Associações de Moradores e os (re) arranjos entre velhos e novos atores
da política local no contexto da implementação do PAC e da UPP em uma favela do Rio de Janeiro

Se a gente não se apresentar agora, subentende-se que era tudo do tráfico mesmo. A hora é
essa! Ano passado não teve um evento na quadra. Que ditadura é essa?! Temos que mostrar
nossa força! Essa é a hora da virada!

Após a entrada da UPP em fins de 2009, um pouco mais de um ano se passou até que, em março
de 2011, essas reuniões começassem a ser organizadas pelo Capitão, com a participação das duas
Associações, dos moradores e das lideranças. Com o início das reuniões organizadas pelo Capitão,
Seu Ferreira foi aos poucos se reaproximando e buscando resgatar seu espaço na vida política local.
A cena apresentava-se como um, cada vez mais, concorrido campo de disputas das lideranças,
que, nesse contexto, buscavam se afirmar como interlocutoras legítimas para o poder público
e/ou ONGs que ali chegavam. A crise em questão evidencia, desse modo, as disputas entre as
lideranças por uma maior visibilidade, que lhes possibilitasse tornarem-se legítimas representantes
dos moradores, estabelecendo interlocução com o poder público ou o privado que ali se apresente
em forma de programas sociais ou projetos.

Bibliografia
ALVITO, Marcos. As cores de Acari: uma favela carioca. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.

CAVALCANTI, Mariana. À espera, em ruínas: Urbanismo, estética e política no Rio de Janeiro da


“PACificação”. Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 6, n. 2, p. 191-228, 2013.

CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a
sociologia da ação coletiva. Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 2, n. 4, p. 11-
48, 2009.

CEFAÏ, Daniel; VEIGA, Felipe Berocan; MOTA, Fábio Reis. In: CEFAÏ, Daniel et al. (Orgs.).
Arenas públicas: por uma etnografia da vida associativa. Niterói: EdUFF, 2011. p. 9-63.

CUNHA, Juliana Blasi. “O projeto já chegou até nós pronto e não podemos mudar muita coisa!”:
a metodologia participativa do PAC e a atuação das lideranças comunitárias no projeto de (re)
urbanização de uma favela do Rio de Janeiro. Horizontes Antropológicos, v. 24, p. 117-144, 2018.

CUNHA, Juliana Blasi. “Tem que participar para tentar mudar! Criticar de fora é mole!”: a
retórica da gestão participativa do PAC e a atuação das lideranças comunitárias em uma favela
carioca. Ponto Urbe, v.14, p. 1-22, 2014.

LEEDS, Elizabeth. Cocaína e poderes paralelos na periferia urbana brasileira: ameaças à


democratização em nível local. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Um século de favela. Rio de
Janeiro: FGV Editora, 1998.

MIRANDA, Moema; MAGALHÃES, Paulo. Reflexões a partir da agenda social. In: SILVA, Luiz
Antonio Machado da et al. (Orgs.). Rio: a democracia vista de baixo. Rio de Janeiro: Ibase, 2004.

ROCHA, Lia. Uma favela diferente das outras? Rotina, silenciamento e ação coletiva na
favela do Pereirão. 2009. Tese (Doutorado em Sociologia) — IUPERJ, Rio de Janeiro, 2009.

38
Juliana Blasi Cunha

SILVA, Itamar; ROCHA, Lia. Associações de moradores de favelas e seus dirigentes: o discurso
e a ação como reversos do medo. In: Justiça Global. Segurança, tráfico e milícia no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008.

SILVA, Luiz Antonio Machado da. Sociabilidade Violenta: Uma dificuldade a mais para a ação
coletiva nas favelas. In: SILVA, Luiz Antonio Machado da et al. (Orgs.). Rio: a democracia vista
de baixo. Rio de Janeiro: Ibase, 2004.

SILVA, Luiz Antonio Machado da; LEITE, Márcia. Favelas e Democracia: temas e problemas da
ação coletiva nas favelas cariocas. In: SILVA, Luiz Antonio Machado da et al. (Orgs.). Rio: a
democracia vista de baixo. Rio de Janeiro: Ibase, 2004.

SILVA, Marcella Carvalho Araujo. A transformação da política na favela: um estudo de caso


sobre os agentes comunitários. 2013. Dissertação (Metrado em Sociologia) — Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Niterói:
EdUFF, 2008.

ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza.


São Paulo: Brasiliense, 2000.

39
Crise e agência: estratégias de
trabalho de motoristas de Uber em
um contexto de recessão econômica

Facundo Guadagno1

Introdução
No decorrer de uma nova revolução tecnológica, os modos em que são produzidas as relações
de trabalho, e, em consequência, como são concebidas, vêm-se alterando. Trata-se de uma relação
entre a matéria e a ideia; as modificações nas relações entre os detentores do capital e a força de
produção são perturbadas. As economias colaborativas, como é o caso da Uber, parecem introduzir
uma figura relativamente nova: o empreendedor com rápida ascensão social. Isso não se dá sem
externalidades ao serviço, o que permite relacionar conceitos econômicos com os da disciplina
antropológica: qual relação existe entre a instabilidade macroeconômica e o desempenho
de trabalho dos motoristas de Uber? Através da análise etnográfica, examinarei os contextos
macrossociais onde o aplicativo funciona, a operação do particularismo cultural para analisar as
relações micro, e a relevância de uma abordagem hermenêutica para entender a crise como uma
situação de liminaridade na qual a agência dos sujeitos coloca em tensão os conceitos que emprega
cotidianamente a respeito de sua condição de trabalhador.
Os fenômenos microssociais encontram-se sistematicamente relacionados com os macrossociais
(BUNGE, 1999) e inexoravelmente se imbricam em um desenvolvimento histórico (EVANS-
PRITCHARD, 1990). Nos imaginários da modernidade (NIDO, 2019) observados nesta etapa do
capitalismo, aparece uma concepção do trabalho como colaboração, pela qual se expressaria o mais
puro livre mercado, isto é, uma transação voluntária entre indivíduos sem a influência de terceiros.
Tal ilusão se reflete no termo “economias colaborativas”, que devemos definir sinteticamente.
Nesse sentido, e dada a polissemia do termo, opto por seguir Frenken et al. (2015): por economias
colaborativas entendemos o cenário onde os consumidores proporcionam a outros usuários o
acesso temporário a bens subutilizados, geralmente em troca de dinheiro (FRENKEN et al. 2015
apud FRENKEN; SCHOR, 2019).
Acontece que a palavra colaboração — share — pode associar-se ao fato de envolver ações em
que não existem transações, ainda que isso possa ter uma série de sentidos culturais (BELK, 2014).
É necessário problematizar esse conceito como, ao menos, típico desta etapa do capitalismo, na
qual a flexibilidade laboral permite conceber, ilusoriamente, que, como um modelo ingênuo de
corte neoclássico ou austríaco, os agentes trocariam bens em função do lucro ou por reações
positivas ou negativas que poderiam obter diante dos sinais de preços. Conceber uma transação
como uma colaboração implica desconhecer os meios que a realizaram. Como poderia, nesse

1
Mestre em Antropologia Social pela Universidad Nacional de San Martín. Professor de Antropologia na Universidad
de Buenos Aires e Professor Assistente de Antropologia Política no Instituto de Desarrollo Económico y Social.
E-mail: facundo.guadagno@gmail.com
Crise e agência: estratégias de trabalho de motoristas de Uber em um contexto de recessão econômica

esquema, ser considerado o cálculo feito por um indivíduo que dirige um Uber em virtude de uma
recessão econômica, aluga um automóvel e se encontra aflito porque em seu bairro não há rede de
esgotos? É claro que esse indivíduo pode utilizar um bem que outra pessoa não esteja utilizando
ou, no caso em que tenha seu próprio automóvel, gerar dinheiro com ele; no entanto, tomar esse
cenário como trabalho “voluntário” seria retirar a complexidade das condições de vida do sujeito
e daquilo que o leva a empregar-se de tal forma.
Uma das estratégias utilizadas no mundo do trabalho a partir da flexibilização é a variação em
números e funções, ou seja, a primeira se refere à estrutura de trabalho, o que pode implicar trabalhos
part-time (SMITH, 2001), enquanto o segundo conceito remete ao intercâmbio de um trabalhador
por outro com mínimas interrupções no processo laboral (KASHEFI, 2007). Entretanto, é preciso
utilizar o conceito de flexibilização do trabalho como se fosse aplicável a cada caso sem observar as
particularidades do mercado de trabalho do país ou região, bem como suas condições de vida. Partindo
dessa premissa, torna-se muito difícil chegar a um consenso sobre os efeitos desse processo; porém,
torna-se possível falar de casos particulares com poucas possibilidades de generalização, ao menos
por enquanto. Em todo caso, se conclusões gerais podem ser alcançadas, estas envolvem mais grupos
específicos de países do que uma região; por exemplo, as nações que pertencem à OECD.
Essa é uma questão que envolve problemas sobre como perceber-se no trabalho: quais condições
determinam se Uber, Airbnb ou DiDi proporcionam trabalho independente ou em relação de
dependência? A literatura disponível assinala que, efetivamente, quem está empregado nesses
serviços está em uma relação de dependência, já que devem prestar contas, em última instância,
a uma empresa. Entretanto, o que é notável nesta relação não é o que ela efetivamente é, mas sim
o que os indivíduos acreditam que ela seja. Precisamente neste caso, é útil recorrer à Antropologia
Interpretativa e à tradição hermenêutica.
Se considerarmos, tal como Geertz (1994), que a cultura é um documento público sujeito a
interpretação e a tarefa da hermenêutica é a compreensão (GADAMER; OLASAGASTI, 1992),
poderemos entender que a performance da palavra “trabalho” em Uber constitui um dos eixos centrais
na disputa de construção de identidade trabalhista. Existem outras categorias, como a de motorista,
motorista parceiro, ou experiências no transporte urbano, como taxistas ou transportadores de longa
distância; em última instância, todas as suas atividades se subordinam ao trabalho.
Considerando que as ideias não são coletadas nem analisadas no vazio, cabe mencionar que esta
pesquisa se baseou em uma etnografia realizada entre maio e dezembro do ano de 2019. Trabalhou,
então, com a realização de notas de campo, questionários semiabertos com 109 participantes
e 35 entrevistas que duraram, em média, entre 25 e 30 minutos, além de conversas informais
nos veículos. Em termos de idade, tanto nos questionários quanto nas entrevistas, a média ficou
próxima dos 38 anos, seja para homens, mulheres ou estrangeiros — variáveis que se mostram
relevantes para a análise dos casos.
A observação participante empregada neste caso se remete a ser cliente do serviço, com mais de cem
viagens realizadas, abordando o fenômeno com diversas ferramentas metodológicas, que permitem
apresentá-lo com qualidade fidedigna. Por essa razão, busquei um diálogo entre as propriedades
qualitativas de uma conversa e as quantitativas obtidas através dos questionários semiabertos.

A situação de crise como espaço de agência


Produzir conhecimento sobre Uber na Argentina não se reduz a um particularismo inútil, mas nos
convida a um exercício comparativo que mostra como os indivíduos ajustam suas ações e significados

41
Facundo Guadagno

de acordo com o desenvolvimento de um determinado cenário social. Os condicionantes locais são


fundamentais para o funcionamento de qualquer empresa, e o aplicativo de transporte não é uma
exceção. Em abril de 2016, a empresa Uber começou suas atividades na República Argentina. Em
poucos dias, contava com manifestações de rua realizadas por taxistas, que, no mínimo, efetuaram
25 bloqueios na capital federal2. Por que isso aconteceu? Explica-se, sem detalhes, por que a Uber
é disruptiva para qualquer mercado tradicional? Em parte, sim. A Argentina estava atravessando
um processo de estagflação, ajustes nos serviços públicos, reformas no Estado e um aumento do
desemprego e da inflação. Os números macroeconômicos pareciam estabilizar-se em meados de
2017, já que a pobreza baixou a 25,7%, a indigência a 4,8%3 e o desemprego a 7,2%4. Entretanto,
tal estabilidade foi passageira, já que duas crises cambiais, de junho e de agosto de 2018, elevaram
a taxa de câmbio, provocando uma espiral inflacionária que ocasionou um aumento da pobreza em
32% e da indigência em 6,7%, enquanto o desemprego subiu para 9%5.
De qualquer modo, as estatísticas mencionadas anteriormente estão aplicadas à totalidade
do país, enquanto esta etnografia foi realizada na Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA);
consequentemente, isso deve ser sinalizado. Considerando o Nivel de calificación según sexo 2016-
2021 de la Universidad Nacional de General Sarmiento (UNGS), na capital federal, a distribuição da
mão de obra qualificada profissionalmente é de 17,9% de mulheres e 19,6% de homens; enquanto,
nos 24 bairros da periferia, os números diminuem para 4,4% para homens e 5,8% para mulheres6.
Os aposentados que recebiam pensão, mão de obra que também se dedicava à Uber, perderam
entre 11,1% e 7,9% de poder de compra, respectivamente, entre a periferia e a capital federal. As
taxas de emprego não registrado são de 38% e 19,6% entre os subúrbios e a capital. Analisando
esse balanço, podemos concluir que existem níveis consideráveis de informalidade laboral, baixa
qualificação e aposentados que, em tese, deveriam manter-se com suas aposentadorias, mas que
perderam poder aquisitivo em comparação com anos anteriores. A existência de emprego informal
indica que esta possibilidade de subsistência é uma mera formalidade. Considero que um estudo
etnográfico não pode fazer uso apenas de testemunhos, mas que estes devem ser relacionados com
a vida material dos interlocutores; neste caso, a relação é dialética entre as condições de vida dos
motoristas, sua experiência com a Uber e as decisões que tomam.
Este é um cenário que, de acordo com Turner (1974; 1980), poderíamos pensar como um
“drama social” causado por uma crise. Aqui as instituições se veem enfraquecidas, e os meios e fins
para poder subsistir em um contexto de desemprego são ampliados com as possibilidades ofertadas
por uma plataforma como a Uber. Por outra parte, o conceito de crise não deve ser compreendido
como uma localização temporal, mas sim como o contexto em que os agentes atuam (ULLBERG,
2013). Dessa forma, a crise seria o significante de temporalidade e a condição para a mobilização
dos indivíduos. Podemos tomar o desemprego e seus efeitos erosivos sobre a vida laboral, e, em
consequência, sobre a vida cotidiana, como um cenário de crise7.
2
TAXISTAS liberaron los piquetes contra Uber. La Nación, Buenos Aires, 15 abr. 2016. Disponível em: https://www.
lanacion.com.ar/buenos-aires/taxistas-haran-piquetes-en-toda-la-ciudad-para-protestar-contra-uber-nid1889596/.
3
Instituto Nacional de Estadística y Censos. Incidencia de la pobreza y la indigencia en 31 aglomerados urbanos. INDEC,
Buenos Aires, 28 set. 2017. Disponível em: https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/eph_pobreza_01_17.pdf.
4
Instituto Nacional de Estadística y Censos. Mercado de trabajo, principales indicadores. INDEC, Buenos Aires, 20
mar. 2018. Disponível em: https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/EPH_cont_4trim17.pdf.
5
Instituto Nacional de Estadística y Censos. Mercado de trabajo: tasas e indicadores socioeconómicos. INDEC, Buenos Aires,
18 dez. 2018. Disponível em: https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/mercado_trabajo_eph_3trim18.pdf.
6
UNGS. Nivel de calificación de la población ocupada en la ocupación principal, según sexo. Disponível em: http://
observatorioconurbano.ungs.edu.ar/wp-content/uploads/285-Nivel-de-Calificacion-segun-sexo-2016-2021.pdf.
7
Um exemplo claro de “drama social” e ressignificação de atores políticos se deu no Processo de Paz na Colômbia
(2012-2016), analisado por Álvarez e Torres Palacio (2020).

42
Crise e agência: estratégias de trabalho de motoristas de Uber em um contexto de recessão econômica

Nos relatos de meus interlocutores, apresentava-se uma crise no setor de transporte urbano
somada a uma recessão econômica: “Depende da experiência de cada um. Tem muita gente que
não foi nem taxista nem nada, e tem outra, os que tinham alguma coisa”, disse-me um motorista
de Uber, Roberto Estebal. Logo destacou que ele sempre esteve “transportando gente”, ou seja,
trabalhando como motorista, fazendo viagens de lazer para aposentados e temporadas de turismo
em geral, mas encerrou a corrida comentando: “Havia trabalho, hein!”. Essas ideias sobre o
transporte urbano aparecem em um momento que os novos aplicativos de mobilidade urbana
estão desbravando o mercado, alterando práticas que antes eram comuns. Roberto Esteban, no
entanto, havia deixado esses empregos temporais para dedicar-se completamente à Uber, já que
isso lhe proporcionava maior estabilidade.
Rodrigo, ex-funcionário da Unilever, uma fábrica de produtos de limpeza que fechou uma
filial argentina, entrou na Uber porque lhe disseram que seria a forma mais rápida de conseguir
trabalho. “Não há trabalho [formal]”, disse-me em uma corrida desde José León Suárez até Vicente
López. “Fiz um acordo com a empresa, me deram um dinheiro, e aí comecei a trabalhar nisso, mas
continuei espalhando currículos”. A corrida foi em julho de 2019, momento de caos econômico
no país que, ao fim da administração de Mauricio Macri (2015-2019), refletiria uma cifra de
aproximadamente 25.000 pequenas e médias empresas fechadas8. Rodrigo não gostava da Uber,
não se sentia confortável, por isso desejava outro trabalho, mas confessou, com relutância, que,
aos quarenta anos de idade e com um passado de empregado de fábrica, obter uma posição laboral
que o satisfizesse seria complicado.
Esses imaginários parecem recuperar um tipo de passado com “trabalho”, ou seja, um tempo
pretérito em que as possibilidades de trabalho eram maiores, assim como a demanda dos trabalhos
que eles realizavam também. Tal observação coincide com os achados de Acedo et al. (2020),
que constataram que alguns trabalhadores mexicanos tinham uma atitude pessimista em relação
às mudanças trazidas pela revolução tecnológica, basicamente por medo de serem substituídos
por máquinas; entretanto, tais mudanças eram vistas favoravelmente quando acompanhadas de
facilidades para realizar atividades laborais. Essa relação é a que se dá com a Uber: ex-taxistas,
entregadores e transportadores não podem competir com as novas tecnologias e devem converter-
se em motoristas do aplicativo. Dessa forma, ajustam-se às regras do trabalho por produtividade
quando passam a trabalhar com um software, e não com um empregador direto.
A Uber, no entanto, apresenta alguns inconvenientes que, a princípio, são externos em relação
ao serviço: roubos, furtos e sequestros. É aqui que o particularismo de cada sociedade desempenha
um papel fundamental. Abordando-o a partir de algumas sutilezas conceituais, os roubos são
externalidades da Uber, não é um problema per se do próprio aplicativo, já que, a rigor, depende
da região em que o serviço é oferecido, e, supõe-se, o motorista estaria aceitando, voluntariamente,
transportar os passageiros. O problema desse raciocínio é que ele não considera que, embora a
Uber possa ser a oferta mais acessível de mercado de trabalho para alguns indivíduos, a mesma
plataforma comete assimetrias de informação, com um mapa imperfeito, que não registra áreas
perigosas, tem problemas de localização — por isso os motoristas tendem a preferir o Waze9 — e,
o que mais teve reclamações, não apresenta informações sobre os usuários. Isso gera contas falsas
ou “truchas” — como podem ser denominadas —, já que, com apenas um e-mail e um número de
telefone, é possível ser passageiro da Uber.
8
DATOS oficiales: en la “era Macri” cerraron casi 25.000 empresas Pymes. Iprofesional, Buenos Aires, 20 jan. 2020.
Disponível em: https://www.iprofesional.com/management/307732-otros-otros-Datos-de-AFIP-cuantasempresas-
pymes-cerraron-con-Macri.
9
Waze é um aplicativo que funciona como um mapa em tempo real para motoristas de diferentes veículos ou mesmo
para pedestres.

43
Facundo Guadagno

Existem outros países com cidades onde a taxa de criminalidade é alta e, em consequência,
há mais impacto de externalidades na Uber, como ocorre no Brasil e no México. No entanto,
na Argentina não há um registro dos atos criminosos ocorridos em Uber. Todavia, apenas uma
nota do Jornal Perfil, recolhendo alguns casos, dá conta do que chamam de “Rouba-Uber”, um
fenômeno que passou a ser recentemente apresentado em um período massivo em 202010, quando
vários casos foram relatados.
Os problemas surgem quando a taxa de criminalidade e a pobreza se fazem presentes, como
ocorre no México, com 20 cidades no ranking de homicídios dolosos11, onde a insegurança por
roubos e sequestros é denunciada tanto por motoristas12 como por passageiros. Apesar disso,
Uber, Cabify e DiDi seguem sendo serviços de transporte preferidos aos táxis13. No Brasil acontece
algo semelhante, onde há 10 cidades no ranking de homicídios dolosos (CHULLUNCUY; DÁVILA,
2020). Isso se relaciona com a qualidade de vida nessas cidades, considerando particularmente
que, entre 1980 e 2010, a taxa de homicídios no Brasil chegou a ser uma das mais altas do mundo
(MURRAY; CERQUEIRA; KAHN, 2013), sendo São Paulo uma cidade florescente em economias
ilícitas (ADORNO; DIAS, 2019).

Flexibilização e estratégias
Devido aos fatos mencionados, encontramos uma dicotomia que parece insuperável, e isso fez com
que o debate se estendesse de modo desnecessário nas Ciências Sociais: a discussão entre explicação/
compreensão e matéria/ideias14. De fato, as plataformas de economias colaborativas não se ajustam
às leis trabalhistas dos países onde se instalam, flexibilizando o mercado e fazendo com que seus
trabalhadores tenham jornadas por produtividade. Esse fato objetivo não deixa de ser importante, mas
o foco, nesse caso, se concentra em como os indivíduos atuam em uma tal realidade.
A Uber busca implementar a ideia de que cada motorista do aplicativo é seu próprio chefe15.
O criador do aplicativo, Travis Kalanick, é visto como um empreendedor de startups16, e, a partir
do desenvolvimento de um aplicativo no qual “você é seu próprio chefe”, entende-se que as
relações de dependência ficaram no passado. Essa iniciativa, no mínimo problemática, apresenta-
se como problema desde a vacuidade semântica do conceito “empreendedor”, que parece estar
10
NIEVA, Leonardo. Roba-Uber, una modalidad que crece entre la ilegalidad de la actividad y las pocas denuncias.
Diario Perfil, Buenos Aires, 11 abr. 2020. Disponível em: https://www.perfil.com/noticias/policia/roba-uber-una-
modalidad-que-crece-entre-la-ilegalidad-de-la-actividad-y-las-pocas-denuncias.phtml.
11
EL NUMERO de homicidios en México aumento em 2020. Expansión / Datosmacro.com Disponível em: https://
datosmacro.expansion.com/demografia/homicidios/mexico.
12
SUMAN 457 denuncias contra choferes de Uber por delitos como robo y acoso. El Universal, Cidade do México, 20
set. 2018. Disponível em: https://www.eluniversal.com.mx/nacion/seguridad/suman-457-denuncias-por-delitos-
como-robo-y-acoso-contra-choferes-de-uber/.
13
GARCÍA, Ana Karen. Uber, Cabify o Didi son 6 veces más seguros que los taxis, muestra encuesta. El Economista,
Cidade do México, 21 jul. 2019. Disponível em: https://www.eleconomista.com.mx/empresas/Uber-Cabify-o-Didi-
son-6-veces-mas-seguros-que-los-taxis-muestra-encuesta-20190721-0005.html.
14
Sobre a primeira questão, pode-se considerar na filosofia alemã, particularmente os trabalhos de Dilthey, uma separação
entre compreensão e explicação que persiste até nossos dias (HARRINGTON, 2001; MAKKREL, 1985). Por sua vez, o
materialismo e o idealismo parecem não conviver de modo satisfatório com disciplinas como a Antropologia e a Sociologia,
em um debate que merece um artigo à parte. (LATOUR, 2007; MATSUNO; SALTHE, 1995).
15
Isso se reflete na página web do aplicativo: https://www.uber.com/us/es/drive/.
16
TRAVIS Kalanick de Uber y otros 4 casos de emprendedores que tuvieron que renunciar a las empresas que habían
creado. BBC Mundo, [s. l.], 24 jun. 2017. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-40376010.

44
Crise e agência: estratégias de trabalho de motoristas de Uber em um contexto de recessão econômica

mais relacionado com a ideia de criar aplicativos ou empresas de tecnologia. Entretanto, dado
que a Uber facilitaria o acesso a um melhor nível de vida, em que não haveria dependência de
patrões, cada motorista seria um empreendedor, no sentido de que começaria um caminho de
independência e se afastaria de empregos em relação de dependência.
Considero válido problematizar o conceito de empreendedor, pois possui uma densa carga
semântica e é inseparável dos processos socioeconômicos que acontecem no nível macrossocial. Nesse
sentido, recupero de Patricia Vargas o trecho de “La Hormiguita Burguesa: narrativas de ascenso
social y actualizaciones de clase (media) entre los diseñadores porteños”, onde é destacado que a
autossuperação se inscreve em um quadro de significados, marcado pela carência, que respondem ao
imaginário da classe média e no qual são observadas as seguintes características: “ter um carro, tirar
férias, viajar, estudar, morar em certa parte da cidade” (VARGAS et al., 2015). Como se observa, as
qualidades destacadas são urbanas: efetivamente, trata-se de viver na cidade e, a partir daí, envolver-
se com produtos modernos, como os automóveis, e as obrigatórias férias que garantem o descanso da
agitada vida urbana que, no entanto, é o modelo de habitat proposto no toyotismo.
Os sentidos associados ao trabalho, ao urbanismo e ao desemprego se refletem nos contextos
sociopolíticos de cada país. Na região metropolitana de Belém, no estado brasileiro do Pará,
Lameira e Ribeiro (2020) consideram que a Uber é um trabalho precarizado a priori e concluem
que não apenas é uma forma de reprodução do capitalismo dominante, mas que também trata
de uma “escravidão moderna”. No Recife, Junge e Tavares (2020) realizaram uma etnografia em
que podemos ler as experiências dos motoristas: os autores esclarecem que buscam analisar as
subjetividades de seus interlocutores no clima político do Brasil17 e se eles reproduzem o discurso
da Uber ou o reinterpretam para subvertê-lo. Constatou-se que os imaginários sobre a periferia
do Recife acumulam sentidos sobre violência, insegurança, assassinato ou outros atos criminosos,
que se condensam na “falta de ordem” (JUNGE; TAVARES, 2020, p. 110). Essas noções foram
produzidas no contexto em que Jair Bolsonaro, então candidato representante da extrema
direita brasileira, estava em sua ascensão, com sua popularidade crescendo nas classes médias:
precisamente, membros desta classe eram os motoristas da Uber.
Com base em uma série de entrevistas, os pesquisadores concluem que os motoristas percebem
uma apropriação da cidade por “vagabundos” e “ladrões”. Diante disso, sugerem que a melhor
opção é um líder forte que defenda seus trabalhos. As experiências ascendentes de mobilidade
social, vivenciadas durante o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), agora são subvertidas por
um choque com o que os pesquisadores denominam “subjetividades móveis” (JUNGE; TAVARES,
2020, p. 116): os motoristas defendem sua propriedade, independentemente da violência envolvida
nessa ação. Outros estudos sobre o Brasil, como o de Meier e Thomas (2018), constatam que as
motivações para ingressar em economias colaborativas consideram fatores como a posição do
indivíduo, seu tempo livre e o desejo de estabelecer novos contatos.
Em minha etnografia, observei que os motoristas não apresentam uma resposta homogênea
para a crise econômica e a Uber é vista como um emprego rápido, sem muitas dificuldades de ingresso.
Um olhar superficial nos apresenta esse resultado a partir de uma simples análise da pesquisa realizada:
das 109 pessoas, 55 consideraram a necessidade de um sindicato para os trabalhadores da empresa,
enquanto 54 pensaram o contrário; 83 avaliaram como “suficiente” suas rendas, mas apenas 6 do total
destacaram que o aplicativo não deveria ter qualquer modificação. O curioso é que o restante não fez
qualquer menção à assimetria de informação — poucos dados sobre os passageiros, escassa ou nula
resposta do aplicativo em situações quando isso é necessário, entre outros —, mas, mesmo no grupo que
afirmou sentir-se seguro ao trabalhar com o aplicativo, mais de 10 referiram-se a tais assimetrias.

17
A etnografia foi realizada em 2018.

45
Facundo Guadagno

“Você é autônomo, a Uber não me contrata, eu administro meu tempo, quando desconecto
e quando quero trabalhar”, disse Martín Gustavo. Sua afirmação era correta, mas exibiu as
dificuldades apresentadas por esse trabalho já que ele é motorista e, como tal, não é proprietário
de um automóvel, mas sim um locatório. “Você viu como é, eu tenho que dar um luca18 — $ 1.000
— ao meu patrão. Mas, bem... se não consegue, vai negociando”. Isso é interessante porque, de
fato, há uma liberdade do trabalhador para administrar seu tempo de trabalho, mas há aqueles que
efetivamente possuem mais capital e estão dispostos a alugar a força de trabalho; quiçá, por esse
motivo, Martín Gustavo assinalou que esse era um trabalho “muito precarizado”, em alusão à falta
de proteção trabalhista que recebia e em como a empresa não se responsabilizava por incidentes
ocorridos dentro dos veículos.
No mesmo sentido de compreender-se como livre e autônomo, Federico, de 31 anos, em uma
longa viagem, desde Palermo até San Martín, não teve dúvidas ao afirmar que ele era seu próprio
chefe, sem qualquer hesitação. Isso o relacionava ao espírito empreendedor que o tinha levado
a criar uma empresa que faliu “porque a coisa estava complicada” — em referência à recessão
econômica de 2018 — e uma produtora audiovisual, que teve o mesmo destino. Chamou minha
atenção sua disposição para falar entusiasticamente, mesmo com um gravador ligado em sua
frente, contando o quanto gostava desse trabalho, já que lhe parecia divertido e uma forma prática
de ganhar dinheiro. Ele gostou da conversa e lhe pareci uma oportunidade para desenvolver suas
ideias sobre a Uber.
No percurso da capital federal até a província de Buenos Aires, Federico destacava as bondades
da empresa: “Aqui você não precisa de ninguém, os sindicatos não fazem falta, você se cuida
sozinho”. À medida que a viagem avançava, no entanto, comecei a pensar que, de fato, havia
problemas com essas afirmações, já que o motorista tinha que pagar uma comissão, dependia da
formação de tarifas por parte da empresa e de uma plataforma. Perguntei a Federico sobre essas
questões, e seu tom de voz mudou abruptamente, tornando-se duvidoso:

FE: Ah... agora você me pegou, cara. A verdade é que pode ser, porque, claro, sendo mais
justo, eu tenho que pagar à Uber e não sou totalmente livre.
F: Mas ainda assim você pode administrar seu tempo.
FE: Isso sem dúvida!
F: Mas você acredita que é autônomo, então?
FE: É... é uma zona cinzenta. Não sei. Por uma parte, sim, mas eu também dependo do
aplicativo, não sou exatamente meu próprio chefe.

Em uma viagem com Mariano, de 45 anos, o tom da conversa foi efusivo, basicamente
porque o motorista mostrava certo desgosto com a jornada ou com o trabalho em si. Em seu
relato, destacou que era casado e tinha dois filhos, uma situação que lhe demandava mais horas
de trabalho, ainda que, em termos de Uber e de economia globalizada, Mariano se referia à
necessidade de aumentar sua produtividade para ganhar dinheiro suficiente para sua família.
Antes de se tornar motorista da Uber, Mariano foi vendedor de automóveis na Villa Ballester e
perdeu seu trabalho “dadas as consequências públicas”, que ele observou com descontentamento
em plena recessão econômica de 2018. Sua esposa também perdeu o emprego, o que configurou
uma situação em que o dinheiro deixou de ingressar para a família; foi nesse momento que a
Uber apareceu como fonte de renda para o sustento familiar, ao menos em termos econômicos.
Mariano se referiu a isso como “a oportunidade de trabalho mais rápida que tive para pode gerar
dinheiro diário e não perder o nível de vida”.

18
“Una luca” é um termo utilizado na Argentina para referir-se a $ 1.000.

46
Crise e agência: estratégias de trabalho de motoristas de Uber em um contexto de recessão econômica

Efetivamente, suas declarações sobre “gerar dinheiro diário” são assertivas, uma vez que a
Uber é uma atividade de renda relacionada à produtividade: “Estava acostumado a viver com
o que ganhava antes, que podia ser cinquenta, sessenta, setenta mil pesos. De repente você está
ganhando dezessete, dezoito, e não dá”. As concepções de liberdade e autonomia não parecem
ser categorias estáticas entre os motoristas. Por sua vez, o trabalho de motorista de aplicativo tem
diferentes impactos sobre a vida cotidiana. Alguns motoristas disseram que passar tantas horas
ao volante alterou seus hábitos de sono e alimentação. O mais significativo deles, Orlando, de 31
anos, relatou que tinha pesadelos com a Uber, e, ainda, seu tempo para comer foi drasticamente
modificado — mostrando-me um porta-luvas cheio de alimentos. Além disso, o fato de receber
pedidos de viagens de maneira constante pode gerar ansiedade, embora a maioria dos motoristas
não se sintam pressionados por essa situação, pois consideram isso uma parte normal do trabalho.
Um tópico que se adicionou à falta de segurança no trabalho foi a percepção da criminalidade,
o que rapidamente poderíamos denominar simplesmente como insegurança. Sergio, de
aproximadamente 50 anos, comentou com certa raiva que seu carro foi roubado, e se referiu
a uma área que, de acordo com diversos testemunhos, aparece assinalada como uma das
mais perigosas: Barrio Libertador, Partido de San Martín. Esse não é o único lugar com tais
características; Loma Hermosa, José León Suárez, Villa Lanzone ou Costa Esperanza, todos de
San Martín, também são indicados como perigosos. Outras áreas também foram apontadas como
inseguras, como Bernal ou José C. Paz, mas San Martín parecia uma referência indubitável,
inclusive para motoristas que eram da mesma região. Agustín Alexis, de Grand Bourg, foi mais
explícito e comentou que, em um grupo de WhatsApp, no qual participam motoristas da Uber,
costuma-se dizer para evitar San Martín.
Achei interessante que Sergio tenha relatado duas situações, uma no Barrio Libertador, onde
“pediram a viagem desde um corredor”, e outra na periferia de Costa Esperanza, onde sequestraram
seu carro — que foi recuperado porque tinha instalado pelo seguro um sistema de localização por
satélite. Embora essas duas situações o tenham afligido quanto ao uso do aplicativo, parecia-lhe
que isso era “parte do trabalho”, é “o que tem” e não poderia “fazer outra coisa”. O testemunho é
praticamente idêntico ao de outros interlocutores, com as mesmas áreas indicadas como perigosas.
Dessa forma, podemos ver que, no final das contas, as economias colaborativas, como Uber,
são uma alternativa de trabalho ótima em um contexto de desemprego e incerteza sobre o
futuro. Isso não significa que tais empregos sejam os melhores disponíveis, mas sim aqueles que
oferecem mais rendimentos no curto prazo. O cenário de flexibilização e desproteção se entrelaça
com a necessidade de obtenção de renda, e o trabalho ganha novos significados; as proteções
que um emprego pode oferecer não são determinantes na hora de escolher essa ocupação. Os
desempregados de uma economia em recessão, ao menos nas áreas urbanas, escolhem o trabalho
por produtividade simplesmente para obter renda. Entretanto, essas realidades passam por uma
interpretação que as sofistica ao concebê-las como um processo empreendedor — sem chefes e
com independência trabalhista.

Conclusões
Com o propósito de estudar processos sociais em contextos de crise, encontramos distintas
conclusões sobre a relação entre instabilidade macroeconômica e o desempenho laboral dos
motoristas de Uber. Como se observa no trabalho etnográfico analisado, é inútil explicar a
dinâmica do campo por conceitos formulados a priori. Os processos sociais são particulares,

47
Facundo Guadagno

situados, e dão conta dos processos sociopolíticos de cada país onde se manifestam: só se pode
entender tais fenômenos econômicos a partir das peculiaridades da região onde são produzidos.
Nesse sentido, o relativismo cultural é útil para compreender o que ocorre em cada situação:
se, em algumas cidades do Brasil, o foco dos motoristas era os pobres urbanos, que eram vistos
como “vagabundos” afastados voluntariamente do mercado de trabalho, na AMBA o principal
problema era o desemprego e a precária proteção trabalhista da Uber. O Brasil vivia um contexto
de renovação conservadora com a ascensão de Bolsonaro, enquanto a Argentina, com uma forte
tradição sindical, piorava suas taxas de desemprego e aprofundava sua estagnação com a inflação.
É verdade que a Uber não oferece qualquer proteção social e o trabalho pode envolver graves
perigos em virtude das assimetrias de informação; entretanto, isso não nos diz nada sobre o que os
atores fazem em tal situação. Já que nenhum grupo é homogêneo, os motoristas desse aplicativo
não estão plenamente de acordo quanto a uma única avaliação sobre a experiência de trabalho
nessa plataforma, mas observa-se uma tendência a considerar negativa a falta de cobertura da
empresa diante dos problemas de seus colaboradores, por um lado, e a insegurança causada pelos
crimes sofridos ao volante.
No entanto, tais questões não apenas nos mostram como operam diferentes variáveis, mas
também expressam o resultado de uma gravíssima recessão econômica, com um aumento da
pobreza, da inflação e do desemprego. Um mercado de trabalho legal que não absorve a mão
de obra expulsa inevitavelmente conduz a esse tipo de trabalho, com a peculiaridade de que, ou
problematizam o discurso empresarial, ou o adaptam às suas condições imediatas para ascender
socialmente. Uma abordagem hermenêutica é indicada para compreender como os discursos
empresariais podem ser ressignificados em um contexto de crise, no qual a produção de sentidos
sobre o que é trabalho, e quais de suas condições são aceitáveis ou não, relacionam-se diretamente
com os processos macrossociais que ocorrem no país. O fechamento de postos de trabalho somado
à perda do poder aquisitivo convertem em motoristas de aplicativo pessoas que, previamente, não
necessariamente tinham se imaginado em tal situação.
Dessa forma, podemos ver como o conceito de crise é útil para compreender a capacidade
de agência de indivíduos dentro das particularidades dos processos socioeconômicos onde se
encontram; nesse caso, os motoristas ponderam suas rendas e a percepção de serem empreendedores
em detrimento do risco e da insegurança física e trabalhista. O ideal apresentado pela Uber
está longe de se concretizar na realidade: basta ouvir os motoristas. Por trás de palavras vazias,
como “empreendedor”, “independência” ou “liberdade”, há pessoas com estratégias claras de
sobrevivência quando as instituições que garantiam sua estabilidade econômica são erodidas.

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50
A crise das lojas “históricas”
no Chiado (Lisboa)

Daphne Assis Cordeiro1

Introdução
Aqui abordaremos o contexto de crise que alguns donos de lojas “emblemáticas” e “históricas”
do Chiado enfrentaram e enfrentam diante da especulação imobiliária do centro histórico lisboeta.
Importante destacar que essa pesquisa, iniciada no âmbito do doutorado, foi realizada durante os
anos de 2018 e 2019, portanto, antes da pandemia da Covid-19, que teve início em 2020 e dura até
os dias atuais2. Contudo, os impasses entre proprietários de prédios e donos de lojas consideradas
“tradicionais” persistem até os dias de hoje, arrastando-se por anos na justiça.
Ao longo do texto, abordaremos o contexto social e econômico dos anos anteriores à pesquisa,
em que eram comuns notícias sobre fechamento de lojas centenárias de Lisboa para construção de
hotéis ou cadeias internacionais, que geravam reação e pressão popular sobre a Câmara Municipal de
Lisboa (CML) para ações de apoio e proteção do comércio mais antigo ou tradicional. Como recorte,
apresentaremos o Programa Lojas com História, lançado pela CML, em 2017, a fim de promover e
preservar ofícios “únicos” da cidade, relacionando as lojas do selo a um comércio entendido como
“tradicional” ou autenticamente português. Se, primeiramente, o programa foi pensado com foco
no turismo, diante da pressão popular e do encerramento de tantos negócios antigos, ele buscou
também atuar em sua preservação, dando algumas garantias às lojas participantes.
A partir das memórias e falas de alguns comerciantes do Chiado, discorreremos sobre as
transformações em seus negócios e no próprio bairro, relacionadas às ações da CML, dentre outros
atores, como agentes dos capitais financeiro e imobiliário, políticas em prol dos interesses da iniciativa
privada (implementadas a partir de 2004), turismo de massa, mudanças de comportamento etc.
É importante destacar que Portugal viveu (e ainda vive) uma forte especulação imobiliária,
decorrente de uma série de pacotes fiscais lançados como forma de saída da crise econômica
de 2008 e 2009 e das obrigações decorrentes do pacto assinado com organismos internacionais
em troca de financiamento e crédito. Teve início um mercado de alta lucratividade pautado na
reabilitação de áreas do centro histórico de Lisboa, tendo o turismo como agente catalisador e
principal beneficiário.

O Novo Regime de Arrendamento Urbano e seus efeitos

No contexto de políticas neoliberais, voltadas para atração de capital internacional a qualquer


custo, diversas ações foram empreendidas para impulsionar um comércio moderno e sofisticado, em
1
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: dcordeirouff@gmail.com
2
Uma primeira versão deste artigo foi debatida na XIII RAM - Reunião de Antropologia do Mercosul, em Porto Alegre,
em 2019.
A crise das lojas “históricas” no Chiado (Lisboa)

detrimento do comércio local. Dentre as reformas, podemos citar o Novo Regime de Arrendamento
Urbano (NRAU), de 2012, que permitiu a atualização de aluguéis congelados, tendo como um de
seus principais objetivos a extinção dos contratos de arrendamento anteriores a 1990. Seguiu-se
uma série de contratos não renovados e despejos de antigos locatários por proprietários dos edifícios
(muitos fundos imobiliários estrangeiros), interessados na realização de obras para adaptação dos
prédios para o mercado turístico.
Em novembro de 2015, o movimento Fórum Cidadania Lx3 lançou a petição on-line “Por uma
nova alteração à lei do arrendamento, pela salvaguarda das lojas históricas”4, defendendo que a
lei deveria levar em conta as especificidades dos estabelecimentos comerciais, como a antiguidade,
o valor arquitetônico, as memórias e os ofícios tradicionais. Alegavam que, além dos altos aluguéis,
os empresários das lojas históricas da cidade lidavam ainda com os efeitos da crise econômica, a
concorrência de centros comerciais e a mudança de hábitos do consumidor.
Assim, a lei deveria incluir uma cláusula de salvaguarda do comércio tradicional, propondo que
houvesse uma atualização progressiva das rendas e os projetos de restauração dos edifícios fossem
obrigados a reconstruir, de maneira fidedigna, os espaços comerciais tradicionais, assegurando sua
permanência mesmo quando o uso do edifício fosse alterado para fins turísticos. Essas demandas
foram discutidas por deputados municipais por anos, resultando, por exemplo, no projeto de lei
do Partido Socialista5, que buscava garantir, aos empresários de lojas históricas que tivessem, em
2012, mais de 65 anos e contrato anterior a 1990, um período de dez anos a mais do que a NRAU
estipulava para o reajustamento de rendas, o que reduziria acréscimos bruscos até 2027.
Importante destacar que o NRAU só foi alterado em junho de 2017, permitindo prorrogação no
prazo de reajustamento de contratos antigos, anteriores a 1990, por um período de oito anos. Isso
significa que, apenas decorrido tal prazo, o senhorio poderia promover a transição do contrato antigo
para o NRAU, e, no caso de o arrendatário ter idade igual ou superior a sessenta e cinco anos, esse
prazo foi aumentado para dez. As mudanças estabeleceram também um período de cinco anos (antes
eram dois) para os contratos de aluguel e a tolerância de três meses na falta de pagamentos.

O Programa Lojas com História


Ainda em 20156, foi criado o Programa Lojas com História, que foi pensado inicialmente por
um viés turístico, de preservação e promoção do comércio tradicional e seus ofícios, compreendido
como patrimônio material, histórico e cultural pela CML; desdobrou-se em algumas medidas de
proteção para as lojas.
O projeto envolveu a participação municipal de setores da Economia e Inovação (Direção),
Cultura e Urbanismo e um Grupo de Trabalho. Este era formado por uma equipe de Design da

3
Na página do grupo, há a seguinte descrição: “Um blogue do Movimento Fórum Cidadania Lisboa, que se destina a
aplaudir, apupar, acusar, propor e dissertar sobretudo quanto se passe de bom e de mau na nossa capital, tendo como
única preocupação uma Lisboa pelos lisboetas e para os lisboetas. Prometemos não gastar um cêntimo do erário
público em campanhas, nem dizer mal por dizer”. Disponível em: http://cidadanialx.blogspot.com.br. Acesso em:
27 dez. 2017.
4
Disponível em: https://www.publico.pt/2015/11/30/sociedade/noticia/lancada-peticao-para-alterar-lei- do-
arrendamento-pela-salvaguarda-de-lojas-historicas-1716033. Acesso em: 18 dez. 2017.
5
Disponível em: https://www.dn.pt/dinheiro/interior/inquilinos-idosos-protegidos-de-subidas-de-rendas- ate-2027-
5110584.html. Acesso em: 18 dez. 2017.
6
Disponível em: http://observador.pt/2017/06/14/alteracoes-a-lei-do-arrendamento-urbano-entram- em-vigor-na-
quinta-feira/. Acesso em: 18 dez. 2017.

52
Daphne Assis Cordeiro

Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, com alunos e professores responsáveis pelo
levantamento dos estabelecimentos, visitas e realização de entrevistas com comerciantes, e por um
Conselho Consultivo, composto por arquitetos, historiadores, representantes de órgãos públicos,
acadêmicos, dentre outros, que acompanharam os trabalhos realizados, além de discutirem e
aprovarem os critérios para seleção das lojas. Em um primeiro momento, foi feita uma lista dos
empreendimentos que preenchiam os critérios estabelecidos e as lojas convidadas a participarem
do programa. Depois, foi aberto um edital de fluxo contínuo, de modo que outras lojas pudessem
se inscrever para a seleção.
O Lojas com História contou ainda com a criação de um site7 com informações sobre as
participantes e as ações de divulgação e promoção do comércio. Depois de um longo período do
programa em suspensão, em julho de 2016, foi anunciado o primeiro grupo de sessenta e três lojas
beneficiadas (a maioria localizada no Chiado e na Baixa), que contou com um fundo municipal de
duzentos e cinquenta mil euros. O dinheiro foi destinado à preservação do patrimônio arquitetônico
e decorativo, através de obras de conservação e restauro, modernização de atividades e promoção
de estabelecimentos e ofícios, por meio de ações culturais e de divulgação.
Contudo, o Lojas com História só foi aprovado pela Assembleia Municipal de Lisboa no final
de janeiro de 2017, quando, de acordo com a contagem da União de Associações do Comércio e
Serviços (UACS)8, já haviam fechado 120 lojas, dentre as 300 do primeiro levantamento realizado
pela autarquia. No site da Câmara Municipal de Lisboa, o programa é destacado como uma ação
urgente na proteção do patrimônio, reconhecendo nele “uma parte relevante da identidade e
caráter da cidade e que é, ao mesmo tempo, um importante mecanismo social e econômico para o
desenvolvimento da cidade”9 (grifo meu).
Dentre os critérios de atribuição do projeto, a partir de uma leitura breve do edital, podemos
distinguir três grandes categorias de pontuação: atividade, patrimônio material — que envolve
arquitetura, elementos artísticos e decoração — e patrimônio imaterial, referindo-se ao acervo
de vivências, memórias e importância da loja para a história da cidade. A cada um dos critérios é
atribuído um ponto, exceto no item longevidade reconhecida, para o qual o teto é igual a 3, sendo
1 ponto atribuído a cada 25 anos de atividade.
Para ser reconhecida como uma “loja com história”, essa deve cumprir ao menos um critério
em cada uma das três categorias de pontuação (elencadas acima) e mais de 50% dos critérios, no
total dos três núcleos10. As lojas participantes do programa ganharam um adiamento de cinco anos
para entrar no NRAU, mais cinco por serem “lojas com história” e a proibição de despejo unilateral,
além de, em 2018, proporcionar aos proprietários de espaços onde os inquilinos fossem lojas com
o selo do programa, a isenção do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI).
Desse modo, destaco que 2017 e 2018 foram anos em que ocorreram altos índices de fechamento
de lojas, já que a maioria dos contratos de arrendamento foram renovados em 2012 com o NRAU,
7
Disponível em: http://lojascomhistoria.pt/. Acesso em: 01 mar. 2021.
8
Disponível em: http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/cerca-de-120-lojas-historicas-de-lisboa-
encerraram-desde-2015-e-ha-mais-uma-em-risco. Acesso em: 18 dez. 2017.
9
Disponível em: http://www.cm-lisboa.pt/investir/comercio/lojascomhistoria. Acesso em: 29 maio 2019.
10
No primeiro núcleo (atividade), busca-se premiar: a longevidade do estabelecimento, a inovação nos negócios
e produtos, a resiliência dos últimos representantes de atividades e ofícios, a produção local e o saber fazer, a
utilização de produtos e matérias-primas tradicionais e o desenvolvimento de produtos próprios, incentivando a
criação e registro das marcas. No segundo grupo, patrimônio material: a articulação do projeto (parte arquitetônica,
interiores e design) com o modelo de negócios adotado, a organização de documentos relativos à loja e a promoção
e registro das marcas. No último, patrimônio imaterial, pretende-se contemplar: os significados da loja para a
memória coletiva das pessoas e, mais uma vez, o registro e organização de documentos que possam contribuir para
a valorização do estabelecimento ou marca, reforçando uma sensibilização dos empresários para tais práticas.

53
A crise das lojas “históricas” no Chiado (Lisboa)

sem que muitos empresários percebessem que poderiam ser despejados ao fim dos cinco anos.
Grande parte das lojas convidadas a participarem do Programa Lojas com História, da primeira
leva, eram localizadas no Chiado, consideradas como as mais “emblemáticas” pelos designers.

O Chiado
O Chiado foi escolhido como lócus de observação nesta pesquisa por sua carga simbólica como
centro cultural da cidade, por concentrar instituições e atividades ligadas à cultura, foco de projetos
de requalificação da CML e polo de atração de investimentos internacionais nos setores imobiliário,
hoteleiro, gastronômico, turístico etc. O referencial imaginário do Chiado está associado a dândis,
artistas e intelectuais que imortalizaram as famosas tertúlias literárias, os cafés, as lojas de estilo
parisiense, os teatros e as novidades que podemos encontrar nas obras de autores de diversos
tempos, como Alexandre Herculano, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa. Um conjunto de produtos,
serviços e experiências que tem como inspiração o referencial imaginário da belle époque do
Chiado, construído sobre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Tal construção
simbólica no presente implica uma representação do seu passado como uma zona nobre, luxuosa,
lugar de novidades, passeios e compras; como um centro cultural, sede de movimentos políticos,
artísticos e de tertúlias literárias.
Após 1940, a perda do status do centro no contexto de expansão das cidades e o surgimento de
novas formas de organização econômica levaram a região — segundo a bibliografia utilizada — a
um processo de desertificação, agravando os efeitos do incêndio de 1988, que destruiu mais de
oito mil metros quadrados, inclusive muitas de suas lojas. O incêndio, que teve início no edifício
Grandella, alastrou-se por diversas ruas e tomou dezoito edifícios, armazéns e lojas, algumas com
estoque de materiais inflamáveis. As obras de recuperação ficaram a cargo do arquiteto Álvaro
Siza Vieira, seguidor das tendências do urbanismo moderno, que recuperou as fachadas do Chiado
segundo o estilo pombalino da Baixa, com exceção dos Grandes Armazéns e do Edifício Grandella.
O objetivo do plano de recuperação foi restabelecer o tecido habitacional e desenvolvimento
comercial do bairro, destinando o piso térreo dos edifícios ao comércio, a equipamentos culturais
e de lazer, e os superiores à moradia.
Nos quarteirões do Chiado, surgiram novas ambiências, como pátios de uso público, espaços
arborizados e abertos, circundados por lojas e cafés e reclusos da movimentação das ruas principais.
Tornaram-se espaços semiprivados por envolver tanto a função do comércio no seu interior como
a entrada dos edifícios de habitação, servindo como plataforma entre níveis de elevação variada,
como a Rua Nova do Almada e a Rua Ivens, separadas por cerca de sete metros, com suas múltiplas
escadinhas, que introduziram novos percursos no sistema de circulação da região. Para chegar ao
Chiado, um dos caminhos mais utilizados é subindo a Rua do Carmo ou a Nova da Almada, ou
pela estação de metrô Baixa-Chiado, através de suas intermináveis escadas rolantes que vencem
o desnível de mais de dezoito metros, com saída pelo Largo do Chiado, em frente à Brasileira,
cafeteria/restaurante famoso nos guias turísticos de Lisboa, em funcionamento desde 1905.
As obras de recuperação do Chiado tiveram início logo após o incêndio e se estenderam por
mais de vinte e cinco anos, sendo a inauguração da loja FNAC no Chiado, em 1998, um marco
na vida da região, trazendo novas opções de atividades culturais, inclusive no período noturno.
Podemos citar também, conforme Guimarães e Matos (2010), a abertura do centro comercial nos
Armazéns do Chiado, a crescente dinâmica comercial do Bairro Alto que gerava intenso fluxo
pela Garret (uma das ruas principais do Chiado e caminho para o Bairro Alto), a abertura de

54
Daphne Assis Cordeiro

cadeias internacionais na região, entre ações de promoção do comércio operadas pela Associação
de Valorização do Chiado (AVChiado), entre 1990 e 2010.
A AVChiado surgiu em 1989 como uma organização sem fins lucrativos, resultado da fusão
da Comissão de Valorização do Chiado com a de Comerciantes. Foi criada para atender aos
problemas ocasionados pelo incêndio, tendo como objetivo defender os interesses dos empresários
e moradores, representando-os e realizando ações de dinamização comercial, cultural e urbana
do Chiado: concurso de vitrines, iluminação de Natal, exposições etc. Em 2008, lançou a marca
Chiado Lisbon Trend Mark, representada visualmente pela imagem de uma fênix, uma ação de
marketing que contou com um programa de atividades como o Chiado After Work, que consistiu no
alargamento do horário comercial. Podemos dizer que a AVChiado, ao criar essa marca associando
a área a um polo de consumo cultural, buscou dar corpo a uma identidade e comunidade em torno
do valor simbólico da história do Chiado, que, como vimos, foi marcada pela vivência de artistas e
intelectuais, de um estilo de vida burguês, cosmopolita e moderno. Se, de acordo com a bibliografia
utilizada, a AVChiado foi muito atuante na primeira metade do século XXI, não organizou ações
durante a realização do trabalho de campo em 2018 e início de 2019, sendo desconhecida para
muitos comerciantes.
Os dados registrados no portal da AVChiado nos permitem ter uma breve noção da diversidade
de negócios que encontramos na região. Em 2019, o Chiado era sede de 25 livrarias — dentre
elas a famosa Livraria Bertrand, fundada em 1732 e hoje dá nome a uma rede de mais de 52
livrarias em todo o país —; 3 galerias de arte; 7 lojas em artesanato e souvenir; mais de 60
restaurantes, casas de chá, padarias e atividades alimentares; 44 lojas de vestuário, calçado e
acessórios, além de oficinas. O Chiado é reconhecido tanto pelo conjunto de cadeias internacionais
como pelos negócios independentes. Alguns autores, como Costa, Seixas e Oliveira (2009) e Costa
e Babo (2007), identificam a área Chiado–Bairro Alto como uma zona cultural da cidade, pela
concentração de instituições e espaços de atividades culturais, no Chiado, e pela animação noturna
e empreendimentos voltados para a moda e arte no Bairro Alto.
No Chiado, podemos encontrar o Centro Nacional de Cultura (CNC), criado em 1945 como
um clube de intelectuais e aberto, no final da década de 1970, para um público maior, tendo
como objetivo, de acordo com seu site, a “promoção, defesa e divulgação do patrimônio cultural
português”11. Resistem ainda o Grêmio Literário, desde 1846, o Teatro Nacional de S. Carlos, criado
em 1793, assim como o antigo D. Amélia criado em 1894, que se chamou República, Salão São Luiz
(transformado em cinema), até ser adquirido em 1971 pela CML, atual proprietária, ganhando o
nome de Teatro Municipal São Luiz. Isso se aplica ao teatro Trindade, criado em 1867, espaço de
peças teatrais, musicais e performances, sob gerência do INATEL desde 1975.
Na região, encontramos o Museu São Roque, um dos primeiros museus de arte a serem criados no
país, abrindo ao público em 1905, e o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC),
que surge da divisão do Museu Nacional de Belas Artes em Museu Nacional de Arte Antiga e no
Museu do Chiado (como o MNAC é mais conhecido), fundado em 1911, com acervo posterior à
segunda metade do século XIX e instalado no Convento de S. Francisco. Esse, por sua vez, é vizinho
da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), escola superior de ensino artístico
mais antiga de Portugal, com raízes na Academia de Belas Artes, de 1836.
A CML também teve e tem participação na concentração da oferta cultural no Chiado, promovendo-o
como polo de atração turística, através da publicação de guias de compras na região, realização de
eventos culturais, abertura de museus, bibliotecas, incentivos para atração de negócios etc. Segundo
Guimarães (2015), nos anos 90, a CML lançou programas de apoio à modernização do comércio, como

11
Disponível em: https://www.cnc.pt/protocolo-de-colaboracao-4/ . Acesso em: 29 maio 2019.

55
A crise das lojas “históricas” no Chiado (Lisboa)

o Programa de Apoio à Modernização do Comércio (PROCOM)12 e, em 2006–2008, o URBCOM, a fim


de consolidar o centro histórico como destino comercial da cidade com foco na revitalização.
As ruas do Chiado também são ocupadas por artistas: músicos, dançarinos, performers, homens-
estátua, cartunistas, pintores, entre outros; pedintes, turistas em grupos que acompanham walking
tours, visitantes, poucos moradores e diversos trabalhadores, sendo grande parte deles operários
de obras em prédios convertidos em hotéis.
O andar pelas ruas do Chiado se torna quase um passeio por museus a céu aberto, onde
podemos prestar atenção às fachadas arquitetônicas de diversas vertentes artísticas, às esculturas
que retratam personagens de diferentes tempos que frequentaram o Chiado ou momentos de sua
história, como a Revolução de 25 de abril de 1974, e até mesmo as ruínas da Cerca Fernandina,
muralhas da cidade levantadas em 1373 que podem ser observadas no interior do Centro Comercial
e Cultural Espaço Chiado.
Dentre os assuntos mais importantes e valorizados dos walking tours: as fachadas de lojas
antigas, muitas vezes lado a lado com célebres marcas internacionais.

O cenário econômico e turístico a partir d’A Carioca


Uma dessas lojas antigas é A Carioca, de Carlos Pina, de café, doces e diversos, escondida
embaixo de um andaime de obras, com letreiro luminoso em vermelho, na Rua da Misericórdia,
nº 9, em pleno Chiado. A minha primeira impressão de Carlos foi que ele não parecia ter mais de
70 (ele tinha 91 anos), quando nos conhecemos na sua fábrica de torrefação Cafés Negrita, na Rua
Maria Andrade, nos Anjos. A história de ambas está relacionada: a Cafés Negrita foi criada em
1924 pelo pai de Carlos com outros sócios; A Carioca, comprada por Carlos, em meados da década
de 90. A última, fundada por Isidoro Teixeira, foi, por mais de 50 anos, a melhor cliente da fábrica,
de modo que Isidoro e Carlos se tornaram amigos. Quando Isidoro se retirou do mercado, o filho
não quis continuar, e Carlos a comprou.
Os salões de chá e lojas de café tradicionais do centro, como A Brasileira, Pérola do Rossio, Casa
Macário, Casa Pereira da Conceição, entre outras, ainda são os principais clientes do Cafés Negrita;
contudo, o fechamento desses espaços tem limitado a clientela de Carlos. Segundo o próprio, os
clientes dessas casas, nas décadas de 1940 e 1950, eram os antigos residentes, servidores dos
Ministérios da Baixa e funcionários de empresas que se localizavam na área Baixa–Chiado–Bairro
Alto, de modo que existia um fluxo de pessoas diferente do atual. Já nos anos de 1990, o centro
histórico sofreu um enfraquecimento do comércio devido à transferência dos serviços ministeriais
localizados na região para outros espaços da cidade, pela abertura de estações como o Terreiro do
Paço e o deslocamento do porto de embarque para o Cais do Sodré — o que diminuiu a circulação
de potenciais consumidores (GUIMARÃES; MATOS, 2010; GUIMARÃES, 2015; PAIVA et al., 2017).
O cenário do município era de fechamento de lojas de ruas, aumento dos estabelecimentos de
comércio integrado, enfraquecimento da atividade comercial do centro histórico e redução dos
investimentos em manutenção e recuperação de áreas residenciais. Entre 1995 e 2007, Guimarães e
Matos (2010) estimam que quase um terço dos negócios de Lisboa fecharam as portas, sendo mais
da metade mercearias que não conseguiram competir com os novos formatos comerciais, marcando
uma quebra no mercado alimentar tradicional. Tal fato contrastava com o forte potencial de atração
de turistas do centro histórico, facilmente acessível por transporte público, metrô, ônibus e bonde.

12
Iniciativa do Estado com recursos do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional. Para uma leitura detalhada
sobre o programa, ver Meyer (2019).

56
Daphne Assis Cordeiro

Na mesma época, nas áreas históricas da cidade, como a Baixa e o Chiado, observou-se ainda o
crescimento de estabelecimentos voltados para telecomunicações, bazares geridos por imigrantes,
artesanato, hotéis, restauração e bebidas. No centro, à época da pesquisa de Guimarães e Matos
(2010), entre 1995 e 2007, o número de residentes era bastante reduzido, devido a problemas como
a falta de investimentos em infraestrutura dos prédios, altos aluguéis, dificuldade de circulação e
estacionamento de carros.
A população flutuante de turistas e a falta de residentes foram motivos para a perda de clientes
d’A Carioca, segundo Carlos, mas não somente isso. Ele apontou para uma mudança no perfil
do turista, que teria, atualmente, um poder de compra muito inferior comparado ao da década
passada. Seriam jovens, estudantes, que se hospedavam em alojamentos locais, e não em hotéis;
que carregavam suas mochilas e malas de rodinhas e viajavam com pouco dinheiro, aproveitando
os transportes baratos e a facilidade de passagem de um país para outro.
Se, por um lado, ele se dizia contente que a juventude, atualmente, pode viajar mais que no seu
tempo, por outro, haveria uma mudança na “qualidade do turista”, que interfere no mercado, para
ele pautada no capital econômico. Tal argumento foi tema recorrente em conversas com outros
empresários da região, como Maria, coproprietária da Caza de Vellas Loreto, que data de 1789,
sendo gerida pela mesma família que a fundou. Para ela, o turista há dez anos tinha “qualidade”,
mas poderia não ter “capital”. Quando lhe perguntei o que queria dizer com qualidade, replicou:
“Que não tira selfies”. Sua fala remete a uma distinção pelo capital sociocultural: a seu ver, sua
clientela teria um “outro nível”, apreciadora de uma “atmosfera intimista” oferecida por seu
produto. O turismo de massas seria então um “turismo mais baixo”.
O boom de turismo vivenciado nos anos pré-pandemia por Lisboa está relacionado a diversos
aspectos, como: a entrada de Portugal na União Europeia, em 1986, o aumento da mobilidade entre
países do Espaço Schengen, o crescente número de companhias aéreas de low cost que permitiram
a massificação das viagens, o incentivo dessas ao city break e ao marketing urbano em torno da
cidade. Portugal ganhou o título de Capital Europeia da Cultura em 1994 e, em 1998, realizou
a Expo’98, evento que buscou produzir uma nova centralidade urbana, o Parque das Nações.
Esse evento teve grande visibilidade internacional, atraindo milhares de pessoas, e impulsionou
grandes obras públicas, como a criação da Estação Ferroviária de Lisboa–Oriente, pavilhões, hotéis,
parques públicos, centros comerciais, a expansão do metrô, entre outras.
É importante lembrar que o cenário internacional foi acompanhado por uma série de políticas
públicas, a partir de 2004, que tinham como objetivo atrair capital da iniciativa privada para
revitalização de zonas históricas da cidade, consolidando um mercado voltado para reabilitação
de áreas urbanas, onde recursos públicos passaram a ser usados na atração de investimentos e
promoção de parcerias público-privadas. Para sair da crise econômica de 2008 e 2009, Portugal
assumiu uma série de políticas de austeridade financeira, como cortes de gastos sociais, redução do
investimento público e aumento de impostos, além de reformas estruturais nas relações trabalhistas,
facilitando as demissões, a redução do tempo de trabalho, o valor do seguro-desemprego, o corte
de benefícios previdenciários etc.
Em 2009, foi lançado o regime fiscal para Residentes Não Habituais (RNH), que oferecia vantagens
fiscais a interessados em solicitar residência em Portugal, a fim de trazer ao país profissionais
altamente qualificados, detentores de know-how, propriedade intelectual e beneficiários de
pensões no estrangeiro. Em 2012, o governo lançou o Programa Golden Visa, com o intuito de
atrair capital financeiro internacional de países não pertencentes à União Europeia, permitindo
que esses obtivessem vistos de residentes, extensíveis às suas famílias, a partir de investimentos em
imóveis portugueses, estabelecidos em lei. Mendes (2017) destaca que, no primeiro semestre de

57
A crise das lojas “históricas” no Chiado (Lisboa)

2017, essa forma de visto permitiu a entrada de mais de quinhentos e nove milhões de euros, um
aumento de cerca de 111% em comparação ao montante de 2015, sendo os chineses os maiores
investidores, seguidos de brasileiros, russos, sul-africanos e libaneses, totalizando mais de dois mil
e setecentos vistos emitidos.
A CML criou ainda, em 2012, a Direção de Economia e Inovação, tendo como áreas estratégicas:
o turismo, as indústrias criativas, o setor financeiro, o empreendedorismo, entre outras. Dentre
seus objetivos, podemos destacar a promoção da cidade de Lisboa como destino de compras,
investimentos, atração e retenção de talentos, local para filmagens, centro de crescimento para
startups e afins (BOOTH, 2016). Como vimos, o NRAU também foi criado em 2012; em 2014, foi
a vez da Lei do Alojamento Local, a qual simplificou bastante o aluguel de apartamentos do centro
histórico para fins de alojamento turístico.
A compra de edifícios devolutos no centro histórico da cidade, que abrigavam anteriormente
uma população pobre, sem recursos para melhorias de suas habitações, desalojada pelo aumento
dos aluguéis, tornou-se um ótimo negócio para empresários, construtoras e agentes imobiliários
nacionais e internacionais, que os adquiriam, restauravam e revendiam a preços exorbitantes.
Outras vezes, destinavam os prédios diretamente para fins de alojamentos turísticos, como muitos
titulares do Golden Visa, que, desse modo, conseguiam obter rendimentos de seus imóveis. Tudo
isso contribuiu para a especulação imobiliária e financeira, o que, segundo Mendes (2017), em
2015, resultou no aumento de 23% nos preços da habitação na região do centro, enquanto em
toda a Lisboa, foi de 12%.
Segundo Carlos, dono d’ A Carioca, em outra época, as pessoas iam à Baixa fazer compras porque
o centro da cidade concentrava comércio e atividades de lazer que só ali se encontravam. “Eu
lembro da minha mãe ir quinta-feira à Baixa aos saldos do Ramiro Leão, era uma casa de fazendas
[...] naquele tempo era fino ir à Baixa fazer compras”, destacando também a transformação do
papel feminino. As formas de organização do tecido empresarial, como as novas técnicas de venda,
os formatos de estabelecimentos, a dispersão dos residentes para áreas periféricas da cidade, tudo
contribuiu para criar uma rede de serviços e produtos que alterou a estrutura comercial da cidade.
Como nos contam Cardim (2017) e Barata-Salgueiro (1989), ainda nas décadas de 50 e 60 do
século XX, ir aos sábados às compras no Chiado continuava a ser uma atividade de prestígio social,
um programa lúdico que enchia as ruas. Poderíamos dizer que, ainda ao longo de 2019, durante
a semana e, principalmente, aos sábados e domingos, as ruas do Chiado continuavam cheias de
grupos de amigos e famílias portuguesas a passear.
Carlos apontou para uma modificação nos hábitos de vida e alimentares, pois, atualmente,
não se consome café como se consumia há 20, 30 anos. “Consumia-se em casa, comprava-se um
balãozinho de café, fazia-se a refeição. Hoje, não; toma-se café cá fora”. Outra mudança foram
as cápsulas como a Nespresso que vieram diminuir o consumo do café tradicional, mais barato
que o primeiro, contudo sem a mesma praticidade, o que levou o empresário a desenvolver uma
linha de cafés compatíveis com as máquinas da marca. Carlos destacou também o fato de que os
supermercados não eram tão comuns há sessenta anos, e, naquela época, as casas de chá e café na
Baixa eram muito mais numerosas. Como vimos, o cenário foi mudando gradualmente: a expansão
do comércio e serviços pela cidade, o aumento de estabelecimentos de comércio integrado e novas
formas de venda, a saída das repartições da Baixa para outros bairros, as mudanças alimentares,
nos costumes, o turismo de massa etc.
O comerciante contou que receberam a carta de despejo em 31 de janeiro de 2018, quando
terminaram os cinco anos de prorrogação do contrato do NRAU. Contudo, por participarem do
Lojas com História, conseguiram mais cinco de contrato. Desse modo, alegou que a Câmara tem

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Daphne Assis Cordeiro

trabalhado na defesa das “casas de tradição”, e, se o proprietário quisesse, ele poderia pagar mais
pelo aluguel para que o negócio fosse bom para os dois. Relembrou que o congelamento das rendas
durou cerca de cinquenta anos, um benefício para o comerciante que arcou com aumentos mínimos
durante esse período; então, na sua opinião, o proprietário tem todo o direito de pedir o aumento.
Para ele, os aluguéis deveriam ter sido atualizados lentamente, com aumentos proporcionais a
cada ano: “Por exemplo, ao invés dos 100 euros (congelado) há dez anos, passasse para 110, 120,
130, hoje pagava-se 200 e não custava nada. [...] o senhorio é pobre, e o inquilino, se a renda é
baixa, se beneficia (sic) disso à custa do senhorio”.
Carlos também é proprietário do terreno da Cafés Negrita, além de inquilino (no caso d’A
Carioca), mas, se não fosse proprietário da fábrica, não saberia dizer o quanto estaria pagando.
Ele considerava o Programa Lojas com História um incentivo válido, porque possibilitava o
arrendamento e acreditava que, antes de acabarem os cinco anos de prorrogação do contrato, a
CML arranjaria um jeito de conseguir mais cinco ou dez, para impedir que as “lojas de tradição”
fechassem. Apontou que o encerramento dessas ocorria por diversos motivos, não apenas pela
conjuntura já mencionada, mas pela falta de interesse dos filhos em seguir os negócios dos pais,
os donos antigos que, por vezes, não têm sucessores e o cansaço, referindo-se tanto ao dia a dia
atrás do balcão como ao desgaste das negociações (citando como exemplo o senhorio que não
autorizava obras nas lojas e exigia como condição para aceite o aumento das rendas).
Desse modo, quando questionei se A Carioca era financeiramente viável, Carlos respondeu um
enfático “não”, mas esclareceu que a mantinha aberta porque: “vale pela história, disso eu não
tenho dúvida, porque tenho amor às coisas, porque A Carioca é meu cliente há cinquenta anos ou
mais”. Ele ressaltou que alguém à frente do seu negócio há cinquenta, sessenta anos, podia não
admitir, mas tinha amor pelo que faz:

Para ele [referindo-se ao dono], a loja vale sempre mais do que para os de fora. Eu valorizo
isso, é a minha vida. Alguém pode dizer: ‘isso é velho e tal’, mas cada parafuso, cada prego
que está aqui custou a fazer, tem muito sacrifício meu e do pessoal.

A Livraria-Antiquário Trindade e o
Centro Antiquário Alecrim
Acompanhando notícias de jornal e redes sociais, em 13 de março de 2018, deparei-me no
Facebook13 com a mensagem de fechamento da Livraria-Antiquário Trindade, na Rua do Alecrim 32-
36, no Chiado, com o título “Unilateralmente despejados” redigida por António Trindade. O texto
explicava em tom indignado como António, há mais de 30 anos no mesmo local, teve o contrato
atualizado no âmbito do NRAU em 2013 e, em janeiro de 2018, recebeu a carta de despejo, a ser
cumprida até setembro daquele ano. Ao longo do texto, contava a trajetória de sua família — de
seus avós, que começaram o negócio no final da década de 30 do século XX —, a falta de diálogo
com o proprietário e o fato de outras empresas da Rua do Alecrim estarem na mesma situação.
Alguns dias depois, tal publicação tivera mais de 1.800 curtidas14, 1.600 compartilhamentos e
270 comentários, números extremamente altos para uma página que tinha em média de 10 a 20
reações por postagem.

13
Disponível em: https://www.facebook.com/trindadealfarrabista/. Acesso em: 16 mar. 2018.
14
Quando o leitor dá um “like” na notícia, podendo escolher ainda emojis que expressam amor, ódio, surpresa, tristeza,
de acordo com a sua reação em relação ao conteúdo da mensagem.

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A crise das lojas “históricas” no Chiado (Lisboa)

No mesmo dia, fui à Livraria-Antiquário de António, na expectativa de falarmos um pouco sobre


a história da loja e o Chiado, conversa que se desdobrou em muitas, entre um e outro atendimento.
Essa ocupava duas salas enormes, recheadas de livros, cerâmicas, uma ou outra ilustração em
quadro, entre outros objetos, sendo o ambiente um tanto escuro e muito acolhedor. Na vitrine,
afixada, a publicação do Facebook impressa.
No primeiro contato, António, um senhor falante, na faixa dos 50 anos, contou, de forma sucinta,
que os três alfarrábios da rua pertenciam à família Trindade, e, com a exceção do seu tio, proprietário
de outro espaço, ele e seu primo haviam recebido a ordem de despejo. Na época de prorrogação do
contrato, entre 2012 e 2013, António não imaginava que a relação com o proprietário iria mudar,
pois havia décadas que o negócio se mantinha no mesmo local. Na conversa, destacou as ações
de intimidação por parte das imobiliárias para expulsar os últimos moradores da rua e o rodízio
dos estabelecimentos vizinhos que não conseguiam se manter. A seu ver, a desregulamentação da
especulação imobiliária retirava a funcionalidade dos próprios negócios, que não conseguiam se
sustentar devido à falta de moradores na região.
Nesse primeiro momento, a sua opinião quanto ao Programa Lojas com História era que tal ação
dava proteção a empreendimentos sem viabilidade econômica devido ao desaparecimento de seus
consumidores. O programa seria então apenas algo que “maquiava” a realidade, já que não interferia
no essencial: a relação entre senhorio e arrendatário. No seu entendimento, a CML deveria ser um
agente de combate à desregulamentação, mas é favorecida no processo de especulação, uma vez
que recebe impostos como o IMI, a taxa municipal turística, a taxa sobre dormida, aplicada aos
hotéis e alojamentos locais, sobre as compras realizadas pelos estrangeiros, entre outras.
O cenário do Chiado de abertura de cadeias internacionais e fechamento de lojas tradicionais,
segundo António, levaria a uma homogeneização da identidade cultural de Lisboa, como quando
dizia: “Tudo é Fernando Pessoa, como se no Brasil, tudo fosse Pelé”. A singularidade desaparece, o
que era, então, um espaço de circulação de escritores e intelectuais tornava-se apenas um espaço
turístico, ocupado pelas grandes marcas internacionais, levando à despersonalização da cidade.
Após a grande repercussão da notícia do fechamento da loja no Facebook e da reportagem
cedida ao Jornal O Público15 sobre o mesmo tema, alguns dias após a nossa primeira conversa,
António foi contatado pela Câmara e incentivado a apresentar candidatura ao Lojas com História.
Voltou-se, então, a levantar informações sobre a sua família no negócio de livros e antiguidades
que, segundo relatou, teve início com a sua avó, em 1939.
António relatou que o pai, ao contar as histórias de sua avó, relembra que ela possuía uma
grande capacidade de reconhecer pinturas antigas e tinha muita intuição, qualidade essencial em
tal ramo; talvez (ele diz isso com uma certa surpresa), sua avó fosse, inclusive, a antiquária mais
antiga de Portugal. O avô, que trabalhava em carpintaria, por volta dos anos trinta, começou a se
especializar em autômatos e relógios, enquanto a avó cuidava de comprar pinturas, porcelanas,
pratas, transformando a mercearia que essa havia herdado dos pais, em Alcobaça (300 quilômetros
de Lisboa), em uma casa de antiguidades. Seus avós tiveram quatro filhos: um deles, já falecido, foi
oftalmologista, mas tinha o costume de comprar coisas antigas; seu pai era um antiquário, tendo,
em 2019, 81 anos; seu tio possuía o antiquário do outro lado da rua, e, por último, o mais velho
dos quatro havia sido um grande alfarrabista, sendo o filho deste seu primo, dono da loja ao lado.
António ressaltou que aprendeu bastante com o pai, acompanhando-o diversas vezes quando
criança, sempre muito curioso, o que acabou por lhe dar uma aprendizagem intuitiva. Com isso,
especializou-se ao longo dos anos, de modo que estavam sempre a discutir o que era antigo ou

15
Disponível em: https://www.publico.pt/2018/03/21/local/noticia/mais-duas-livrarias-historicas- fecham-as-
portas-na-baixa-a-trindade-e-o-antiquario-do-alecrim-vao-fechar-as-portas-1807411. Acesso em: 21 mar. 2018.

60
Daphne Assis Cordeiro

não, pois, às vezes, era muito difícil identificar uma peça, principalmente na pintura, em que há
muitas reproduções. Citou como exemplo a porcelana da China, quando no século XVI os chineses
já copiavam as peças do século XIV, feitas nos mesmos moldes. Dessa forma, abordou como ser
antiquário também era uma profissão de risco, pois eram feitos investimentos em tecnologia
(capaz de identificar a época de uma pintura pelos pigmentos), na contratação de técnicos
especializados, na obtenção de peças que depois poderiam ser reconhecidas como restaurações
etc. Segundo António, os livros ajudavam no ofício de antiquário, mas, por vezes, não bastavam.
Era a experiência, desde pequeno, de estar rodeado de mapas, gravuras e coisas antigas em geral
que lhe dava a intuição necessária para o métier.
Quando seu pai comprava algo especial, nunca deixava na loja, levava para casa e buscava
livros e mais livros para comparar informações, conversava com pessoas do ramo quando tinha
dúvidas e, após muita discussão, chegava à conclusão. Retomamos aqui o exemplo das peças da
China, pois muitas vezes a certeza de uma peça ser original ou reprodução vinha da tonalidade
da cor, um brilho específico, um pormenor na forma que só quem teve nas mãos e já viu muitas
vezes reconhece.
Margarida Leite, do Centro Antiquário Alecrim, na Rua do Alecrim 40-42, recebeu a carta de
despejo na mesma época que António (ambos têm o mesmo senhorio). O espaço, assim como o de
António, era enorme, com duas salas à frente, empilhadas de mapas, gravuras, desenhos, rótulos
e carimbos, e uma sala escondida, onde Margarida guardava seu acervo. O pai dela fundou a loja
em 1955. Ela sempre o acompanhou no negócio e tomou à frente quando esse faleceu, há alguns
anos. Margarida, na faixa dos 50 anos, tinha uma história muito semelhante à de António: ambos
aprenderam o ofício com os pais, de maneira informal, por acompanharem os mais velhos à Feira
da Ladra, a leilões, e de prestarem atenção em conversas com outros antiquários. Destacaram a
intuição, a percepção, o “pegar para ver” as peças como essenciais ao ofício.
Margarida definia o seu trabalho como um “negócio de paciência” porque vendia de pouco
em pouco. A impressão que tínhamos do Centro Antiquário Alecrim é que esse parecia remeter a
um outro tempo, no qual havia espaço para conversas que se desdobravam por horas, trocas de
conhecimento, aulas informais sobre como decifrar as letras do século XVI e XVII, clientes habituais
que tinham gavetas reservadas no armário do canto (para coisas do seu interesse); outros, de
passagem, que se deixavam ficar, como se adentrássemos um outro tempo, como o do comércio
tradicional. Esse não está envolto na ideia de saldos, da Black Friday, mas inclui também turistas,
com compras em inglês, rápidas e pontuais, além de outras que se desdobravam na história de
cada objeto, sem, contudo, ser algo anunciado.
Como António, Margarida candidatou-se ao Programa Lojas com História e foi classificada
em dezembro de 2018. Contudo, o prazo do contrato de arrendamento de ambos terminou em
setembro daquele ano, e o senhorio entrou com ação no tribunal: uma história de ameaças, de
cobranças de mais de sete mil euros por dia, de resistência dos lojistas no espaço. O dono do imóvel
pediu uma renda de dez mil euros por mês, sem margem de negociação. Uma vez que a Livraria-
Antiquário Trindade e o Centro Antiquário Alecrim foram selecionados com o selo do Programa
Lojas com História, ganharam a prorrogação de mais cinco anos de contrato e a proibição de
despejo unilateral. Se, por sua vez, o Centro Antiquário Alecrim conseguiu a vitória, para António,
da Livraria-Antiquário Trindade, essa ainda é incerta.

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A crise das lojas “históricas” no Chiado (Lisboa)

A Farmácia Barreto
A Farmácia Barreto foi fundada em 1880 e comprada por José Silva há 32 anos, em sociedade.
Localiza-se na Rua do Loreto, 24, próxima à praça Luís de Camões. A primeira sala, com o balcão
de atendimento e estantes de madeira maciça, é a parte visível de um estabelecimento com várias
salas ao fundo, onde, antigamente, existiam os laboratórios de manipulação, onde eram feitos
xaropes, loções, remédios, cremes e vacinas. Como enfeites de outra época nas estantes, alguns
potes de vidro com pó branco, rotulados como unguento, camomila, bicarbonato, entre outros.
Em 1986, quando José Silva comprou a farmácia, a região era uma zona comercial, com sedes
de empresas estatais, jornais, bancos que ocupavam cinco quarteirões, serviços sociais etc. A
maioria de seus clientes eram os trabalhadores do entorno e moradores do Bairro Alto. Na época,
existiam cerca de doze farmácias na zona. José contou que, com o congelamento das rendas, muitos
proprietários deixaram de alugar seus imóveis, pois os inquilinos, segundo o próprio, só saíam
quando morriam. À medida que os apartamentos ficavam vagos ou precisavam de obras, eram
abandonados pelo senhorio, deixando muitos prédios vazios. A situação mudou com o turismo
e a reconversão de diversos edifícios em hotéis, o que alterou também a clientela da farmácia.
O negócio era pautado na venda de medicamentos prescritos pelos centros de saúde da região,
porém, com a especulação e a saída de moradores, os centros fecharam.
Nos anos noventa, surgiu um novo grupo de medicamentos de venda livre, com preços que não
eram marcados pelo Estado, rotulados por José como “produtos para turistas” (remédios para dor
de cabeça, relaxante muscular, protetor solar etc.), os quais passaram a ser a fonte de renda da
Farmácia Barreto. Em paralelo, criou parcerias acadêmicas com universidades de diversos países
para estágio, participou de um roteiro de farmácias com história de Lisboa, coordenado pelo Museu
da Farmácia, e formulou uma série de workshops no laboratório, cuja ideia era ensinar a fazer
pomadas, cremes e comprimidos. Se, antes, a farmácia voltava-se para a parte clínica, na época da
pesquisa, eram os interesses dos turistas que definiam os produtos à venda. De acordo com José,
se não fosse o selo do programa, já teriam sido despejados.

Conclusões
A partir dos casos A Carioca, Livraria-Antiquário Trindade, Centro Antiquário Alecrim e Farmácia
Barreto, podemos observar como o selo do Lojas com História foi mobilizado na luta pelo direito ao
espaço. Em outros casos, em que as lojas eram associações ou redes, o selo adquiria a função de status,
sem que a alta das rendas fosse sinal de preocupação. Se, por um lado, as lojas mais antigas, segundo
seus donos, eram um chamariz para o turista que buscava algo autêntico, distinto, que não existia em
seu país, por outro, era a própria dinâmica do turismo que intensificava a especulação imobiliária, com
a criação de hotéis, atração de um comércio sofisticado voltado para o turista, como lojas de artesanato,
souvenirs, bares e restaurantes, cadeias internacionais, entre outros. Tal processo levava ao fechamento
de muitas lojas consideradas tradicionais, que não conseguiam arcar com a alta dos aluguéis.
Por sua vez, a promoção das lojas do Chiado como símbolos de um comércio “tradicional”,
“identitário” e “autêntico” pelo Programa Lojas com História da Câmara visava à construção ou
reforço de uma identidade da zona que deve ser compreendida dentro do cenário de disputa de
cidades, com o objetivo de atrair capitais e pessoas para a região. Contudo, o fechamento de lojas
erodia a própria imagem de singularidade promovida pela Câmara em torno do Chiado, como um
centro de cultura e comércio que tende a se tornar observatório privilegiado desse cenário de crise.

62
Daphne Assis Cordeiro

Outra ameaça aos lojistas é o interesse por parte de cadeias internacionais por seus espaços.
Por mais que o selo do programa tenha uma validade de quatro anos, podendo ser renovado por
mais quatro (sem que haja alteração de nenhum dos critérios que levaram à sua classificação), há a
expectativa por parte dos comerciantes de que a CML crie novas medidas de proteção no fim desse
período. A pandemia de Covid-19 veio a acrescentar novas dificuldades em torno da continuidade
desses negócios.
Como vimos nos discursos dos lojistas, diferentes lógicas, como a do afeto e a cultural, estão em
tensão e oposição à do mercado, como no processo da Livraria-Antiquário Trindade e do Centro
Antiquário Alecrim. Por ora, cabe aguardar qual sairá vencedora.

Bibliografia
BARATA-SALGUEIRO, Teresa. Novas formas de comércio. Finisterra, v. 24, n. 48, p. 151-217, 1989.

BOOTH, Lourenço Gouveia. Lisboa: Startup City. Caracterização do ecossistema empreendedor


de Lisboa. 2016. Dissertação (Mestrado em Gestão e Empreendedorismo) — Instituto Superior
de Contabilidade e Administração de Lisboa, Lisboa, 2016.

CARDIM, Valter Carlos. O Chiado De Outrora, O Chiado de Agora: Difusão da Moda,


Urbanização e Revitalização de Zonas Históricas. ModaPalavra, v. 10, n. 20, 2017.

COSTA, Pedro; BABO, Elisa Pérez. As Indústrias Culturais e Criativas: novos desafios para as
políticas municipais. In: PORTUGAL, José; MARQUES, Susana (Orgs.). Gestão Cultural do
Território. Porto: Setepés, 2007. p. 51-87. Coleção Públicos, n. 4.

COSTA, Pedro; SEIXAS, João; OLIVEIRA, Ana Roldão. Das Cidades Criativas à Criatividade
Urbana? Espaço, Criatividade e Governança na Cidade Contemporânea. In: Congresso de
Desenvolvimento Regional de Cabo Verde, 15, 2009, Cabo Verde — Anais do 15º Congresso da
APDR. Cabo Verde: Universidade Piaget da Cidade da Praia de Cabo Verde, 2009. p. 2715-2746.

GUIMARÃES, Pedro Porfírio; MATOS, Filipe. As potencialidades e vulnerabilidades da Baixa-


Chiado e de Telheiras lidas pelas lentes da resiliência comercial urbana. In: Colóquio Ibérico de
Geografia, 7, 2010, Porto — Anais do XII Colóquio Ibérico de Geografia. Porto: Faculdade de
Letras, Universidade do Porto, 2010. p. 1-19.

GUIMARÃES, Pedro Porfírio. O planeamento comercial em Portugal: os projetos especiais de


urbanismo comercial. 2015. Tese (Doutorado em Geografia) — Universidade de Lisboa, Lisboa, 2015.

MENDES, Luís. Gentrificação turística em Lisboa: neoliberalismo, financeirização e urbanismo


austeritário em tempos de pós-crise capitalista 2008-2009. Cadernos Metrópole, v. 19, n. 3, p.
479-512, 2017.

PAIVA, Daniel et al. A criação de geoetnografias como metodologia para estudo dos ritmos
urbanos: uma aplicação no Chiado, Lisboa. Scripta Nova, v. 21, n. 569, p. 1-29, 2017.

63
No seu devido lugar:
disputas simbólicas em torno
do Vão Livre do MASP

João Gilberto Belvel Fernandes Júnior1


Gabriel Hardt Gomes2

Introdução: ir a campo, para


encontrar lá o que não se esperava
Quando fomos a campo pela primeira vez, queríamos responder a uma pergunta um tanto
quanto ingênua: o que o Vão Livre do Museu de Arte de São Paulo — este lugar específico,
suficientemente conhecido no endereço Avenida Paulista n. 1578 — significa? Ora, a dúvida tinha
motivos bastante plausíveis para se sustentar: a todo tempo havia o recurso ao Vão Livre do MASP
para as mais diferentes atividades. Manifestações e protestos ligados a pontos muito distintos — e
quiçá opostos — do espectro político escolhiam se reunir ali.
Um sem-número de performances artísticas, daquelas que acontecem com data marcada (como
os projetos “Música no Vão”3 e “Filme no Vão”, ligado à Mostra Internacional de Cinema4 ou à
Virada Cultural Paulista5) e daquelas mais espontâneas, como a dos “vendedores de poesia” ou
dos caricaturistas, faziam daquele lugar o seu palco. Imagens do MASP — e, consequentemente,
do Vão Livre — circulavam por todos os lados: cartões-postais, ímãs de geladeira, fotos em redes
sociais que praticavam como que um consumo ostentatório do lugar. E, além disso, é claro, não
podíamos deixar de notar a permanência contínua, cotidiana e infalível de pessoas que pareciam
ir para lá apenas para ali “estarem”.
Tudo isso nos parecia um excesso de acontecimentos, vivências e representações. Por que tantas
pessoas e agrupamentos disputavam aquele lugar, se mesmo na Avenida Paulista havia tantos
outros locais que poderiam usar? Ora, algumas vezes bastaria atravessar a avenida e chegar ao
Parque Trianon: ele também tem sombras, aeração, bancos e circulação para se olhar!
Tínhamos intuído a hipótese de que o Vão Livre era um símbolo, e nos propúnhamos a fazer a
sua exegese à moda dos hermeneutas. O Vão Livre seria nosso “texto”, tal como as culturas foram
para Geertz, e nós o leríamos para descobrir nele os seus segredos.
1
Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). E-mail: joaobelvejr@outlook.com
2
Graduando em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH-USP). E-mail: hardtgabriel@usp.br
3
O projeto é permanente, e os shows que organiza acontecem sempre na primeira quinta-feira do mês. O objetivo
é o de “ocupar o Vão Livre do prédio do Museu com shows, discotecagem e longe com opções de comidas e bar
[...], buscando resgatar uma das propostas da arquiteta Lina Bo Bardi para o lugar, pensado como espaço de lazer e
convivência para a população” (MASP, 2018a).
4
A mostra ocorre anualmente. Em 2018, a 42ª edição do evento foi realizada do dia 18/10 ao dia 31/10. O Vão Livre
do MASP foi apresentado como uma das “salas” de cinema, que garantia 500 lugares gratuitos para os expectadores
(MINISTÉRIO DA CULTURA; PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2018).
5
Em 2018, o evento aconteceu no dia 19/05 (MASP, 2018b).
No seu devido lugar: disputas simbólicas em torno do Vão Livre do MASP

Se essa atitude nos ajudou, desde o início, a diferenciar a etnografia do lugar que queríamos da
etnografia das pessoas no lugar a que declinávamos, ela, no entanto, se mostrou bastante simplória.
Bastou que nos sentássemos nos bancos ao fundo do Vão Livre e, nos primeiros cinco minutos
de observação ansiosa, fôssemos abordados por um daqueles meninos — o qual devia ter apenas
uns 13 anos de idade — que, segundo descobriríamos mais tarde, mantém um ponto de venda
de maconha no lugar6. Ele se sentou ao nosso lado, pedindo-nos o isqueiro. E, então, acendeu um
gordo “baseado”, oferecendo-nos uma “bola”. Que um posto móvel da Polícia Militar estivesse do
outro lado da rua e os oficiais mantivessem o Vão Livre sob observação constante, isso não lhe
causava constrangimento algum. Quando recuamos, já sabíamos que a parcialidade de nossa visão
sobre o Vão Livre tinha nos traído e aos nossos pressupostos de pesquisa.
O símbolo que buscávamos não era unívoco à moda dos conceitos estipulativos, como queríamos.
Se havia algo como uma convenção sobre o que o Vão Livre significava, também havia diferenciações
— e elas talvez fossem mais importantes do que a convenção. Não havia um símbolo. Havia
simbolizações. O que efetivamente descobrimos naquele instante foi que, para uma etnografia do
lugar, não basta a exegese iconográfica do objeto escolhido nem a simples análise de seu sentido
nos discursos de um agente ou de um agrupamento. Faltava-nos iconoclastia. Queríamos o pacto
simbólico de Rousseau, encontramos a disputa de Hobbes. Era para a disputa simbólica em torno
do lugar, levada a cabo por diferentes agentes, que precisávamos olhar.
Fomos a campo em dias e ocasiões bastante distintas, na tentativa de participar, observar e
documentar as mais variadas experiências de lugar que tipicamente ocorrem e concorrem no Vão
Livre. Nas manifestações políticas, nas apresentações artísticas, nas festas a céu aberto de domingo,
no dia a dia nada entediante do consumo ostentatório da imagem do Vão e dos garotos que ali
vendem maconha, acabamos por encontrar espaços diferentes. Esses espaços apareciam, na prática,
como rodinhas de conversa, como multidões, ou simplesmente como possibilidades de interação
entre os agentes localizados. Os espaços, então constituídos entre corpos, nos limites mais ou menos
apreensíveis de sua visibilidade e comunicabilidade mútuas (BUTLER, 2018), mediavam experiências
de lugar. Faziam isso justamente por praticar o lugar, como diz Michel Certeau (1998).
Os sentidos do lugar, então, eram espacialmente construídos — e talvez este tenha sido o mais
importante de nossos “achados”. Esses sentidos participavam de algo como um códex dos espaços.
Eles estavam pressupostos, embora fossem continuamente reproduzidos, nas interações que se
processavam dentro desses espaços. Não há sempre grupos, e seria uma simplificação das mais
grosseiras dizer que o consumidor engravatado de maconha que interage com seus vendedores
pelo tempo de queima de um “baseado” compõe com elas algo como um “grupo”. Há, isso
sim, interações e, por conseguinte, comunicabilidade (i.e., possibilidade de trocas e de algum
entendimento mútuo), e estas se baseiam num código comum do espaço. Se existe algo como
valores imediatamente compartilhados entre agentes tão diferentes, é porque eles “estão” no
mesmo lugar e pressupõem um sentido mais ou menos comum ou recíproco para isso.
Mas como os diferentes espaços procediam à simbolização e às (re)produções de sentido de
lugar? E, se havia sentidos dominantes sobre “o que é o Vão Livre”, como se dava a disputa entre
os diferentes sentidos de lugar, no qual essa dominância ocorria? Era preciso dar atenção especial
ao modo como os espaços e o lugar eram construídos, imaginados, vividos, contestados e impostos
(GUPTA; FERGUSON, 2000). Estas passaram a ser nossas questões de pesquisa. E foi através delas
que tentamos uma etnografia do lugar.

6
Trabalho de campo realizado no dia 30/09/2018.

65
João Gilberto Belvel Fernandes Júnior e Gabriel Hardt Gomes

Lugar e espacialidades
É quando um espaço não se identifica com a totalidade de um lugar, e a territorialização da área
(ARANTES, 1994), por conseguinte, não se encontra sob monopólio, que a coexistência de espaços-
outros simultâneos pode estabelecer uma equivocidade do sentido do lugar, pela multivocalidade
(APPADURAI, 1988; RODMAN 1992), por vezes não intencional. Cada espaço, como prática de
lugar, nesse caso, inventa um significado para o lugar em que ocorre. Haver uma convencionalidade
acerca do sentido do lugar, de seus usos e daqueles que podem usá-lo não é impeditivo para isso:
contanto que os espaços criados pelos agentes que nele se integram sejam diferenciáveis, serão
diferenciantes também as simbolizações (WAGNER, 2017) de suas ocupações. Encontram-se,
então, a topografia dos espaços no lugar e a heterotopologia do lugar (FOUCAULT, 2011), na qual
se sobrepõem significações muitas vezes opostas.
O espaço dos que esperam para entrar no MASP, espaço da “fila”, comumente protegido por
grades de ferro7, não se confunde com o espaço dos rapazes que operam a venda de maconha
nos bancos, ao fundo do Vão Livre. Tampouco os vendedores de artesanato ou de poesias criam
espaços semelhantes aos daqueles que cruzam o Vão para fotografar o mirante da Avenida Nove de
Julho a todo tempo. A inconfundibilidade desses espaços não se estabelece só porque as atividades
desempenhadas neles são distintas, ou porque os sujeitos de um espaço não podem sequer perceber
aqueles que estão em outros espaços. Tampouco é a distância métrica entre os espaços que os
dividem — já que, por vezes, ela nem existe, e os espaços se entrecruzam, ou se sobrepõem, na
mesma área, sem se misturarem (os fotógrafos do mirante, por exemplo, raramente percebem os
garotos que, ao seu lado, vendem os baseados).
O que divide os espaços são as percepções e relações distribuídas desigualmente no lugar: os
sentidos de e no espaço, mediados por diferentes sentidos de lugar. E as diferenças, às vezes, são de
tal ordem que o etnógrafo do lugar será forçado a reconhecer que, para aqueles que estão na fila,
por este ser um simples lugar de passagem, o Vão poderá ser mesmo um “não lugar”, no sentido de
Marc Augé (2005)8; enquanto que, para aqueles que estendem suas lonas, logo ao lado (à distância
de menos de 5 metros), procurando por abrigo para passar a noite, ou para os que consomem
maconha e só pretendem “curtir a brisa” ali sem serem perturbados, o Vão Livre jamais poderia ser
enquadrado na mesma categoria.
Isso não implica, contudo, que as divisões entre espaço sejam imperturbáveis, à moda das
mônadas ou dos sistemas fechados. Criados entre corpos que ocupam e aparecem em áreas, os
espaços são tão tangíveis, expansíveis e suprimíveis quanto o é o conjunto das corporalidades
que os formam: os rapazes que vendem a maconha dependem de sua percepção para identificar
seus clientes potenciais (cujo engajamento em negociação fará expandir o espaço do consumo
e da venda da droga9) e a aproximação dos oficiais de polícia (que ameaça por fim mesmo ao

7
A grade só é removida quando o espaço da fila cresce para além de sua capacidade de contenção.
8
Mas não sempre, e muito menos necessariamente. Tome-se como exemplo as filas de terça-feira, povoadas comumente
por crianças em excursões escolares: para elas, o Vão Livre é um lugar de curiosidade, de questionamento e de
excitação (observação feita em 09/10/2018).
9
O trabalho de campo em reiteradas datas mostrou que os rapazes abordam aqueles que estão e ficam por um
tempo no Vão Livre, mesmo que estes não estejam fumando “baseados” ou procurem ativamente por alguém de
quem comprá-los (nosso caso). Não parece haver distinção de classe social, gênero, raça ou sexualidade nesse
comportamento deles. Em nenhum momento, contudo, pudemos observá-los abordando pessoas muito mais velhas
(a partir dos 40 anos de idade).

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No seu devido lugar: disputas simbólicas em torno do Vão Livre do MASP

espaço que eles formam10); e, por mais que esses corpos possam ser ignorados pelos passantes
desinteressados, ainda assim eles surpreendem, com a sua presença, ao se aproximarem dos
turistas do mirante, causando, por vezes, até o temor destes11, no que um espaço intercepta o outro
em súbito sobressalto.

A economia simbólica do lugar:


concorrência, negociação e regulação
Essas são as mesmas condições, aliás, da disputa pelo lugar: a área é limitada, e o crescimento
de um espaço pode, como ocorre com frequência, causar a contração ou a dissolução de outros
espaços. Vimos isso ocorrer durante um comício do então candidato à Presidência da República,
Jair Bolsonaro, que se deu logo à frente do MASP. Naquela ocasião, funcionava, como todo
domingo há mais de três décadas, a Feira de Antiguidades do Vão Livre12. Esta, entretanto,
com a expansão do espaço do comício (que extrapolou a rua e começou a ocupar o Vão Livre),
desmontou-se às pressas13.
A sensação dos vendedores era mesmo a de terem sido expulsos do lugar, pela supressão
de seu espaço14. Por outro lado, o espaço dos vendedores de maconha, porque não dependia
das mesmas estruturas físicas que a Feira (cujas barracas são condição de possibilidade para
a venda das antiguidades), simplesmente se contraiu: os rapazes ficaram restritos aos poucos
metros quadrados em que se sentavam para assistir à multidão (e onde podiam ser acionados
para transações discretas). O espaço da manifestação política, então, conquistava o terreno, e
o observador descuidado poderia crer, conforme as imagens (sempre parciais) veiculadas pela
mídia, que a aparência de seu monopólio constituía um monopólio real.
Mas a disputa se dá em termos mais cotidianos do que isso também. Durante o domingo, com a
Avenida Paulista fechada para o trânsito de veículos e aberta para os pedestres — que a utilizam das
mais diferentes formas —, o movimento no Vão Livre do MASP aumenta exponencialmente. Isso
não se dá, como se pode imaginar, apenas em decorrência da Feira de Antiguidades que funciona
ali. Na verdade, a Feira, desde que a Avenida começou a ser fechada, sofreu, de acordo com Elisa
(2018)15, uma de suas vendedoras, com um decréscimo de clientes: se antes os paulistanos de classes
sociais mais altas podiam se locomover até lá com seus carros para adquirirem “até aparelhos de
jantar” nas tendas dos antiquários, agora só se vendem “miudezas” aos turistas que passam por ali
— afinal de contas, quem “vem para a Paulista de metrô não vai voltar dela segurando nas mãos
um jogo de pratos e xícaras antigos”.
10
A ameaça representada pela polícia não é tanto com relação aos rapazes que vendem a droga quanto a seus
consumidores e a seus colegas mais velhos, que os acompanham (mas que não parecem ser hierarquicamente
superiores a eles). Durante todos os dias em que fizemos trabalho de campo, a polícia, embora tenha aparecido de
alguma forma (não raras vezes fazendo “batidas”), nunca tentou reprimir estes garotos diretamente.
11
Esta situação, bastante típica, foi observada em todos os dias do trabalho de campo. Os garotos que vendem a
maconha são desinibidos até quando não estão engajados em comércio.
12
Observação feita em campo no dia 31/09/2018.
13
A Feira de Antiguidades geralmente começa a se desmontar às 17h. Neste dia, às 16h, as mercadorias já tinham sido
retiradas das barracas dos antiquários.
14
Rubens, que trabalha há anos na Feira de Antiguidades, e o qual conseguimos entrevistar brevemente no dia
31/09/2018, chegou a nos informar que estavam sendo convocados seguranças extras naquela ocasião, até que eles
conseguissem sair de lá.
15
Entrevista realizada no dia 9 de dezembro de 2018.

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João Gilberto Belvel Fernandes Júnior e Gabriel Hardt Gomes

A movimentação excedente no Vão se dá, ao revés, em virtude do que acontece atrás das
barracas que vendem antiguidades — algo que alarma e, por vezes, até enfurece alguns de seus
vendedores mais antigos, como Elisa, que trabalha há 35 anos na Feira. Trata-se de uma festa a
céu aberto: centenas de jovens (boa parte deles negros e vindos das periferias da cidade, através
do metrô, ao contrário dos vendedores de antiguidades, de maioria branca), munidos com, talvez,
uma dezena de caixas de som portáteis se aglomeram para dançar, beber e se divertir. O número
de participantes cresce conforme a tarde cai e a sombra que o prédio do MASP faz sobre o Vão Livre
aumenta. Os antiquários tentam garantir que o “tumulto” — como eles chamam — não invada
seu “espaço” fixando cordas, que os separam da festa, ao redor do aglomerado de suas barracas e
pondo seguranças particulares para protegê-las. A força policial é requisitada para “proteger” os
objetos vendidos, pois os vendedores se sentem ameaçados pela presença dos jovens.
“Batidas” da Polícia Civil e Militar tentam coibir a venda de bebidas por ambulantes. Nada disso,
contudo, gera um cisma absoluto entre os espaços: é preciso cruzar as barracas para acessar a festa,
e o funk alto que toca nela viaja até as fronteiras do Vão com a Avenida Paulista, onde se encontra
com outras músicas e mais burburinho. Conflitos pelo território vão se multiplicando: segundo
nos contou a própria Elisa, alguns garotos costumam passar pelas barracas perguntando quando é
que, afinal, a Feira vai acabar, porque a sua presença os “atrapalha”. Ora, se não é possível afirmar
que, no espaço da festa, a intenção de monopolizar o lugar ia ser veiculada, certamente é acurado
deduzir que os vendedores da Feira prefeririam que essa mesma festa simplesmente não existisse.
Situações como essas deixam claro também que a vulnerabilidade de um espaço à supressão,
aliás, depende também da vulnerabilidade do conjunto de corporalidades que o formam. E não é
só o número de corpos que interessa. Talvez isso nem sequer seja o principal, embora a dificuldade
de suprimir um espaço muito populoso seja superior à de suprimir um espaço habitado por poucos
corpos. A questão é a de que a vulnerabilidade se distribui desigualmente entre os corpos, em virtude
de marcas de classe, etnia, cor, gênero e sexualidade que eles carregam. Há, afinal, um motivo pelo
qual as forças policiais se colocam ao lado dos vendedores da Feira e dos seus objetos, e não do
lado dos jovens da periferia e de sua festa: existem espaços a que se reconhece, comparativamente,
uma “menor distinção”, ou um “menor valor” em relação a um dado conjunto de valores, e, por
isso, só podem compensar no número de corpos a desvantagem que a eles é atribuída em virtude
dos preconceitos que pesam sobre as corporalidades que o compõem.
Isso mostra que disputar o lugar não é só disputar, sincronicamente, a área que ele engloba. Porque
os espaços atuam como vozes (mais ou menos valiosas, de acordo com uma ou outra moral), e essas
vozes simbolizam o lugar de maneiras distintas; a disputa pelo lugar acarreta também uma disputa
pela veiculação privilegiada de sentidos diferentes sobre ele. Por isso, se o surgimento de um espaço
tem a sua causa na ilocução de uma simbolização diferenciante (WAGNER, 2017), a concorrência dos
espaços pelo lugar se dá na forma perlocucionária de simbolizações coletivizantes (WAGNER, 2017).
Em outras palavras: enquanto participar de um espaço significa estar fora de outros espaços — e, por
isso, diferenciar-se deles —, monopolizar (ideal ou realmente) o lugar significa suprimir outros espaços
e, por isso, fixar, ainda que momentaneamente, um sentido único para ele.
Essa lógica concorrencial aparece claramente nos discursos dos agentes que se reúnem no Vão
Livre para manifestações políticas: eles falam de “ocupar o lugar” (FRÚGOLI JÚNIOR, 2018) tal
como se estivessem sempre “tomando” um terreno que está em disputa, ou que estivera, até então,
em poder do “adversário”16. Quer-se superar as simbolizações passadas (efetivamente realizadas ou
tão somente imaginadas — não importa): a concorrência também se dá diacrônica e simbolicamente.

16
Embora seja muito comum esse tipo de colocação, nós a ouvimos com bastante frequência no trabalho de campo
realizado no dia 20/10/2018, em que ocorreu, no Vão Livre, o segundo ato público do “#EleNão”.

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No seu devido lugar: disputas simbólicas em torno do Vão Livre do MASP

Se o lugar é disputado, isso significa que ele é raro, ou limitado — isto é, que não está disponível
a tudo e a todos durante todo o tempo —, e, principalmente, ele é simbolicamente relevante. A
partir desse ponto, é possível entrever uma economia cujas leis, mais ou menos claras, regem o
uso do lugar. Outras situações evidentes disso são aquelas em que há expressa negociação, por
vezes mediada, inclusive pelo Estado, entre os agentes que concorrem para fundar um espaço
pretensamente monopolista no lugar. No dia em que o então ex-presidente Luíz Inácio da Silva foi
julgado em segunda instância na Operação Lava-Jato, por exemplo, repórteres independentes nos
contaram17 que duas manifestações opostas tinham sido marcadas no Vão Livre — uma a favor da
condenação do réu e outra contrária a ela.
Tendo coberto ambas as manifestações, as repórteres puderam nos informar que as lideranças
dos movimentos adversários procederam à divisão do lugar no tempo: a manifestação a favor
da condenação do ex-presidente pôde usar o Vão até o fim da tarde, quando chegaria a passeata
daqueles que eram favoráveis à absolvição, vinda da Praça da República. O encontro físico entre
as forças disputantes, então, ficou excluído por meio de tratativas anteriores à própria constituição
dos espaços que se pretendiam fundar monopolisticamente no lugar; através disso, ambos os
movimentos puderam compor imagens unívocas e veicular suas vozes naquele púlpito.
A concorrência e a negociação não são, tampouco, os únicos fatores que condicionam o uso do
lugar nessa economia. Não é raro que se antevejam os traços de uma regulação econômica para
este uso: ações para coibir espaços sem substituí-los por outros. Nessa regulação, atuam diferentes
agentes: o Estado, por exemplo, através da repressão policial de manifestações políticas (algo
reiterado, desde 2013, com certa constância) e da prática — executada por diversas administrações
municipais de São Paulo — de expulsar ou expropriar bens (como cobertores) de pessoas em
situação de rua que dormem ou passam a noite ali; a diretoria do próprio MASP, quando, v. g.,
proibiu a realização da convenção estadual do Partido NOVO em suas dependências, em 2018
(BERGAMO, 2018); ou mesmo a opinião pública, quando reprovou e deu origem a tentativas
(engendradas pela Polícia e pelo Ministério Público) de impedir que a Marcha da Maconha pudesse
ter início no Vão Livre, anos antes (BALZA, 2011).
Esses eventos não podem ser interpretados apenas como exercícios do poder da polícia
para repressão de ilicitudes ou imoralidades possíveis, nem como mero exercício do direito de
propriedade, tal como se o lugar em que eles ocorreram não importasse. Não se expulsa as pessoas
em situação de rua dali da mesma forma que se expulsa de um recôndito escondido embaixo de
um viaduto, ou de uma viela escura da cidade18. São também simbolizações do lugar que se quer
coibir, nestes casos e em outros. Há uma preocupação com o valor simbólico que é atribuído ao
Vão Livre, o qual pode ser aumentado ou diminuído em relação a um dado sistema de valores,
conforme os usos que se faça dele.
Como cartão-postal, parte do circuito de artes e turismo, e centralidade da capital, os agentes
que investem seus esforços na regulação do uso deste lugar tomam para si a tarefa de impedir a
sua suposta desvalorização — ou, ao inverso, a capitalização de determinados espaços através
de sua territorialização nesse lugar. Ora, tanto a concorrência quanto a negociação e a regulação
pressupõem um valor simbólico associado ao lugar. Como o valor de uma coisa é sempre relativo,
17
Entrevista realizada com Thais Meneghim Borgatto e Karen Meneghim, no dia 08/09/2018.
18
Logo pela manhã são removidos, às pressas, os andarilhos que dormiram sob a proteção do prédio do MASP, no
Vão Livre. Tudo ocorre como se houvesse uma programação cotidiana a ser cumprida. As únicas que permanecem
são as poucas tendas (de uma a três, no período em que o trabalho de campo foi feito) que se escondem atrás da
bilheteria do MASP. Durante o dia, nem sequer há pessoas deitadas nos bancos ao fundo do Vão. No dia 31/09/2018,
chegamos a presenciar a cena de um andarilho que tinha acabado de se deitar na sombra ser logo repreendido por
policiais que passavam por ali de bicicleta. De acordo com os oficiais, “ali não era lugar” de fazer aquilo.

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João Gilberto Belvel Fernandes Júnior e Gabriel Hardt Gomes

é necessário que haja um fundo comum de comparabilidade com outras coisas e, ao mesmo tempo,
oposições destas para com aquela (SAUSSURE, 2006).
Se essa oposição se encontra na simbolização diferenciante dos espaços, que concorre com
outras simbolizações de mesma ordem para se tornar monopolista pela via da convencionalização,
só no sentido de fundo comum é que podemos entender o Vão do MASP como valor simbólico, ou
símbolo de distinção (BOURDIEU, 2007), para encontrar um mínimo de significado comum, o qual
seria pressuposto pelos diferentes espaços concorrentes e também pelos candidatos a reguladores
do uso do lugar. Os exemplos disso se multiplicam. Manifestações políticas concorrentes “ocupam”
o Vão Livre (visto, nestes casos, como o “lugar-do-outro”) também por entenderem que ele é o
veículo de uma visibilidade comparável (e, por vezes, superior) à encontrada em outros lugares
em que podem acontecer assembleias populares, como a Praça Roosevelt, o Vale do Anhangabaú,
o Largo da Batata, a Praça da Sé, a Praça da Independência etc.
Essa centralidade comumente imputada ao Vão às vezes se manifesta em discursos e práticas
que simbolizam esse lugar metonimicamente: “ocupar o Vão Livre” é “ocupar as ruas”, ou “ocupar
São Paulo”. De outro lado, também os garotos que vendem maconha nos bancos do Vão Livre
encontram naquele lugar um valor distinto de outros pontos possíveis para a venda da droga: não
é à toa, mas em busca de certa clientela, que eles se dirigem até lá19; e os próprios consumidores
compartilham desse valor, ao afirmar categoricamente que o Vão Livre é “mais de boa” do que
outras paragens, como o Vale Anhangabaú ou as imediações da Escola de Samba da Vai-Vai, onde
também é possível adquirir a droga. O mais categórico dos exemplos, contudo, será o do consumo
ostentatório do lugar como imagem: os turistas que passam pelo MASP e tiram fotos ou selfies no
mirante da Avenida Nove de Julho ou nos pilares rubros do museu para postarem em suas redes
sociais o fazem porque sabem que estão comunicando algo àqueles que verão as fotos, e essa
comunicação lhes angariará alguma distinção social diante dos demais — algo que só é possível se
houver um sentido comum e inteligível sobre “o que é o MASP” ou “o que é o Vão Livre”.
Mas, de onde surge o “mínimo significado comum” do lugar, a partir do qual os diferentes
espaços promoverão simbolizações diferenciantes? Só parece haver uma resposta possível: o
significado comum emerge das diferentes simbolizações que se produzem espacialmente ali.

A invenção do mínimo significado comum do lugar


Perguntar-se, entre o significado comum e as simbolizações diferenciantes e convencionalizantes,
qual seria a causa e a consequência, em linha cronológica ou lógica, é despiciendo. Todo símbolo
é histórico (ainda que possa ser, mediante a vitória de uma dada narrativa, no campo de disputas
pelo lugar, “des-historicizado” pela simbolização) e, sendo assim, sofre transformações mais ou
menos abruptas a partir da prática. O mínimo significado comum de um símbolo dado não é só uma
invenção dialética, porque sintetiza oposições historicamente feitas ao que ele era anteriormente,
mas também dialógico, porque é construído, neste caso, na multivocalidade de espaços-outros que
são plurais. No caso do Vão Livre, ele é um efeito de heterotopia.
Esse significado nunca se comporta como os conceitos estipulativos: não há um inventor
a-histórico, e por isso eterno — ou deslocalizado —, e por isso ubíquo — que possa determiná-lo
nem por um instante, e ainda menos de uma vez por todas. Aqui, não é um autor, um grupo de
19
Entrevista realizada com Natália (pseudônimo) no dia 30/09/2018. Revelou-nos que o preço da maconha vendida
no MASP costuma ser maior do que em outros lugares onde também se pode comprar a droga e consumi-la de
imediato. De acordo com ela, contudo, o Vão Livre é “mais bem frequentado” do que esses outros lugares.

70
No seu devido lugar: disputas simbólicas em torno do Vão Livre do MASP

autores, ou um suposto espírito coletivo monolítico que inscreve no lugar o seu mínimo significado
comum. Essa “convenção” é muito mais uma “contrainvenção”, ou um subproduto das práticas de
uso, simbolização, concorrência e regulação acumuladas na história e nos espaços, do que o fruto
de uma intencionalidade subjetiva ou objetiva qualquer que se possa apreciar. Metodologicamente
falando, aliás, poderia ser ocioso para uma etnografia do lugar (do aqui e do agora) verificar
historicamente quando e como é que se deu a primeira simbolização do lugar: o que de uma
pesquisa como essa resultasse dificilmente teria qualquer relação relevante com as simbolizações
que o Vão Livre do MASP vive hoje, dado o excesso de acontecimentos, de práticas, de vivências,
de discursos e de simbolizações que há sobre ele no tempo corrente.
O Vão Livre do MASP tem um mínimo significado comum, para além dos sentidos de lugar
pressupostos pelos espaços que nele se constroem, justamente porque esses espaços inventam
significados que o produzem. A tautologia desse enunciado é só aparente, e isso fica demonstrado
pelos dados etnográficos. Quando os rapazes que praticam o comércio da maconha se dirigem,
todos os dias, ao Vão Livre, sob o pressuposto de que aquele é um bom lugar para vender seus
produtos, eles reproduzem o lugar como um bom lugar para adquiri-los e, por conseguinte, para
vendê-los: isso não passa despercebido dos consumidores, que podem sempre se fiar na expectativa
de que haja alguém de quem comprar a maconha ali.
Quando performances artísticas são realizadas ali sobre o mesmo pressuposto de centralidade, e
de um caráter popular (“de rua”) do palco em que ingressam, eles próprios agem para que outros
— inclusive outros artistas, que poderão se apresentar mais tarde no mesmo palco — reconheçam
no lugar esse caráter e aquela centralidade. Por fim, quando as manifestações ocorrem ali — seja
veiculando simbolizações metonímicas, como nos discursos de “ocupar a rua” ou “ocupar a cidade”,
seja veiculando simbolizações de conflito e disputa (BOURDIEU, 2007), tal como ocorre quando
supõem “ocupar o lugar do outro” —, elas próprias, por suas ações, inventam e reproduzem a
metonímia da cidade e o “lugar do outro” que deve ser conquistado. Causa e consequência se
tornam indistintas, da mesma forma que a invenção simbólica diferenciante sempre contraproduz
a convenção, e a invenção simbólica convencionalizante sempre contraproduz a diferença.
Nada disso impede, contudo, que os espaços sejam agenciados com o objetivo de adquirir
monopólio sobre o lugar e, por conseguinte, determinar voluntariamente (convencionalizar por
imposição) qual seja o significado comum do Vão Livre. No terreno só acontecem as batalhas
porque ambos os lados, afinal de contas, pensam poder dominá-lo em algum grau de relevância.
Mesmo que o monopólio seja sempre aparente e momentâneo (o espaço dos rapazes que vendem
a maconha nunca deixou o lugar, mesmo quando se territorializou ali um espaço refratário ao
uso ilícito de drogas, como o comício do então candidato do PSL à Presidência da República em
2018, cujos discursos propunham, inclusive, um acirramento da “guerra às drogas”), no caso do
Vão Livre, ele importa. Porque a aparência do poder é também poder, e disso não refoge o poder
simbólico ou o poder para simbolizar.
O valor do lugar, portanto, do qual participa o mínimo significado comum adquire alguma
constância, ou é normalizado, embora, é claro, possa sofrer, e sofra, variações históricas. O mínimo
significado comum do lugar se mantém, como um “genius loci” (NORBERG-SCHULZ, 1979), a respeito
de qualquer um dos espaços individuais que nele se territorializam geralmente, atribuindo a esses
ganhos de localização (BOURDIEU, 2008). Esse significado funciona como uma identidade (ainda que
não a seja), ou como uma segunda estrutura que se ergue sobre a sua estrutura física. E, porque ele
atribui visibilidade, ele também é um agente (LATOUR, 2012). Por isso, não são apenas os espaços que

71
João Gilberto Belvel Fernandes Júnior e Gabriel Hardt Gomes

agenciam (praticam) o lugar: por este, aqueles também são agenciados (praticados)20.

Circunstâncias e estratégias de simbolização


Nada do que se passa com o significado de um lugar está alheio às possibilidades físicas e
às relações geográficas propiciadas por ele. Se o Vão Livre não fosse dotado de uma área tão
extensa (cujo comprimento é de 74 metros entre cada par de pilares do MASP), ele certamente
não poderia ser utilizado para concentrar a grande quantidade de pessoas que ali participam de
manifestações políticas. Da mesma forma, se o prédio do museu não lançasse sobre a área uma
sombra permanente, talvez ele não teria angariado a predileção que tem para a realização de
atividades artísticas. Por outro lado, importam igualmente as malhas rodoviária e metroviária,
densas o bastante na região para tornarem o acesso de pessoas facilitado; e o seu escoamento,
ligeiro. Além disso, o pertencimento do lugar a uma “mancha” (como é a própria Avenida Paulista)
e a diversos “circuitos” (MAGNANI, 2002) — turísticos, culturais, políticos e de venda de drogas,
por exemplo — também o tornam mais ou menos distinto, em comparação com outros lugares, em
virtude da intensidade da circulação de pessoas que essas relações propiciam.
O que se quer dizer é que, embora haja um arbitrário da invenção simbólica do lugar, ele
sempre acaba emoldurado, ou condicionado, por um campo de possibilidades físicas e geográficas.
Diferentes possibilidades físicas e geográficas, tal como os diferentes valores simbólicos
(significados mínimos comuns) associados aos lugares, permitem que os agentes que fundam
os espaços ajam estrategicamente. O Parque Trianon talvez não fosse visível o suficiente para
prospectar clientes, do ponto de vista dos rapazes que vendem a maconha. A Praça da República
e o Largo da Batata certamente não possibilitariam às manifestações políticas a ação de bloquear
a Avenida Paulista — uma das mais importantes (e visíveis, por seu significado) de São Paulo,
tal como possibilita o Vão Livre, quando o espaço político se torna grande o suficiente21. O Vão
Livre do MASP não é o único lugar a agenciar os espaços. Mas ele é singular, no sentido de que os
agencia de uma forma diferente da que fazem outros lugares.
Quando entrevistamos Elisa, a vendedora de louças que trabalha na Feira de Antiguidades, ela,
como uma solução para o problema que imputava às festas de domingo, sugeria que se fechassem
também ruas e avenidas na periferia. No seu entendimento, se isso fosse feito, aquelas centenas de
jovens não “precisariam” ir até o Vão Livre para se encontrar, escutar música e dançar: poderiam
fazê-lo “perto de casa”. Essa proposta guarda alguma semelhança àquela posta em prática em
2017, de que se levassem palcos da Virada Cultural Paulista para a periferia da cidade — já
que antes eles eram concentrados no “centro expandido”. Nesse último caso, parte dos jovens da

20
Embora nos refiramos aqui especialmente aos resultados de uma “maximização” dos efeitos das vozes e das
simbolizações praticadas no lugar, é possível entrever, com Bourdieu, um agenciamento mais profundo para os
lugares e para as relações geográficas em que eles estão enredados, conforme sua significação social. É o caso de
notar “as surdas injunções e os chamados silenciosos à ordem das estruturas do espaço físico apropriado”, que “são
uma das mediações através das quais as estruturas sociais se convertem progressivamente em estruturas mentais e
em sistemas de preferência” (BOURDIEU, 2008, p. 162-163).
21
No dia 30/09/2018, estava sendo realizado, no Largo da Batata, o primeiro ato do “#EleNão”. A quantidade de
pessoas reunidas no ato demandava, aparentemente (não há números oficiais), uma área maior do que a do Vão
Livre. Quando o ato seguiu, em marcha, até a Avenida Paulista, para chegar ao MASP, ele já ocupava mais de 300
metros de comprimento, conforme pudemos constatar. O fato de a Feira de Antiguidades ter sido montada naquele
dia, por volta das 17h, impediu fisicamente, contudo, os manifestantes de adentrarem o Vão Livre.

72
No seu devido lugar: disputas simbólicas em torno do Vão Livre do MASP

periferia ainda assim preferia os shows do centro àqueles que se realizavam em seus bairros22. E,
aqui, com certeza temos que levar em conta o “gosto”: talvez — provavelmente, aliás — os shows
do centro fossem simplesmente “melhores” do que os shows da periferia, do ponto de vista desses
agentes. Mas tampouco podemos nos esquecer do que representa “ir ao centro” e “ocupar” esses
lugares, para simplesmente “estar lá”.
Se as classes médias e altas se deslocam até a Avenida Paulista aos domingos, por que não o
fariam as classes mais pobres também? Propostas como as de “fechar ruas nas periferias” para
que as festas não ocorram no Vão Livre ocultam aquilo que elas mesmas pressupõem: que o Vão
Livre tem um valor simbólico de distinção. Se esse valor é reconhecido pela Feira de Antiguidades
(cujos antiquários, pelo menos desde 2012, quando a Avenida Paulista começou a ser fechada,
incomodam-se com o “tumulto” das festas), ao ponto de eles permanecerem no lugar para disputá-
lo com outros espaços, então por que, para os jovens da festa, o Vão Livre também não teria um
valor simbólico de distinção? Não é simplesmente uma hipótese, a de que esse valor exista. O
comportamento dos agentes e as características dos espaços que eles fundam tornam isso manifesto.
Na festa, por mais que vieses e, por vezes, até preconceitos possam impedir que os vendedores
dos antiquários percebam, os jovens estão distintamente vestidos e paramentados. Usam roupas
que ostentam marcas, maquilagem e acessórios de seu gosto: estão arrumados para a ocasião, e
isso mostra que seguem uma etiqueta adequada, do seu ponto de vista, para ela. O valor, este
significado, paira pelo espaço: o Vão Livre os agencia e por eles é agenciado o tempo todo.
Essas estratégias de agenciamento levam em conta, por fim, não apenas as relações físicas e
geográficas que o lugar estabelece no seu meio, mas igualmente o “circunstanciamento” do lugar no
tempo. Uma manifestação política ligada a uma greve geral (como as que aconteceram em 2017),
por exemplo, considerará a relação entre o significado veiculado pela greve (a interrupção do
trabalho para reivindicação de direitos) e o momento em que ela se dá: as manifestações tendem a
acontecer em dias de semana, durante o “horário comercial”. Essas circunstâncias não são neutras.
Elas também são valor localizado — e temporalizado. É por isso que, no caso das greves, elas estão
sujeitas a críticas circunstanciais, as quais se desviam da reivindicação de direitos e, imputadas
geralmente à direita política, são postas no sentido de que as manifestações “atrapalham” ou
“interrompem” o tráfego. Essa “direita” presumida, inobstante as críticas que faça, contudo,
também reconhece o valor localizado de que estamos falando: não é à toa que prefere os finais
de semana, ou os horários posteriores ao período de trabalho, para se manifestar. Em 2018, por
exemplo, foram várias as manifestações marcadas pelo “#VemPraRua”, pelo “Movimento Brasil
Livre” e pelos apoiadores da candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República em frente
ou mesmo dentro da área do Vão Livre do MASP — todas acontecendo durante a noite, nos dias
de semana, ou durante sábados e domingos.
As diferenças estratégicas reverberam as contraposições simbólicas: tanto as críticas da “direita”
às manifestações da “esquerda” quanto as próprias circunstâncias em que aquela escolhe se
manifestar pretendem uma coerência objetiva com o “valor do trabalho” que veiculam contra
o espantalho da “vagabundagem” que se veicula em desfavor das greves. O que esses espaços

22
A Virada Cultural de 2017 teve seus grandes shows realizados na Chácara do Jockey (Zona Oeste), no Sambódromo
do Anhembi (Zona Norte), no Parque do Carmo (Zona Leste), no Autódromo de Interlagos e na Praça do Campo
Limpo (ambos situados na Zona Sul). Comentando, para o jornal G1, a decisão de ter posto apenas tablados de até
um metro de altura no centro da cidade por ocasião do evento, o então Secretário da Cultura teria afirmado: “Acho
que acertamos ao tirar os palcos grandes e colocar os tablados. Várias das atividades foram bem-sucedidas. Tinha
muita gente no Centro. Não queríamos shows com 40 mil pessoas. O Centro ficou cheio sem muitas pessoas no
mesmo lugar”. A percepção que se teve da Virada Cultural naquele ano, contudo, e que foi veiculada nas mídias, foi
a de que ela tinha sido “esvaziada” pela estratégia (GOMES, 2017).

73
João Gilberto Belvel Fernandes Júnior e Gabriel Hardt Gomes

têm em comum? O lugar. E, aqui, como não podia deixar de ser, retornamos aos princípios de
nosso argumento, desta vez com um novo olhar sobre eles: aquele que esperamos ser o de uma
etnografia possível do lugar.

Conclusões
Os garotos que vendem maconha no Vão Livre do MASP, embora estejam na faixa etária que
vai dos 12 aos 17 anos, não se tratam entre si nem são tratados pelos mais velhos dentre seus
conhecidos como crianças. É responsabilidade deles lidar com os clientes e administrar o dinheiro
do comércio que praticam. Ainda assim, eles não deixaram de aspirar a uma felicidade ingênua
quando, num sábado à tarde, um ciclista (surpreso, à primeira vista, por ter sido abordado pelos
pequenos desconhecidos) se dispôs a deixá-los dar umas voltas em sua bicicleta por ali. Durante
quase meia hora, o comércio de maconha foi esquecido, e o que importava era o vento batendo
no rosto e as pedaladas fortes que davam para adquirir mais e mais velocidade. Quando, sob os
protestos dos meninos, o ciclista foi embora, eles se tornaram “homens feitos” de novo: havia
clientes esperando23.
Episódios como esses nos lembram da vida no lugar e da vida do lugar. O Vão Livre assiste
cotidianamente a essas passagens de um espaço para outro: do espaço da infância para o espaço da
responsabilidade. Práticas de lugar distintas se encontram nas mesmas pessoas. Segui-las poderia
nos fazer entender o porquê “disso”. Mas o que tentamos aqui foi nos dedicar ao porquê “deste
lugar”. A escolha metodológica, contudo, não pode abrir mão das pessoas: o lugar é o que ele é —
seja ele o que for — por causa delas. Isso é o que tentamos demonstrar, desde o início até este fim.
Uma etnografia do lugar não se presta à exclusão das pessoas no lugar. O que ela faz é sistematizar
experiências observadas, relatadas e participadas pelo etnógrafo e que ali acontecem, atribuindo-
lhes, à moda da invenção antropológica, sentido. O que ela diz é: o lugar em que as pessoas vivem,
em que as pessoas estão, para o qual elas olham e do qual elas falam importa! Ele não é neutro.
Ele não é fungível. Ele é parte e participa da vivência e do sentido da experiência vivida pelas
pessoas, na mesma proporção em que é enredado nessas experiências, que são todas localizadas e
especializadas em algum lugar. No Vão Livre do MASP, essas coisas aparecem com alguma clareza.
Neste ensaio, tentamos viabilizar uma etnografia do lugar de acordo com as simbolizações
que dele são feitas nas práticas (i.e. nos espaços). Os conceitos que utilizamos parecem aptos a
descrever (na verdade, inventar) antropologicamente o que nos encontrou em campo. A sugestão
que eles implicam, no limite, poderá ser inútil para explicar outras realidades. Por mais que críticas
possam ser tecidas às nossas escolhas teóricas, no entanto, uma coisa pelo menos ficará delas: a
espacialidade em que as construções de sentido do lugar (inclusive acadêmicas e etnográficas)
estão implicadas.

Bibliografia
APPADURAI, Arjun. Place and voice in anthropological theory. Cultural Anthropology, v. 3, n.
1, p. 16-20, 1988.

23
Observação feita em 30/09/2018.

74
No seu devido lugar: disputas simbólicas em torno do Vão Livre do MASP

ARANTES, Antonio Augusto. A guerra dos lugares: sobre fronteiras simbólicas e liminaridades no
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76
Problemas Públicos, Engajamentos
Políticos e Conflitos no Desastre
de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da
moradia à corrupção

Maria Suellen Timoteo Correa1

Introdução
Esta produção visa apresentar reflexões sobre a construção de arenas e cenas públicas a partir de
problemas públicos decorrentes de situações de crise, como a do desastre envolvendo chuvas em
janeiro de 2011 na região serrana do estado do Rio de Janeiro, mais especificamente na cidade de
Nova Friburgo, RJ. Fortes e constantes chuvas impulsionaram o que foi considerado por estudiosos de
fenômenos socioambientais e pela grande mídia o maior desastre “natural”2 já ocorrido no Brasil.
Municípios, como Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis, passaram por enchentes e
deslizamentos de terras e pedras, que levaram a mais de 900 pessoas mortas em toda a região,
além de 12.768 desabrigados (os que perderam suas casas) e 23.315 desalojados (aqueles
momentaneamente impedidos de voltar para casa), segundo o Relatório de Inspeção do Ministério
do Meio Ambiente (BRASIL, 2011). Apesar dos números serem questionados por setores sociais,
segundo jornais, só em Nova Friburgo foram 3.220 desalojados e 2.031 desabrigados, além de
mais de 426 vítimas fatais (G1, 2011). Nova Friburgo foi expressivamente impactada pelo desastre,
conforme o Relatório do Ministério do Meio Ambiente.
Cabe destacar que o desastre nesta produção é tomado a partir de uma perspectiva que o
desnaturalize, no sentido de problematizar fatores ligados a esse tipo de evento que não são
estritamente naturais. Importantes estudos brasileiros já mostraram a relação dos desastres
socioambientais com uma construção social dos riscos (VALÊNCIO, 2009; VALÊNCIO et al., 2004),
ligada, por sua vez, à estrutura social, que define esses riscos a partir de fatores, como a ocupação
de um território, por exemplo (VALÊNCIO et al., 2004).
Essa perspectiva também considera que há um padrão histórico de vulnerabilidade (ACOSTA,
2004; 2008), relacionado, por exemplo, à infraestrutura, à ideologia dominante, à organização
sociopolítica, aos sistemas de produção e de distribuição existentes (idem, 2004), entre outros.
A partir dessa desnaturalização, desastres também podem ser entendidos para além de uma
definição de “causa e efeito”, tendo uma continuidade e existência na própria relação que as
pessoas estabelecem com esses eventos. Isso pode ser desde uma preparação — ou a forma como
dão sentido aos acontecimentos e mudanças — até a maneira como agem posteriormente para
lidar com os efeitos desastrosos.
1
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail:
suellentcorrea@gmail.com
2
O termo “natural”, apesar de ainda usado demasiadamente pelas mídias e em algumas áreas do conhecimento, é
problematizado por grupos de diversas vertentes científicas, como abordado adiante.
Problemas Públicos, Engajamentos Políticos e Conflitos no
Desastre de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção

Um desastre, portanto, pode ser um processo temporal (TADDEI, 2015) e relativo, ligado a
variáveis sociais, políticas e simbólicas. Sua duração e a extensão dos impactos estão, por exemplo,
ligadas a fatores condicionados ao grau de vulnerabilidades e de resiliências, mas também a
situações que se desenrolam a partir de ações das mais variadas. No contexto do desastre de
2011, em Nova Friburgo, a própria categoria “tragédia”, muito utilizada pelos moradores para
tratar do desastre, apresenta parte das múltiplas referências e concepções sobre o evento e suas
consequências, dialogando com a memória e com outros momentos de crise na própria história da
cidade (CORREA, 2015; 2020).
Tratando os desastres ainda na sua condição simbólica, é possível analisar a catástrofe de 2011
enquanto um evento crítico, conforme nos apresenta Veena Das (1995). Para a antropóloga, eventos
críticos (como o desastre na usina de Bhopal3) são fatos históricos tratados na sua singularidade
que trazem transformações e sofrimentos repentinos e inexplicáveis. São eventos que penetram
a cotidianidade das pessoas, condensando mudanças em códigos, concepções e práticas de várias
esferas da vida social, como a da política (DAS, 1995).
Os eventos críticos estão intimamente ligados a novos modos de ação e a reconfigurações de
categorias e pensamentos, tanto por parte de civis como pelo próprio Estado, que, para dar conta
dos imponderáveis, reformula e ressignifica categorias, até mesmo para manter ou retomar uma
normalidade (ibidem). A partir das situações inesperadas e impactantes que surgiram com esse
evento crítico em 2011, problemas públicos foram se constituindo em espaços da cidade, ao
mesmo tempo que atores se posicionavam em arenas públicas a partir da composição de alguns
desses problemas.
Desse modo, ao estabelecer, por exemplo, uma relação entre a participação dos moradores no
processo de reconstrução de um bairro e de retomada da vida a eventos críticos e processos de
mudanças, busca-se como empreendimento teórico uma análise que leve em conta as experiências
individuais e coletivas dos envolvidos, próxima a uma “análise situacional”, nas palavras de
Cefaï (2011). A análise situacional aprecia com destaque as situações sociais, a partir da sua
observação e descrição.
Apesar dessa ênfase, ela tem sensibilidade à questão simbólica, sem dissociar questionamentos
culturais dos sociais (ibidem). Analisando as ações relacionadas ao mundo da política, sendo este
simbólico e dinâmico, é possível uma “perspectiva microssociológica e pragmatista” (CEFAÏ, 2011,
p. 14). A análise pragmatista das atividades micropolíticas, portanto, neste trabalho, desdobra
algumas experiências, interações e ações voltadas para processos de construção de problemas
públicos pela cidade, de modo que se exemplifique parte das dinâmicas em torno da entrada de
atores em arenas públicas, a partir da situação crítica de um desastre.
Para apresentar essas situações envolvendo o desastre, a escrita recorre a tempos e métodos
distintos: à etnografia baseada em uma observação participante sobre o envolvimento político a
partir de uma Associação de Moradores no pós-desastre de 2011 (mais especificamente durante
2014), fruto de minha dissertação de mestrado (CORREA, 2015); e às pesquisas para a elaboração
da tese de doutoramento em Antropologia sobre os usos e sentidos em torno de chuvas e de
eventos de desastres pela cidade, sobretudo durante a produção do desastre de 2011. Neste último
caso, foi utilizada uma base de fontes de jornais, vídeos e entrevistas sobre o evento.
A partir dessas etnografias, portanto, são problematizadas neste trabalho as seguintes questões:
a entrada de moradores de um bairro na Associação de Moradores, a fim de buscarem a reconstrução

3
O desastre na usina de Bophal foi um acidente industrial e químico em uma usina de pesticidas, da empresa norte-
americana Union Carbide Corporation, ocorrido em 1984. Causou mortes e sequelas em milhares de pessoas, devido
a reações químicas que resultaram em gazes letais.

78
Maria Suellen Timoteo Correa

do lugar e a retomada de suas vidas; parte da mobilização e reivindicação de diversos atores na


cidade em busca da resolução de problemas ocorridos no desastre, como empresários e os próprios
moradores ligados à Associação; e, por fim, conflitos envolvendo o processo de abertura de uma
CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) a partir de escândalos envolvendo o uso das verbas
destinadas à reconstrução da cidade.
Essas análises acionadas construíram campos diversos em termos de temporalidades, de modo
que elas proporcionam diferentes exemplos de casos em torno dos problemas públicos e da entrada
de atores nas arenas, além de apresentarem a complexidade e o caráter processual de situações de
crise, como o desenrolar do desastre de 2011.

Moradia e engajamento comunitário


Nesta parte da produção, o objetivo é apresentar de forma selecionada alguns problemas e casos
pelos quais passaram moradores do bairro friburguense Córrego D’Antas, no contexto do desastre.
Desse modo, a entrada desses atores na instituição associativa da localidade e a participação deles
em arenas políticas envolvendo as questões do bairro serão discutidas.
Esta breve apresentação tem origem na etnografia baseada nessa participação (CORREA, 2015).
Este trabalho foi produzido através da pesquisa de campo feita no Córrego D’Antas, ao longo de
2014, junto com os moradores que participavam direta e indiretamente da Associação de Moradores,
a partir, principalmente, da observação participante nas ações promovidas pela instituição no
bairro (como reuniões, encontros e ações da entidade), e nas entrevistas com moradores, membros
gestores da Associação ou os que participavam das suas reuniões, assembleias e eventos.
A partir dessa etnografia, foi possível compreender que novas modalidades de ação surgiram
no Córrego D’Antas com o evento crítico de 2011. Apesar desse novo direcionamento, as ações
se deram a partir de espaços e atores que já existiam e agiam no bairro, como a Associação de
Moradores do Córrego D’Antas, que existe há décadas na localidade. Assim, após as chuvas de
2011, a direção que passou a administrar a Associação, além de alguns atores que passaram a
participar das suas ações, não fazia parte do corpo gestor da entidade e/ou não atuava ativamente
da mesma forma que antes de 2011 (ibidem).
Ao chegar ao campo, foram visíveis e recorrentes os acionamentos do desastre e suas consequências
enquanto “tragédia” e da sua memória, impregnados na vivência cotidiana das pessoas, no “morar”
e “viver” delas no bairro, nas suas interações e sociabilidades, muitas reformuladas e ressignificadas.
Na etnografia foram apresentados exemplos de situações e contextos de entrada desses atores na
Associação. Uma das moradoras do bairro, secretária da instituição em 2014, disse ter começado a
querer participar mais “das coisas do bairro” depois de 2011, e isso aconteceu, segundo ela, para
muitos moradores por “causa da situação crítica do bairro” (ibidem, p. 72), pois as demandas
haviam triplicado na época.
Segundo outra moradora, tesoureira da Associação e membro do Conselho Escolar, seu
envolvimento com as questões do bairro e sua entrada na Associação de Moradores se deram a
partir do deslocamento de seus filhos e de outras crianças do Córrego D’Antas para estudarem
em uma escola em outra localidade, pois a que era próxima havia sido atingida com o desastre
(CORREA, 2015).
Devido aos problemas ocorridos com esse deslocamento — ela contou que os filhos sofriam
bullying das crianças do outro bairro, além do fato de ficarem muito distantes de casa —, a
moradora passou a interagir mais nas questões escolares do Córrego D’Antas, pois viu que era

79
Problemas Públicos, Engajamentos Políticos e Conflitos no
Desastre de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção

uma demanda não só dela, mas do bairro. Foi quando entrou para o Conselho Escolar e na “luta”4
pelo retorno da escola para o bairro, junto com a Associação de Moradores. Depois de um tempo,
conseguiram a escola de volta, mas localizada em uma casa, com condições inadequadas para a
educação. Então, passou a fazer parte de um comitê no bairro criado pelo secretário de Educação
em 2011. Desse ano em diante, compôs a diretoria da Associação de Moradores (depois também
iniciou uma graduação em Pedagogia).
É possível analisar também como a mobilização dos moradores contribuiu para compreenderem
diferentes níveis de atuação da Associação e suas funcionalidades. A primeira secretária da
Associação afirmou: “Eu comecei a conhecer a associação do meu bairro a partir da tragédia”
(CORREA, 2015, p. 73). A segunda secretária, que durante as chuvas ficou “ilhada” e teve o imóvel
de trabalho do seu pai inundado, sabia que existia a Associação no bairro antes de 2011, pois
lembrava das festas que a instituição promovia: “O bairro Córrego D’Antas sempre teve associação”,
no entanto, “nunca participei de nada da associação. Vim participar de uma reunião na associação
depois da tragédia” (ibidem, p. 73).
O então vice-presidente da Associação também afirmou conhecer essa coletividade, mas destacou
que não tinha interesse na instituição antes de 2011. Então, a partir da “tragédia”, “mudou bastante
coisa, assim, despertou em mim o interesse de ajudar as pessoas, maior, porque eu já tinha esse
interesse, de lutar pelo bairro, reconstruir as coisas”, e percebeu “que unido a gente é mais ouvido”
(ibidem, p. 72).
Atreladas às situações e mudanças repentinas envolvidas no desastre, categorias foram
ressignificadas e reformuladas, como amizade, união, vizinhança (CORREA, 2015), entre
outras. Assim como a educação, a moradia foi uma questão que se apresentou extensivamente
em campo enquanto um problema público e permeou o discurso sobre a aproximação de
alguns atores na Associação.
Por trás do problema de moradia, podiam perpassar categorias como destruição, alagamento,
perdas; deslocamentos temporários, definitivos, compulsórios; desapropriações; indenizações,
entre outras questões apresentadas a partir das chuvas de 2011 (ibidem). Um exemplo de ação
empreendida pela comunidade, antes mesmo da nova gestão da Associação, foram os mutirões
do bairro. Logo após as chuvas de janeiro de 2011, moradores se reuniram em grupos para
executarem limpeza e consertos pela localidade ao longo do ano. Foram, no mínimo, cinco
mutirões naquele ano, de acordo com os registros apresentados no site da Associação de
Moradores do Córrego D’Antas5.
A partir dessas ações, os moradores se conheciam mais e trocavam saberes e experiências, sendo
determinantes para a organização em torno da reconstrução do bairro e da própria composição
da nova gestão da Associação, uma vez que os moradores que participavam dos mutirões também
passaram a se reunir em torno da Associação, a partir da Comissão de Reconstrução do Córrego
D’Antas em Apoio à Associação de Moradores (CORREA, 2015). A partir dessa comissão, os
integrantes da localidade se reuniam semanalmente com os vizinhos e membros, participando de
assembleias quinzenais com os moradores, fazendo ofícios, representando o bairro em reuniões na
Prefeitura, entre outras ações.
Um exemplo desse direcionamento para a Associação é apresentado pelo seu próprio presidente,
que, devido à sua intensa participação nas questões do bairro (uma delas, a moradia), foi sendo
levado a montar uma chapa e acabou sendo eleito (ibidem). A moradia, portanto, foi uma questão

4
A “luta” também foi uma categoria nativa apresentada em campo, tomando diversos significados e sentidos, mas, em
sua maioria, relacionados à mobilização em prol de melhorias pelo bairro (CORREA, 2015).
5
Disponível em: https://corregodantas.wordpress.com/. Acesso em: 10 jun. 2019.

80
Maria Suellen Timoteo Correa

central no bairro com o desastre; a própria entrada das pessoas em uma Associação de Moradores
mais o engajamento em prol da reconstrução do bairro e da manutenção dos moradores nele
mostram a importância das situações em torno da moradia.
Os moradores que perderam a residência e/ou tiveram que sair de suas casas se viram na
condição de receberem algum tipo de indenização. Alguns não a aceitaram da maneira que fora
apresentada. Foi o caso de um morador do Córrego D’Antas, que também passou a frequentar a
Associação à procura da resolução de um impasse: sua casa estava localizada numa área considerada
de risco. Apesar de não ter sido aparentemente afetada e danificada, ele e sua família tiveram que
sair dela. No início de 2014, quando o conheci, o morador ainda não tinha sido indenizado.
Primeiramente, ele não recebia a assistência porque não se enquadrava no limite de salários
mínimos exigidos. Disse ter sido muito pressionado a deixar sua casa, mesmo sem ter acesso ao
aluguel social. Depois, já com sua família fora da casa, quando conseguiu ter acesso às negociações,
ele optou pela indenização em dinheiro, mas não aceitava o valor que lhe era oferecido pelo imóvel,
entendendo que era muito inferior ao que valia. Segundo ele, construiu com muito trabalho,
durante anos, uma casa muito boa, em terreno com mais de 200 m² — quartos, quintal e garagem
com cobertura. E não achava justo ter que deixá-la sob as condições oferecidas, de modo que a
situação foi “se arrastando” até não ter mais opções.
Assim que o conheci, estava sendo oferecido a ele um apartamento popular, pelo projeto Minha
Casa, Minha Vida, que, segundo ele, era bem abaixo do valor do seu imóvel. Nesse período, já
vigorava um decreto assinado pelo governo estadual no final de 2013 (decreto 44.520, de 12 de
dezembro de 2013), no qual a única opção para as vítimas da catástrofe de 2011 na região serrana
seria a aquisição de um apartamento popular daquele projeto, sob risco de perderem o benefício
do aluguel social (CORREA, 2015).
Antes do decreto de 2013, conforme o próprio morador cita, havia um anterior —Decreto 43.415,
de 09 de janeiro de 2012 —, que previa a escolha entre as seguintes modalidades: “uma nova moradia
no local, mediante a construção de unidades habitacionais padrão quando previstas no projeto ou num
empreendimento do Programa Minha Casa Minha Vida ou similar”; ou a denominada compra assistida,
que seria “a compra de uma nova moradia, preferencialmente na proximidade da própria comunidade
em área de boa acessibilidade e que não envolva riscos”; ou um

auxílio financeiro específico para liquidação antecipada do parcelamento de


contrato de compra e venda de imóvel residencial celebrado conforme as regras do
Programa Minha Casa, Minha Vida, regulado pela Lei Federal n° 11.977, de 07 de
julho de 2009, quando autorizado pelo Chefe do Poder Executivo e apenas para os
casos de realocação de famílias desabrigadas ou moradoras de área de risco (RIO
DE JANEIRO, 2012).

Para esse morador, o decreto posterior, o “novo”, era injusto por mudar — no meio de um
processo de realocação e indenização — as situações de famílias que passaram por problemas e
traumas, as quais ainda não haviam sido indenizadas. Nesta primeira reunião, quando o conheci,
ele dizia não aceitar essa imposição, mas ao mesmo tempo já estava cansado, pois não recebia nada
nem podia voltar para sua casa, que estava abandonada e já havia sido saqueada algumas vezes.
Assim como esse residente, outro morador também relutava em aceitar as condições impostas
a partir do novo decreto. Este, também impossibilitado de ficar em casa, já que ela estava em área
considerada de risco, estava morando em outro bairro e pagando locação, sem receber o benefício
do aluguel social. Durante uma reunião sobre uma obra de contenção no bairro, em março de
2014, estes dois moradores, aproveitando a presença de representantes do governo estadual,

81
Problemas Públicos, Engajamentos Políticos e Conflitos no
Desastre de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção

apresentaram questionamentos sobre as indenizações (CORREA, 2015), demonstrando conflitos


de interesses e visões acerca da moradia e do bairro.
Outra situação evidenciando esses conflitos de interesses entre moradores e a Prefeitura foi
o processo de revisão do Plano Diretor da cidade. Nas reuniões apresentadas aos moradores no
bairro, era evidente o interesse da gestão pública em manter regiões cada vez maiores para a
preservação ambiental. Isso estava em consonância com um projeto do Instituto Estadual do
Ambiente (INEA) de parque fluvial, margeando toda uma região do Córrego que já vinha passando
por desapropriações e demolições de imóveis, e com a expansão industrial, já que o bairro no Plano
Diretor antes da revisão tinha áreas consideráveis de expansão industrial e (com o desastre e as
desapropriações) poderia comportar uma área maior para esse fim6.
A SEMMADUS, a então Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano Sustentável da
cidade, no processo de revisão do Plano Diretor de Nova Friburgo, convocou reuniões em dezenas
de bairros para levarem sua proposta de revisão para os moradores, sobretudo no que dizia respeito
às localidades em questão. No Córrego D’Antas, antes da reunião indicada pela Prefeitura, os
moradores, através da Associação, anteciparam-se e elaboraram sua própria proposta, que viria a
ser solicitada nessa reunião de revisão do Plano para o bairro.
No dia da reunião com a Secretaria, além da sua própria proposta de revisão para o bairro, os
moradores puderam apresentar algumas inconsistências e divergências no Plano Diretor. Uma
delas era a questão do aterro sanitário no bairro. Ele está em cima de uma nascente, numa região
que, segundo os moradores, não deveria ter aterro, mas ser considerada uma ZEIRA — Zona de
Especial Interesse de Recuperação Ambiental. Além disso, os moradores discordavam das ZEIRAS
previstas no Plano, pois estas se encontravam em áreas onde já existiam moradias.
Outra reivindicação apresentada pelos moradores na reunião era a necessidade de consolidação
do local como um bairro misto e enquanto uma ZUC (Zona Urbana Controlada). A proposta se
insere no “cuidado” e no tratamento necessário para o bairro, pois as ZUCs no Plano tinham um
tratamento específico de cada região, e o plano da Prefeitura não contemplava o Córrego D’Antas.
Os moradores vinham percebendo, tanto na proposta do Plano Diretor — que colocava o bairro
apenas como Zona de Expansão Orientada (ZEO), e não como área residencial — quanto nos
acontecimentos no bairro, a partir do desastre, que o interesse da governança era retirar cada vez
mais moradias do bairro e estimular o crescimento industrial na localidade (CORREA, 2015).
Os pontos mais comentados na reunião pelos moradores, no entanto, foram os relacionados às
consequências do desastre, ligadas ao saneamento, à infraestrutura e, sobretudo, à moradia. Em
um certo momento da reunião, uma moradora pediu a palavra e falou sobre a questão da moradia,
referindo-se aos apartamentos populares construídos do outro lado da cidade, para onde alguns
moradores do Córrego D’Antas haviam sido direcionados, chamando o complexo habitacional de
“engaiolamento”. Para a moradora, haviam feito um local com estrutura precária, sem saneamento
nem água, sugerindo que o governo deveria ter construído moradias em cada bairro.
Então, a moradora apontou para a situação de um vizinho, que estava ao seu lado, com a casa
ainda interditada. Finalizou dizendo que “tem muita coisa errada, mas eu não vou falar tudo porque
tem muita coisa” (ibidem, p. 144). Este morador então começou a contar sobre sua situação. Ele
tinha, até 2011, seis imóveis no bairro e, com a tragédia, havia perdido três casas. Desde 2011, o
morador vinha acompanhando o INEA, que “jogava” as reclamações dos moradores para a EMOP,
Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro, e esta “jogava” de volta para o INEA.

6
Na dissertação descrevo mais detalhadamente as reuniões, a organização e as estratégias dos moradores para
imporem seus interesses nas reuniões da revisão do Plano Diretor (CORREA, 2015).

82
Maria Suellen Timoteo Correa

Segundo o morador, já estava com 64 anos e havia feito tudo conforme o exigido, pois pagou,
construiu, fez o “pé-de-meia”, legalizou, para na sua idade poder ficar mais tranquilo, mas o que
via eram os direitos dele “lá embaixo”; a cada dia ele se aborrecia mais. Segundo o morador, o
INEA lhe ofereceu vinte mil ou um apartamento em troca das suas casas (CORREA, 2015, p. 147).
Ele construiu ali no bairro porque havia escolhido aquele local. “Agora nós estamos em área
de risco?” (ibidem, p. 148). Entre lágrimas, disse que estava revoltado, e os moradores estavam
se sentindo “jogados” de um lado para o outro. Então terminou sua fala aos prantos: “Hoje só se
vê política, política, política. Onde estão nossos direitos? Isso eu quero saber, onde estão nossos
direitos?” (ibidem, p. 148). A fala emocionada do morador foi calorosamente aplaudida pelos
presentes na reunião, em concordância.
As reuniões no bairro envolvendo moradores e representantes do Poder Público, como a reunião
proposta pela Prefeitura para a revisão do Plano Diretor, foram oportunidades em que os habitantes
do local puderam apresentar suas demandas e seus saberes. Isso foi possível graças à organização
prévia dos moradores a partir de uma reunião anterior, convocada pela Associação, configurando
uma situação de prova de “consulta e deliberação”, nos termos de Daniel Cefaï (2011).
As situações de prova são as que organizam experiências de protagonistas em uma cena pública7.
No caso das situações de prova “de consulta e deliberação”, como em reuniões públicas, “nas
quais se opõem de um lado, discursos de políticos e de especialistas e, de outro lado, discursos de
associados e de moradores”, conflitos são evidenciados e disputas se desenrolam (ibidem). Esses
exemplos descritos fazem parte de uma arena pública que, segundo Cefaï (2017):

[...] encontra seus apoios em ambientes institucionais, profissionais, confessionais,


organizacionais, em que problemas públicos se constituem, fazendo e desfazendo mundos
sociais e as jurisdições em que venham a ser definidos, tratados, regulados e resolvidos.
Eles se manifestavam em torno de situações de prova, muitas vezes no ponto de intersecção
entre vários mundos sociais ou ambientes institucionais (CEFAÏ, 2017, p. 132).

A partir das situações de prova descritas, moradores impulsionaram e tornaram públicas suas
ações e intenções na arena em torno da moradia. Em alguns casos, deram o direcionamento nas
cenas e deixaram a gestão pública em posição defensiva e correspondente aos interesses dos
residentes do bairro (CORREA, 2015), evidenciando, por fim, que nem sempre a constituição do
problema público é “um modo de domesticar ou pacificar o público” (ibidem, p. 134).
Sobre as novas formas de atuação de diversos moradores no bairro a partir do desastre, estas
revelam este evento de crise como um momento liminar — de quebra e de suspensão do tempo
e das regras em torno da organização dessas temporalidades — que empurra as pessoas para
terrenos imprevisíveis de redefinições do cotidiano, obrigando-as a se redefinirem também. Muitas
vezes, esse processo se inicia através de sofrimentos e ações que visam reparar relações e refazer o
fluxo da vida após a ruptura do evento crítico, processo exposto a partir de diversas experiências
de redefinição de vida, evidenciadas e narradas anos depois (CORREA, 2020).

Prejuízos econômicos e a organização dos empresários


As próximas reflexões são fruto das pesquisas mais recentes sobre a produção de arenas públicas
pela cidade em torno da esfera pública do desastre de 2011. O campo desta empreitada é constituído
de arquivos, fontes de imprensa, memórias e discursos elaborados entre 2011 e 2020; portanto,
em temporalidades distintas.
7
Cenas públicas são “lugares em que se podem ancorar algumas situações de prova” (CEFAÏ, 2011, p. 94).

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Problemas Públicos, Engajamentos Políticos e Conflitos no
Desastre de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção

Logo após as chuvas de janeiro de 2011, ainda naquele mês, empresários com negócios na
cidade iniciaram uma organização em torno da busca de créditos que cobrissem os prejuízos do
desastre. A organização começou com representantes da Câmara de Dirigentes Lojistas de Nova
Friburgo (CDL) e do Sindicato do Comércio Varejista do município, junto com outros empresários
(A VOZ DA SERRA, 2011a). Então, quatorze dias após as chuvas, foi realizada a primeira reunião
com 50 empresários para buscarem financiamentos, encabeçada pelo Conselho da Representação
Regional Centro-Norte Fluminense, da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro
(Firjan), em Friburgo (A VOZ DA SERRA, 2011b).
Nesse encontro, foram anunciados o aumento do limite individual das linhas de financiamento
do Investe Rio, de R$ 50 mil para R$ 100 mil, mais a obtenção de mais R$ 70 milhões do BNDES
para empréstimos às empresas da Região Serrana, afetadas severamente pelas chuvas — já que
antes estavam previstos pelo governo estadual apenas R$ 30 milhões (A VOZ DA SERRA, 2011b).
Empresários criavam, portanto, maneiras de se organizarem e de se engajarem em torno
dos seus interesses, a partir de redes e estratégias. Duas destas foram apresentadas na mesma
reunião, como a montagem de um escritório de projetos na região, para auxiliar a Prefeitura a
obter recursos governamentais e de organismos internacionais de financiamento, como o Banco
Mundial (ibidem); e a outra foi a criação de uma campanha pela cidade, a SOS Indústria de Nova
Friburgo, conforme foi apresentado por um jornal local:

Esta semana, a Firjan dá início ao “SOS Indústria de Nova Friburgo”, um balcão de


informações e apoio para as empresas industriais da região. A expertise da sede da Firjan
e da representação em Nova Friburgo está sendo empregada para auxiliar gratuitamente
as empresas industriais nas questões essenciais, como empréstimos bancários, regras e
procedimentos relativos à tributação (incluindo as novas medidas, como as prorrogações), e
os temas de infraestrutura (serviços da concessionária e de órgãos da prefeitura municipal)
(A VOZ DA SERRA, 2011b).

Os prejuízos econômicos da cidade, ocorridos a partir da catástrofe, foram considerados


problemas públicos desde o início e contaram com o papel de divulgação pela mídia local, como
é possível atestar com a seguinte matéria do jornal A Voz da Serra, de 01 de fevereiro de 2011,
periódico local de maior circulação na cidade:

A população de Nova Friburgo e região precisa estar ciente de que a economia regional
sofreu um grande abalo com a catástrofe ocorrida no último dia 12, devido a muitos
comerciantes, industriários e agricultores perderem se não tudo, grande parte de seus bens,
levando muitos destes a falência e deixando um déficit da capacidade ociosa (capacidade de
produção) da cidade, os problemas não acabaram por ai e as empresas, algumas de grande
porte, que ainda conseguiram se recuperar da tragédia e continuar funcionando se viram
obrigadas a diminuir seu quadro de funcionários, para corte de custos, o que levou a queda
da renda família, do poder de compra. Todos estes fatores juntos resultam em uma recessão
econômica (A VOZ DA SERRA, 2011c).

A publicização pela imprensa configurava, sobretudo, um apoio, já que constantemente esse


jornal divulgava os problemas, as dificuldades e os interesses dos empresários, durante o processo
de desastre na cidade. Fazia coro na pressão às instituições públicas, de modo que proporcionassem
as solicitações dos setores empresariais. Na mesma matéria citada anteriormente, o jornal chama
a responsabilidade dos governantes: “[...] mas não é só a população que deve estar ciente do
problema, mas também o governo que deve em medidas urgentes, disponibilizar a abertura de
crédito e a anistia (isenção) de impostos” (ibidem).

84
Maria Suellen Timoteo Correa

Dando prosseguimento à organização dos empresários, estes, a partir de uma situação de


prova de “experimentação” (CEFAÏ, 2011), apresentaram um comprometimento coletivo em
um segundo encontro, desta vez com cerca de cem empresários presentes no auditório da CDL,
com mais representações locais e de fora também (A VOZ DA SERRA, 2011c). Aberto pelo
presidente da Representação Regional da Firjan, o evento teve depoimentos de empresários de
diferentes setores, segundo o jornal, preocupados e tensos com a “situação de calamidade”, com as
“responsabilidades com empregados, clientes e fornecedores, além de diversos tipos de obrigações
e prejuízos” (ibidem).
A experimentação se deu com uma carta assinada pelos empresários, endereçada ao vice-
governador da época, Luiz Fernando Pezão, ao BNDES e à Investe Rio, com uma relação de
propostas para o setor industrial, juntamente com a solicitação de crédito, apresentadas como
essenciais pelos empresários. Em contrapartida, eles se comprometeram a manter 90% da folha de
empregados até o fim daquele ano (A VOZ DA SERRA, 2011d). A carta se inicia com o acionamento
da categoria “tragédia” e de seus efeitos:

Além da tragédia social bastante divulgada pela mídia, com grande quantidade de perdas
de vidas humanas, feridos, desalojados e desabrigados, Nova Friburgo teve sua economia
completamente abalada pela paralisação decorrente do desastre, seja na indústria, no
comércio e no turismo (A VOZ DA SERRA, 2011d).

Uma das propostas solicitadas pelos empresários da indústria era de que as linhas de crédito
focassem essencialmente capital de giro. Outras propostas incluíam a adesão de mais bancos
(além da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil) repassadores de crédito, o fim da licença
ambiental quando se tratasse de operações exclusivas de capital de giro, além da simplificação
das exigências de certidões, como as solicitadas para a emissão de cartão do BNDES (ibidem). As
respostas às exigências vieram em um relativo curto espaço de tempo.
O Banco do Brasil, em parceria com o BNDES, em reunião com mais de 200 empresários no
salão do Nova Friburgo Country Clube, anunciou a elevação do limite dos financiamentos de R$
1 milhão para R$ 2 milhões, pelo Programa Emergencial de Reconstrução do Estado do Rio de
Janeiro (BNDES PER Rio de Janeiro). Além disso, o banco anunciou o aumento do número de
funcionários para atendimento aos empresários que desejassem solicitar as linhas de crédito (A
VOZ DA SERRA, 2011e).
O BNDES anunciou logo depois a liberação de R$ 400 milhões para empresas de toda a região
atingida pelo desastre, até o final do ano de 2011, podendo cada empresa contar com R$ 4 milhões
em capital de giro puro ou capital de giro e investimentos fixos. O pagamento do empréstimo
poderia ser feito em até dez anos, com carência de três meses a 24 meses e com taxa final de juros
de 5,5 por cento ao ano e 0,45 por cento ao mês (A VOZ DA SERRA, 2011f).
Cabe destacar que todas as empresas da cidade seriam contempladas, já que mesmo as não
atingidas com o desastre poderiam requerer empréstimos naquelas condições, segundo o gerente
da Área de Operações Indiretas do BNDES: “Mesmo as empresas que não foram atingidas podem
obter empréstimo do PER. Basta que estejam situadas nos municípios onde foi decretado estado de
emergência ou calamidade”, revelou (ibidem). Em uma das reuniões na sede da CDL, empresários
contaram com a presença do vice-governador do estado e do subsecretário da Região Serrana, que
ofereceram mais garantias e metas de governo (A VOZ DA SERRA, 2011g).
A partir dessas situações, foi possível perceber que os prejuízos, enquanto problemas públicos
construídos pela mídia e pelos empresários, impulsionaram a sua organização e situações decorrentes
desse arranjo, que permitiram a obtenção de alguns interesses e uma resposta relativamente rápida

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Problemas Públicos, Engajamentos Políticos e Conflitos no
Desastre de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção

das instituições, diferente das respostas aos interesses dos moradores apresentados anteriormente.
Outro desenlace observado nesse contexto é que o desastre de 2011 em Nova Friburgo, além
de outras dimensões, constituiu uma oportunidade de relações e de trocas econômicas para
determinados atores locais (CORREA, 2020). Estes, em um primeiro momento, passaram por
algum prejuízo e perda, ou mesmo os que não foram diretamente afetados pelo evento, mostrando
a diversidade de interesses em jogo a partir de uma crise e como ela pode ser acionada.

A corrupção enquanto problema público


Com o desastre, Nova Friburgo recebeu montantes de verbas dos governos estadual e federal
para a reconstrução e mais recursos provenientes de doações efetuadas em contas correntes
“S.O.S.”, abertas pela Administração Pública Municipal. Alguns meses após as chuvas da catástrofe
de 2011, situações de controvérsia e a publicização de indícios de desvios dessas verbas destinadas
à reconstrução da cidade levaram à instauração de uma CPI — Comissão Parlamentar de Inquérito
— para a investigação dos usos das verbas para o desastre.
O início dessa movimentação se deu a partir de questionamentos de vereadores de oposição
ao governo — sobre contratos da Prefeitura com uma empresa — a partir de alguns processos
administrativos sem licitação, mas com amparo legal no Decreto Municipal 012/2011 e no artigo
24, inciso IV, da Lei Federal 8666/93, uma vez que, quando decretado o estado de calamidade,
não há obrigatoriedade de contratos feitos por meio de processo licitatório. Segundo a oposição,
não eram visualizados pela cidade os serviços prestados pela empresa, de acordo com os contratos.
Outras suspeitas foram se somando, com outros contratos e outras empresas, de modo que a
situação foi tomando uma proporção cada vez maior na cidade. Levantou-se também a suspeita do
Ministério Público Federal, conforme as palavras do Procurador da República, apresentadas pelo
Jornal Extra, de 06 de abril de 2011: “[...] são valores altos destinados para empresas que ninguém
na cidade viu trabalhando ou sequer ouviu falar. É estranho” (EXTRA, 2011).
Segundo denúncia de um dos vereadores requerentes da CPI, os contratos com indícios de
irregularidades somavam valores de mais de R$ 9 milhões. Algumas suspeitas estavam relacionadas
a exigências contidas na Lei 8666/93, como o prazo para a publicação do resumo de contratos
ou a divulgação de cálculos dos serviços prestados. O vereador passou a protocolar diversos
requerimentos de informação, os quais não eram respondidos. Então, passou a usar das medidas
legislativas, solicitando audiências sobre o desastre, sobre problemas nos bairros, e convidando a
população para essas reuniões.
Além disso, conforme as solicitações de informação eram ignoradas pela Prefeitura, seu mandato
passou a recolher assinaturas dos moradores para pressionar a Câmara, até que conseguiu apoio de
colegas para pedir a abertura de uma CPI (CORREA, 2020). Por falta de respostas aos requerimentos
de informação, a oposição, segundo o vereador, levou a discussão para as sessões na Câmara
Municipal, com a proposta da CPI. Essas sessões eram transmitidas por um canal de TV local, o que
levou parte da população ao conhecimento das situações apresentadas. Além de manifestarem as
denúncias em sessões, a oposição vinha fazendo solicitações de audiências sobre o desastre, com a
participação de moradores dos bairros atingidos pela cidade, como foi apresentado em sessão do
dia 28 de abril de 2011.
Somavam-se ao crescente conflito as inúmeras matérias de jornais apresentando reclamações da
população nos bairros sobre a falta de serviços prestados (como foi possível atestar em acervo do
jornal local). Muitos locais relatados nos contratos de serviços se encontravam da mesma maneira

86
Maria Suellen Timoteo Correa

de janeiro, sem nenhum tipo de limpeza ou serviço prestado meses depois, o que chamou a atenção
da população, dos vereadores requerentes da CPI e da mídia. Segundo as denúncias, os bairros e
os logradouros que foram citados na descrição dos serviços de alguns contratos nem sequer tinham
sido limpos. Em maio, os requerimentos de informação continuavam sendo encaminhados pela
oposição, além de apresentados em sessões da Câmara, sem respostas.
A proposta de CPI foi levada à votação mais de uma vez até ser aprovada. De acordo com
a Constituição Federal, a assinatura de 1/3 de membros do Legislativo garante a instalação
imediata da CPI. Porém, a proposta do vereador requerente, mesmo com mais de 1/3 de
assinaturas de vereadores e parecer favorável do procurador da Câmara, não havia sido aprovada.
Na tentativa ocorrida em maio, o vereador líder de governo emitiu um documento da CCJ,
Comissão de Constituição e Justiça, alegando que a Câmara deveria seguir seu Regimento Interno
(desconsiderando a Constituição Federal).
O Presidente da Câmara acatou a proposta do vereador da base governista e submeteu o
documento para votação em plenário (GAZETA DE DUAS BARRAS, 2011). A maioria dos vereadores
concordou com o direcionamento, o que causou indignação de moradores que acompanharam a
sessão e, consequentemente, o recolhimento de assinaturas pela cidade, postura utilizada como
estratégia política participativa. Paralelo a isso, a população manifestava sua insatisfação com a
falta de obras de recuperação através de diversas ações, como a manifestação ocorrida em abril,
do movimento Dignidade, Moradia e Trabalho, reivindicando obras de reconstrução e benefícios
sociais para a população atingida pela tragédia de janeiro. Três meses após a chuva, a população
ainda vê, e sente na pele, os efeitos danosos que causam desconforto e indignação a todos os
friburguenses (A VOZ DA SERRA, 2011h).
Nesse encontro, sindicalistas, líderes comunitários e moradores fizeram ato público para
lembrar os três meses do desastre, com discursos na Praça Dermeval Barbosa Moreira, no centro.
Na Praça Dermeval os discursos foram contundentes, pregando dignidade, moradia e trabalho
para as vítimas da tragédia climática. Os manifestantes cobraram aluguel social para todos os
desabrigados e desalojados, o início imediato da construção das casas populares, a recuperação
dos bairros atingidos pela tragédia, entre outros pleitos.
Em seguida, os participantes do ato público fizeram uma caminhada em direção à Prefeitura,
fechando parte da Avenida Alberto Braune, o que causou um grande engarrafamento no trânsito
central da cidade. Na Prefeitura, Dermeval Neto abriu as portas de seu gabinete para receber os
integrantes do Fórum Sindical e Popular de Nova Friburgo. Lideranças do ato público consideraram
a manifestação positiva, porque

[...] a população aceitou o convite e participou do dia de luta e porque as lideranças


puderam expor diretamente ao prefeito suas opiniões e angústias, sobretudo com a situação
das vítimas da tragédia, apontando também o abandono dos bairros e distritos (A VOZ DA
SERRA, 2011h).

Lideranças do ato disseram que “sempre no dia 12 de cada mês o ato público pacífico será repetido.
Não se trata de entrar em rota de colisão com o governo municipal, mas cobrar planejamento
e ação de reconstrução da cidade” (A VOZ DA SERRA, 2011i). Moradores se manifestavam de
maneiras diversas, como atestado em um dos diversos atos ocorridos em julho, nesse caso, no
bairro Conselheiro Paulino. Ainda segundo o jornal local:

Inconformados com um buraco junto à ponte de acesso ao bairro, moradores da comunidade


dos Maias, em Conselheiro Paulino, colocaram um boneco no local na esperança de chamar
a atenção das autoridades para o problema, que perdura há seis meses, desde a tragédia

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Problemas Públicos, Engajamentos Políticos e Conflitos no
Desastre de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção

climática de janeiro passado, sem que nenhuma providência tenha sido tomada. Alguns
deles chegam até a temer pela estrutura da ponte, podendo acontecer o pior. Pouco depois
da tragédia, um boneco já havia sido colocado em frente à indústria União Mundial, ocasião
em que alguns buracos na rua de acesso ao Morro dos Maias foram consertados. Porém o
buraco do lado oposto da ponte permaneceu sem conserto, o que tem prejudicado e muito
os transeuntes, entre eles pessoas idosas, com carrinho de bebê e crianças, sem contar os
veículos, principalmente os pesados, como os caminhões que passam naquele trecho em
direção à estrada para Riograndina, evitando passar pelo centro de Conselheiro Paulino (A
VOZ DA SERRA, 2011j).

Outro exemplo de situação que foi levando ao conhecimento suspeitas foi o conjunto de matérias
jornalísticas publicadas no jornal O Globo, sobretudo a apresentada (em um domingo) no dia
10 de julho, com informações referentes a atos de fiscalização, já em andamento, do Ministério
Público Federal e do Tribunal de Contas da União em toda a região serrana. Abordava a destinação
e utilização de R$ 10 milhões repassados pelo Governo Federal para Friburgo, em virtude da
decretação do estado de calamidade pública (G1, 2011b).
Dois dias depois, um mandado de busca e apreensão de objetos e documentos na Prefeitura
foi realizado pela Polícia Federal; no mesmo dia, um protesto marcado no centro da cidade
contou com a presença de moradores, representantes de sindicatos, Associações de Moradores
e estudantes, que cobravam por transparência e pediam a abertura da CPI. A manifestação foi
organizada pelo Fórum Sindical e Popular de Nova Friburgo, movimento iniciado logo após a
“tragédia”, contando com moradores, representantes de sindicatos de trabalhadores e de partidos
de esquerda. O protesto, entre outras questões, cobrava por transparência e pela resolução dos
problemas ocasionados pela catástrofe, conforme um representante explicou durante o protesto,
em uma reportagem (ÊXITO RIO, 2011).
O ato contou também com o Movimento Absurdo, grupo de maioria de estudantes, constituído
em maio de 2011, após o aumento das passagens de ônibus na cidade. Ainda que a motivação
desse movimento social tenha sido o valor dos bilhetes de ônibus, ela estava atrelada ao contexto
de crise do desastre, pois, como um dos fundadores mencionou, apesar de o movimento não ter
surgido “diretamente por causa da tragédia”, foi “uma consequência da tragédia” (CORREA, 2020,
p. 213), visto como um dos engajamentos dos efeitos das mudanças e dos problemas ligados ao
desastre em 2011.
Depois de requerimentos, adiamentos, abaixo-assinados, pressão de parte da população nas
sessões da Câmara e nas ruas, além da exposição por uma parte da mídia das investigações da
Justiça e da tentativa de abertura da Comissão, a proposta foi aprovada, em sessão da Câmara do
dia 14 de julho8, apelidada de “CPI da Tragédia”. Cabe ainda mencionar que, além do ato descrito,
diversas ações e movimentações de visibilidade política e de cobrança do poder público municipal
ocorreram pela cidade nesse período, como protestos em diversos locais e a ocupação de uma
praça do centro da cidade.
Além do Fórum Sindical e do Movimento Absurdo, outros movimentos também surgiram nesse
contexto, como o GAM — Grupo de Articulação dos Movimentos — e diversos outros que iniciaram
atuações políticas pela cidade (CORREA, 2020). Após a breve contextualização de situações em
torno do processo de abertura de uma CPI, cabe destacar o centro da questão: a construção de
uma arena pública de abertura de uma CPI, em torno da “tragédia”, a partir da construção de
moralidades públicas ligadas ao uso de verbas e à categoria “corrupção”, utilizada por atores
durante as situações analisadas.
8
Em novembro, durante os últimos trabalhos da Comissão, o prefeito em exercício foi afastado pela Justiça Federal,
juntamente com os secretários. A CPI teve seu relatório aprovado em dezembro de 2011.

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Maria Suellen Timoteo Correa

A partir de situações específicas, atreladas aos problemas nos bairros ocorridos com as chuvas
de janeiro de 2011, à falta de moradia, às disputas partidárias e políticas locais, entre outras, a
corrupção passou a permear as discussões pela cidade e se tornou um problema de caráter público,
levando à criação de uma arena pública em torno disso. Uma arena pública é uma “constelação
de cenas que se sobrepõem umas às outras, que abrem para bastidores de geometria variável, em
que os graus de publicidade são determinados pelos enquadramentos dos atores e cujos auditórios
mudam ao sabor das performances” (CEFAÏ, 2017, p. 136).
Portanto, uma arena pública, considerada “um emaranhado de dispositivos teatrais, em que
atores com competências distintas apresentam performances destinadas a públicos distintos”
(CEFAÏ, 2011, p. 91), comporta a produção, a circulação, a troca de argumentos e as cenas
públicas, onde ocorrem as situações de prova. A arena em torno da abertura da CPI da Tragédia,
desse modo, abriu “cenas nas quais o problema [foi] encenado e argumentado, diante dos mais
vastos auditórios” (ibidem, p. 133).
Exemplos dessas cenas podem ser apresentados por contextos de controvérsias dentro da
Câmara, de manifestações de moradores dentro desses espaços e nas ruas, e de entrevistas feitas
nos espaços midiáticos9. As representações midiáticas sobre as conjunturas de irregularidades
também expressam como o problema da corrupção foi produzido na cidade em 2011, atrelado ao
evento crítico. Apesar dos novos engajamentos e movimentos (além da manutenção de outros) a
partir do desastre, foram também evidenciados sentidos negativos da política e das instituições, ao
menos quando vinculados às chuvas e aos eventos de desastre.
É o que pode ser visto, por exemplo, em uma das notícias expondo o escândalo nas cidades da
Serra, cuja chamada era “Depois da tempestade, vem a corrupção”:

Figura 1 – Recorte da matéria de 10 de julho de 2011

Fonte: O Globo10 (2011).

9
Apresentadas de forma mais detalhada na tese (CORREA, 2020).
10
A matéria, inclusive, ganhou o Prêmio de Jornalismo Esso 2011. Disponível em: http://memoria.oglobo.globo.com/
jornalismo/premios-jornalisticos/depois-da-tempestade-vem-corrupccedilatildeo-8874247. Acesso em: 22 dez. 2019.

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Problemas Públicos, Engajamentos Políticos e Conflitos no
Desastre de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção

Em outra matéria, como a apresentada na imagem a seguir, podemos visualizar diversos elementos
mencionando a “corrupção” ligada a esses sentidos negativos da política, em termos como “enxurrada
de desvios”, “tragédia da corrupção” e na frase “em Friburgo, a ganância superou a solidariedade”.

Figura 2 – Foto de trecho de matéria jornalística,


postada em grupo de rede social em 6 de maio de 2012

Fonte: Movimento Absurdo11 (2012).

A partir desses exemplos de narrativas dos escândalos envolvendo verbas para a reconstrução no
pós-desastre, é possível confirmar que geralmente os casos de corrupção “são, assim, construídos
a partir da identificação, seleção e categorização de práticas tidas como impróprias à política e ao
Estado, isto é, da inobservância ou invasão de suas fronteiras por relações tidas como de outra
natureza” (BEZERRA, 2012, p. 66).
Entendendo corrupção de maneira polissêmica, em uma perspectiva científica que não a estuda
em si, e sim as categorias e as relações em seu entorno (HALLER; SHORE, 2005), é possível atestar
que esses usos e sentidos da palavra podem ser estratégias para interesses diversos. Isso engloba
acusação e recurso político de estigmatização do adversário (apesar de não ter sido visualizada
assim de forma frequente em campo, nos discursos da oposição legislativa antes da instauração
da CPI); mobilização para fins de audiência pela mídia, inclusive, cada vez mais nos chamados
“escândalos políticos”12 (THOMPSON, 2002) até para intensificar esse momento liminar do
desastre, em que são reforçados valores de pureza e de não fragmentação das regras ligadas a essas
fronteiras estatais, as quais, sabemos, não são fixas e se alteram com o tempo (BEZERRA, 2012).
Além disso, cabe lembrar que toda a mobilização popular com os engajamentos e as movimentações
da sociedade civil, a partir da organização de moradores e de movimentos sociais em Friburgo
11
Disponível em: https://www.facebook.com/eatbag/photos/a.180604258689415/298721433544363/?type=3&the
ater&ifg=1. Acesso em: 22 dez. 2019.
12
Verificou-se esta última tendência mais ligada aos canais midiáticos maiores, em detrimento do jornal local, que
publicou menos escândalos, considerando tratar de assuntos da cidade e comparando com as matérias publicadas
por jornais “de fora”.

90
Maria Suellen Timoteo Correa

ajudou no processo. Permitiu a cobrança e o reforço dessa delimitação do “que passa a ser Estado
e não estatal, entre o que lhe é próprio e inadequado e as modalidades de relações admitidas ou
não entre o que é tido como da dimensão do Estado e outras dimensões como a família, a política
ou o mercado” (BEZERRA, 2012, p. 65), no desastre de 2011.

Conclusões
Buscou-se, por meio dos problemas públicos construídos em um contexto de situação de crise,
apresentar arenas e situações diversas em torno da esfera pública de um desastre. Essas categorias
descortinam a complexidade das crises e suas implicações nos âmbitos político, social e simbólico.
Foi possível avistar também que algumas dessas implicações imbricam a manutenção de forças
desiguais entre agentes estatais, empresários e moradores que, juntamente com a imprensa e
mídia, constituíram os atores presentes nas arenas.
Toda essa lógica desigual, no entanto, foi confrontada com a organização e a mobilização dos
grupos desprovidos de atenção e de direitos que buscaram reelaborar seu cotidiano e participar de
arenas públicas em prol dos seus interesses. A participação via Associação de Moradores, movimentos
sociais e manifestações nas ruas demonstrou essa mobilização do campo político na crise. Portanto,
foi observado, pelos recursos de pesquisa utilizados, que, diante do evento crítico abordado,
ocorreram mobilizações em caráter participativo da sociedade civil no cotidiano por melhorias
de regiões em crise e tomada de decisões do poder legislativo, o que alterou significativamente
a esfera pública da cidade. Enchentes, tragédias, omissões, corrupção, denúncias, mobilização e
mudanças ficaram em evidência como eventos entrelaçados na cena pública de Nova Friburgo.

Bibliografia
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Problemas Públicos, Engajamentos Políticos e Conflitos no
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92
Maria Suellen Timoteo Correa

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EMPRESÁRIOS querem R$ 500 milhões em linhas de crédito com carência. A Voz da Serra,
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EMPRESÁRIOS unidos na Firjan assinam carta para Pezão. A Voz da Serra, Nova Friburgo, 01
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ESPERA Interminável. Editorial. A Voz da Serra, Nova Friburgo, 01 abr. 2011h.

FIRJAN: mais crédito para reconstruir empresas da serra. A Voz da Serra, Nova Friburgo, 25 jan.
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MPF abre inquérito sobre uso de verba federal em Nova Friburgo. Extra, Rio de Janeiro, 06 abr.
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NOVA Friburgo e região em recessão. A Voz da Serra, Nova Friburgo, 01 fev. 2011c. Disponível
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REUNIÃO sobre empréstimos do BNDES superlota auditório da CDL. A Voz da Serra, Nova
Friburgo, 07 fev. 2011f.

93
Problemas Públicos, Engajamentos Políticos e Conflitos no
Desastre de 2011 em Nova Friburgo/RJ: da moradia à corrupção

REUNIÃO na CDL prestigiada por Pezão e Affonso Monnerat. A Voz da Serra, Nova Friburgo, 14
fev. 2011g.

TOTAL de desabrigados e desalojados na Região Serrana é de quase 30 mil. O Globo, 27 jan.


2011. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/chuvas-no-rj/noticia/2011/01/total-de-
desabrigados-e-desalojados-na-regiao-serrana-e-de-quase-30-mil.html. Acesso em: 20 ago. 2020.

WERNECK, Antonio. Depois da tempestade, vem a corrupção. G1, Rio de Janeiro, 10 jul. 2011b, p. 16.

94
“Depois da Cataguases, o rio não dá
mais”: acidentes socioambientais na
bacia do Paraíba do Sul como dramas
sociais na pesca artesanal

Fernanda Pacheco da Silva Huguenin1


Silvia Alicia Martínez2

Preâmbulo
O presente artigo é resultante da apresentação intitulada “Rompimentos de barragens,
pescadores artesanais e dramas sociais: o desastre da Cataguases de papel no rio Paraíba do Sul
15 anos depois” no Grupo de Trabalho Antropologia Política das Situações de Crise, na ocasião da
XIII Reunião de Antropologia do Mercosul, ocorrida entre 22 a 25 de julho de 2019, na cidade
de Porto Alegre (RS). O trabalho é produto da pesquisa “Mulheres na Pesca: mapa de conflitos
socioambientais em municípios do Norte Fluminense e das baixadas litorâneas”, desenvolvida entre
os anos de 2018 e 2020 e coordenado pela professora Dra. Silvia Martinez no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
A pesquisa visou elaborar e disponibilizar uma cartografia dos conflitos socioambientais vividos no
cotidiano das mulheres das comunidades pesqueiras de 7 municípios, que compõem as mesorregiões
das baixadas litorâneas e do norte do estado do Rio de Janeiro: São Francisco de Itabapoana, Campos
dos Goytacazes, São João da Barra, Macaé, Quissamã, Cabo Frio e Arraial do Cabo. A referida pesquisa
foi desenvolvida de acordo com o seguinte parâmetro: “A realização do projeto Mulheres na Pesca
é uma medida compensatória pelo Termo de Ajustamento de Conduta de responsabilidade da
empresa Chevron, conduzido pelo Ministério Público Federal – MPF / RJ, com implementação do
Fundo Brasileiro para a Biodiversidade – Funbio”.

Introdução
O rio Paraíba do Sul nasce na Serra da Bocaina (SP) e percorre cerca de 1.120 km até a foz, em
Atafona, município de São João da Barra (RJ). Compõem a sua bacia hidrográfica os rios Jaguari,
Paraibuna, Pirapetinga, Pomba e Muriaé pela margem esquerda, além dos rios Una, Bananal, Piraí,
Piabanha e Dois Rios pela margem direita, abrangendo uma área de aproximadamente 55.500 km².
Numa altitude média de 370 metros, o Paraíba atravessa três estados brasileiros: Rio de Janeiro,
São Paulo e Minas Gerais. A área coberta pela bacia em cada estado é nas proporções de 20.900
1
Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília. E-mail: fernanda_huguenin@hotmail.com
2
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e professora na Universidade Estadual
do Norte Fluminense — Darcy Ribeiro. E-mail: silviam@uenf.br
“Depois da Cataguases, o rio não dá mais”: acidentes socioambientais
na bacia do Paraíba do Sul como dramas sociais na pesca artesanal

km², 13.900 km² e 20.700 km², respectivamente. Pela abrangência territorial no condomínio
desses estados, o Paraíba do Sul é um rio federal. Sua diversidade geográfica permite classificá-lo
ao longo de seu percurso em 4 categorias:
1. Curso Superior: com altitude de 572 metros, declividade média de 4,9 metros/km e extensão
de 317 km, este trecho está situado entre a nascente e a cidade de Guararema (SP).
2. Curso Médio Superior: compreende uma extensão de 208 km entre Guararema (SP) e
Cachoeira Paulista (SP), a uma altitude de 515 metros e declividade média de 0,19 metros/km.
3. Curso Médio Inferior: a uma altitude de 20 metros e declividade média de 1,0 metros/km,
este trecho compreende uma extensão de 480 km entre as cidades de Cachoeira Paulista (SP) e
São Fidélis (RJ).
4. Curso Inferior: numa declividade média de 0,22 metros/km, este trecho está situado entre
São Fidélis (RJ) e São João da Barra (RJ), com extensão de 95 km.
A bacia é responsável por gerar energia hidrelétrica e possui 4 reservatórios: Paraibuna,
Jaguari e Santa Branca, localizados no estado de São Paulo, e a Represa do Funil, situada entre os
municípios de Itatiaia (RJ), São José do Barreiro (SP) e Areias (SP). No estado do Rio de Janeiro,
o rio percorre 37 municípios e é um dos principais recursos hídricos de abastecimento para a
população fluminense, fornecendo água para mais de 14 milhões de habitantes.3
Na última década, o rio tem apresentado pouco volume de água, fato que pode ser explicado
não apenas pelos períodos de estiagem, mas também pelo desvio feito pela barragem de Santa
Cecília, em Barra do Piraí (RJ), onde ocorre a transposição de grande parte de suas águas para
o rio Guandu, com o objetivo de abastecer a região metropolitana do estado. Já o curso não
transposto é responsável pelo abastecimento urbano de outros municípios fluminenses, além do
fornecimento de água para irrigação de lavouras agrícolas e para a pecuária.
O Paraíba do Sul enfrenta, ainda, o desmatamento de áreas ribeirinhas e sua ocupação por
moradias irregulares, que despejam esgoto in natura. Além disso, a mineração para extração de
areia destinada à construção civil está relacionada à perda de solo e ao consequente abandono
das cavas ao término da atividade. Após a industrialização da região Sudeste, o Paraíba também
vem enfrentando graves e recorrentes acidentes ambientais, cuja poluição tem provocado sua
degradação em proporções cada vez mais elevadas, especialmente nos trechos que cruzam ou
tangenciam áreas urbanas (SOUZA JUNIOR., 2004). Ademais, toda a bacia sofre com o problema
do lançamento de esgoto doméstico sem tratamento e de resíduos sólidos, além de estudos recentes
apontarem para a presença de agrotóxicos na água.4
O objetivo precípuo deste trabalho é pensar acidentes ambientais que atingiram a bacia do
Paraíba do Sul como dramas sociais (TURNER, 1974; 1980), notadamente do ponto de vista de
pescadores e de pescadoras artesanais que fazem do rio não apenas o seu ambiente de trabalho,
como nele (re)produzem sua organização social e estilo de vida. Em termos metodológicos,
trata-se de uma pesquisa qualitativa, cujas técnicas utilizadas durante o trabalho de campo —
observação direta e entrevistas semiestruturadas — foram desempenhadas em locais, tempos e
com personagens distintos.
Primeiro, na localidade de Gargaú, comunidade de pesca situada na margem esquerda da foz do
rio, no município de São Francisco de Itabapoana. A pesquisa foi feita de 2003 a 2005 (HUGUENIN,
3
Para mais informações, ver a obra “Bacia do Rio Paraíba do Sul: livro da bacia”, produzido pela Agência
Nacional de Água (ANA). Disponível em: http://arquivos.ana.gov.br/institucional/sge/CEDOC/Catalogo/2001/
BaciadoRioParaibadoSul.pdf. Acesso em: 30 maio 2019.
4
Para mais informações, ver o resultado de pesquisa feita e divulgada no portal de notícias G1. Disponível em: https://
g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2019/04/26/g1-apura-presenca-de-agrotoxicos-na-agua-consumida-em-
50-municipios-do-interior-do-rio.ghtml. Acesso em: 07 jun. 2019.

96
Fernanda Pacheco da Silva Huguenin e Silvia Alicia Martínez

2006) e entrevistou pescadores artesanais e catadoras de caranguejos. Depois, passados cerca


de 15 anos, percorremos em trabalho de campo diferentes comunidades pesqueiras da bacia do
Paraíba em 2018, com destaque para as lagoas situadas no município de Campos dos Goytacazes
(Lagoa Feia; Lagoa de Cima; e Lagoa do Campelo) e localidades situadas no território urbano da
cidade, na margem do Curso Inferior do rio; entre elas, o Parque Coroa Grande, o Parque Prazeres
e o Parque Aldeia. Nas comunidades da área urbana, entrevistamos 10 pescadoras e 2 pescadores.
A distância espacial e temporal presente nos dados obtidos permitiu que pensássemos o drama
socioambiental vivido pelos trabalhadores e trabalhadoras da pesca artesanal da bacia do Paraíba
do Sul como um processo contínuo, que se desdobra em novos dramas e atualiza situações de
desigualdade e injustiça.

O drama dos acidentes socioambientais


A degradação do rio Paraíba do Sul pode ser percebida pela população de modo mais flagrante
em ocasiões de acidentes ambientais na bacia. A partir da década de 1980, houve 5 episódios de
grande notoriedade e repercussão:
1. 1982 — rompimento da barragem de lama tóxica da Cia. Paraibuna de Metais, no rio
Paraibuna;
2. 1984 — acidente rodoviário em que um caminhão despejou 30 mil litros de ácido sulfúrico
no rio Piabanha;
3. 1988 — vazamento de 150 litros de ascarel, contidos em 3.000 litros de água utilizada para
apagar o incêndio de transformadores na Thyssen Fundições;
4. 2003 — rompimento da barragem da indústria Cataguases de Papel, que despejou no rio
Pomba cerca de 1,2 bilhão de litros de rejeitos químicos, subprodutos da fabricação de papel;
5. 2008 — vazamento de um dique da empresa SERVATIS S.A., que lançou cerca de 8 mil litros
de um produto chamado Endosulfan no rio Pirapetinga5.
De acordo com a pesquisa de mestrado de Huguenin (2006), os rompimentos das barragens da
Cia. Paraibuna de Metais, em 1982, e da Cataguases de Papel, em 2003, foram fatos sociais totais,
visto que os despejos de efluentes industriais na bacia cancelaram a normalidade do fluxo ordinário
da vida, dando lugar às experiências dos dramas sociais, bem como de seus ritos e performances.
À luz da Antropologia Política de Victor Turner (1974; 1980), o drama social é estruturado por
um processo de rupturas, crises, reformas, reconciliações e rompimentos:

[...] o drama consiste em um modelo de quatro estágios, procedendo da ruptura de alguma


relação vista como crucial no grupo em questão, relação que lhe fornece não só o seu contexto
[setting], mas também muito de seus objetivos, através de uma fase de rápida ampliação
da crise na direção da mais importante linha dicotômica de clivagem do grupo, para a
aplicação de meios legais ou rituais de reparação ou reconciliação das partes em conflito,
no campo da ação. O estágio final é a expressão pública e simbólica da reconciliação ou do
rompimento irremediável (TURNER, 1974, p. 78-79).6

No caso dos acidentes da Paraibuna e da Cataguases, a poluição dos rios envolveu diferentes grupos
sociais em processos de alocação de responsabilidade, rituais de reparação e disputas pelos recursos

5
Para mais informações, ver o Relatório de visita e avaliação do acidente ambiental no rio Paraíba do Sul, trecho entre São
Fidélis e São João da Barra, 2008, produzido pela Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FIPERJ).
6
Tradução livre do prof. Dr. Arno Vogel.

97
“Depois da Cataguases, o rio não dá mais”: acidentes socioambientais
na bacia do Paraíba do Sul como dramas sociais na pesca artesanal

naturais. Assim, os rompimentos das barragens deram início a crises de natureza econômica, política e
socioambiental7, e não foram poucos os rituais de reparação na intenção de contê-las.
São exemplos de performances ritualísticas nos contextos dos acidentes o banho no rio seguido
da ingestão de um copo d’água, feito pelo então governador do estado do Rio de Janeiro, Chagas
Freitas, em 1982; a prisão preventiva de Felix Santana, empresário da Cataguases de Papel, em
20038. Ambos os episódios foram amplamente relatados e divulgados pelas mídias local e nacional.
Logo, segundo os ensinamentos de Turner (1980), a difusão de crises tende a ser contida por
certos mecanismos adaptativos e reformadores, informais e formais, que podem variar de conselhos
pessoais e arbitragens íntimas a mecanismos legais e desempenho de rituais públicos.
Todavia, problemas ambientais envolvendo recursos hídricos decorrem em consequências
diferenciadas para os mais diversos grupos sociais. Enquanto a população, em geral, sofre os efeitos
da interrupção da captação e do abastecimento de água, comunidades pesqueiras, por exemplo,
enfrentam também outros impactos, tais como grandes mortandades de peixes; proibição da
pesca; desconfiança dos consumidores e consequente queda nas vendas; perda da biodiversidade
e escassez do pescado.
A bacia hidrográfica do Paraíba do Sul possui, nos trechos Médio Inferior e Inferior, 5 colônias de
pescadores9. Nesse sentido, o trabalho de campo realizado de 2003 a 2005 em Gargaú (HUGUENIN,
2006) registrou inúmeros relatos de pescadores e catadoras acerca dos impactos provocados pelo
rompimento da barragem da Cataguases. É importante frisar que os registros foram subsequentes
ao acidente e, portanto, captaram percepções imediatas dos danos trazidos pela poluição da bacia,
conforme alguns excertos abaixo:

[...] a gente não podia botar nem a mão na água. A água tava contaminada mesmo [...].
Chegou a atingir essas águas. Levou mais ou menos vinte e oito dias essa água preta,
fedorenta, que as crianças não podia (sic) botar nem o pé; botava, dava coceira; fora o mau
cheiro de peixe depois morto” – Amarildo, pescador de água doce. O peixe – o desastre
foi muito grande! [...] Matou bastante peixe, bastante mesmo! Nós não podia (sic) andar
no mar, no rio, nos riacho que os peixe tava tudo tonto e a perda também foi bastante;
escasseou bastante peixe pra nós [...]. Devido o tanto que tinha de peixe no Paraíba. Acabou
bastante e a gente tinha mais facilidade de apanhar o peixe e agora tá mais difícil, tanto
no mar, quanto no rio, por conta desse desastre ecológico que deu; e pela fauna, também,
que houve o desastre pela fauna. Pela fauna que foi nos nossos mangues, nos nossos pastos,

7
O levantamento feito por Huguenin (2006) acerca das manchetes e reportagens da imprensa local descrevem um
cenário de crise a partir da alteração da rotina, na qual a falta de abastecimento de água nos anos dos desastres alarmou
a população fluminense, culminando em atitudes extremadas e emergenciais, tais como aberturas de poços artesianos
nas residências; inflação do preço da água mineral nas mercearias e nos supermercados; migração provisória de
famílias para outros municípios; interdição das praias da região; disputa da população pelo abastecimento realizado
a partir de carros-pipa enviados pelas prefeituras, inclusive com uso da força policial; cancelamento das aulas
em escolas, faculdades e universidades; suspensão das atividades em repartições públicas, consultórios médicos e
dentários; redução da jornada de clínicas e hospitais; restrições no funcionamento do comércio e dos expedientes
das indústrias; prejuízos nas atividades de agricultura e pecuária; além da realização de manifestações da sociedade
civil na arena pública, exigindo medidas das autoridades.
8
Segundo Huguenin (2010), a poluição do rio Paraíba do Sul causada pela Cataguases ocorreu no período designado
para a quaresma na tradição católica. Naquele ano, porém, o então bispo da região, Dom Roberto Guimarães, com
a devida autorização papal, permitiu que os fiéis consumissem carne vermelha durante os festejos pascais.
9
Colônia de pescadores Z-25, representando os pescadores dos municípios de Resende, Porto Real, Quatis, Barra
Mansa, Volta Redonda, Pinheiral, Barra do Piraí e Piraí; colônia de pescadores Z-21, representando os pescadores
de São Fidélis, Cambuci, Itaocara, Aperibé, Santo Antônio de Pádua e Cantagalo; colônia de pescadores Z-19, de
Campos dos Goytacazes; colônia de pescadores Z-02, de São João da Barra; e colônia de pescadores Z-01, de São
Francisco de Itabapoana.

98
Fernanda Pacheco da Silva Huguenin e Silvia Alicia Martínez

pela forma que aonde ela [a mancha] invadiu, ela destruiu bastante, também a terra. Tem
lugares que não produz mais. Produz não! Você vê que foi tão difícil, foi tão grave a coisa,
que até os gados, morreu. Bastante gado! Foi o bagre, robalo, tainha, tainhota, que morreu
mais. Também foi o piau. O piau era um peixe de muita facilidade a gente pescar ele. Hoje
em dia, você não acha piau fácil mais. Esses peixes são os peixes mais que respiram. De
vez em quando eles estão em cima d’água [...]. O bagre foi de um; foi o que mais morreu.
A gente olhava ele por esse Paraíba nosso, pelas beirada (sic): era de bater no barco, nas
bateras, nas embarcações, de tanto que tinha. A gente olhava; dava uma tristeza tão grande
no coração da gente, que a gente não conseguia nem olhar mais. Tinha um carro cheio
de peixe morto. A área aqui nossa, todinha, tanto como aqui, pra lá, as carroça (sic) da
prefeitura mandava apanhar; as carroça cheia” – Vanderlei, pescador de água salgada. [...]
“Têm muitas criança (sic) que estava na beira da maré; no rio, onde atingiu, ficou cheia de
mancha no corpo. As mães teve (sic) que correr, porque quando foi avisar [os veículos de
comunicação], as criança tava na água. Eu mesmo não botei o pé na água. Fiquei com medo
– Zenaide, catadora de caranguejo.

Diante dos dramas sociais que envolvem em seus processos alocações de responsabilidades,
rituais de reparação e disputas pelos recursos naturais, como afirmamos acima, é preciso
considerar que os atores envolvidos não gozam dos mesmos status social, prestígio e poder, e, à
luz da concepção de desigualdade ambiental, as assimetrias sociais são reproduzidas na relação
do ser humano com a natureza.
Dito de outro modo, a partilha dos impactos e dos prejuízos econômicos e políticos decorrentes
de problemas ambientais não é vivida de modo igualitário, mas é reproduzida em consonância
com as desigualdades e opressões de classe, raça e gênero encontradas na vida social, podendo
perdurar-se, expandir-se ou, ainda, adaptar-se a novos contornos.
Assim, revisitamos os problemas resultantes do acidente da Cataguases de Papel em comunidades
pesqueiras da bacia do rio Paraíba do Sul 15 anos mais tarde, a partir do projeto Mulheres na
Pesca. As motivações de pesquisa giraram em torno de questionamentos quanto à persistência
dos impactos ambientais e às possíveis mudanças provocadas na pesca e no modo de vida das
populações, em particular, a partir da percepção das trabalhadoras.

Conflitos socioambientais como dramas sociais


Conflitos socioambientais podem ser implícitos ou explícitos (SCOTTO, 1997); nos termos de
Acselrad (2004), referem-se às disputas e aos embates que envolvem diferentes grupos sociais com
modos próprios de apropriação, uso e significação do território e de seus recursos. Têm origem
quando pelo menos um dos grupos tem limitada sua (re)produção social, isto é, seu modo de vida
e até mesmo sua existência, em função dos impactos produzidos pelas práticas de outros grupos.
Por outro lado, no âmbito do grupo social de pescadores artesanais,

as construções sociais de gênero repercutem nos modos pelos quais mulheres e homens
participam nas atividades produtivas, vivenciam os riscos decorrentes de padrões
históricos e hegemônicos de desenvolvimento, assim como as repercussões das políticas de
enfrentamento dos riscos (MANESCHY, SIQUEIRA; ÁLVARES, 2012, p. 740).

Essas diferenças são perceptíveis, entre outros aspectos, no não reconhecimento da profissão,
na jornada laboral e na remuneração diferenciadas. No quadro geral de vulnerabilidade social
acentuada nas comunidades costeiras, Maneschy e Álvares (2010) destacam que a atuação feminina

99
“Depois da Cataguases, o rio não dá mais”: acidentes socioambientais
na bacia do Paraíba do Sul como dramas sociais na pesca artesanal

no setor se caracteriza pela flexibilidade, conjugada, muitas vezes, com precariedade, baixa renda
e exclusão de direitos profissionais e sociais. Isso leva, na maioria dos casos, à invisibilidade do
trabalho feminino (SANTOS, 2016), o que gera diversos conflitos socioambientais.
Os relatos obtidos na pesquisa de campo realizada no ano de 2018, nas comunidades pesqueiras
urbanas situadas no município de Campos dos Goytacazes, revelam como o rompimento da
barragem da Cataguases de Papel atravessa até o presente a memória e o cotidiano. Passadas
quase duas décadas do acidente, os depoimentos a seguir denunciam a perda da biodiversidade e
a permanência da situação de escassez dos recursos naturais:

Acabou tudo. Acabaram com a natureza. Saíram arrastando tudo e foi acabando tudo.
Aquele acidente da Cataguases, acabou as espécie acabou tudo. [...] Eu com o espinhel
dentro d’água, os homes da Defesa Civil veio de barco pra avisar a gente pra tirar o que
tivesse dentro d’água que vinha aquele veneno, aquele monte de peixe morrendo. Muita
coisa mesmo. Destruiu tudo – Armanda, pescadora (Parque Aldeia).

Depois da Cataguases o rio não dá mais não... meus irmão pegaram semana passada uma
tilapiazinha... achamos até bonito, porque não encontra. [...] Tá ruim pra jogar uma tarrafa.
Não tá pra peixe não. Tá muito ruim. Tem época que quando você quer comer um peixe
diferente, vai no mercado. Você vê um peixe diferente, você até leva o seu pra vender e
compra de outra pessoa ali pra comer algo diferente, de tão difícil que tá... a área nossa aqui
tá ruim – Valdiceia, limpadora e vendedora de peixes (Parque Prazeres).

Manjuba não sumiu porque ela é um peixe que vem do mar. Então, quando o rio Paraíba
há quatorze anos, quinze anos atrás, naquela água preta que caiu, então você vê que
via qualquer tipo de peixe morto aqui, mas a manjuba cê não via – Josenira, pescadora,
limpadora e vendedora (Coroa Grande).

Como já argumentamos anteriormente, dramas sociais são processos que “[...] envolvem,
necessariamente, a disputa, o conflito entre partes antagônicas, a alocação de responsabilidades,
bem como o conjunto de processos políticos, jurídico-legais e/ou rituais, que servem para
encaminhá-los e ajuizá-los” (MELLO; VOGEL, 2004, p. 168). Entretanto, a desigualdade social
dos atores e grupos envolvidos no caso em tela torna o antagonismo do conflito uma disputa
desbalanceada e decorre na experiência diferenciada dos impactos causados.
Assim, a população fluminense teve resgatados a captação e o abastecimento de água, após ritos
reformadores das autoridades amparadas em laudos técnicos de sistemas peritos10 que asseguraram
a boa qualidade da água. Já as comunidades pesqueiras permanecem até o presente numa situação
de liminaridade. A noção de liminaridade foi definida por Victor Turner (1974) como a fronteira
entre uma ordem social que não existe mais e um novo estado que não existe ainda.
A partir da concepção de ritual encontrada na obra de Arnold Van Gennep, Turner identifica os
momentos de liminaridade que circunscrevem os ritos de passagem como momentos transformadores
que balançam a sociedade em sua “estrutura de posições”. A passagem é experimentada através de
três fases distintas: separação, agregação e, entre ambas, o limem ou período liminar, em que não
se é isso nem aquilo e, no entanto, se é isso e aquilo.
Nesse momento “interestrutural”, em que as posições e as relações estão alteradas em seu estado e em
sua classificação, o indivíduo está invisível ou fora do mundo. Daí, por exemplo, o isolamento da noiva

10
A noção de “sistemas peritos”, proposta por Giddens (1991), é bastante proveitosa na interpretação de problemas
ambientais, pois ao especialista se empresta autoridade dentro de um universo abstrato que o diferencia do leigo.
Os sistemas peritos, portanto, são “[...] sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam
grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje” (GIDDENS, 1991, p. 35).

100
Fernanda Pacheco da Silva Huguenin e Silvia Alicia Martínez

antes do casamento e a proibição de que a vejam antes da cerimônia. Quando pensamos na situação
de liminaridade das comunidades pesqueiras localizadas no Curso Inferior do Paraíba, entendemos
que pescadoras e pescadores vivenciam de modo particular os impactos causados pelo rompimento da
barragem em 2003, assim como os que se seguiram, como o provocado em 2008 pela SERVATIS.
O fato é que a sociedade fluminense mantém, em condições de salubridade tecnicamente
aprovadas ou não, a utilização dos recursos hídricos do rio, seja para abastecimento doméstico e
industrial, seja para irrigação agropecuária ou até mesmo para o despejo de efluentes, resíduos
sólidos e esgoto. No entanto, as comunidades pesqueiras permaneceram vivendo às margens de
um rio sem peixes que, desde o processo de industrialização e urbanização da região Sudeste,
parece ter a degradação como destino.

As populações tradicionais de extrativistas e pequenos produtores que vivem nas regiões


de fronteira de expansão das atividades capitalistas sofrem, por sua vez, as pressões do
deslocamento compulsório de suas áreas de moradia e trabalho, perdendo o acesso à
terra, às matas e aos rios, sendo expulsas por grandes projetos hidrelétricos, viários ou
de exploração mineral, madeireira e agropecuária. Ou então têm as suas atividades de
sobrevivência ameaçadas pela definição pouco democrática e pouco participativa dos limites
e das condições de uso de unidades de conservação. Todas estas situações refletem um
mesmo processo: a enorme concentração de poder na apropriação dos recursos ambientais
que caracteriza a história do nosso país. Uma concentração de poder que tem se revelado
a principal responsável pelo que vem sendo chamado de injustiça ambiental. Esta injustiça
ambiental é o mecanismo pelo qual as sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e
social, concentram os recursos ambientais sob o poder dos grandes interesses econômicos
e destinam a maior carga de danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa
renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários,
às populações marginalizadas e vulneráveis (MMA, 2002).

Pescadoras e pescadores da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul são, desde os acidentes
ambientais já ocorridos até os que permanecem na iminência de acontecer, injustiçados ambientais.
São vulneráveis não apenas por sofrerem os efeitos dos impactos negativos; toda a população
é intimamente atingida pela escassez de peixes, o que abala diretamente o exercício de suas
atividades, o seu sustento e o de suas famílias, bem como o seu próprio modo de vida.
Problemas ambientais geram dramas sociais, que envolvem tanto a vivência quanto a
interpretação das rupturas, das crises, das reformas e das possibilidades de reconciliação ou
de rompimento. Esses elementos são experimentados de maneiras diferenciadas pelos diversos
grupos de uma sociedade, à luz das alteridades depositadas não apenas no plano psíquico, mas,
fundamentalmente, nas desigualdades sociais que, no Brasil, consubstanciam verdadeiros hiatos
entre classes, raças e gêneros, além de outros.

Considero, então, o drama social, como a matriz experiencial da qual os vários gêneros de
desempenho cultural, a começar pelos procedimentos rituais e jurídicos de regeneração e,
incluindo, eventualmente, a narrativa oral e literária, têm sido gerados. Rupturas, crises,
reintegrações e sucessões fornecem o conteúdo de tais gêneros posteriores, os procedimentos
que eles formam. Quando a sociedade se torna mais complexa, quando a divisão do trabalho
produz modalidades de ação sociocultural mais especializadas e profissionalizadas, os
modos de atribuição de significado aos dramas sociais tendem a multiplicar-se, mas o drama
permanece até o fim, simples e inextinguível, como um fato da experiência social de todos
e um nódulo significativo no ciclo do desenvolvimento de todos e quaisquer grupos que
aspiram à continuidade (TURNER, 1980, p. 154)11.

11
Tradução livre do prof. Dr. Arno Vogel.

101
“Depois da Cataguases, o rio não dá mais”: acidentes socioambientais
na bacia do Paraíba do Sul como dramas sociais na pesca artesanal

Sem dúvida, um drama social pode revelar muitas coisas à medida que envolve diferentes grupos
e indivíduos e, sobretudo, à medida que o tempo passa. Assim, depois de mais de quatro décadas
do acidente da Paraibuna de Metais e de quase duas décadas do acidente da Cataguases de Papel,
a oposição entre um passado de fartura e um presente de penúria e fracasso é um marco temporal
e substancial importante para as comunidades pesqueiras fluminenses.

Conclusões
Diversos argumentos foram apontados por Huguenin (2006) quanto à constituição de problemas
políticos diante de uma agenda de políticas públicas na área ambiental. Alguns exemplos são
a inexistência de um sistema nacional de emergências ambientais, com equipes preparadas e
disponíveis para imediata atuação em situações de tragédia; a falta de um sistema de informação
interestadual sobre potenciais riscos ambientais; e a ausência de mecanismos de auditoria
ambiental obrigatória, financiados pelas próprias indústrias potencialmente poluidoras e feita por
instituições independentes do Estado.
Todavia, como argumentam Haruf Espindola e Diego Guimarães (2019), as recentes tragédias
ocorridas em Mariana (MG), no ano de 2015, e em Brumadinho (MG), no ano de 2019, apontam
para a permanência e a persistência das inseguranças socioambientais e bioculturais brasileiras.
Embora os impactos provocados por acidentes ambientais sejam fundamentalmente negativos,
o provocado pela Cataguases de Papel, em 2003, contribuiu para a organização dos pescadores
em associações, com o objetivo de cobrar políticas públicas e indenizações pelos prejuízos
socioambientais sofridos.
A Associação de Pescadores Artesanais da Coroa Grande (APACG) e a Associação de Pescadores
Artesanais de Parque Prazeres (APAPP), fundadas logo depois do acidente, foram importantes
para promover a obtenção da documentação relativa à atividade de pesca, sobretudo, o Registro
Geral da Atividade Pesqueira (RGP), um dos documentos que garante o seguro-defeso, já que a
pesca em toda a bacia hidrográfica do Paraíba do Sul fica proibida anualmente de 1 de novembro
a 28 de fevereiro, em função do período da Piracema estabelecido para as espécies.12
Nas falas das entrevistadas, a criação das associações foi fundamental para a garantia de seu
reconhecimento como profissionais da pesca:

Depois dessa Cataguases, que caiu essa água preta no rio Paraíba, tudo piorou, né? Assim,
melhorou de um lado, que nós fomos reconhecidos. Hoje em dia nós somos cadastrados, nós
temos nossos direito (sic) que é de lei. Antigamente, nós não tinha (sic), antes de cair essa
água. Mas prejudicou muito, porque diminuiu o peixe, acabou. Deu uma boa diminuída o
que a gente ganhava há 15, 16 anos atrás, piorou bastante devido a essa água preta que caiu
no rio Paraíba. E até hoje, nós tivemos audiência e tudo, mas até agora nada e pelo jeito nós
não vamos ganhar nada, porque infelizmente nós somos uma classe zero pra muitas pessoas
– Adriana, pescadora da comunidade de Coroa Grande.

É... porque o que que aconteceu... nós era (sic) praticamente clandestina né... foi através da...
há males que vem para o bem... foi através dessa água preta que começou [a Associação] –
Josenira, pescadora da comunidade de Coroa Grande.

Quando foi em dois mil e quatro, quando teve o acidente com a Cataguases, que caiu veneno
no Rio. Aí, os pescadores não tiveram onde pescar, daí surgiu a associação, daí que começou.

12
Ver a norma nº 195, instituída pelo IBAMA, em 2008.

102
Fernanda Pacheco da Silva Huguenin e Silvia Alicia Martínez

Porque, até então, eles sempre foram pescador, mas não tinha essa informação. Tinha as
colônias, mas as colônias é distante, no caso nosso aqui, era São João da Barra e Farol,
só que eles não tinham esse conhecimento que os pescadores poderiam se legalizar, esses
documentos eles não tinham esse conhecimento. Aí,quando aconteceu esse acidente, foram
e veio a pessoa e procurou, daí que surgiu a Associação. Então, com isso, os pescadores
não sabiam da existência da documentação, como que eles poderiam fazer e aí foi criada a
associação por isso – Juliana, secretária da APAPP.

A invisibilidade, situação premente das mulheres envolvidas na cadeia produtiva da pesca


artesanal, pode ser pensada desde dentro, na divisão sexual do trabalho (ALENCAR, 1993;
KERGOAT, 2009) das comunidades, ou mesmo na visão externa dos pesquisadores (MOTA-
MAUÉS, 1999) e, sobretudo, nas políticas públicas de ordenamento pesqueiro que formulam as
documentações necessárias para o exercício profissional e a obtenção de direitos sociais, como os
previdenciários. Nesse sentido, é possível considerar que o acidente da Cataguases representou
uma certa visibilidade das mulheres trabalhadoras da pesca, bem como angariou o reconhecimento
profissional dos pescadores em geral do curso inferior do rio Paraíba do Sul.
De fato, o resultado processual de um drama social é sempre a mudança estrutural da sociedade.
“A fase final consiste ou na reintegração do grupo social perturbado [...] ou o reconhecimento
social da irreparável ruptura entre as partes em confronto, às vezes levando à sua separação
espacial” (TURNER, 1980, p. 147)13. No caso das pescadores e dos pescadores das comunidades
de Parque Prazeres, Parque Aldeia e Coroa Grande, sobretudo das mulheres, podemos afirmar
que o drama vivido os colocou numa posição ambígua, ou melhor, liminar. Por um lado, foram
finalmente reconhecidos pelo Estado, saindo da “clandestinidade” e tendo garantidos seus direitos
legais como profissionais da pesca. Por outro, enfrentam a escassez de um rio onde quase não há
o que pescar.
A investigação e análise de problemas socioambientais como dramas sociais incorre em exercícios
de reflexão que coloquem em perspectiva os mais diversos atores, sem deixar de considerar suas
posições de desigualdade formal, substancial ou moral. Assim, os acidentes ocorridos na bacia do
rio Paraíba do Sul trouxeram impactos diferenciados para pescadoras e pescadores artesanais, a
partir dos quais há inflexões no modo de vida da população pesqueira, seja pela alteração do rio
e de seus estoques, seja pelo reconhecimento profissional, sobretudo das mulheres, e acesso às
políticas públicas.
Todavia, embora os conflitos se acomodem com a passagem do tempo (e de ritos), certas
injustiças permanecem, e novos dramas sociais eclodem, razão pela qual a pesca artesanal tem
tido desde sempre contextos plurais de desigualdades socioambientais sobre as quais situações
de crise ensejam cismas, sejam políticos, sejam pela partilha de impactos passados, presentes e,
provavelmente, futuros.

Bibliografia
ACSELRAD, Henri. Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

ALENCAR, Edna. Gênero e trabalho nas sociedades pesqueiras. In: FURTADO, Lourdes
Gonçalves; LEITÃO, Wilma; MELO, Alex Fiúza de (Orgs.). Povos das águas: realidades e
perspectivas na Amazônia. Belém: MPEG, 1993. p. 63-81.
13
Tradução livre do prof. Dr. Arno Vogel.

103
SOUZA JR., Daniel de. A degradação da bacia do rio Paraíba do Sul. ENGEVISTA, v. 6, n. 3, p.
99-105, 2004.

ESPINDOLA, Haruf Salmen; GUIMARÃES, Diego Jeangregório Martins. História Ambiental dos
Desastres: uma agenda necessária [Debate]. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 11,
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GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: USP, 1991.

HUGUENIN, Fernanda Pacheco. Desastres ambientais no rio Paraíba do Sul do ponto de


vista dos pescadores de Gargaú: dramas e “ofensas” para uma Antropologia Política. 2006.
Dissertação (Mestrado em Políticas Sociais) — Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais
da Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes, 2006.

HUGUENIN, Fernanda Pacheco. O rio, o homem, o drama. Boletim do Observatório Ambiental


Alberto Ribeiro Lamego, Campos dos Goytacazes, v. 4 n. 1, p. 11-36, 2010.

KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA Helena et
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MANESCHY, Maria Cristina; SIQUEIRA, Deis; ÁLVARES, Maria Luiza Miranda. Pescadoras:
subordinação de gênero e empoderamento. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 3, p.
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MANESCHY, Maria Cristina; ÁLVARES, Maria Luiza Miranda. Mulheres na pesca: trabalho e lutas
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Disponível em: https://antigo.mma.gov.br/educacao-ambiental/pol%C3%ADtica-nacional-
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lan%C3%A7amento-da-rede-brasileira-de-justi%C3%A7a-ambiental.html. Acesso em: 8 abr. 2023.

MOTA-MAUÉS, Maria Angélica. Pesca de homem/Peixe de mulher(?): repensando gênero na literatura


acadêmica sobre comunidades pesqueiras no Brasil. Etnográfica, v. 3, n. 2, p. 377-399, 1999.

MELLO, Marco Antonio da Silva; VOGEL, Arno. Gente das areias: História, meio ambiente e
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SCOTTO, Gabriela. Conflitos ambientais no Brasil: natureza para todos ou somente para
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104
Fernanda Pacheco da Silva Huguenin e Silvia Alicia Martínez

TURNER, Victor. Dramas, fields and metaphors. In: TURNER, Victor. Dramas, fields and
metaphors: Symbolic action in human society. Londres: Cornell University Press, 1974.

TURNER, Victor. Social dramas and stories about them. Critical Inquiry. Autumn, v. 7, n. 1, 1980.

105
O rio Muriaé e a pesca com paris:
conflitos socioambientais
no Sudeste Brasileiro 1

Matheus Pereira de Andrade2


Carlos Abraão Moura Valpassos3

Introdução
Pretendemos apresentar aqui alguns dos resultados de uma pesquisa empreendida no Sudeste
Brasileiro, na cidade de Italva, no estado do Rio de Janeiro. Lá observamos conflitos ligados aos
pescadores, às pescarias e ao Estado — representado, no caso, pela atuação do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Buscamos compreender como os
diferentes atores acionaram moralidades, saberes e relações com o ambiente, tomando como foco
de nossa preocupação uma modalidade de pesca conhecida como paris.
As ações por parte do Estado atuam, regulam e impactam a vida cotidiana dos pescadores de
diversas maneiras. Suas instituições operam atribuindo legalidade ou ilegalidade às mais variadas
coisas e atos. Essas regulações podem ou não convergir com certas práticas dos pescadores, como
Valpassos (2021) demonstrou em relação aos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos e às obras
de engenharia sanitária na região norte do Estado do Rio de Janeiro. No mesmo sentido, Valpassos
e Colaço (2006) abordaram as divergências entre o IBAMA e os pescadores de Ponta Grossa, a
respeito do calendário pesqueiro e do período de defeso das espécies. Algumas técnicas de pesca
ficam, desse modo, na fronteira da ilegalidade, da tradição e da imoralidade, conforme apresentado
por Sautchuk (2007) a respeito da pesca de rede, e por Andrade (2021), sobre a pesca com paris,
na cidade de Italva.
Na primeira parte do texto, apresentamos alguns dos problemas ambientais e o conceito
de “dramas sociais” de Victor Turner (1957, 2008, 2015), a partir de um dos maiores crimes
ambientais ocorridos na bacia do rio Muriaé. Na segunda parte, falamos dos pescadores de Italva,
de moralidades e de saberes. Na terceira parte, discutimos as principais narrativas em torno do
pari, refletindo sobre a ilegalidade e o perigo, socialmente atribuídos a essa armadilha. Nosso
objetivo é entender como as regulações estatais operam e alteram as formas de mediação entre
pescadores, pescarias e ambiente.

1
Este trabalho contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ) por meio do Edital
27/2021 - Auxílio Básico à Pesquisa (APQ1).
2
Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense e mestrando em Antropologia Social pela
Universidade de Brasília (UnB). E-mail: andraddem@gmail.com
3
Doutor em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor do Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da
Universidade Estadual do Norte Fluminense — Darcy Ribeiro. E-mail: valpassos@gmail.com
O rio Muriaé e a pesca com paris: conflitos socioambientais no Sudeste Brasileiro

Trabalho de campo
A pesquisa com os pescadores do rio Muriaé foi iniciada ao final do ano de 2017, na cidade
de Italva. O trabalho de campo com os pescadores foi realizado por Matheus Pereira de Andrade
em duas localidades às margens do rio Muriaé: inicialmente, nos arredores da ponte principal da
cidade4; e, posteriormente, na Cachoeira do Caboclo5. Além disso, Andrade teve convívio diário, de
2019 a 2021, com um pescador esportivo da região. Para compreensão do drama social, também
foram realizadas entrevistas semiestruturadas, analisadas matérias jornalísticas, processos judiciais,
informações e memórias que corriam em grupos de Facebook dos italvenses que remetiam a
pescadores, pescarias e ao rio Muriaé.
Uma das questões em campo que quase sempre faziam a Andrade nos primeiros encontros dizia
respeito à sua filiação e aos seus laços familiares: quem é seu pai? Pelo fato de residir em Italva,
certas aberturas e conversas foram facilitadas por um pertencimento ao lugar e aos círculos de
sociabilidade com alguns tios e tias dele. Italva é uma dessas típicas cidades pequenas onde “todo
mundo conhece todo mundo”; dessa forma, saber de quem a pessoa descende costuma ser uma
questão relevante.
Apesar de nossas investigações e hipóteses caminharem num sentido, a pesquisa acabou nos
conduzindo para outras dimensões. Iniciamos pensando no impacto da mineração de bauxita no
rio Muriaé e terminamos na pesca com paris, uma armadilha tradicional da cidade. Por ser uma
pescaria ilegal, o perigo se tornou não só um conceito analítico, mas também uma questão presente
no trabalho de campo. Interlocutores faziam questão de sinalizar para “tomar cuidado” ao tratar
desse tema, pois envolvia “gente perigosa”.
Um dos principais parceiros de pesquisa, que esteve presente do início ao final, sempre disposto
a ajudar, foi Lucas. Andrade (2021) o conheceu a caminho da UFF, quando pegava a mesma
condução para Campos dos Goytacazes. Ele se entendia como pescador esportivo e desenhou,
logo numa primeira conversa, questões centrais sobre os pescadores daquela região. Uma amizade
surgiu, e, como faziam o mesmo trajeto para Campos semanalmente, ele se tornou um interlocutor
importante. Ele também apontou e apresentou outros interlocutores. Em 2019, Andrade passou a
trabalhar com Lucas no mesmo setor da Prefeitura Municipal de Italva, fortalecendo ainda mais
os laços. Carlos, Luciano e Cobra d’Água também foram centrais para ajudar a entender questões
que não estavam visíveis para os pesquisadores. A estes dois últimos, inclusive, dedicamos este
trabalho, in memoriam.
Eles foram personagens de grande importância para a pesquisa e se constituíram como
interlocutores privilegiados, com os quais estabeleceram laços de amizade. Isso, todavia, não
foi possível com a maior parte dos pescadores locais. Algumas dificuldades inerentes ao campo
dificultavam as conversas, sobretudo porque alguns pontos de pesca são “segredos”, compartilhados
apenas entre aqueles que os frequentam. Eles não devem ser conhecidos por “pessoas de fora”;
por isso, muito não nos foi permitido ver nem presenciar. Esta pesquisa, portanto, é fruto de uma
jornada etnográfica em um campo marcado por disputas e segredos que caracterizam a pesca
artesanal no rio Muriaé.

4
Neste ponto observamos principalmente os pescadores de anzol, já que eram grupos de amigos que frequentavam o
local, os quais variavam de (3 a 6 homens).
5
Observando outras pescarias com paris, tarrafas e redes.

107
Matheus Pereira de Andrade e Carlos Abraão Moura Valpassos

Drama social: o caso da bauxita


O Noroeste Fluminense faz divisa com os estados de Espírito Santo e Minas Gerais. Uma das
principais bacias dessa região, a do rio Muriaé, nasce em Miraí (MG). Esta cidade é marcada,
economicamente, pela forte extração de minérios, como a bauxita, matéria-prima para a produção
do alumínio. Atualmente, três mineradoras estão ativas na cidade; uma delas foi “fechada” por
conta do rompimento ocorrido no ano de 2007, quando dois milhões de metros cúbicos de lama
da extração de bauxita foram despejados no rio Muriaé. Isso paralisou o abastecimento de água e
as atividades pesqueiras em todas as cidades dependentes desse rio.
Essa foi uma das primeiras histórias que Lucas contou. Ele falava da lama que desceu o rio e
das mortandades de peixes, que foram frequentes durante todo o ano de 2007. Estávamos diante
de um dos maiores crimes ambientais ocorridos no rio Muriaé. É importante salientar que não
foi um acidente. A mineradora Rio Pomba Cataguases realizava as atividades de extração, na
zona rural de Miraí, em um lugar chamado Fazenda São Francisco. A bauxita, minério de cor
avermelhada, é matéria-prima para a produção de sulfato de alumínio no Brasil. O beneficiamento
da bauxita ocorria com a adição de soda cáustica, gerando rejeitos corrosivos e tóxicos, que são
depositados em barragens.
Em janeiro de 2007, as fortes chuvas de verão que atingiram a cidade mineira foram o estopim
para um problema iminente. Dois milhões de metros cúbicos de rejeitos foram despejados no rio
Muriaé. A lama que invadia os pastos e a agricultura local chegou também às casas dos moradores
de Miraí. Segundo O Globo (2015), quatro mil pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas.
Algumas prefeituras decretaram estado de emergência, portanto a crise estava posta. A mineradora
Rio Pomba Cataguases desestruturou milhares de vidas humanas, a fauna e a flora da região. As
ondas de lama causaram e potencializaram um grande processo erosivo nos rios Fubá e Muriaé.
Para caracterizar um drama social, segundo Turner (2015), é necessário que haja um rompimento
público de uma norma social. O rompimento da barragem caracterizou-se como um evento de
ordem pública, explicitando os riscos e as falhas do processo de mineração na região. Há, portanto,
uma transgressão de uma regra social de cooperação e de ameaça ao ordenamento social, sendo
compreendida no plano jurídico como um crime ambiental.
A lei de crimes ambientais, Lei 9605/98 de 12 de fevereiro de 1998, prevê, no artigo 54, que é
crime: “Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em
danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa
da flora”. A interrupção do abastecimento público de água agravou ainda mais a situação, atingindo
diversos grupos sociais. Na perspectiva dramática de Turner, podemos entender essa etapa do
drama social como a “escalada da crise”:

Após a ruptura de relações sociais formais, regidas pela norma, vem uma fase de crise
crescente, durante a qual – a não ser que a ruptura possa ser rapidamente isolada dentro
de uma área limitada de interação social – há uma tendência de que a ruptura se alargue,
ampliando-se até se tornar tão coextensiva quanto uma clivagem dominante no quadro
mais amplo das relações sociais relevantes ao qual as partes conflitantes ou antagônicas
pertencem (TURNER, 2015, p. 33).

Com o objetivo de frear o drama, os representantes do Ministério Público se reuniram com


os representantes da empresa Rio Pomba Cataguases, caracterizando parte da terceira fase do
drama social, quando acontecem as ações reparatórias que têm a intenção de limitar a irradiação
da crise. Com isso, foram tomadas medidas emergenciais para amenizar a situação: fornecimento

108
O rio Muriaé e a pesca com paris: conflitos socioambientais no Sudeste Brasileiro

de abastecimento de água potável às famílias atingidas, disponibilização de abrigo, alimentação


e vestuário para as pessoas afetadas, além da determinação de encerramento das atividades de
exploração e beneficiamento de bauxita na Fazenda São Francisco.
A fase final do drama social é marcada pelo retorno à estrutura ou pelo reconhecimento social de
que a ruptura entre as partes em conflito é irreparável. As marcas deixadas por tal ruptura causaram
alterações sistemáticas, potencializando o quadro de degradação e poluição do rio Muriaé. No caso em
questão, observamos que o drama social da bauxita, passados mais de dez anos, perdeu parte de seu
ímpeto e de sua presença nas questões do cotidiano. Isso, todavia, não significa que estejamos tratando
de um drama encerrado, pois as repercussões continuam a ser sentidas ainda hoje, de diferentes formas,
pelos diferentes grupos sociais atingidos no processo dramático.
Os pescadores de Italva sentiram, e ainda sentem, os impactos ambientais do despejamento
dos rejeitos de bauxita. Osmar foi um dos pescadores que desistiu da pesca temporariamente e
foi para a construção civil. Disse que naquele momento era impossível viver da pesca. Na época
do evento, ele estava recebendo o seguro-defeso, porém não soube o que fazer quando acabou o
período de recebimento. O rio estava “deserto”, e sua única solução foi fazer “bico” em obras da
região (ANDRADE, 2021, p. 34-35).
A empresa Rio Pomba Cataguases teve sua multa reduzida e parece que, para se desvincular do
acidente, mudou seu nome fantasia para Bauminas Mineração Ltda. O reconhecimento do cisma é
incontornável: os pescadores foram destituídos forçosamente da sua atividade e alguns passaram
fome. As fiscalizações das barragens são responsabilidade do Estado. Segundo um relatório
da Agência Nacional de Águas (ANA), em 2017, apenas 3% das barragens cadastradas foram
fiscalizadas, número semelhante à fiscalização de 2016. Neste mesmo relatório, das 723 barragens
de alto risco, 49 estavam com a estrutura comprometida.
Embora esses dados sejam de 2017, esse é um problema antigo que persiste. Em 2020, o cenário
era ainda pior: a Agência Nacional de Mineração operava com um terço da sua equipe e mal conseguia
analisar os relatórios técnicos (JUCÁ, 2020). A insegurança é uma das características que tem marcado
comunidades atingidas por barragens. A fiscalização precária põe em risco a vida de milhares de
pessoas, e tal situação nem sempre é tratada como crise do ponto de vista burocrático.
A violência ordinária se apresenta não apenas na situação vivida, da destruição da fauna e
da flora, mas também na demora em obter auxílios por parte do Estado. Os pescadores que não
puderam pescar, por exemplo, sentiram na pele, no seu dia a dia, a (in)ação do Estado e de suas
instituições. Ao mesmo tempo que o Estado dá garantia de leis e direitos, atua de forma ambígua,
num paradoxo da ilegibilidade (DAS, 2020).

Situação ambiental do Noroeste Fluminense


Antes de tratarmos especificamente das questões referentes aos pescadores e às pescarias,
convém situar o caso da bauxita em um contexto mais geral sobre o meio ambiente no Noroeste
Fluminense. Segundo Cruz (2003a), muitas cidades que agora estão nessa região buscaram a
independência de Campos dos Goytacazes (RJ) e do Norte Fluminense. Para entendermos melhor
a situação ambiental em que o município de Italva se encontra, convém retomar parte da história
do Norte e do Noroeste Fluminense.
De acordo com Arthur Soffiati (2018), os registros de exploração ambiental no Noroeste
Fluminense datam do século XVIII, quando os navegantes desciam pelo rio Muriaé da capitania de
Minas Gerais ou subiam de Campos dos Goytacazes em busca de madeiras nobres. A região também

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Matheus Pereira de Andrade e Carlos Abraão Moura Valpassos

teve a incursão de missionários capuchinhos e forças militares para controle das terras indígenas.
Além do extermínio dos povos indígenas, houve, segundo Malheiros (2008), um apagamento
também no registro oficial. As principais etnias que habitavam a Região Noroeste Fluminense
foram os Puri, Coroado e Carapós. Até 1850, eram numericamente expressivos, com cerca de dois
mil habitantes, mas, a partir de 1860, desapareceram dos documentos oficiais.
Do ponto de vista econômico, no século XVIII houve tentativas de plantação de cana com
algumas indústrias localizadas no Noroeste Fluminense. Todavia, não obteve o mesmo rendimento
das plantações de café, com alta produção a partir do século XIX (SOFFIATI, 2018). Segundo Cruz
(2003a), o município de Itaperuna foi considerado o maior produtor de café do Brasil em 1920, o que
intensificou a deterioração e o desmatamento do solo pelas práticas agrícolas impróprias. Contudo,
com a crise do café em 1920, a Região Noroeste Fluminense passou a estar vinculada à agropecuária.
Essa região, antes sob o diferenciador regional baseado no cultivo de café de alta produtividade,
foi reificada pela produção agropecuária marginalizada e por produtores agropecuários vinculados
a unidades de baixa produção, em processo de descapitalização e de baixo dinamismo tecnológico.
Nesse sentido, é possível perceber a Região Noroeste Fluminense por seu destaque em “atrasos
estruturais significativos que limitam a incrementação da atividade em que foi especializada [...]”
(SILVA, 1997, p. 57).
O desmatamento na região, segundo Soffiati (2018), alterou de 100% para 0.5% a cobertura
florestal. Os impactos econômicos no ambiente foram devastadores, culminando também na
desertificação das florestas às margens dos rios. No Noroeste Fluminense, encontramos três rios
principais: o Itabapoana, o Muriaé e o Pomba — todos impactados ao longo dos séculos pelas
atividades econômicas realizadas na região.
O nome Italva, (“ita”, em tupi, significa “pedra”; “alva”, no latim, “branca”), Pedra Branca,
justifica-se pelo fato de a cidade ter um dos maiores potenciais de pedras ornamentais do estado
do Rio de Janeiro. Além de mármore e granito, há extração de cimento e cal. Todavia, um dos seus
primeiros nomes, “Santo Antônio das Cachoeiras”, tinha uma relação com as formações caldosas
que se encontravam nesse território. O rio Muriaé é o único que corta a cidade. Com o avanço
urbano, o intenso assoreamento e o desmatamento, as nascentes, os córregos e outros afluentes
que jorravam no Muriaé foram secando ou diminuindo o volume, acarretando a vazão do rio.
Hoje em dia, em Italva, a extração mineral não tem a relevância que havia no século XX. A
agropecuária é a principal atividade econômica do município. Logo após a crise do café, o Noroeste
Fluminense entrou em crise, e lá instalou-se a indústria Leite Glória, nos anos de 1970. No ano
de 2002, Italva alcançou a maior produção mensal de leite (470.786 litros); em 2004, atingiu a
marca de 5.482.613 litros (ANDRADE, 2021). Atualmente não há mais nenhum posto da indústria
Leite Glória em Italva; a Bela Vita, indústria de laticínios, foi a que passou a ocupar seu lugar neste
setor de produção. A cidade também não atua mais de forma significativa no setor de extração
mineral. A Indústrias de Mármore Italva (IMIL), principal indústria da cidade, deu lugar a terrenos
destinados à construção de condomínios.
Segundo o censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano
de 2012, Italva apresentava cerca de 20 mil habitantes. Além do setor agropecuário na cidade, os
empregos na região dependem da Prefeitura e do setor comercial; a pescaria na cidade também
chama atenção pela variedade das espécies de peixes. Todavia, o que vem sendo relatado pelos
pescadores é uma intensa diminuição do número de espécies — e da quantidade de pescado. Há
uma série de explicações para esse evento: tanto ambientalistas quanto pescadores destacam os
problemas ambientais associados ao desmatamento e à redução da mata ciliar. Aqui também se
destaca o constante despejo de esgoto no rio; o assoreamento, derivado da derrubada das matas,

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O rio Muriaé e a pesca com paris: conflitos socioambientais no Sudeste Brasileiro

que é potencializado pela extração de areia; a eutrofização, crescimento de algas na superfície


do rio, que ocorre pela quantidade de nitrogênio na água, reduzindo a quantidade de oxigênio; a
introdução de espécies exóticas, como o bagre-africano; e a pesca predatória, atribuída à armadilha
dos paris e ao uso das redes com malhas menores que as permitidas.
O caso da bauxita liga-se, portanto, a um quadro histórico de degradação do solo, dos rios e de
toda uma forma de se relacionar com o ambiente, mudando e alterando radicalmente a paisagem.
As análises sobre meio ambiente têm gerado debates importantes, principalmente retomando
um viés decolonial. Malcom Ferdinand (2022), por exemplo, utiliza a noção de “ambientalismo”
para pensar o conjunto de movimentos que abordam o conflito ambiental sem trazer a dimensão
colonial, ou seja, sem questionar as dominações políticas ou hierárquicas dos meios de vida, sem
apresentar a dimensão da escravidão e da misoginia.
Nesse sentido, parte dessa ecologia tem mobilizado conceitos como “racismo ambiental”,
“colonialismo ambiental” e “imperialismo ecológico”. Isso traz a dimensão de que a poluição e
a degradação ambiental reforçam, assim como algumas políticas de preservação, a dominação
exercida sobre populações tradicionais, periféricas, entre outros grupos marginalizados
(FERDINAND, 2022).
Destacamos, ainda, que as perturbações sofridas pelo rio Muriaé estão intimamente associadas
a um processo de desenvolvimento econômico estabelecido no processo da colonização brasileira,
no qual destacou-se a monocultura e o sistema de plantation. Mesmo com as modernizações do
capitalismo, o ambiente continuou a ser representado como um recurso a ser explorado; assim,
a exploração econômica da região pode ser pensada como aquilo que Anna Tsing (2021, p. 179)
chamou de “projeto material de transformação da paisagem”.

A pesca e os conhecimentos naturalísticos


O rio Muriaé, segundo alguns pescadores, apresenta, durante o ano, dois períodos distintos: um
de águas claras e outro de águas sujas. Na pescaria com a rede, por exemplo, há equipamentos
apropriados para esses dois momentos. Na época das cheias, são utilizadas as chamadas redes de
canto, as quais variam de 5 a 7 metros. Nesse tipo de pescaria, o objetivo é expulsar os peixes do
fundo para fazê-los ir no sentido da rede. As redes menores são utilizadas nas águas claras, por
exemplo, para a pesca do cascudo. São redes pequenas que contém só o chumbo e não possuem
bóia — podem ser usadas também para pescar piau e devem ser utilizadas em lugares parados.
As águas claras vão desde o início de abril até o início de novembro. É em novembro que caem as
primeiras águas; as últimas acontecem em março e provocam uma cheia que é conhecida na região
como a enchente da goiaba — coincide com a época de goiabas, e, portanto, os rios ficam cheios dessa
fruta. Algumas espécies seguem um ciclo reprodutivo que coincide com o período da piracema, tal
como estipulado no calendário do IBAMA. Outras, como a tainha e o robalo, fogem dessa lógica.
O período de pescaria dessas espécies é tardio e acontece até o final de abril. Esses pescadores
relatam que as espécies podem fazer seu circuito nas margens ou no meio do rio. Eles também
observam o ponto onde esses peixes desovam: no encontro do rio com o mar. Para eles, os peixes
têm memória, pois muitos se lembram de seus caminhos e os percorrem anualmente. Muitos até
não avançam além de certos pontos, porque sabem da existência de armadilhas, então retornam.
No passado, dizem os pescadores, o circuito deles era maior.
Os pescadores sabem quando o robalo desova no mar, pois a carne do peixe fica com um sabor
mais acentuado de camarão. Também falam da carpa, que não desova no primeiro ano e seu

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Matheus Pereira de Andrade e Carlos Abraão Moura Valpassos

aparecimento no rio foi “recente”. Antigamente, quando não havia carpa, havia um peixe chamado
curimatã (Prochilodus lineatus). A população foi decrescendo devido à introdução de espécies
exóticas, à poluição e às pescas predatórias. Do mesmo modo, a canela-de-moça, a piabanha
e o peixe-rei foram espécies que tiveram sua população reduzida ou extinta. A piabanha ainda
é encontrada em pequena quantidade. Segundo os relatos que ouvimos, mesmo de anzol, era
possível capturar dezenas de piabanhas. Hoje em dia, porém, encontrar duas ou mais é algo raro.

Pesca com paris no rio Muriaé: ilegalidades e perigos


A Cachoeira do Caboclo, também conhecida como “Prainha”, está localizada a cerca de 6 km
do centro da cidade. É um ponto turístico e de pesca que abriga uma variedade de atividades
pesqueiras: com rede, tarrafa ou mesmo anzol. É um ponto onde pescadores esportivos descem de
caiaque, e famílias pescam de anzol. Além disso, o espaço é utilizado por banhistas. Recebe o nome
de “Prainha” justamente por ter uma faixa de areia que dá acesso ao rio.
Ouvimos de um pescador, enfurecido com a prática do pari, que quem acabava com o rio eram
os próprios pescadores. Ele dizia que um dos principais problemas da pesca em Italva era a falta
de consciência das pessoas que pescavam em períodos inapropriados e não se importavam com o
tamanho ou a quantidade dos peixes pescados. Outro pescador argumentou que não existe a pesca
predatória, mas sim o pescador predador, “sem consciência”.
Assim, a diminuição de peixes no rio é explicada por muitos deles a partir da pesca predatória e da
ausência do Estado, sem políticas públicas que se atentem à comunidade pesqueira e à preservação
do rio Muriaé. A falta de fiscalização abre margem para que crimes ambientais aconteçam, como
a pesca no período de piracema, utilizando paris.
Um dos paris que causava maior indignação ficava localizado justamente na “Prainha”. A questão
envolvia uma disputa de espaços. Um pescador relatou que:

Aquela casinha do meio, um cara tá morando naquela casinha. Eu sempre fiquei naquela
casinha pescando e tal, e ninguém pode ficar mais. Ele cercou o rio de um lado e outro lá.
Mesmo que fosse difícil de ver, é o comentário que está tendo aqui na rua, é que ele pegou
22 robalos numa noite, semana passada quando fez um frio bom aí. Um outro caso que ele
contou foi de seu amigo que teve uma armadilha dessas no passado e teve uma noite que
ele falou comigo que ele pegou 71 tainhas. Só tainha grande. Ele me deu duas. São pessoas
que acabam com o peixe do rio. Porque isso aí é proibido, mas o IBAMA vem, só futuca,
porque chega lá, ele fala que não é ele. Mas, hoje em dia tem o drone, né. Se o cara vier com
o dronezinho aqui, e o pessoal do IBAMA for lá, colocar para filmar. Mas eles não usam isso,
porque dizem que é caro. Além disso, no porto dos bichos, tem também. Entre Cardoso e
Porto dos Bichos, tem uma outra queda d’agua no Miguel Guimarães, lá tem também. Ali em
Cima no Cimento paraíso, é cercado também. São Pedro, e vai por aí afora. E nessa época
aí agora, tem uns parizinhos só para o robalo e a tainha. E é uma coisa tão interessante que
a água, ela passa, um palmo d›agua só por cima do negócio assim. Não é pressão de água
não. É só para ela passar. Isso direciona... porque o peixe ele desce. Porque vem toda essa
época agora, os robalos sobem, em dezembro. E essa época agora, eles descem, a tainha
também. E a época que eles descem, eu acho que é para desovar, certamente. A carpa desova
na subida. Já o robalo e a tainha, eles descem. Aí na hora que eles descem, pode ter 10cm
de água, ele passa. Mas na hora que ele passa naquela água do lado de cá d›água, tem uma
tela, ele cai dentro da tela. Essa é uma armadilha que eles têm. O presidente da colônia, no
cimento Paraíso, tem armadilha. Pelo menos tinha.

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O rio Muriaé e a pesca com paris: conflitos socioambientais no Sudeste Brasileiro

Na maioria dos relatos, a pesca com paris está associada ao perigo. Se o pescador em questão
não pode ir mais à casinha em que sempre foi para pescar, é porque, para além da disputa do
espaço, “os pescadores de paris são perigosos” e devem ser evitados. Os donos dos paris têm
vigias armados; por ser ilegal, tal prática acontece como uma atividade em segredo. Para outro
interlocutor, o pescador de paris é equiparado a um criminoso:

São pessoas que não tem cultura nenhuma. Gente do mal. Gente que não sabe de nada da
vida. E pega esse caminho aí, até chegar a hora que exauriu, não tem mais peixe. Aí vai ter
que roubar, vai vender droga, vai fazer isso e aquilo. E aquilozinho que se agarrava ali, ele
arrancou tanto que acabou a fonte, secou.

Pari vem do tupi, que significa “canal de tomar peixe”. A pesca com paris foi a mais presente nos
relatos que ouvimos. Quase todos os grupos de interlocutores mencionaram o pari em conversas
sucessivas. Vários pescadores na cidade se referem à tecnologia como pari, paris ou paritais. Muitos
remontam sua origem a práticas de pesca indígenas. O registro mais antigo que encontramos da
palavra “pari”, na literatura acadêmica, está relacionado a uma tecnologia de pesca dos guaranis,
que significa algo próximo de “cesto onde cai o peixe”.
Mesmo sendo uma atividade ilegal, essa armadilha movimenta um mercado de aluguéis de
pontos. Um informante relatou que o preço de um ponto de paris girava em torno de R$ 6.000, e,
segundo ele, o gerenciamento de grande parte desses aluguéis era feito pelo presidente da Colônia
de Pescadores, movimentando uma espécie de mercado paralelo e ilegal. Para Michel Misse (2007),
a criminalização de alguns mercados ilegais ocorre seletivamente, assim como também ocorre uma
incriminação preferencial. Por exemplo, há trocas que são mais socialmente toleradas que outras;
tolera-se a pirataria, mas condena-se o tráfico de crianças.
Para Misse (2007), o que principalmente caracteriza um mercado ilegal é a venda de mercadorias
ilícitas no mercado informal. Isso é observado no caso dos paris, em que as vendas e os aluguéis
ocorrem dessa forma. Segundo Mary Douglas (2012), não há pureza nem impureza absoluta, elas
só existem aos olhos de quem as vê. A sujeira, nesse sentido, ofende a ordem de quem a vê, que a
arbitra e a persegue. Portanto, não há nada de irracional em “evitar a sujeira”. O puro e o impuro
não são opostos em si, mas duas variedades do mesmo gênero. É com o puro que se faz o impuro.
Nesse sentido, entendemos que as técnicas de pesca no rio Muriaé, em Italva, podem ser divididas
entre aquelas dotadas de pureza e legalidade e aquelas que são impuras, dotadas de perigo e
ilegalidade. Há pescarias que podem ser executadas publicamente e as que são feitas em segredo.
Essas técnicas não apresentam uma qualidade inerente, mas estão conectadas com os sentidos e os
significados socialmente atribuídos. Os mercados ilegais, quando adquirem uma “territorialização”,
ganham uma dimensão política muito diferente da criminalidade pulverizada; se, por um lado,
gera estigmas, ela também “passa a constituir efetivamente novas redes de sociabilidade, que
emergem das relações de poder que demarcam esses territórios” (MISSE, 2007, p. 144).
De acordo com Douglas (2012), a noção de poluição serve como analogia para entender o
ordenamento social, de forma que a impureza é uma ofensa à ordem. Eliminando-a, não se faz
um gesto negativo, mas sim algo positivo, por organizar o meio. Os perigos são uma ameaça que
permite um homem exercer sobre outro a imposição. No caso dos pescadores que utilizam os paris,
é socialmente entendido que eles ameaçam o equilíbrio ecológico, ocasionando a extinção dos
peixes, pois “eles acabam com o rio”.
Além da ausência de fiscalização, a principal figura entre os pescadores que deveria representar
a ordem, o representante da colônia, comanda parte do mercado ilegal. Isso revela, ainda, mais
um caráter de ambivalência nessa prática. Mesmo que muitos pescadores publicamente condenem,

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Matheus Pereira de Andrade e Carlos Abraão Moura Valpassos

eles, vez ou outra, armam os paris. Um interlocutor, o mesmo que condenou os pescadores como
“sem cultura nenhuma”, relatou em baixo tom de voz:

Já cheguei a fazer pari... eu sempre pensei assim, na época, já existia pari, de muitos anos.
Aí antes de eu resolver montar esse pari, eu ficava pensando, a pessoa pega tanto peixe,
naquela época, e eu não pego quase nada. Passava um ano, passava dois anos, e quase nada.
Uma hora eu resolvi. Montei os pari... depois lá para o final, meu primo montou sociedade
comigo, depois ele me deu uma pernada lá, dizendo que não queria fazer mais e tal, e
vendeu as ferragens lá, e nem lembro se vi dinheiro daquilo. Aí chegou o ano seguinte, o
sacana estava lá, aí eu não quis mais voltar, eu fiquei na minha. Mas era um negócio que no
mínimo ele tinha que me pagar uma parte daquilo. É até um pontinho lá, de meio de rio,
nós compramos juntos, de uma outra pessoa. Nós chegamos montar três lá. De qualquer tipo
de armadilha eu sou contra. Mas como não existe uma fiscalização que vai realmente trazer
resultado... lá uma vez ou outra quando eu invoco assim, eu vou lá e armo unzinho. Se um
dia o IBAMA assim, me pegar, para você não vai ser surpresa, mas eu acho difícil.

A noção de perigo apareceu outra vez quando um ex-vereador, em 2017, propôs a criação do
chamado “Projeto SOS Rio Muriaé”. O projeto visava a criação de esgotos ecológicos, a limpeza do
rio Muriaé e a conservação dos corpos hídricos que afluem no rio. A ideia era aproveitar e acirrar a
fiscalização com a Guarda Ambiental, porém os relatos foram de que a Guarda era fragmentada e
conivente, ou mesmo envolvida com os paris, e “O IBAMA não vem aqui nem fudendo”. A utilização
da ideia de “envolvimento” nos fez lembrar da discussão em Monteiro, Muniz e Cecchetto (2018)
sobre a expressão “envolvido-com” o crime, analisada em outro contexto. Tal pensamento se fez
ainda mais confirmado quando o interlocutor afirmou que “é um tráfico dentro do rio”.
As primeiras reuniões aconteceram com o vereador junto com os pescadores. Porém, já na
segunda reunião, houve o alerta de um policial ambiental para ninguém ali ser identificado, ou
seja, não tirarem fotos, pois houve ameaças de morte ao vereador e a alguns pescadores que
estavam juntos. Mediante isso, alguns deles preferiram não mais se envolver no projeto, e outros
não se aproximaram por medo. Também foi relatado por um dos interlocutores que há um quadro
de corrupção com participação de membros da Secretaria de Meio Ambiente de Italva: “A polícia,
quando vem dar uma batida aqui, os funcionários da prefeitura avisam”. Esses funcionários eram
subornados com dinheiro ou pescado. O projeto não foi para frente.
Dessa forma, foi por meio de acusações, histórias e boatos que fomos entendendo como há essa
moralidade e a sensação de perigo em torno dos paris. Há uma economia que gira em torno desse
mercado ilegal, agregando e afastando indivíduos, estabelecendo redes de reciprocidade e trocas
entre os pescadores. A fiscalização é desenhada como inerte e pouco operacional.

A dimensão técnica dos paris


Os paris e toda a dinâmica que é acionada com eles apresentam uma tecnicidade própria
(SAUTCHUK, 2007). Não entendida apenas do ponto de vista instrumental, ela suscita formas de
relação com o ambiente, objetos e a vida de modo geral. Nesse sentido, é necessário pensarmos
que os paris, praticados na década de 1930, inclusive foram o que levou, nessa mesma década, à
criação do Paredão (ponto turístico destinado à instalação dessas armadilhas) e passaram a ser
combatidos, na década de 1980, com os batalhões florestais. Não nos parece, tampouco, que antes
de 1930 houvesse uma ausência do Estado, muito pelo contrário: o contexto histórico do Noroeste
Fluminense prova isso.

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O rio Muriaé e a pesca com paris: conflitos socioambientais no Sudeste Brasileiro

O que estava em jogo, na década de 1980, era uma nova forma de pensar o ambiente e rearranjar
espacialmente esses lugares através de uma lógica de conservação. A mudança de paradigma
buscou transformar, a partir de políticas ambientalistas, os processos sociotécnicos dos lugares
mediante uma noção da natureza. Ou seja, da perspectiva moral, há um ponto em que o pari passa
a ser visto como promotor de relações “predatórias”.

Figura 1 – Pari na Prainha

Foto: Matheus Andrade, 2020.

O que nos parece, do ponto de vista moral, distinguir o pari de outras técnicas é a “crise de
consciência”. Tal crise foi analisada por Sautchuk (2007) com o uso da rede e a percepção desta
prática por funcionários e laguistas; ele investigou como essa relação foi alterada a partir de um
termo de compromisso na Reserva Biológica do Lago Piratuba (RBLP), no Amapá. Embora os
contextos se distingam, interessa-nos como as mudanças a partir da influência do Estado alteraram
as formas como as pessoas se relacionam com o objeto e como há uma moralidade relativa às
técnicas entre os pescadores.
Do ponto de vista instrumental, segundo os relatos, os paris sofreram uma redução de tamanho,
tornando-se mais compactos e mais fáceis de esconder, ou de locomover. Embora a polícia ambiental
faça operações constantes, dificilmente encontram o pescador no ato, mas apreendem as armadilhas.
Assim, essa mudança na percepção técnica altera a forma como os pescadores se engajam através dos
paris. Surgem novos rearranjos de conexões e escalas ativadas pelo objeto (SAUTCHUK, 2007), bem
como reconfigurações das suas affordances ou potencialidades (GIBSON, 1979).

Conclusões
Buscamos apresentar um panorama das perturbações ecológicas sofridas pelo rio Muriaé ao
longo da história, articulando atores e eventos de diferentes escalas. Iniciamos falando sobre
dramas sociais para apresentar processos de conflitos da região. O caso da bauxita constitui-se
como um marco histórico dos problemas ambientais no Noroeste Fluminense. Percebemos que o
panorama ambiental nessa localidade está atrelado a uma forte dimensão colonialista, a qual já
levou ao extermínio as antigas populações tradicionais e ainda nos dias de hoje opera na promoção
da degradação do rio Muriaé.
Com alterações sistemáticas no ambiente local, os pescadores que hoje dependem do rio Muriaé
vivem em um contexto de avanço urbano às margens do rio, com o despejo sem tratamento de
esgotos que provém da cidade de Italva e, principalmente, das cidades vizinhas, como Muriaé (MG) e
Itaperuna (RJ). Além disso, há o despejo de outras substâncias, como o mercúrio e rejeitos industriais.
Os pescadores que dependem das pescarias reclamam da falta de peixe. Por vezes, falam dos novos
peixes que têm comido outros peixes, num processo de introdução de espécies exóticas.

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Matheus Pereira de Andrade e Carlos Abraão Moura Valpassos

Além disso, a poluição e a sujeira nos rios são pontos destacados, assim como o impacto das
estiagens cada vez mais frequentes e das cheias, que também têm-se constituído como fenômenos
mais comuns. No que concerne aos pescadores e às pescarias, há uma dimensão moral que tem
regulado as relações. Os paris ocupam um lugar central no que os pescadores classificam como
atividade “predatória”. Quem utiliza essas armadilhas está, nessa lógica, “acabando com o rio”.
Do ponto de vista normativo, as políticas estatais de criminalização dessa armadilha foram
formuladas na década de 1980. O ato de utilizar o pari passou então a acontecer em segredo,
sofrendo rearranjo em suas conexões e configurações no espaço. O paradoxo da inteligibilidade do
Estado (DAS, 2020) aparece aqui a partir de sua fiscalização inerte e inoperante no que se refere
às atividades das mineradoras, ao mesmo tempo em que há um zelo ideal na busca de políticas
de conservação ambiental. Sabemos que a fiscalização de mineradoras é ideal como prevenção de
riscos e para a conservação ambiental.
Os pescadores possuem uma representação dos paris associada à sua não conformidade com a
legislação ambiental. A pesca praticada com o auxílio da técnica dos paris é, nesse sentido, percebida
como predatória, ou seja, danosa ao meio ambiente. Todavia, os impactos causados pela utilização
dos paris parecem ínfimos se comparados aos danos proporcionados pela atividade de mineração
e pelos processos de urbanização da região. Desse modo, quando refletimos sobre o rio Muriaé,
apresentamos um processo histórico de perturbações ecológicas e, ao mesmo tempo, destacamos
as diferentes formas e perspectivas que marcam a relação — e a capacidade de perturbação — de
distintos grupos sociais com o rio.

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Matheus Pereira de Andrade e Carlos Abraão Moura Valpassos

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Tipologia Open Sans (Ficha técnica)
Skia (Capa e Miolo)
Charter (Miolo)

Formato 21 x 29,7 cm

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