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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

ARTHUR EBERT DANTAS DOS SANTOS

Entre Canhões, Cruzes e Palavras:


representações da Guerra de Canudos na imprensa do Rio de Janeiro (1896-
1897)

MOSSORÓ
2021
ARTHUR EBERT DANTAS DOS SANTOS

Entre Canhões, Cruzes e Palavras:


representações da Guerra de Canudos na imprensa do Rio de Janeiro (1896-
1897)

Monografia apresentada à Universidade do


Estado do Rio Grande do Norte – UERN - como
requisito obrigatório para obtenção do título de
Licenciado em História.

ORIENTADOR: Dr. Marcílio Lima Falcão

MOSSORÓ
2021
Universidade do Estado do RioGrande do Norte.

S237e Santos, Arthur Ebert Dantas dos


Entre Canhões, Cruzes e Palavras: representações da
Guerra de Canudos na imprensa do Rio de Janeiro (1896-
1897). / Arthur Ebert Dantas dos Santos. - Mossoró, 2021.
62p.

Orientador(a): Prof. Dr. Marcílio Lima Falcão.


Monografia (Graduação em História). Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte.

1. Imprensa. 2. Representações. 3. Canudos. I. Falcão,


Marcílio Lima. II. Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte. III. Título.
À Ciência brasileira e todos aqueles que a defendem...
AGRADECIMENTOS

A circunstância da conclusão de uma pesquisa monográfica é sempre


momento de avaliar todo o conhecimento construído durante a graduação e,
mais do que isso, agradecer por todos os vínculos criados, fossem estes bons
ou maus, afinal, nos trouxeram até aqui. Antes de tudo, sinto dizer que não
conseguirei creditar ou agradecer a todos aqueles que participaram e
influenciaram, mesmo que indiretamente, do processo tortuoso, porém
gratificante, que foi a escrita dessa monografia.
Primeiramente, gostaria de agradecer a minha família, principalmente
meus pais e meus avós, por todo apoio que me deram quando escolhi a História
como área de formação, além da preocupação com meu bem-estar durante o
curso também me lembrarei de todas as ações que vocês fizeram para que eu
conseguisse completar minha formação. À minha companheira Maria Nicolly,
obrigado por todo o suporte durante os dias em que acreditei que não
completaria esta árdua tarefa. Também gostaria de agradecer aos meus amigos,
desde os “pré faculdade” até os que adquiri nessa caminhada pela universidade,
saibam que sem a ajuda de vocês eu não teria conseguido. Assim, expresso aqui
meu carinho, respeito e admiração por: Jackson Fernandes, Lara Raquel, Maria
Clara, Maria Rita, Maykon Douglas, Nicolas Samuel, e Vivianne Melo. Vocês
foram um ponto de paz nas mesinhas do “CC”, rodas de conversa no CA, DCE
e nos surtos “pré seminário”. E particularmente agradeço e expresso minha
imensa gratidão e admiração a Rodrigo Rui, amigo que o curso me deu antes
mesmo de se iniciarem as aulas, colega nos apertos que os Congressos em
outros Estados faziam a gente passar, e camarada de luta no ME, que me ajudou
diretamente nesta pesquisa.
Não poderia deixar de agradecer aos mestres que me conduziram nesta
“jornada”. Durante o curso de licenciatura em História da UERN – Campus
Central, muitas foram as disciplinas difíceis que tive que encarar, porém, em
algumas pude contar com o ótima condução e planejamento por parte desses
mestres. Assim, agradeço a todo o corpo docente do Departamento de História
da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, em especial a Leonardo
Rolim, Lindercy Lins e Fabiano Mendes, estes que em diversas disciplinas
conseguiram demonstrar o motivo da minha escolha pelo curso de História.
Agradeço também a Aryana Lima por todos os ensinamentos passados durante
minha trajetória no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
(PIBID). Este programa junto com a Residência Pedagógica (RESPED) foram de
suma importância para minha permanência na Universidade através das bolsas
oferecidas, pelas quais custeei grande parte dos meus gastos como
alimentação, xerox, compra de livros e até mesmo passagens para Congressos
fora do RN.
E por último, e não menos importante, gostaria de agradecer
imensamente ao meu orientador Marcílio Lima Falcão por toda a paciência e
conhecimento repassado durante esse quase um ano de conversas e
orientações. Seus conselhos foram extremamente importantes para a produção
desta monografia, e também do futuro projeto de pesquisa para o mestrado,
assim como suas sugestões de leituras. Obrigado professor, não poderia ter
encontrado orientador melhor para esse trabalho.
Concluindo, todos os aqui citados foram importantes para esta pesquisa.
Deixo aqui os meus mais sinceros agradecimentos.
RESUMO

Este seguinte trabalho de monografia tem como objetivo contribuir para


as discussões do campo da História Cultural, mais especificamente, através da
análise de representações sobre grupos seletos do interior do sertão nordestino
criadas a partir do discurso midiático veiculado pela Imprensa Carioca durante a
Guerra de Canudos. Ao desencadear-se, a Guerra de Canudos (1896-1897)
promoveu, nos rincões do Estado da Bahia, um dos maiores conflitos já vistos
na História do Brasil. Entretanto, além do que se é reproduzido atualmente
através da Historiografia dedicada ao assunto, é possível identificar a “presença”
de um indivíduo distinto no campo de batalha do território de Belo Monte, um
indivíduo que teria sido “criado”, ou implantado, pela Imprensa da época dentro
dos domínios de Canudos, o “Fanático”, fosse monarquista ou religioso. Desta
forma, pretendemos, através desta pesquisa, analisar o discurso da Imprensa
carioca referente a Guerra de Canudos e os “canudenses”, representados como
“Fanáticos”, buscando entender de que forma foram produzidas essas
representações, e também problematizar a conjuntura sócio-política da
sociedade brasileira que levou os periódicos daquela época a criarem esse
suposto integrante das forças conselheiristas. Utilizaremos como fontes
principais nesta pesquisa matérias e notícias de jornais do Rio de Janeiro, além
de também nos apoiarmos na Historiografia sobre o Arraial de Canudos.

Palavras-chave: Representações. Canudos. Imprensa.


ABSTRACT

This following monograph work aims to contribute to discussions in the field of


Cultural History, more specifically, through the analysis of representations about
select groups from the interior of the northeastern hinterland created from the
media discourse conveyed by the Imprensa Carioca during the Canudos War.
When it started, the Canudos War (1896-1897) promoted, in the corners of the
State of Bahia, one of the biggest conflicts ever seen in the history of Brazil.
However, in addition to what is currently reproduced through the Historiography
dedicated to the subject, it is possible to identify the "presence" of a distinct
individual on the battlefield in the territory of Belo Monte, an individual who would
have been "created" or implemented by the Press of the time within the domains
of Canudos, the “Fanatico”, whether monarchist or religious. Thus, we intend,
through this research, to analyze the discourse of the Rio press regarding the
War of Canudos and the "canudenses", represented as "Fanatics", seeking to
understand how these representations were produced, and also to problematize
the socio-political situation of Brazilian society that led the periodicals of that time
to create this supposed member of the councilor forces. We will use as main
sources in this research articles and news from newspapers in Rio de Janeiro,
as well as relying on the Historiography on Arraial de Canudos.

Keywords: Representations. Canudos. Press.


ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Gazeta da Tarde, 29 de janeiro de 1897, p.1……………………………56


SUMÁRIO

1 A PRIMEIRA REPÚBLICA E A IMPRENSA...................................................10


1.1 O MONARQUISMO CAI, O REPUBLICANISMO ASCENDE........................10
1.2 EM NOME DO PROGRESSO, ABAIXO A DESORDEM...............................18
1.2.1 O PAIZ E A GAZETA DA TARDE...............................................................23
2 CANUDOS NA HISTÓRIA E NA IMPRENSA DO RIO DE JANEIRO...........26
2.1 A GUERRA DO FIM DO MUNDO................................................................26
2.1.2 O SERTANEJO É ANTES DE TUDO UM FORTE...................................31
2.2 A GUERRA DE TODO MUNDO..................................................................38
3 REPRESENTANDO O INIMIGO....................................................................43
3.1 A CONSTRUÇÃO DO INIMIGO: BÁRBAROS E MONARQUISTAS...........43
3.2 A CONSTRUÇÃO DO INIMIGO: MÍSTICOS E FANÁTICOS......................51
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS, OU CANUDOS NÃO SE RENDEU..................58
5 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................60
10

1 A PRIMEIRA REPÚBLICA E A IMPRENSA

Os primeiros anos da República não foram fáceis. Logo no início do governo


republicano, no Norte do País, uma comunidade formada por homens e mulheres que, em
sua maioria, labutavam nas atividades agropastoris chamou a atenção das elites locais e
ganhou espaço na imprensa. Liderados por Antônio Conselheiro, líder carismático, os
canudenses organizaram uma estrutura de base comunitária às margens do rio Vaza
Barris. Não demorou muito para que os discursos sobre o conselheiro e seus agregados
ocupassem as páginas dos jornais do Rio de Janeiro e se construísse e difundissem
representações sobre os “canudenses” como fanáticos religiosos. Assim, a partir do papel
da imprensa do Rio de Janeiro, o presente capítulo buscou entender, a partir da dicotomia
dos pares progresso/sociedade e atraso/barbárie, de que forma se criou e se propagou a
imagem do Arraial de Canudos, e seus moradores, como antro da profanação habitado
por fanáticos, ou bárbaros.

1.1 O MONARQUISMO CAI, O REPUBLICANISMO ASCENDE

Argumentavam ainda que a república era a vocação natural dos países


americanos: “Somos da América e queremos ser americanos”. A
monarquia, nesta perspectiva, seria característica da Europa e o Brasil
acabara se isolando do resto do continente[...]. (DOLHNIKOFF, 2017,
p. 162)

No dia quinze de novembro do ano de 1889, é proclamada a República no Brasil.


Com seu lema “Ordem e Progresso” estampados na bandeira brasileira, essa forma de
governo inspirada nos ideais dos iluministas europeus, como Jean-Jacques Rousseau, veio
para destituir um Imperador e colocar a baixo o governo que seguia uma espécie de status
quo desde 1822, quando foi declarada a independência das terras portuguesas tupiniquins.
Diante disso, inúmeros questionamentos podem surgir ao questionarmos o lema da
República brasileira. Progredir de quê e para onde? Em que aspecto social, cultural,
político e até mesmo econômico, a República poderia ser melhor do que a Monarquia? O
povo brasileiro, de fato, apoiava esta mudança?
A Monarquia que desembarcou no Brasil ainda no ano de 1500 trouxe consigo as
mais tradicionais características que só o pré-Absolutismo do fim do século XV e início
do século XVI poderiam produzir. Se conformar com as decisões de apenas uma pessoas,
o rei, o enriquecimento de um seleto grupo de pessoas, os burgueses, a não decisão de
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pontos importantes para a sociedade através de eleições, entre outras coisas. Entretanto,
como já é sabido, a Monarquia perdurou nessas bandas por quase quatrocentos anos. Se
sustentando em uma economia cafeeira e uma dinâmica de tráfico negreiro que já
agonizava com as investidas da potência marítima inglesa, a monarquia viu seu apoio ruir
de vez em seus últimos anos de vida quando sua princesa, Isabel Leopoldina, assinou a
Lei Áurea, libertando assim todos os escravizados de seus trabalhos desgastantes nos
engenhos espalhados por todo o país. Esta que deveria ser uma decisão favorável para a
família imperial, acabou sendo sua guilhotina, em alusão à revolução francesa. Foi aí
onde os senhores de engenho abandonaram de vez Dom Pedro II, e os republicanos, que
já se movimentavam a algum tempo, viram seu apoio aumentar de maneira cavalar.
Afinal, o que poderia ser pior do que um governo onde seus mandatários acabaram com
a “força de trabalho” que fazia a manivela do moedor de cana, e da economia, girar?
É então que chegada a hora, o Imperador não conseguiu manter o exército ao seu
lado. Este que por sua vez, já abalado e meio desacreditado desde a Guerra do Paraguai,
apoiou o “golpe” dos republicanos, como podemos ver na citação de Antônio Prado sobre
as movimentações no Rio de Janeiro:

Terminada a Guerra do Paraguai em 1870, muitos oficiais do Exército


dela retornaram com uma perspectiva nova. Em primeiro lugar, seu
protagonismo no desfecho da guerra, [...], possibilitou que os militares
reivindicassem o reconhecimento de sua importância. [...] Diante de
uma elite que considerava corrupta e incompetente, se identificando
como os verdadeiros e únicos defensores do interesse nacional, esses
oficiais entendiam que aos militares cabia intervir politicamente para
salvar o país. (DOLHNIKOFF, 2017, p. 165-166)

O movimento militar de 15 de novembro transformou-se em uma


verdadeira revolução política, desde que conseguiu a deposição do
governo legalmente constituído, substituindo-o por um governo
provisório, apoiado pelo exército e pela armada, e mais ou menos
aclamado pela população. (Campos Porto, 1990, p. 270)

Destas citações podemos extrair duas conclusões, a primeira é que o exército já


teria criado o raciocínio de que eles deveriam intervir militarmente para “salvar” o Brasil
de quaisquer que fossem seus inimigos, e a segunda é que os ares encontrados nas ruas
do Rio de Janeiro eram de uma “revolução política”, e não de uma simples troca de
governo. Ora, mas assim como Prado aponta, um governo legalmente constituído foi
deposto, visivelmente por um golpe com a participação da força militar da já falecida
Monarquia. Por que então a sociedade brasileira aclamava este acontecimento? Assim,
podemos destacar duas formas de se interpretar essa conivência dos brasileiros para com
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os republicanos “golpistas” e os monarquistas “injustiçados”. A primeira seria a simples


incompreensão por parte do povo brasileiro para com a situação política daquele
momento. De acordo com o republicano Aristides Lobo, em sua carta enviada ao Diário
Popular, jornal do Estado de São Paulo, o povo que assistiu à queda da Monarquia, estava
bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava, e até mesmo acreditavam
que tudo aquilo não passava de uma simples parada. Tudo isso corrobora com a primeira
interpretação apontada. No tocante à segunda teoria, podemos destacar o desejo do povo
brasileiro de não continuar no ócio em relação às outras nações, se livrando assim de um
modelo já ultrapassado de governo e migrando para a “modernidade”, como podemos ver
na citação da Miriam Dolhnikoff, em seu livro História Do Brasil Império: “A monarquia
parecia cada vez mais um obstáculo aos olhos dos grupos ligados à modernização e
àqueles que ansiavam por maior participação política”. (DOLHNIKOFF, 2017, p.159) O
pensamento era: A monarquia é um modelo de, pelo menos, quatrocentos anos atrás, que
se mostrou ineficiente, pelo menos para a sociedade brasileira, enquanto que a República,
nunca antes implementada no Brasil, simbolizaria o caminho rumo ao desenvolvimento,
em outras palavras, o progresso, tanto buscado pelo povo brasileiro. Passada a euforia dos
primeiros dias, a sociedade brasileira começou a esperar todos os benefícios que, de
acordo com os republicanos mais entusiastas, deveriam vir com a implementação do
modelo “novo”. Do federalismo, passando pela ampliação da cidadania e chegando na
proteção dos direitos civis, a República em suas primeiras engatinhadas não mostrou para
o que veio, promovendo a manutenção da hierarquização da sociedade brasileira, o
aumento da pobreza e a já conhecida baixa participação política, não foram poucos os
grupos que se decepcionaram com a “República que não foi”.
Assim como afirma a Dolhnikoff, já no final da Monarquia, por volta da década
de 80 do século XIX, a sociedade brasileira contava com os mais variados tipos de
indivíduos, fossem brasileiros ou não. Vejamos:

[...] A diversidade era também social. Escravos e livres circulavam


pelas ruas, negros, pardos e brancos, membros da elite, inclusive
agrária, setores intermediários, livres e pobres habitavam as cidades.
Com o aumento da imigração na década de 1880, cresceu também o
número de estrangeiros, muitos deles como operários de fábricas.
(DOLHNIKOFF, 2017, p.155)

Essa variedade de etnias e grupos sociais, vivenciaram a implementação da


república e o que veio depois dela, o que ocasionou em reações mistas por parte da
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sociedade brasileira. Parte da população, principalmente os grandes barões da agricultura,


festejavam as mudanças advindas com a nova forma de governo. Entretanto, outra parte
da população não conseguiu identificar onde estava o progresso tão falado e anunciado,
o que ocasionou em inúmeras crises e revoltas por todo o Brasil, como podemos ver na
seguinte citação:

Não raro, ao longo da Primeira República, as disputas políticas dentro


das oligarquias se resolviam à bala. Essa violência ia desde o
assassinato de desafetos políticos locais até verdadeiras “guerras civis”
que chegavam a exigir a intervenção do governo federal, com centenas
ou milhares de mortos. (NAPOLITANO, 2016, p. 22)

Insatisfação. Conflitos. Revoltas. Guerras Civis. Não foram poucos os


acontecimentos durante os primeiros anos da República Oligárquica que podem ser
enquadrados nesses verbetes. Podemos citar como exemplo a Revolução Federalista no
Rio Grande do Sul (1893-1895) onde seus principais atores foram os próprios
republicanos que estavam divididos ao defenderem mais ou menos poder político do
presidente da República. Já a Revolta da Armada, assim como citou Marcos Napolitano,
“foi o momento mais grave dessa tensão política entre as duas Armas nacionais que
teoricamente deveriam estar unidas na defesa da nação” (NAPOLITANO, 2016, p.22)
Como podemos perceber, os conflitos aconteciam entre os grupos “situacionistas”
da república e até mesmo entre o Exército brasileiro e a Marinha. Podemos assim concluir
que nem as instituições governamentais estavam fora da lista de críticos a forma como se
estava controlando a República. Então, se até no “andar de cima” da sociedade brasileira
existiam confusões, por que não no “andar de baixo”? Ao pensar em uma resposta para
este questionamento, devemos lembrar daquele que talvez tenha sido o maior conflito
“interiorano” que já despontou no território brasileiro, a Guerra de Canudos (1896-1897).
Antes de entrarmos de vez na guerra dos ditos “fanáticos” vale chamar atenção
para a natureza religiosa e popular da Guerra de Canudos que assim como a Guerra do
Contestado (1912-1916) foi um conflito social onde a religiosidade popular se misturava
com a insatisfação política dos revoltosos, dando origem a uma atmosfera, onde, o
místico, o santo e o “messianismo” prevaleciam e se tornavam característica comum
nesses embates. De acordo com Paulo Pinheiro Machado, em seu artigo Guerra, cerco,
fome e epidemias: memórias e experiências dos sertanejos do Contestado, existem
algumas linhas de pensamento que tentam explicar o porquê do início da Guerra do
Contestado, como o banditismo social, a maneira de vida do bandido, os conflitos
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envolvendo os sertanejos pobres e os coronéis, ou pessoas que detinham um lugar de


influência no meio assistido, especificamente no caso do Contestado podemos citar a
Brasil Railway, empresa especializada na exploração da madeira e na colonização com
imigrantes no território brasileiro, que de acordo com testemunhas estava envolvida na
expulsão dos moradores de suas terras, e a tentativa dos sertanejos de se fundar uma
espécie de “irmandade”, baseada em preceitos religiosos, que abarque os sertanejos, ou
irmãos que estejam precisando. Vejamos as citações a seguir:

Na memória dos sobreviventes e seus descendentes, as razões do


movimento sertanejo são frequentemente obscuras quando não
reproduzem diretamente o discurso vencedor dos militares e dos
políticos republicanos. Entre os fazendeiros e seus descendentes não há
dúvida: o movimento sertanejo foi puro banditismo.

A questão de terras é lembrada por Gilberto Kopecki, de Irineópolis,


norte do planalto catarinense. Filho de Ana Júlia Kopecki, imigrante de
origem polonesa que escrevia rezas para os sertanejos do reduto de
Bonifácio Papudo, Gilberto lembra que a Brazil Lumber and
Colonization Co., empresa norte-americana, subsidiária da Brazil
Railway, encarregada da exploração da madeira e da colonização com
imigrantes dos territórios marginais à estrada de ferro São Paulo–Rio
Grande, usava de força, fraude e constrangimento político para expulsar
os antigos moradores da região[...].

Eles queriam uma revolução, queriam tomar conta do país, do Estado


de Santa Catarina. Então, eles queriam que tudo fosse uma irmandade;
tudo no comum. O que era produzido de criação e mantimento eles
queriam comer junto, uma coisa assim. (MACHADO, 2011, p.181)

Assim, pode-se denotar as similaridades existentes entre a Guerra de Canudos e a


Guerra do Contestado, esta última vindo a acontecer em menos de vinte anos após o
encerramento da primeira. Outra característica recorrente entre esses conflitos
“religiosos” era a existência de um líder, uma espécie de chefe-mor que, estando ligado
de forma oficial à Igreja Católica ou não, como foi o caso do Padre Cícero que já foi um
pároco antes de ser excomungado pelo Vaticano, era apontado como a mente por trás de
cada organização. Em Canudos se tem o Antônio Conselheiro, no Contestado é José
Maria de Santo Agostinho, no Juazeiro temos o Padre Cícero e no Caldeirão, onde embora
este acontecimento não possa ser enquadrado como guerra, temos o Beato José Lourenço.
Todos esses indivíduos representavam um pilar religioso e um exemplo a ser seguido
pelos seus fiéis, onde, atualmente, quase cem anos após o acontecimento de alguns desses
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conflitos, podemos encontrar citações e até estátuas em homenagens a esses líderes.


Podemos confirmar essas características com a seguinte citação:

[...] camponeses miseráveis armados se enclausuraram em


comunidades religiosas “messiânicas” (lideradas por um líder religioso)
e combateram forças militares que tinham apoio dos grandes
fazendeiros assustados com as possíveis consequências das rebeliões.
[...] foram verdadeiras guerras civis, com um saldo trágico de milhares
de mortos, sobretudo entre os camponeses. (NAPOLITANO, 2016, p.
23)

Diante de todos esses acontecimentos onde se percebe o sofrimento que os


camponeses e sertanejos passaram já nos tempos da República, podemos problematizar
onde estava a Ordem e o Progresso, lema da República inspirado no Positivismo, que
tanto se pregou para justificar o abandono da monarquia. Onde estava a defesa da
cidadania e a maior inclusão, fortalecimento da Democracia, visto que de acordo com
Napolitano (2016) apenas de 2% a 5% da população pôde votar nos primeiros pleitos já
durante a República?
Existem inúmeros exemplos de manifestações religiosas durante os anos que se
seguiram a República, entretanto, para esta pesquisa monográfica, trabalharemos apenas
com a Guerra de Canudos. Para entendermos melhor sobre esse acontecimento, que será
peça-chave para o andamento dessa pesquisa, vamos recorrer a dois autores, Marcos
Napolitano e Rui Facó, que produziram obras que abarcam este assunto.
Sobre Canudos, Marcos Napolitano vai trazer o seguinte pensamento:

[...] a dramática Guerra de Canudos (1893-1897), que, de um conflito


local entre camponeses miseráveis e o governo baiano, assumiu uma
importância nacional, com o envolvimento do Exército brasileiro, na
repressão ao arraial, pela suposta ameaça à nova ordem republicana.
(NAPOLITANO, 2016, p. 22)

Já Rui Facó em sua obra Cangaceiros e Fanático (1972), obra responsável pelo
surgimento da inquietação que desembocou nesta pesquisa, se concentrará mais em
analisar o perfil de Antônio Maciel, o Conselheiro, líder espiritual da localidade de Belo
Monte. Vejamos:
Ao iniciar-se em 1896 a campanha contra Canudos, apareceram
inúmeras “interpretações” da personalidade do mais conhecido chefe
do movimento rebelde: Antônio Conselheiro. Apresentavam-no
sucessivamente como um criminoso, um místico, um louco, um
restaurador monárquico, ou tudo isto ao mesmo tempo. (FACÓ, 1972,
p. 85)
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Analisemos bem essas duas passagens de obras produzidas com pelo menos trinta
anos de intervalo. Napolitano citará a grande repressão sofrida por Canudos onde míseros
e simples sertanejos tiveram de enfrentar a mais bem preparada força repressiva do Brasil.
Já Facó, chama atenção ao problematizar as supostas personalidades atribuídas ao chefe
do Arraial, louco, criminoso, adjetivos comuns para um simples baderneiro, entretanto o
que mais chama atenção é o adjetivo de restaurador monárquico. O envio de tropas do
Exército brasileiro ao Arraial de Canudos para enfrentar pessoas que moravam em casas
de taipa foi de fato uma resposta sensata do Presidente? Não teriam se precipitado ou até
mesmo exagerado na repressão?
Napolitano tenta explicar o porquê dessa desmedida resposta aos “canudenses”:

Os rebeldes de Canudos, com efeito, criticavam o regime republicano,


tido como o “mal na terra”. Entretanto, mais do que uma reação
monarquista ou mera manifestação do fanatismo religioso arcaico do
meio rural brasileiro, como a imprensa republicana e positivista
representou o evento à época, a Guerra de Canudos foi o resultado de
tensões sociais e políticas causadas pela extrema miséria e exploração
do homem do campo como mão de obra barata e massa agregada aos
“coronéis” locais. (NAPOLITANO, 2016, p. 23)

“Restaurador monárquico” e críticos do regime republicano. Duas semelhanças


entre as últimas citações que chamam atenção do leitor. Por qual motivo foi preciso
utilizar do Exército brasileiro para pôr um fim em uma revolta de simples camponeses?
Só por que eram pobres? Ou talvez suas críticas à República tenham sido o combustível
para fazer funcionar o motor da preocupação com a manutenção do regime? Após mais
de cem anos do fim da Guerra de Canudos, o mais aceito hoje pela historiografia é que o
Arraial chamou toda aquela atenção para si por causa de suas críticas a República, sendo
seu chefe-mor, Antônio Conselheiro, pró-monarquista, como aponta Facó:

Pode se argumentar que, posteriormente, se encontrariam evidências de


que o Conselheiro aspirava à restauração da monarquia e considerava a
República “a lei do cão”. É bem provável que assim fosse. [...] Se
durante a monarquia perambulava pelos sertões em paz e não
mandavam atacá-lo a mão armada...[...] A República só podia ser
confundida, em seu espírito primário, com a lei do Diabo... Contra ela,
portanto, a sua religiosidade se levantava, de armas nas mãos, uma vez
que com armas era agredido. (FACÓ, 1972, p.83-84)

Entretanto, durante os primeiros anos da República, mesmo com os primeiros


telégrafos instalados ainda no período monárquico, a disseminação de informações era
comprometida pelo tamanho territorial do Brasil. Tínhamos os grandes jornais que faziam
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a cobertura completa dos principais acontecimentos e que durante a formação do Arraial


já noticiavam diariamente para a sociedade brasileira o andamento desta. Porém, como
saber que Antônio Conselheiro estava promovendo um levante monarquista? Quais as
fontes utilizadas pelos jornais para dar a certeza aos brasileiros de que os “canudenses”
estavam querendo derrubar a República? De que forma se construiu e se inseriu no
imaginário popular brasileiro a imagem de Antônio Conselheiro como um fanático?
Aliás, o que quer dizer a palavra fanático e qual seria o interesse da Imprensa Brasileira
em se utilizar dessa palavra, diga-se de passagem, que contém um tom pejorativo, para se
referir ao Conselheiro e sua gente? Antes de falarmos sobre a origem e utilização do termo
Fanático, precisamos discutir a origem, desenvolvimento e conduta da Imprensa
brasileira, desde sua atuação no Império até a República.
Através das matérias jornalísticas, caricaturas, chamadas e opiniões dos leitores
dos jornais O PAIZ (Rio de Janeiro - RJ) e Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro - RJ), percebe-
se a dinâmica empregada pelos jornais durante a Guerra de Canudos (1896-1897),
especialmente quando apontam as relações sociopolíticas do período. Os dois jornais
representam as dicotômicas posições existentes no início da república. O PAIZ, um dos
mais importantes periódicos do período, defensor da República Oligárquica, acusou por
diversas vezes o Arraial de Canudos de ser um reduto monarquista, enquanto a Gazeta da
Tarde, foi mais sucinta em suas postagens acerca do Conselheiro e de seu arraial, preferiu
manter uma posição mais cautelosa em relação à Guerra. Entretanto, este último
“defendeu” o arraial das investidas militares enviadas pela República. Atitude esta que
causou repulsa e foi o estopim para as agressões vindas do O PAIZ, o qual acusava a
Gazeta da Tarde de estar ao lado dos fanáticos religiosos e monarquistas, utilizando suas
edições não para criticá-los, mas sim para exaltá-los, como se percebe na seguinte
passagem:

Antonio Conselheiro... não se ria o leitor, quem fala é a Gazeta; Antonio


Conselheiro é um espirito superior, que pela palavra e os exemplos de
sua vida ascetica tem conquistado poderosa e invencível influencia
sobre as multidões.... (ARANHAS, 1897, p.01)

Mas afinal, o fanático é todo aquele que tem uma religiosidade extremamente forte
e que é capaz de pegar em armas para defender os interesses de seu “dogma”? Ou é apenas
aquele que está do outro lado, do lado “inimigo”, lutando por uma causa que não faz parte
dos interesses dos “senhores” da República? É com estas perguntas que daremos
prosseguimento a esta pesquisa.
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1.2 EM NOME DO PROGRESSO, ABAIXO A DESORDEM

Com o intuito de compartilhar informações de maneira rápida, organizada e


eficiente, a Imprensa surgirá através do movimento Renascentista, no século XV, tendo
como seu precursor o alemão Gutemberg, inventor da máquina de imprensa Gutemberg.
Este, por sua vez, durante os mais de seiscentos anos de história que se seguiu, foi um dos
acontecimentos mais importantes não só para o contexto político, cultural e social do
Renascimento, mas também para a história da humanidade, pois a partir da possibilidade
de se imprimir folhetos, livros e enciclopédias, a humanidade pôde compartilhar, mais
rapidamente, os conhecimentos adquiridos de suas vivências para outros povos e nações,
em outras palavras, Gutemberg “alcançou” a aceleração na produção dos livros.
Como já citado, a invenção de Gutemberg foi uma revolução para a humanidade,
podemos confirmar isso através da passagem do historiador Roger Chartier:

A revolução do nosso presente é, com toda certeza, mais que a de


Gutenberg. Ela não modifica apenas a técnica de reprodução do texto,
mas também as próprias estruturas e formas do suporte que o comunica
a seus leitores. O livro impresso tem sido, até hoje, o herdeiro do
manuscrito: quanto à organização em cadernos, à hierarquia dos
formatos, do libro da banco ao libellus; quanto, também, aos subsídios
à leitura: concordâncias, índices, sumários etc. Com o monitor, que vem
substituir o códice, a mudança é mais radical, posto que são os modos
de organização, de estruturação, de consulta do suporte do escrito que
se acham modificados. Uma revolução desse porte necessita, portanto,
outros termos de comparação. (CHARTIER, 1994, p. 187)

Pouco tempo após Gutenberg ter “dado à luz” a sua invenção, a Europa presenciou
as consequências desta quando Martinho Lutero, principal agente da Reforma Protestante,
começou a produzir e distribuir exemplares da Bíblia Sagrada já traduzidos do Latim para
o Alemão, tendo aí o auxílio indispensável da máquina de Gutenberg. Assim, como
podemos perceber, desde seu surgimento, a Imprensa viveu e foi responsável por diversas
revoluções na história da humanidade, fosse “repassando” informações sobre
acontecimentos ou sendo utilizada como dispositivo de auto divulgação, propaganda e até
mesmo de alienação da sociedade. Podemos perceber essa alterabilidade da natureza da
Imprensa a partir do seguinte trecho contido na dissertação de mestrado da professora
Jordana Coutinho Caliri:
19

Antes, os periódicos eram considerados como reflexo da realidade,


como se eles fossem apenas portadores dos fatos que aconteceram no
passado. Mas hoje, diante do conhecimento acerca do processo de
produção dos jornais, sabemos que eles são construídos e carregados de
subjetividade, o que implica tratar os jornais não mais como reflexos da
sociedade e sim como agentes que intervêm no processo social,
ajudando a moldar comportamentos e influenciar nos acontecimentos.
(CALIRI, 2014, p.20)

Vale ressaltar também a relação entre a Imprensa o poder e suas práticas. Mais
uma vez, utilizando a dissertação da Caliri (2014), veremos o que ela tem a falar sobre
este assunto:

[...] podemos afirmar que a Imprensa, como parte da comunicação


escrita, possui uma interligação com as práticas de poder, apesar de nem
sempre as mesmas aparecerem de forma direta e aparente em suas
páginas, tornando-se assim, necessário ler nas entrelinhas para perceber
a simbologia contida nos jornais. (CALIRI, 2014, p.22)

Ou ainda:

Assim sendo, a imprensa, principalmente a de publicação diária, estava


ligada ao poder, tanto através da vinculação direta de seus produtores
com a sociedade, como também através de seus discursos, no momento
em que criava estratégias para atrair os leitores e deixar seus registros
eternizados em suas memórias. (CALIRI, 2014, p.24)

A partir das citações acima, percebemos de que forma alguns periódicos e suas
equipes de organizadores agiam na busca por influenciar as sociedades, nesse caso em
específico a brasileira, para que estas “comprassem” suas batalhas e defendessem, ou
condenassem, certas questões políticas, sociais, culturais e em alguns casos até mesmo
grupos de pessoas.

De seu surgimento no século XV, demorou algum tempo até que a Imprensa
embarcasse em uma navegação na Europa, cruzasse o oceano e desembarcasse no Novo
Mundo, colocando pela primeira vez seus pés em terras tupiniquins. Foi apenas no de
1808, com a transferência da corte portuguesa e chegada da família imperial no Brasil,
que surgiu o que viria a ser a Imprensa no Brasil, como afirma a historiadora Laima
Mesgravis (2015):

A transformação do Brasil em sede da monarquia portuguesa levou à


criação de instituições de importância vital para a cultura. É o caso da
Imprensa Régia (a partir de 13 de maio de 1808), possível graças à
compra de máquinas inglesas, que abriu caminho para o aparecimento
20

de jornais e livros no Brasil (o que, antes, era proibido). Mesmo assim,


a Imprensa Régia deteve o monopólio da impressão no Rio de Janeiro
até 1821 (quando finalmente as tipografias particulares foram
autorizadas) e controlou o conteúdo de tudo o que se publicava no país,
censurando qualquer texto que não agradasse as autoridades.
(MESGRAVIS, 2015, p.155)

Em suma, quando a Imprensa surgiu no Brasil ela tinha como característica muito
mais atender aos interesses específicos da Coroa Portuguesa do que manter a sociedade
brasileira bem informada das mudanças que estavam ocorrendo naquele contexto social
em específico. De acordo com a Kátia de Carvalho (1996), os periódicos de iniciativa
privada só surgiriam a partir de 1811, três anos após a criação da Imprensa Régia. Sabe-
se também que apenas em 1821 é que a censura prévia foi revogada por Dom João IV,
regulando-se assim a liberdade de imprensa até certo ponto, visto que recolhimentos de
matérias e proibições de certas postagens ainda aconteciam. Vale citar o caso onde o
Imperador vigente Pedro I mandou recolher uma publicação defendendo valores
libertários, vejamos:

[...] o próprio imperador cometeu a primeira violência contra a imprensa


brasileira. Consistiu na apreensão, pela Portaria de 15 de janeiro de
1822, de uma publicação anônima em defesa dos ideais libertários
intitulada Heroicidade Brasileira. [...] Ela afirmava a liberdade de
imprensa como um dos mais firmes sustentáculos dos governos
constitucionais, mas que era necessário “justas barreiras” a essa
liberdade. (CARVALHO, 1996, p.01)

Ainda da citação, vemos o imperador defender a necessidade de se impor “justas


barreiras” nas postagens da Imprensa brasileira, ou seja, mesmo tendo imposto a plena
liberdade de imprensa o Imperador ainda queria manter um certo controle para com o que
se era postado para a sociedade brasileira. Durante o período imperial no Brasil, diversas
cartas de lei foram apresentadas pela Assembleia Geral no objetivo de organizar e firmar
os direitos e ações referentes a Imprensa brasileira e suas postagens, assim como também
as consequências de suas publicações. Até que no final de 1830, fora lançado o Código
Criminal do Império, onde foram regulamentadas diversas leis que determinavam que
tipos de ações eram consideradas como delitos e quais seriam as suas punições. Com o
crescimento da Imprensa Régia e dos periódicos da iniciativa privada, foi criado uma
parte do Código especificamente para tratar dos crimes causados pelos periódicos, assim
como aponta a Kátia de Carvalho (1996):
21

Todos os abusos concernentes à liberdade de imprensa ficaram


incluídos na legislação comum, deixando de ser objeto de lei especial.
Os dispositivos gerais sobre os delitos da liberdade de comunicar os
pensamentos figuravam na parte do Código - Dos crimes e das penas.
A segunda parte, dos crimes públicos, definia: Título I - os crimes
contra a existência política do Império; Título II tratava dos crimes
contra o livre exercício dos poderes públicos; Título III, os crimes
particulares em que estão incluídos a injúria e a calúnia; Título IV, os
crimes contra a segurança interna do Império e a pública tranquilidade.
O Código relacionava os delitos tipificados nesses títulos, se fossem
provocados por impressos (litografias ou gravuras) que se distribuíssem
a mais de 15 pessoas. Nesses casos, os infratores eram punidos com
multa e prisão. Na quarta parte do Código (capítulo I), estavam
incluídos os crimes policiais resultantes da difusão de impressos e
considerados crimes de abuso ou zombaria aos cultos estabelecidos
durante o Império. Entre eles, a propagação de doutrinas que
questionassem a existência de Deus, a imortalidade da alma, a ofensa
evidente à moral pública. O capítulo VIII, também importante, tratava
do uso indevido da imprensa, ou seja, a instalação de oficina de
impressão, litografia ou gravura sem os dados essenciais relativo ao
nome do impressor, local, nome da oficina e data. Constituía ainda
crime as falsas informações, a supressão da remessa de um exemplar ao
promotor público. (CARVALHO, 1996, p.02)

Podemos ver que existiam variadas formas de repressão aos delitos praticados
pelos periódicos e pelos seus escritores. Chama a atenção, também, que o Código se
preocupava com o alcance do periódico, visto que, existia uma punição para aqueles
jornais com mais de quinze assinaturas. Assim, concluímos que o Império, em seus
primeiros anos, considerava, no mínimo, problemáticas as possíveis opiniões de certos
escritores, visto que tentaram assim, se munir de diversas punições a nível jurídico.

Como sabemos, após atingir a maioridade, Dom Pedro II assumiu o trono deixado
por seu pai e passou a comandar o Brasil Imperial. De acordo com Carvalho (1996), a
relação do último imperador do Brasil para com o funcionamento da Imprensa brasileira
era uma relação amistosa e que, inclusive, contava com o apoio e a compreensão deste
em relação às denúncias e a liberdade de imprensa. Entretanto, nada dessas características
impediram o aparecimento de greves e conflitos organizados pelas equipes dos
periódicos, como é o caso da greve dos tipógrafos que aconteceu no ano de 1858, neste
caso os revoltosos reivindicavam melhores salários. Outro caso interessante foi o dos
Pasquins, jornais mais “informais” que se concentravam na produção de um jornalismo
“pastelão”, ocasionando assim diversos casos de violência para com seus escritores, assim
como afirma Carvalho (1996):
22

No final do século, ocorreu um novo surto de pasquins, fruto do


liberalismo que então imperava. O episódio do Corsário, pasquim que
em 1883 atacou alguns oficiais do 1° Regimento de Cavalaria no Rio
de Janeiro, provocou a reação dos militares, e esses invadiram e
depredaram o jornal, culminando com o assassinato do seu proprietário
e redator, Apulcro de Castro. (CARVALHO, 1996, p. 04)

Como vimos no início deste capítulo, a queda da monarquia e a proclamação da


república causaram diversas mudanças sociais, políticas, econômicas e até mesmo
culturais na rotina da sociedade brasileira, não obstante também na Imprensa e no
jornalismo que àquela altura estava bastante fortalecido. Com a iniciativa privada
controlando a maioria dos periódicos, não era de se surpreender que se começara a surgir
diversos jornais que defendiam valores republicanos. De acordo com Carvalho (1996),
até o final do século XIX já existiam por volta de vinte jornais republicanos, divididos
entre os que anunciavam a falência do antigo modelo e outros que defendiam o novo
modelo político.

A república trouxe muitas desilusões. O que era pra ser o regime da liberdade se
transformou no governo de perseguições e censuras. Logo após tomar posse, o Marechal
Deodoro da Fonseca aboliu as leis do império e instituiu o “Decreto Rolha”, considerado
como a primeira Lei de Segurança Nacional, esta era utilizada para condenar aqueles que
cometessem crimes contra a recém-proclamada república. O que atingiu, por tabela,
diversos periódicos e jornalistas, principalmente aqueles que publicavam suas opiniões
nas colunas, como podemos ver com a afirmação de Carvalho (1996):

A imprensa, nos primeiros anos da fase republicana, retraiu-se. Nesse


cenário, os jornais políticos começaram a desaparecer e os que
continuaram eliminaram as seções políticas. Ocorriam prisões de
jornalistas que desobedeciam as normas em vigor, e os jornais eram
depredados. (CARVALHO, 1996, p. 05)

Com o advento da primeira Constituição republicana, promulgada em 24 de


fevereiro de 1891, o direito à liberdade de expressão foi restaurado, o que permitiu aos
periódicos voltarem a sua rotina normal de publicações, não mais tendo que se preocupar
com fáceis “retaliações” por parte do governo. Essa maior liberdade e diversidade no que
tange a atuação da Imprensa durante a Primeira República é evidenciada na seguinte
citação da Maria de Lourdes Eleutério (2008):

O advento e o transcorrer da chamada da Primeira República (1889-


1930) trouxeram uma imprensa que se diversificava. A política
23

mantinha seu espaço, mas o crescimento urbano propiciava o ímpeto de


se reportar novos focos de notícia, fosse aquele do bordão republicano
“O Brasil Civiliza-se” ou as diferentes práticas culturais de uma
sociedade em busca do progresso. Naquelas páginas estampou-se nossa
Belle Époque. (ELEUTÉRIO, 2008, p. 83)

Após essa breve introdução acerca da invenção da Imprensa, sua chegada e


desenvolvimento no Brasil, discutiremos um pouco sobre os periódicos que serão
utilizados para a produção desta pesquisa monográfica.

1.2.1 O PAIZ e a Gazeta da Tarde

Sendo a capital do Brasil durante o Império e início da República, o Rio de Janeiro


cresceu e se desenvolveu para abrigar a Coroa Portuguesa e sua corte, passando por
diversas mudanças tanto social, cultural e economicamente falando. Com o surgimento
da Imprensa Régia, foi nas mais variadas ruas cariocas que nasceram as sedes dos
periódicos que informariam a sociedade brasileira até os dias atuais. Como vimos
anteriormente, existia uma variedade de periódicos que tratavam dos mais distintos
assuntos nascidos na capital fluminense até o final do século XIX. Falaremos agora dos
dois periódicos utilizados para o andamento desta pesquisa.

Fundado pelo imigrante português João José dos Reis Junior em 01 de outubro de
1884, O PAIZ, jornal conservador e republicano, foi um dos maiores aparatos de
divulgação da recém proclamada república, como podemos ver no artigo do BRASIL
(2015):

Conservador e de grande expressão, considerado o mais robusto órgão


governista da República Velha, foi um dos maiores formadores de
opinião na política e na sociedade brasileiras entre o fim do século XIX
e o começo do século XX. (BRASIL, 2015)

Com figuras como Rui Barbosa, designado representante da nascente república, e


Quintino Bocaiúva, um dos fundadores do Partido Republicano, não demorou muito para
que O PAIZ despontasse como um dos jornais mais vendidos e influentes do Brasil
durante a primeira república.
Em sua edição de estreia, como já era de costume de outros periódicos, os editores
de O PAIZ produziram uma pequena coluna falando sobre os valores e objetivos que
guiariam o jornal durante suas publicações, analisemos uma parte desta coluna:
24

[...] O seu empenho preponderante consiste em estar em communicação


íntima com as necessidades mais intelligentes e as idéas mais
progressistas da nossa época: em paguar pelas mais adeantadas
aspirações do povo e pelas exigências mais liberaes do nosso futuro. (O
PAIZ, 1884, p.01)

Mais uma vez, encontramos ideias que remetem ao progresso. Ao se referir a si


mesmo, O PAIZ confessa a intenção de se comunicar através de ideias mais progressistas
e as exigências mais liberais do futuro. Raciocínio esse que remete àquilo que a república
representava: o progresso, o futuro. Em suma, a partir das citações apresentadas e da
discussão promovida, podemos concluir que O PAIZ foi, de fato, um periódico
intimamente alinhado aos interesses da República, sendo alguns de seus integrantes
indivíduos que ajudaram na derrocada da monarquia e até mesmo foram integrantes do
governo presidencialista.

O outro periódico que será utilizado para esta pesquisa é a Gazeta da Tarde. Sendo
fundado em 1880 por Ferreira de Menezes, bacharel em Direito, este logo foi assumido
por José do Patrocínio após a morte do seu fundador. Sendo um dos mais importantes
reivindicadores dos movimentos abolicionistas no Brasil, Patrocínio fundou, junto com
Joaquim Nabuco, a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão e ao assumir a direção da
Gazeta da Tarde, direcionou as publicações do periódico incorporando-os à luta contra a
escravidão.

Mesmo defendendo a república e apoiando o General Deodoro da Fonseca, a


Gazeta da Tarde foi por muitas vezes considerada como um periódico monarquista,
principalmente durante a campanha de Canudos, como podemos ver na citação da Maria
da Conceição:

A Gazeta da Tarde, apesar de apoiar o General Deodoro da Fonseca e


defender o abolicionismo e a República, é considerado jornal
monarquista. Assim, em 1896, durante o levante de Canudos, o jornal é
empastelado: “Todo o material trazido à praça pública transforma-se
em fogueira”. (ARAÚJO, 2008, p.182)

O empastelamento para o jornalista deve se equiparar ao anacronismo para o


historiador, pelo menos dependendo do contexto em que estes estão inseridos. Assim,
como vimos na citação acima, o empastelamento da Gazeta da Tarde aconteceu durante
a campanha de Canudos. Vejamos, mesmo que o periódico tivesse uma longa história de
defesa da república e de seus símbolos, defender um grupo de sertanejos acusados de
25

conspirar contra o atual regime e apoiar a monarquia, foi um golpe certeiro contra sua
reputação, levando a Gazeta a ser hostilizado por grande parte da sociedade brasileira e
até mesmo por outros jornais, como é o caso do O PAIZ, adiante veremos um pouco mais
sobre este conflito entre os dois periódicos.

O que interessa para esta pesquisa é compreender que mesmo ambos sendo
periódicos republicanos, tanto O PAIZ quanto a Gazeta da Tarde, durante a Guerra de
Canudos, não receberam o mesmo tratamento da sociedade brasileira, sendo este último
hostilizado e até empastelado. Mas por quê? Se os dois defendiam a república, por que
apenas a Gazeta da Tarde foi acusada de defender a monarquia e acobertar os feitos dos
moradores de Belo Monte? Aliás, por que apenas quando a campanha de Canudos já
estava em estado avançado é que a imprensa passou a se referir aos “canudenses” como
“fanáticos”? O que a Imprensa queria dizer ao se referir a eles como “fanáticos”?

A dinâmica de publicações da Imprensa foi de vital importância para se obter o


apoio da sociedade brasileira na Guerra de Canudos. Naquele momento em que o Brasil
passava pela derrota de diversos soldados e suas infantarias que estavam incorporados
nas incursões, a Imprensa intensificou sua investida contra o Arraial, passando a construir
o perfil de um inimigo que, talvez, nunca tenha existido e trazendo de volta o fantasma
da monarquia que, segundo os periódicos, ainda resistia nas pregações de Antônio
Conselheiro.
26

2 A GUERRA DE CANUDOS NA HISTÓRIOGRAFIA E NA


IMPRENSA DO RIO DE JANEIRO

[...] o Conselheiro arrebatava multidões de adeptos para caminho


diverso daquele indicado pelas classes dominantes, subtraindo-os, às
centenas e centenas, à influência da ideologia religiosa por elas pregada
e que era incutida através do catolicismo. (FACÓ, 1972, p.81)

Neste capítulo trataremos sobre a Guerra de Canudos (1896-1897), debates e


representações na historiografia e na imprensa do Rio de Janeiro. O que, de fato, foi a
Guerra de Canudos? A sociedade brasileira estava vivenciando os primeiros anos da
recém proclamada República. Em meio às inúmeras disputas políticas dos grupos
republicanos que defendiam linhas de pensamento diferentes, a população mais pobre,
principalmente no Norte do país, não tinha consciência da ruptura política que acabara de
ser desencadeada na até então capital do país, o Rio de Janeiro. Assim, já estando
acostumados com uma dinâmica política e social sustentada por mais de trezentos anos
de colônia e poucas décadas de independência, grande parcela dos brasileiros contestaram
as “inovações” advindas com a República, como a destituição do Imperador e a separação
da Igreja do Estado. Neste contexto, Antônio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido
como Antônio Conselheiro, se tornará famoso por liderar aquele que talvez seja o maior
conflito interno vivido pela República em seus primeiros anos, com ares de religiosidade
e messianismo, a Guerra de Canudos.

2.1 A GUERRA DO FIM DO MUNDO

Na manhã do dia 7 de novembro do ano de 1896, como de costume, o periódico


O PAIZ distribuiu a sua tiragem diária e levou ao leitor carioca as mais variadas
informações do Brasil e do mundo. Entre chamadas e matérias de diversos assuntos, os
assinantes mais atentos do impresso perceberão na chamada da Bahia, a existência de um
certo conflito, do dia anterior, 6, envolvendo um indivíduo nomeado como Antônio
Conselheiro e seus adeptos. Estes, segundo o jornal, iriam atacar a cidade de Juazeiro. O
jornal também relata o envio, por parte do governo da Bahia, de uma tropa com cem
soldados para repelir o Conselheiro. Vejamos:

Em virtude dos boatos com insistência propalados no Juazeiro de que o


fanático Antonio Conselheiro, à frente de centenas de adeptos,
homisiados na povoação de Canudos, vai atacar aquela cidade, seguiu
27

hoje uma força composta de 100 praças e 3 officiaes do 9º de infanteria


competentemente municiados. (O PAIZ, 1896, p.01)

Seria esta a notícia referente ao primeiro embate entre os moradores de Belo


Monte e as forças governistas. O conflito que mataria mais de vinte e cinco mil pessoas,
entre sertanejos pobres e soldados governistas havia começado.

A Guerra de Canudos, de acordo com a historiografia, começou no dia 7 de


novembro do ano de 1896, durando quase um ano, os habitantes de Belo Monte resistiram
no Arraial até o dia 5 de outubro do ano seguinte, 1897. Entretanto, qual teria sido o
estopim do conflito? De acordo com Rui Facó, a motivação teria sido a suposta
sinalização dos “canudenses” em invadir a cidade de Juazeiro na Bahia. Vejamos:

Não houve um motivo; houve um pretexto. Alegava-se que o


Conselheiro havia comprado e pago uma certa quantidade de madeira,
na cidade de Juazeiro, para construção em Canudos. Não recebendo a
encomenda, propalou-se que se prontificava a cobrá-la a mão armada.
O boato espalhou-se, ganhou foros de verdade, motivou pânico. As
autoridades de Juazeiro apelaram para o Governo do Estado da Bahia.
Este enviou a primeira força regular contra os camponeses em
novembro de 1896. (FACÓ, 1972, p.90-91)

Facó explicita a ausência de um motivo e a existência de um pretexto. Por que um


pretexto? O ajuntamento de pessoas que estavam estabelecidas próximas ao leito do
Vaza-barris já chamava a atenção do governo da Bahia antes do suposto ataque à cidade
de Juazeiro? Para entendermos essas questões, devemos recorrer às informações acerca
dos acontecimentos que levaram Antônio Conselheiro a fundar o arraial no ano de 1893.

Assim como já foi debatido no capítulo anterior, as últimas décadas do século XIX
trouxeram para a sociedade brasileira inúmeras novidades como a proclamação da
República em 1889 e, um pouco antes, o fim da escravidão com a assinatura da Lei Áurea
em 1888. Entretanto, a abolição da escravatura, por mais que indicasse, na teoria, o fim
do trabalho forçado de um grande contingente de pessoas, os escravizados, ela foi um tiro
no pé para a já arquejante Monarquia e um fator atenuante para a intensificação da
desigualdade social no Brasil. Afinal, como se poderia integrar à sociedade indivíduos
que foram marginalizados por quase três séculos? O resultado da falta de planejamento
foi desolador. De acordo com o historiador Luiz Felipe de Alencastro:

Muitos ex-escravos ficam fora do mercado de trabalho na zona rural e,


em parte, nas cidades. Mesmo sendo brasileiros, os ex-escravos não
28

tiveram cidadania plena, porque a sua quase totalidade era analfabeta,


e o voto do analfabeto foi proibido em 1882, ainda no Império.
(ALENCASTRO, 2018)

Os supostos benefícios que viriam com a República também podem ser


enquadrados na lista de ilusões prometidas ao povo brasileiro. Se por um lado os grandes
proprietários de terra pediam pelo fim da Monarquia não era para pôr fim na sociedade
estratificada e nem na renda e privilégios concentrados nas mãos de poucos, neste caso
deles mesmos, e sim por entenderem que um novo regime poderia dar continuidade na
manutenção destes mesmos privilégios. Um exemplo dessa continuidade é a situação em
que os trabalhadores do campo e da cidade se encontravam. Vejamos a seguinte citação:

[...] aquelas mudanças na fisionomia política do País, impostas embora


por certas modificações na estrutura econômica, em nada melhoraram
a sorte dos trabalhadores e muito menos da grande massa do campo
submetida pelos senhores latifundiários. Mantinha-se intata a grande
propriedade territorial semi-feudal. Tanto o escravo de ontem como os
agregados, os moradores, os forasteiros, os chamados trabalhadores
livres, não passavam de semi-servos do latifundiário. (FACÓ, 1972,
p.71-72)

A partir dessa citação podemos concluir que a vida dos trabalhadores não sofreu
mudanças significativas que visassem uma melhor distribuição de renda nem uma
melhora de qualidade de vida. Para o trabalhador do campo as dificuldades continuaram
a ser negligenciados pelo governo federal que preferia se preocupar com a posse da
“terra” do que com os que trabalhavam na terra. Como podemos ver na seguinte citação:

E não só as moléstias, também a fome e a penúria de tudo na vida do


trabalhador do campo eram em geral consideradas coisa normal, tanto
pelos grandes fazendeiros como por seus representantes no Governo,
no Parlamento, na imprensa, nas escolas. Discutia-se tudo a respeito da
terra: questões ligadas aos métodos de cultivo, se os melhores animais
de tração eram os bois ou os cavalos, [...]. Só não se via a mola mestra
de toda a vida econômica do País então: o trabalhador rural, o camponês
sem terra. (FACÓ, 1972, p. 75-76)

Assim sendo, de que forma os trabalhadores poderiam estar contentes com a vida
que eles levavam? Como eles poderiam estar satisfeitos com a troca da Monarquia pela
República e as “vantagens” que esta última oferecia a eles? Entretanto, para pelo menos
sobreviver, esses trabalhadores preferiam dar prioridade a encontrar comida do que
reivindicar seus direitos. Entre dias na roça, serviços árduos e desgastantes, o trabalhador
do campo se apegava a duas coisas: a esperança de dias melhores e à religiosidade.
29

Religiosidade, ou misticismo, que será pano de fundo para o conflito analisado nesta
pesquisa.
Assim como Facó, utilizando da visão do materialismo-histórico para
interpretamos esse misticismo dos trabalhadores do campo, podemos concluir a
existência de condições socioeconômicas que serão responsáveis pelo surgimento de tais
sensibilidades. Analisemos a seguinte citação:

[...] os fenômenos de misticismo ou messianismo, que se convencionou


chamar de fanatismo, disseminados pelos sertões em nosso passado
ainda recente, têm um fundo perfeitamente material e servem apenas de
cobertura a esse fundo. É a sua exteriorização. Em populações
submetidas à mais ignominiosa exploração e mergulhadas no mais
completo atraso, sob todos os aspectos, a razão estava obscurecida e
transbordavam os sentimentos em estado de superexcitação. (FACÓ,
1972, p.01-02)

Atestando a forte influência que a religião teria sobre os sertanejos, neste caso o
catolicismo popular, ou moreno, pode-se atestar que a imagem e as ações atribuídas a
Antônio Conselheiro foram de suma importância para dar início às peregrinações dos
sertanejos pobres que viam naquilo uma forma de driblar a fome e por fim aos dias de
seca e trabalho sem resultado. Além de buscarem conforto material, a simples ideia de
seguir um indivíduo cuja sua imagem se assemelha a de um padre ou beato, serviria como
motivação extra, já que, assim, poderiam ter suas almas salvas quando chegasse a hora de
deixar esta vida. Podemos confirmar essa influência do Conselheiro a partir da seguinte
citação:

Apareceu no sertão do Norte um indivíduo, que se diz chamar Antonio


Conselheiro, e que exerce grande influência no espírito das classes
populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos
com que impõe à ignorância e à simplicidade. [...] Acompanhado de
duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar
conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e,
movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o
a seu gosto. (CUNHA, 1902, p.157)

A influência do Conselheiro sobre os sertanejos era tamanha que por muitas vezes
o povo deixara de frequentar as celebrações religiosas promovidas por párocos “oficiais”
da Igreja para acompanhar as pregações do “Santo endemoniado”. Toda essa situação
ocasionou em circulares assinadas por bispos com o intuito de frear as ações do
Conselheiro e devolver aos párocos locais a influência de seus domínios espirituais.
30

Vejamos o exemplo de uma circular do arcebispo da Bahia em 1882, presente no livro Os


Sertões de Euclides da Cunha:

Chegando ao nosso conhecimento, que pelas freguesias do centro deste


arcebispado, anda um indivíduo denominado Antonio Conselheiro,
pregando ao povo, que se reúne para ouvi-lo, doutrinas supersticiosas e
uma moral excessivamente rígida com que está perturbando as
consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos
destes lugares, ordenamos a V, Revma., que não consinta em sua
freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos paroquianos que lhes
proibimos absolutamente, de se reunirem para ouvir tal pregação [...].
(CUNHA, 1902, p.165)

A circular não deu o resultado esperado pela Igreja, Antonio Conselheiro


continuou a sua peregrinação arrastando “fés” e sertanejos por onde passava. Em 1887,
cinco anos depois da primeira circular, a Diocese da Bahia voltou a pedir providências,
desta vez para o presidente da província da Bahia, desejando medidas que impedissem o
livre deslocamento territorial, e espiritual, do Conselheiro e alertando-os para a
periculosidade do mesmo. Vejamos parte da mensagem:

[...] indivíduo Antonio Vicente Mendes Maciel que pregando doutrinas


subversivas, fazia um grande mal à religião e ao Estado, distraindo o
povo de suas obrigações e arrastando-o após si, procurando convencer
de que era Espírito Santo. (CUNHA, 1902, p.167)

Mais uma vez, os esforços da Igreja Católica não foram efetivos para impedir as
ações “santas” de Antonio Conselheiro e sua gente. O “santo endemoniado” continuaria
sua andança pelos rincões do Norte do Brasil, levando consigo centenas de sertanejos que
buscavam o repouso seguro e condições de vida melhores àquelas oferecidas, ou não, pela
República. A formação de Canudos, segundo Facó (1972, será a partir do ano de 1893,
três anos antes de se iniciar, de fato, a guerra. Com a queda da Monarquia e proclamação
da República que, como já citado no capítulo anterior, era a “lei do cão” para o
Conselheiro, a procissão, que tinha como padroeiro Antonio Vicente, passou a ser
instruída pelo mesmo a se levantar contra o novo regime e seus aparatos, neste caso a
cobrança de impostos. Facó ao citar Euclides da Cunha traz uma breve citação sobre o
este episódio:

Os conselheiristas se rebelam contra a cobrança de impostos. Segundo


Euclides da Cunha, o primeiro incidente do gênero ocorre em Bom
Conselho, num movimentado dia de feira, quando estava reunida ali não
só a população da localidade mas de suas redondezas. O Conselheiro
31

manda arrancar os editais de cobrança de impostos e com eles faz uma


fogueira em praça pública. (FACÓ, 1972, p.82)

Era pouco provável uma ação como esta passar impune pelos agentes do novo
regime sem qualquer tipo de retaliação ou investigação. O simples fato de um grupo de
indivíduos, pobres, do Norte, terem promovido uma algazarra, descumprindo uma das
leis e incentivando o povo a reproduzir esse comportamento foi o suficiente para gerar
uma ação, agressiva, por parte dos governistas. De acordo com Facó, um destacamento
de 30 soldados foi enviado para enfrentar Antonio Conselheiro e seu povo e, para a
surpresa de muitos, foi facilmente derrotada, dado o tamanho do grupo do Conselheiro,
fugindo daquele local. Primeira derrota dos governistas, diga-se de passagem,
vergonhosa. Entretanto, mesmo tendo ganhado aquele embate, Antônio Conselheiro sabia
que a natureza daquele acontecimento poderia gerar mais desentendimentos e,
posteriormente, conflitos violentos. Junto de seus seguidores, ele se desloca para o beiço
do rio Vaza-Barris, fundando assim, a localidade de Belo Monte, ou, como era mais
conhecido, Arraial de Canudos.

2.1.1 O SERTANEJO É ANTES DE TUDO UM FORTE

Ao todo foram quatro expedições das tropas governistas contra o Arraial de


Canudos. A primeira, já citada neste capítulo, foi a expedição do tenente Pires Ferreira
comandando uma tropa de cem homens, mobilizadas sob a suposta intenção de invasão
da cidade de Juazeiro na Bahia. É interessante citar que nestas primeiras investidas das
tropas contra o povo de Antonio Conselheiro, de acordo com Facó (1972): estes últimos
não contavam com nada mais do que armas simples presentes no dia a dia dos sertanejos,
como: espingardas de caçar passarinhos, facões de campo, cacetes e ferrões de vaqueiro.
Consideremos a seguinte citação:

Os habitantes de Canudos não esperaram os atacantes em sua casa:


foram-lhes ao encontro. [...]. O choque deu-se na localidade de Uauá,
onde dormiu a tropa certa noite. Foi surpreendida pelos conselheiristas.
Embora as informações oficiais apresentassem esse primeiro choque
como uma vitória da força governista, a verdade é que os vitoriosos
fugiram, alegando a grande superioridade numérica do adversário.
(FACÓ, 1972, p.91)

Mesmo munidos de armas e munições “modernas”, as tropas não foram páreo para
a ira dos revoltosos. Tendo suas forças reprimidas, a força governista junto de seu tenente
fugiu acuada do grande número de seguidores de Antonio Conselheiro. Vale ressaltar que
32

mesmo com a repressão da tropa, os “canudenses” sofreram grandes perdas no que tange
ao número de mortos, assim, servindo de lição para os próximos encontros.
Além do grande número de conselheiristas, um outro fator importante para a
vitória de Canudos em algumas das expedições era a localização do Arraial. A caatinga,
com sua mata densa e fechada e seu clima semiárido foi a grande inimiga dos soldados
que embarcavam nesta aventura sangrenta. Muitas das tropas não pertenciam ao Norte do
país, por isso não sabiam se portar diante do clima presente ao redor do Arraial. Vejamos
a seguinte citação de Euclides da Cunha que trata da influência da Caatinga sobre a
batalha, e a relação desta com o sertanejo:

Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em


revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o
combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas
abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu.
E o jagunço faz-se o guerrilheiro-tugue, intangível... As caatingas não
o escondem apenas, amparam-no. (CUNHA, 1902, p.225-226)

O conhecimento geográfico sobre a região e sua flora é visto por Euclides da


Cunha como uma potencialidade dos canudenses diante das forças da República. Os laços
de afetividade à terra e sociabilidade construída na comunidade eram considerados como
força motriz para a defesa e como propulsor de estratégias diante do inimigo. Era a
percepção sobre o conhecimento e manejo dos homens diante da natureza íngreme do
sertão, que despertava no jornalista e engenheiro Euclides da Cunha a leitura de que a
defesa da comunidade se transformara na luta pela vida e por ela se lançavam como o
único caminho para salvá-la, mesmo que seu custo foi a morte.

Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as


todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente, cresceram através das
mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos
mesmos dias remansados. [...] A natureza toda protege o sertanejo.
(CUNHA, 1902, p.229-230)

A relação da Caatinga para com o sertanejo pode ser observada em outro


movimento social, muito associado com a Guerra de Canudos e a religiosidade popular
atrelada ao Conselheiro, deflagrado nos sertões anos depois, o Cangaço, onde, de acordo
com Facó (1972), os cangaceiros eram homens que viviam em bando para viver de
assalto, se enveredavam nas caatingas buscando fugir da polícia, ou volantes, muitas
vezes tendo sucesso ao se misturar com as árvores secas, driblando-os em encostas de
serrotes e olhos d’água.
33

Retornando à Canudos, vejamos as outras expedições. Diante da patética derrota


sofrida pelo governo do estado da Bahia, o Governo Federal, preocupado com a suposta
insurreição monarquista, decide enviar um pelotão de aproximadamente 557 soldados e
oficiais comandado pelo major Febrônio de Brito. Esta expedição pouco fez contra
Canudos. Mais uma vez, o conhecimento sobre a Caatinga foi fundamental para os
canudense, como inimigo secundário dos governistas, amoitando os “canudenses” na
encosta da Serra do Cambaio, estes por sua vez, já estavam à espera das tropas. Vejamos
a passagem onde Facó cita esse incidente:

Sua sorte foi decidida rapidamente. [...] Logo adiante, no Tabuleirinho,


seis quilômetros antes de Canudos, a expedição foi parcialmente
envolvida e só com grande dificuldade conseguiu retroceder, assim
mesmo em desordem, abandonando armas e munições em poder dos
camponeses, que a perseguiam nos calcanhares. (FACÓ, 1972, p.99)

Dotados de novas e ótimas armas arrebatas à 3ª expedição, fartamente


municionados, os sertanejos se aprestavam para enfrentar o que
previam deveria ser um assalto ainda mais furioso a seu reduto. Era de
esperar que assim acontecesse. Primeiro, haviam derrotado uma força
policial de 30 homens. Em seguida, sucessivamente, forças regulares de
uma centena, 550, 1500 homens. Depois de simples carabinas, haviam
conhecido o fogo de fuzis modernos, metralhadoras, canhões. Tinham
destroçado tropas comandadas a princípio por um tenente, depois por
um major, a seguir por um coronel afamado. (FACÓ, 1972, p.105)

Facó, nestas citações, ressalta também o abandono das armas por parte dos
soldados que, na hora do desespero, não se importaram com as munições que sobraram.
Assim, nesta segunda expedição e na terceira, que falaremos logo em seguida, os
conselheiristas foram recolhendo as armas abandonadas no campo de batalha, macabros
e valiosos espólios de guerra, para se munirem contra as possíveis, e prováveis, novas
investidas do governo federal. No Rio de Janeiro, até então capital do Brasil, já era
notável a preocupação da alta repartição do governo federal, quando políticos florianistas,
ligados ao ex-presidente Marechal Floriano, pressionavam o atual presidente Prudente de
Morais por uma ação que colocasse fim de uma vez nesse reduto fanático monarquista.
Por sua vez, o Governo Federal decidiu “subir o nível” de sua intervenção no sertão
baiano, enviando o considerado “herói do exército”, coronel Moreira César, famoso pela
repressão aos envolvidos na Revolta Federalista (1893-1896), para acabar com o
Conselheiro e sua gente. De acordo com Facó:

[...] 3ª expedição, comandada pelo coronel Moreira Cesar. Constituiu-


se de 1300 homens, uma bateria de artilharia e um esquadrão de
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cavalaria. A tropa estava fartamente municionada com 16 milhões de


tiros. Dispunha de fuzis Mannlicher e Comblain. (FACÓ, 1972, p.100)

Entretanto, nada pudera fazer o coronel Moreira César, morto no dia 3 de março
de 1897, exatamente um mês após ter embarcado do Rio para a Bahia. Os principais
nomes da 3ª expedição foram mortos pelos camponeses que, após uma exaurida batalha,
tomaram dos soldados mais armas e munições, assim se municiando, fortalecendo o poder
de defesa do Arraial e empregando mais uma amarga derrota à República que via sua
poderosa e “desmedida” investida falhar. Além de Moreira César, também caiu morto seu
substituto no comando da tropa, coronel Tamarindo e o comandante da artilharia, o
capitão Salomão Rocha. Vale ressaltar aqui a violência utilizada pelos conselheiristas
para “dar fim” aos corpos dos governistas falecidos em combate. Vejamos:

E se vingaram terrivelmente dos assaltantes. Decapitaram oficiais e


soldados mortos, queimaram-lhes os corpos, alinharam em seguida, à
margem da estrada, as cabeças sangrentas. Era a resposta às atrocidades
inomináveis contra eles praticadas. Era um aviso ao adversário para que
não voltasse. Era a convicção de que defendiam o que lhes pertencia, e
que deviam fazê-lo a todo custo. (FACÓ, 1972, p. 100)

A notícia sobre a derrota da 3ª expedição logo se espalhou pelo Brasil. A morte


de dois coronéis e o aniquilamento de uma das maiores forças já enviadas pelo Governo
Federal para aquelas bandas do país se tornaram assunto principal nos maiores periódicos
do Rio de Janeiro. O periódico O PAIZ publicou, no dia 8 de março de 1897, em sua
primeira página, sob o título alarmante de “A CATASTROPHE”, as principais notícias e
dois telegramas de militares falando acerca do massacre. A seguir, podemos conferir a
edição do O PAIZ onde se encontra a matéria alarmista, podemos também encontrar o
retrato falado do Coronel Moreira César, morto em combate:
Vejamos os dois telegramas, um do comandante do 3º distrito e o outro sendo do
Major Cunha Mattos ao Coronel Souza Menezes:

Bahia, 7 de março de 1897 [...] Della consta, depois das forças se


retirarem, após a morte do coronel Moreira Cesar, foi um completo
desastre. Perdia quatro canhões, munição de infanteria, bem como
mortos. Falleceram também coronel Tamarindo, capitães Diogo
Antonio Bahia, Joaquim Quirino Villarim, José Salomão Agustinho da
Rocha, tenente Pires Ferreira, alferes Pol y, Coelho, Vanique Olympio
Tavares, Trajano, Cosme dos Reis. Além de outros do 9º e do 10º.
Soldados mortos, 200, além dos feridos e extraviados. Panico apoderou-
se dos soldados, segundo a mesma parte, ataque o sem guarnição,
mandou coronel Menezes retirar doentes e toda a munição possível e
uma metralhadora para Queimadas, providenciando inutilizar munição
não foi possível conduzir, retirar forças dispersas que chegassem para
35

Queimadas. Vivo sentimento – Coronel Saturnino, comandante do


districto. (A CATASTROPHE, 1897, p. 1)

Conselheiristas, com carabinas, vararam o infeliz coronel com uma


bala, acidente este que foi imediatamente comunicado ao coronel
Tamarindo, [...]. Tal era a fuzilaria, porém, que o inimigo fazia que os
officiaes e praças cahiam mortos ou feridos, inclusive eu que fui ferido
levemente na coxa e na nadega direita. [...] Em seguida o coronel
Tamarindo é varado por uma bala, os conductores de feridos
abandonaram estes que são sacrificados. (A CATASTROPHE, 1897,
p.1)

Os dois telegramas trazem informações contundentes e não se preocupam em


esconder a explícita violência cometida pelos “fanáticos”. Certamente, o O PAIZ tinha
como objetivo unir a sociedade brasileira contra a ameaça fanática. Desta forma, em busca
da união definitiva entre os brasileiros podemos identificar alguns pontos importantes
nessas duas citações: Os oficiais, homens treinados e estrategistas armados com munições
modernas, foram mortos por meros camponeses sem grandes trunfos; os inimigos eram
pessoas depravadas, não-civilizadas, que se utilizavam de atos extremamente violentos
para, mais do que vencer a guerra, demonstrar seu desprezo pela civilização, representada
pelas forças Republicanas; a sociedade estava perdendo a Guerra. Estas informações,
estando dispersas, podem não significar muita coisa no que tange ao processo de
motivação da sociedade buscado pela Imprensa, porém, ao associá-las umas com as outras
e com todo o contexto de derrota no referido conflito, indubitavelmente os jornais criam
uma atmosfera de desespero frente as derrotas das forças governistas e o avanço das
forças conselheiristas.

Diante destas partes dos respectivos telegramas, percebe-se que O PAIZ enquanto
um dos principais órgãos de imprensa da República, procurou mostrar a extrema violência
dos algozes que a sociedade republicana estava enfrentando. Afinal, sabendo da sua
grande tiragem, circulação e influência na sociedade brasileira, utilizar de sua primeira
página para divulgar este tipo de acontecimento vai de encontro às já discutidas práticas
de poder. Assim, entre centenas de mortos, feridos e “extraviados”, a situação em que a
República se encontrava era complicada. Até aquele momento nenhuma das três
expedições enviadas com a missão de destruir o Arraial de Canudos obteve sucesso, por
outro lado, Antonio Conselheiro e sua gente, mesmo com as inúmeras baixas, ficavam
mais fortes ao imputar medo na sociedade brasileira e desmoralizar a República e o
Exército, ironicamente, com a indireta ajuda da Imprensa.
36

De acordo com Facó (1972, p.105): “Entre a derrota da 3.ª e a chegada da 4.ª
expedição a Canudos decorreram quase quatro meses. Esse espeço de tempo não perdido
pelos sublevados. Foram meses de intensos preparativos [...]”. A quarta expedição foi a
última, e mais forte, enviada pelo Governo Federal que a qualquer custo queria dar como
finalizada a tal sublevação dos camponeses que tanto já teriam tirado da honra
republicana. Designados para esta última investida estavam os generais João da Silva
Barbosa e Cláudio do Amaral Savaget, cada um liderando uma coluna de com mais de
quatro mil soldados, armados com as mais modernas armas até então. De fato, a expedição
preparada pela República era a mais bem preparada desde que se iniciou o conflito contra
o arraial do Conselheiro, entretanto, mesmo possuindo um alto poder de fogo, esta não
ficou isenta de perdas decorrentes dos contra-ataques dos “canudenses”.

Antes de entrar em Canudos a força expedicionária comandada pelo


general Savaget (a 2.ª coluna da 4.ª expedição governista) sofreu baixas
pavorosas. Somente entre a serra de Cocorobó e Canudos, numa
distância de aproximadamente duas léguas, suas perdas subiram a 330
homens, num total de 2.350 soldados e oficiais. A oficialidade pagou
nessa travessia um pesado tributo, com sete mortos e oito feridos.

Perdas igualmente alarmantes verificar-se-iam no assalto de 18 de


julho, que o comando da 4.ª expedição considerava decisivo para
esmagar de vez o reduto rebelde. Mas o feitiço voltou-se contra o
feiticeiro. O choque dramático desse dia, considerado, depois em ordem
do dia, como uma vitória do governo, fora pelo menos “uma vitória
desastrosa”, como a qualificou Euclides da Cunha. Dos 3500 soldados
e oficiais lançados ao ataque, mais de mil foram postos fora de combate.
O número de oficiais mortos e feridos deixava muitas unidades
praticamente sem comando. (FACÓ, 1972, p.103)

Como podemos ver, as percas por parte dos governistas eram brutais. Muitos
mortos, feridos e homens dados como fora de batalha. Mais brutal ainda era a estratégia
adotada pelos camponeses que com sua experiência adquirida nas últimas três expedições,
conseguiam driblar e “brincar” com as tropas governistas. Ressaltando também a
importância das características morfológicas do campo de batalha. Características essas
já ressaltadas aqui. Vejamos:

Os homens de Canudos tinham conseguido aperfeiçoar de maneira


notável suas táticas de luta, seus métodos de dissimulação, seus ardis,
aparecendo num relampejar, desferindo golpes fulminantes no inimigo
e novamente desaparecendo céleres.

Os expedicionários não conseguiam dar um passo nas vizinhanças de


Canudos sem ser observados em todos os movimentos pelos
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campesinos em revolta. [...] Enquanto isso, as armadilhas se


multiplicavam, ao longo das estradas, aproveitando a ondulação do
terreno, as margens do rio Vasa-Barris, as capoeiras, as passagens das
serras. (FACÓ, 1972, p. 110-111)

As investidas continuaram, armadilhas eram montadas, de assalto em assalto o


número de inimigos ia decrescendo lentamente. Outro fator de extrema importância
surgiu no decorrer da investida: a fome, que também pode ser considerada como
consequência do campo de batalha. Ninguém esperava que a batalha durasse tanto, assim,
muito rapidamente se acabaram os víveres e os soldados tiveram de contar com a própria
sorte para encontrar comida e água em um terreno semiárido. De qualquer forma, a
batalha perdurou até o dia cinco de outubro, durando aí quase um ano.

Canudos não se rendeu...; resistiu até o esmagamento completo.


Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5
ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos
morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma
criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
(CUNHA, 1902, p. 549)

Antonio Conselheiro, o fanático, o santo endemoniado, falecido poucos dias antes


da queda de seu reduto, no dia 22 de setembro, supostamente vítima de disenteria, teve
seu corpo exumado pelos soldados vitoriosos no dia seguinte ao término da guerra.

Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um


lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas
flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de taboa, o corpo
do “famigerado e bárbaro” agitador. Estava hediondo. Envolto no velho
hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefacto
e esquálido, olhos fundos cheios de terra – mal o reconheceram os que
mais de perto o haviam tratado durante a vida. [..] Fotografaram-no
depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade:
importava que o país se convencesse bem de que estava afinal extinto,
aquele terribilíssimo antagonista. (CUNHA, 1902, p. 550)

Percebemos aqui a extrema importância atribuída a produção de uma ata que


comprovasse a identidade do já falecido o Antonio Conselheiro. Certamente, uma forma
de garantir a paz à sociedade brasileira que acompanhava o andar da guerra de maneira
quase intima a partir dos telegramas publicados pelos jornais. Para os vitoriosos, porém
surrados, combatentes, espólios de guerra melhor não houve. Ainda no dia 5 de outubro,
O PAIZ, como já era costume, divulga em sua coluna “SUCESSOS DA BAHIA”, alguns
telegramas de seus correspondentes que se encontravam próximos à guerra. Devido à
distância entre correspondente e periódico, ainda se compartilhavam informações do dia
38

3, entretanto, já se faz notar a euforia das tropas governistas em vislumbrar a vitória.


Vejamos uma passagem desta publicação:

Monte Santo,3 – Continua a resistência do inimigo, que, apertado na


igreja nova, não resistia ha muito. [...] O batalhão paulista tem
acompanhado brilhantemente os esforços heroicos do exercito. A
victoria é infalível. A republica é imortal. Tranquilisem-se, pois, os
leitores e não dêm ouvidos a boatos. Não será depois de haverem
perdido todas as suas posições estratégicas e de estarem reduzidos á
posse de meia dúzia de casas arruinadas e da celebre latada, pois que a
igreja nova é um montão de ruinas, que os fanáticos poderão enfrentar
com vantagens os nossos bravos [...]. (SUCESSOS DA BAHIA, 1897,
p. 1)

É então que, finalmente, no dia 7 de outubro de 1897, é anunciada a vitória das


forças governistas contra os insurgentes de Canudos. O O PAIZ publica em sua primeira
página uma notícia quase sensacionalista mostrando a caricatura dos dois generais
comandantes da 4.ª expedição. Para o periódico, a República já poderia voltar a sossegar,
pois o reduto do fanatismo estava no chão, junto de seu falecido, e degolado, líder,
Antonio Conselheiro.
O conflito foi amplamente noticiado sendo acompanhado diariamente pelos
principais periódicos da época. Através das práticas de poder decorrentes da influência
da Imprensa, a Guerra de Canudos passou de um “simples conflito” entre a República e
revoltosos camponeses para uma guerra, quase ideológica, entre o republicanismo e o já
quase extinto monarquismo. Entretanto, para entendermos melhor de que forma se
construiu e se inseriu a representação da Guerra de Canudos no imaginário da sociedade
brasileira, precisamos analisar de maneira mais específica a forma como os leitores
recebiam as notícias, através dos periódicos, e como estes reagiam a elas

2.2 A GUERRA DE TODO MUNDO

Assim como já foi debatido anteriormente, a Guerra de Canudos obrigou à


República a se mobilizar militarmente para que esta pudesse dar um fim no Arraial do
Conselheiro, onde supostamente se planejava uma “Intentona Monarquista”, entretanto,
deve-se destacar as dinâmicas, práticas e estratégias utilizadas pela Imprensa carioca,
principalmente por periódicos aliados da República, para informar à sociedade brasileira
sobre os acontecimentos no leito do Vaza-Barris, além de se destacar a receptividade dos
leitores brasileiros para com estes acontecimentos.
39

Durante quase um ano, quatro expedições foram enviadas a Belo Monte com o
intuito de eliminar a suposta ameaça monarquista liderada por Antonio Conselheiro, dessa
forma, uma verdadeira guerra foi iniciada findando no saldo de aproximadamente vinte e
cinco mil pessoas mortas durante esse período. Porém, ao contrário do que acreditavam
os altos escalões do exército, a resistência de Canudos foi implacável, derrubando um
número considerável de soldados, oficiais e até mesmo Coronéis famosos. Derrota
seguida de derrota foi o horizonte da República durante algum tempo, e assim como
muitos países fazem durante um período conflituoso, o Presidente precisava do respaldo
popular da sociedade brasileira para que esta pudesse ajudá-lo simbolicamente, dando
legitimidade ao possível massacre a ser realizado no interior da Bahia. Entre o querer da
República até o fazer da sociedade brasileira existia uma questão crucial: Como
convencer os brasileiros de que meros camponeses que dispunham apenas de facas e
garfos são uma ameaça para a recém proclamada República? A resposta é simples, a
“invenção”, ou produção, de um inimigo. O aparecimento de um inimigo é comumente
utilizado como pretexto para ações desmedidas e apoio imensurável por parte de grupos
sociais que se sintam ameaçados, prática bastante comum ainda nos dias de hoje, como
pôde-se deflagrar na eleição de 2018 quando o, até então, presidente Jair Messias
Bolsonaro uniu parcela do eleitorado brasileiro contra a “ameaça do Comunismo”
representado pelo Partido dos Trabalhadores, e também pela Esquerda ideológica. No
caso de Canudos, a narrativa principal remetia a existência de um grupo de “Fanáticos”,
vivendo na até então região Norte do Brasil, lugar “inalcançado pela civilização”, que
tramavam contra o advindo e a manutenção do “Moderno”, da “Civilização”, da
“República”. Desta forma, os indivíduos que eram “Civilizados”, que não queriam um
retorno da sociedade brasileira aos tempos da Monarquia, considerados como atrasados,
arcaicos, deveriam lutar por seus ideais, assim esmagando o Arraial considerado como
antro do fanatismo e da Depravação.

Mas, como atribuir a alguém características, práticas ou até mesmo ideologias que
não condizem com a natureza do indivíduo? Mais uma vez, através da “invenção”, ou
produção, da representação deste indivíduo almejado pelo acusador, auxiliado pela
difusão de um discurso que denuncie o possível risco causado por estas pessoas, ou
grupos. Pode-se assim concluir que esta dinâmica foi utilizada pelos periódicos cariocas
no plano da “guerra simbólica” cujo o espólio de guerra seria o apoio da sociedade
brasileira como justificativa dos ataques contra os conselheiristas.
40

Para entendermos mais sobre esta “guerra simbólica” e suas consequências no que
tange à formação de um veredito da sociedade brasileira, precisamos discutir sobre o
conceito de representação. De acordo com a historiadora Sandra Jatahy Pesavento:

Representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é


presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver
uma ausência. A ideia central é, pois, a da substituição, que recoloca
uma ausência e torna sensível uma presença.

A força da representação se dá pela sua capacidade de mobilização e de


produzir reconhecimento e legitimidade social. As representações se
inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de
veracidade. (PESAVENTO, 2014, p. 40- 41)

Mediante o exposto, podemos concluir que trabalhar utilizando representações,


seja para construir um discurso ou para difundi-las no seio do imaginário popular de uma
determinada sociedade, é apresentar àqueles que não estavam participando do
acontecimento história uma parte verossímil, mas não verdadeira, do real acontecimento
ou indivíduo de onde se derivou aquela representação. Assim como a Sandra Jatahy
destaca na citação acima, “a ideia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma
ausência [...], ou seja, basicamente, a Imprensa, principalmente aquela cujos periódicos
eram integralmente escritos, isto é, sem conter imagem alguma de suas notícias
divulgadas, de certa forma, faziam os seus leitores produzirem imagens, ou
representações, dos acontecimentos lidos. Este mesmo procedimento aconteceu durante
a Guerra de Canudos. Vejamos, a batalha aconteceu nos rincões do Estado da Bahia,
distante a aproximadamente 394 quilômetros da capital do Estado, Salvador, além disso,
poucos eram os jornalistas que se atreviam a se aproximar da Arraial com medo de
perderem a vida para os “canudenses”, desta forma o que restou para a sociedade
brasileira era acompanhar as notícias diárias e criar em suas mentes representações
através das narrativas dos periódicos.

Os jornais O PAIZ e a Gazeta da Tarde, escolhidos para a produção deste trabalho


monográfico, acompanharam a Guerra de Canudos se utilizando de diferentes filtros
ideológicos. Como já debatido, O PAIZ sendo ligado intimamente com a República e seus
políticos, tratou logo de reproduzir um discurso acusando os “conselheiristas” de
fanáticos e monarquistas, vale ressaltar que neste capítulo não discutiremos os
significados, usos e problematizações do termo fanático, nem sua relação com o
monarquismo; já a Gazeta da Tarde, mesmo se considerando republicana, esta maneirou
41

em suas acusações contra o povo do Arraial e chegou a ser empastelada pelas alas
republicanas no ápice da guerra.
Nos primeiros momentos do combate, o que corresponde a 1.ª expedição, as
notícias no O PAIZ ocupava pequenos espaços na coluna dos telegramas, destinada a dar
uma explanação sucinta sobre acontecimentos nos Estados Brasileiros e no resto do
mundo. Assim, causando pouco alarde e, provavelmente, passando despercebidas pelos
leitores menos atentos do periódico. Percebe-se então que no início da Guerra, quando os
conselheiristas não eram considerados como uma grande ameaça para a estabilidade da
República, os periódicos não dedicavam um grande espaço em suas colunas para destacar
as ações deste grupo.
A dinâmica empregada pela Gazeta da Tarde já contém um certo grau de alarde,
esta anuncia os acontecimentos da 1.ª expedição em uma coluna com o nome do próprio
Conselheiro, tendo logo abaixo o suposto número de “canudenses” mortos. Mesmo se
encontrando na segunda página do periódico, esta notícia já pode ser considerada como
mais chamativa para os leitores, devido a seu expressivo título. De qualquer forma, não
considerando o conflito como algo digno de um alto grau de mobilização, aliando isso à
uma ausência do futuro discurso sobre a natureza do Arraial ser monarquista e “fanática”,
O PAIZ não se preocupou em atiçar a sociedade brasileira para um possível apoio nos
campos do social e do ideológico, enquanto que a Gazeta da Tarde continuou a dar maior
visibilidade para o Conselheiro e sua gente, sempre publicando as notícias referentes ao
Arraial em colunas dedicadas exclusivamente ao assunto, como “ANTONIO
CONSELHEIRO” e “ATAQUE A CANUDOS”, e todas na primeira página.
Este padrão de publicações do O PAIZ apenas irá mudar, de fato, com o choque
promovido pela 2.ª expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, contra os
“canudenses”, a partir de então, pode-se perceber a emergência de recorrentes notícias
sobre Canudos fora da coluna dos “TELEGRAMMAS”, compondo agora colunas próprias
com o nome do Conselheiro. Destarte, o leitor mais assíduo, aquele que acompanha o
periódico diariamente, vai percebendo a mudança na dinâmica de publicações, a
alternância da natureza das postagens, por consequência o leitor vai tomando lado naquela
batalha entre os camponeses e os soldados, mas que também tem um terceiro sujeito, parte
da Imprensa.
Para finalizar este ponto, abordaremos uma publicação do O PAIZ acerca da
coluna intitulada como “FRIVOLIDADES”, na matéria em questão, publicada no dia 4 de
fevereiro, distante quase que um mês da queda da 3.ª expedição, uma leitora solicita a
42

opinião da sogra do colunista. Esta sendo natural da Bahia deveria discorrer um pouco
sobre as “façanhas” que Antonio Conselheiro estaria fazendo em sua “capitania” natal.
Não conseguindo diretamente o testemunho da senhora, o leitor ressalta a conversa que
sua esposa teve com a mãe onde esta diz que:

a velha está indignadíssima contra o Antonio Conselheiro, e mais


indignada ficou ao ver o retrato do santo, cuja figura lhe fez lembrar a
do papão Nicolao, do João Felpudo, livro com estampas coloridas, que
foi um dos encantos da sua remota meninice. [...] Se ele fosse bahiano,
disse ella, teria desculpa, porque aos bahianos são permitidas todas as
fantasias, principalmente quando não saem da sua terra; mas, se o diabo
do homem é do Ceará, por que não se deixou ficar no Ceará. Se em
Canudos ou n’outro qualquer ponto do sertão da Bahia algum dia
aparecesse um santo de verdade, este com toda a certeza sera bahiano!
Nós não precisamos pedir nada aos outros Estados! (FRIVOLIDADES,
1897, p. 1)

A partir deste episódio, pode-se destacar dois pontos principais: O primeiro é que
a discussão sobre Canudos já estaria se popularizando. Pode-se confirmar isso ao
observarmos o pedido inusitado de uma leitora para que a sogra do colunista falasse um
pouco sobre os acontecimentos; o segundo ponto é a associação do Conselheiro para com
a religiosidade, visto que a sogra do colunista associa as peripécias do homem para com
a de “santos”. Por fim, o colunista fala um pouco sobre a sua própria opinião acerca do
Conselheiro, este acredita que o líder de Canudos não seria um “fanático” religioso e sim
um instrumento de agitação social controlado por monarquistas objetivados a derrubar a
República. De fato, as opiniões sobre a campanha de Canudos eram das mais variadas,
mas por que tanto se falava em “Fanáticos” religiosos e suas possíveis associações com
os derrotados Monarquistas? O que de fato relacionava um ao outro e por quê estes não
poderiam existir na República?
Tomando estes questionamentos como base, analisaremos no próximo e último
capítulo deste trabalho monográfico o conceito de “Fanático”, sua relação para com a
religiosidade popular encontrada, principalmente, no sertão do nordeste brasileiro, além
de debatermos sobre sua suposta relação com o movimento de restauração monárquico.
43

3 REPRESENTANDO O INIMIGO

[...] o termo fanático. Este veio de fora, dos meios cultos para o sertão,
designando os pobres insubmissos que acompanhavam os conselheiros,
monges ou beatos surgidos no interior, como imitações dos sacerdotes
católicos ou missionários do passado. É um termo impróprio,
inadequado, sobre ser pejorativo. (FACÓ, 1972)

Neste capítulo trataremos sobre as características das representações criadas


acerca do indivíduo chave para esta pesquisa, o “fanático”, neste caso o “fanático
conselheirista”, afinal, a partir do consumo dos discursos jornalísticos construídos e
difundidos pela Imprensa Carioca no seio do imaginário popular da sociedade brasileira,
discursos esses trabalhados no capítulo anterior, deflagrou-se a suposta existência de um
inimigo monarquista, ou “bárbaro”, que residia “debaixo do nariz” da República, nos
sertões da região Norte do Brasil, lugar este já considerado como distópico, inalcançado
pela “sociedade”. Entretanto, as características existentes na imagem dos “canudenses”
de fato eram tão problemáticas a ponto de causar tamanha crise e conflito? Ou a imprensa
tentou criar um processo conflituoso de “Guerra Justa”?
Abordaremos também a discussão, através da análise dos periódicos selecionados,
sobre o suposto monarquismo presente no Arraial, na pessoa de Antonio Conselheiro,
sendo este o responsável pela formação e investida de Belo Monte sobre a República, e
de que forma este “fantasma imperial” influiu na representação dos moradores de
Canudos, uma vez que estes passaram de meros camponeses travando uma luta em busca
da sobrevivência para um grupo de soldados a mando dos monarquistas revanchistas.
É importante pontuar a natureza da discussão contida neste capítulo, onde,
basicamente, focaremos na análise da dicotomia e alteridade impostas pela
problematização das representações do “Fanático canudense”, o “Monarquista bárbaro”,
e da guerra entre a “República Nova, ou Moderna” e o “Arraial Arcaico, ou Velho”.
Destacando sempre a utilização dos discursos reproduzidos pelos periódicos O PAIZ e a
Gazeta da Tarde.

3.1 A CONSTRUÇÃO DO INIMIGO: BÁRBAROS E MONARQUISTAS

Como nasce um inimigo? Talvez, seria melhor perguntar de que forma se constrói
um inimigo. Principalmente um inimigo, narrado nas páginas dos jornais, com potencial
de abalar a nova estrutura da nascente República brasileira e suas representações sobre
civilização e progresso. A forma pela qual a Imprensa do Estado do Rio de Janeiro
44

conseguiu construir o algoz, bárbaro, da civilização habitante dos rincões do Norte do


Brasil, lugar considerado como arrasado, pobre, miserável e impenetrável pelos bons
costumes que a sociedade leva, evidencia o papel dos jornais na fabricação imagética dos
inimigos da República como sendo aqueles que detestam qualquer tipo de avanço rumo
ao futuro e preferem manter seus pés enfincados no passado: o “fanático”, podendo
também ser chamado de “bárbaro” e, por certa parcela mais conspiracionista,
“monarquista” atentava à ordem e deveria ser combatido.
Com a Guerra de Canudos (1896-1897) a Imprensa, principalmente a aliada à
República, como O PAIZ, não perdeu tempo e passou a alardear que os monarquistas
estariam de volta, dessa vez controlando um tal de Antonio Conselheiro e o instruindo a
formar um grupo de sertanejos “fanáticos”, atrasados, do Norte do Brasil e atacar a tão
moderna República.
Impiedosa em seus ataques, a imprensa utilizou de nomenclaturas, matérias
alarmistas e até mesmo a mudança na dinâmica de postagens na guerra de palavras que
travou contra os canudenses. Entretanto, como entender essa criação? O que seria essa tal
imagem, ou representação, criada pela Imprensa contra os “canudenses”?
Utilizemos parte da obra de Roger Chartier para discutir brevemente acerca do
conceito de “Representação”. Vejamos:

As definições antigas do termo [...] manifestam a tensão entre duas


famílias de sentidos: por um lado, a representação como dando a ver
uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que
representa e aquilo que é representado; por outro, a representação como
exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de
alguém. (CHARTIER, 2002, p. 20)

Mesmo este sendo um conceito complicado, dada a sua polissemia, podemos


associar o discurso da Imprensa ao primeiro sentido apresentado por Chartier, visto que
ao “representar” os “canudenses” enquanto “fanáticos”, os periódicos promoviam,
propositalmente, uma grande distinção entre o representado e a representação, talvez, por
entenderem que a “imagem original” dos camponeses de Canudos não causaria o mesmo
estardalhaço no imaginário popular da sociedade brasileira.
Na Historiografia, “bárbaro” era todo aquele estrangeiro que não tinha como
língua principal a mesma que era falada nos domínios gregos da Antiguidade.
Posteriormente, mas ainda na Antiguidade, essa “nomenclatura” seria alterada para se
referir a pessoas que viviam fora dos limites do Império Romano, e ainda mais tarde,
“bárbaro” seria todo aquele não-civilizado, ou seja, o inalcançado pela civilização, pela
45

sociedade, o sem cultura. Sendo este o ponto onde se relaciona o “bárbaro” com o
monarquista, de acordo com os republicanos, no período da Guerra de Canudos.
O monarquista seria o ultrapassado, no campo político este acabara de ser
derrotado por uma nova teoria sócio-política, mais avançada, mais forte, mais moderna.
Modernidade essa que, de acordo com Raymond Williams (1976), estaria sendo
assimilada ao melhorado, satisfatório ou eficiente. Para todos os fins, o “tempo” da
Monarquia já teria passado e a sociedade brasileira não gostaria de passar por qualquer
tipo de nostalgia, fosse essa em qualquer nível ou grau.
A ação da Imprensa em colocar a população da capital da república contra os
“bárbaros canudenses” seria parte da estratégia dos republicanos para manter segura uma
sociedade que já teria sofrido demais nas mãos de uma Coroa que não dava a devida
importância para o Brasil, e qual seria a melhor forma de unir uma nação contra um
inimigo em comum, mesmo que este fosse inventado, senão em um momento de extremo
cuidado como é o caso de uma Guerra, ainda mais quando o conflito é em uma região do
Brasil considerada como atrasada, sem civilização, em outras palavras, extremamente
propícia para o fortalecimento de pessoas e ideias também consideradas como atrasadas
e descivilizadas.
Tanto o O PAIZ, quanto a Gazeta da Tarde, se utilizaram de diferentes dinâmicas
e estratégias jornalísticas, como a veiculação de matérias alarmistas, grande cobertura
sobre os acontecimentos, aumento do número de colunas dedicadas a noticiar o conflito,
onde, em certos pontos podendo ser consideradas como antagônicas, para noticiar o andar
da guerra. A Gazeta da Tarde chegou a ser empastelada por, supostamente, defender os
“canudenses”. Com o periódico O PAIZ, a discussão é um pouco mais complicada. Sendo
um dos principais órgãos de Imprensa da República, este jornal sequer cessou o ataque
midiático contra Belo Monte durante o quase um ano de batalha, inclusive mantendo
postagens regulares após o fim da guerra. Assim, ao considerar que as postagens
regulares e extravagantes dos periódicos brasileiros contribuíram para imputar um
inimigo dentro do imaginário, além de transformá-lo em um indivíduo de alta
periculosidade, fosse este um monarquista ou apenas um fanático religioso liderado por
Antônio Conselheiro, como aparece no dia 18 de março de 1897, algumas semanas após
a queda da 3ª. expedição, quando o O PAIZ, que já tinha veiculado matérias de primeira
página com o título alarmante de “A CATASTROPHE”, passa a reproduzir notícias
pejorativas sobre os “canudenses”, muito provavelmente, querendo influenciar a opinião
pública:
46

[...] a noticia de que na Bahia circulava em rodas officiaes ter sido preso
em Monte Santo o celebre faccinora João Abbade. Como se sabe, esse
bandido era a suprema esperança de seu colega Antonio Conselheiro, o
desgraçado fanático que a monarchia tomou para seu cabo de guerra
nos sertões do heroico Estado do Norte. (A CATASTROPHE, 1897, p.
1)

Facínora, desgraçado e fanático. Adjetivos pejorativos que quando reproduzidos


por um dos maiores periódicos da Imprensa naquela época, muito facilmente pode
“transformar em verdade” narrativas que não se tem comprovação. Esse tipo de processo
do “crer em uma incerteza até que esta se torne verdade” é bem referenciado por Patrick
Charaudeau (2015), vejamos:

O efeito de verdade está mais para o lado do “acreditar ser verdadeiro”


do que para o do “ser verdadeiro”. Surge da subjetividade do sujeito em
sua relação com o mundo, criando uma adesão ao que pode ser julgado
verdadeiro pelo fato de que é compartilhável com outras pessoas, e se
inscreve nas normas de reconhecimento do mundo. Diferentemente do
valor de verdade, que se baseia na evidência, o efeito de verdade baseia-
se na convicção, e participa de um movimento que se prende a um saber
de opinião, [...]. (CHARAUDEAU, 2015, p. 49)

A partir desta citação, pode-se relacionar as estratégias e dinâmicas utilizadas


pelos periódicos com o efeito de verdade, afinal, como já apresentado nesta pesquisa,
tanto o O PAIZ quanto a Gazeta da Tarde publicaram intensamente notícias acerca do
Arraial relacionando-o, assim como os “canudenses”, a narrativas e representações que,
mesmo não condizentes com a realidade, defendiam a queda do “Novo” e a emergência
do “Arcaico”, ou do “Fanatismo”.
Entretanto, como provar que a Monarquia estaria por trás daquele desastroso
arranjo social? Como de fato comprovar que Antonio Conselheiro e sua gente eram
fanáticos religiosos? Aliás, o que exatamente seria um fanático?
A imprensa também publicava documentos que expressavam posicionamentos
das autoridades, como foi o caso do telegrama enviado ao Presidente da República pelo
então governador da Bahia, Luiz Viana, filiado ao Partido Republicano Federalista da
Bahia (PRFB):

Bahia, 17 – Pelo correio dirigi a V. Ex. uma mensagem sobre os


antecendentes e occurrencias das expedições contra Antonio
Conselheiro e seus sequazes, [...]. Sr. Presidente da República—No
momento acutal, em que o paiz inteiro, tomado de dolorosa surpresa,
lamenta a perda irreparável de uma porção de seus filhos que, honrando
o exercito brasileiro, fora dele arrebatada pela fúria do fanatismo,
47

applaudido pelos inimigos das instituições vigentes e pelos


exploradores de toda a ordem, [...] (O PAIZ, 1897)

Sobre a citação acima, mais uma vez, chama-se a atenção do leitor para o
tratamento utilizado pelo remetente para com os “canudenses”. Sequazes, fúria, fanatismo
e, por último, inimigos das instituições vigentes. Ora, a instituição vigente naquele
momento seria a República, então mais uma vez a mídia utiliza de seu “poder” para influir
na opinião pública, mesmo que não diretamente. Outra coisa que também podemos
destacar é o nível de hierarquia onde foi produzido este telegrama, afinal, a opinião de
um governador de um Estado tão importante para a União como a Bahia é de se levar em
consideração por qualquer leitor brasileiro. Vale ressaltar que naquela época, o Estado da
Bahia, assim como a maioria das federações, era controlado por um político filiado a um
partido republicano. No caso do Estado da Bahia no ano de 1897, o governador era Luiz
Viana, filiado ao Partido Republicano Federalista da Bahia (PRFB), assim sendo, este se
compartilhava o sentimento de defesa dos interesses da República.
No dia 20 de fevereiro de 1897, um pouco antes do envio e derrota da 3.ª
expedição, O PAIZ realiza uma publicação polêmica sobre o Arraial do Conselheiro.
Atacando os oposicionistas da República, a matéria “O CASO DO CONSELHEIRO”
indicará a existência de atores ocultos, indo de pessoas, órgãos de Imprensa, bancos
nacionais e firmas internacionais, que estariam trabalhando para apunhalar o regime
republicano. Vejamos:

De novo os inimigos da República tentam abalal-a nos seus


fundamentos e desta vez, como das outras, nem ao menos tem a
lealdade de se apresentar a descoberto, tomando a responsabilidade das
suas acções, dizendo alto e firme o que pretendem. [...] O caso de
Antonio Conselheiro é uma nova fórmula da reação monarchica, e o
governo da República precisa desde já libertar-se de condescendências
perigosas e reprimir com pujança as audácias dos seus inimigos, se não
quiser mais tarde enfrentar-se com dificuldades superiores. Nunca a
imprensa monarchista foi tão atrevida e violenta como agora, nunca os
partidários do regimen deposto mostraram tanto arrogância e poderio
moral, e esta exaltação agressiva, esta segurança nos ataques, [...].
Quando o governo federal se resolveu a mandar uma forte expedição
militar para dissolver a horda de Conselheiro, a imprensa monarchista
explorou em todos os tons esse procedimento, apresentado-o como um
atentado à religião, como uma perseguição ímpia e sanguinária às
crenças de um grupo de brasileiros, cujo crime era o seu fervor devoto,
as suas tendencias mysticas. Essa indignação era claramente postiça,
simples expediente declamatório de tarlufos jornalistas, nem se pôde
supor que uma inteligência medianamente culta possa defender e apoiar
bandos compostos de criminosos, de foragidos das prisões, de
48

desclassificados sociaes de toda a especie. (O CASO DO


CONSELHEIRO, 1897, p. 1)

Como é mostrado na citação acima, existe uma revolta contra os indivíduos


subordinados ao movimento de restauração monárquica. Enfaticamente, a coluna afirma
que a forma mais efetiva de se lidar com Canudos e os “fanáticos” seria reprimindo
rapidamente e de maneira definitiva o Arraial e qualquer indivíduo que já ousou chamar
aquilo de casa. Mas o que justificaria essa grande preocupação da Imprensa republicana
em “enterrar” Canudos? Certamente a Imprensa já entendia a suposta gravidade da
situação. De maneira alguma o exemplo de Canudos poderia ser seguido por outro grupo
de pessoas em outra região do Brasil, afinal o primeiro Arraial já dera bastante trabalho
para o Governo Federal, não se poderia correr o risco de um novo massacre e, acima de
tudo, de um novo abalo, desta vez fatal, na “Ordem” assegurada pela República.
Ao criticar a mídia supostamente monarquista, o O PAIZ, mais uma vez, contribui
para a construção de um inimigo que, embora exista, até àquela altura, não se tinha
nenhum tipo de confirmação sobre seus perfis sociais, sobre quem era aquelas pessoas,
de onde vinham e o que faziam. Afinal, de que forma o periódico poderia atestar que os
sertanejos eram criminosos, foragidos de prisões ou até mesmo desclassificados sociais?
Certamente, aqui vemos de que forma a Imprensa aliada à República estava se utilizando
de estratégias e alcance midiático para arrecadar apoio e respaldo da sociedade brasileira.
Dando continuidade à matéria:

Que os monarchistas patrocinavam o banditismo de Conselheiro era


patente para os republicanos, senão para todos, pelo menos para os que
aprenderam a desconfiar e guardam a memoria da felonia de 93. Há
pouco tempo ainda O Paiz noticiou que um banco conhecido pagara por
conta de uma firma italiana de São Paulo, uma factura de armas de
guerra importadas da Bélgica, no valor de sessenta a setenta mil francos.
Dias depois em S. Paulo descobria-se um forte contrabando de armas
de guerra e recentemente a policia soube que uma avultada remessa de
espingardas e munições seguia de Sete Lagões com destino nos arraiaes
da jagunçada monarchista. [...]. Dizem-nos que o governo já tega em
mãos alguns fios desta tenebrosa meada, na qual estão envolvidos
alguns homens notáveis do antigo regimen, impenitentes aulicos, que,
educados á libre de Incaios de um throno, não se habituam á idea de um
povo so poder governar para si, sem a tutela de uma dynastia parasitaria.
O governo que não hesite, forte como esá pela confiança geral, e
obrigue com mão valorosa estes farçantes restauradores a respeitarem
de uma vez por todas as instituições republicanas. (O PAIZ, 1897)

Muito provavelmente, a revelação sobre um banco que estaria financiando o


Arraial deve ter sido recebida com grande alvoroço pela sociedade brasileira. Afinal, em
49

um momento onde a população deveria estar unida pela vitória da “Ordem”, acontecer de
um Banco apoiar o antro do fanatismo era inconcebível. Esta matéria pode facilmente ser
interpretada como mais uma tentativa da Imprensa em demonstrar como o “planejamento
fanático monarquista” estava bem organizado e estabelecido. Na parte final da matéria
existe uma citação que pode resumir basicamente qual objetivo do jornal nessa construção
e caracterização do inimigo. Afirmar que o governo está forte por causa da confiança
geral da sociedade é constatar que a produção de um inimigo, mesmo que inexistente nas
características alegadas, alcançou êxito.
Como último exemplo, O PAIZ nos traz uma postagem interessante e, no mínimo,
curiosa. De acordo com a matéria intitulada apenas como “CANUDOS”, publicada no
dia 7 de setembro de 1897, a guerra não passaria de uma “revolução restauradora”,
arquitetada pelos políticos “apostolos da monarchia” onde o Conselheiro, mais uma vez,
não passaria de um mero fantoche nas mãos de gente mais “civilizada” que teria planejado
tudo. Vejamos por partes:

[...] tratou-se de pôr em execução o tenebroso plano. Para isso era


indispensável um homem que fosse no norte o que era o Sr. Gaspar no
sul, e esse eles o tinham audaz, resoluto, disposto de grande fortuna,
dedicado até ao sacrifício, conhecedor perfeito dos sertões da Bahia e
ahi gozando de extraordinária influencia desde os tempos do antigo
regimem; [...]. Além disto a intervenção do clero preparara previamente
o interior do grande Estado do norte, incitando nos corações sertanejos
um ódio implacável à República e exhortando-os a combate-a como um
producto da maldição divina. Afim de prevenirem futuras
responsabilidades, no caso de insucesso, corporificaram aquella
diabólica aliança politico-clerical na pessoa de um antigo e poderoso
cabo eleitoral, que há muito conseguira dominar o espirito ignorante de
grande numero de seus conterrâneos, cercando a sua vida de misteriosa
lenda e fingindo porificar-se com flagelações cruéis. Ficou assim
Antonio Conselheiro investido pelos padres do caracter de santo, e
pelos políticos elevado ao posto de general. Desta forma podia-se
occultar a intervenção restauradora dos políticos, attribuindo o
movimento a uma questão religiosa, e mascarar a intervenção do clero,
explicando a questão religiosa como simples resultado do desvario, do
desequilíbrio cerebral de um ignorante fanático. (CANUDOS, 1897, p.
1)

Existem diversos pontos importantes para se analisar nesta primeira passagem da


matéria, comecemos por partes. Esta passagem segue a mesma lógica de reprodução de
notícias com o intuito de difamar os atores do conflito, ora, nas ultimas linhas podemos
identificar a tentativa de atribuir o movimento religioso como um simples “desvario”, ou
“desequilíbrio cerebral”. Posteriormente, Euclides da Cunha em seu livro Os Sertões
também irá corroborar com a teoria de que os sertanejos do Norte em algum grau teriam
50

uma anatomia diferente da dos brasileiros de outras regiões do país. Assim, além de
lutarem pela derrocada da República, os inimigos do Brasil seriam “loucos de uma outra
espécie” que não a do Homo Sapiens Sapiens civilizado. Outro ponto que chama atenção
é a de que o Antonio Conselheiro foi condecorado com o título de General, indo contra
qualquer outro registro já obtido àquela altura da Guerra, visto que se sabia que o
Conselheiro apenas seria um beato “fajuto” e repreendido pela Igreja Católica através de
circulares assinadas por alguns bispos, como já debatido neste trabalho. Diante disso, o
leitor mais atento poderia perceber que o Arraial de Canudos não seria algo simplesmente
inventado e construído por meros sertanejos, e sim algo organizado com o respaldo de
pessoas poderosas e influentes. Continuemos com outra passagem da matéria do O PAIZ:

Propalada a notícia da miraculosa transformação do famigerado


Conselheiro, pejaram-se os sertões de crentes, em cada um delles
contando a República um inimigo feroz, disposto a combatel-a até ao
sacrifício, certo de que assim preparava para sua pobre alma soffredora
um paraiso de indizíveis venturas. Obtido isto, entraram em actividade
os comitês no estrangeiro e os plásticas nas repartições publicas.
Enviaram para os sertões bahianos todos os recursos bellicos, pessoal
idonco, as intrucções do nosso exercito, viveres em quantidade e
dinheiro a rodo. Estava tudo preparado e previstas as consequencias de
mais gravidade. Surgia Canudos como uma simples nuvem negra no
horizonte, prenuncio da tenerosa borrasca a desencadear-se. (O PAIZ,
1897)

Dessa vez, também, não se poupou a palavra inimigo. De fato, o O PAIZ estaria
partindo para declarar abertamente o adversário da República que não somente seriam os
líderes de Canudos, mas sim todo e qualquer “alma” que se juntasse a empreitada do
Conselheiro no interior da Bahia, onde de tudo se valeria, até mesmo sacrifício de suas
vidas. Vale ressaltar também a denúncia de financiamento externo para Canudos, neste
caso, recursos bélicos, pessoal “idonco”, víveres em quantidade e dinheiro a rodo. Como
já discutido, de acordo com O PAIZ, a formação e manutenção do Arraial de Canudos
seria algo mais complicado do que uma simples vila construída por sertanejos pobres,
peregrinos e almas tementes a Deus. Finalizando a matéria, o colunista cita uma nuvem
negra no horizonte, cuja qual estaria trazendo uma “tenerosa” borrasca, ou seja, Canudos
seria a mancha planejada pelos monarquistas revanchistas que viria para derrubar a
República e enterrar a sociedade brasileira na mais profunda escuridão de algo que hoje
seria ultrapassado e controlada por pessoas equivalentes a bárbaros e fanáticos, a
Monarquia.
51

De toda forma, sendo ou não responsáveis pela formação e suposto custeio do


Arraial de Canudos, os Monarquistas remanescentes do Brasil foram inseridos em uma
narrativa construída exclusivamente pela Imprensa para reunir o apoio da sociedade
brasileira e direcioná-lo às expedições contra o próprio Arraial. É inegável,
principalmente nos primeiros anos da República, o quanto partes da sociedade brasileira
tinham de receio contra um possível conflito revanchista promovido pelos monarquistas
buscando restaurar os poderes do Imperador no solo tupiniquim. Se por um lado, através
das notícias e matérias analisadas, fica evidente que não foi necessário criar, literalmente,
uma representação de um monarquista “fanático”, isto é, não se criou uma indumentária
padrão, aspectos físicos pertencentes aos supostos monarquistas, bárbaros, por outro lado,
fica explícito que a simples “existência”, esta sim criada pela Imprensa, foi o suficiente
para arrendar extremo apoio da sociedade contra os “fanáticos”.
Passada a discussão sobre os monarquistas, ainda perdura uma imagem, ou
representação, no seio do imaginário popular do brasileiro durante a Guerra de Canudos,
o “fanático”. Entretanto, o que é um “fanático”? O que definiria um fanático para os
republicanos? Qual o perfil social, ou até mesmo “espiritual”, do Fanático?

3.2 A CONSTRUÇÃO DO INIMIGO: MÍSTICOS E FANÁTICOS

A primeira aparição do verbete “fanático”, ou de sua condição “fanatismo”, não


foi durante a Guerra de Canudos e nem mesmo este continha um tom negativo ou
pejorativo em suas primeiras aparições, já que de acordo com a Enciclopédia Trecani, de
1932, o termo era utilizado pelos romanos para se referir a um indivíduo “inspirado pela
divindade”, ou, “impregnado pela presença divina”, apenas com a emergência do
Iluminismo, representado pelo francês Voltaire, onde este iria associar o fanatismo,
principalmente o religioso, aos conflitos e guerras. O verbete “Fanatismo”, do francês
“Fanatisme”, é referido pela maioria dos dicionários como um estado psicológico de
fervor excessivo, irracional e persistente por qualquer coisa ou tema, historicamente
associado a motivações de natureza religiosa ou política. Logo, o indivíduo que
demonstraria essas características levaria o nome de “fanático”. Argumentando sobre essa
questão, Jaime Pinsky (2014), afirma que: “O detentor da verdade religiosa não apenas
acredita nela com toda intensidade, como acha que deve impô-la aos outros, aos incréus,
aos céticos”. Por essa perspectiva, o fanatismo é associado a um extremismo de caráter
52

nocivo, onde os indivíduos que o praticam têm como hábito a imposição de seus preceitos
e noções de mundo à sociedade não praticante.
Agora, busquemos na historiografia algumas obras que debatam acerca do
conceito de fanático. Vejamos o que diz Facó (1972) sobre o verbete:

Entre meados do século XIX e começos do século XX, sucedem-se em


cadeia movimentos de rebelião de pobres do campo, de norte a sul do
País. Assumem as mais diversas características. Seus pontos
culminantes são Canudos (1896-1897), Contestado (1912-1916) e o
Caldeirão (1936-1938). Apesar da especificidade de cada um, liga-os
um traço comum sobressalente: o choque aberto entre a religiosidade
popular e a religião oficial da Igreja dominante. No nível cultural de
desenvolvimento em que se encontravam as populações rurais,
mergulhadas no quase completo analfabetismo e no obscurantismo, a
sua ideologia só podia ter um cunho religioso, místico, que se
convencionou chamar de fanatismo. Sob esta denominação têm-se
englobado os combatentes de Canudos ou do Contestado, do Padre
Cícero ou do Beato Lourenço: fanáticos. Quer dizer, adeptos de uma
seita, ou misto de seitas, que não a religião dominante. (FACÓ, 1972,
p.39)

Assim como já apresentado anteriormente, Rui Facó afirmará que o termo


“fanático” será algo pejorativo, um conceito utilizado para se referir àquela minoria que
segue uma “ramificação” da religião dominante, no caso do Brasil a religião dominante
seria o Catolicismo. Outro ponto importante citado por Facó é o “nível cultural”
encontrado nas populações rurais, nível este que associado ao analfabetismo e o
obscurantismo pode ser considerado como baixíssimo, este é um dado interessante pois
pode levar a crer que o fanatismo seria característica de populações pobres e com baixo
nível de formação.
O “fanatismo”, nesse sentido, é uma representação direcionada a um grupo
específico de indivíduos, neste caso os sertanejos da região Norte do Brasil no final do
século XIX e início do século XX, que dialoga com outra representação bastante presente
no imaginário das elites regionais do período, o “misticismo”. Essa junção aparece nas
análises de Rui Facó a partir da leitura que faz sobre a emergência dos sujeitos
considerados fora da lei e que atentam à ordem social vigente.

em face de todo um sistema de exploração e opressão, entre as


diferentes reações das massas rurais despossuídas, o cangaço é desde o
início um elemento ativo, o misticismo surge como um elemento
passivo. Manifesta-se sem fins agressivos. Mas, formado o grupo de
místicos em torno de um beato, monge, ou conselheiro, sua tendência é
adotar métodos de ação que, gradativamente, vão entrando em choque
com os da comunidade sertaneja. (FACÓ, 1972, p. 46)
53

Primeiramente, vale ressaltar que os beatos, os monges e os conselheiros, apenas


adquirem um certo “grau” de periculosidade aos olhos dos Governantes e das Instituições
a partir do momento em que estes “arrebanham” seguidores. Afinal, como já citado, estes
eram seguidos por um grande número de fiéis, vide o Conselheiro que em certo momento
arrastava mais de quinhentas pessoas, enquanto sóis, não representavam ameaça.
Facó enquanto intelectual ligado à linha de pensamento do Marxismo Clássico,
ou Materialismo Histórico, relacionou, enquanto base do raciocínio lógico de sua obra
Cangaceiros e Fanáticos (1972), o Fanatismo e o Misticismo como ferramentas utilizadas
pelos camponeses pobres para driblar o sistema de exploração e repressão em que estes
viviam e pereciam e, talvez, até tentar remediar contra as penúrias encontradas todos os
dias em suas sofridas vidas em uma região “castigada” por Deus, vide a seca ferrenha, e
pelo homem, com a falta de investimento e desigualdade social absurda em contraste com
as outras regiões do País. Recorrendo à Sociologia, podemos encontrar outras leituras
para esses eventos onde as camadas populares buscam no “radicalismo” de suas ações
enfrentar os desafios da vida cotidiana. Vejamos:

Sociólogos, em estudos recentes, consideram que a religião, inclinada


ao radicalismo, constituía o caminho psíquico possível para as camadas
pobres e desamparadas do sertão arcaico, cuja memória do flagelo das
secas, vivificada com a ameaça de potencial eclosão, inquietava o viver
do sertanejo em termos dramáticos. Na falta de esperança quanto ao
amparo, para vencer os desafios materiais, o apelo ao sobrenatural,
eivado de misticismo, configurou a “religião necessária” aos sertanejos,
adaptada às suas concepções de vida e das coisas. Vale dizer, em
resposta às respectivas carências materiais imediatas. (FREIXINHO,
2003, p. 65)

Em suma, buscava o sertanejo, na religião, no dia-a-dia de sua vida,


conforto e segurança psíquica que fatalmente conduziriam a um estágio
de religiosidade radical, quando estimulado por monges místicos,
caminho de indisfarçável alienação coletiva. (FREIXINHO, 2003, p.
64)

Desta forma, corrobora-se as afirmações de Facó. É inegável a presença do


conceito de “Misticismo” e até mesmo dos ares de “radicalismo” do “Fanatismo”. Assim,
para tentar sobreviver mais, ou remediar suas dores, intensificou-se o hábito de seguir
com mais afinco as práticas religiosas católicas. Orar, jejuar, martirizar-se e até mesmo
peregrinar são algumas dessas ações.
Outro estudioso que também contribuiu para a discussão acerca do papel da
religiosidade em eventos sociopolíticos do interior da até então região Norte do Brasil,
54

ou “Sertão Arcaico do Nordeste” como é referido pelo autor, foi o Coronel Nilton
Freixinho. Em sua obra O sertão arcaico do Nordeste do Brasil: Uma releitura (2003) o
autor debaterá sobre conceitos e condições importantes para esta pesquisa. Uma dessas
condições foi o surgimento de “centros de romaria” comandadas pelos beatos e
conselheiros. Esses centros são de suma importância para a fortificação do dito
“fanatismo”, pois, assim como afirmará Nilton Freixinho, esses lugares eram comandados
por místicos “leigos”, onde muitas vezes não tinham qualquer relação oficial com a Igreja
Católica, e assim, pregavam preceitos e dogmas que embora “estivessem dentro do campo
religioso do Cristianismo” não eram todos aceitos pela Igreja por conter teor ideológico
e em alguns casos “político-militar”, como é o caso do “ajuntamento” de Padre Cícero
alguns anos depois no Ceará. Sobre os centros de romaria vejamos a seguinte citação:

Compreende-se por que naquele cenário de dificuldades e de


desesperança dos desafortunados, e à medida que se adensa, nos sertões,
o contingente demográfico, tenham surgido pregadores religiosos-
místicos, cada vez mais populares, a partir de meados do século XIX,
desde o Ceará até a Bahia, em todo o sertão Nordestino. Já nos anos de
1840-1845 são numerosos os centros de romaria, plantados por místicos
leigos, sob a forma de comunidades religiosas, onde pontificam
“conselheiros”, seguidos, crescentemente, por massas de sertanejos, em
verdadeira histeria coletiva, muitas vezes apoiados por padres
seculares, nas vilas do interior, ávidos por inserir-se na maré da
explosão da fé católica. (FREIXINHO, 2003, p.65)

E aqui já pode-se pontuar algumas características desses centros e de seus


participantes. Primeiramente, como já citado, a pregação da “palavra de Deus” por
místicos leigos, trazendo assim para essa estrutura uma espécie de ilegalidade no que
tange à pregação de padres não excomungados. Outra característica importante é a
Histeria Coletiva. Vejamos, até certo ponto é compreensível a presença desta
característica. Os sertanejos passavam fome, muitos eram desabrigados, outros traziam
consigo a dor da perca de parentes que padeciam frente às duras e demoradas estiagens,
ou seja, os grupos eram parecidos entre si, compartilhavam das mesmas penúrias, todos
deveriam estar histéricos buscando, pelo menos, salvarem suas almas no caso da
existência de uma vida após a morte. Entretanto, a histeria coletiva mesmo sendo
compreensível no que tange o campo da sociologia e alguns outros estudos, facilmente
pode representar a perca da razão desses grupos de massa, e assim aliando-se ao baixo
nível de instrução, pode representar uma ameaça ao sistema vigente que pouco investiu
para acabar com a desigualdade social, o que significaria em uma grande investida contra
55

os territórios de fazendeiros muito bem abastados. Acerca disso consideremos as


seguintes citações:

Na verdade são dissidentes. Insurgem-se contra a ortodoxia da Igreja


Católica Romana, sem ter disto consciência, e contra o abandono a que
os poderes públicos os relegava. Isto, de forma inarticulada. A
hierarquia da Igreja e os donos do poder, no Nordeste, por
incompreensão, acoimavam os sertanejos de “fanáticos”. Ledo engano.
A população pobre do interior nordestino, ao enveredar pelos caminhos
do misticismo religioso, inconscientemente abdicou da “racionalidade”
[...]. A coletividade sertaneja, [...]. Pugnava pela busca generalizada da
“santidade”, partindo da convicção íntima de que o propósito de
alcançar a “santidade” não deveria circunscrever-se tão-somente a
alguns “eleitos”, mas sim a toda a comunidade de fiéis que abraçavam
o credo católico. No fundo e em rigor era um retorno ao passado
primitivo do cristianismo das catacumbas, ressurgido na Idade Média
européia, [...]. (FREIXINHO, 2003, p. 66)

Dessa forma, começa a se desenhar o perfil de um indivíduo perigoso, fora de si,


arcaico e/ou antigo, cujo o único discernimento aparente é o religioso.
Superado o “perfil psíquico/religioso”, tratemos de uma breve discussão sobre a
indumentária. Assim como o “Monarquista”, “Bárbaro”, não existe bem definida um
padrão de vestimenta ou aparência de um “fanático religioso”, neste caso o “fanático
canudense”, e encontrar este padrão não é o trabalho ao qual esta pesquisa se prontifica.
Porém, vale ressaltar a seguinte citação acerca da aparência destes “místicos”:

Via-se ao longo das estradas, em torno de capelas que eram construídas,


ou reparadas, místicos sertanejos, portando improvisadas e rústicas
cruzes de madeira, conduzindo orações ensacadas, a tiracolo, vestindo
grossas túnicas e usando rústicos gorros, ambos com aplicações de
motivos bíblicos. (FREIXINHO, 2003, p. 65)

Curiosamente, esta citação do Nilton Freixinho corrobora com algumas notícias


já da Guerra de Canudos, notícias essas que tratam, de certa maneira, da aparência destes
“fanáticos”. A presença de cruzes, levadas pelos “canudenses” foi citada no seguinte
trecho do periódico Gazeta da Tarde (1896): “Os bandidos vivem tão fanatizados que,
mesmo sendo baleados, vinham morrer cortando a facão as praças. Nunca vi tanta
ignorância. Traziam imagens e cruzes, chamando ao Conselheiro meu bom Jesus.” Outro
ponto que também chama atenção é uma caricatura do Antonio Conselheiro, publicada
também pela Gazeta da Tarde no ano de 1897. Esta caricatura, surpreendentemente,
condiz com a descrição feita pelo Nilton Freixinho. Analisemos a imagem:
56

Figura 1 – Gazeta da Tarde, 29 de janeiro de 1897, Edição: 00029

Fonte: Hemeroteca Digital


57

Na caricatura, identifica-se Antonio Conselheiro, muito provavelmente frente à


Capela principal do Arraial fazendo suas orações diárias. Túnica grossa, sandálias, barba
grande, aparência magra e esbelta. Esta foi a forma como a Gazeta da Tarde reproduziu
a caricatura aos seus leitores. Muito provavelmente, a caricatura repercutiu na sociedade
brasileira, afinal, em uma sociedade a quase cem anos de distancia temporal do
surgimento da Internet, reproduzir a imagem de uma pessoa que ao mesmo tempo é tão
conhecida e desconhecida pelos leitores de todo o Brasil, visto que todo o país
acompanhava o desenrolar da Guerra, é uma grande contribuição no que tange a produção
da representação deste conflito visto que a imagem representa um Brasil rústico, rural,
místico, católico, características buscadas e utilizadas pela Imprensa para atacar,
ideologicamente, o Arraial de Canudos e seus moradores.
Assim como no caso dos Monarquistas, com os “Fanáticos” a Imprensa obteve
sucesso ao criar um inimigo silencioso, afoito, retrógrado, porém, poderoso, perigoso e
até mesmo vitorioso em alguns casos. Um inimigo cuja existência era tão perigosa que
valeria de tudo para obter sucesso em seu extermínio. Finalizando, o surgimento do
“Fanático” não foi algo pouco complexo para os periódicos, mesmo que estes tivessem
como tarefa “apenas inventar” um indivíduo com perfil eloquente e perigoso que chocasse
a sociedade brasileira com seus atos barbarescos, violentos que beirassem o místico, esta
invenção, analisada através deste trabalho monográfico, mobilizou inúmeros campos do
saber como a História Cultural, Sociologia, Antropologia, Geografia entre outras.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS, OU CANUDOS NÃO SE RENDEU

Ao concluirmos esse trabalho monográfica, e depois de termos percorrido um


longo caminho no campo da Análise Discursiva e das Representações, ambos
entrelaçados na História Cultural, podemos perceber o potencial “destrutivo”, e também
“construtivo”, que as palavras possuem. Afinal, como problematizado durante toda esta
pesquisa, foi através de meras palavras e frases organizadas nas páginas dos periódicos
selecionados, a Gazeta da Tarde e O PAIZ, que a Imprensa carioca conseguiu parir o que
até então seria o maior e mais perigoso inimigo da recém proclamada República.
Entendemos que o “fanático canudense” surgiu em um período onde existiam
mais incertezas do que certezas para a sociedade brasileira. O fim do século XIX
representou para o Brasil a derrocada de um sistema “velho”, “arcaico”, que durante mais
de trezentos anos reprimiu e explorou seus habitantes, e também a ascensão de uma nova
forma de governar, um novo Regime, a República. Entretanto, como vimos, mesmo com
tantas promessas e esperanças depositadas no “Novo”, a dinâmica que perdurou por pelo
menos mais quarenta anos na sociedade brasileira já era bastante conhecida. O “Novo” já
nasceu “Velho”. Com uma única diferença, aqueles que defendiam o “Moderno” de forma
alguma queriam retornar para o “Arcaico”, por mais que na prática não existissem
diferenças contundentes que interferissem na vida da população entre as Estruturas.
Também vimos que só depois do surgimento de um Arraial nos rincões do Estado da
Bahia, composto principalmente por sertanejos pobres e religiosos comandados pelo
místico Conselheiro, Antonio Maciel, que a sociedade brasileira irá se dar conta da
existência de um “mortal inimigo”, o Fanático. Este que mesmo sem um perfil social
delimitado, supostamente aliados dos monarquistas revanchistas, veio para derrubar a
República, queimar as bandeiras da modernidade e instituir de uma vez por todas o
arcaico, ou passado, como força motriz de todo e qualquer movimento social, político,
econômico e afins do Brasil.
Analisamos aqui o decorrer do conflito de Canudos, suas quatro expedições, os
principais acontecimentos e resultados da Guerra. Conseguimos compreender que os
fatos que se desenrolaram na Guerra foram de suma importância para as estratégias
utilizadas pela Imprensa no que tange a forma de divulgação e dinâmica de publicações
das notícias que chegavam do Arraial, resultando, inclusive no nascimento do “Fanático
Canudense”.
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Desta forma, nos propomos a analisar e problematizar este surgimento e a forma


como este indivíduo surgiu nas páginas dos periódicos. Quais as ações, o grau de
importância que lhe foi atribuído e também o nível de “selvageria” das atrocidades.
Em suma, ao concluir esta pesquisa chegamos à conclusão de alguns
questionamentos como afirmar que o “Fanático Canudense”, pelo menos aquele criado
pelos jornais selecionados, não teve um perfil social delimitado, visto que sua existência
seria apenas um pretexto para atender aos interesses de seus criadores, embora não
possamos afirmar que todos os “Fanáticos” criados para fins parecidos possam
compartilhar do mesmo perfil. Também foi possível entender que o processo de “criação”
do “Fanático Canudense”, além de ter sido uma ferramenta utilizada pela Imprensa para
tentar justificar a violência causada pelo choque entre a população sertaneja do Arraial e
as tropas enviadas pelo Exército Brasileiro, foi potencializado pelo desespero da Imprensa
Republicana, e principalmente do “andar de cima da sociedade brasileira”, ao perceberem
que o Arraial de Canudos, mais do que apenas promover pequenos delitos nas cidades
circunvizinhas e amontoar miseráveis camponeses para viverem em uma espécie de
“retiro penitencial católico”, ameaçava a manutenção de uma Estrutura mais forte e bem
organizada do que a recém proclamada República. Estes ameaçavam a “Ordem” que
ditava os rumos da sociedade brasileira, daí a morte de todos os envolvidos, suas
decapitações, as destruições e queimas de suas casas e edificações, e posteriormente, a
submersão “federal” de todo o território da 1ª Canudos. O exemplo não deveria ser
seguido, mais radicalmente, o exemplo não deveria nem mesmo ser lembrado.
De qualquer forma, aqui concluímos uma pesquisa que teve como função principal
contribuir para a discussão acerca do campo da História Cultural e também das
representações de grupos ilustres do Sertão Nordestino.
60

5 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Jornais

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