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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


INSTITUTO DE HISTÓRIA

“Daqui do morro eu não saio, não! ”


Relações étnico-raciais, experiências de luta e memórias
na construção do Morro da Liberdade (1930-1950)

Aluan Carlos Gomes

Rio de Janeiro
2020
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“Daqui do morro eu não saio, não! ”
Relações étnico-raciais, experiências de luta e memórias
na construção do Morro da Liberdade (1930-1950)

Aluan Carlos Gomes

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de


Pós-graduação em História Social do Instituto de
História da UFRJ como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de mestre em História Social.

Linha de pesquisa: Sociedade e Política

Orientador: Andrea Casa Nova Maia

Rio de Janeiro
2020

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-


graduação em História Social do Instituto de História da
UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de mestre em História Social.

Aprovada por:

Profª. Drª. Luciene Pereira Carris Cardoso

____________________________________________________________
Profª. Dr. Mario Sergio Ignácio Brum

_____________________________________________________________
Profª. Drª. Andrea Casa Nova Maia

____________________________________________________________

Rio de Janeiro
2020

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“... São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens
São sementes espalhadas nesse chão... ”

Pequena memória para um tempo sem memória - Gonzaguinha

Aos antigos que plantaram a semente da nossa favela, abrindo caminhos


para que tantos de nós pudessem morar e viver em nosso morro.

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AGRADECIMENTOS

A história deste trabalho é fruto do encontro de muitas outras histórias. Das histórias de
pessoas que enfrentaram com tanta disposição o desafio de tentar viver dignamente em
realidades com tantos obstáculos e desafios. Pessoas que lutaram, sofreram, se alegraram,
sonharam e passaram o sonho adiante. Vocês são vencedores.
Meu pai Carlos e minha mãe Angela, são para vocês meus primeiros e sinceros
agradecimentos. Pelo carinho, pelo cuidado, pelos conselhos que me possibilitaram ser
quem sou. Só vocês sabem o desafio que foi criar esses dois meninos em uma realidade tão
violenta. Por muitas vezes nossa casa foi um recanto de paz em meio à guerra, ao medo e à
injustiça. Só vocês sabem o que significa para uma família negra da favela ter os dois filhos
na universidade.
Agradeço a meu irmão, Gian, pelo que vivenciamos juntos, pelas conversas que tanto
contribuíram com minha formação. À Laila Miguez, companheira de caminhada nessa vida,
com quem muito tenho aprendido, por não me deixar desanimar, por sua dedicação, atenção
e carinho. A minha nova família: Gustavo, Lel, Lia e Matheus, com os quais divido meu lar
e aprendo mais a cada dia. Agradeço aos orixás por ter todos vocês.
À professora Andréa Casa Nova Maia, que se prontificou em me orientar, que
contribuiu enormemente com suas observações e sugestões teóricas. Sua empolgação e
interesse pelo trabalho forneceram combustível a mais em minha motivação.
Agradeço também a meu “vô” João e os demais “compositores do Turano”. Vocês são
patrimônio do nosso morro! À Dona Maria Viana por tão gentilmente me recebeu em sua
casa e nos deu essa bela entrevista. Suas festas para as crianças, seu carinho, conselhos e
ensinamentos não se apagaram de minha memória. Ao senhor Waldir Barbosa, pela
entrevista e pela amizade, que se formou tão logo nos conhecemos. Gratidão também ao
senhor Otacílio Duarte, principalmente por me ensinar que o morro não é do “Turano” e
sim da “Liberdade”. Apesar de nos conhecermos no final de sua vida, tão gentilmente me
recebeu em sua casa para compartilhar sua fascinante memória e me ajudar a conhecer a
origem da favela em que nasci e fui criado.
Finalmente agradeço aos meus companheiros de tantas lutas e batalhas por melhores
dias para o povo negro e favelado. Priscila Alves, Milton Andrade, Wellington “Agudá”,
crias do Turano, Tia Zilda, Carol, Léo do Complexo do Alemão, André do Morro da
Formiga, vocês são relíquias da favela!
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RESUMO

Este trabalho analisa as múltiplas experiências vivenciadas por moradores na formação


do Morro da Liberdade, sobretudo no que diz respeito à migração do campo para a cidade,
a luta contra despejos e por melhores condições de moradia, entre as décadas de 1930-50.
Essa pesquisa parte também do pressuposto de que as favelas trazem formas alternativas de
percepção e apropriação do espaço urbano, constituindo-se, não somente como espaço
marginalizado, mas também, como territórios de resistência, criatividade e reinvenção da
cidade, impondo-se como verdadeiros espaços da memória urbana carioca.
Privilegiando fontes orais, no intuito de mostrar os sentidos e formas de compreensão
dos moradores sobre a realidade que eles vivenciaram, essa pesquisa constrói uma ligação
histórica entre a expansão das favelas cariocas – sobretudo o Morro da Liberdade - e a
situação da população negra nas décadas subsequentes ao fim da escravidão. Realidade
frequentemente marcada pelas migrações do campo, dificuldade de acesso a moradia e a
propriedade nas cidades, além de estigmas e preconceito.
A cidade do Rio de Janeiro atravessou, na primeira metade do século XX, um momento
de intensa expansão, com profundas intervenções urbanas, vivenciando uma explosão
demográfica e grande valorização da terra. Nesse contexto, intensificaram-se, sobretudo,
nas favelas, disputas pela posse e propriedade do solo urbano. No Morro da Liberdade, os
moradores entraram em conflito com o italiano Emilio Turano - suposto proprietário
daquela área – ao longo da década de 1940. Assim, essa pesquisa discute também as
formas de organização e resistência desses moradores. Longe de se colocarem como
vítimas, eles foram protagonistas na disputa, atuando como agentes históricos na
construção espacial da cidade do Rio de Janeiro e se afirmando como uma força no cenário
político da época.
Palavras-Chave: Favelas; Memória; Segregação; Mobilização popular; Rio de Janeiro.

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ABSTRACT

This work analyzes the multiple experiences lived by residents in the formation of Morro
da Liberdade, especially with regard to the migration from the countryside to the city, the
fight against evictions and better housing conditions, between the 1930s and 50s. This
research also assumes that the favelas bring alternative forms of perception and
appropriation of the urban space, constituting not only as marginalized space, but also as
territories of resistance, creativity and reinvention of the city, imposing themselves as true
spaces of memory urban area.
Privileging oral sources, in order to show the senses and ways of understanding residents
about the reality they experienced, this research builds a historical link between the
expansion of Rio's favelas - especially Morro da Liberdade - and the situation of the black
population in the decades subsequent to the end of slavery. Reality often marked by
migrations from the countryside, difficulty in accessing housing and property in cities, as
well as stigmas and prejudice.
The city of Rio de Janeiro experienced, in the first half of the 20th century, a moment of
intense expansion, with deep urban interventions, experiencing a demographic explosion
and great appreciation of the land. In this context, disputes for possession and ownership of
urban land have intensified, especially in the favelas. In Morro da Liberdade, residents
came into conflict with the Italian Emilio Turano - alleged owner of that area - throughout
the 1940s. In this sense, this research also discusses the forms of organization and
resistance of these residents. Far from placing themselves as victims, they were
protagonists in the dispute, acting as historical agents in the spatial construction of the city
of Rio de Janeiro and asserting themselves as a force in the political scene at the time.
Key words: Slums; Memory; Segregation; Popular mobilization; Rio de Janeiro.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1:Subida da “Raia” na Escolinha...........................................................................45


Imagem 2: “Didico” e suas filhas Angela e Lúcia na “Pracinha” em 1961.........................45
Imagem 3:Final da Rua Joaquim Pizarro.............................................................................46
Imagem 4: Alto do Morro da Liberdade em 1946...............................................................81
Imagem 5: A Igreja de São Sebastião, situada na rua Haddock Lobo – Tijuca.................101
Imagem 6: Vista da pedreira do “Morro do Turano”.........................................................102
Imagem 7: Comissão de moradores visita a “Tribuna Popular”...................................... 140
Imagem 8: Comissão de moradores visita o “Diário de Notícias”.................................. 141
Imagem 9: Fragmento da capa do jornal “Diário de Notícias”....................................... 155
Imagem 10: Vista do morro a partir do Rio Comprido.................................................... 162

16
LISTA DE MAPAS

Mapa 1: Mapa étnico-racial do Rio de Janeiro apresentando a sobreposição das favelas


mais antigas da região central e Grande Tijuca.....................................................................50

Mapa 2: Mapa contemporâneo ilustrativo do atual Complexo do Turano, Morro do


Salgueiro e antigas referências............................................................................................102

Mapa 3: Área aproximada do morro da “Fazenda Turano”, circundados pelas ruas Barão de
Itapagipe e rua do Bispo, entre o Rio Comprido e a Tijuca................................................105

Mapa 4: Morro de São Carlos, entre o Rio Comprido e Estácio......................................106

17
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9

CAPÍTULO I: REPENSANDO A HISTÓRIA CARIOCA A PARTIR DAS


MARGENS: FAVELAS, SEGREGAÇÃO URBANA E RELAÇÕES RACIAIS ........ 17
1.1 Historiografia das favelas: um campo em construção ................................................ 17
1.2 O que as questões raciais têm a nos dizer sobre segregação urbana e a história das
favelas? ............................................................................................................................. 20
1.3 Tornando a “cidade maravilhosa mais europeia”: o lugar dos negros e pobres nas
reformas urbanas do início do século XX ......................................................................... 27
1.4 A cidade vista da laje: a ressignificação avelada do urbano ...................................... 37
1.5 Vidas entre becos e vielas: espacializando a memória dos moradores do morro. ...... 42

CAPÍTULO II: O PASSADO RURAL DOS FAVELADOS: FAMÍLIAS NEGRAS


EM MEIO À TRANSIÇÃO DO CAMPO PARA A CAPITAL DO BRASIL .............. 48
2.1. As raízes negras e rurais do Morro da Liberdade ...................................................... 48
2.2 “Lembranças da roça”: ancestralidade, vivência rural e migração na memória dos
entrevistados ..................................................................................................................... 55
2.3 Construir e se reconstruir na cidade grande: A mudança para a capital ..................... 75
2.4 Os braços que movem a cidade: a relação entre indústria e os trabalhadores das
favelas ............................................................................................................................... 84
2.5 O italiano quer ser “dono do morro”: Emilio Turano e seus controversos negócios . 88

CAPÍTULO III - A LUTA COMUNITÁRIA PARA MORAR E VIVER: NASCE O


MORRO DA LIBERDADE. ............................................................................................ 106
3.1 Políticas públicas, aspectos jurídicos e disputas fundiárias nas favelas a partir do
Estado Novo .................................................................................................................... 106
3.2 Resistência política e cultural: a questão racial e os movimentos de favelas ........... 113
3.3 A origem dos movimentos políticos das favelas e a participação dos Comitês
Populares Democráticos.................................................................................................. 122
3.4 -Morro da Liberdade ou do Turano? A disputa contra o grileiro em um contexto de
reabertura política ........................................................................................................... 130

18
3.5 “A guerra do Morro do Turano” e o seu lugar de destaque na memória de Otacílio
Duarte.............................................................................................................................. 138
3.6 A radicalização da luta: O conflito armado entre policiais e moradores .................. 146
3.7 “É preciso que o morro seja nosso! ” A vitória dos moradores e a continuidade da
Liberdade ........................................................................................................................ 152

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 156

FONTES DOCUMENTAIS ............................................................................................. 159


Periódicos........................................................................................................................ 159
Arquivos .......................................................................................................................... 164
Entrevistas ....................................................................................................................... 164
Mapas .............................................................................................................................. 164

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 165

19
INTRODUÇÃO

O LUGAR SOCIAL DE ONDE FALO

Considero que todo intelectual ou pesquisador, quando constrói seu trabalho, o faz a
partir de determinada condição histórica, socioeconômica, racial, de gênero, que irá fundar
a forma como cada um enxerga e interpreta a realidade social e os processos históricos. Ou
seja, o nosso “olhar” e nossa relação com o objeto. O lugar do qual falamos marca a nossa
escrita, de forma que ela também é atravessada pela nossa vivência, nossas trajetórias
comunitárias, familiares e individuais. Boaventura Sousa Santos questiona uma suposta
neutralidade defendida pela ciência moderna, uma vez que, para ele, em uma pesquisa, a
escolha do tema, dos modelos teórico-metodológicos e das formas de discussão acabam por
evidenciar opções subjetivas na investigação científica.1 O autor afirma que “o objeto é
continuação do sujeito por outros meios. Por isso, todo conhecimento científico é também
autoconhecimento”. Walter Mignolo, corroborando Santos, afirma que a epistemologia
atualmente hegemônica, que se pretende neutra, objetiva e universal tem um “lugar”
histórico-social bem definido, isto é, foi produzida por homens, brancos, europeus. E são
cada vez mais frequentes as críticas a posição de superioridade dessa epistemologia
eurocêntrica, que outorgou ao pensamento ocidental o monopólio do que seria
conhecimento legítimo, ao mesmo tempo que relegou aos planos inferiores outras formas
de conhecimento.2
Para diversos intelectuais, tais como aqueles de origem negra e pobre, a produção
acadêmica não pode ser dissociada da vida, da ação que se traduz, não em um olhar neutro
e distanciado, o fenômeno das desigualdades sociais e raciais, mas uma leitura crítica de
alguém que os vivencia na sua trajetória pessoal e coletiva, inclusive nos meios
acadêmicos.
Nesse sentido, minha relação com o Morro do Turano e sua história é muito anterior e
mais profunda que a produção desse trabalho ou mesmo do início de minha trajetória

1
SANTOS, Boaventura de Sousa.Um Discurso Sobre as Ciências na Transição para uma Ciência Pós-
Moderna. Estudos Avançados. USP, vol.2 n.2, p. 46-71, may/aug., 1988. P. 67
2
MIGNOLO, Walter. Os Esplendores e as Misérias da “Ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento
e pluri-versalidade epistémica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento Prudente Para uma
Vida Descente: „um discurso sobre as ciências‟ revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
9
acadêmica. Ela está fortemente ligada a décadas de experiências pessoais e familiares
vivenciadas nesse lugar. Foi nessa favela que vivi 25 anos, onde fui criado, aprendi a ser
quem sou. E onde vivenciei também muitas alegrias e dissabores. Ela tem presença na
minha forma de escrever, pensar e agir. A vida comunitária trouxe o contato cotidiano com
pessoas que marcaram minha trajetória e a minha formação. Para citar algumas: Dona
Maria, Tia Ana, Vô Manuel, Seu Abelardo, Vô João, Dilson, Dona Martinha, Dona Geneci
e tantos outros que não seria possível citar aqui.
Foi também, nesse chão, que chegou, em 1945, aos 15 anos de idade, um menino vindo
do interior do estado junto com sua família. Seu nome era Expedito, mas logo virou
“Didico”. Para mim, “vô Didico”. Poucos anos depois, chegaria também Maria Cândida,
mulher independente e batalhadora. Veio de Porto Novo – atual Além Paraíba - Minas
Gerais, sozinha com as filhas, tentar melhores condições de sobrevivência na “Cidade
Maravilhosa”. Uma de suas filhas chamava-se Geralda, que logo virou “Gegê”. Mais tarde,
ela se casaria com Didico e se tornaria para mim, “vó Gegê”. Mais ou menos naquela
época, chegara sozinha no Rio de Janeiro uma adolescente de 17 anos. Natural da zona
rural de Alagoa Grande, Paraíba, ela fora expulsa, junto com sua família de um próspero
sitio onde viviam no interior de uma fazenda. O proprietário transformou a área em um
imenso canavial.
Desde então, ela viu a condição de vida de sua família cair dramaticamente, de forma
que quase todos os irmãos migraram para favelas do Rio de Janeiro. Na capital, empregada
em uma fábrica, ela conheceu um alagoano, da região de Arapiraca, que migrara com os
irmãos após vivenciar alguns conflitos de terra. Juntos passaram por outras favelas como
Parada de Lucas e no Morro da Coroa, até firmarem base no chamado Morro do Turano ou
da Liberdade. Eles tornaram-se, para mim, “vô Gilberto” e “vó Zélia”.
Junto com outros tantos migrantes, Gegê, Didico, Zélia e Gilberto se reconstruíram na
metrópole carioca e participaram da construção inicial de nossa comunidade. Jovens de
distintas partes do Brasil, com histórias e trajetórias totalmente diferentes, que tinham em
comum a origem rural, a descendência negra e indígena, o fato de nunca terem sido
proprietários e a necessidade de sobreviver longe da terra em que nasceram. Todos se
encontraram em uma favela do Rio de Janeiro, mais especificamente na localidade do
“Morro da Matinha”. Sobreviveram a uma realidade de preconceito, dificuldades
econômicas com muito trabalho e luta. Desse encontro foram construídas amizades e
famílias. Meu pai, “Carlito”, e minha mãe ,“Angela”, assim como eu, meu irmão, meus

10
tios e primos nascemos e crescemos no morro, onde ainda vive uma parte de minha
família, onde ainda vive uma parte de mim. Em nossa trajetória familiar, eu posso estar
melhorando a “casa”, mas com certeza foram eles que cavaram a fundação, construíram as
paredes e estruturas, sobre a qual esse trabalho se apoia.
Minha relação com objeto de estudo é muito maior do que essa pesquisa, pois está
fundada na busca da história de minha família, da minha própria história através da história
da comunidade que por anos foi e de certa forma ainda é meu lar. Realizo essa pesquisa
como uma pequena retribuição a todas essas pessoas, que certamente poderiam contar essa
história melhor que eu, mas que, por vários motivos, não tiveram essa oportunidade.
Resgatar as memórias dos antigos é, principalmente, uma oportunidade de apresentar aos
moradores mais jovens um morro e uma história aos quais eles não tiveram acesso, mas que
permanece presente em cada um de nós.

*****

Essa pesquisa se construiu sobre a análise da experiência histórica de mobilizações


comunitárias e articulações políticas dos moradores das favelas da então capital do Brasil, a
cidade do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1930 e 1950. Destinarei uma atenção especial
à luta dos moradores de uma favela em especial: o Morro da Liberdade, atualmente
conhecido como Morro do Turano, buscando privilegiar, através de fontes específicas, o
ponto de vista e a própria compreensão desses moradores sobre suas ações, negociações e
direitos.
Nessa disputa, havia muita coisa em jogo para se defendida – casa, trabalho, laços
comunitários, de parentesco e vizinhança, e por que não, formas próprias de se pensar e
viver a cidade. Havia também muitas coisas para reivindicar: saneamento básico, acesso a
água e luz elétrica, escolas, hospitais, pavimentação nas vias. A partir disso, os moradores
se articularam e lutaram de diversas formas, desde o envio de cartas e abaixo-assinados
para autoridades; realização de reuniões periódicas; formação de agremiações culturais e
recreativas, criação de comissões que percorriam as redações de jornais para divulgar e dar
visibilidade a sua luta; até a formação de alianças com elementos externos à favela como
advogados e integrantes de partidos políticos e movimentos sociais.

11
Esses processos de lutas, muitas vezes, invisibilizados na construção da história do Rio
de Janeiro, não se restringem à favela e aos favelados3, uma vez que se tais espaços se
colocam como elementos indispensáveis para a compreensão do processo de expansão
urbana carioca, desde as disputas pelo direito à cidade, a segregação social e racial até as
complexas relações entre poder público e grupos marginalizados. Ainda que,
frequentemente, a favela tenha sido observada a partir da “pobreza urbana” e “exclusão
social”, um olhar mais cuidadoso sobre sua dinâmica histórica revelará uma realidade
muito mais complexa. Durante a primeira metade do século XX, as favelas estiveram por
muitas vezes, no “olho do furacão”, ou seja, o espaço onde apareciam de forma mais aguda
e visível as tensões, contradições e desigualdades originadas de profundas transformações
sociais que ocorriam na capital da república e, de certa forma, no Brasil: construção da
identidade nacional, racismo, violência policial, migração rural-urbano, disputas de terras,
relações ambíguas com o comunismo, luta por moradia e melhores condições de vida,
desigualdades estruturais. Nesse contexto, as favelas cariocas se constituíram, ao longo das
décadas, como “enclaves” habitados sobretudo por famílias pobres e negras, mesmo
quando localizadas nas regiões mais valorizados. Este cenário não se desenhou por obra do
acaso. Pelo contrário, foi fruto da ação coletiva de pessoas que, conforme suas
possibilidades históricas disputaram e conquistaram, ao longo das décadas, o direito, ainda
que não plenamente, de viver próximo aos espaços privilegiados da cidade.
A partir da década de 1930, acelerou-se um processo de industrialização já iniciado em
décadas anteriores no Brasil. Para os trabalhadores rurais da região sudeste, esse período
trouxe, via de regra maior dificuldade de acesso à terra com o avanço do latifúndio,
disseminação do trabalho assalariado e massivas migrações para as metrópoles. 4 Famílias
rurais negras foram mais expostas a esse processo, uma vez que essa população herdou
desde o pós-abolição, piores condições socioeconômicas e maiores dificuldades de acesso

3
Historicamente o termo “favelado” foi e continua a ser utilizado com uma carga pejorativa, ligada a
inúmeros estereótipos atribuídos às favelas, seus moradores ou aqueles que supostamente se comportam como
eles. São sentidos que tendem a reforçar estigmas como a falta de educação, higiene, etc. Consideramos que
os conceitos representam um elemento central nas lutas dos movimentos sociais, nas disputas de poder e pela
construção de memórias, formas de pensar e de agir sobre a realidade. Por outro lado, é importante observar
que em vários momentos históricos, os moradores das favelas ao se organizarem, denominavam-se a si
mesmo como favelados - como podemos observar, por exemplo na União dos Trabalhadores Favelados (UTF)
– disputando o termo e atribuindo a ele sentidos positivos relacionados à luta, à coletividade e a noção de
pertencimento ao conjunto dos trabalhadores. Nesse sentido, ao utilizar o termo “favelado” busco, ao mesmo
tempo me aproximar desses significados utilizados pelos moradores em luta; e questionar o uso dessa palavra
na disputa política e simbólica que ainda hoje está inserida, trazendo possibilidades de ressignificações.
4
MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo. Rio de Janeiro. Ed. Vozes: 2003.
12
à propriedade do que outros grupos. 5 Em muitos casos, as possibilidades de emprego e
ascensão social impuseram a mudança para a cidade como alternativa mais viável de
sobrevivência. Nas décadas de 1930 e 1940, a, então, capital da república vivenciou
momentos de grande expansão, tanto populacional quanto na malha urbana e no parque
industrial. Houve uma tendência dos governantes do período, articulados com a elite
empresarial, a financiar grandes obras de infraestrutura para sustentar a intensa
industrialização e crescimento vertiginoso do mercado imobiliário.6
Nesse contexto, ocorre grande valorização do solo urbano, mas também, o aumento dos
aluguéis, da pressão de empresas loteadoras e da atuação generalizada de grileiros,
sobretudo em áreas com propriedade incerta como os morros.
O crescimento das favelas era algo visível, e estas passaram a ser elemento central nos
debates acerca da cidade. Além disso, ocorre no período uma intensificação do fluxo de
migrantes do campo – que, na maioria das vezes, eram pobres demais para ter acesso a
mercado imobiliário formal, o que formava um cenário de tensão. Nesse contexto, ocorrem
inúmeras disputas fundiárias pela cidade, com destaque nas favelas situadas próximas as
áreas centrais ou mais valorizadas da cidade. A população desses lugares não foi vítima
nem personagem passivo nessa questão: passaram a se organizar em movimentos
comunitários e tecer alianças políticas. Bittencourt7 nos mostra que, desde o início dos anos
de 1930, organizações de moradores se construíram, sobretudo para reivindicar junto aos
governantes melhores condições de moradia e de vida através do acesso a serviços básicos,
e também para se defender frente às constantes ameaças de remoção, que por vezes partiam
do governo, outras vezes de empresas ou particulares. Assim, temos as primeiras
articulações de moradores no Morro de Santo Antônio, São Carlos e Mangueira ainda na
década de 1930 e no Morro do Salgueiro, Rocinha, Prazeres, Jacarezinho, entre outros, na
década seguinte. É, nesse contexto, que é gestado o que veremos nas décadas seguintes
como movimento organizado de favelas. Ainda que os moradores das diversas favelas
cariocas estivessem sempre em contato entre si, não vemos nesse primeiro momento uma
articulação mais profunda entre as diferentes favelas da cidade uma vez que a maioria das

5
MATTOS & RIOS, Ana Maria & Hebe Maria. O pós-abolição como problema histórico. Balanços e
perspectivas. Revista Topoi. Vl. 5 N° 8, 2004.
6
SILVA, Maria Lais Pereira. Favelas Cariocas (1930-1964). Contraponto, 2005.
7
BITTENCOURT, Danielle Lopes. O morro é do povo: Memória e experiências de mobilização nas favelas
cariocas. Dissertação de mestrado em História Social – UFF – 2012
13
ações de luta foram realizadas em âmbito local, visando resolver as questões mais imediatas
de cada lugar.
Meu trabalho terá como base o processo de luta na formação do “Morro do Turano” ou
“Morro da Liberdade” (que deu origem ao atual Complexo do Turano) localizado no bairro
da Tijuca, sobretudo ao longo da década de 1940. Nele compreenderemos como os
moradores daquele local construíram laços de solidariedade e identidade em comum através
da articulação comunitária, mas também a partir de experiências de vida compartilhadas,
onde a questão étnico-racial se coloca como fundamental. Eram, nesse primeiro momento,
em sua maioria famílias negras de filhos ou netos dos últimos escravizados, originários de
diversas regiões rurais do Sudeste, que, enfrentando dificuldades em sobreviver no campo,
recriaram laços comunitários naquele morro e lutaram para mantê-lo.
Também construíram espaços de sociabilidade a partir de manifestações culturais
negras como terreiros, folia de reis e, principalmente o samba, através de agremiações
carnavalescas. Além da evidente luta pela moradia estavam sendo defendidas também uma
diversidade de valores, sentidos de pertencimento, visões de política, da cidade e de mundo.
Buscarei privilegiar, sobretudo através de entrevistas, o ponto de vista e a própria
compreensão desses moradores sobre seu cotidiano, suas lutas, ações, negociações e
direitos.
Nessa disputa havia muita coisa em jogo para se defendida – casa, trabalho, laços
comunitários, de parentesco e vizinhança, e por que não, formas próprias de se pensar e
viver a cidade. Havia também muitas coisas para reivindicar: saneamento básico, acesso a
água e luz elétrica, escolas, hospitais, pavimentação nas vias. Também eram diversas as
estratégias de luta, desde o envio de cartas e abaixo-assinados para autoridades; realização
de reuniões periódicas; formação de agremiações culturais e recreativas, criação de
comissões que percorriam as redações de jornais para divulgar e dar visibilidade a sua luta;
até a formação de alianças com advogados e integrantes de partidos políticos para o devido
auxílio em processos judiciais.
A delimitação espacial da pesquisa, para além do Morro da Liberdade, abrange favelas
tradicionais das áreas centrais e da Grande Tijuca. Já o recorte temporal tem início em
1930. Esse ano e os subsequentes foram marcados pela vitória do movimento político
liderado por Getúlio Vargas, demarcando um período de profundas mudanças políticas,
sociais e econômicas, sendo um divisor de águas na história do Brasil. Na cidade do Rio de
Janeiro foi um momento de intensa expansão urbana e industrialização por um lado, e

14
aumento populacional, crise habitacional e expansão das favelas por outro. Esse contexto
acabou por refletir em diversas disputas territoriais onde frequentemente as favelas estavam
no centro dos embates.
Não é à toa que partem dos anos 30, nas favelas mais antigas, as primeiras articulações
e movimentos de moradores – que normalmente agiam, através de variadas formas de
resistência, contra as tentativas de despejo, por acesso a infraestrutura básica e melhores
condições de vida. Essa organização é anterior à criação das associações de moradores e
representavam iniciativas locais, sem a articulação de diversas comunidades. É também
nessa década que se inicia de forma mais consolidada a exploração das encostas da
“Chácara do Vintém”, “Morro do Turano” e do “Morro do Salgueiro” pelo italiano Emilio
Turano, através do incentivo da ocupação mediante ao pagamento de aluguéis. A exemplo
do que acontecia em diversas favelas nessa capital na época, os conflitos entre Turano e os
moradores se intensificam na década de 1940 e se estendem até pelo menos 1949, quando
ele, derrotado, resolve se mudar da capital. A delimitação do trabalho se encerra em 1950.
Isso se justifica não pelo fim dos conflitos de terra nas favelas – que na verdade aumentam,
assim como a violência policial – mas pelo fato de que a partir dessa década se inicia uma
outra fase na organização dos favelados. A articulação se expande por diversas
comunidades e torna-se mais institucionalizado, através da formação de associações de
moradores locais e articulações maiores reunindo diversas favelas como a União dos
Trabalhadores Favelados (a UTF) com o objetivo de resistir a tentativas de remoções por
parte do governo e particulares, assim como pressionar o poder público no sentido de obter
melhorias estruturais nesses espaços.

ESTE TRABALHO SE ORGANIZA A PARTIR DA SEGUINTE ESTRUTURAÇÃO:

O primeiro capítulo traz questões de natureza mais teórica e conceitual, onde realizo
um debate historiográfico acerca das pesquisas relacionadas às favelas cariocas, um campo
de estudo que ainda está se consolidando nos últimos anos. Analiso o processo de
invisibilização do protagonismo histórico da população negra e pobre – e de seus espaços
de moradia - na construção urbana do Rio de Janeiro e das favelas. Além disso, busco
compreender também como o estudo das relações raciais no Brasil - conjuntamente com as
questões socioeconômicas - podem enriquecer o debate acerca dos estudos urbanos e das
favelas.

15
Realizarei também, nesse capítulo, um diálogo com a geografia, lançando mão de
conceitos como lugar e território, articulados com as noções de memória e identidade. Com
isso, analiso como os moradores das favelas cariocas, em seu espaço de moradia e
convivência, trazem formas alternativas de percepção e apropriação do espaço urbano.
Proponho também perceber como as favelas se constituíram ao longo de décadas não
somente como espaço marginalizado, mas também como espaço de resistência, criatividade
e reinvenção da cidade, impondo-se como verdadeiros espaços da memória urbana carioca.
A partir do segundo capítulo, começo a adentrar com mais profundidade em outras
fontes, principalmente, as orais. Observo uma ligação histórica entre a expansão das favelas
cariocas e a situação da população negra nas décadas subsequentes ao fim da escravidão,
frequentemente marcada pela expulsão do campo, dificuldade de acesso a moradia e a
propriedade, estigmas e preconceito. Nesse sentido, traço um panorama dessas migrações
do campo, de onde essas pessoas vinham, em que situação viviam e por que migraram. Por
fim, analiso questões relativas condições de vida e moradia na então capital da República
nas décadas de 1930 e1940, sobretudo no Morro da Liberdade. Procuro, assim, analisar em
que condições essas famílias se estabeleceram na metrópole carioca, refletindo ainda como
sua experiência rural prévia e a bagagem cultural que trouxeram influenciaram na
constituição sociocultural daquela favela.
No terceiro e último capítulo, analiso o processo histórico que envolveu a disputa dos
habitantes do morro pelo espaço frente ao comerciante italiano Emilio Turano - suposto
proprietário daquela área – ao longo da década de 1940. O conflito não foi apenas territorial
e envolveu a disputa pelo nome onde os moradores, no decorrer do embate, rebatizaram a
favela de “Morro do Turano” para “Morro da Liberdade”. A partir disso, busco trabalhar a
questão da propriedade das terras - a raiz da disputa envolvendo tentativas de despejo por
parte de Turano.
Assim, trato das formas de organização e resistência dos moradores e como eles
souberam explorar os canais de diálogo e de reivindicações com diversos grupos da
sociedade civil e do Estado e, longe de se colocarem como vítimas, passivas no processo,
foram agentes ativos no processo histórico da construção espacial da cidade do Rio de
Janeiro. Portanto, situo essa luta local no Morro da Liberdade em um contexto maior,
caracterizado pela articulação política em diversas favelas da cidade e pela inserção dos
favelados como uma nova força no cenário político da época.

16
CAPÍTULO I: REPENSANDO A HISTÓRIA CARIOCA A PARTIR DAS
MARGENS: FAVELAS, SEGREGAÇÃO URBANA E RELAÇÕES RACIAIS
“Dos países preconceituosos, o Brasil é líder, sabe por causa de quê? Ele
finge que não é, mas ele é. Isso é pior ainda. Isso é pior ainda! O Estados Unidos
é conhecido como um país preconceituoso, racista, mas eles se declaram que é
(...)E temos que falar sobre isso...só isso. ”
Waldir Barbosa, morador do Morro do Salgueiro

1.1 - HISTORIOGRAFIA DAS FAVELAS: UM CAMPO EM CONSTRUÇÃO

Apesar de uma recente mudança nos últimos anos, é importante ressaltar que a temática
das favelas – e de seus movimentos sociais – ainda está se consolidando como um campo
de estudo historiográfico. As pesquisas referentes ao tema partiram, nas últimas décadas, de
outras áreas do conhecimento tais como a sociologia e a antropologia. A questão das
favelas ainda está conquistando a devida visibilidade na escrita da História do Rio de
Janeiro, reflexo do fato que as favelas foram, por muito tempo, negligenciadas frente aos
bairros formais, no que se refere à história da produção do espaço urbano carioca. Por isso,
um universo de experiências dos atores desses espaços majoritariamente negros manteve-se
invisibilizado. Dessa maneira, ao estudar a história das favelas deve-se ter em mente que
ainda não podemos contar com uma bibliografia tão vasta 8, mas que tem crescido de forma
promissora na última década.
Os primeiros estudos sobre favela, realizados do início do século XX até a década de
1950 tinham a autoria de médicos, engenheiros, arquitetos. Em sua maioria, no qual
podemos destacar Moura9, eles buscavam compreender as favelas sob o prisma de que elas
eram um “corpo estranho”, não pertencente ao conjunto da cidade, prejudicando seu bom
funcionamento. Além disso, havia a tendência de interpretar a favela como um problema,
problema esse gerado pela urbanização desordenada e que estava fadado a desaparecer a
partir da ação de controle e erradicação do Estado.
No contexto da ditadura militar, a temática ganhou interesse acadêmico dos
cientistas sociais, inserida no debate mais amplo acerca das moradias populares urbanas.

8
As pesquisadoras Licia Valladares e Lídia Medeiros apontam, que, de 1906 a 2000, a produção
historiográfica representava apenas 3% dos estudos produzidos sobre as favelas. In.: VALLADARES, Licia
P. Pensando as favelas do Rio de Janeiro (1906-2000): uma bibliografia analítica. Ed. Relume-Dumerá, Rio
de Janeiro, 2003.
9
MOURA, Victor Tavares de. “Favelas do Districto Federal”.: In aspectos do Districto Federal. Rio de
Janeiro: Gráfica Sauer, 1969.
17
Neste período, as favelas sofreram uma política sistemática de remoção sem precedentes.
Os sociólogos buscavam compreender a explosão demográfica e a desigualdade que ocorria
nas metrópoles de toda a América Latina. Esses autores criticaram a percepção muito
disseminada entre arquitetos e urbanistas da favela como “aglomerado caótico” assim como
um espaço à parte, marginal e independente da cidade.
Autores como Anthony e Elizabeth Leeds, Lucien Parisse, Ermínia Maricato e
Janice Perlman10 destacam o papel da favela como a solução possível e criativa para os
trabalhadores frente à realidade urbana hostil. Muito influenciada por um marxismo de viés
estruturalista, a partir da escola chamada “Sociologia urbana francesa”, essa bibliografia se
fundamentou em estudos de campo e na análise de dados quantitativos e qualitativos, da
problemática das grandes contradições urbanas, desnaturalizando a constituição do espaço
da cidade. O aspecto das práticas culturais assim como a capacidade de atuação histórica
dos moradores das favelas praticamente não é observado, diluídos em modelos econômicos
de grande abrangência. Nesse sentido, a favela seria a determinação da dinâmica social
mais ampla segundo a qual a lógica de organização espacial seguiria estritamente os
interesses e as necessidades das classes dominantes.
Brum e Knauss11 observam que a favela demorou muito até se afirmar como um
objeto de estudo dos historiadores e até pelo menos os anos 1980, a história das favelas era
feita, principalmente, para dar base a estudos sociológicos. A partir dessa década começam
a aparecer algumas esparsas produções de historiadores em torno da moradia popular, ou
seja, como forma de moradia da classe trabalhadora e continuidade dos cortiços. Ainda
segundo os autores, esses historiadores focaram sobretudo nas origens das primeiras favelas
e seguem a tendência economicista, onde a cidade seria o palco da luta de classes e o
Estado seria mero instrumento das classes dominantes, aqueles que teriam o poder para
movimentar o processo histórico
Nesse contexto, essa historiografia acabou por se utilizar sobretudo de
documentação e fontes oficiais, negligenciando o papel histórico dos moradores na
formação de seu próprio espaço de moradia. Na dimensão política, seguindo um momento

10
LEEDS, Anthony & LEEDS, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1978. - PARISSE, Lucien. “Favelas do Rio de janeiro – evolução- sentido” In.: Caderno do CENPHA
5. Rio de Janeiro: Centro Nacional de pesquisas habitacionais, 1969. - MARICATTO, Ermínia.
Autoconstrução: a arquitetura possível. In: A Produção Capitalista da casa (e da cidade) no Brasil Industrial.
ed. Alfa Ômega, São Paulo, 1979. - PERLMAN, Janice E. Mito da Marginalidade: Favelas e Política no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1977
11
BRUM, Mario S. & KNAUSS, Paulo. Encontro marcado: a favela como objeto de pesquisa histórica. In.:
MELLO, Marco A. (Org.)Favelas Cariocas. Ontem e hoje. Rio de Janeiro, Garamond – 2016.
18
histórico de redemocratização, começa-se a pensar o protagonismo dos favelados - tão
abafado nas produções das décadas anteriores. Destacam-se trabalhos como os de Nísia
Lima12 que irão pensar a favela a partir da atuação política e organizativa de seus
moradores, sob a perspectiva mais ampla dos movimentos sociais urbanos.
A partir da primeira década do século XXI, diversas pesquisas tentaram superar os
modelos estruturais ao perceber certo determinismo econômico nessa compreensão da
cidade. Cresce o interesse pela abordagem a partir da dinâmica local da favela, seus atores e
suas expressões culturais, a partir da observação pluralidade das favelas e de suas histórias,
como, por exemplo, na obra de Marcos Alvito13 “As cores de Acari.”
Para Brum e Knauss essa “historiografia contemporânea” das favelas seria marcada
por algumas características principais:
“O compromisso com a afirmação dos habitantes das favelas, suas
formas de organização e pensamento, como sujeitos sociais do processo histórico.
Disso decorre um enfoque monográfico, ou seja, da ênfase no estudo de
comunidades específicas, evitando discursos generalizantes. Trata-se de
reconhecer a pluralidade das dinâmicas sociais em diferentes contextos históricos.
”14
Outra via de pesquisa se consolidou através do debate do próprio conceito de favela
e as disputas envolvendo o termo, aproveitando diálogos com a antropologia urbana e as
possibilidades de análises abertas pela História Social, onde se explorou análise dos
discursos acerca das favelas como representações sociais e construções históricas de um
imaginário coletivo. Somado a isso, esse novo momento da historiografia das favelas trouxe
um interesse por arquivos não oficiais, como imprensa jornalística, imagens e fontes orais,
valorizando a memórias e a perspectiva dos moradores e partindo de questões do tempo
presente para a compreensão histórica desses espaços. Esse processo tem ligação com o
crescimento geral do uso da História Oral, onde se abriram inúmeras possibilidades de
divulgar vozes e identidades até então marginalizadas.15
Com isso, percebe-se uma expansão da produção historiográfica – que se manteve
residual por décadas – acerca das favelas. Levando em consideração que o tema quase

12
LIMA, Nisia Trindade. O movimento de favelados do rio de janeiro – políticas do estado e lutas sociais
(1954 – 1973). Dissertação de Mestrado em Ciências Políticas – IUPERJ - 1989
13
ALVITO, Marcos. As cores de Acari: uma favela carioca – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
14
BRUM, Mario S. & KNAUSS, Paulo...Op. Cit. 131
15
Nessa linha podemos destacar inúmeros trabalhos historiográficos tais como: BRUM, Mario Sergio
Ignácio. Cidade Alta: história, memórias e o estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro,
Tese de doutorado. UFF, 2011; BITTENCOURT, Daniele Lopes. “ O morro é do povo”: Memórias e
experiências de mobilização em favelas cariocas. ” Dissertação de Mestrado. UFF, 2012; AMOROSO,
Mauro. Caminhos do lembrar: a construção e os usos políticos da memória no Morro do Borel. Tese de
doutorado - CPDOC, 2012; CARVALHO, Monique Batista: Uma Maré de Lutas: memória e mobilização
popular na favela Nova Holanda, Dissertação de Mestrado, UNIRIO - 2016.
19
sempre foi trabalhado a partir da ótica intelectual externa. Esse momento marca também a
tentativa de deslocamento da escrita da história das favelas para a visão dos favelados, uma
vez que tem como parâmetro a memória comunitária ou individual de seus moradores,
antes abafados por discursos oficiais
Contudo, apesar da tendência recente de mudança, a questão das favelas ainda está
deixando de ser temática “subterrânea” na historiografia. Essa realidade se agrava quando
consideramos que poucas pesquisas, nas mais diversas áreas das ciências sociais, se
aprofundam nas questões étnico-raciais para a compreensão da constituição das favelas
cariocas. Essas questões foram ofuscadas diante da perspectiva econômica. Normalmente
entendo o favelado dentro de um universo mais amplo, em relação à “classe trabalhadora”
ou mesmo aos “pobres”. A pesquisa do geógrafo Andrelino Campos16é uma exceção a essa
perspectiva, ao analisar as origens raciais da favela, defende que a segregação do Rio de
Janeiro seria fruto de uma tripla discriminação: “racial”, “espacial” e de “pobreza”.
A relevância atual do estudo sobre a favela reside exatamente nas possibilidades que
abre de questionar discursos oficiais acerca da história carioca e de disputar a memória da
cidade. Nesse estudo, podemos compreender o envolvimento consciente de seus moradores
nas disputas políticas que atravessaram o país durante boa parte do século XX. Por outro
lado, demonstra-se a importância desses atores na construção do Rio de Janeiro, resistindo
a um modelo de cidade que os grupos dominantes tentaram e continuam a tentar impor,
contribuindo para a luta nas favelas pelo acesso à cidade, igualdade de direitos e justiça
social.

1.2 O QUE AS QUESTÕES RACIAIS TÊM A NOS DIZER SOBRE SEGREGAÇÃO


URBANA E A HISTÓRIA DAS FAVELAS?

Álvaro Nascimento17, ao analisar pesquisas relativas a historiografia do mundo do


trabalho no início do século XX, percebe a frequente ausência de um debate mais

16
CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: A produção do espaço criminalizado. Bertrand Brasil. Rio de
Janeiro, 2005.
17
NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à
História Social do Trabalho no Brasil. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 29, no 59, p. 607-626,
setembro-dezembro 2016.
20
aprofundado com relação às questões raciais18, em complemento às questões de classe. Ele
aponta que ainda está por se consolidar um diálogo entre os estudos relativos à formação da
classe trabalhadora (e dos movimentos sociais) por um lado e as pesquisas referentes ao
pós-abolição (as condições de vida da população negra e sua luta pela plena cidadania, as
políticas de embranquecimento) por outro. A desconexão entre esses campos da história
sustentaria também na frequente invisibilização da cor/raça e seus desdobramentos na
análise dos movimentos de trabalhadores a partir do século XX, onde os negros são
esmaecidos no decorrer da trajetória histórica do país, “engolidos” pela massa de
trabalhadores “sem cor” brasileiros.
Nascimento observa que a identificação racial dos trabalhadores é uma das chaves de
compreensão de conflitos e solidariedades presentes na formação da classe trabalhadora
brasileira, perpassada desde o início pelo problema histórico do racismo. Ao negligenciar
essa questão se limita profundamente o conhecimento de uma sociedade com grande
diversidade de relações sociais, raciais e de trabalho. Frequentemente, os pesquisadores são
guiados por fontes ou discursos que, na realidade brasileira, dificilmente fazem referência
direta à cor ou grupo racial – devido ao caráter historicamente dissimulado do racismo
brasileiro – mas que se apresentam de maneira mais sutil e subjetiva. Com isso, deixam de
se utilizar essa poderosa perspectiva de análise que tanto enriqueceria o debate trazendo à
tona as lutas e os problemas sociais que uma parcela majoritária dos trabalhadores
brasileiros enfrentava na primeira metade do século.
Essa busca da composição étnico-racial dos indivíduos nos estudos históricos é
importante, uma vez que pode nos revelar questões relativas a ancestralidade, mobilidade
espacial, valores e costumes, que estavam jogo na formação da identidade e nas condições

18
Neste trabalho optamos pela utilização do conceito de “raça” em seu sentido sociológico. Deve-se ter em
mente que por trás do conceito de “raça”, hoje não mais utilizado com a conotação biológica, há um conteúdo
ideológico, que esconde uma relação não proclamada: no caso, as relações de poder e de dominação.
Conforme Munanga (2004), é uma categoria etnosemântica, uma vez que é determinado por estruturas e
relações de poder que a governam. Uma vez que negro, branco e mestiço não possuem o mesmo significado
em países como Brasil, Estados Unidos e África do Sul, por exemplo, daí seu caráter etnosemântico, social,
político-ideológico e não biológico. O conceito de “raça” sofreu alterações semânticas com o decorrer dos
séculos, pois foi expressão de disputas intelectuais e ideológicas para a interpretação mais adequada da
realidade e se modificou acompanhando grandes transformações econômicas, políticas e sociais. Porém,
apesar de não possuir mais validade “científica”, a categoria “raça” está ainda presente no imaginário social e
nas representações coletivas, onde as diferenças fictícias são construídas a partir de traços fenotípicos. “É a
partir dessas ‘raças sociais’ que se reproduzem e se mantêm os racismos”. Na verdade, entendemos que o
racismo é utilizado como uma arma política, de forma a manter uma hierarquia social. In.: MUNANGA, K.
Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Cadernos Penesb, Niterói, Editora
da UFF, no 5, p. 15-34, 2004.

21
de vida dessa população na primeira república, qualificando o resultado das pesquisas.
Nessa mesma linha Sovik afirma:

“Essa ausência, leva-nos à reafirmação da história única, marcada pela


superioridade cultural e racial dos imigrantes que se avolumaram no Sudeste e
Sul do país no fim da escravidão. Retira-nos o conhecimento de uma sociedade
cuja diversidade racial era imensa, reduzindo-a à branquidade e à mestiçagem.
”19

Para o referido autor, a ausência desses debates tem relação com resquícios da
influência das concepções de “democracia racial” na intelectualidade brasileira. Ela se
impôs em parte do século XX como ideia dominante de explicação da realidade brasileira.
Absorvendo elementos da ideologia do branqueamento pautada na eugenia, que perdera
força, essa teoria foi incorporada por intelectuais e ideólogos do Estado como “um ideal
que unificava “racialmente” a população brasileira, e ao mesmo tempo, oferecia uma
explicação “harmonizante” das relações raciais no Brasil 20. Enquanto isso, a análise de
questões raciais e de negritude foram encobertas uma vez que poderiam causar divisões na
unidade nacional, frente ao branqueamento cultural e à construção do mestiço como síntese
da população brasileira. Apesar de ter sido fortemente criticada nas últimas décadas, a
teoria da democracia racial deixou marcas profundas na intelectualidade brasileira. Marcas
que nem sempre são evidentes.
Contudo, no estudo da história urbana, estamos vivenciando um momento de fortes
mudanças, que atinge diversos campos das ciências sociais onde busca-se cada vez mais
debater a participação de mulheres e homens negros na construção do espaço urbano no
Brasil. Mesmo assim, são ainda tímidas as pesquisas acerca da história das favelas – sua
formação, expansão, movimentos comunitários - que se construam a partir do debate mais
aprofundado acerca das questões raciais e seus desdobramentos.21Optar por esse caminho é
de certa maneira adentrar por trilhas estreitas, confusas e não muito demarcadas.
Principalmente, no caso do Rio de Janeiro, quando estudamos as favelas, estamos
falando de espaços que guardam diversidade étnico-racial, de renda, cultural, histórica entre
si e mesmo no seu interior. Contudo, uma reflexão é importante: ainda que os brancos não

19
SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco: hegemonia branca no Brasil. In: WARE, Vron (org.). Branquidade:
identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 376.
20
CORRÊA, Gabriel Siqueira. O branqueamento do território como dispositivo de poder da colonialidade:
notas sobre o contexto brasileiro. CRUZ & OLIVEIRA, Denílson Araújo de, Valter do Carmo (Orgs.)
Geografia e giro descolonial. Experiências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico. Rio de
Janeiro Ed. Letra Capital,2017.
21
Podemos destacar o trabalho BITTENCOURT, Danielle L. “O morro é do povo!”...Op. cit
22
sejam raros nas favelas22, não se pode negar que elas são territórios constituídos,
construídos e apropriados por uma população predominantemente preta ou parda 23. E essa
constatação guarda desdobramentos sociais consideráveis. Carlos Hoselbalg ainda na
década de 1990, alerta para a persistente influência da democracia racial e a necessidade de
se trabalhar de forma mais aprofundada as questões raciais nos estudos acerca da sociedade
brasileira, inclusive com relação às favelas:

“Por que será que, entre os cientistas sociais estrangeiros que estudam o
Brasil, notadamente os norte-americanos, há um número proporcionalmente
maior que se preocupa e escreve sobre temas raciais do que no Brasil? (...) nos
Estados Unidos o tema racial sempre teve um lugar mais central no âmbito do
debate público e, por isso, conta com mais legitimidade na esfera acadêmica. No
Brasil tudo se passa como se a magnitude dos problemas sociais e econômicos
enfrentados pelo país jogasse para um futuro indefinido a discussão do racismo,
um problema aparentemente menor. (...) Sendo assim, continuam a aparecer
interessantes relatórios de pesquisa de campo em favelas que sequer mencionam a
composição racial das mesmas, nem questionam porque há tantos negros e
mestiços favelados (...) Como é sabido, quem pertence a um gueto
frequentemente é levado a ter sentimento de impotência e frustração. Afinal de
contas, os habitantes do gueto raramente são ouvidos pela maioria de fora. Ou a
maioria finge que não escuta, que a conversa não é com ela. Pensando nos
brasileiros, o habitante do gueto, às vezes, acredita estar frente a um fenômeno
colossal de inconsciência racial e se pergunta como é possível que esses
brasileiros ainda entendam o país nos termos ditados por Gilberto Freyre há mais

22
Segundo Lícia Valladares, a ocupação de certos morros da cidade na virada do século XIX para o XX foi
em parte realizada por imigrantes europeus (portugueses, espanhóis e italianos), incluindo algumas de favelas
mais tradicionais como a Mangueira, a Formiga, o Fallet e o Caju. VALLADARES, Licia P. A gênese da
favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. In.: Revista brasileira de Ciências Sociais. São Paulo,
v.15, n. 44, 2000. P. 5
Entretanto, devido a migração rural, esses imigrantes não permaneceram por muito tempo como maioria
nesses espaços, atualmente de clara maioria negra. No Morro da Liberdade ou do Turano, certas famílias são
descendentes de imigrantes portugueses que se estabeleceram naquela comunidade no século passado.
Algumas delas continuam integradas inteiramente por pessoas brancas, mas a maioria miscigenou-se ao longo
das décadas. Em sua maioria elas estão ligadas ao comércio (bares e padarias) e têm uma condição
socioeconômica acima da média da favela.
23
Segundo dados do censo de 2010 do IBGE, 65,81% dos moradores de “aglomerados subnormais” do Rio de
Janeiro se identifica como preto ou pardo. IBGE, Aglomerados Subnormais – Informações Territoriais, Censo
2010.
É importante salientar que neste trabalho adotamos o conceito de “negros” - uma construção social e histórica
- para nos referirmos às pessoas classificadas como pretas e pardas nos censos demográficos realizados pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), considerando as relações culturais, históricas, de
ancestralidade e que esses grupos apresentam condições de vida bem próximas e por sua vez, distintas das
condições sociais daqueles denominados como brancos. Conforme Santos:
“Se justifica agregarmos pretos e pardos para formarmos, tecnicamente, o grupo racial negro, visto que a
situação destes dois últimos grupos raciais é, de um lado, bem semelhante, e, de outro lado, bem distante ou
desigual quando comparada com a situação do grupo racial branco. Assim sendo, ante a semelhança
estatística entre pretos e pardos em termos de obtenção de direitos legais e legítimos, pensamos ser plausível
agregarmos esses dois grupos raciais numa mesma categoria, a de negros. (...) a diferença entre pretos e
pardos no que diz respeito à obtenção de vantagens sociais e outros importantes bens e benefícios (ou mesmo
em termos de exclusão dos seus direitos legais e legítimos) é tão insignificante estatisticamente que podemos
agregá-los numa única categoria, a de negros. SANTOS, 2002 p. 13 apud GOMES, Nilma L. Alguns termos e
conceitos presentes no debate sobre relações raciais no brasil: uma breve discussão In.: Educação anti-racista:
caminhos abertos pela Lei Federal n° 10639/03, 2005).
23
de 50 anos. Tenta explicar também como é possível que as pessoas pensem em
democracia racial numa sociedade onde a democracia, a seca, sem qualificativos,
tem existido em quantidade tão limitada. Os sociólogos [geógrafos, historiadores,
antropólogos etc.] do gueto concluem que a noção de democracia racial não passa
de uma idealização prematura cujo efeito tem sido paralisar e abortar as poucas
tentativas de gerar uma sociedade mais igualitária. ”. 24

As análises se concentram na perspectiva das desigualdades socioeconômicas que são,


sem dúvidas, fatores fundamentais na compreensão da formação das favelas cariocas, mas
que não são exclusivos. Logo, por muitas vezes, as favelas são observadas sob a ótica da
pobreza e da ausência. Ou seja, a partir da falta de recursos econômicos, de infraestrutura,
de serviços públicos básicos, de títulos de propriedade, da precariedade de suas construções
ou da exclusão social de seus moradores, integrantes mais pobres de uma classe
trabalhadora que não tem cor e quando tem, é um dado que aparentemente não merece
maiores investigações.
Mas essa não é uma informação qualquer. É preciso tentar compreender historicamente
a estreita relação entre as desigualdades econômicas e raciais na formação das favelas. A
busca do porquê da alta concentração negra nesses territórios abre caminhos para o
entendimento da atuação cultural, econômica e política dos afrodescendentes no Rio de
Janeiro na primeira metade do século. Assim como nos permite repensar o que estava
envolvido na produção de uma cidade “oficial”, que foi diversas vezes repensada e
violentamente remodelada a partir de padrões culturais, estéticos e civilizatórios europeus,
que muito pouco dialogava com a maioria de seus habitantes. Nesse processo se construiu
também uma configuração espacial pautada nas desigualdades. A cidade do Rio de Janeiro,
assim como diversas outras capitais, se constituiu, principalmente a partir do século XX,
como uma cidade segregada econômica e racialmente, onde quanto mais próximo dos
bairros valorizados, mais a população negra e pobre se encontra concentrada em territórios
específicos.
A socióloga Maria Panta, em pesquisa acerca das relações sociais e segregação, observa
que os estudos sobre segregação urbana nas cidades brasileiras tendem a não considerar
seriamente a raça como categoria para se pensar esse fenômeno social.25 Segundo ela,
normalmente o foco principal desses estudos recai sobre as classes sociais, questões
econômicas e do mercado imobiliário. É como se tivesse estabelecido uma concepção de

24
HASENBALG, C. e SILVA, N. do V. Relações raciais no Brasil contemporâneo.Rio de Janeiro, Rio Fundo
Editora, 1992. P. 9-10
25
PANTA, Mariana Aparecida dos Santos. Relações raciais e segregação urbana: trajetórias negras
na cidade – Tese de Doutorado em Ciências Sociais. UNESP, 2018.
24
que, na realidade urbana brasileira, a questão racial e a segregação espacial da população
não estivessem interconectadas. Assim, a explicação para a concentração extensiva de
negros em territórios marginalizados como as favelas, se restringiria a justificativa da
presença maciça de negros entre as classes mais pobres. Na verdade, Panta demonstra que
outros fatores, para além da questão econômica – que não deixa de ser fundamental - estão
em jogo na segregação residencial, tais como questões históricas, culturais, identitárias, de
laços de parentesco ou sociabilidade.26Nessa mesma linha, Telles observa que nas cidades
brasileiras há, de fato, uma interação entre brancos e negros muito maior que nos Estados
Unidos, por exemplo. Contudo, o autor demonstra que o compartilhamento do mesmo
espaço de moradia está quase que restrito aos bairros pobres e favelas, justamente onde os
negros estão concentrados em maiores proporções. Logo, segundo ele, quanto mais
valorizado é o bairro, menor é a tendência de presença negra, exceto na condição de
empregado.27
Para esses autores, essa desconexão entre os temas na produção intelectual brasileira
tem relação com a constante comparação com o modelo de segregação dos Estados Unidos
– muito mais profundo - onde historicamente, a discriminação racial teve suporte de leis
segregacionistas, realidade inexistente no Brasil. Panta entende que essa comparação é
equivocada, pois desconsidera as especificidades históricas, políticas, socioeconômicas,
culturais e urbanas de cada região. Raquel Rolnik foi uma das primeiras a pensar a
construção do espaço urbano no Brasil a partir das desigualdades sociais e raciais. Ela
também chama a atenção para a frequente comparação com os estadunidenses como
justificativa para não se aprofundar nas questões raciais no estudo da produção da
espacialidade urbana no Brasil, onde ela defende que existiria um “apartheid velado”.
Segundo a autora:

“É comum, nas referências que são feitas à posição dos pretos e pardos nas
cidades brasileiras, a menção à inexistência de guetos, bairros onde são
confinadas certas minorias, por imposições econômicas e/ou raciais como sinal
de ausência de qualquer tipo de segregação racial. O gueto norte-americano
sintetiza a imagem de discriminação racial aberta e da dominação branca. No
polo oposto estaria o Brasil, onde pretos e brancos pobres compartilham o espaço
das vilas e favelas, numa espécie de promiscuidade racial sustentada pelo laço
comum da miséria e da opressão econômica [...]Embora tal quadro careça ainda
de um trabalho empírico mais profundo e detalhado para se consolidar, é
perfeitamente plausível falar-se em segregação racial, discriminação e dominação

26
Ibid. p. 32
27
TELLES, Edward. Cor da Pele e Segregação Residencial no Brasil. Estudos Afro-
Asiáticos, n. 24, p. 5-22, 1993.
25
branca nessas sociedades: a história do Rio e de São Paulo é marcada pela
marginalização e estigmatização do território negro.”28

Dessa forma, ao estudar o fenômeno da segregação e marginalização da população


negra nos grandes centros brasileiros, é fundamental ter como ponto de partida a
compreensão de que no Brasil se construiu sobre um modelo de racismo particular, que se
sustenta na sua negação e encobrimento, inclusive nas políticas públicas.29
Seguindo nessa linha, Vargas defende que a ideia de que não existe segregação racial no
Brasil precisa ser desconstruída tanto quanto a suposta democracia racial. Segundo ele: “O
racismo brasileiro é silencioso, mas contundente, pertinente e claramente expresso em
padrões de segregação residencial”30. Ao analisar os reflexos das desigualdades sócio-
raciais nas cidades brasileiras ele afirma que “referem-se tanto a racialização do mundo
social quanto às formas que essa racialização torna-se codificada na geografia urbana e
social das cidades”.31
Como aponta Andrelino Campos, pensar a questão das favelas, em seus processos
históricos de formação e resistência é, sobretudo:

“[...] pensar a segregação sócio espacial a partir da ação de pessoas,


sobretudo pretos e pardos, em seus movimentos cotidianos, produzindo lugares
na cidade. Historicamente, a espacialização de pretos e pardos sofreu uma
oclusão das agendas de pesquisa, vinculando por meio do viés economicista: a
segregação sócio espacial ocorre em favelas, mas quem eram os favelados? A
massa de pobres urbanos, se respondia. [...]. Não existe sentido o estudo da
segregação voltado apenas para realçar a existência desse fenômeno, precisa ser
decorrência de processos históricos que envolvam pessoas na condição de atores,
contrapondo e/ou aliados aos agentes que produzem a cidade em sua
materialidade. É necessário compreender estes processos de acordo com os
contextos. ”32

Por outro lado, Mike Davis, em estudo acerca das favelas do que ele chama de “terceiro
mundo”, observa que a segregação visível nas grandes cidades é também fruto de uma
herança de desigualdades da dominação colonial europeia, reforçadas pelas elites atuais,
onde a dominação racial tem uma importância central. Como ele afirma:

28
ROLNIK, Raquel. Territórios Negros nas Cidades Brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de
Janeiro) In.: SANTOS, Renato Emerson. Diversidade, espaço e relações étnico-raciais. O negro na geografia
do Brasil. 2007. P 75
29
PANTA, Op. Cit. P. 87
30
VARGAS, João H. Costa. Apartheid Brasileiro: raça e segregação residencial no Rio de Janeiro. Revista de
Antropologia. USP, v.48 n. 1, p.75-131, 2005. P. 81
31
Id. P. 105
32
CAMPOS, Andrelino Oliveira: Questões étnico-raciais no contexto da segregação socioespacial na
produção do espaço Urbano: Algumas considerações teórico-metodológicas. In.: SANTOS, Renato Emerson.
Diversidade, espaço e relações étnico-raciais. O negro na geografia do Brasil. 2007 – P. 82
26
“Esses padrões polarizados de uso da terra e de densidade populacional
recapitulam lógicas mais antigas de controle imperial e dominação racial. Em
todo o terceiro mundo as elites pós-coloniais herdaram e reproduziram com
ganancia as marcas físicas das cidades coloniais segregadas. Apesar da retórica
de libertação nacional e justiça social, adaptaram com agressividade o
zoneamento racial do período colonial para defender seus próprios privilégios de
classe e a exclusividade espacial. ”33

Partindo desses pressupostos, é preciso historicizar o fenômeno da segregação, que


guarda especificidades em cada centro urbano brasileiro, mas está articulado a processos
que atravessaram toda a conjuntura histórica do país no início do século XX. Trata-se da
marginalização histórica imposta aos pobres, sobretudo negros. Raquel Rolnik, ao
comparar o processo de construção espacial do Rio de Janeiro e São Paulo, destaca o
frequente deslocamento forçado de moradores negros para territórios marginalizados:

“A face urbana desse processo é uma espécie de projeto de “limpeza” da


cidade, baseado na construção de um modelo urbanístico e de sua imposição
através da intervenção de um poder municipal recém-criado. Os principais alvos
de intervenções nas duas cidades eram justamente territórios negros. ”34

1.2 TORNANDO A “CIDADE MARAVILHOSA MAIS EUROPEIA”: O LUGAR DOS


NEGROS E POBRES NAS REFORMAS URBANAS DO INÍCIO DO SÉCULO XX

Para compreendermos melhor as questões políticas, econômicas e sociais que


influenciaram a construção do cenário urbano carioca no período analisado neste trabalho
(os anos 30 e 40) atravessado por sérios conflitos de terra, uma grave crise habitacional,
onde desigualdades espaciais, sociais e raciais se aprofundam em diversos bairros e as
favelas se expandem como jamais visto, precisamos recuar algumas décadas.
Durante fins do século XIX e as primeiras décadas do XX, as maiores cidades
brasileiras foram sacudidas por intervenções urbanas sem precedentes. Durante esses anos –
embalados por negociações e investimentos de capitais estrangeiros - boa parte das áreas
centrais das grandes capitais foi convertida em canteiros de obras. Grandes demolições,
obras monumentais e muitas disputas territoriais passaram a marcar o cotidiano desses
espaços.

33
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Ed. Bointempo. São Paulo,2006. P. 105.
34
Rolnik. Op. Cit. P. 80
27
Apesar de guardarem particularidades de acordo com as características histórico-
espaciais e a conjuntura política de cada cidade, tais reformas foram inspiradas em certos
modelos teóricos e ideológicos que guardam, sobretudo, determinadas formas de se pensar
e viver a cidade. Rocha35 observa que esse foi um cenário que se desenhou de maneira
muito semelhante para diversas cidades brasileiras, tendo como destaque Rio de Janeiro,
São Paulo, Porto Alegre, Belém, Fortaleza, Santos e Salvador, com o objetivo de afirmação
de poder e prestígio do novo estado republicano.
Esse seria um momento chave na compreensão da produção de espacialidades
desiguais e segregadas nas capitais brasileiras. Ainda segundo Rocha, a estruturação urbana
das principais cidades brasileiras sempre seguiu - devido à colonização e, posteriormente à
colonialidade - modelos europeus de constituição urbana, que partem de contextos
históricos, geográficos, sociais e, sobretudo, culturais distintos daqueles vivenciados pela
população brasileira. Ela observa variações do modelo português com evidências do
traçado hispânico nas cidades coloniais, passando pelas influências das ideias francesas nas
intervenções urbanísticas, no estabelecimento da República no Brasil em fins do séc. XIX e
início do séc. XX. Outras transformações das cidades foram reproduzidas, posteriormente,
por importação das teorias clássicas do urbanismo moderno e modernista em suas diversas
perspectivas e vertentes. Na verdade, ela observa que o urbanismo, enquanto ciência
surgiria historicamente voltado para favorecer a regulação, fluidez e produção capitalista
das cidades europeias. Ele seria uma ferramenta para cercear um crescimento mais
“natural” das cidades, conforme a dinâmica cotidiana pautada nas inter-relações de seus
habitantes. Em suas palavras:

Assim, as cidades brasileiras apresentam diversos momentos de tentativa


da padronização espacial à qual nos referimos acima, agravada por serem
matrizes teóricas e ideológicas, sobretudo europeias e americanas, geradas em
contextos históricos, sociais, econômicos e políticos distintos do contexto
brasileiro. Entendemos, deste modo, o pensamento urbanístico produzido de
forma afastada da realidade brasileira e distante de uma preocupação social
quando da organização espacial projetada e imposta pelo poder público, em muito
subsidiada pelos interesses do capital. 36

Em uma sociedade industrial, a cidade deve ser dominada, controlada e dirigida,


muitas vezes produzindo espaços e dinâmicas artificiais que geram pouca identificação na

35
RAMOS, Maria Estela Rocha. Território afrodescendente: Leitura de cidade através do bairro da Liberdade,
Salvador - Dissertação de mestrado – UFBA - 2007
36
Id. Contextos da construção da territorialidade negra em áreas urbanas - Revista África e Africanidades -
Ano 3 - n. 9, maio, 2010.
28
população. Além de favorecer os meios de produção, o urbanismo viria também sob a
forma de controle político.37No contexto brasileiro, espaços informais, habitado em grande
medida por pessoas negras, nem sequer seriam considerados, a não ser pela ótica de um
problema a ser erradicado.
Havia, entre as camadas dominantes da sociedade, o pensamento de que o país
deveria buscar se inserir no rol dos países “modernos e civilizados”, tendo sempre como
parâmetro a Europa. No plano ideológico, tendo como base concepções higienistas38 e
posteriormente sanitaristas39, as cidades deveriam, através das reformas, modernizar-se e,
para tanto, deveriam romper de vez com a estrutura colonial assemelhar-se o máximo
possível com as cidades europeias. Mas não se tratava de uma remodelação aleatória: ela
partia de um enorme esforço de controlar, ordenar e normatizar o espaço urbano e seus
habitantes.
Nesse sentido, atrelado a elaboração de ‘planos de melhoramentos’, com
preocupações com higiene, fluidez e estética construiu-se, por parte de intelectuais e do
poder público, um forte discurso cientificista de caráter civilizatório. Como observam
diversos autores40, avançava-se, na verdade, na construção de uma dominação cultural a
partir de uma pretensa civilidade europeia, permeada de discursos em defesa de valores
liberais e igualitários, mas que reforçava hierarquias e privilégios. Ela se constituía com
bases na idealização de modelos burgueses de comportamento, de concepção e vivência da
cidade, entendidos como os únicos aceitáveis e, portanto, modelos para toda a humanidade.

37
Id. Bairros negros: uma lacuna nos estudos urbanísticos um estudo empírico-conceitual no bairro do
Engenho Velho da Federação, Salvador (Bahia). Tese de doutorado - UFBA
38
O objetivo da política higienista, iniciada nas últimas décadas do século XIX e inspirada nas concepções
urbanistas europeias, era “curar” uma cidade considerada “doente”, com a destruição de habitações
consideradas insalubres, abertura e alargamento de diversas ruas, arborização e criação de grandes espaços
abertos. Mais tarde, as obras tornam-se mais amplas sob influências de teorias urbanísticas, principalmente
francesas (haussmannianas), tendo como coparticipante o governo federal e financiamento de capital
estrangeiro. Parte-se para os aterramentos (sobre o mar e/ou sobre rios), arrasamentos de morros, aberturas de
túneis e de grandes avenidas, muitas vezes sobre os tecidos antigos das cidades, desapropriando cortiços,
casas de cômodos e pequenos comércios.
39
Segundo Abreu, a crise que se abateu sobre o higienismo a partir de fins do XIX, fez surgir o tecnicismo dos
engenheiros na concepção do espaço urbano. A era do sanitarismo tem seu ponto de partida nas cidades
brasileiras, onde esses profissionais começaram a pensar o espaço urbano de acordo com uma visão que
transcendia o simples equacionamento de um problema técnico, elaborando complexos planos e projetos. A
cidade passou a ser vista como uma grande máquina com engrenagens que deveria funcionar em perfeitas
condições, destinando especial atenção ao saneamento e à estética urbana. ABREU, Maurício de Almeida. A
evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2008.
40
CAMPOS, Andrelino. O planejamento urbano e a “invisibilidade” dos afrodescendentes: discriminação
étnico-racial, intervenção estatal e segregação sócio-espacial na cidade do Rio de Janeiro. Tese de doutorado -
2006
; Rolnik. Op. Cit; Ramos Op. Cit.
29
Mas além disso, previa também o ataque a elementos e espaços indesejados, ligados
ao atraso, à incivilidade. Para isso, se fazia necessária amoralização para combater os
“péssimos costumes” da população aos quais se atrelavam as ideias de pobreza,
insalubridade, promiscuidade, imoralidade, subversão. Estigmas associadas, sobretudo aos
hábitos da população negra e comumente adotados nos discursos acerca dos cortiços e das
favelas, posteriormente. Segundo Silva, ainda que convivesse nesses espaços diversos
grupos étnicos e uma população branca não desprezível, inclusive de imigrantes, o aparato
de repressão do Estado, físico e cultural, foi preferencialmente destinado ao grupo social
negro.41
Velloso e Rolnik observam que, nos espaços urbanos pobres de maioria negra, a
concentração num espaço exíguo – normalmente em cortiços e estalagens precárias – era
imposta pela necessidade de morar próximo aos postos de trabalho. Mas também partia da
necessidade de ajuda mútua ditada pela própria sobrevivência em condições adversas: daí
os laços familiares ampliados e concentrados, muito além da consanguinidade. Por outro
lado, essas relações fazem referência, sobretudo, a determinados modos de vida, com suas
próprias lógicas e significados, relacionados a matrizes culturais não-europeias. Através de
diversas intervenções, o padrão burguês ocidental de habitação tornou-se uma norma para o
conjunto da sociedade, contrariando o modo de habitar dos territórios populares,
influenciados pelo modo de vida da população negra. 42
Na verdade, o debate em relação à problemática da habitação era permeado por
questões morais que tiveram um lugar central nos discursos que envolveram as reformas e
que tanto contribuíram para o acirramento da segregação nas cidades brasileiras. A
tentativa de adequar a cidade à nova vida social capitalista das sociedades ocidentais,
resultou no que Ramos chama de “arquitetura do isolamento” 43, determinado pelos novos
códigos sociais de comportamento, que definiam uma radical separação entre os corpos, os
espaços públicos e privados, casa e rua, além do lugar que cada grupo social deveria ocupar
na cidade.
Os constantes festejos e danças praticados nesses espaços eram tidos como
extremamente imorais, sendo visto pela elite como expressão da lubricidade, da
degenerescência e da falta de instituições familiares estáveis. Para Rolnik, a liberdade de

41
SILVA, Mayara G. C. Ferreira. Reforma Urbana Pereira Passos: resistências de uma população excluída.
Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v. 50, n. 1, mar. /jun., 2019, p. 409–447.
42
Campos. Op. Cit.
43
ROCHA, Op. Cit. P. 103.
30
mobilidade e a proximidade dos corpos eram questões que incomodavam profundamente
essa elite de aspirações burguesas:
Por colocar a liberdade corporal no centro de todo o processo
comunicativo, a cultura negra chocava-se com o comportamento burguês-
europeu, que impunha o distanciamento entre os corpos. [...] A cortesia e o
refinamento eram regidos por normas que vetavam os toques mútuos, assim como
o livre contato corporal em público[...] O fato de uma parte das tarefas e
vivencias cotidianas se dar em um espaço que misturava famílias, raças, idades e
sexos e, ainda mais, que as regras de contatos sociais, posturas corporais e
maneiras de expressar afetividade não fossem iguais àquelas que a elite defendia
como dignas e respeitáveis, foi suficiente para que o território popular fosse visto
e representado como promiscuo e desregrado. Através desse mecanismo,
poderoso, porque plenamente em vigor até os dias de hoje, se adere a
precariedade moral, condenando o que é, antes de tudo diverso e desconhecido, à
condição de marginal. 44

Campos e Ramos observam fortes traços eugenistas45 nas concepções higienistas e


sanitaristas que alavancaram essas grandes intervenções urbanas. Para eles, as questões
culturais e raciais – ainda que se apresentem, na maioria das vezes, de forma velada -
sempre ocuparam um ponto central nos discursos acerca das cidades, normalmente
encobertos por debates acerca de desigualdades sociais e econômicas. Portanto, a
incivilidade comumente atribuída a negros e não-brancos em geral nunca se converteu em
um discurso objetivo contra a população negra, mas frequentemente serviu como base de
ataque aos seus espaços de moradia, sociabilidade e trabalho, entendidos como
problemáticos e prejudiciais à cidade. Ramos destaca que há, inclusive nos meios
intelectuais, uma associação muito frequente entre cultura popular e cultura negra no
Brasil:
“A população negra, por compor as camadas mais pobres da população
brasileira, generaliza-se seus hábitos culturais específicos como cultura popular e
é associada, pela força das teorias dominantes, como cultura das classes
populares, homogeneizada pela idéia da pobreza e de grupos populares, dada às
condições impostas pela precarização da vida coletiva. ”46

44
ROLNIK, Raquel. A cidade e a Lei. Legislação, política urbana e território na cidade de São Paulo. 1999, p.
68.
45
A eugenia, uma das bases fundamentais do racismo científico se converteu em vigoroso movimento
científico e social a partir da década de 1880. Como ciência, ela supunha uma nova compreensão das leis da
hereditariedade humana, cuja aplicação visava à produção de “nascimentos desejáveis e controlados”;
enquanto movimento social, preocupava-se em promover casamentos entre determinados grupos e – talvez o
mais importante – desencorajar certas uniões (normalmente inter-raciais) consideradas nocivas à sociedade.
Dessa maneira, o movimento eugênico incentivou, portanto, uma administração científica e racional da
hereditariedade, introduziu novas políticas sociais de intervenção que incluíam uma deliberada seleção social.
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. P 60 apud. CAMPOS,
Andrelino. O planejamento urbano e a “invisibilidade” dos afrodescendentes – Tese de doutorado– UFRJ -
2006
46
RAMOS, Maria Estela Rocha. Contextos da construção de territorialidades negras em áreas urbanas -
Revista África e Africanidades - Ano 3 - n. 9, maio, 2010
31
O reconhecimento da eugenia no campo das abordagens sanitárias e urbanísticas no
Brasil é analisado no texto de Lira. Em sua proposta de inserção do ponto de vista
urbanístico no bojo da discussão raça/cultura no Brasil, acredita que o higienismo envolveu
também o discurso eugênico no sentido racial e cultural:

“Os eugenistas começam neste momento a afirmar a necessidade de


proteger a sociedade das raças nocivas – os africanos e asiáticos em particular – e
da ameaça da degeneração. As práticas norte-americanas e sul-africanas de
seleção de imigrantes são enaltecidas como exemplo de condução do processo de
formação racial em países novos. Em 1921, um artigo publicado em revista ligada
à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Brazil Médico, pelo doutor Renato
Kehl, apoia o modelo de esterilização adotado em diversos estados norte-
americanos. Até porque o diagnóstico da população brasileira era dos mais
alarmantes [...] busca-se uma cidade asséptica, civilizada e domesticada para as
funções do trabalho, mas também ‘eugênica’, quer dizer, racialmente
higienizada”47

E mais adiante, o autor dá um exemplo, em relação à cidade do Recife na década de


1920, na fala de um engenheiro sanitário, sobre a higiene e a eugenia: “são duas ciências
que precisam caminhar emparelhadas, uma complementar da outra… a primeira cuida da
cidade, e a segunda aperfeiçoa a raça de cuja perfeição e vitalidade muito depende o
progresso do País” (PEREIRA, 1928, p.72 apud LIRA, 1999, p. 54).
É importante lembrar que esses modelos teóricos urbanísticos surgem em um
momento de grande tensão com o fim da escravidão e gradual expansão do capital no
Brasil. Há uma preocupação enorme das classes dominantes com relação aos rumos do país
com uma população de africanos e descendentes tão expressiva. Parte da elite brasileira
defendia que substituição da mão-de-obra negra, através de uma política de imigração
massiva de europeus poderia superar os obstáculos à higiene e à civilização. Esses
obstáculos estariam ligados à inconvenientes heranças coloniais e escravocratas - símbolos
do atraso - e supostamente erguidos pela permanência de culturas não civilizadas dos povos
de origem africana e indígena. Foi, portanto, realizado pelo Estado brasileiro, por décadas,
um grande esforço de embranquecimento da população – físico e cultural - sobretudo nas
cidades. De fato, as “teorias raciais” do final do século XIX cumpriram papel fundamental,
pois exerceram influências significativas sobre o destino da população negra,
principalmente no período do pós-abolição no Brasil.

47
LIRA, José Tavares Correia, O urbanismo e o seu outro: raça, cultura e cidade no brasil (1920-1945) R. B
Estudos Urbanos e Regionais N° 1, 1999. P. 3.
32
Para Flexor, a expulsão desses moradores dos centros urbanos era fundamentada na
ideologia do progresso. Como não era possível desaparecer totalmente com a população
urbana negra e pobre, que ela fosse ao menos invisibilizada, deslocada das áreas centrais
para espaços onde sua existência não pudesse ser notada com tanto incômodo. Segundo o
autor:
“[...]havia um sentimento da opinião pública, o de branqueamento da
sociedade, um extremismo a que foi levado o conceito de moralização e
civilização da sociedade [...] Os elementos que faziam da cidade um lugar
atrasado, feio, sujo deviam desaparecer para dar lugar ao novo: avenidas e ruas
largas, arejadas, calçadas, arborizadas... com habitantes brancos, vários parques e
praças, espaços de passeio e lazer” 48

Nesse contexto, o Rio de Janeiro por ser a capital da república e até meados do
século, a maior cidade do Brasil, assume, então, uma função exemplar para o restante do
Brasil. É através dela que os discursos civilizatórios penetram no interior, levando a
ideologia da modernidade para todos os cantos do país. Ao analisar o impacto da reforma
urbana de Pereira Passos, no início do século no Rio de Janeiro, em comunidades negras da
cidade, sobretudo, os baianos da chamada “Pequena África”, Velloso afirma que essas
intervenções, extremamente preocupadas com questões de saneamento e estética,
realizaram uma série de medidas para estabelecer a sintonia da cidade com a modernidade.
Mas esta sintonia é precária, lacunar e, sobretudo, artificial. Para ela há, para além da luta
pelo direito à cidade, uma disputa cultural muito forte. As concepções religiosas, de
moradia, de lazer, sociabilidade, as relações de parentesco praticadas pela população negra
e pobre chocam-se frontalmente com os valores burgueses, de base cultural europeia, que
tentaram impor. Diz a autora:

Realmente, se lembrarmos que um dos objetivos do projeto Pereira Passos


era o de tornar o Rio uma “Europa Possível”, a africanização será a contrapartida
dessa possibilidade. A “Pequena África” e a “Europa Possível”: como juntar
realidades tão distintas? Sabe-se que o regime republicano não vai dar conta de
tal tarefa. Cidadania e escravidão mostram-se elementos incompatíveis. A
“Pequena África” decididamente não tem lugar na maquete da cidade idealizada
pelo prefeito Pereira Passos. [...]. Por mais que a nossa historiografia os tenha
ignorado, os negros baianos radicados no Rio introduziram novos hábitos,
costumes e valores que influenciaram a cultura carioca e esses valores contrastam
visivelmente com os introduzidos pela modernidade49

48
FLEXOR, Maria Helena Ochi. J.J. Seabra e a reforma urbana de Salvador. 1998. P 115 Apud RAMOS,
Maria Estela Rocha: Território afrodescendente: Leitura de cidade através do bairro da Liberdade, Salvador
49
VELLOSO, Monica Pimenta. As tias baianas tomam conta do pedaço. Espaço e identidade cultural no Rio
de Janeiro. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990, p.207-228. P. 2.
33
Nas diversas cidades brasileiras, principalmente no caso emblemático do Rio de
Janeiro tais reformas urbanas – mesmo os projetos não tenham sido completamente postos
em prática - acabaram por induzir a produção de uma considerável segregação sócio-
espacial, muito maior do que existia no século anterior.50Diante disso, ao longo dessas
décadas – mesmo com notórios pontos de resistência - diversos territórios negros do centro,
articulados pelo entrelaçamento das ruas estreitas, dos pontos de quitanda, das bicas e
tanques das lavadeiras, dos encontros no mercado, e dos espaços das irmandades na cidade,
espaços históricos, produtores de identidades, foram desintegrados pelos processos de
‘melhoramentos urbanos’ e projetos urbanísticos e acabaram sendo desconfigurados, onde
apagaram-se suas marcas para conferir à cidade uma imagem ‘metropolitana’ e confirmar o
poder da República nascente.
Ao realizar reformas de tamanha envergadura e não investir proporcionalmente em
habitações populares realmente acessíveis, o poder público consequentemente teve um
papel fundamental na expansão de espaços de moradia informais que escapavam do
controle dessa cidade “ordenada”, tais como ocupações e favelas. Espaços esses
construídos pelas mãos de milhares trabalhadores, sobretudo negros, que lutavam por sua
sobrevivência e pelo direito de existir na cidade.
A metrópole carioca, só na primeira metade do século XX, passou por profundas
intervenções alavancadas por Pereira Passos, foi também sacudida por obras da
administração do prefeito Carlos Sampaio (quando foi arrasado o Morro do Castelo) e a
produção do chamado Plano Agache. Este foi o primeiro plano urbanístico a pensar
estruturalmente a cidade como um todo. Resumidamente, o plano pretendia ordenar e
embelezar a cidade segundo critérios funcionais de mobilidade, zoneamento e estratificação
social do espaço, através de projeções monumentais, seguindo, claro, modelos europeus.51

50
No Rio de Janeiro colonial, não havia tanta hierarquia social do espaço urbano, a diferença se dava mais
pela forma e aparência da moradia do que por sua localização. Isso não significava o uso democrático da
cidade, apenas demonstrava que, numa sociedade com uma diferenciação racial e de classe explícita, com um
controle extremo sobre a população negra, não existia tanta necessidade de segregação espacial. Chalhoub
chama a atenção para o fato de que, com a abolição, o aparato jurídico que garantia um estrito controle sobre
a moradia e principalmente a mobilidade dos cativos foi desfeito. Isso causou grande preocupação na elite
brasileira, que viu a necessidade da criação de aparatos de controle e repressão que cerceassem essa
“liberdade” recém adquirida pelos negros no meio rural e principalmente nas cidades. Não é à toa que a virada
do século foi marcada por expulsão de terras de ex-escravos, de ações repressivas do Estado contra as
manifestações culturais negras e seus espaços de moradia, além da implantação de reformas urbanas de cunho
excludente onde tentou-se invisibilizar e marginalizar essa população. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e
botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986.
51
ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2008.
34
O projeto era inviável devido a sua monumentalidade e o tempo que duraria, muito além
das possibilidades dos cofres públicos.
Contudo, ele foi um norteador que determinou muito da espacialização da cidade
carioca atualmente, pois serviu de base para grandes intervenções nas décadas seguintes,
tais como a abertura da Avenida Presidente Vargas e Avenida Brasil e a destruição do
Morro de Santo Antônio, além de impactar profundamente na questão das favelas a partir
da década de 1930, pois deu fundamento ao código de obras de 1937.
Apesar de ter uma preocupação especial com as habitações populares, conforme
aponta Mendes, as concepções de Agache tinham um propósito muito forte de zoneamento
e segregação, apontando inclusive para a supressão de “comportamentos marginais” de uma
parcela da população. Mendes defende ainda que, se tivesse se concretizado na íntegra,
muito provavelmente teríamos uma metrópole ainda mais segregada, onde os trabalhadores
pobres, a maior parte dos afrodescendentes, habitariam quase que exclusivamente as zonas
mais periféricas e afastadas do centro político e econômico:

“Agache faz um Plano Diretor que age justamente no sentido de intensificar


os processos de segregação sócio espacial na urbe fluminense. Ao mesmo tempo
em que enfatiza constantemente a necessidade de constituição de vilas operárias
bem servidas de equipamentos públicos, com transporte eficiente e a baixo custo
para o Centro, saneamento básico, bom asfaltamento das ruas, parques e áreas
verdes para melhoria da qualidade de vida dessas populações, o urbanista francês
monta um projeto de cidade que separa de maneira muitíssimo forte esses grupos
sociais menos favorecidos daqueles considerados “burgueses e abastados”. As
favelas, única forma de contato geográfico mais próximo entre esses dois
segmentos sociais aparentemente tão distantes, simplesmente desapareceriam no
Rio de Janeiro dos sonhos de Alfred Agache. Em uma cidade já favorecida pela
natureza no sentido de criação de verdadeiras muralhas, graças as suas inúmeras
cadeias de montanhas, esse acontecimento representaria uma rachadura
muitíssimo profunda que dividiria, ainda mais, a urbe em duas. ” 52

Ainda segundo esse autor, com relação às favelas, Agache tem uma perspectiva
muito parecida com outros intelectuais da época:

Agache defende a sua “destruição total”. Afirma que “constituem um perigo


permanente de incêndio e infecções epidêmicas para todos os bairros através dos
quais se infiltram. A sua lepra suja a vizinhança das praias e os bairros mais
graciosamente dotados pela natureza (...)” (AGACHE, 1930, p. 189-190 apud
OLIVEIRA, 2009, p. 61-62). As favelas se inserem diretamente na questão da
habitação das classes mais humildes da população. Com o extermínio das favelas,
Agache pensava em enviar boa parte de seus habitantes para as vilas operárias
que seriam construídas nas regiões suburbanas e na Baixada. Tal ação se insere
diretamente na política histórica da prefeitura carioca de “depuração” das zonas
centrais e ao sul da cidade das populações menos favorecidas economicamente.

52
MENDES, Jose Teles. O plano Agache e o Rio de Janeiro: Propostas para uma cidade-jardim desigual.
Revista Habitus Vol. 10 – N.2 – Ano 2012. P. 121
35
Está, também, plenamente de acordo com seu projeto mais amplo de retirada das
unidades fabris das regiões comerciais e residenciais de elite. 53

De fato, ao longo dessas reformas, se conseguiu melhorar significativamente a


infraestrutura e o saneamento, assim como a mobilidade e a erradicação de algumas
epidemias nas maiores cidades brasileiras. Entretanto, como bem aponta Sevcenko, fica
claro para quem o programa de modernização implementado na capital era destinado e às
custas de quais sacrifícios e sacrificados54. É inegável que participação do poder público,
aliado a interesses de empresários nacionais e estrangeiros foi fundamental no processo de
promoção da segregação sócio-espacial no sistema urbano do país. Via de regra, isso
contribuiu para a que os mais pobres urbanos, sobretudo os afrodescendentes se
concentrassem nos espaços mais precários e desvalorizados da cidade, sofrendo o
agravamento de todos os tipos de discriminações: das questões étnico-raciais à dificuldade
de acesso ao sistema educacional e ao mundo do trabalho, da ineficiência das políticas de
saúde, à pouca atenção voltada para infraestrutura básica. Fatores que levantaram enormes
barreiras à uma maior equidade econômica e racial e justiça social.

Por outro lado, devemos estar atentos para as diversas formas de resistência
exercidas por essas populações subalternizadas, sobretudo no Rio de Janeiro. Trata-se de
estratégias encontradas dentro do seu campo de possibilidades para lutar contra situações
injustas. Portanto, esses atores estão longe da passividade que muitas vezes lhes foi
atribuída. Suas ações garantiram, de certa forma, que a tentativa de segregar e regular o
espaço urbano carioca saísse longe do que fora idealizado. Na verdade, houve um campo de
disputas mais complexo do que uma simples dualidade entre Estado e capital versus
população excluída. Essa disputa se deu em diferentes níveis, com derrotas e vitórias para
ambos os lados, é claro que havia uma assimetria na detenção de poder, e que, portanto, a
luta foi desigual.55 Como demonstrado, as reformas não impediram que a população
excluída e mais destituída de poder lutasse e obtivesse vitórias. Segundo Pechman e
Fritsch:

Espremidos entre uma elite governamental partidária de um


intervencionismo arbitrário e uma elite burguesa que não desejava tê-los a seu
lado como verdadeiros cidadãos, os pobres, por meio de motim, da desobediência

53
Id. P. 121
54
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Cosac Naify,
2010.
55
SILVA, Mayara G. C. Ferreira. Reforma Urbana Pereira Passos: resistências de uma população excluída.
Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v. 50, n. 1, mar./jun., 2019, p. 409–447.
36
às leis, do proselitismo de seus valores, revelavam à sociedade o seu
inconformismo diante da tentativa de excluí-los do novo Rio que se estava
construindo. Às reformas elitistas, respondiam com o seu avesso, habitando um
espaço que não lhes tinha sido destinado, exercendo ofícios expressamente
proibidos, praticando cultos que se queria desonrosos, permitindo-se a expansões
de alegria que se tinha como indesejáveis. 56

Dada a necessidade de residir na área central, para muitos a solução foi morar em
bairros periféricos ao centro que não foram demolidos com as obras, como a Cidade Nova,
mesmo pagando aluguéis mais caros, ou morar em um novo espaço de habitação, a favela.
Essa se expande justamente nessa primeira metade do século, sendo vista como um
problema para os administradores urbanos, mas como uma solução para a população negra
e pobre. Eles encontraram nas favelas uma maneira de manutenção da vida na cidade.
Segundo Abreu, a permanência e a difusão das favelas devem ser entendidas como a
materialização da luta dos mais pobres pelo direito à cidade. Em síntese, morar na favela,
em si, surge como uma forma de resistência que envolve diversas outras. 57São essas formas
de resistência que abordaremos nos próximos capítulos.

1.4 A CIDADE VISTA DA LAJE: A RESSIGNIFICAÇÃO AVELADA DO URBANO

Segundo a arquiteta Maria Estela Ramos, os estudos de urbanismo tendem a perceber a


concentração populacional negra – tradicionalmente relegada aos espaços piores e menos
estruturados das cidades – como problema ou incômodo, promovendo um apagamento
dessa presença na memória urbana, relegando-a à folclorização.58 Contudo, ela defende que
pensar a questão racial, além das questões de classe, é fundamental para compreender as
cidades brasileiras. A riqueza das histórias de vida dos moradores desses espaços não
provém de sua relação com a pobreza material, mas sim com costumes, valores éticos e
morais de sua base cultural, assim como suas lutas e conquistas. Nesse contexto, a questão
da ancestralidade, dos laços de parentesco e amizade são fundamentais, pois trata-se de
territórios comunitários, construídos a partir de saberes e experiências dos “moradores

56
PECHMAN, Sérgio; FRITSCH, Lilian. A reforma urbana e o seu avesso: algumas considerações a
propósito da modernização do Distrito Federal na virada do século. Revista Brasileira de História, São Paulo,
n. 8/9, v. 5,
p. 139- 195, set.1984/abr.1985. P.187
57
ABREU, Maurício de Almeida. Da habitação ao hábitat: a questão da habitação popular no Rio de Janeiro e
sua evolução. Revista Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 10, p. 161-177, 2003.
58
RAMOS, Maria Estela Rocha Bairros negros: uma lacuna nos estudos urbanísticos um estudo empírico-
conceitual no bairro do Engenho Velho da Federação, Salvador (Bahia). Tese de doutorado – UFBA P. 23

37
fundadores”, que, de certa forma, constituíram com êxito estratégias de solidariedade,
resistência cultural e política em um contexto socioeconômico bem desfavorável.
Por sua vez, Pereira propõe enxergar a formação histórica e espacial brasileira a partir
de uma mudança de perspectiva. Principia pelo olhar e a experiência daqueles grupos que
foram invisibilizadas pelas narrativas históricas, como, por exemplo, grupos quilombolas
ou indígenas. É o que a autora, apoiada em Porto-Gonçalves chama de “re-existência”:
“Permanentemente colocadas em situações de vulnerabilidade social, desde
os tempos da escravidão as populações negras se mobilizam, movimentam e
articulam de formas diversas com fim a re-existirem, reinventando-se em
pluralidades e criatividades procriadas nas relações com as circunstâncias, ou
seja, na força do contexto, nas práticas cotidianas. Embora hegemônicas, às
lógicas dominantes das elites brancas contrapõem-se e/ou se articulam outras
lógicas engendradas pelas populações negras, que nos parecem ser cunhadas na
busca pela re-existência. A re-existência passa pela luta e pelo conflito, mas
também por negociação, invisibilidade, visibilidade, etc.- enfim, múltiplas formas
de reprodução da vida. Essas são características da experiência sócio espacial de
identidades constituídas no e pelo colonialismo.” 59

Dentro dessa lógica, por que não partir de percepções e experiências de indivíduos
negros, moradores de favela, como por exemplo, Otacílio Duarte, Maria Oliveira ou Waldir
Barbosa, nossos entrevistados nessa pesquisa, em vez de adotar como pressuposto a visão
de intelectuais e governantes na compreensão da construção das espacialidades urbanas
cariocas? Trata-se de um verdadeiro reordenamento de perspectivas que nos permite
observar, por exemplo, que nas décadas após a abolição, trabalhadores negros não foram
meros espectadores de uma marginalização ou exclusão que se impunha, mas, sobretudo,
continuaram a ser agentes ativos na construção da sua própria história e da história do
Brasil republicano, resistindo de diversas maneiras pelo seu modo de viver e ser.
Para adentrarmos no terreno do debate das diferentes concepções do espaço urbano e da
própria favela, lançaremos mão do conceito de território e lugar. Como aponta Tuan,60
lugar significa muito mais do que referencia geográfica de localização. Ele constitui a base
espacial a qual as pessoas tecem vínculos afetivos e subjetivos. Totalmente relacionado
com a formação de identidade, o lugar tem muitos significados atribuídos pelas pessoas e
seria onde são inscritas as referências e valores pessoais que direcionam as diferentes
formas de perceber e construir o espaço. Podemos observar claras referências de lugar na

59
PEREIRA, Carolina Ferreira. Racismo, espaço e colonialidade do poder, do saber e do ser: diálogos,
trajetórias e horizontes de transformação. In: Cruz, VC e Oliveira, DA de. Geografia e Giro Descolonial:
experiências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico. 1ª. Edição. Rio de Janeiro. Letra
Capital; 2017. pp. 132-142.
60
TUAN, Yi -Fi. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL, 1983
38
relação de nossos entrevistados com a favela, em sua infinidade de espaços que remetem a
lembranças, experiências, relações pessoais e afetivas.
Já território seria um conceito diretamente ligado às ideias de disputa de poder e da
produção e apropriação social do espaço. E isso não se limita a noções de Estado e Nação
em de suas estruturas e relações de poder. Apoiados em Haesbaert e Santos61, voltamos
nossa reflexão a mulheres e homens concretos que refazem o território cotidianamente,
considerando esses sujeitos em suas práticas de construção da vida, da moradia, da
comunidade, da cidade, etc. Tais autores sinalizam que o conceito de território possui tanto
a conotação material/concreta, atrelada ao conflito e à dominação, como também
relacionado com o poder simbólico.
Portanto, assim como lugar, o território também estaria ligado a noção de disputa de
significados, guardando profunda relação com a formação de identidades. Como iremos
observar nos próximos capítulos, o processo de organização e luta dos moradores das
diversas favelas foi atravessado por confrontos territoriais – contra o poder público ou
proprietários - em que muitas vezes houve disputas de significados e nomenclaturas
daqueles espaços.
Podemos pensar a cultura como o ponto de partida para a compreensão das relações
sócio espaciais, uma vez que os espaços são culturalmente construídos e condicionante
existencial dos diferentes grupos sociais. Diante disso, Ramos aponta que a experiência
negra e não branca em geral envolveu, no meio urbano brasileiro, a constante construção e
reconstrução de lugares, territórios e identidades locais, através da noção de pertencimento
e da reinterpretação de símbolos e valores das culturas das classes dominantes. 62
No caso do que a referida autora chama de bairros negros – onde poderíamos incluir
também as favelas – ocorreriam assimilações, reelaborações e ressignificações dos padrões
urbanos e das formas de pensar a cidade adotados nos bairros “oficiais” e planejados. São
espaços que constituem um urbano invisibilizado que se autoconstrói e se reconstrói no dia
a dia, às margens das instâncias oficiais de planejamento da cidade. A partir desse
raciocínio, o “morar” das favelas extrapola os limites da habitação em si, incluindo a
ocupação de um espaço físico maior, na dimensão do público. Nessa mesma linha,
Bandeira apresenta o conceito de território negro. Para ela o termo tem relação com a

61
HAESBAERT, R. Território, Poesia e Identidade. In: HAESBAERT, R. Territórios alternativos. São Paulo:
Contexto, 2006. cap.8, p. 143-158 & SANTOS, Milton. A questão: o uso do território. In: SANTOS, M;
SILVEIRA, M. L.O Brasil: Território e Sociedade no início do século XXI. 9. ed. Rio de Janeiro: Record,
2006.
62
RAMOS, Op. Cit. Bairros negros: uma lacuna nos estudos...p. 219
39
apropriação do espaço dentro das disputas de poder, por negros não enquanto “pessoas
físicas”, mas como “sujeitos coletivos”. Segundo ela, a construção da territorialidade negra
se realiza através da comunhão de valores dos parentescos e, principalmente, de rede de
solidariedade construída para o enfrentamento dos valores impostos pelas classes
dominantes. Para Bandeira, essa territorialidade está diretamente relacionada com a
formação da comunidade, pois se faz como coletividade “com base nos princípios da
solidariedade, da reciprocidade e do igualitarismo (...) Ou seja, pautados na existência de
um espaço com identidades comuns, uma referência no sentido de pertencimento a grupo e
uma posição de enfrentamento. ”63As habitações tendem a se adequar estritamente ao meio
natural e ao modo social.
Da mesma forma, Sodré aponta esses espaços como: “contra-lugar (em face daqueles
produzidos pela ordem hegemônica), concreto de elaboração de identidade grupal e de
penetração em espaços intersticiais do bloco dirigente”.64 Esse autor entende ainda que
morar nesses lugares não é atribuição individual, mas sim um fazer coletivo, comunitário,
que indica a própria identidade do grupo, dado por um ordenamento simbólico da
comunidade. Não podemos, portanto, pensar as favelas a partir dos padrões conceituais e
urbanísticos tradicionais, firmados a partir de uma lógica espacial totalmente distinta. Para
autora:

“A história urbana pela perspectiva dos estudos urbanísticos tem priorizado,


na formação de cidades, elementos urbanos como a igreja católica, os edifícios
públicos administrativos, as indústrias, instalados nas cidades numa determinação
“de cima para baixo”, representando as elites dominantes através de poderes
político-administrativos eclesiásticos e econômicos[...] O morar ao qual nos
reportamos quando nos referimos aos bairros negros pode ser abordado tanto
quanto à habitação em si, quanto à ocupação de um espaço físico, lugar, incluindo
a espacialidade, sendo parte de um patrimônio histórico, parte da identidade
coletiva. ” 65

Essas concepções urbanísticas hegemônicas balizam definições inferiorizantes das


favelas como, por exemplo, “aglomerados subnormais” pelo IBGE:

“É o conjunto constituído por 51 ou mais unidades habitacionais


caracterizadas por ausência de título de propriedade e pelo menos uma das
características abaixo: - irregularidade das vias de circulação e do tamanho e

63
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Terras negras: invisibilidade expropriadora. In.: Terras e territórios negros
no Brasil. Textos e debates. Núcleo de estudos sobre identidade e relações interétnicas. Ano I – N° 2 – 1991.
P. 21
64
SODRÉ. O Terreiro e a Cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, 1988. P 26
65
RAMOS, Op. Cit. Bairros negros: uma lacuna nos estudos…Op. Cit. P. 26
40
forma dos lotes e/ou - carência de serviços públicos essenciais (como coleta de
lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica e iluminação pública). ” 66

Tal definição é herdeira de uma concepção que associa esses espaços à pobreza, à
carência em diversos sentidos, ao caos, à desordem, em resumo, um problema a ser
combatido. E é justamente a concepção que fundamentou e continua fundamentando as
políticas públicas do Estado brasileiro com relação às favelas.
Contudo, as favelas podem ser interpretadas sob uma ótica distinta. Silva e Barbosa
compreendem as favelas como “espaços insurgentes” uma vez que produzem novas
identidades e práticas que perturbam a ordem dominante e a história estabelecida. Para eles,
assim como a socióloga Pearlman, a construção histórica das favelas revela soluções
comunitárias extremamente criativas para as dificuldades cotidianas advindas da violência
urbana, do baixo poder aquisitivo, da deficiente oferta de serviços públicos por parte do
Estado.67 Essas soluções são expressas nos esforços conjugados de edificação e
apropriação do território que não passam pelas regras formais de ocupação. Na vida social
das favelas estão presentes códigos, acordos e práticas de sociabilidade próprias, que
permaneceram invisíveis para boa parte da sociedade carioca, configurando significados e
modos de viver particulares daquele grupo social na apropriação do espaço.
As construções são realizadas em condições geomorfológicas complexas (em áreas de
grande aclive, com o solo instável, pedreiras, alagados, etc.). Os espaços de utilização
pública aumentam ou diminuem conforme o uso, normalmente partindo de decisões
coletivas; certas áreas não são ocupadas (por variados motivos, na maioria dos casos por
representar alto risco aos moradores) através de acordos não escritos. Além disso, uma rede
de sociabilidade e parentesco foi tecida ao longo dos anos, de modo que, muitas vezes, os
amigos e as famílias vivem perto uns dos outros e não raro participam, de fato, da
construção de suas próprias casas, aumentando-as conforme a necessidade familiar.
Assim, a configuração espacial das residências na favela proporciona uma proximidade
onde frequentemente se pode contar com vizinhos e amigos para ajudas e favores
recíprocos. As vias de passagem muitas vezes são onde se cultivam as relações de convívio,
redes de caminhos que parecem um labirinto para quem é de fora, mas guardam uma lógica
particular e exigem um profundo domínio e consciência territorial. Não seguem um

66
IBGE, Aglomerados Subnormais – Informações Territoriais, Censo 2010, pg. 3
67
BARBOSA & SILVA, Jorge Luis & Jailson de Souza. “As favelas como territórios de reinvenção da
cidade”. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, Rio de Janeiro, n. 1, fev. 2013. Pg. 124; PERLMAN,
Janice E. O mito da marginalidade. Paz e Terra, 1977. Pg. 177.
41
desenho projetado previamente, mas são resultado do vivido e do consentido entre os
vizinhos. Elas localizam-se onde realmente são mais necessárias.
Seguindo nessa linha de pensamento, as favelas trazem um entendimento diferenciado
do fundiário, da propriedade da terra. Não existe uma delimitação tão rígida e evidente do
que é meu ou seu como há nos espaços formais da cidade. Comumente o público e o
privado se misturam a partir de negociações cotidianas – e por vezes, conflituosas – entre
os moradores, tendo como tendência a predominância dos interesses coletivos. E,
finalmente, a favela é, no sentido orçamentário, mais vantajosa do que a maior parte da
cidade, constituída em sua maioria de casas próprias ou com aluguéis mais baixos e
próximas aos locais de trabalho.

1.5 - VIDAS ENTRE BECOS E VIELAS: ESPACIALIZANDO A MEMÓRIA DOS


MORADORES DO MORRO.

Para Seemann, é de grande importância considerar a relação espaço e memória, que


normalmente recebe pouca atenção dos historiadores. Ele observa que as práticas sociais
são, em sua grande maioria, espaciais. Em sua realidade vivenciada, as pessoas, de
maneiras diferentes, estão permanentemente se apropriando do espaço sobre o qual vivem e
estabelecem suas mais diversas atividades e relações sociais. Nas diferentes ações humanas,
individuais e coletivas, as pessoas não produzem apenas a sua história, mas
simultaneamente também sua geografia.
Seria, portanto, necessário especializar a memória, uma vez que cada lugar está
impregnado de histórias e experiências passadas. São vozes que ressoam a cada esquina,
associadas a pessoas e acontecimentos que suscitam familiaridades, lembranças,
afetividades no momento de evocação da memória. O entendimento da cidade – e no nosso
caso, da favela - deve partir do princípio de que ela é um instrumento material de vida
coletiva. Nela estão solidificados os conflitos, consensos, negociações; os hábitos,
comportamentos e relações travadas por seus habitantes ao longo do tempo. Assim, as
favelas não deixam de ser a própria história urbana especializada e materializada. Dessa
maneira, devemos tratar a favela como espaço representativo da cidade e de sua memória,
em consonância com Sigaud, que analisa a favela tanto como espaço de representatividade,
como herança dinâmica:

42
"(...). Como todos esses extratos temporais que resumem algumas das passagens
do processo de formação da favela e de suas relações com a cidade, deveria ser
possível credenciá-la como um espaço representativo de uma das facetas da
memória da cidade, não apenas do ponto musical, como acontece com o samba.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que a favela guarda uma forte herança
cultural devido ao seu modo de vida, ela dá demonstrações de que o acúmulo
dessas heranças também faz parte de um processo dinâmico." 68

Normalmente os relatos orais relativos à memória dos moradores de favela são


recheados de muitas referências espaciais. Isso pode causar estranheza para aqueles que não
conhecem a comunidade e seus microcosmos, mas elas têm relação direta com as histórias
de vida desses moradores e sua profunda relação com o lugar (no sentido conceitual) que
para além da afetividade, tem a ver com a própria formação de sua identidade. Por
exemplo, muito provavelmente devido às dificuldades cotidianas em obter água, todos os
três entrevistados fazem referência mais ou menos detalhada das fontes ou bicas d’água.
Eram espaços de convivência sociabilidade, mas também de negociações e alguns conflitos.
De certa forma esses espaços alcançaram uma representatividade que foram selecionados
pela memória coletiva de um grupo de antigos moradores, possuindo simbolicamente as
características de um monumento, carregado de identidade coletiva e fruto de uma herança
vivida, construída no cotidiano, sem, no entanto, estar preso a uma estrutura de poder
público, permanecendo totalmente desconhecido pelo restante da cidade.
No que se refere às memórias individuais temos algumas particularidades relativas à
trajetória de vida de cada um. Em sua entrevista Maria Viana, que apresenta memórias
bastante ligadas à trajetória de sua família, parece guardar em suas recordações uma forte
afetividade pela sua casa e à sua vizinhança circundante, chamada de “pracinha”, na
“Matinha”. Já Otacílio traz mais recordações ligadas aos caminhos e espaços de
convivência da localidade atualmente conhecida como “Raia”. Assim como Waldir
Barbosa, que tem suas lembranças muito atreladas às ruas e vielas do Morro do Salgueiro.
Temos abaixo algumas imagens que representam as transformações físicas que certos
“espaços de memória” do Morro da Liberdade passaram ao longo das décadas:

68
SIGAUD, Márcia Frota. Cidade: memória versus esquecimento. In. Logos. Comunicação & Universidade.
Rio de Janeiro: UERJ, Ano IV, Nº 7, 2º semestre/ 1997.p 42-43
43
Imagem 1: Subida da “Raia” na Escolinha e a mesma localidade na década de 1950.

Fonte: Foto do autor (2014) e Acervo de Frei Cassiano – Capela de São José Operário. Autor
desconhecido (década de 1950)

Imagem 2: “Didico” e suas filhas Angela e Lúcia na “Pracinha” em 1961 e a mesma localidade em
2019. Ao fundo a residência de Maria Viana.

Fonte: Acervo de família do autor. (2019 e 1961)

44
Imagem 3: Final da Rua Joaquim Pizarro, onde existia uma bica d’água, atualmente a entrada da
escola Frei Cassiano

Fonte: foto do autor (2017) e Acervo de Frei Cassiano – Capela de São José Operário. Autor
desconhecido (década de 1950)

Portanto, podemos pensar que a favela é constituída por diversos espaços de memória.
Isso remete ao conceito de “lugares de memória” que foi criado pelo historiador francês
Pierre Nora. Para ele, os lugares de memória “são lugares, com efeito nos três sentidos da
palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente” 69 São a base material no qual a
memória se ancora e pode ser apreendida pelos sentidos; são funcionais porque possibilitam
apropriações e reivindicações a partir das memórias coletivas e são lugares simbólicos aos
quais memória coletiva faz referência e tece significados.
Para Pollack, a memória também tem seus lugares, a base espacial do acontecer
solidário, no sentido de experiências em comum. O autor enfatiza ainda a potencialidade da
História oral, ao privilegiar a análise dos excluídos, marginalizados, em resgatar os
conflitos entre as memórias subterrâneas e a memória oficial. Ela permite perceber uma
forma mais humana da história, percebendo silêncios, lacunas, conflitos e contradições. Da
mesma forma que as alegrias, as emoções e a própria experiência da vida. 70
Nessa sequência, a memória traz uma dimensão afetiva através da qual relações são
permeadas pela lembrança das origens dessas pessoas, da fundação da comunidade, das
lutas e conquista, o que realimenta um sentido de pertencimento. A partir das lembranças
eles expressam aspectos desse pertencimento, que vai sendo reafirmado através das

69
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo, nº 10,
p. 7-28, dez. 1993. P. 21
70
POLLACK, Michael. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, vol. 5, n. 10, 1992.
45
gerações. Cada entrevistado, à sua maneira, com seu jeito de narrar, reelaborou suas
“tramas” individuais que às vezes se completam, às vezes se contradizem. Essas narrativas
nos permitem reconhecer e dimensionar possibilidades históricas diferenciadas, que devem
ser problematizadas, já que cada indivíduo construiu uma trajetória singular nesse espaço.
Como nos alerta Alessandro Portelli, “na verdade, estamos lidando com uma multiplicidade
de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra,
ideológica e culturalmente mediadas”71
Contudo, o próprio Portelli alerta que mesmo que a memória seja um processo
individual e uma reflexão particular sobre os acontecimentos, os indivíduos são de certa
forma “moldados” pelo ambiente social em que vivem e, assim sendo, trazem dimensões
coletivas dessa experiência social vivenciada. Nesse contexto podemos lançar mão do
conceito de memória coletiva de Halbwachs, ou seja, que “cada indivíduo tem sempre a
dizer sobre as memórias e representações dos grupos e da sociedade aos quais
correspondem. ”72Logo,a memória coletiva seria algo dinâmico, reconstruções do passado a
partir de elementos do presente, agindo como uma das bases da formação identitária de um
grupo social. Ainda segundo o autor, essa memória seria resultado de uma construção
conjunta, que também serve para manter a coesão de um grupo social.
Já Castells traz a compreensão de que a construção identitária está relacionada a
significados na experiência vivida de um povo. Para ele, a identidade pode se formar a
partir de um âmbito local, na resistência dos indivíduos a individualização, se organizando
em lutas coletivas, associações comunitárias, gerando sentimento de pertencimento. A vida
compartilhada produz significados próprios. Isso pode advir de processos de mobilização
social, de movimentos coletivos onde são defendidos interesses em comum. Trata-se do que
ele denomina de “identidades de resistência”, que seriam vivenciadas por atores que se
encontram em condição desvalorizada e estigmatizada pela lógica de dominação criando
formas de viver diferentes ou opostas àquelas das camadas dominantes.73
Considerando a relação entre memória e construção identitária, percebemos um discurso
que remete a um passado de lutas e superação de dificuldades na origem do Morro da
Liberdade e de diversas outras favelas, que reside, sobretudo, na oralidade e na memória

71
PORTELLI, A. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1994): mito, política, luto
e senso comum”. In: AMADO J. e FERREIRA, M. de M. (coords.) Usos e abusos da história oral. Rio de
Janeiro: FGV. p. 106.
72
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Editora Centauro. 2006, p.154
73
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade (A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura). São
Paulo, Paz e terra, 2002. Vol. 2
46
dos moradores mais antigos. Ele guarda consigo um forte senso comunitário e tem relação
direta com a memória coletiva e a identidade local.
Buscar a memória dos moradores do Morro do Turano e do Salgueiro, portanto,
significa muito mais do que apresentar lembranças do passado dessas favelas cariocas.
Significa dar visibilidade a versões da história do Rio de Janeiro contadas por indivíduos
que normalmente não têm a oportunidade de fazê-lo, o que pode trazer novos sentidos e
significados a essas favelas atualmente.

47
CAPÍTULO II: O PASSADO RURAL DOS FAVELADOS: FAMÍLIAS NEGRAS
EM MEIO À TRANSIÇÃO DO CAMPO PARA A CAPITAL DO BRASIL

“... Aí a gente saía a brincar pela roça, né? A trabalhar de enxada a gente
com meu pai. (Risos). Quando chegava o dia que ele ia lá pra lavoura, a gente ia
junto, que ele fazia aquela trouxinha de roupa, cada um levando a trouxinha, ia
pro lugar lá que chamava naquele tempo Mossoró.
Maria Viana de Souza, moradora do Complexo do Turano

2.1. AS RAÍZES NEGRAS E RURAIS DO MORRO DA LIBERDADE

Ainda que uma característica marcante das favelas do Rio de Janeiro seja a
heterogeneidade, inclusive na composição racial, é inegável que moradores não brancos
(pretos e pardos) são, historicamente, maioria nesses espaços, tanto em aspectos físicos
quanto culturais. O mapa abaixo traça um panorama da região central do Rio de Janeiro e
uma parte da Zona Norte, englobando a Grande Tijuca, destacando a distribuição
populacional pelo território seguindo o critério racial. A partir de sua análise podemos
observar que a metrópole carioca possui uma considerável segregação espacial, e não
somente de ordem econômica, mas também racial. É nítido que a população branca ocupa
um espaço territorial bem maior e se impõe como maioria nas áreas mais estruturadas e
valorizadas. Por outro lado, parte da população de pretos e pardos se concentra em certas
áreas extremamente adensadas que em grande medida coincidem com os territórios
ocupados por diversas favelas cariocas, principalmente em morros.

48
Mapa 1: Mapa étnico-racial do Rio de Janeiro apresentando a sobreposição das favelas mais antigas
da região central e Grande Tijuca

Fonte: Elaboração do autor (2019) com base no Mapa Racial do Rio de Janeiro 74

As favelas destacadas no mapa são justamente aquelas que já apresentavam algum


núcleo de ocupação no levantamento aerofotométrico de 1928.75 Ou seja, algumas das
favelas mais antigas, que se constituíram no entorno da região central da cidade e o antigo
eixo industrial da Tijuca e São Cristóvão. É possível perceber, através do mapa, que essas

74
O mapa foi produzido com base na sobreposição de dois outros mapas: O mapa racial do Rio de Janeiro, de
Hugo Gusmão, construído com base em dados do censo do IBGE de 2010, disponível em
https://desigualdadesespaciais.wordpress.com/ e no mapa “Favela e núcleos favelizados do Rio de Janeiro –
1928” produzido por Maria Silva presente em SILVA, Maria Lais Pereira. Favelas Cariocas (1930-1964).
Contraponto, 2005. P. 253-254
75
Em meio à produção do “Plano Agache”, a prefeitura do Distrito Federal contratou, como forma de
fornecer material de apoio à equipe, a empresa inglesa Air-Craft Corporation para a realização de um
levantamento aéreo da cidade, que resultou na produção de fotografias aéreas de diversos pontos da capital.
49
favelas são densamente habitadas por uma população de clara maioria identificada como
preta e parda. É provável que muitos de seus moradores sejam descendentes dessas famílias
negras que ao longo de décadas migraram dos estados vizinhos do sudeste para a capital e
expandiram os núcleos favelados iniciais.
É também interessante notar que, mesmo no interior das favelas, existem áreas de
intensa concentração de pessoas identificadas como “pretas”, o que poderia indicar uma
dinâmica de segregação interna nessas comunidades, própria das hierarquizações criadas
pelo racismo no Brasil. É claro que conclusões mais embasadas dependeriam de uma
análise específica da trajetória histórica e da dinâmica de ocupação do espaço de cada
favela, em particular. Contudo, em linhas gerais, essa “separação” parece ser fundada em
origens migratórias distintas, de diferentes regiões do Brasil, que geraram processos
diferenciados de ocupação do espaço. Portanto, esses “enclaves pretos” muito
possivelmente têm relação com da expansão de núcleos familiares iniciais, originários de
migrações mais antigas, que mantiveram, ao longo das décadas, fortes os laços culturais, de
parentesco e de proximidade.
Por outro lado, como afirma Marcos Alvito76 se na primeira metade do século
passado, as favelas se expandiram com o deslocamento de famílias negras de regiões rurais
de Minas Gerais, Espírito Santo e do Rio de Janeiro, a partir das décadas de 1960 e
sobretudo 70, as favelas cariocas passam a receber gradativamente famílias provenientes
dos estados do Nordeste, em um fluxo que ao longo das décadas vai superar as migrações
dos estados vizinhos do Sudeste. Essa mudança do fluxo migratório, agora de famílias
genericamente chamadas de “nordestinas”, muitas vezes identificados como pardas, sem
dúvidas diversificou, com a miscigenação, a composição étnico-racial e cultural das
favelas. Mas mesmo com essa diversidade, as favelas continuaram se impondo como os
espaços de maior concentração negra ou não-branca da cidade.77
O censo de favelas do distrito federal, realizado em 105 favelas e publicado em
1949, aponta que, dos moradores das favelas cariocas, 71,04% foram identificados como
pretos e pardos, um número muito superior ao restante da cidade no período.78 Por sua vez,
no Recenseamento Nacional de 1950, mesmo utilizando outros critérios para definição de
favela (e, portanto, considerando apenas 58 delas) os números são semelhantes: 67,26%

76
ALVITO, Marcos. As cores de Acari, uma favela carioca. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2001
77
Segundo o censo populacional do IBGE de 2010, pretos e pardos compõem 68,4% da população das favelas
cariocas, enquanto representam apenas 45,9% da população total da cidade.
78
Prefeitura do Distrito Federal. Censo de Favelas, 1949. P.11
50
declararam-se pretos ou pardos nas favelas, enquanto, na totalidade da cidade esse quadro
se invertia completamente: 69,87% de brancos e 17,49% de pretos e pardos. 79Além disso,
esse censo nos mostra que 61,3% do total dos moradores das favelas cariocas não eram
naturais do Distrito Federal. Ainda que esses dados sejam de certa forma imprecisos,
devido às condições e os critérios de pesquisa desses primeiros censos, não há como negar
que são números muito expressivos, sobretudo no que se refere a desproporção entre a
composição étnico-racial das favelas e o restante da cidade – que, como vimos, é algo que
se mantém na atualidade - e o grande número de migrantes entre os moradores.
Diante disso, algumas questões necessitam ser levantadas. Quem eram essas
pessoas? Como viviam? Por que migraram? Em que condições? Por que dentre aqueles que
se estabeleceram nas favelas a maioria não era composta por brancos como o restante da
população da cidade? Parece que o processo de formação e crescimento das favelas
cariocas nas primeiras décadas do século passado tem raízes mais profundas, ligadas à
condição social da população negra e às transformações ocorridas nas décadas
subsequentes à abolição. Elas não podem ser alcançadas apenas pela observação do meio
urbano. Boa parte das raízes do Morro da Liberdade - e de outras favelas formadas na
primeira metade do século XX – são negras e rurais.
Nesse contexto, é importante observar os estigmas imputados às favelas e seus
moradores na primeira metade do século XX têm profunda relação com a questão da
pobreza, mas também com a predominância negra e a origem rural dos favelados. Ao
analisar a correlação entre desigualdades raciais e favelas entre as décadas de 1930 e 1960,
Brodwyn Fischer afirma, que a associação entre afrodescendentes e favelas era tão forte
quanto o preconceito do qual eram alvo e aponta ainda que:

“Antes dos anos 1940 era relativamente comum encontrar referências a raça
relacionadas a favelas, em geral, preocupadas em debitar os problemas sociais
dessas comunidades a herança racial (cultural ou biológica) de seus habitantes.
Na década seguinte poucos estudos mantiveram tal perspectiva, mas na década de
70 – quando a favela se tornou objeto central de pesquisa de estudos sobre
desigualdade urbana – fatores econômicos passaram a ser os mais importantes.
”80

79
GUIMARÃES, Alberto Passos. As favelas do Distrito Federal e o censo de 1950 – Documentos Censitários
– Série C, n° 9. Rio de Janeiro, IBGE, 1953. P. 27.
80
FISCHER, Brodwyn: Partindo a cidade maravilhosa. In.: CUNHA & GOMES, Olívia M. & Flávio S
(Orgs.) “Quase cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. . ed. FGV, 2004. Pp. 423-
424
51
Através de uma abordagem claramente racista, os autores do Censo de Favelas da
Prefeitura demonstram sua falta de surpresa com a constatação de que a maioria da
população favelada é negra, culpando-os pela realidade difícil que vivenciam na cidade:
“Não é de se surpreender o fato dos pretos e pardos prevalecerem nas
favelas. Hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às
exigências sociais modernas, fornecem em quase todos os nossos núcleos urbanos
os maiores contingentes para as mais baixas camadas da população. (...) O preto
via de regra não soube ou não pode aproveitar a liberdade adquirida e a melhoria
econômica que lhe proporcionou o novo ambiente para conquistar bens de
consumo capazes de lhe garantirem nível decente de vida. Renasceu-lhe a
preguiça atávica, retornou a estagnação que estiola, fundamentalmente distinta do
repouso que revigora, ou então - como ele todos os indivíduos de necessidades
primitivas, sem amor próprio e sem respeito a própria dignidade – priva-se do
essencial para a manutenção de um nível de vida decente, mas investe somas
relativamente elevada em indumentária exótica, na gafieira e nos cordões
carnavalescos, gastando tudo, enfim, que lhe sobra da satisfação das estritas
necessidades de uma vida no limiar da indigência.”81

Como demonstra Valladares, na virada do século XIX para o XX, a favela surgiu,
enquanto representação social, muito associada a imagem do Arraial de Canudos, descrito
na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha. Mais que o sertão, Canudos virou a referência de
todo o mundo rural brasileiro.82 Dentro da visão dualista do Brasil naquele momento, os
intelectuais da época associavam a favela ao atraso, ao exótico, à incivilidade e a desordem
típicas do campo. Ela estava presente em plena capital da república, mas era considerada
um elemento “externo” ou “invasor”. A favela reunia, para esses intelectuais e
administradores públicos, justamente o que eles queriam erradicar na construção de uma
cidade pautada no progresso, no racionalismo e na ordem. Essa visão dualista entre dois
“brasis” que guerreavam na “cidade maravilhosa” continuou bastante forte na produção
intelectual acerca das favelas nas décadas seguinte.
Nesse sentido, Bittencourt demonstra que a realidade de dificuldades vivenciada
pelos moradores de favelas era frequentemente explicada pela permanência de hábitos
rurais e por sua falta de capacidade em se adaptar a vida moderna das grandes cidades:

“Vista sob uma perspectiva moralista e determinista, a realidade da favela


era considerada como definidora de caracteres e, ao mesmo tempo, a única saída
para indivíduos “pouco ambiciosos”, “resistentes ao progresso e à civilização”. A
pobreza de seus moradores era associada a “ruralidade” ou ao “primitivismo”,
justificando a existência da favela apenas pela incapacidade dos pobres, em sua
maioria negros e/ou migrantes de áreas rurais, se integrarem às “sociedades
modernas”, ditas avançadas e civilizadas”. 83

81
Prefeitura do Distrito Federal. Op. Cit. P. 18
82
VALLADARES, Licia do Prado: A invenção da favela: Do mito de origem à favela.com Rio de Janeiro,
editora FGV, 2005.
83
BITTENCOUR. Op. Cit. Pp.42-43
52
Por sua vez, Almeida ao analisar estudo da SAGMACS84 aplicado às favelas na
década de 1960, argumenta que este defende que essa “ruralidade” dos favelados
atrapalharia sua adaptação a realidade de uma metrópole:

“O estudo do comportamento humano, nesses aglomerados


“semiurbanizados”, revelaria as aderências de seus moradores a um passado rural
próximo que dificulta sua pronta adaptação à vida nas cidades: se, por certos
aspectos, a favela apresenta formas de vida típicas do proletariado, em muitos
outros, conserva maneiras de ser tradicionais em nossos campos.85

Temos por um lado, a construção histórica de um discurso de estigmatização que


associou a favela a elementos negativos, algo “externo” ligado ao passado rural e nocivo ao
bom funcionamento da cidade. Por outro lado, objetivamente, boa parte dos moradores das
favelas até a década de 1950 – inclusive no Morro da Liberdade – eram famílias negras
naturais de regiões rurais do Sudeste. Como analisamos anteriormente, essas pessoas
carregavam consigo hábitos, valores e práticas sócio-culturais bem distintas do que seria
aceitável pela a elite intelectual e política da capital, seguidora de padrões morais, culturais
e estéticos eurocêntricos, então compreendidos como “civilidade”.
Assim, não podemos considerar historicamente os moradores migrantes apenas a partir
de sua chegada à cidade, negligenciando sua trajetória anterior, suas vivências e
experiências constituídas no mundo rural. Essas ondas migratórias para as favelas cariocas
deixaram marcas profundas na forma de organização e nas expressões culturais desses
espaços. Dessa forma temos, mais fortemente durante século XX, muitas permanências
rurais na dinâmica das favelas.
Com relação à construção do espaço, sobretudo, na primeira metade do século XX,
podemos observar através dos relatos, que era comum no Morro da Liberdade– como hoje
ainda é - a autoconstrução, ou seja, as casas são construídas por seus próprios moradores ou
com participação deles. Até pelo menos a década de 1960, a maioria das casas eram
construídas de maneira semelhante à dos camponeses por todo o Brasil, utilizando os
materiais disponíveis como barro, ripas, tábuas, pedras, restos de telhas, normalmente a
partir da técnica de pau a pique. Eram comuns também os mutirões, onde se realizava uma
construção coletiva do espaço. E finalmente o hábito de plantar e criar animais para
subsistência. Mesmo atualmente não é muito difícil encontrar pequenas roças, hortas,

84
Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais
85
ALMEIDA, Rafael Gonçalves. Favelas do Rio de Janeiro. A geografia histórioca da invenção de um espaço.
Tese de doutorado em Geografia – UFRJ – 2016 p. 373
53
canteiros de plantas medicinais; assim como a criação de galinhas, porcos e cabras - mesmo
em espaços minúsculos.
Por outro lado, a impessoalidade e o anonimato, tão comuns nos grandes centros
urbanos, não tem muita força nesses espaços. Ainda que atualmente algumas favelas
cariocas tenham crescido, assumindo a proporção populacional de cidades inteiras, o
caráter comunitário é muito mais forte do que no resto da cidade. Assim, da mesma forma
que nas comunidades rurais, os moradores se conhecem com mais profundidade e
normalmente as pessoas são identificadas a partir de seus laços de parentesco ou amizade
com moradores mais antigos ou de famílias mais tradicionais.
Diversas manifestações culturais e ritmos musicais de origem rural também foram
re-construídos e ressignificados em certas favelas cariocas, sobretudo as mais antigas.
Segundo Waldir Barbosa, no Morro do Salgueiro, além do samba, o Caxambu (ligado a
regiões cafeeiras do sudeste e também chamado de Jongo), a Folia de Reis e as Pastorinhas
- expressões culturais presentes pequenas cidades do interior de Goiás, São Paulo, Minas
Gerais e do Rio de Janeiro - movimentavam o cotidiano dos moradores:

Tinha, tinha as pastorinhas. Entendeu, tinha as pastorinhas. Tinha, esse até


mais...existe por aí, o tal de caxambu. O caxambu, pois é, tinha tudo isso. As
pastorinhas já é um pouco mais antigo entendeu. Porque nas pastorinhas você
representava uma figura. Tinha minha irmã mais velha que representava a terra.
Tinha um conhecido meu, tudo da época né? Conhecido que representava o
vento. A colega da minha irmã era a samaritana. Assim eram as pastorinhas,
coisas que não existem mais. É uma peça, é. Você representava ela. Um canto né?
Você cantava aquele número que queria dizer aquilo que você estava
representando. Isso também acabou.86

Ao falar sobre o Caxambu e a Folia de Reis, Waldir nos revela que, no Morro do Salgueiro,
foram famílias migrantes do interior que trouxeram e difundiram essas manifestações, antes
desconhecidas. E traz uma relação, sobretudo na prática do Caxambu, a consciência da
ancestralidade africana das pessoas do interior, descendentes de escravizados. É
interessante perceber que, mesmo a partir dessa mudança radical do campo para a cidade,
diversas famílias negras conseguiram manter alguma coesão e recriaram essas tradições na
metrópole carioca:

O caxambu não, o caxambu eu até que não frequentei. Eu sabia, mas quem
frequentava mais caxambu era as pessoas mais aí do estado do rio, entendeu, dos
nossos municípios. O pessoal daqui quase não, os nascidos aqui, não. Ele foi
praticamente importado (risos) importado, veio de lá pra cá naquela época. Até
então ninguém conhecia. É um estilo de dança africano entendeu? Veio naquela

86
BARBOSA, Waldir. Em entrevista concedida ao autor em junho de 2018, no Morro do Salgueiro, Rio de
Janeiro. Ver entrevista em anexo.
54
época da escravidão. Veio naquela época, chegou aqui assim. Porque muitas
pessoas que viveu aqui foram filhos de escravos, né? E deixou seus descendentes
e aí continua. [...] Tinha, folia de reis. Eu não frequentava folia de reis não, mas
me lembro muito bem delas, com os palhaços vinha cantando, dizendo aqueles
versos. Mas ela não se criou muito aqui não, ela teve vida curta aqui no
Salgueiro. Tinha a folia da família do seu Julinho. Era uma família aqui do
interior que gostava de folia de reis. Geralmente de pessoas que vinham do
interior que gostavam da folia de reis. É, seu Julinho era um deles que tinha essa
folia dele. Os que gostavam de folia de reis vieram de lá. 87

2.2 “LEMBRANÇAS DA ROÇA”: ANCESTRALIDADE, VIVÊNCIA RURAL E


MIGRAÇÃO NA MEMÓRIA DOS ENTREVISTADOS

A memória, como observa Le Goff, “é uma ferramenta de interpretação da realidade


pretérita e não corresponde à exatidão de fatos ocorridos”.88Assim, longe de desvalorizar a
voz de nossos entrevistados, devemos compreender que ela é uma parcela de uma realidade
muito mais complexa, e como memória, deve ser submetida a reflexão historiográfica que
vá além do que literalmente se apresentou no discurso. Ao optar por trabalhar com fonte
oral e com as memórias do entrevistado não estou em busca da “verdade dos fatos”, tal qual
ocorreram. Na realidade, busco utilizá-la como ferramenta para melhor compreensão do
objeto histórico, assim como, a razão e sob quais condições se construiu determinado
discurso em relação ao passado. Como nos mostra Portelli, todas as pessoas guardam um
universo de experiências individuais – vividas também dentro de uma coletividade - como
sujeitos históricos, que são de igual valor para a compreensão da realidade histórica.
Portanto, a virtude do trabalho com a memória não está na “importância abstrata do
indivíduo, alardeada pelo capitalismo competitivo e liberal, mas a importância idêntica de
todos os indivíduos”. 89 Desse modo, as memórias, ainda que individuais, também apontam
para experiências sociais da coletividade no Morro da Liberdade.
Além disso, as entrevistas trazem a “visão de dentro”, contadas por aqueles que de
fato participaram da construção desses territórios. As favelas e principalmente os favelados
tiveram até muito recentemente suas histórias invisibilizadas, sufocadas por discursos

87
Id.
88
LE GOFF, Jacques. “Memória”. In: História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1982. P 137

89
PORTELLI, A. “Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral”. In:
Projeto História: revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História
da PUC-SP. São Paulo: Educ, n. 15, abril 1997, p. 17.
55
produzidos por sujeitos externos – intelectuais ou agentes de órgãos públicos - do que é a
favela, sua história e como pensam seus moradores. Seja por tradição cultural, seja por
falta de acesso aos meios acadêmicos ou falta de interesse dos pesquisadores, boa parte da
memória das favelas ainda é guardada e preservada por elas mesmas através da oralidade de
seus moradores mais antigos.
Portanto, o depoimento oral permite o contato direto com o “sujeito” que vivenciou
e atuou diretamente na realidade estudada, bem como permite que as memórias individuais
nos digam muito sobre as possibilidades presentes na realidade social mais ampla. Nessa
perspectiva, a memória dos moradores antigos nos aparece como um campo de afirmação
de sua presença, por meio da qual eles reafirmam a ideia de pertencimento ao lugar,
legitimando seu espaço na cidade. Recorre-se a uma memória e a um passado comum do
grupo que, reelaborados constantemente, dão significado e legitimam essa territorialidade.
Portanto, a história oral é um método de análise que se mostra adequado no estudo
dessa temática, pois possibilita a reflexão sobre aspectos da formação do Morro da
Liberdade, assim como das representações e significados expressos nas experiências e nos
modos de vida de seus moradores. Permite também pensar sobre processos vividos por
esses habitantes da cidade e resgatar experiências sociais que vão dar sentido à favela
atualmente.
Ainda que cada um de nossos entrevistados tenha trazido consigo um universo de
histórias e experiências próprias, frutos de caminhos particulares, podemos observar que
diversas questões em comum atravessaram suas vivências, possibilitando estabelecer
inúmeras relações entre suas trajetórias. Primeiramente, todos são negros, descendentes de
pessoas que foram escravizadas, portanto herdeiros da condição social da população negra
na escravidão e no pós-abolição. E com isso, guardam uma memória com relação ao
período que se mistura fortemente com sua identidade. Por outro lado, são pessoas que a
despeito de estarem tantos anos no Rio de Janeiro, tiveram sua origem ligada ao meio rural
– são migrantes ou filhos de migrantes - e guardam também marcas e recordações de
migração e transitoriedade. Tanto na “roça” quanto na favela, o discurso dos entrevistados
remete a uma vida de muitas dificuldades, privações, sacrifícios e lutas. Mas também de
orgulho, alegrias e identificação com o espaço, onde muitas vezes as histórias da
comunidade em que eles vivem se confunde com suas próprias histórias.
Maria Viana de Souza, a “Dona Maria”, é uma das moradoras mais antigas da
favela da Matinha, no atual Complexo do Turano (que se originou a partir do Morro da

56
Liberdade). Do alto de seus 87 anos de idade, Maria ainda demonstra muita disposição.
Apesar de aposentada, continua trabalhando como passadeira além de desenvolver há anos
um trabalho comunitário com diversas gerações de crianças da favela. Moradora do mesmo
local há 66 anos e vizinha de meus avós, Maria é grande amiga da família. Nos conhecemos
desde meus primeiros meses de vida e apesar de nossa convivência ter sido mais intensa
durante minha infância, não se apagaram as lembranças das festas das crianças por ela
organizadas, seu carinho, conselhos e ensinamentos. Sua entrevista, gravada em março de
2019 expõe, através de sua trajetória, perspectivas, significados e experiências de uma
mulher negra construindo uma vida e uma família em um difícil contexto de migração,
desarticulação familiar, racismo estrutural e machismo.
Outro de nossos entrevistados, Waldir Barbosa possui algumas particularidades.
Ele é morador de outra favela, o Morro do Salgueiro. Além disso, tem 93 anos vividos
inteiramente em sua comunidade. Isso significa que é impossível dissociar a sua história e
sua memória da história de sua favela, ou seja, ela é elemento base e indispensável na
constituição de sua identidade. E, diferentemente dos outros, Waldir não carrega uma
vivência rural, ainda que sua mãe seja originária do Vale do Paraíba. Mesmo com essa
idade, Waldir é muito ativo e frequentemente é visto pelas ruas íngremes do Salgueiro
conversando com outros moradores ou na Praça Saens Peña, na Tijuca. Nos conhecemos no
dia da entrevista, realizada em abril de 2018, em uma escola, através de uma amiga da
família, que nos apresentou seu avô, “conhecedor de muitas histórias” daquele morro.
Apesar de se tratar de outra favela, me aventurar pelas histórias do Salgueiro
mostrou-se também muito proveitoso. Através disso, encontrei pistas acerca de um
processo mais amplo de ocupação e de organização de moradores dos morros da Tijuca.
Por outro lado, sendo de ocupação muito mais antiga, o Salgueiro tem uma trajetória
histórica particular, mas que guarda estreita relação com o Morro da Liberdade, ou do
Turano. Além da proximidade geográfica, também há entre os moradores dessas
comunidades fortes ligações familiares e de amizade. E essa conexão é importante,
sobretudo, porque seus moradores também estiveram em disputa com o italiano Emilio
Turano. Da mesma forma que na favela vizinha, ele intitulava-se proprietário de boa parte
do Morro do Salgueiro, cobrando aluguéis, ameaçando moradores, realizando violentos
despejos e acumulando processos judiciais.
Nosso principal entrevistado, por sua vez, um senhor chamado Otacílo Duarte, era
um dos moradores mais antigos do Complexo do Turano, quando faleceu, em 2016.

57
Integrante de uma das famílias mais tradicionais da favela, era conhecido por seu forte
senso comunitário, por sua sabedoria, fruto de experiências de toda uma vida e também por
sua forte consciência social e racial. Nos conhecemos em 2012 já no final de sua vida, e
logo nos tornamos amigos. Mesmo com 83 anos, Otacílio ainda demonstrava vitalidade.
Sempre bem informado dos assuntos comunitários, costumávamos nos encontrar em
reuniões de moradores. Foi em um desses encontros que ele se lembrou de uma história
muito interessante que até então eu, como a maioria dos moradores, desconhecia
totalmente: a luta contra o italiano Emilio Turano na origem do nosso morro.
Pela primeira vez, ouvi que a formação de nossa comunidade foi atravessada pela
disputa das terras do morro entre os moradores esse italiano, supostamente proprietário
daquela área. A luta foi também simbólica: Turano queria manter seu nome e seu domínio
sobre a colina que explorava há alguns anos. Entretanto, os moradores em meio à disputa o
rebatizaram de “Morro da Liberdade”. Ao que parecia os anos de 1940 teriam sido muito
mais conflituosos – e interessantes - do que eu poderia imaginar. Em abril de 2012 foi
produzida a entrevista que serviu de base para essa pesquisa e através da qual iniciei
investigações com outros moradores, em matérias de jornais, fotos e mapas da época,
documentos cartorários, processos judiciais e dados estatísticos. Quando faleceu, Otacílio
Duarte levou consigo um universo de memórias e experiências. Uma pequena parte delas
estão impressas no seu discurso, registrado na entrevista e na lembrança de diversos
moradores que puderam ouvir suas histórias e conselhos.
Filho de pequenos agricultores, descendente de ex-escravos, Otacílio Duarte nasceu
em 24 de julho de 1929 na região de Guriri, localizada próximo à praia do Peró, na zona
rural do município de Cabo Frio. Em uma região muito próxima, três anos depois, em 19 de
maio de 1932, nascia Maria Viana de Souza, também neta de ex-escravos. Apesar de ter
sido registrada em Cabo Frio, foi criada na localidade rural de Campo de Fora, atualmente
Campo Redondo, na divisa com São Pedro da Aldeia. Eles nunca haviam se visto. Contudo,
passaram por processos que os levaram a morar no Rio de Janeiro, na mesma favela onde,
coincidentemente, se conheceram décadas depois.
Suas trajetórias de vida representam uma pequena gota d’água em meio à
correnteza de tantos outros migrantes originários do campo que buscaram – ou foram
forçados a buscar – nos grandes centros urbanos, uma alternativa de sobrevivência. Mas
por outro lado, ela também tem algo a revelar sobre como foi vivido o processo de expulsão

58
do meio rural - em ritmo cada vez mais acelerado a partir da década de 1930 - de famílias
negras que ainda se mantinham ligadas à terra décadas após a abolição.
Esse processo teve uma importância fundamental na dinâmica de formação do
Morro da Liberdade e de outras favelas cariocas na primeira metade do século XX, espaços
que se caracterizaram pela resistência política e cultural, mas também por um histórico de
marginalização social imposta pelo Estado - através de uma distribuição desigual de
direitos básicos - e por boa parte da sociedade civil carioca. Assim, histórias como as de
Otacílio Duarte expõem a necessidade do trabalho mais cuidadoso com relação às questões
que envolvem a origem étnico-racial, espacial, e as experiências prévias dos primeiros
habitantes do que viria a ser chamado de Morro da Liberdade.

****

O ano era de 1929. Na localidade de Guriri - então com poucas casas esparsas - bem
próximo à praia do Peró na zona rural de Cabo Frio, nascia Otacílio Duarte. Certamente,
seus familiares não poderiam imaginar que, anos mais tarde, ele e seu irmão mais velho,
Silas Duarte estariam morando no alto de uma pedreira no Rio de Janeiro, então capital do
Brasil. E o mais inesperado: que se envolveriam, junto com outros moradores, na luta pela
continuidade de mais uma favela que se expandia nos morros da cidade.
Distante alguns quilômetros dali, no ano de 1932, nascia a menina Maria Viana de
Souza. Ela era filha caçula de 4 irmãs. Sua mãe abandonara a família por motivos
desconhecidos e elas foram criadas por um pai solteiro, que trabalhava metade do ano como
agricultor e a outra metade em uma salina, atividade de produção sazonal, que se
caracterizava pela pouca utilização de mão de obra além de condições de trabalho muitas
vezes degradantes. As dificuldades não eram poucas e quando ficaram maiores, as meninas
passaram a ajudar o pai na lavoura. Sua trajetória nos mostra que para uma mulher negra do
campo, os estreitos caminhos e possibilidades que se abriam, mesmo décadas após a
abolição, ainda tinham muita relação com a escravidão.
No período em que eles nasceram e cresceram, Cabo Frio tinha em torno de 16.475
habitantes.90 Segundo afirma Moura, desde a virada do século a economia da cidade estava
muito ligada à extração de sal e à pesca. Ainda segundo esse autor, o município passava por

90
Ministério da Agricultura, Industria e Commercio, 1920, p. 806 Apud. MOURA, José. Política, economia e
associações profissionais e culturais em Cabo Frio entre a República Velha e o Estado Novo: rupturas e
continuidades in.: Cabo Frio : 400 anos de história, 1615-2015, IBRAM, 2017
59
uma das mais graves crises de sua história e ao que tudo indica que a família de nossos
entrevistados também passava por momentos difíceis. Faltavam postos de trabalho na
cidade, a fome havia se tornado corriqueira e para piorar no início dos anos 20 uma
epidemia de varíola atingiu a cidade. Pressionados por essa realidade desoladora, muitos
migraram para outros municípios e, em 20 anos, a população de Cabo Frio caiu em vez de
crescer.91 Em um trecho do jornal “O industrial”, citado pelo autor o quadro da pobreza é
pintado em tintas fortes: “Cabo Frio é, hoje em dia, um verdadeiro cemitério, uma cidade
morta, onde a população faminta vaguêa sem ter em que empregar o tempo, olhando
apavorada para o futuro que se lhe afigura tenebroso, luctuoso e triste”.92
Esse momento da juventude de Otacílio foi marcado, de maneira traumática, pela
miséria e sobretudo pela fome que constantemente atingia sua família. Esses seriam os
principais motivos para que ele e seu irmão deixassem sua terra natal em busca de melhores
condições de sobrevivência na capital. Essa situação precária, segundo sua memória,
decorria das dificuldades em relação a colheita na lavoura de seu pai, onde eram plantados
gêneros básicos para a subsistência – tal como milho, feijão, mandioca, etc. - muito
suscetível a variações climáticas e aparentemente insuficiente para a manutenção de seus
familiares. Podemos supor, por se tratar de uma das regiões mais secas do estado, em área
de restinga, alagadiça, e de solo arenoso e por isso pouco fértil, que aquela roça não fosse
muito produtiva. Em suas palavras:

“Eu nasci em Cabo Frio, num lugar chamado Guriri. Guriri era um lugar
assim...Uma roça né? Casa quase não havia. [...] meu pai foi lavrador e a gente
vivia assim das plantações né? De mandioca, milho, feijão, essas coisas..., mas
quando chegava a época de chuva, a natureza que manobrava, né? Se chovesse
tinha comida, se não chovesse não tinha nada! A gente ficava só mesmo seguro
no mar. [...] pescava marisco, pescado. Aquela área ali é muito brabo o mar ali,
uma costa muito perigosa. Que vem de Búzios até Arraial do Cabo, aquilo é uma
coisa terrível! Principalmente nos meses de frio, agora março, abril essa época é
horrível lá. Não podia nem sair de casa pra ir ao centro da cidade. Então quando
chegava essa época que não tinha colheita na plantação que meu pai fazia com a
gente? Passávamos necessidade [...] eu vim por causa da fome! E onde existe
comida pra quem não tem comida, é o melhor lugar. Cheguei aqui não faltou
mais nada. Trabalhava no meio da comida, no armazém. Aí eu vim morar aqui
com o meu irmão que se casou. (...) e aqui eu nunca mais passei fome então
nunca mais andei assim...De roupa remendada, lá a gente andava com aquelas
calças remendadas, aquelas camisas de saco, andava assim mesmo.... Quando
cheguei aqui nunca mais passei por uma vida dessas então nem tenho saudade
muito de lá. ” 93

91
14.948 habitantes segundo o recenseamento demográfico de 1940. IBGE, 1940, p. 122
92
Jornal “O industrial”, Cabo Frio, 23/09/1923 p. 1 apud. MOURA, José. Política, economia e associações
profissionais e culturais em Cabo Frio entre a República Velha e o Estado Novo: rupturas e continuidades in.:
Cabo Frio : 400 anos de história, 1615-2015, IBRAM, 2017.
93
DUARTE, Otacílio. Em entrevista concedida no Rio de Janeiro, em abril de 2012. Ver entrevista em anexo.
60
A partir do relato, podemos supor que Otacílio fosse filho de posseiros ligados à
pesca – devido à relativa autonomia da família e de sua relativa proximidade da praia do
Peró. Segundo Lamego,94 em geral as populações tradicionais litorâneas destinam boa parte
dos esforços nas atividades pesqueiras - de tradição secular em Cabo Frio - sendo a lavoura
elemento importante, mas complementar. É interessante perceber que, na realidade descrita
através da memória de Otacílio, a pesca só é recurso em caso de colheita deficiente, em um
momento de seca prolongada:

“a gente vivia assim das plantações né? De mandioca, milho, feijão, essas
coisas..., mas quando chegava a época de chuva, a natureza que manobrava, né?
Se chovesse tinha comida, se não chovesse não tinha nada! A gente ficava só
mesmo seguro no mar. (…). Pescava marisco, pescado. ”95

Deve-se também ter em mente que a atividade pesqueira é sazonal e depende de


inúmeros fatores tais como a época do ano, variação das marés, condições climáticas, etc.
Isso também poderia significar a inexistência de um barco próprio ou mesmo uma distância
relativamente significativa da moradia para praia, inviabilizando a atividade de pesca mais
regular.
Quando busca lembranças sobre sua infância, por sua vez, Maria não demonstra que
sua família passasse por necessidades tão extremas. O que não quer dizer que sua vida fosse
fácil, já que sua mãe não esteve presente em sua criação e seu pai precisava deixar suas
filhas pequenas sozinhas para ir trabalhar:

Eu fui uma filha criada com um pai só. Meu pai ficou com três filhas. A mais
velha com 7 anos, uma com 5, uma ainda adotiva com 3 pra 4 e eu com 7 meses.
E ele criou todas elas, sozinho. Então a gente ficava ali, dentro de casa brincando.
Quer dizer eu me lembro só da minha irmã que tomava conta de mim. Eu com 7
meses e ela com 7 anos. Então meu pai deixava nós tudo trancada dentro de casa.
Ele trabalhava na salina e no campo. No verão era na salina, no inverno era no
campo, na roça né? Que ele trabalhava... E nós ficava ali, tinha uma senhora que
ajudava, olhava, qualquer coisa que a gente precisava ela ia lá pra olhar pela
gente, mas essa senhora não era nada nossa, era uma vizinha que, como eu faço
aqui. Depois que a gente, cresci fiquei mais ou menos com 7, 8 anos, aí a gente
saia a brincar pela roça, né? A trabalhar de enxada a gente com meu pai. (risos)
Aí ele ia lá pra lavoura, quando chegava o dia que ele ia lá pra lavoura, aí a gente
ia junto, que aí ele fazia aquela trouxinha, de roupa, cada um levando a trouxinha,
ia pro lugar lá que chamava naquele tempo Mossoró. Ele ia trabalhar de enxada e
a gente ia trabalhar junto. Ficava junto com ele, quando era final de semana
voltava pra cá. Isso que eu me lembro[...]. Não é que minha mãe tivesse morrido,
não. A minha mãe tinha... deixado a gente porque não sei, mas ele criou a gente.
Quando eu fiz 10 anos minha mãe apareceu. Minha mãe apareceu. Aí eu fui

94
LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e a restinga. IBGE, Rio de Janeiro, 1946. P. 158.
95
DUARTE, Otacilio... Op. Cit.
61
conhecer quem era minha mãe, só que eu não aceitei mais...a mãe que eu
conhecia era minha irmã, era apegada com ela aquela coisa, então aquela coisa. 96

Seu relato demonstra as dificuldades enfrentadas para a criação de crianças pequenas


naquela realidade. As irmãs mais velhas assumiam a responsabilidade de cuidar das mais
novas. Também foi importante a ajuda de sua vizinha que, na ausência do pai, observava se
tudo corria bem com as meninas. É interessante observar que atualmente, como tantas
outras pessoas na favela, Maria é quem presta auxílio aos filhos de seus vizinhos, da mesma
forma como ocorria em sua infância. Pode parecer algo irrelevante, mas esse auxílio revela
a continuidade em meio urbano de uma solidariedade e ajuda mútua entre famílias, típicas
de comunidades rurais e extremamente importante para amenizar as dificuldades cotidianas
enfrentadas por elas.
Ainda segundo seu relato, seu pai se dividia entre ocupações pesadas e desgastantes.
A extração do sal, onde ele se empregava durante o verão, e na época de inverno, com o
clima mais ameno, o trabalho no roçado. Ainda que eles vivessem muito próximos à lagoa
de Araruama97, em uma região com forte tradição pesqueira, Maria não cita a pesca como
uma fonte de sustento da família, o que pode indicar, como no caso de Otacílio, que a
família não possuísse um barco ou simplesmente que seu pai estivesse mais habituado com
o cultivo da terra.
De qualquer maneira, como demonstra João Christóvão a atividade salineira, exercida
pelo pai de Maria foi, durante mais de um século (desde fins do século XIX), a principal
atividade econômica da região ao entorno da lagoa de Araruama. 98 Além da importância
econômica em si, o sal deixou marcas culturais no cotidiano e na memória daquela
população, principalmente, em momentos anteriores a expansão da exploração turística e
imobiliária.
Contudo, a extração salineira se consolidou como atividade temporária, de baixo uso
de mão-de-obra não especializada e, sobretudo, um serviço extremamente extenuante com
alta exposição ao sol e esforço físico. Podemos considerar, ainda assim, que a expansão das
salinas na região dos lagos no início do século XX se apresentou como uma das poucas

96
SOUZA, Maria Viana. Em entrevista concedida no Rio de Janeiro, em abril de 2019. Ver entrevista em
anexo.
97
Apesar de afirmar ter sido registrada em Cabo Frio, a referida localidade de “Campo Redondo”, onde Maria
Viana recorda que cresceu, é atualmente um bairro pertencente ao município de São Pedro da Aldeia, ás
margens da Lagoa de Araruama. O lugar onde ela recorda que sua família cultivava uma roça, chamado
Mossoró, localiza-se relativamente próximo a Campo Redondo, ao lado do centro de São Pedro da Aldeia.
98
CHRISTÓVÃO, João H. I. Aspectos da organização dos trabalhadores cabo-frienses ligados à produção do
sal na primeira metade do século XX. Anais do XVII Encontro de História da Ampuh- Rio. 2016
62
oportunidades de sustento para muitas famílias de ex-escravos da região e seus
descendentes – tanto na extração do sal quanto na estiva, embarcando o produto.
Mas o custo era alto: como falamos, as condições de trabalho eram muito ruins, e ao
longo do tempo, os trabalhadores das salinas eram e são, até hoje, expostos a sérios riscos
de saúde. Como aponta Gomes, Ferreira e Miranda (2015) os principais problemas são:
sérios danos à pele, lesões por esforço repetitivo, doenças visuais e problemas cardíacos. E,
ao que parece, isso foi fatal para o pai de nossa entrevistada, que faleceu alguns anos após
adoecer: “Depois ele ficou trabalhando na salina muito tempo e...ele ficou muito doente do
coração. E com aquela doença dele, ele tinha muito medo de morrer e me deixar, porque
ele me criou desde 7 meses sozinho, né?”99
Em outro momento do trecho destacado, Maria relata que, tão logo fez 7 anos, ela e
as irmãs já começaram a acompanhar seu pai na lavoura. Isso demonstra a necessidade das
famílias camponesas por filhos aptos ao trabalho para garantir mínimas condições de
sobrevivência. Ainda mais nessa família em que o sustento estava exclusivamente nas mãos
da figura paterna, enfrentando um tênue equilíbrio para não se desarticular por completo. O
que para as meninas parecia uma forma de brincadeira na roça – na qual se convertia em
uma “pequena viagem” para “Mossoró”, onde eles passavam toda a semana cuidando das
plantações - era na verdade uma contribuição indispensável para sua sobrevivência em um
contexto onde a instabilidade era a regra.
A difícil realidade vivida por nossos entrevistados era, contudo, bastante comum no
mundo rural brasileiro. Ribeiro100 nos aponta a recorrência da fome dos trabalhadores
camponeses, assim como a dificuldade de se assentar duradouramente à terra. A realidade
deles era atravessada pela transitoriedade e sua atividade, pela instabilidade. Ainda segundo
Ribeiro, a estabilidade ou instabilidade camponesa dependeria de uma série de fatores: de
equilíbrio climático, da quantidade de filhos aptos ao trabalho na lavoura, as condições do
solo, mas principalmente pelos níveis de dependência ou subordinação dos trabalhadores
em relação aos grandes proprietários da região, condição essa diretamente relacionada à
existência ou não de uma rede de solidariedade camponesa forte e de um mínimo mercado
camponês. Ou seja, Ribeiro demonstra que é muito difícil um núcleo ou família camponesa
viver no isolamento, uma vez que sua permanência na terra depende fundamentalmente de
ajuda mútua coletiva e de trocas entre o que era produzido.

99
SOUZA, Maria Viana...Op.cit.
100
RIBEIRO, Laila M.. Trabalho, gênero e sexualidade do campo à cidade no Rio de Janeiro. Trabalho de
Conclusão de Curso. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2011; p. 37-54
63
Parece que a família de Otacílio vivia em uma situação de fragilidade porque estava
relativamente isolada – até mesmo do centro da cidade - em uma localidade de difícil
acesso, com pouquíssimos moradores em um contexto que as pessoas estavam deixando
Cabo Frio para outras cidades. Mas como se chegou nessa situação de isolamento e
consequentemente de precariedade? Infelizmente, não temos maiores informações sobre os
caminhos anteriores da família de Otacílio. Contudo podemos traçar algumas conexões.
Fiabani101 destaca que muitas vezes sem meios para realizar demarcações, cobrir despesas
cartoriais e cercamentos das terras que ocupavam – algumas das quais doações de ex-
proprietários – e sem o domínio de processos e procedimentos burocráticos para a
legalização e formalização da propriedade nem mesmo contando com uma rede de contatos
que pudessem facilitar esse acesso, famílias negras, nas décadas após a abolição, tiveram
boa parte da terra que ocupavam expropriadas. Já Mattos e Rios102 apontam para uma
situação de vulnerabilidade da população negra rural no início do século XX. Em estudo
sobre a vida da primeira geração de libertos da região sudeste do Brasil informam que no
período pós-abolição foi concluída a legislação (A lei de terras de 1850 e a regularização de
1913)103 que dificultou seu acesso à terra. Afirmam as autoras:

(...) num período impreciso, que se inicia após a Abolição e que se estendeu pelas
primeiras décadas do século XX, houve, na região em questão [região sudeste do
Brasil], uma população de libertos, seus filhos e netos, que encontrou
dificuldades em se fixar como parceiros ou posseiros estáveis. 104

As primeiras décadas do século XX foram marcadas pelo avanço gradativo e voraz


do latifúndio e pela continuidade da utilização da mão-de-obra negra nas fazendas das
antigas áreas escravistas do Sudeste (à exceção do Oeste Paulista). Contudo, com um
acesso extremamente restrito à propriedade da terra, muitas dessas pessoas não
conseguiram estabilidade. Ainda segundo as autoras, nessa fase observa-se a formação do

101
FIABANI. Delmir. A expropriação das comunidades negras brasileiras: da Lei de Terras de 1850 ao
Regulamento de Terras de 1913. Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em
História do Brasil da UFPI. Teresina, v. 2, n. 2, ago. 2015.
102
MATTOS & RIOS, Ana Maria & Hebe Maria. O pós-abolição como problema histórico. Balanços e
perspectivas. Revista Topoi. Vl. 5 N° 8, 2004. P 199-200
103
Ainda segundo Fiabani, a partir da Lei de Terras de 1850 propriedade da terra passou a ser considerada
basicamente pela via de compra ou da herança. Taxas territoriais foram criadas e o Estado passou a demarcar
as terras devolutas, os sitiantes sem título de propriedade foram considerados ilegítimos. Ao privilegiar os
grandes proprietários, o Estado permitiu o início do processo de expropriação de terras que foram adquiridas,
em muitas ocasiões, através da compra informal ou por doações de antigos proprietário aos ex-escravos. In.:
FIABANI, Aldemir. “A expropriação das comunidades negras brasileiras: da Lei de Terras de 1850 ao
Regulamento de Terras de 1913”. Revista Contraponto. Vol.4 N°: 2. UFPI
104
MATTOS & RIOS...Op. Cit, p. 200.
64
que elas chamam de “campesinato negro itinerante”. Ou seja, famílias negras que tiveram
suas trajetórias marcadas por expulsões cíclicas das terras que ocupavam no interior das
propriedades em que trabalhavam. Foi um momento de crescente mobilidade no campo,
desarticulação familiar, violência e privações. 105
Apesar de que muitos grupos conseguirem se assentar em comunidades mais ou
menos autônomas por gerações, em grande medida, as populações negras se deslocavam
constantemente entre fazendas, tornando-se trabalhadores sazonais em busca de serviço e
principalmente, da conquista de sua roça própria. Também podemos observar esse processo
na fala de Maria Viana. Ela nos relata não ter certeza do lugar que nasceu, diferente do
local onde passou a infância. Muito menos sabe de onde veio seu pai, filho de ex-escravos,
ainda que afirme, sem certeza, que ele tenha vivido em uma fazenda em Alecrim. Esta é
uma localidade que atualmente integra São Pedro da Aldeia, e que mantém a maior parte do
seu território pouco povoado e rural:

Não, não. O lugar que eu nasci não me pergunte, o lugar que eu sou registrada é
Cabo Frio. Mas o lugar que eu me entendi por gente é Campo Novo, agora
Campo Redondo. [...] meu pai não viveu a escravidão. Mas ele vivia na
fazenda.[...] O lugar não sei mesmo. Diz que ali por dentro, daquele lugar de
Cabo Frio, lá pra dentro parece de Alecrim, lá pra aqueles lugares pra lá, pra
aquele desertos lá de dentro. Ele nunca falou o lugar.106

No Estado do Rio de Janeiro essa realidade se agravou a partir da década de 1930


como veremos adiante -com o avanço das fazendas de gado - quando muitos descendentes
de escravos se deslocaram para a capital e os municípios que hoje compõem o Grande Rio.
Nesse contexto, a memória de Waldir Barbosa também contribui para nossa reflexão.
Nosso entrevistado mais velho é quase tão antigo quanto a favela em que mora. Foi o
último filho de uma família que já tinha quatro meninas e era liderada por sua mãe e sua
avó, uma vez que seu pai é desconhecido. Ainda que tenha nascido na então capital do
Brasil, Waldir demonstra algum conhecimento acerca das questões rurais, migrações, e sua
relação com as favelas. Isso se explica já que ele viu, ao longo de quase um século, o morro
do Salgueiro receber muitos migrantes de diversas partes do país, sobretudo de áreas
rurais:
Ah, vinha muita gente do interior. Muita gente de fora...O município que
mais mandou gente pra cá foi Campos. É, muita gente daqui do Salgueiro vieram
de Campos. Vieram de outros lugares também, mas Campos foi o maior número
de pessoas vieram de Campos. Campos dos Goytacazes lá que eles tratam né?
Canavial, o açúcar principalmente Campos era rico em açúcar né? Em produção

105
Id. P. 181
106
SOUZA, Maria Viana...Op. cit.
65
de açúcar, exatamente isso. Mas muita gente [...] Também teve muita gente de
Minas. Sendo que não era o mineiro de Belo Horizonte, não. A maioria era das
cidades lá, Caratinga, Manhuaçu, por ali afora. De Belo Horizonte a safra foi
menor. Era a capital, né? As pessoas vinham do interior, a maioria deles vieram
lá, os mineiros né. Agora das capitais não vieram, acho que não era necessário
né? Deles vir...107

Mas o rural está presente também nas lembranças de sua mãe e sua avó, segundo o
qual seriam naturais do interior e a segunda teria sido escrava:

Eu não conheci meu pai. Minha mãe, Leonor Barbosa. A minha vó, Clara
Barbosa. Minha vó materna porque eu não conheci meu pai e não sei quem eram
meus avós. E o resto que vem são minhas irmãs, né? Minha vó dizia que eles
vieram de Valença. Santa Teresa de Valença. Município né? Estado do Rio,
município nosso aqui. De lá veio minha vó e minha mãe veio junto dela também.
[...]. Minha avó que poderia contar ela não contou, por que saiu de Valença para
vir pro Rio. Não fizeram referência nenhuma da saída de lá pra cá. Há muitos
anos que a minha avó era... era...escrava. Minha avó foi escrava e a minha bisavó
também, claro. Foram escravas. Só não me disseram como chegaram aqui e por
que razão vieram, mas foram escravas. Principalmente minha avó, Clara Barbosa
foi escrava. Porque minha mãe nasceu em 1895, é claro que minha avó era
escrava! [...]. Minha avó tinha umas colegas, acredito que elas deveriam ser filhas
de escravos, chamava Eulária, era a única, mas nunca fizeram referência
nenhuma. Eles...pouco eles comunicavam sobre essas coisas entendeu? Não
davam informação nenhuma pra gente. Eles pouco informavam sobre o passado
deles.108

Nesse trecho da entrevista é fundamental observarmos que a fase rural da história da


família de Waldir permaneceu, durante toda sua vida, envolta em silêncios. Parece claro o
corte na transmissão da memória familiar – muito comum em situações de migração -
quando ele relata que sua mãe e sua avó nunca contaram quando, porque e em que
condições migraram de Santa Teresa de Valença para o Morro do Salgueiro. Muito
provavelmente elas guardavam memórias traumáticas ligadas à escravidão ou a
dificuldades e privações nas décadas seguintes a abolição, de forma que o assunto pode ter
se convertido em um “tabu”. Por outro lado, a inexistência da figura paterna na família,
assim a como o total silêncio sobre pai pode demonstrar, uma desestruturação familiar e as
formas, muitas vezes traumáticas com que as famílias se constituíam antes e depois da
escravidão. O pai não aparece como falecido, ele simplesmente não aparece. Isso pode estar
relacionado com um abandono, um relacionamento extraconjugal, ou mesmo abuso sexual.

107
BARBOSA, Waldir. Em entrevista concedida no Rio de Janeiro, em junho de 2018. Ver entrevista em
anexo.

108
BARBOSA, Waldir...Op. Cit.
66
De qualquer maneira, a mudança para a capital do Brasil também demonstra uma
agência histórica de mulheres negras que, dentro das suas possibilidades, escolheram seus
próprios caminhos. Costa, em seu artigo “Migrações negras no pós-abolição do sudeste
cafeeiro (1888-1940) ”, analisa pesquisas sobre o pós-abolição em diferentes países da
América e observa que uma tendência bem marcada em todos os casos: a intensa
mobilidade no território – não necessariamente do campo para a cidade - de indivíduos e
famílias negras. Seja com o intuito de experimentar a liberdade recém conquistada, seja
para reencontrar familiares separados ou pela busca de uma vida mais autônoma, as
migrações negras foram uma realidade nas décadas após a abolição nos Estados Unidos, no
Brasil e Caribe.109 Nesse caso, para Clara e Leonor, a migração representava a construção
de uma vida totalmente nova, com outras pessoas, condições e possibilidades, deixando
Valença para trás em um passado que, para elas, aparentemente não merecia ser
rememorado.
Apesar de ser percebidov e vivenciado de forma diversa e particular por cada um, a
migração dessa família fez parte de um processo histórico muito mais amplo que, em
algumas décadas mudou profundamente a demografia e a dinâmica socioeconômica do
Vale do Paraíba. Waldir faz referência, em seu relato, a origem de sua família em Valença,
na localidade de Santa Teresa de Valença, que atualmente encontra-se na condição de
município chamado Rio das Flores. Valença foi um município de extensa concentração
escravista, que, no auge da produção cafeeira fluminense, acumulou a segunda maior
população escrava do Rio de Janeiro, atrás apenas de Campos110. Segundo Costa111ocorreu,
na região, um forte processo de migração para o Rio de Janeiro e municípios próximos,
sobretudo a partir da década de 1920 a partir de diversos fatores de expulsão:

Por fim, existiam os que migravam definitivamente para os centros em


ascensão. Esse último grupo, formado em sua maioria por filhos e netos,
descendentes diretos de ex-escravizados, apenas migrou na década de 1920,
quando a condição social e financeira de seus pais não era mais possível de ser
reproduzida. Para os que residiam no campo a erosão do solo, as pragas, a
diminuição do emprego por conta da desvalorização do café afetou muito mais
rapidamente o trabalhador no Vale do Paraíba. Provavelmente, para sobreviver
tiveram de abrir mão do seu último bem, isto é, a terra. Afinal, toda a área
desgastada passou a servir como pasto para o gado, que começava a se tornar a
alternativa mais viável economicamente para a região.

109
COSTA, Carlos E. C. “Migrações negras no pós-abolição do sudeste cafeeiro (1888-1940) ” Topoi, Rio de
Janeiro, v. 16, n. 30, p. 101-126, jan. /jun. 2015
110
MARTINS, Roberto B. Notas sobre a demografia das populações escravas da América. Faculdade de
Ciências Econômicas da UFMG, 2016
111
Costa, Carlos...Op. Cit. P. 107.
67
É importante notar também que, na fala de todos os nossos entrevistados, a memória e
a consciência da herança da escravidão aparecem com força. De tal modo que ela acaba por
integrar uma marca indissociável da constituição de suas identidades sociais e raciais. Além
disso, essa questão nos fornece pistas acerca da ancestralidade, das origens históricas e de
experiências prévias da população do Morro da Liberdade e do Salgueiro, que é,
majoritariamente, negra. Ou seja, estamos falando de uma população que conviveu de perto
com os traumas e memórias da escravidão e do pós-abolição. Maria relata que:

Minha mãe era filha de uma índia com um português. Joana Lina do
Coqueiro (risos). É, a índia. O português eu não sei. O pai da minha mãe era um
português. Agora o pai do meu pai chamava Joaquim Carvalho Viana. Esse era
africano. É, pai do meu pai. É meu avô, pai do meu pai. Conheci, mas era muito
pequena. Eu tinha o quê quando ele morreu? Eu deveria ter uns 5 ou 6 anos. Meu
pai chorava, que ele era bem velhinho e meu pai agarrava ele no braço e botava
embaixo do pé de laranja, na cadeira, para tomar sol. Depois pegava, trazia pra
dentro novamente, pegava botava na cama. Mas ele era velhinho, velhinho. A
mãe da minha mãe era índia e o pai dela era um português, filho do senhor de
onde ela vivia como escrava doméstica. Era uma índia. Trabalhava na casa do
senhor. E diziam, meus tios sempre contavam essa história, eu tinha tio Caboclo,
tio Miro, tio Agapito eram irmãos da minha mãe. E tinha a tia Emilia e tia
Graciane, que eram irmãos da minha mãe, era família da minha mãe. Então eles
sempre contavam. Eu vim conhecer minha mãe com 11 anos, mas conhecia ela
deles falarem, né? Então diz que o filho do dono da casa que era o fazendeiro,
que era aonde minha avó trabalhava, que servia como escrava ali, então quando
ele queria ele ia e usava a minha avó. Ela era instrumento de divertimento dele. E
foi aonde nasceu a minha mãe.[...]Ele foi escravo, foi escravo! Ele foi escravo a
vida toda, ele era escravo. Ele apanhou muito, foi pego...dizia meu pai, né? Meu
pai dizia assim: “papai sempre contou tanto que ele sofreu tanto, apanhou tanto
no tronco...” Ele tinha que emprenhar as neguinhas todinhas para vender os
filhotes na praça, ele contou muito. Meu pai contava muitas histórias do pai dele.
Meu pai dizia assim: “eu fui privilegiado, que eu fui criado estudando dentro da
fazenda, pra tomar conta da senzala né?” Portanto meu pai sabia ler e escrever
muito bem. Ele escrevia para os grandão donos, fazendeiros que não sabiam ler,
levavam ele escrever. Escrevia muito bem. Sabia ler e escrever muito bem. 112

Nesse trecho podemos perceber que, ao contrário de Waldir, Maria teve - ainda em
Campo Novo - acesso a uma memória mais ampla da escravidão, através dos diálogos com
diversos familiares seus. Aparentemente eles eram mais abertos no que se refere a memória
dos percalços de sua família durante a escravidão e o relato por ela construído faz
referência a violências de diversas formas na formação de sua família. Primeiramente, seu
relato expõe os sofrimentos vivenciados por seu avô – segundo ela, um africano - Joaquim
Carvalho Viana, ao qual seu pai parecia guardar forte ligação.

112
SOUZA, Maria Viana...Op. Cit.
68
No trecho que ela fala sobre a experiência de Joaquim, se reforçam alguns significados
comumente associados ao cativeiro: a violência presente nos castigos no “tronco” e na
obrigatoriedade de ter relações sexuais com outras escravas a fim de gerar mais cativos para
seu proprietário. A noção de “escravo reprodutor”, que de certa maneira se aproxima a uma
memória de animalização do cativo, expressa em sua fala através de temos como
“emprenhar” e “filhotes”. Por outro lado, Maria nos conta que seu pai vivenciou uma
situação muito melhor que seu avô, depois do fim da escravidão, tendo acesso a
alfabetização e possivelmente ocupando uma posição de encarregado na fazenda em que
vivia. Ainda assim, é fundamental refletirmos que nossa entrevistada foi criada por uma
pessoa ainda extremamente marcada por experiências, relações raciais e de trabalho ligadas
ao cativeiro – mesmo que tenha nascido anos após a abolição.
É interessante também notar a ascendência indígena próxima de Maria. A região em que
ela vivia, perto de São Pedro da Aldeia, integrou durante séculos as terras do aldeamento de
São Pedro e, portanto, guarda forte presença indígena na composição populacional.
Segundo Ramos (2016) no início do século XIX, relatos dão conta de aproximadamente
três índios para cada branco nessa região. Por outro lado, sua avó, como indígena,
possivelmente não fosse escrava legalmente113, ainda que vivesse e trabalhasse submetida
em uma condição análoga à escravidão.
Sua memória também tem relação com um processo de miscigenação violento e
abusivo, nada incomum na formação histórica brasileira. Nesse sentido, Maria tem
consciência de uma ancestralidade africana, indígena e europeia, ainda que essa última seja
fruto de contínua violência sexual sofrida por sua avó, Joana Lina do Coqueiro, que,
segundo conta, “era instrumento de divertimento dele[o filho do dono da fazenda]”. Ainda
é possível que a referência ao abusador como “português” apareça, nesse caso, como um
sinônimo para um proprietário branco. De qualquer maneira, a herança social e cultural de
Maria é totalmente africana e indígena. Nada herdou de seu “avô branco” - propriedades,
condição socioeconômica, sobrenome – a não ser o trauma familiar na geração de sua mãe,
que foi perpetuado por seus descendentes.
A partir da observação desse panorama de intensas mudanças nas décadas posteriores a
abolição, a análise do contexto histórico da região entre Cabo Frio e Búzios pode nos ajudar
a entender a trajetória dessas populações negras locais. A região em que nasceram Otacílio

113
A escravidão indígena foi oficialmente abolida em 1755. RAMOS, Carla C.B. A presença indígena na
História de Araruama: Patrimônio, Memória e Ensino de História. Anais do XVII Encontro de História da
Ampuh-Rio. 2016
69
e Maria é profundamente marcada pela presença do grande latifúndio de Santo Ignácio dos
Campos Novos. Com grande relevância na história da cidade desde os tempos coloniais,
que remonta a administração jesuítica, dessa fazenda saía a maior parte da produção
agrícola da cidade e também era onde se concentrava a maior quantidade de pessoas
escravizadas do município. Inclusive, ali foi ponto de redistribuição de escravos para outras
localidades.114
Com a abolição da escravidão, muitos libertos se tornaram colonos da fazenda: em
troca de permanecerem nas terras e produzirem em suas roças, deveriam trabalhar um
determinado número de dias nas terras dos grandes proprietários – trabalhavam geralmente
115
na extração de madeiras nobres e no cultivo de banana e café para exportação. Outros,
como as comunidades da Rasa e de Maria Joaquina se reagruparam nas praias mantendo a
tradição da pesca como base de sustento. Nesse sentido, pontilharam inúmeras
comunidades negras na área, constituídas por grandes famílias que, de alguma forma
mantinham coesas por estreitos laços de parentesco. Alguns, inclusive, que viviam nas
áreas mais periféricas de Campos Novos, conseguiram permanecer com certa autonomia,
sem pagar qualquer tipo de renda.116
Nos anos entre 1930 e 1950, seguindo uma política federal liderada por Vargas, o
governo estadual realizou inúmeras obras na região, tais como a abertura de estradas,
drenagens e saneamento. A região se tornou atraente para todos os tipos de supostos
proprietários. Principalmente, por trazer agora um potencial de exploração baseada na
produção pecuarista, com baixa utilização de mão de obra e imobiliário, aumentando a
especulação e dando início a diversos conflitos de terra. A existência desses colonos,
portanto, não era mais atraente, pelo contrário era um empecilho para supostos
proprietários. Nesse contexto, é recorrente em diversas comunidades a memória relacionada
ao cercamento, a inúmeros moradores que foram enganados por grileiros e à utilização de
bois para destruir as roças dos colonos, levando-os à situação de fome e forçando-os deixar
suas terras. Muitas pessoas se deslocaram para a sede do município ou mesmo para outras
cidades. Contudo, algumas dessas comunidades- como as citadas acima - conseguiram se
manter nas terras até os dias atuais, através de muita luta e da manutenção de estreitos

114
ARAUJO, Paulo R. “Entre o latifúndio e a vila: A fazenda Campos Novos e a formação urbana de Cabo
Frio; Séculos XVII E XVIII.” OSF Preprints, 14 Mar. 2017.
115
ALMEIDA, Brena Costa de. Entre o passado e o presente, entre História e memória: a Rasa e seus entre
lugares. Revista Escrita da História. Vol. 2 N°4, 2015;
116
Id.
70
laços familiares, sendo atualmente reconhecidas como comunidades remanescentes de
quilombo.117
A aceleração desse processo de concentração fundiária voltada para a criação de gado –
muito mais lucrativa - tem íntima relação com a apropriação da terra ocupada por
trabalhadores rurais e com o êxodo massivo para a capital. Neves 118, ao analisar a expulsão
dos trabalhadores do café, afirma que, a essa dinâmica se realizava basicamente de duas
maneiras: a primeira, direta, através da compra da terra ocupada por famílias de colonos ou
pelo uso indiscriminado da força por parte do proprietário da fazenda. A segunda forma,
indireta, mais lenta e sutil, onde os fazendeiros alteravam as normas que regiam as relações
pessoais e de trabalho, afetando diretamente o rendimento familiar e gerando um gradual
esvaziamento da terra, foi a mais comum. Para a autora “a maior parte não pressionou
diretamente a saída do colono da fazenda, mas criou condições favoráveis a que este ator
invertesse ideologicamente as forças vigentes no desdobramento do processo e se sentisse
optando pela saída da fazenda. ”119. E o esforço de manter os laços familiares e
comunitários, fez com que “...os que haviam permanecido enfrentando as condições
adversas de trabalho, a migrar para reproduzir as relações familiares. O processo de
migração foi tão intenso que as famílias que ficaram se sentiam isoladas e estranhas, num
mundo outrora tão familiar e íntimo. ” 120
No caso analisado, Otacílio não guarda uma “memória de conflito”, nem mesmo afirma
que sua família residia nos limites de alguma fazenda. Contudo, o isolamento em que eles
viviam, já fruto de algumas décadas de migração da população rural de Cabo Frio, parece
ser algo marcante em suas palavras:

“Era uma casa aqui, outra casa mais ou menos lá na Praça da Bandeira,
outra na Praça Saens Peña, era um tanto longe, se gritasse não escutava […]
Principalmente nos meses de frio, agora março, abril essa época é horrível lá. Não
podia nem sair de casa pra ir no centro da cidade”. 121

Como já foi pontuado, a vida camponesa se constrói através de uma rede de famílias
em uma localidade, que, quando começa a esvaziar acaba por tornar muito difícil a vida
daqueles que permanecem. Ainda que, em grande medida “invisível” no plano das relações
cotidianas, não sendo perceptível no plano das experiências vividas, a família de Otacílio

117
Id.
118
NEVES, Delma Pessanha. Os trabalhadores tangidos pelo gado. Revista Tempo- UFF. Niterói, 1999.
119
NEVES...Op. Cit. P. 63.
120
Id. P. 65
121
DUARTE, Otacilio... Op. Cit.
71
sentia os pesados efeitos da diminuição populacional na região. O fantasma da fome,
apontado como fator decisivo para a migração para outro local em busca de melhores
condições de vida, era a ponta mais evidente de um processo muito mais amplo de décadas
de cerceamento da estrutura social camponesa – em muitos casos um campesinato negro 122
- por parte dos grandes proprietários de terra.
Tal processo contou com o incentivo financeiro e legal do Estado. Podemos considerar
que a aumento dos ataques dos latifundiários às terras dos antigos colonos e posseiros dessa
região, muitos ex-cativos ou descendentes, acabou por forçar a migração de muitas
famílias, minando relações de troca e solidariedade, jogando os remanescentes no
isolamento e tornando muito difícil a permanência. Rompe-se o ciclo de reprodução
familiar baseada em sua manutenção na terra, uma vez, no caso de nosso entrevistado, a
pequena lavoura e a pesca ocasional já não davam conta de manter a subsistência de todos
os membros da família.
A questão da expulsão da terra e dos conflitos fundiários, sobretudo, a partir da década
de 1930, não foi uma exclusividade da zona rural de Cabo Frio, mas uma realidade
complicada vivenciada por populações rurais em boa parte do interior dos estados do
Sudeste. Neves afirma, que a crescente expansão territorial dos latifúndios, em boa parte
do norte fluminense e Vale do Paraíba, se caracteriza, especialmente, pela substituição
sistemática da agricultura do café com incentivo governamental pela criação de gados (que
notadamente demanda muito menos mão de obra que a produção do café). 123 Dados do
censo agrícola de 1940 apontam que já há no município Cabo Frio uma forte concentração
fundiária, principalmente, com relação à pecuária.124
Esse avanço do gado foi problemático para todos os camponeses do Sudeste, mas em
particular para os trabalhadores rurais negros, ex-escravos e seus descendentes, dado sua
situação de maior vulnerabilidade. Como já vimos acima esse grupo social enfrentou
dificuldades para regularizar as terras que ocupava, sendo alvo de fazendeiros,
especuladores e grileiros. Assim como também não contou com leis e medidas protetivas
para permanecerem e prosperarem na terra por parte do governo. Algo que os imigrantes

122
Segundo Muller “campesinato negro” pode ser definido como sendo uma experiência vivida no campo por
agentes sociais específicos, no caso os negros no período pré e pós-abolicionista, contextualizados dentro de
um processo histórico. MULLER, Cintia. Ser camponês, ser “remanescente de quilombos” v.7 n 1,2, 2005.
123
NEVES...Op. Cit.
124
Se considerarmos que em Cabo Frio, segundo os dados do censo agrícola de 1950 do IBGE, as grandes
propriedades de produção representam 80,81% do total de área ocupada por propriedades no município e
destas, 68,9% são latifúndios pecuaristas. IBGE Censo agrícola, 1950 P. 157
72
europeus - a despeito de todas as dificuldades e privações passadas nessas terras –
possuíam, ao menos na legislação.125
Sendo assim, o Estado brasileiro, que em fins do XIX e nas décadas seguintes esteve
profundamente comprometido com o projeto de branqueamento da população brasileira,
ofereceu aos imigrantes europeus apoio em infraestrutura e subsídios, além da facilitação à
aquisição de propriedade126. Podemos exemplificar com a pesquisa de Carvalho127, que ao
analisar famílias de imigrantes italianos no Noroeste Fluminense na primeira metade do
século XX, observou que boa delas conseguiu ascender da condição de colono para
“sitiante” (pequeno proprietário) através da compra de terras com base em algum capital
inicial e na solidariedade entre as famílias. Alguns, inclusive prosperaram com o cultivo do
café.
Com relação aos fluxos migratórios, houve uma heterogeneidade de trajetórias e
possibilidades que se apresentavam aos migrantes. Como aponta Neves (1999), muitas das
famílias rurais que se deslocaram nas primeiras décadas do século passado, não tinham a
intenção de ir para núcleos urbanos. As regiões mais visadas pelos migrantes do interior
fluminense eram as áreas de produção da citricultura, principalmente em Nova Iguaçu, na
baixada fluminense, mas também São Gonçalo e Itaboraí (que atendiam ao crescente
mercado consumidor da capital) justamente por constituir uma esperança de continuidade
de um modo de vida ligado a terra, com alguma autonomia. Além disso, essa autora
também observa esse movimento para a zona oeste do distrito federal, o chamado sertão
carioca, área rural onde ocorreram diversos conflitos de terra entre as décadas de 1930 e
1960 entre camponeses, grileiros e companhias loteadoras.
Costa128 a partir de extensa pesquisa documental observa que há uma profunda relação
entre a ocupação de regiões de Nova Iguaçu nas primeiras décadas do século XX e as
migrações de famílias negras descendentes de ex-escravos provenientes de áreas cafeeiras
do Vale do Paraíba. Ele observa que muitas das pessoas que migraram dessa região

125
SEYFERTH, Giralda. Colonização, imigração e questão racial no Brasil. Revista USP. N° 53, 2002. P
117-149;
126
Esse compromisso do governo brasileiro com o imigrante europeu pode ser observado em trecho do
referido decreto: (...) Considerando que a protecção dada aos immigrantes e as medidas que assegurarem a
sua prompta e conveniente collocação concorrem efficazmente para interessal-os na prosperidade dos
estabelecimentos em que forem localisados(...) faz-se conveniente a concessão de favores que animem a
iniciativa particular e auxiliem o desenvolvimento das propriedades agricolas, facilitando-lhes a acquisição de
braços. Decreto nº 528, de 28 de Junho de 1890.
127
CARVALHO, Rosane Aparecida Bertholazzi de. Os italianos no noroeste fluminense: Estratégias
familiares e mobilidade social. 1897-1950. Tese de Doutorado, UFF, 2009.
128
Costa, Carlos...Op. Cit.
73
somente o fizeram a partir da década de 1920, quando a desvalorização do café abriu
caminho que para os fazendeiros locais investissem em gado, afetando profundamente a
condição de vida dessas famílias. Decididos a continuar trabalhando na agricultura,
aproveitaram a expansão do plantio de laranja na baixada fluminense, sobretudo em Nova
Iguaçu. Nesse sentido, o autor demonstra que muitos deles não foram para as regiões
centrais ou favelas, mas sim para a periferia do Rio, ainda em transição entre o rural e
urbano. O autor critica ainda uma visão economicista que entende as migrações negras do
pós-abolição apenas pela perspectiva “negativa” ou de “perda material” para essas
populações, quando foram, em muitos casos – como o de Otacílio ou Maria - estratégias de
sobrevivência e conquista de melhores condições de vida.
Logo, não podemos adotar uma análise superficial do processo de crescimento das
favelas através da simples relação fatalista entre “abolição- migração para a capital –
surgimento das favelas”. As favelas não necessariamente são resultado inevitável das
migrações do campo, mas guardam com elas profunda ligação histórica. Devemos
considerar que os caminhos trilhados pelos migrantes foram diversos, de acordo com
escolhas dentro de condições sociais vivenciadas por cada um. Entretanto, é inegável que a
expansão demográfica da capital do Brasil, assim como a expansão da sua malha urbana e
da população favelada nas décadas de 1930 e 1940 tem relação com a impossibilidade de
famílias rurais de diversas regiões - que até então haviam se mantido no campo -
continuarem vivendo da terra.
Como vimos, nem todos os migrantes do meio rural buscaram os centros urbanos para
viver, mas boa parte deles acabou por se deslocar para o então Distrito Federal, que
vivenciava grande expansão da indústria, da construção civil e do comércio, tornando-se,
portanto, um centro catalisador de oportunidades de emprego. Ainda assim a instabilidade e
a insegurança - traduzidos na dificuldade de acesso à propriedade da terra, à serviços
básicos e a possibilidade de expulsão - continuaram a assombrar, no meio urbano, boa parte
da população negra e pobre. Muitos deles se estabeleceram em áreas informais, nas
margens de espaços de interesse imediato do mercado imobiliário. Ou seja, nos subúrbios
da cidade, nas favelas que experimentavam grande expansão, ou como já falamos, em áreas
ainda rurais do distrito federal. Muitas dessas localidades se tornariam também favelas com
a expansão da malha urbana.129

129
CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado” no Rio de Janeiro.
Bertrand Brasil, 2005
74
Como observa Martins, esse processo está inserido na imposição do modelo de
desenvolvimento adotado no Brasil pós 1930 para o campo e a cidade. Modelo que foi
sustentado na concentração fundiária e de renda, na urbanização descontrolada. Essa
urbanização ao longo das décadas acabou gerar certas consequências negativas:
“Desemprego, subemprego, falta de oportunidades de trabalho, excedentes populacionais
crescentes, pobreza associada à competição pelas oportunidades de emprego mais raras ou
cada vez piores, expectativas de consumo crescentes. ”130

2.3 CONSTRUIR E SE RECONSTRUIR NA CIDADE GRANDE: A MUDANÇA PARA


A CAPITAL

Em 1945, Otacílio Duarte tinha 16 anos. Com a chegada da juventude, nosso


entrevistado precisava encontrar alternativas de sobrevivência à fome e à miséria que
assolava sua família. A perpetuação das próximas gerações em Guriri, Cabo Frio, havia se
tornado insustentável e a família precisou se separar. Mantendo uma estratégia camponesa
de sobrevivência nas grandes cidades através da manutenção de laços familiares, nosso
entrevistado foi levado para o Rio de Janeiro por seu irmão mais velho, Silas Duarte. Ele já
havia se mudado para a capital pouco antes, onde conseguira emprego e moradia. Chegou
ao posto gerente de um pequeno armazém e, então, rapidamente procurou buscar seu irmão
para trabalhar no mesmo local. O local onde foram morar não era distante das fábricas que,
apesar de estarem sofrendo um processo de deslocamento para os subúrbios da cidade,
ainda marcavam forte presença na região industrial do Caju, São Cristóvão e na grande
Tijuca. A proposta, naquele contexto parecia irrecusável, como afirma Otacílio:

“Então com 15 anos, o meu irmão trabalhava aqui no Rio. Não tem ali um
comércio na esquina da Rua do Bispo com a Aureliano Portugal [no Rio
Comprido]? Meu irmão era gerente desse armazém. Era de um português
chamado João... João Serafim. Meu irmão trabalhava ali, de gerente nesse
armazém, então ele me trouxe para trabalhar de caixeiro entregador, que
entregava as compras na rua né? Aí fazia aquelas casas todas, aqueles armazéns
ali e mais longe eu entreguei (...)e meu irmão comprou um barracão por cima da
caixa d'água ali...aí meu irmão me trouxe para morar ali (...) eu vim por causa da
fome! E onde existe comida pra quem não tem comida, é o melhor lugar. Cheguei
aqui não faltou mais nada. Trabalhava no meio da comida, no armazém. Aí eu
vim morar aqui com o meu irmão que se casou”.131

130
MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo. Rio de Janeiro. Ed. Vozes: 2003. P. 140
131
DUARTE, Otacílio...Op. Cit.
75
Mais ou menos naquela época, em 1943, Maria, ainda criança nem sequer suspeitava,
mas estava prestes a ser levada para a grande metrópole carioca. Ela e seus parentes
estavam passando por um momento complicado em Campo Novo. Com problemas no
coração, seu pai adoecera, muito provavelmente em decorrência dos anos de trabalho duro
nas salinas. Com isso, a base do sustento familiar estava seriamente comprometida. O tênue
equilíbrio daquela família estava a ponto de se partir:

Depois ele ficou trabalhando na salina muito tempo e...ele ficou muito
doente do coração. E com aquela doença dele, ele tinha muito medo de morrer e
me deixar, porque ele me criou desde 7 meses sozinho, né? Não é que minha mãe
tivesse morrido, não. A minha mãe tinha... deixado a gente porque não sei, mas
ele criou a gente.[...]Então quando meu pai ficou muito doente mesmo, ele ficou
com medo de eu ficar, que eu era a única menor e ele tinha muito carinho
comigo, ele conhecia essa família, que ia pra lá de vez em quando, que tava no
carro, me ofereceu uma boneca, ele parece que conversou com ela pra quando ela
me ofereceu uma boneca, por causa da boneca aí eu vim (risos). Ela morava no
Méier lá na rua João Felipe. [...] É, eu vim com 11 anos pra ajudar a tomar conta
da filha dela, como babá.

O trecho acima nos mostra uma situação limite. Percebendo que poderia morrer a
qualquer momento e deixar suas filhas totalmente desamparadas, principalmente Maria – a
mais nova - ao qual guardava grande apego, o pai de nossa entrevistada buscou uma
estratégia para a sobrevivência de sua filha. Ainda que longe de ideal, a solução encontrada
por ele foi uma negociação e a “doação” da criança para uma família abastada do bairro do
Méier no Rio de Janeiro. Lá ela seria, como afirmou, babá de uma menina que tinha quase a
sua idade:

Então só andava com elas, andava de carro, não é? E brincava ali na praça,
na rua. Então não tive problema porque nem minha roupa eu lavava. Porque a
empregada da casa... a casa era assim: tinha a cozinheira e tinha a lavadeira. A
lavadeira ia segunda, quarta e sexta, então nem minha roupa eu lavava. Meu
trabalho era cuidar da menina. Eu tinha que estar com a menina e o meu serviço
naquela casa era varrer todo dia o quintal, que era uma casa muito grande. Então
tinha uma casa no meio e aquele quintal à volta. O meu serviço só todo dia era
isso varrer aquilo tudinho até a calçada e tirar o lixo. Era isso o meu serviço.
Depois tomar meu banho e ficar com a menina. A menina tomava banho, ia pra
escola, quando ela chegava eu tinha que ficar com ela. Então essa mulher foi
quem me ensinou muita coisa que hoje sei. Olha, me ensinou a bordar, me
ensinou a fazer tricô. Todas essas coisas ela me ensinou. [...] Eu fui felizarda, fui
abençoada. Porque eu fui dada com 11 anos. Fui morar lá no Méier pra tomar
conta de uma menina que tinha praticamente a minha idade.

A transferência para a casa de uma outra família, no Rio de Janeiro pode ter
representado, para Maria, um destino muito mais tranquilo do que aquele que
possivelmente ela vivenciaria caso continuasse em Cabo Frio com seu pai debilitado.
Provavelmente, por ter essa consciência que ela atualmente se sente privilegiada e
76
agradecida. De qualquer forma, a família que a trouxe no carro não estava prestando uma
“caridade”, muito menos uma “adoção”, na forma tal qual a entendemos atualmente. Como
afirma Soares, em pesquisa sobre o trabalho infantil no pós-abolição, essa entrega para um
tutor ou patrão não era incomum no início do século XX:

Com o fim legal do trabalho escravo, emergem no Estado republicano


múltiplos significados para diferentes agentes sociais, principalmente no que se
refere à liberdade e aos possíveis direitos concedidos por ela. A negociação e o
conflito estavam cotidianamente presentes na maneira com que esses agentes se
organizavam como estratégias de vida. Dentro desse novo cenário se configurava
a infância, com a exploração em diversos âmbitos: nas fábricas, nas distintas
casas de família, no trabalho informal, no comércio, entre outras atividades. [...]A
falta de recursos para educar e alimentar os filhos e o medo de vê-los
desencaminhados também foram motivos que levavam pais e mães a entregarem
seus filhos a um tutor ou patrão, retirando-os do convívio em família. Nesse
contexto, a configuração da pobreza e da miséria levava a inserção dos pequenos
e pequenas no mundo do trabalho.132

Na verdade, a “doação” de Maria para se tornar uma trabalhadora doméstica na casa de


uma família abastada está atrelada a continuidade de signos – nos que diz respeito às
desiguais relações raciais, de classe, de hierarquia do trabalho - que remetem à escravidão,
mesmo após mais de cinquenta anos da abolição.

****

Enquanto a pequena Maria ainda vivia e trabalhava no Méier, Otacílio chegava ao então
chamado Morro do Turano. Apesar de muito próxima de áreas valorizadas, com maiores
ofertas de emprego como Centro e Tijuca, a localidade – a exceção da maravilhosa vista da
cidade- não era das mais privilegiadas. Seu irmão Silas alugou um barracão no alto do
morro por vezes ainda chamado de Chácara do Vintém133, onde, nesses anos, crescia mais
uma favela. A vida para eles ainda não seria fácil nesse novo lugar.
Em uma metrópole que passava por um amplo processo de crescimento e também
de aprofundamento das desigualdades sociais, alguns caminhos se apresentavam para as
famílias negras e pobres. Morar nos subúrbios mais afastados era uma possibilidade
acessível, mas constituía um grande desafio. Longe das áreas mais valorizadas seus
moradores sofriam com a carestia ou mesmo falta de transportes, a invisibilidade, menos

132
Soares, Aline M. Precisa-se de um pequeno: O trabalho infantil no pós-abolição no Rio de Janeiro 1888-
1927. Dissertação de Mestrado em História UNIRIO, 2017. P. 15
133
Jornal “A Tribuna Popular” de 12/09/1945. Pg. 5.

77
alternativas de emprego e uma infraestrutura extremamente precária. As favelas mais
centrais, por outro lado se consolidaram próximas dos espaços privilegiados da capital,
onde circulava muito mais dinheiro e onde moravam camadas médias e a elite carioca.
Ainda que sofressem maior pressão do mercado imobiliário, por ocuparem as “bordas” de
bairros valorizados, a moradia nessas favelas garantia aos seus moradores uma oferta maior
de empregos, além de uma brecha (estreita, é verdade) para acessar serviços públicos e uma
infraestrutura de maior qualidade presentes nesses bairros. A partir disso, a construção de
barracos nesses locais- mesmo pagando aluguel em alguns casos- trouxe algumas vantagens
para os trabalhadores, sendo uma das soluções, ainda que longe da ideal, para se morar e
viver.
Imagem 4: Alto do Morro da Liberdade em 1946

Fonte: Acervo de França antiguidades e objetos de arte. Autor desconhecido (1946 )

A partir da imagem 1, registrada um ano após Otacílio chegar à capital, podemos


observar que o acesso era extremamente precário, através de caminhos íngremes e
tortuosos. Podemos notar ainda uma pequena plantação de cana-de-açúcar. Nesse
momento, as casas ainda são esparsas, formando um núcleo inicial da favela, no alto da
pedreira, atualmente conhecido como a “Raia”. Porém, podemos notar outras construções
bem mais acima, na localidade hoje chamada de “Pedacinho do Céu” em referência a
78
grande altitude dessa área. As casas ainda são bem esparsas, construídas pelos próprios
moradores, geralmente de estuque ou de tábuas. Havia o perigo de deslizamento de terra
ou enormes pedras na época de chuvas fortes. Serviços de saneamento básico, luz e água
encanada estavam ainda muito longe de se tornar uma realidade. Mas, por outro lado, a
fome e a miséria, presença constante em Cabo Frio, nunca mais assombrariam aquela
família. Apesar da profunda desigualdade e segregação vivenciada pelos favelados na
metrópole carioca, a enorme circulação monetária e de alimentos, ao menos oferecia
maiores perspectivas de sobrevivência do que no campo.
Nesse ponto, é importante destacar que, nas falas de nossos entrevistados, temos
forte referências às dificuldades cotidianas. Em todos os casos existe alguma referência à
pobreza material. No entanto, a profundidade desses depoimentos expõe histórias
extremamente ricas. A saga histórica destas pessoas está na busca pela satisfação de
necessidades e a realização de desejos, dentro de certas possibilidades em determinado um
contexto social. A forma como esses indivíduos buscaram superar essas dificuldades
cotidianas tem a ver com suas trajetórias históricas, culturais, com sua relação com os
outros moradores e com o lugar. Otacílio nos conta um pouco dos problemas enfrentados
pelos moradores diariamente:

“A gente ia e fazia barraco de estuque, não tinha laje, era telha, folha de
zinco, aliás. Folha de zinco, quando chovia e dava trovoada, quando acabava a
chuva você só ouvia martelo batendo. Todo mundo pregando o zinco, o vento
arrancava tudo. Não é igual agora não, antigamente... mas a gente vivia bem
(empolgação na voz), não tinha luz, não tinha água, a água era lá, lá de cima do
morro no seu Santos, lá no seu Carniceiro do outro lado tinha uma nascente. [...].
Nós não tinha televisão, não tinha um rádio. Ligava o rádio, o rádio levava uma
hora pra poder falar, rabo quente. Era água lá em cima, sabe? Cozinhar era a
lenha. Já pensou cozinhar a lenha dentro de casa?! Como é que fica a casa? A
casa das mulheres.... Passava a roupa no sabão, sabão em pó, aquele sabão em
pedra, aquele branco? Os dedos cheios de meiros né, os dedos inchados, todo
mundo lavava roupa pra fora, pras madames ali em baixo. O ferro a carvão, sabe?
E saía pisando na lama daqui na rua. Não tinha nada, não tinha colégio, não tinha
igreja, não tinha nada! ” 134

Por sua vez, Maria precisou subir os caminhos tortuosos da favela para ter seu próprio
lar no Rio de Janeiro. Foi quando ela se casou com um rapaz que também era do interior, e
relata os sacrifícios de viver no seu “barraquinho”:

“Quando fiz 20 anos, casei com meu esposo. Alá a foto dele lá (risos), casei
com um homem que veio do céu pra mim, porque ô esposo, ó homem! Hoje em

134
DUARTE, Otacílio…Op. Cit
79
dia é difícil encontrar um homem como esse por aí. Eu casei e vim morar aqui, ó!
Entrei aqui dia 5 de março 1953. Nesta rua, que não era rua, era morro, era
buraco (risos) e nessa casa, que também não era casa era estuque de barro (risos).
Era eu. [...] Meu marido também veio lá da terra dele servir o exército e foi
morar no Catete porque o tio dele era porteiro do prédio aonde a gente tava
trabalhando! (risos) Ele era de Santana do Japuíba. Perto de Cachoeiras de
Macacu. É, ele veio servir o exército e ficar na casa do tio, né. E foi aí
que...(risos). [...] Mas não era essa casa, não. Era barraquinho, né? Era
barraquinho de tauba. De tauba com telha de zinco, pedaços. Tinha quintal.
Porque onde é o quarto da minha filha e da outra, isso tudo era chão. Tudo era
quintal. Ali também ó, onde tá minha cozinha, ali pra trás, aquilo tudo era chão,
só da porta pra cá que era um quartinho e uma salinha. O de lá também era um
quartinho e uma salinha. E tinha um banheiro que fizeram aqui no quintal
né?(risos)Pena que naquele tempo a gente não podia tirar retrato, né? Pra guardar
o que era né, menino?135
Por outro lado, seu relato expõe a necessidade de muito trabalho e a luta constante
em meio a uma difícil trajetória que vai da falta de acesso a serviços de saneamento básico
a inúmeras perdas familiares:

“A dificuldade era muito grande. Não tinha estrada, não tinha rua. Era chão
mesmo, a gente mesmo que fazia o trilho pra caminhar. Água era lá em baixo,
qual é o nome dele? Que vendia uma... a água, né? [...] Então, as ruas, os
caminhos, pra fazer as valas era assim: cada um cavava de onde você morava,
metia a enxada, cavava e fazia até no outro, o outro fazia, e foi fazendo vala
assim pelo caminho. Pra poder, descer a água, descer as coisas[o esgoto] . Então,
tudo que fazia aqui, lavava, juntava em lata de 20 pra jogar lá! Não tinha onde
jogar! Então o que fizemos? Cada um foi fazendo assim: fazia vala no seu pedaço
e fomos fazendo vala caminho afora, pra chegar lá no rio.”

“Tive a primeira filha! Esse presente aí que Deus me deu. Foi um presente
que veio já com deficiência, né? E essa deficiência levou ela a não andar, não
falar. Veio andar com 7 anos nem falar e... os médicos diziam que não ia criar e ta
aí. Depois dela tive a outra, a Luiza, né? Quando ela fez 1 ano e 5 meses, nasceu
a outra. Quando ela tava com 1 ano e 3 meses, nasceu outro, o Alexandre, né? E
assim foi indo...depois nasceu Vera Lucia, ela morreu. Morreu com 2 anos, ia
fazer 2 anos e depois nasceu o Álvaro, né? Depois do Álvaro ainda tive Bárbara
Lúcia, que nasceu e morreu. Nasceu de tempo, depois morreu. Depois, em 1965
nasceu o Alberto. E aí foi a minha vida de luta, de trabalho...Trabalhei muito,
trabalho muito, continuo trabalhando. Meu marido quando faleceu eu fiquei com
mais duas netas”136

Acerca do Morro do Salgueiro, Waldir relata uma realidade bem semelhante:

“O morro do Salgueiro? Vamos citar...os anos 30. Não havia luzes elétricas,
entendeu? Não havia calçamento, e as casas não eram de tijolos, entendeu? Era
muito raríssima uma casa de tijolo. Eram assim muito precárias, entendeu, as
moradias no Salgueiro. Eram feitas de estuque, barro, madeira, pau e jogava o
estuque ali dentro ali e fazia o barraco. E houve também barracos só de madeira.
É de madeira naquela época. [...] Água poucos, tinha que pegar lata d’água. Luz

135
SOUZA, Maria V.... Op. cit.
136
Id.
80
não tinha mesmo. Luz era de lampião. E de querosene também e água, aqui não
tinha água. Tinha que apanhar a água em um lugar aqui chamado trapicheiros. Ia
buscar água lá, que tinha um rio. Então as pessoas apanhavam lá. Ainda não
havia água encanada, pegava da nascente. E luz não tinha. O morro era assim, até
uma situação bem precária. Hoje não, tá tudo mudado, evoluiu muito. Hoje as
pessoas tem carro, o carro sobe, desce. É o progresso né?” 137

Na fala de nossos entrevistados, que fazem referência a um momento passado, o


“morro de antigamente”, é recorrente a questão da precariedade e da falta de infraestrutura
sobre a qual se construiu – coletivamente – aquele espaço. Em grande medida, durante a
primeira metade do século XX, o Estado encarou as favelas cariocas a partir de uma
tolerância controlada e provisória. Assim, o poder público não só destinou pouquíssimos
recursos para o oferecimento de serviços básicos nas favelas – em outros espaços
majoritariamente negros e pobres – como também por muitas vezes proibiu qualquer
melhoria nas casas das favelas que pudessem levantar base para uma permanência mais
sólida por parte dos moradores.
Uma parte considerável da favela foi construída de maneira autônoma e gradativa
pelos seus habitantes, na busca de melhorar suas condições básicas de moradia, muitas
vezes na forma de mutirões. De qualquer forma, nos discursos dos entrevistados a luta dos
moradores das favelas não estava restrita a luta política ou o confronto mais direto contra as
tentativas de despejo. A luta, na maioria das vezes, estava ligada ao esforço para superar
dificuldades cotidianas relacionadas às questões mais básicas. Não é preciso tanta
imaginação para perceber a luta do dia-a-dia necessária para viver em casas simples, muito
expostas a ação severa das forças naturais (vendavais, temporais, enxurradas, deslizamentos
de terra); transitando por caminhos tortuosos, íngremes e escuros para chegar em casa
(dependendo da localidade na Liberdade, às vezes a mais de cem metros de altitude);
buscando toda a água necessária em bicas e nascentes, por vezes distantes; de viver sem luz
elétrica, sem qualquer sistema de esgoto ou coleta de lixo. Nesse sentido, na memória de
nossos “moradores fundadores”, a luta se converte em experiência diária e a superação das
dificuldades uma sina em suas vidas. Não podemos deixar de refletir que, ao compartilhar
essas dificuldades e experiências do dia a dia, em um mesmo espaço, os moradores estavam
construindo estreitos laços identitárias entre si e com o lugar, além do senso de
comunidade.

137
BARBOSA, Waldir... Op. Cit.
81
A mudança para uma metrópole que chegaria a mais de 2 milhões de habitantes em
1950 com certeza foi um momento impactante na vida daqueles jovens do campo que mal
conheciam o centro de Cabo Frio. Nessa época, a capital do Brasil atravessava forte crise
habitacional, que vinha se agravando desde a virada do século. A especulação imobiliária
aumentava a cada dia, gerando grande quantidade de imóveis vazios. 138 Por outro lado, a
chegada cada vez maior de migrantes do meio rural, impulsionava o crescimento
populacional e aumentava consideravelmente a pressão por terra e moradia.139 Finalmente,
como observou Abreu a execução de planos urbanísticos redundou na aniquilação – sem o
oferecimento de nenhuma indenização ou alternativa de moradia - da maior parte dos
cortiços e habitações populares da região central estreitou ainda mais as opções de moradia
dos trabalhadores pobres. Para eles, acessar as opções de moradias formais era quase
impossível. Sem alternativas muitas dessas famílias, majoritariamente negras recorreram à
construção por conta própria em áreas já favelizadas, em locais então desprezados pelo
mercado imobiliário, como morros íngremes e alagados. 140
Esses fatores contribuíram para um aumento da população favelada nessa década. Os
anos 1920 e 1930 viram surgir núcleos favelados nas mais diversas áreas da cidade.
Contudo, foi na década posterior que muitas dessas favelas mais antigas se consolidaram,
adensaram e logo projetaram maior visibilidade. Como afirma Silva entre 1940 e 1950 a
população das favelas cresceu 99,29%, enquanto o incremento populacional do estado foi
de 39,11%. Algumas favelas atingiram uma expansão realmente impressionante, como o
morro da Coroa, em Santa Teresa, que cresceu em 10 anos mais de 500%.141
Com relação à origem, o censo de favelas de 1950 demonstrava que a maioria dos
moradores das favelas não eram naturais da capital. Apenas 38,63% nasceram na cidade. O
restante era composto de migrantes, sobretudos vindos de estados vizinhos do Sudeste:
Espírito Santo (11,5%), Minas Gerais (26,9%) e estado do Rio de Janeiro (44,8%). Nesse

138
SILVA, Maria Laís Pereira da Silva. Favelas Cariocas: 1930-1964. Rio de Janeiro, Contraponto, 2005. P.
51-72
139
Segundo dados do IBGE acerca da evolução demográfica do Rio de Janeiro, entre 1920 e 1940 a cidade
teve um aumento populacional de 52,4%, o que representa um acréscimo de mais de 600 mil pessoas. Tabela
1.6 - População nos Censos Demográficos, segundo os municípios das capitais - 1872/2010. Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010. Disponível em
https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=6&uf=00 Consultado em 14 de abril de 2020.
140
ABREU, Maurício de Almeida. Da habitação ao hábitat...Op. Cit.
141
SILVA, Maria Laís Pereira da Silva. Favelas Cariocas...P. 93.
82
primeiro momento as favelas ainda recebiam muito poucos migrantes originários do
Nordeste, uma realidade que se alteraria profundamente a partir das décadas seguintes. 142
Como falamos anteriormente, nesse período ocorre no sudeste um deslocamento
progressivo de trabalhadores rurais de antigas regiões escravistas, a partir do processo de
modernização da cultura da cana (no caso de Campos dos Goytacazes) e do avanço do
latifúndio do gado sobre regiões produtoras de café (Vale do Paraíba mineiro e fluminense;
Norte Fluminense e Sul capixaba). Waldir Barbosa nos confirma que boa parte dos
moradores do Salgueiro são originários de regiões rurais do Rio de Janeiro e estados
vizinhos. Com relação ao Morro da Liberdade Otacílio nos fala algo semelhante:

“[os moradores vinham do] Estado do Rio, Espírito Santo, Campos, muito
campista. Tinha um trem que ia pra Campos, à noite, viajava a noite pra lá. Muita
gente de Campos. Não era muita gente, mais ou menos porque os barracos eram
distantes uns dos outros. Mineiros vinham mais para o Salgueiro, de Minas.
Friburgo também, pelo estado do Rio, afora (…) Da roça, tudo gente da roça. De
São Paulo não vinha, como não vem até hoje, sabe, de outros lugares do Brasil
nunca vieram. Só campista, capixaba, pessoal daquela zona rural de Cabo Frio,
então era assim...começamos assim. “143

Ainda que houvesse desde a abolição um contínuo fluxo dessas regiões para a
capital, boa parte dessa população conseguiu se manter no campo por algumas gerações.
Contudo, a partir dos anos 30, essa dinâmica se rompe a expulsão do campo assume
proporções bem maiores. Devemos considerar que não foi criada praticamente nenhuma
política pública de incentivo e proteção a esses trabalhadores rurais de forma que eles
pudessem se manter vivendo dignamente no campo. Por outro lado, as medidas sociais
tomadas pelos poderes públicos para receber adequadamente essas famílias migrantes na
capital foram ínfimas, assim como a política de habitações populares se revelou muito
aquém do necessário. Todos esses fatores refletiram na grave crise habitacional que se
espalhou pela cidade, sobretudo na década de 1940, assim como uma expansão vertiginosa
das favelas, dos processos de despejo144 e conflitos fundiários na mesma época.

142
GUIMARÃES, Alberto Passos. As favelas do Distrito Federal...Op. Cit P. 142.
143
DUARTE, Otacilio. Op. Cit.
144
Em informação divulgada na Revista da Semana, foi divulgado que, somente no ano de 1947, foram
registradas nas 14 varas cíveis 4.789 ações de despejo. Revista da Semana, Ed. 23. Abril de 1948. P.9
83
2.4 – OS BRAÇOS QUE MOVEM A CIDADE: A RELAÇÃO ENTRE INDÚSTRIA E
OS TRABALHADORES DAS FAVELAS

Durante a década de 1940, há um enorme aumento do parque industrial no eixo Rio


– São Paulo, principalmente durante o período da 2ª Guerra Mundial. A malha urbana se
expande velozmente com obras de infraestrutura e moradia. Isso ocasionou uma grande
demanda de mão de obra barata na capital do país. Ao pesquisar as favelas cariocas entre as
décadas de 1930 e 1960, Silva elabora uma interessante análise dessa relação, apontando
que a favela, a partir dos anos 30 se consolida como habitação de boa parte dos
trabalhadores cariocas. A expansão imobiliária e fabril da malha urbana, portanto, esteve
intimamente relacionada à expansão de diversas favelas no Rio de Janeiro: A barreira do
Vasco, o Morro da Formiga, o Morro do Borel.145
O morro de Mangueira, de ocupação muito antiga, de fins do século XIX começou a
ganhar vulto populacional com a instalação de fábricas em São Cristóvão; o morro do
Andaraí começou a ser mais intensamente ocupado como “extensão” das vilas operárias das
fábricas, que não comportavam a todos os trabalhadores, os quais não tinham condições de
pagar aluguéis no bairro. Seguindo ainda a trilha aberta por essa autora, podemos partir
para as estatísticas: segundo pesquisa do censo de 1949 da prefeitura do Distrito Federal,
nada menos que 50,05% dos trabalhadores da indústria da cidade residiam em favelas, com
destaque a região ocupada por Jacaré e Manguinhos.146 E boa parte dos favelados que
trabalhavam formalmente o faziam no setor industrial. Em entrevista presente na obra, o
morador do Morro do Andaraí, Darci Beira Silvério relembra: “Eu trabalhei na América
Fabril por 38 anos, coisa que ninguém mais consegue hoje em dia. Naquela época, se a
gente saísse do emprego, no dia seguinte já estava empregado. Havia muita fábrica aqui
no Andaraí e nós não ficávamos desempregados. ” Outro depoimento, de um antigo
operário, ex-morador do Morro da Formiga (que não tem o nome revelado) nos conta que:
“Ali na Souza Cruz trabalhava a família toda praticamente[…] veio a família toda porque
ali era bom, era perto […] Não só a Formiga, tinha do Salgueiro[...]do Turano [...]. ”147
Waldir Barbosa nos conta que seu primeiro emprego foi em uma fábrica de vidros, em um
momento de plena expansão do setor industrial carioca, com muita oferta de postos de

145
SILVA, Maria Lais Pereira da Silva. Favelas Cariocas...Op. Cit.
146
Id.
147
Id. P. 113-114
84
trabalho. Segundo ele, nessa época, a concorrência por emprego era muito menor do que
atualmente:
“Comecei...quando eu comecei, meu primeiro emprego? O primeiro
emprego na fábrica de vidros eu tinha 17 anos, 16 anos. Foi em uma fábrica de
vidro que existia em Vila Isabel. Foi meu batismo de fogo (risos). Tinham muitas
fábricas, de tecido também né? Então eu comecei ali na fábrica de vidros o meu
primeiro emprego, depois eu continuei. Mas estudar eu não pude estudar. [...]
Havia muito emprego. Hoje, hoje as pessoas sai procurando emprego, no meu
tempo, no meu tempo o patrão que ia procurar. Cansei de ver no jornal precisa
disso, precisa daquilo, daquilo. Precisava do empregado. [...]. Quer dizer, a prova
da diferença, lembra da fábrica de vidros que eu falei, que foi meu primeiro
emprego? Sabe quantos dias eu faltei? Consecutivos? 10 dias! Cheguei lá com a
cara mais sínica e não me disseram nada. (Risos) nunca mais esqueci disso.
(risos). Não mandaram embora nada [...]. Vai fazer isso agora! Hoje, rapaz num
barracão um sai hoje amanhã já tem dez pra entrar no lugar dele. É muito mais
difícil, ficou muito mais difícil.” 148

Já o próprio Otacílio, segundo afirma, inicialmente atuou no ramo do comércio, mas


logo mudou para a indústria:
“Nessa época eu já trabalhava ali nos fundos, na pedreira de Mário Costas.
Já tinha saído de lá do armazém e tava na pedreira porque pagava salário de
homem, não tinha salário mínimo. Era quem trabalhava mais [...]. Entrava nós
dois numa firma, se eu tinha mais produção do que ele, eu ganhava mais do que
ele. Não era negócio de salário igual. Era diferente, quem produzisse mais como
trabalhador braçal ganhava mais. Era salário de homem, não era salário mínimo.
”149
Essa pedreira, desativada há décadas, se localiza na encosta do próprio morro em
área arrendada por Turano ao português Mario Costas. 150 Esse tipo de produção era
essencial para a construção civil em expansão costumava empregar os moradores do local.
Esse trecho também é interessante para lembramos que muitos dos operários favelados
trabalhavam através de relações de trabalho informais sem o regimento da CLT. Em alguns
casos, como de Otacílio, o salário baseado na produtividade parecia ser financeiramente
mais vantajoso.
Com relação ao ramo de atuação, o censo do IBGE de 1950 nos mostra um cenário
onde a favela aparece, sobretudo, como um espaço de moradia de trabalhadores mais
pobres. Há uma forte divisão de gênero nas atividades profissionais: no caso dos homens, a

148
BARBOSA. Waldir...Op. cit.
149
DUARTE, Otacílio...Op. cit.
150
Em 1942, Emilio Turano (declarando-se brasileiro) firma um contrato de locação da área da pedreira
do morro com o português Mario Dias Teixeira Costas, para ser explorada por 5 anos por um total de 60
contos de réis. Essa área tinha 350 metros de largura na parte plana e subia morro acima. O curioso é que os
barracões construídos nessa área também são negociados na locação. O italiano também transfere a
responsabilidade de intimações, multas, reclamações e danos na vizinhança pela exploração da pedreira ao
locatário, além de se reservar o direito exclusivo de exploração do saibro desse terreno. A extração de pedras
ocorreu até pelo menos a década de 1970, deixando uma enorme cratera no local. As explosões e a fuligem
expelida causava grandes danos à estrutura da casa dos moradores assim como à sua saúde.
85
atividade com mais trabalhadores era de longe a “indústria de transformação” (que incluía
atividades fabris e a construção civil), normalmente atividades braçais mais pesadas,
historicamente ocupadas, em sua maioria, por homens negros com baixa escolaridade. E
para as mulheres, as “atividades domésticas não remuneradas e atividades escolares
discentes”151. Contudo, chama a atenção o elevado número de pessoas em condição de
prestadores de serviço como atividade principal, aparecendo como o terceiro ramo mais
abrangente. Esse dado demonstra que muitos favelados sobreviviam ou complementavam
sua renda como autônomos, através de biscates. Nesse sentido, eram mantidos fora do
mercado formal de trabalho, sem o amparo institucional de direitos trabalhistas
promulgados poucos anos antes e, portanto, à parte do ideal de trabalhador construído pelo
Estado Novo.
É importante ressaltar que essa absorção da mão-de-obra negra e favelada pelas
fábricas se expandiu nas décadas de 1930 e 1940, embaladas pelo aumento do setor
industrial carioca e os efeitos da promulgação da chamada “lei de 2/3”. 152 Essa lei se insere
em um contexto de clara mudança com relação a política imigratória. Se nos primeiros anos
do século, a vinda de migrantes foi amplamente estimulada e subsidiada pelo Estado,
depois da Primeira Guerra Mundial, essa realidade se altera.
Araújo argumenta que durante toda a primeira república houve, nas capitais do país
principalmente São Paulo, uma preferência entre os empregadores urbanos – sobretudo da
indústria - da adoção de indivíduos brancos, imigrantes ou brasileiros como trabalhadores
assalariados em detrimento dos negros, maioria entre a mão-de-obra nacional, reforçando a
hierarquia social pautada no atributo étnico-racial.153 Muitos argumentos foram construídos
para justificar o incentivo à imigração europeia e a sua preferência sobre o negro no
mercado de trabalho formal nas décadas após a abolição: a insuficiência de mão-de-obra
nacional para atender à expansão capitalista no país, a superioridade técnica e intelectual do
trabalhador branco europeu, e a incapacidade do trabalhador negro de realizar trabalhos

151
Entre os homens, a atividade mais exercida era na indústria de transformação e extrativa - que incluía
atividades fabris construção civil: nada menos que 40%. No caso das mulheres, em torno de 69% exerciam
atividade doméstica não remunerada e atividades escolares discentes, revelando um profundo corte de gênero
entre as atividades laborais. Arquivo r.002.64-77, livro 383, folha 52. Acervo do Arquivo Nacional.
152
Instaurada pelo governo provisório de Vargas ainda em 1930 e incluída na constituição de 1934, ela
definiu que em cada estabelecimento com três ou mais empregados seja mantida uma proporção de 2/3 de
brasileiros para 1/3 de estrangeiros. GERALDO, Endrica. A “lei de cotas” de 1934: controle de estrangeiros
no Brasil. Cad. AEL, v.15, n.27, 2009
153
ARAUJO, Ariella S. A incorporação dos negros no mercado de trabalho: um estudo de 1930 a 1945.
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. UNESP, 2012. Pp. 98-99
86
especializados, inadaptados à disciplina fabril e à vida na cidade, devido à herança próxima
do escravismo.
Todos esses argumentos mostraram-se falaciosos, mas de certa forma, influenciaram
a produção intelectual brasileira acerca da transição do trabalho escravo para formas de
trabalho livre. Araújo é precisa na desconstrução desses argumentos:

“A não implementação de um projeto de recrutamento de mão de obra


nacional em contraposição a importação de imigrantes europeus não se deu por
conta de uma carência de mão de obra, mas sim por questões de um projeto de
substituição étnico-racial da força de trabalho, com vistas ao branqueamento.
Mesmo os argumentos sobre custos e benefícios não condizem com os fatos, pois
seria muito mais vantajoso e barato aproveitar o trabalhador nacional do que
importar mão de obra alienígena.
[...]O mesmo se dá com relação à superioridade técnica ou cultural do imigrante
europeu. A maioria dos imigrantes italianos que adentraram São Paulo eram
provenientes de regiões campesinas em que a vida social e cultural, nas palavras
de Domingues (2004), eram “deploráveis”. Eram povos marcados pela falta de
instrução, se não pelo completo analfabetismo e por métodos de cultivo
rudimentares. [...]
Em relação a esse último ponto, consiste outro mito presente na historiografia: a
da incapacidade dos negros para trabalhos não coercitivos ou altamente
especializados. Ainda é comum esse tipo de argumento sobre a falta de instrução
e, consequentemente, qualificação do trabalhador negro para trabalhos mais
sofisticados. Contudo, desde o período colonial, o negro desempenhara diversas
funções dentro do processo produtivo, do menos ao mais especializado. ”154

Como observa Santos155, após a guerra, os estrangeiros passam a ser vistos como
uma ameaça cultural e política para a integridade da nação. Por outro lado, os trabalhadores
europeus – após grandes greves e o fortalecimento do movimento operário do início do XX
- passam a ser encarados como agitadores, corruptores dos trabalhadores nacionais. Em um
cenário de fortalecimento de ideais nacionalistas, foram impostas diversas medidas pelo
Estado com o intuito de restringir a entrada do estrangeiro em território nacional. E a lei de
2/3, inserida em um programa muito maior de leis sociais implantadas pelo Estado, visou
aliviar as tensões sociais a partir de um equilíbrio maior na inserção do trabalhador
nacional, sobretudo negro, no mercado formal de trabalho.
A partir disso, mesmo que a Lei dos 2/3 não tenha sido promulgada visando atingir
especificamente a população negra, dada a inexistência dessa especificidade em sua
redação, o seu impacto, mesmo que de forma indireta, parece inegável. A lei possibilitou a
expansão da inserção do negro dentro do mercado de trabalho formal, possibilitando um
maior acesso dessa população aos benefícios condizentes com o regime de trabalho com

154
Id.
155
SANTOS. Viviane Teresinha dos. Italianos sob a mira da polícia política: vigilância e repressão no estado
de São Paulo (1924-1945) São Paulo, Humanitas, 2009
87
carteira assinada. Além disso, a instituição do salário mínimo também foi essencial a esse
trabalhador negro, pois possibilitou não só o direito de um piso igual de rendimento, como
a estabilidade de um ordenamento fixo, até então impensável. 156 Entretanto, a incorporação
dessas leis não invalidou os efeitos do racismo nas relações de trabalho, onde o negro,
frequentemente, se inseriu nos empregos formais através das posições mais subordinadas,
sobretudo, enquanto trabalhadores braçais, como vimos nos dados acerca dos trabalhadores
das favelas.
Mesmo assim é interessante trazer à tona as memórias de Waldir acerca das leis
sociais instituídas nessa época, cristalizadas através da figura emblemática de Getúlio
Vargas:

“O Getúlio na minha opinião foi o melhor governo para os pobres.


Entendeu, para os pobres. E tudo que Getúlio fez nenhum deles fizeram.
Primeiramente, as leis trabalhistas. [...]. Você tem direito a férias. Você...Oito
horas de serviço, tudo governo Vargas. Por isso que falou de governo, fui
obrigado a lembra de Vargas, né? Um grande presidente do Brasil. ” 157

Não há como negar a relevância dos feitos no período varguista, como a


regulamentação e implementação do salário mínimo, em 1940, e a Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT) de 1943. No entanto, segundo Pandolfi 158, tais “concessões” não podem
ser meramente vistas como ações paternalistas ou benevolentes do Estado para com seus
cidadãos. Deve-se destacar que a política de previdência social, assim como o conjunto de
direitos sociais e a sindicalização, esteve intimamente atrelada à questão de poder e
autoridade do Estado em relação à sociedade em geral, e ao trabalhador em particular. Esse
“pacote de leis” trabalhistas foi utilizado como instrumento de negociação e de cooptação,
de modo que o Estado foi obrigado a ceder em parte das reivindicações dos movimentos de
trabalhadores, no intuito de estabelecer um apaziguamento social necessário para o
estabelecimento do Estado Novo.

2.5 - O ITALIANO QUER SER “DONO DO MORRO”: EMILIO TURANO E SEUS


CONTROVERSOS NEGÓCIOS

156
Id. P. 113
157
BARBOSA, Waldir...Op.cit.
158
PANDOLFI, Dulce. O Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999.
88
Emílio Antonio Turano, italiano e oficialmente comerciante, era, no período
analisado por essa pesquisa, morador da Rua Barão de Itapagipe, na Tijuca. Para
compreendermos melhor como ele se insere nessas disputas e no conflito do chamado
Morro do Turano nos anos 40, precisamos recuar algumas décadas.
No ano de 1901, após uma longa viagem através do Atlântico a bordo do navio “Las
Palmas” - que partira de Gênova, Itália - chegava ao Rio de Janeiro um jovem sapateiro de
apenas dezoito anos.159 Ele era solteiro e viera sozinho, ao que tudo indica para começar
uma nova vida nessas terras. Contudo, temos indícios de que ele não tenha vindo no escuro
e que possuía parentes no Rio de Janeiro em condições privilegiadas, o que facilitaria
muitas coisas. Uma nota publicada já em 1906 informa que Turano seria testamenteiro,
uma função de confiança, do falecido Giovanni Tucci.160 Outra nota, publicada no “Jornal
do Brasil”, em 1909, dava conta do comparecimento de Turano no enterro de um primo
seu, “Giuseppe Curti, negociante e co-proprietário do Cinema Nacional”161. Alguns anos
depois, em 1917, é anunciado no “A rua: seminário illustrado” uma sociedade com seu
irmão no ramo do comércio de calçados162, a “Casa Progresso”, reforçando a ideia de que
Turano tenha se inserido em uma rede de negociantes italianos já previamente estabelecida
na cidade, ligada a partir de laços familiares. Além disso, é interessante notar que,
conforme cresciam seus negócios, mais seu nome e de sua família aparecem nas páginas de
diversos jornais cariocas. Ao longo das primeiras décadas do século XX , os nascimentos,
aniversários, formaturas, casamentos, óbitos da família Turano são frequentemente
publicados em notas, como por exemplo o informativo de sua festa de aniversário, onde se
lê:
“O Sr. Emilio Turano, negociante de nossa praça, fez annos hontem,
recebendo por esse motivo innumeras provas de estima e apreço. O aniversariante
convidou um limitado grupo de amigos para tomar parte de um jantar íntimo em
sua residência, na rua Salvador de Sá, mas antes de ter início o “mastigo” já ali se
encontravam cerca de 100 pessoas, todas da relação do Emilio, que o foram
abraçar pela auspiciosa data. ”163

Isso era relativamente comum nos jornais da época, no caso das famílias mais
abastadas, demonstrando que Turano ascendera rapidamente a ponto de poder custear essa
projeção. Por outro lado, essa constante presença nos jornais parece revelar uma busca do

159
Registro BRRJANRIO.OL.0.RPV.PRJ.7708 de entrada de estrangeiros no porto do Rio de Janeiro –
Arquivo Nacional
160
Jornal do Commercio, ed. 364, 30-12-1906, p. 6
161
Jornal do Brasil ed. 321, 17-11-1909, p. 8
162
A Rua: Seminário Illustrado, ed. 211, 4-8-1917 p. 8
163
Correio da Noite, ed. 132, 8-6-1914
89
italiano por visibilidade, em expor sua ascensão e demarcar sua entrada em um círculo
social do qual ele, aparentemente, não fazia parte quando chegara no Brasil.
Durante a década de 1920, além do comércio de calçados, Turano se voltou para a
atividade imobiliária, ramo no qual atuou de maneira bastante controversa, agindo muitas
vezes de forma ilícita, sem economizar na violência. Com isso, colecionava processos
judiciais, entre pedidos de despejo e acusações de grilagem. Na verdade, os moradores do
Morro da Liberdade não foram os únicos nem os primeiros a enfrentar problemas com o
italiano. No início dos anos 30, ele começou a explorar uma parcela do Morro dos
Trapicheiros, conhecido também como Morro do Salgueiro em área já ocupada por
diversos moradores desde fins do século XIX. Argumentando que havia comprado a área,
Turano não demorou para entrar em conflito com essas pessoas que habitavam há décadas
aquele espaço, ameaçando-as de despejo.
De fato, há um documento164 informando que Maria Joana Miranda, a condessa de
Monte Breal – que então residiria em Paris – vendeu para Turano em 6 de junho de 1933,
por intermédio de seu representante Manoel de Siqueira Cavalcante um terreno de
aproximadamente 7 hectares, que abrangia parcela do Morro dos Trapicheiros entre a rua
dos Araújos e a General Roca. Esse documento foi, entretanto, muito contestado.
Primeiramente a área em questão jamais teve seus limites devidamente medidos e
demarcados. Em segundo lugar, os moradores argumentavam que essa condessa não
participara da transação, realizada por um falso representante. Dessa forma a compra seria,
na verdade, uma negociação escusa entre Turano, o suposto representante da condessa, e o
tabelião, caracterizando um processo de grilagem.165
De qualquer forma, Turano não perdeu tempo. Segundo nota intitulada “Uma
repetição do caso do Morro do São Carlos” publicada no “Correio da Manhã”, no mês
seguinte à negociação no cartório, ele intimara verbalmente centenas de moradores a deixar
suas casas, pois ele era o proprietário do morro.166 Atento à crescente valorização
imobiliária na Tijuca, muito provavelmente o italiano pretendia expulsar a população
daquela área para instalar ali algum empreendimento ou mesmo lotear o terreno. O jornal
divulgara a questão, pois foi procurado pelos moradores. Assustados com a possibilidade
de expulsão eles se organizaram, fazendo um abaixo assinado e buscando apoio jurídico, da
mesma forma que os moradores dos morros de Santo Antônio, São Carlos e Mangueira

164
Rolo N° 010.186-79 Livro 1190 Folha 92 – 3° ofício de notas do Rio de Janeiro – Arquivo Nacional
165
Jornal “Correio da Manhã” 23/01/1934. Ed. 12010 p. 6
166
Jornal “ Correio da Manhã” 09/07/1933. Ed. 11841 p. 3
90
fizeram na mesma época. Iniciara-se uma longa batalha entre os moradores do Morro do
Salgueiro e Emilio Turano, que duraria uma década.
Menos de 6 meses após essa intimação informal, o processo corria na justiça e a
defesa apelava para o direito de usucapião, uma vez que muitos moradores já viviam há
mais de 30 anos no local. Contudo, eles teriam uma forte derrota. O dia 23 de janeiro
amanhecera conturbado para os habitantes do Salgueiro. O juiz da 5ª pretoria cível
concedera um mandato de despejo em favor de Turano, surpreendendo a todos. Um forte
aparato policial integrado por cerca de 60 homens da Polícia Militar subiu o morro e forçou
agressivamente o despejo de quase quinhentas pessoas. A ação foi extremamente
humilhante: além de conseguirem salvar apenas poucos pertences que puderam carregar, as
pessoas não receberam compensação nenhuma, de forma que a maioria – incluindo crianças
pequenas, idosos e doentes - se espalhou pelos bancos da praça Saenz Pena e pelas ruas
próximas. Durante a confusão dois moradores se revoltaram com tais arbitrariedades e
foram presos.167 Segundo o relato de um morador publicado no “Correio da Manhã”, a
polícia agiu com extrema violência, desconsiderando qualquer dignidade dos moradores:

“[...] Hoje de manhã, quando ninguém esperava, apareceu no morro um


magote de soldados, comandados por um tenente. Não vi papel na mão dessa
gente. Só vi que eles tinham muita disposição de atirar pelas janelas nossos
trastes. Nunca vi coisa assim! E quem disse que a gente conseguia acalmar as
mulheres? Um rebuliço. A princípio, pensei que fosse “scena” da polícia. Mas a
coisa era de verdade. Uma tristeza vendo a gente as nossas coisas amontoadas na
rua. E tudo está lá assim mesmo. Amanhã o nosso advogado vai mexer na coisa
outra vez. A corte de apelação tem de dizer ser temos ou não razão. O pessoal vai
também falar ao chefe do governo. É impossível que não se dê um jeito. Nós
estamos com a razão. E as benfeitorias que fizemos no morro? Desejamos que o
governo saiba pela imprensa dos nossos sentimentos, das nossas aflições. ”168

É importante destacar essa fala também demonstra que os moradores já possuíam


alguma organização coletiva e consciência da ameaça de despejo, pois tinham suporte
jurídico quando foram surpreendidos pelo mandato. Além disso, comissões percorreram
diversos jornais para dar visibilidade à questão e talvez abrir um canal de diálogo com as
autoridades do governo. Não temos informação acerca do destino dessas pessoas. Se
ficaram pelas ruas ou migraram para outras favelas. Provavelmente, muitos conseguiram
voltar para o morro porque essa área em questão não foi removida e continua até hoje com

167
Jornal do Brasil, 23/01/1934. Ed. 19 P. 14; Jornal “O Paiz”, 23/01/1934 Ed.16881 p. 4;
168
Correio da Manhã, ed. 12010, 23/01/1934, p. 6.
91
muitas habitações e moradores. Um documento lavrado, no 3° Ofício de Notas, 4 meses
após o despejo, reforça essa hipótese.169 Nele, Turano sublocava o terreno para Júlio de
Oliveira Marques pela quantia de um conto e quinhentos mil réis, devendo pagar os
impostos e multas. Mas ele o autoriza a receber aluguéis e propor despejos, o que
demonstra que a área continuava sendo ocupada e o negócio de exploração da terra naquela
favela se mantinha.
É também interessante observar que Waldir Barbosa em seu depoimento não se
recorda, ao menos diretamente, de despejos em massa do morro. Devemos levar em
consideração que em 1934 ele possuía somente 8 anos e provavelmente recorda-se do
assunto através de fragmentos contados por terceiros. Ele conta apenas de um suposto
proprietário, anterior a Turano, que acabara por dar nome à favela antes de seu nascimento
e da possibilidade do terreno ir à leilão:

[...]. Depois mais tarde surgiu, aí já é contado da minha avó, uma pessoa se
intitulando dono do morro, porque começou a alugar, fazer casa e alugar então ele
se intitulou como dono do morro. O sobrenome dele era Salgueiro. A origem do
nome aqui, né? [...]. Essa pessoa que se intitulou dono do morro, nada sobre ele
eu tenho de informação só apenas esse detalhezinho aí né? Que ele começou a
alugar casas aqui, casas ali. Como ele tinha o sobrenome de Salgueiro, passou a
ser o morro do Salgueiro, né? Exatamente por essa pessoa. E eu nem era nascido.
Aí o morro foi crescendo. [...]. Aqui no Salgueiro teve um boato, não passou de
um boato que o morro ia em leilão, mas não passou de um boato. Não se
confirmou em nada. Não houve nada daquilo. Não tentaram tirar as pessoas do
morro. Houve um falatório sobre isso, entendeu? Mais nada consistente. Ficamos
preocupados com isso, mas não aconteceu rigorosamente nada. 170

Após uma década de intensas batalhas nos tribunais de justiça, Emilio Turano teve seu
pedido de ação de despejo contra os moradores do Morro do Salgueiro definitivamente indeferido,
assim como levantada a hipótese de crime de ação pública na exploração abusiva de aluguéis de
terrenos e barracões no morro. Segue a sentença do juiz da 9° vara civil, publicada no jornal Diário
de Notícias, que apesar de longa, é bastante esclarecedora pela defesa do sentido social da habitação
e da propriedade que é realizada pelo juiz e a denúncia de atuação ilegal de Emilio Turano:

“Declarando-se brasileiro, quando é notoriamente de nacionalidade italiana


pretende Emilio Turano a notificação, com prazo de noventa dias, de toda a
população do morro do Salgueiro, de Antero dos Santos e outros moradores
expressamente indicados, além dos demais que forem encontrados, todos
brasileiros e trabalhadores, para que desocupem suas moradias. O requerente não
exibe qualquer quitação de impostos relativamente aos casebres do morro, sendo
certo, em relação ao caso, que conforme decidir a egrégia Terceira Câmara do
Tribunal de Apelação, no acórdão constante das fls 9-v, as terras há longos anos

169
Rolo n°: 010.187-79 Livro 1197 Folha 57 - 3° Ofício de Notas – Acervo do Arquivo Nacional.
170
BARBOSA, Waldir...Op. Cit.
92
diuturna e ininterruptamente, de boa-fé ocupadas por proletários sob as humildes
choupanas, foram imemorialmente relegadas ao esquecimento por supostos
possuidores, que delas agora se lembram devido à valorização resultante do
desenvolvimento da cidade, para a qual não contribuíram. São áreas abandonadas,
na encosta do morro, e nunca levadas ao registro público, nas quais a população
pobre da zona da Tijuca formou a favela há mais de cinquenta anos, e ali
permanece até que o grileiro por meio de ardil, quer perpetuar a usurpação. Assim
que o requerente fosse titular da propriedade, ou houvesse operado alguma
locação, não lhe competia a faculdade, sob vigência do decreto de lei n. 5169, de
4 de janeiro de 1943, de despedir os ocupantes. Seria irrisório admitir não fosse a
audácia da pretensão, que o requerente, grande proprietário, ricaço e conhecido,
precisasse de toscos barracões para a própria residência ou de pessoas de sua
família, ou que, para moradia, tivesse necessidade de toda a favela. Nestas
condições, evidente o ilícito objetivo pretendido pelo requerente, indefiro a
notificação, ao mesmo tempo determinando que nos termos do artigo 40 do
Código de Processo Penal combinado com o artigo 66 da Lei de Contravenções
Penais, sejam remetidos, dento de 48 horas, ao excelentíssimo procurador geral,
cópias ou traslados da petição inicial, (...) uma vez que ocorre a hipótese de crime
de ação pública que a este juízo não procede classificar. ” 171

Nesse trecho do processo, relatado no “Diário de Notícias”, é interessante observar


que nem sempre as autoridades, no caso do poder judiciário, colocavam-se a favor dos
supostos proprietários. Essas batalhas judiciais eram complexas e os resultados poderiam
depender das correlações de forças sociais envolvidas, da organização dos moradores, do
poder de seus aliados e do contexto político do momento. Outro ponto que devemos
destacar é que Emílio Turano omite sua verdadeira nacionalidade e tenta, sem sucesso,
declarar-se brasileiro. Devemos lembrar que em um contexto de fim da Segunda Guerra
Mundial, os regimes fascistas geravam um grande sentimento de repulsão e negatividade
em boa parte da população brasileira. Tendo como uma das bases de seu governo o
fortalecimento de ideais nacionalistas, Getúlio Vargas já instituíra, desde 1938, leis que
limitavam a entrada de imigrantes no país. A partir do posicionamento do Brasil na
Segunda Guerra do lado norte-americano (Aliados), japoneses, alemães e italianos eram
chamados de "súditos do Eixo" pela polícia política e muitas vezes hostilizados pela
população. Eles também estariam proibidos de falar sua língua nativa, além de praticar
qualquer tipo de culto a símbolos ou bandeiras estrangeiras. Enquanto alguns italianos
aderiam ao anarquismo, comunismo ou socialismo moderado, outros se tornavam adeptos
da doutrina fascista.172
A partir da análise das fontes, concluímos que durante a década de 1940,
principalmente, Turano estava envolvido em inúmeras ações de despejo simultaneamente.
Em 1948, enquanto tirava o sono dos moradores da Liberdade, o italiano iniciava o despejo

171
Jornal Diário de Notícias, 23/03/1944, p. 8
172
SANTOS. Viviane Teresinha dos. Italianos sob a mira da polícia política... Op. Cit.
93
dos moradores de um cortiço do qual era proprietário na rua Almirante Alexandrino, 590,
em Santa Teresa. A “Revista da Semana” noticia o processo, através da matéria “Ponha-se
na rua, um drama de 140 anos”, onde expõe a situação alarmante da crise habitacional da
cidade e denuncia a ação de grileiros e os abusos dos proprietários de imóveis, inclusive
Turano e suas recorrentes arbitrariedades:

“Este é por certo o lado mais odioso do drama sem remédio dos depejados:
o senhor rico, prepotente, contra inquilinos humildes mal ganhando para o
sustento diário. [...] O proprietário, senhor Emilio Turano, grande latifundiário
carioca, por intermédio do senhor Arão Cupite, seu sócio ou preposto, iniciou na
10ª Vara Cível ação de despejo contra dezenas de pessoas moradoras num dos
seus cortiços. Como se a ação de despejo tardasse, iniciou a derrubada dos velhos
quartos de tijolos, garantido pela presença da polícia, segundo nos informaram.
[...]. Moram ali trinta famílias, aproximadamente. O proprietário é o senhor
Emilio Turano, grande possuidor de imóveis na capital. Fronteiriço a essa encosta
fica situado o “Morro Turano”, no qual vários faveleiros já foram despejados à
bala, por ordem, segundo consta, do mesmo proprietário. O cortiço da rua
Almirante Alexandrino é um dos mais miseráveis que já vimos. Seus habitantes,
na maioria lavadeiras e pequenos operários vivem apertados em quartos imundos.
O proprietário, por intermédio do sr. Arão Cupite, tem exercido toda a ordem de
ameaças para que seus inquilinos abandonem o prédio. Chegou mesmo a demolir
alguns quartos, obrigando seus moradores a procurarem melhor refúgio. Para que
desejará o sr. Turano aquele local? Para construir algum edifício de apartamentos
caros? ” 173

Não temos informação acerca do desfecho do processo e o destino dos moradores


desse cortiço de Santa Tereza. Muito provavelmente seus moradores, em menor número,
não tiveram o mesmo poder de resistência como no Salgueiro e na Liberdade. Contudo,
podemos concluir que Turano se tornou entre as décadas de 1920 e 1940, um explorador do
negócio de habitações populares em vários pontos da cidade que teve sua atuação
caracterizada por negociações escusas, ligações com a polícia e relações autoritárias e
violentas com seus inquilinos.
No início da década de 1920, Emilio Turano começou a explorar uma extensa área
de propriedade incerta que abrangia a encosta do morro que começava aos fundos de sua
residência, na rua Barão de Itapagipe. Primeiramente, o comerciante alugava cortiços na
mesma rua e posteriormente começou a permitir a construção de barracões morro acima,
mediante a pagamento de aluguéis, admitindo sublocações.
A área era denominada como “Chácara do Vintém”, onde se formou, décadas mais
tarde o Morro da Liberdade. Nesse ponto, algumas perguntas vêm à tona. Que Chácara era
essa? O que existia nessa área antes da favela? Quem eram os antigos proprietários? Como

173
Revista da Semana, Ed. 23. Abril de 1948. P.6-10
94
Turano começou a exercer domínio sobre essa localidade? Essas perguntas são como peças
de um quebra cabeça difícil de montar, devido à indefinição de propriedade, assim como de
diversos morros cariocas – fator gerador de diversos conflitos. Mas, sobretudo, em função
da escassez de fontes com relação essas propriedades. Mesmo assim, podemos seguir
algumas pistas a partir de notas de jornais e arquivos cartorários.
Durante boa parte do século XIX e início do XX, a Chácara do Vintém se firmou
como uma localidade de grande relevância na Tijuca. Segundo jornais da época, lá existia
uma nascente de água abundante e muito requisitada. Na época, a propriedade se estendia
até o Largo da Segunda-Feira, na rua Conde de Bomfim, localizada no então distrito do
Engenho Velho. Foi construído um grande reservatório e seus proprietários passaram a
explorar comercialmente a nascente.174 É interessante observar que se construiu,
principalmente a partir da década de 1870, uma fama em torno da “água do Vintém”.
Diversos jornais enalteciam, em propagandas, a qualidade superior daquela água,
considerada também terapêutica. O negócio era de tal modo estruturado, que os
consumidores poderiam fazer assinaturas, a fim de garantir a autenticidade da água e evitar
falsificações.
O “Mequetrefe” anuncia assim:
“A fama servia-lhe de aureola quando D. João VI e sua família em março de
1808 aqui aportaram. É, pois, de fácil intuição compreender-se que o príncipe
regente fez uso da referida água, sobre cuja efficacia a aura popular já havia
transposto os mares e chegado ao seu conhecimento [...] foi nesse reinado e no do
Sr. D. Pedro I que a água do vintém assumiu foros de legendaria. De há muito
porém, que fazem o uso della as pessoas de SS. MM. Imperiaes.” 175

Os jornais do fim do XIX dão conta que a Chácara era de propriedade do


comendador Sebastião Pinto da Costa Aguiar, posteriormente herdada por seu filho, Arthur
Pinto da Costa Aguiar que teria inclusive instalado uma fábrica de gelo, com máquinas
importadas.176 Entre as décadas de 1920 e 1930, a exploração da água praticamente se
extinguira e a parte baixa da Chácara começara a ser loteada e as antigas residências,
exploradas como cortiços, seguindo a explosão imobiliária da capital. Tudo indica que a
água passou a ser utilizada apenas pelos moradores locais. Em reportagem de 1938 sobre as
“águas cariocas”, a revista da semana assim descreve a situação da chácara, que, a essa
altura, já abrigava a agremiação “Deixa Malhar”:

174
O Cruzeiro 09/05/1878 p 2 ed. 128
175
O Mequetrefe 22/07/1885 p.6 ed. 133
176
A Notícia 20/01/1898 ed. 18 p 1 & Gazeta da tarde 21-2-1883 p 4 ed. 40
95
“Cessou por fim, a Empreza da Água do Vintém, tornando-se a chácara solo
para numerosas habitações collectivas cujos humildes moradores, imitados por
outros da vizinhança, serviam-se da água, outrora tão recomendada.[...] na
redondeza os ecos de frequentes ensaios vocaes e instrumentaes, os de grupo
carnavalesco mantendo em sons expressiva denominação – Deixa Malhar. As
tristezas populares vão-se em música.”177

Por outro lado, há um contrato firmado em 1922 de sublocação por cinco anos do
reservatório de água dessa referida chácara. 178 Esse contrato foi firmado justamente entre o
proprietário, Arthur Aguiar e nosso conhecido italiano Emilio Turano, o qual informou o
tabelião que: “disse-me estar em posse do arrendamento do terreno da rua Barão de
Itapagipe, 393”. O documento informa ainda que o contrato de arrendamento teria validade
de apenas 5 anos. Ainda que seja impossível definir as reais intenções de Turano nesse
negócio, podemos supor que, em um momento em que a produção da água do vintém já
estava em decadência, o italiano tivesse outros planos para aquela área. Não sabemos ao
certo como, mas, curiosamente, poucos anos depois do contrato, ele já começara a alugar
inúmeros cortiços e casinhas na tal Chácara.
Em 1928, o jornal “Gazeta de Notícias” informa que Turano, mesmo não sendo
proprietário da área – seria apenas arrendatário dos herdeiros da chácara - fundara ali uma
fazenda com seu nome e que já contava com diversas habitações: “Nos fundos da garage
fica a Fazenda Turano que vai até o alto de um morro de onde se divisa a casa branca.
Nessa fazenda se encontram duas enormes avenidas que são verdadeiro cortiço compostos
de casinhas divididas em salas de frente e dois aposentos. ”179 Na mesma época, foi
publicado um anúncio de aluguel no “Jornal do Brasil”: “Alugam-se dous[sic]barracões,
no morro da Fazenda Turano, podendo fazer plantações abundantes e criações a 40$000;
à rua Barão de Itapagipe, 319. ”180 Podemos destacar que, ao anunciar “barracões” e
“plantações abundantes e criações”, Turano estava buscando atrair um público pobre e, de
certa forma, habituado a atividades ligadas à terra. Fica claro o seu incentivo à ocupação
daquela encosta, seja por habitações, seja por culturas diversas.
De qualquer forma, a partir dessa época parece que a localidade além de ser
chamada “Chácara do Vintém” passa a ser conhecida também como “ Fazenda Turano” ou
“Morro do Turano”. Dessa forma, poucos anos depois os jornais “ A Noite” e o “Diário de
Notícias”, ao cobrir uma tragédia ocorrida no local, nos trazem alguns detalhes da ocupação

177
Revista da Semana ed. 12, 1938. P 19
178
Arquivo Nacional Rolo nº 005.016-77, Lv 97 Fl 99
179
(Jornal do Brasil, ED. 154 24/05/1927, P. 17).
180
(Jornal do Brasil, ED. 60 11/03/1927, P. 21).
96
do morro, atribuindo a propriedade das casas a Turano. Na verdade, essas reportagens
tratam de um deslizamento de pedras181 ocorrido durante fortes chuvas que causaram uma
vítima fatal. Tais jornais descrevem assim a Chácara do Vintém:

“A maioria dos casebres que se espalham por todo o morro é de propriedade


do Sr. Emilio Turano, antigo comerciante de calçados no Estácio de Sá e,
segundo fomos informados, tem uma fábrica no velho casarão situado no topo da
montanha, que em tempos remotos foi residência de um titular. 182

O local foi a conhecida “Chácara do Vintém”, onde o sr. Emilio Turano,


antigo negociante de calçados, no Estácio de Sá, tem um grande número de
casebres, que os aluga a operários, que ali vivem em companhia de suas famílias.
A conhecida chácara, o reducto de gente desprovida da sorte, principia na rua
Barão de Itapagipe 593 e alarga-se até o Rio Comprido. 183

É interessante ressaltar que a extensão que é atribuída à chácara no “Diário de


Notícias” – Rua Barão de Itapagipe 593 indo até o Rio Comprido - corresponde justamente
à extensão de parte do Complexo do Turano atualmente, com exceção da área baixa e plana
que foi totalmente loteada.
Outro ponto importante é a referência que a reportagem que “A Noite” faz ao
“velho casarão no topo da montanha”. O jornal, informa ele, servia como fábrica de Turano
e foi residência de um antigo proprietário. Temos referências, contudo, que esse casarão era
usado como sede da tal “Fazenda Turano”. Hoje, essa construção não existe mais. Segundo
os moradores mais antigos, a quadra da “Vista Alegre” na localidade atualmente chamada
de “Raia”, foi construída sobre a fundação dessa casa. De fato, alguns moradores ainda hoje
conhecem o local como “Fazenda”. Ao falar das reuniões de moradores, Otacílio recorda
que: “fizemos aquela roda naquele portão que dava pra fazenda, que chamavam...É, onde
é a quadra, era uma fazenda, era a fazenda dele[Turano], tá entendendo? ”. 184
Esse casarão é anterior à chegada de Turano, talvez remonte aos tempos do
comendador Sebastião Aguiar. De alguma forma não muito clara, o italiano apropriou-se
dele, tornando-o sede de sua fazenda. Por sua localização estratégica (no alto da pedreira),
sendo possível avistá-la de muito longe, essa construção se tornou ponto de referência para
aquele morro. Podemos observar nas imagens que boa parte da encosta da chácara já havia

181
As tragédias relacionadas às chuvas acompanham recorrentemente a história do Morro da Liberdade e
Complexo do Turano em geral. Devido a topografia dos morros que compõem o complexo, existem áreas
com alto risco de deslizamento. Isso tem relação com a grande quantidade de pedras e nascentes na parte alta,
íngremes encostas desmatadas e solo muito erodido. Ainda hoje as chuvas de verão sempre trazem a ameaça
de casas destruídas e vítimas fatais.
182
Jornal “ A Noite” 07/02/1931 P. 1
183
Jornal Diário de Notícias 07/02/1931 p. 1
184
Duarte, Otacílio...Op. Cit.
97
sido desmatada anteriormente. Além disso, percebe-se que a pedreira ainda estava intacta
(realidade que duraria até 1942) e notável presença dessa construção branca edificada sobre
a rocha, mesmo antes da formação da favela.

Imagem 5: A Igreja de São Sebastião, situada na rua Haddock Lobo – Tijuca, com a pedreira ao
fundo.

Fonte: Data e autores desconhecidos. Acervo do Arquivo Geral da Cidade (AGCRJ)

Imagem 6: Vista da pedreira do “Morro do Turano” e a “sede” da fazenda no topo.

Fonte: Acervo do AGCRJ. Data e autores desconhecidos

98
Mapa 2: Mapa contemporâneo ilustrativo do atual Complexo do Turano, Morro do Salgueiro e
antigas referências que constam nesse trabalho.

Fonte: Elaboração do autor. Base do mapa: Google maps, 2019. Disponível em


“https://www.google.com.br/maps/@-22.9261512,-43.2154687,16z”. Acessado em 24/02/2020.

O sambista Duduca, antigo morador da Chácara do Vintém, citado anteriormente, em


entrevista a Sérgio Cabral, recorda do “palacete” de Turano:

“Conheci o Turano. Ele mancava de uma perna. Na antiga Chácara do


Vintém, ele tinha um palacete lá em cima, num terreno muito grande, uma
espécie de sítio. Era naquele local hoje conhecido como Morro da Liberdade.
Aquilo tudo era dele. Pelo menos era o que ele dizia. ”185

Waldir afirma que, apesar de não ter vivenciado o processo de luta no Salgueiro, ouviu
falar sobre o italiano, sua disputa com os moradores do morro vizinho e de seu casarão no
alto da pedreira:

Agora o caso do Turano eu sei. Eu sei dessa atitude dele. Uma das primeiras
coisas dele foi colocar o seu nome na sua residência. Turano. Sabia disso? Ué não
sabia disso não? A casa dele lá no alto daquela...Num tem uma pedreira enorme?

185
CABRAL, Sérgio. Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Lumiar Editora, 1996. P. 186
99
Onde tem o casarão dele. Na casa dele estava lá: “Turano” com letras grandes,
letras gigantescas “Turano”. Pensei que você soubesse, tivesse conhecimento
disso. Ficou conhecido como Morro do Turano exatamente por isso. Era um
casarão mesmo.186

Em 1935, foi publicado no Jornal do Comercio um anúncio de venda da chama “Casa


Branca da Serra”. O texto constrói um discurso que exalta as qualidades de uma
propriedade que poderia prestar para as mais diversas funções:

Dois mil contos. Vende-se a “Casa Branca da Serra” (Fazenda Turano) em


magnifica situação (Tijuca) apropriada para qualquer fim como: hospital, cassino,
colégio, hotel, etc. descortinando toda a cidade maravilhosa, antiga residência de
condes e barões, onde veraneavam. Possue vareas nascentes com a mais deliciosa
e crystallina agua; existe grande laranjal, bananal, cafezal, canavial e centennas
de arvores fructíferas; podendo edificar um plano inclinado pelo fim da rua Felix
da Cunha para fim comercial, ou um elevador pela rua Delgado de Carvalho; tudo
pertencente a propriedade. 187

Não sabemos se Turano está por trás desse anúncio e não há indícios que a propriedade
tenha sido vendida nessa ocasião. Contudo, tal anúncio nos aponta algumas características
dessa chácara, que se assemelha em muito à descrição de uma propriedade ainda rural em
meio à urbanização alucinante da metrópole carioca. A presença de áreas cultivadas com
culturas comerciais (café, cana-de-açúcar, banana, laranja) revela que mesmo nos anos 30,
era ainda uma propriedade de alguma maneira produtiva.
Por outro lado, nos dá margem para pensar a possibilidade daquela chácara ter sido
desmembrada de alguma antiga fazenda cafeeira. Essa hipótese se reforça quando
lembramos que as encostas do maciço da Tijuca e da Pedra Branca foram ocupadas por
grandes cafezais, desde o início do século XIX, iniciando a produção em grande escala
desse produto no país.188 E essa área, atualmente ocupada pelo Complexo do Turano,
parece geograficamente atraente para esse cultivo: são alguns morros e vales úmidos, de
onde brotam inúmeras nascentes e córregos – em sua maioria poluídos atualmente.
Uma análise mais atenta da imagem 1 mostra um solo já extremamente erodido e
possivelmente degradado pela cultura do café ou por criação de animais. Segundo a memória
dos moradores antigos do morro, a região teria integrado uma antiga fazenda de café.
Otacílio confirma que quando chegou ao morro, em 1945, ainda existiam cafezais,

186
BARBOSA, Waldir
187
Jornal do Commercio, 14/06/1935, p.14
188
MELO, Hildete Pereira. A Zona Rio Cafeeira: uma expansão pioneira. Revista Brasileira de Gestão e
Desevolvimento Regional. N.4 v. , 2008.
100
principalmente na localidade da Matinha – atualmente uma das áreas mais urbanizadas da
favela - que se localiza justamente em um vale:

“[...] isso aqui, isso aqui, os moradores antigos dessas casas que tem aqui de
pedra eram os escravos, mas quando os portugueses chegaram e começaram a
explorar essas terras aqui foi, foi a fazenda que era cafezais, diz a lenda né?
Inclusive ali na Matinha, era só café, lembra? Era cafezais, lavouras, essas coisas
explorando terras.”189

É importante lembrar que Turano nunca conseguiu provar que comprara essas terras e
sequer apresentou documentação que comprovasse sua propriedade. Tudo indica que, a
partir desse arrendamento, ele tenha se apossado da Chácara e do morro acima, passando a
se apresentar como proprietário. Com a criação da Fazenda Turano e o aluguel de imóveis
para inquilinos pobres – primeiramente, cortiços no pé do morro e depois barracões subindo
a encosta - muito provavelmente o italiano e sua suposta propriedade viraram uma
referência de moradia acessível na região.
Na imagem aérea produzida no primeiro levantamento aerofotométrico da cidade,
realizado em 1928, podemos observar que as habitações se concentram na parte baixa da
Chácara do Vintém ou Fazenda Turano. Na Imagem 2, destaco onde seria,
aproximadamente, a “Fazenda Turano”. Infelizmente, nesse levantamento, a parte do alto
da pedreira, onde se concentravam algumas casas e a sede da fazenda encontra-se apagada,
assim como diversos outros morros da cidade. Através dessa imagem, podemos perceber na
área estreitos caminhos ou trilhas e algumas casas bastante esparsas.
Ainda que seja local de moradia de famílias pobres, tal espaço ainda não era, nesse
momento, compreendido como uma favela. A Chácara do Vintém, ainda tinha uma
concentração de casas muito pequena, uma realidade que se alterou profundamente ao
longo do século XX, com a enorme expansão do chamado Complexo do Turano tomando
quase toda a área elevada da antiga chácara (Imagem 4). A título de comparação, não
muito distante dali, no Morro de São Carlos (Representado na imagem 5) já podemos
observar nesse mesmo levantamento, a existência de diversas ruas e caminhos, assim como
uma concentração considerável de casas. Localizado no Estácio e de ocupação bem mais
antiga - que remonta fins do século XIX - em 1928 o São Carlos já era, além de reduto da
cultura negra carioca, uma das maiores e mais conhecidas favelas da cidade.

189
DUARTE, Otacílio...Op. Cit.
101
Mapa 3: Área aproximada do morro da “Fazenda Turano, circundados pelas ruas Barão de Itapagipe e rua do
Bispo, entre o Rio Comprido e a Tijuca

Fonte: Levantamento aerofotométrico da cidade do Rio de Janeiro. (1928) Acervo do Arquivo Geral da
Cidade (AGCRJ)
Mapa 4: Morro de São Carlos, entre o Rio Comprido e Estácio

Fonte: Levantamento aerofotométrico da cidade do Rio de Janeiro.(1928) Acervo do Arquivo Geral da Cidade
(AGCRJ)

102
Tudo indica que, no ramo imobiliário, Emilio Turano aproveitou certas oportunidades,
mesmo agindo por meios escusos. E desde o início, a intimidação e a violência parecem ter
acompanhado a relação do italiano com seus inquilinos. Já em 1931, temos notícias da
forma autoritária como ele agia, utilizando-se de sua posição de “proprietário” para acionar
a força policial em seu favor, tendo realizado o despejo de uma lavadeira, sob alegação que
sua moradia não atendia aos padrões da Saúde Pública.190
De qualquer forma, a área rapidamente tornou-se um ponto atrativo para inúmeras
famílias migrantes recém-chegadas à cidade, que construíam seus barracões com
autorização de Turano que se intitulara proprietário de parte do Morro do Salgueiro,
passando pela localidade conhecida como Chácara do Vintém e o próprio Morro do Turano.
Em poucos anos, a área passou por um considerável aumento demográfico. Essa realidade
pode ser observada nos números apresentados pelo Censo demográfico de favelas de 1950,
realizado poucos anos depois, onde o “Morro do Turano” já aparece com 1523 habitantes
assim como o seu vizinho “Morro da Chacrinha” (antiga Chácara do Vintém), que figura
com 819 habitantes.191 Nosso entrevistado Otacílio recorda:

“E o morro era dominado por Turano, o dono, dizia-se o dono. Nome dele
era Emilio Turano, era italiano ele(...) naquela época tinha aquelas pessoas,
aqueles homens inteligentes né? Português, pessoal italiano, chegava aqui e o
negócio era abandonado. Então ele morava lá e toda essa área aqui, aqui ó era
livre (apontando para baixo), não tinha casa nenhuma. Então ele apoderou-se
daqui. Chamava-se grileiro, apoderava-se das terras que não eram dele. Ele
comprou um terreno na rua e como era os fundos da casa dele, ele falou que era
dono de tudo. E ficou Turano o dono. Morava na Barão de Itapagipe, 443. Tá lá a
casa até hoje, eu passo e me lembro. “192

Se considerarmos o negócio dos aluguéis, a criação de animais e a locação de uma parte


do morro para a exploração da pedreira, o italiano montou na área um rentável
empreendimento.193 Como nos relata Otacílio Duarte, ele contava com inúmeros
empregados e um casarão no alto do morro – a sede da fazenda. Como já falamos, ele não
possuía qualquer documento comprobatório de propriedade da área. Ainda assim, todos os
moradores eram obrigados a pagar aluguéis:

190
Diário da Noite 18-6-1931 Ed.525 p. 1
191
GUIMARÃES, Alberto Passos. As favelas do Distrito Federal e o censo de 1950 – Documentos
Censitários – Série C, n° 9. Rio de Janeiro, IBGE, 1953. P. 40
192
DUARTE, Otacilio... Op. Cit.
193
Se levarmos em consideração os bens que Turano põe a leilão, em 1949, em função de sua mudança da
capital, percebemos que ele alcançara uma situação econômica bem privilegiada: “Mobiliário de Imbuia;
Piano de cauda Holzi; ricos e lindos lustres de cristal, com pingentes bico de diamante; prataria finamente
cinzeiada; tapetes persas em tamanhos diversos; jóias de ouro e platina com brilhantes; pinturas à óleo;
estatuetas de bronze; porcelanas; cristais; refrigerador “Westinghouse”; enceradeira e aspirador Eletrolux,
etc.” Anúncio publicado no “Jornal da Manhã” – 27/03/1949, P. 15
103
“Todos nós pagava, era obrigado a pagar! Eles corriam, via o que tinham,
andavam por aí, sabe? Ele tinha um genro que era da polícia especial: Ataliba
Bastos Ferreira (...) disso ele criava, tinha boi, criava boi, tirava leite aqui em
cima, sabe, tudo ia pro bolso dele. (...) O leite descia lá pra baixo. Era tudo
empregado dele. (...) Daqui a pouco quando ele viu que tinha bastantes pessoas, o
Turano, que tinha bastantes pessoas morando, a gente mesmo construía, não dava
nada pra ninguém construir nada. Só aqui em cima, lá pra baixo não podia
construir, ele não deixava construir (...). Mas quando ele viu que o aluguel tava...
Ia render muito dinheiro... Era 1500 réis, o aluguel. O mais caro era 1500. 10
tostões.” 194

Podemos ainda pensar que o aluguel acabava sendo para essas pessoas um reforço
do direito de ocupação do solo em que viviam, através de acordo tácito com o proprietário.
Lembrando que para migrantes originários do campo (muitos dos quais jamais chegaram a
ser proprietários de terra) o pagamento de renda pelo uso do solo não era nenhuma
novidade. Como vimos no primeiro capítulo, o arrendamento de pequenas parcelas das
fazendas para os agricultores trabalharem em suas roças era a base do regime de colonato e
uma prática muito comum nas regiões rurais do Sudeste nas décadas seguintes à abolição.
Na maioria dos casos, o aumento abrupto ou abusivo da cobrança ou a quebra de termos
tradicionalmente acordados, foi a gota d’água de diversos conflitos fundiários e um dos
grandes fatores de expulsão do trabalhador rural.195Existe, então, uma persistência da
situação de insegurança quanto a propriedade, além da continuidade de questões e conflitos
de terra característicos do campo em uma realidade completamente urbana.
Já foi dito também que, nesse contexto, os bairros relativamente próximos do centro
e da zona sul estavam passando por um grande processo de valorização. Com isso subiu a
pressão do mercado imobiliário sobre as favelas da região. De olho nas possibilidades de
negociar com empreendedores, os proprietários ou grileiros passaram a não ver mais
vantagem em manter aluguéis baratos para a construção de barracos. Nesse sentido, era
comum o suposto proprietário suspender o “contrato” de locação ou exigir um valor muito
alto, impossibilitando os moradores de pagar. Tudo isso para “forçar” uma situação e criar
justificativa para a execução de uma ação judicial de despejo. Posteriormente, eles
venderiam o terreno para futuro loteamento.
Nos anos seguintes à chegada de Otacílio ao morro, em 1945, os jornais
documentavam alguns atritos entre os moradores e Emilio Turano. Os motivos principais

194
Id.
195
RIOS, Ana Lugão. Filhos e netos da última geração de escravos e as diferentes trajetórias do campesinato
negro. In.: MATTOS & RIOS. Hebe Maria & Ana Lugão. Memórias do cativeiro: família, trabalho e
cidadania no pós-abolição. Civilização Brasileira, 2005.
104
eram o aumento abusivo dos aluguéis e a indisposição do italiano em realizar mínimas
obras para a melhoria da infraestrutura da localidade. O clima de tensão se implantara,
sendo relatadas em notas ou reportagens diversas demonstrações de arbitrariedades por
parte do suposto proprietário tais como agressões e ameaças.196 Aqueles que moravam no
morro, por sua vez não assistiram passivos a essa situação. Otacílio Duarte se viu
envolvido, acompanhando seu irmão em uma disputa territorial. Como ele mesmo fala, uma
verdadeira “guerra” para frear os abusos e os violentos despejo praticadas por Emilio
Turano. E que acabou também se tornando uma luta por melhores condições de vida e
moradia naquele território.
Como já falamos, o conflito com grileiros foi uma realidade enfrentada também
em diversas outras favelas e, por sua profundidade, se constituiu como experiência
compartilhada extremamente importante na construção da identidade dessas pessoas na
relação ao espaço em que viviam. A partir da década de 1930 e, principalmente, 40, os
favelados começaram a se constituir como grupo social politicamente atuante e articulado.
Por outro lado, esses conflitos com grileiros, proprietários privados e representantes do
Estado, no momento em que atingiam um amplo conjunto dos favelados, acabaram por
estimular também a formação de redes de solidariedade e ajuda mútua. Através da luta, eles
criaram iniciativas que deram bases para a formação do embrião das associações de
moradores do próprio movimento político articulado entre as diversas favelas como a União
dos Trabalhadores Favelados (UTF) e posteriormente a Federação das Favelas do Estado da
Guanabara (FAFEG), criadas em 1954 e 1962, respectivamente.

196
Jornal Diário de Notícias de 16/12/1947; “Diário da Noite” de 15/12/1947; Jornal A Manhã 15/12/1947
105
CAPÍTULO III - A LUTA COMUNITÁRIA PARA MORAR E VIVER: NASCE O
MORRO DA LIBERDADE.

“Fomos pra luta, foi aí que o negócio começou a ficar tenso... E vamos, e
vamos fazer as reuniões e sempre vinha muita polícia, sabe? [...]. Nisso eles
viram, lá embaixo a família dele [do Turano] os amigos, a polícia achou que tava
um negócio assim meio complicado. Então eles reuniram lá embaixo também.
Então juntou a gente aqui e eles se juntaram lá. Aí fomos pra luta! Pra guerra
como a gente chama né? ”
Otacílio Duarte, morador do Morro da Liberdade

3.1 POLÍTICAS PÚBLICAS, ASPECTOS JURÍDICOS E DISPUTAS FUNDIÁRIAS


NAS FAVELAS A PARTIR DO ESTADO NOVO

Muitas das favelas hoje consolidadas se formaram em terras com documentação


controversa. Algumas se constituíram em terras públicas e tantas outras começaram com a
permissão e proveito dos proprietários, ou ditos proprietários. Com a chegada cada vez
maior de migrantes rurais aos poucos se forma um mercado imobiliário “subterrâneo”,
acessível para as famílias mais pobres. A situação fundiária incerta de diversos morros
cariocas atraía todo o tipo de “donos”, grileiros ou não, que construíram um lucrativo
negócio na cobrança de aluguéis nesses espaços até então desprezados pelo mercado
formal. Com a valorização do solo da cidade como um todo, a relação entre os moradores
das favelas e os supostos donos começa a ficar muito tensa. Durante a década de 1940 e
principalmente de 1950, explodem diversos conflitos de terra. Mas tratarei desses assuntos
mais adiante.
As favelas cariocas caracterizaram-se pela heterogeneidade de situações em sua
formação originária. Muitos estudos em relação ao tema destacam o caráter de invasão, da
ocupação ilegal à revelia da vontade do proprietário do terreno, seja ele privado ou do
poder público, hipótese que se tornou “lugar-comum” de explicação na memória coletiva
de grande parte da sociedade. Contudo, têm ganhado força trabalhos que observam a
recorrência de um viés de certa maneira “legal” ou, no mínimo, amplamente incentivado
por particulares, da origem das favelas. Isso não quer dizer que essas formas de ocupação
não pudessem se apresentar conjuntamente na mesma favela. Em levantamento realizado
por Silva, se observa que muitas favelas hoje consolidadas, surgiram através do pagamento
de aluguel ao proprietário, mais precisamente 40% dos casos nas favelas anteriores a
1964.197

197
SILVA, Maria L. As favelas cariocas...Op. Cit. p. 117-129
106
E, em favelas que antecederam à urbanização da região ao entorno, observa-se a
origem através de loteamentos iniciais que, por algum motivo não tiveram continuidade. A
favela do Morro da Formiga começou através de um loteamento na encosta do morro,
assim como na Rocinha, iniciada em um loteamento capitaneado pela empresa Castro
Guidão e Cia, de um terreno no alto da estrada da Gávea em 1927. Os lotes foram vendidos,
mas o empreendimento foi embargado pela prefeitura por irregularidades. O caso tramitou
por muitos anos na justiça enquanto novas ocupações eram realizadas e os compradores,
apesar de terem pagado devidamente as prestações do terreno nunca receberam a escritura.
Esses exemplos ajudam a compreender porque algumas áreas se tornaram favelas e outras,
mesmo que vizinhas, não. Eles demonstram, sobretudo, que existiram múltiplas
possibilidades de formação do que depois se consolidaria como favela. A questão jurídica e
social em torno da origem das favelas é muito mais complexa do que simplesmente invasão
da propriedade alheia.
Gonçalves observa que a partir da década de 1930, a habitação tornou-se um
aspecto importante da política trabalhista de Vargas. O Estado, assume, de alguma forma a
responsabilidade em garantir a moradia da classe trabalhadora. O debate em torno da
habitação popular não se resumia mais as questões sanitárias, mas tornara-se condição
elementar para a reprodução das forças de trabalho e do capital, além se converter em um
ponto chave para a legitimação do regime junto às massas urbanas. O acesso a moradia
seria fundamental para forjar o trabalhador modelo, fiel ao regime e pilar ideológico do
Estado Novo.198
Nesse contexto, iniciou-se a construção dos primeiros conjuntos habitacionais.
Ainda que tenha se construído uma quantidade considerável de moradias, o resultado foi
muito aquém das necessidades reais da época, além do que partir de um sistema que excluía
a maior parte dos trabalhadores informais. Por outro lado, foram executadas novas grandes
reformas urbanas pelo governo de Henrique Dodsworth. Dando continuidade ao caráter
autoritário e segregatório de reformas anteriores, essas intervenções destruíram mais de
2400 construções e atingiram mais de 18 mil pessoas, deixando sua contribuição para uma
expansão recorde das favelas cariocas na década de 1940.199

198
GONÇALVES, Rafael Soares. "Da política de contenção à remoção: aspectos jurídicos das favelas
cariocas". In: Marco Antonio da Silva Mello; Luiz Antonio Machado da Silva; Leticia de Luna Freire &
Soraya Silveira Simões (orgs.), Favelas cariocas. Ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond. pp. 253-278. 2012
199
Id.
107
A continuidade das favelas foi oficialmente condenada a partir do código de obras
de 1937. Contudo, na prática, à exceção da iniciativa pequena dos parques proletários, as
políticas públicas destinadas às favelas foram ambíguas: não se configuraram em uma onda
de remoções indiscriminadas nem em um reconhecimento oficial desses espaços. Na lei
constava a proibição do surgimento ou aumento das favelas, mas isso não queria dizer que
ela seria aplicada a todos os territórios favelados. Na verdade, essa proibição funcionava
mais como uma “carta na manga” dos governantes e proprietários, podendo ser usada em
momento oportuno ou esporadicamente, agindo ainda como elemento de barganha ou
chantagem política para manter o controle sobre os moradores através de uma espécie de
“favor”. De certa forma, o código de obras de 1937, além de trazer uma visão problemática
da favela, privava seus moradores do direito pleno à cidade.
Gonçalves aponta que esse momento se caracterizou por uma política de contenção
das favelas baseada na lógica do que ele chama de “tolerância precária”. Para ele, essas
medidas são, em parte, reprodução das políticas higienistas do início do século, que
procuravam manter a precariedade dos cortiços para criar argumentos e forçar a expulsão
de todos que ali viviam. Em suas palavras:

“[...] A política de contenção buscou manter a precariedade física das


favelas e negou qualquer tipo de interpretação jurídica que reconhecesse tais
espaços no seio da pólis. A lógica de manobrar arbitrariamente a aplicação da lei
foi uma constante na consolidação da legislação urbanística referente à moradia
popular na cidade do Rio de Janeiro”200

A identificação das favelas com a ilegalidade reforçou a insegurança de posse dos


moradores nas questões fundiárias, dificultando reivindicações sociais pautadas no acesso a
direitos e por décadas foi argumento impeditivo para instalação de serviços públicos dentro
dessas áreas, além de justificar as remoções massivas das décadas de 1960 e 1970. Como
espaços pobres, negros e ligados a informalidade, as favelas não existiam para o
planejamento e gestão da cidade. Mesmo toleradas, nesse contexto, elas foram induzidas
pelas autoridades a manter um estado provisório, estando condenadas a serem mais cedo ou
mais tarde erradicadas. Podemos exemplificar essa questão com a matéria “Nova onda de
violência contra o povo das favelas” do jornal Imprensa Popular, que informa de uma
repentina e violenta ação de despejo executada no Morro da Liberdade em 1951, sob ordens
da prefeitura municipal, deixando, segundo o jornal, centenas de crianças desabrigadas:

200
Id. P. 264.
108
“Alguns “garis” acompanhados por um fortemente armado pelotão da
Guarda Municipal irromperam na favela e sem mais explicações foram dando
início a derrubada dos casebres. Às queixas dos moradores, respondiam os
policiais haver sido a criminosa medida determinada pelo general prefeito
Prudente de Morais. [...]. Os barracões haviam sido reduzidos a montes de tábuas
partidas e seus moradores, com os filhos pequenos, permaneciam ainda sobre os
destroços, improvisando abrigos contra chuva e sol. Os móveis, roupas, malas,
todos os pertences das famílias foram jogados nas ladeiras. [...]. Não satisfeito
com a destruição dos casebres, os policiais realizaram verdadeira pilhagem aos
bens dos moradores. Tudo de valor que encontraram, levaram consigo. [...].
Também uma escola a muito custo construída pelo trabalhador Basílio Pinto do
Sacramento foi demolida. Algumas crianças já se encontravam matriculadas e
Basílio tinha gosto em alfabetizá-las. [...]. Ao mesmo tempo que os guardas
procediam a demolição dos barracões, outra turma de policiais arrancava a única
bica existente no morro e que servia para o abastecimento de água da população.
”201

Claramente essa súbita e agressiva operação visou forçar os moradores a deixar o


morro: além da demolição das casas, foram destruídas uma escola e uma bica, elementos
que representam uma consolidação da comunidade. Entretanto, não houve repetição
sistemática dessa ação que, apesar de ilegal, não gerou nenhuma consequência para seus
autores. Trata-se de um caso que reforça a ideia de que essa atribuição de ilegalidade a um
determinado espaço nunca foi aleatória, mas partiu de uma seletividade que dependeu,
sobretudo, das condições socioeconômicas e raciais dos moradores. Muitas outras áreas da
cidade – normalmente ocupadas por uma classe média ou elite, brancos em sua maioria -
foram originadas de ocupação de terrenos de propriedade desconhecida, apropriação de
áreas públicos ou através de fortes indícios de grilagem. Contudo, seus moradores não
sofreram os estigmas, a violência, a precariedade e a insegurança que historicamente foram
destinadas às favelas.
Vale ainda ressaltar que a “ferramenta” da remoção sempre esteve, para o Estado,
como uma possibilidade mais ou menos utilizada de acordo com o caso e muitos despejos
coletivos foram executados nessa década. Uma vez que ainda persistia fortemente a noção
de que os espaços de moradia populares, especialmente, negros, consistiam em algo
estranho a sociedade, como um fenômeno patológico. Logo, a sua remoção mecânica
levaria a solução da questão.
Com a progressiva abertura do regime ditatorial, culminando em 1945, a questão da
necessidade do desenvolvimento de políticas públicas para as favelas, cada vez mais
populosas, não pôde mais ser ignorada e passa a ocupar lugar de destaque nas preocupações
das autoridades e da opinião pública. A Câmara dos Vereadores voltou a atuar ativamente

201
Jornal Imprensa Popular, 4/4/1951, P.4
109
com intensa inserção na cidade, e a questão das favelas passou a alimentar intensos debates.
Contudo, como afirma Amoroso, ao analisar a memória relativa ao Morro do Borel, a
atuação do Estado no que se refere a políticas públicas direcionadas às favelas, sempre foi
caracterizada pela ambiguidade, com momentos de maior tendência remocionista e outros
de maior tolerância de permanência.202 Seguindo essa mesma linha, Gonçalves observa que
se consolidou uma relação de tolerância pautada no uso político e eleitoral de seus
moradores:

“Consolida-se a tolerância às favelas com a condição que seus habitantes


aceitem o papel de massa de manobra política. Trata-se sobretudo da “política da
bica d’água”, que condicionou pequenas melhorias em troca de apoio eleitoral,
sem jamais traduzir essas intervenções em direitos adquiridos pelos
beneficiários”. 203

O relato de Maria é bem ilustrativo dessa “política eleitoral” para as favelas, onde,
ainda que faça referência a um contexto social e político distinto, relativo às vésperas das
eleições para governador do estado da Guanabara, em 1960, na qual Carlos Lacerda saiu
vitorioso:
“Carlos Lacerda quando veio pra se candidatar ele veio aqui em baixo, lá em
baixo na associação e disse pro pessoal: “Ó, eu vou botar luz, eu vou botar água
nesse morro. Mas vocês têm que prometer que vão votar em mim. Se vocês
votarem em mim eu vou botar água e luz nesse morro. Vou entrar em contato
com a BENDOQ que a tava com o Frei Cassiano para que venha o material pra
vocês trabalhar, mas tem uma coisa. Vocês vão contratar vocês mesmos. Cada
um de vocês aqui vão trabalhar. E eu vou mandar fiscalização e profissionais pra
cuidar do trabalho de vocês. Fez um abaixo assinado, uma assinatura, todo o
homem que quis trabalhar, assinou. Ele mandou todo o material. Aí começaram,
né? A fazer o esgoto, botando aqueles canos, aquelas manilhas grandonas. Eles
deram o material, tinham os profissionais e os moradores ajudando a trabalhar. E
assim foi, depois foi entrando asfalto, asfaltando, acabando com o barro, né?
Depois foi a luz. Aí ele preparou tudo, deixou tudo preparado! Mas ele disse: “
olha, vai jorrar água e acender a luz se eu ganhar!” Tá tudo pronto, tá tudo
pronto! Quando disser Carlos Lacerda ganhou, nessa noite vai jorrar água e luz. E
foi verdade... No dia que deu a vitória de Carlos Lacerda foi um tal de jorrar água
por tudo quanto é bica aqui e luz acender e todo mundo com luz. Quem já tinha
botado na sua casa, tava mais forte e quem não botou agora tinha.” 204

Como a maior parte da população negra no Brasil após a abolição, os favelados


sempre conviveram em uma realidade de constante insegurança com relação à sua
permanência nos seus espaços de moradia e trabalho, dada a dificuldade de acesso à
propriedade formalmente reconhecida. Nesse sentido, viveram em constante negociação

202
AMOROSO, Mauro. Caminhos do lembrar: a construção e os usos políticos da memória no Morro do
Borel. Tese de Doutorado. PUC, Rio de Janeiro, 2012.
203
GONÇALVES, Rafael Soares. Da política da contenção à remoção: aspectos jurídicos das favelas
cariocas. In.: Favelas Cariocas: ontem e hoje. Orgs. MELLO, Marcos Antônio da Silva [et al.] Garamond, Rio
de Janeiro, 2012.
204
SOUZA, Maria Viana...Op. cit.
110
política – individual e coletiva – uma vez que qualquer promessa de melhorias fortalecia,
de alguma maneira suas possibilidades de permanência e melhores condições de vida. Essa
dinâmica não pode ser negligenciada em uma conjuntura histórica que a remoção era, de
certo modo, uma ameaça sempre presente.
Com a saída de Vargas da presidência, o debate em torno da habitação popular na
capital vem à tona com força em grande medida devido à visibilidade que o momento de
plena efervescência política proporcionou às lutas de resistência dos favelados. Estas foram
levadas a cabo, prioritariamente, pela permanência de suas moradias e pelo direito de
ocupar seu espaço na cidade. De certa maneira, nunca cessaram, mas estavam apenas
silenciadas. Esse processo de abertura apresentou uma possibilidade tanto para os partidos
políticos, sindicatos e movimentos sociais no geral no que se refere à retomada plena das
atividades de luta por melhores condições de vida, anteriormente, sufocadas ou
invisibilizadas pela repressão. Os debates envolvendo a questão das favelas assumem
contornos cada vez mais politizados, que gerariam efeitos mais visíveis principalmente na
década seguinte. 205
Para os ideólogos do Estado Novo, a situação chegou a tal ponto por falta de
organização e de um enérgico controle por parte dos administradores anteriores. Havia
ainda uma concepção de que o favelado necessitava ser reeducado, uma vez que, ignorantes
que eram e sem a visão abrangente do qual a elite era dotada, escolheram de forma
incorreta o seu tipo de moradia, sendo os principais culpados por todos os problemas
habitacionais envolvendo a existência das favelas. Como podemos observar em trecho do
relatório do já citado Vitor Moura, há um forte incômodo com os hábitos e os
comportamentos – retratado de forma estereotipada - dos favelados, supostamente avessos
ao trabalho:
“A vida lá em cima é tudo quanto há de mais pernicioso. Imperam os jogos
de baralho, de chapinha, durante todo o dia, o samba é a diversão irrigada a
álcool. Os barracões, às vezes com um só compartimento abrigando, cada um,
mais de uma dezena de indivíduos, homens, mulheres e crianças, em perigosa
promiscuidade. Há pessoas que vivendo lá em cima, passam anos sem vir a
cidade e sem trabalhar”. 206

Eles acreditavam que o favelado necessitasse de orientação firme e autoritária do


Estado, no sentido de realizarem melhor escolha de moradia. Portanto, seria preciso um
aparato de controle e ordenamento mais eficiente do que somente as proibições de novas

205
GUEDES, Marco M. Pestana de A.: A atuação da União dos Trabalhadores Favelados a Consciência da
Classe Trabalhadora Carioca. Marx e Marxismo 2011: teoria e prática, 2011.
206
MOURA, Victor Tavares de. “Favelas do...Op. Cit. P. 66
111
construções e melhorias nos barracos das favelas (já estabelecido no código de obras de
1937). Durante a década de 1940, observamos tentativas de implantação de um processo
formador e educativo mais sistemático entre essas populações para atingir o objetivo de
neutralizar as crescentes movimentações políticas de moradores, que nessa época já se
mostravam com enorme capacidade de união e luta. Dentre as medidas educativas
estabelecidas - obviamente sem participação ou opinião dos moradores - pelo programa
governamental para as favelas (das quais várias foram postas em prática nos parques
proletários) podemos destacar: a promoção de forte campanha de reeducação social,
correção de hábitos pessoais, a apuração de conduta social, o incentivo de escolha de
melhores moradias, imposição de uma disciplina própria dos internatos, transmissão diária
das lições morais e promoção religiosa católica através de missas públicas. 207
Como já dissemos anteriormente, muitas favelas não surgiram de invasões ilegais,
mas de ocupações permitidas por proprietários ou supostos proprietários. Gonçalves
observa que no início do século vários proprietários de cortiços transferiram suas atividades
para os morros estimulando a formação de várias favelas. Outras surgiram a partir de
loteamentos que não foram legalizados pela prefeitura. Nas décadas de 1930 e 1940 a
cobrança pelo uso do solo nos morros próximos ao centro se constituiu como um recorrente
e rentável negócio, liderados por pessoas que, sendo proprietárias de terras próximas aos
morros ou em parcelas destes, assenhoravam-se – muitas vezes com o apoio armado
próprio ou policial – de toda uma área, iniciando uma atividade locatária de barracões ou
arrendando terrenos. Dentro dessa lógica, o crescimento das favelas era interessante e sua
ocupação era não só autorizada como amplamente estimulada. Normalmente, o
relacionamento com os moradores era tenso e intimidador, e a possibilidade de despejo ou
destruição dos barracões, uma ameaça constante.
No tradicional morro de São Carlos, já no início dos anos 30, desenrolou-se uma
séria batalha nos tribunais, com repercussão nos jornais onde o suposto proprietário do
morro, Armênio Gonçalves Fontes, através de diversas manobras judiciais tentou
sacramentar uma ordem de despejo coletivo de mais de cinco mil moradores.208 No morro
do Andaraí, havia uma fazenda que foi desapropriada e começou a ser controlada por
grileiros, metade de Baita e Bernardinho e a outra parte de Candinho, que cobravam

207
VALLA, Victor Vincent (Org.) Educação e Favela. Ed Vozes, Petrópolis, 1986.
208
BITTENCOURT. O Morro é do povo...Op. cit.
112
aluguéis, frequentemente, com o uso da força.209Já na Mangueira, a cobrança de aluguéis de
barracos no morro – seguindo o relato de Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça –
datam dos primeiros anos do século XX, por administração do português Tomás Martins.
Ele e posteriormente, outros locatários estabeleceram um próspero negócio no morro dada a
sua localização privilegiada. Esses rápidos exemplos demonstram que essa modalidade
imobiliária se não era maioria absoluta, era consideravelmente comum e, relacionando-se
com a origem de diversas outras tradicionais favelas das áreas centrais tais como:
Salgueiro, Formiga, Borel, etc.210

3.2 RESISTÊNCIA POLÍTICA E CULTURAL: A QUESTÃO RACIAL E OS


MOVIMENTOS DE FAVELAS

Como já vimos, o fato das favelas serem territórios majoritariamente negros, assim
como a questão da pobreza e da informalidade têm relação direta com a criação de
estereótipos negativos, assim como uma distribuição desigual de serviços públicos e
direitos por parte dos órgãos públicos. Fischer (2012, p. 445-446) demonstra essa
correlação entre “pobreza” e “negritude” no Rio ao argumentar que:

“Quando os números do recenseamento predial de 1933 são comparadas


com as estatísticas do Censo de 1940, o analfabetismo mostra uma forte relação
negativa com todas as formas de abastecimento de serviços e é fortemente
correlacionado com a presença de barracos. (...) A percentagem de moradores
brancos e a provisão de serviços são mais altas nas proximidades do centro,
enquanto a oferta de serviços públicos e a porcentagem de moradores brancos
caem fortemente nas favelas e nas áreas suburbanas mais pobres. O Rio de
Janeiro caracterizado pela pobreza – e com ela, a ilegalidade, a insegurança, e a
falta de serviços públicos gerados por décadas de decisões oficiais - é claramente
mais africano que a cidade dos seus privilegiados conterrâneos, um espaço no
qual os legados da escravidão foram em alguma medida, aprofundados pelas
ações das autoridades públicas. ”

Ainda que o fato das favelas serem espaços majoritariamente negros esteja
diretamente ligado a estigmatização ao qual foram expostas, os movimentos comunitários
de favelados, ao longo de sua trajetória no século passado, normalmente não apresentaram
reivindicações ou discursos políticos baseados em questões raciais nem na condição social
da população negra na cidade. Na verdade, eles concentraram seus esforços em

209
IBASE, Histórias de favelas da Grande Tijuca contadas por quem faz parte delas. Projeto Condutores (as)
de Memória -Rio de Janeiro - IBASE: Agenda Social Rio, 2006
210
SILVA, Maria L. Favelas Cariocas...Op. Cit.
113
movimentos cujas metas principais eram garantir a existência e a estabilidade da
comunidade (luta por moradia) e o acesso a serviços e infraestrutura básica.
Oliveira, comparando a organização política nas favelas com os guetos de Nova
Iorque, observa que nas favelas a identidade racial mais difusa de seus moradores em geral
não formou base para a construção um discurso pautado na identidade negra nem na luta
contra desigualdades raciais.211 Isso é bastante compreensível quando percebemos que os
guetos americanos se formaram em um contexto de isolamento e segregação muito maior
do que as favelas. Estas por sua vez não são espaços exclusivamente negros, mas sua
presença nesses territórios é desproporcionalmente maior do que no restante da cidade.
O autor também observa que “historicamente, o ativismo político nas favelas
brasileiras seguiu os contornos das correntes sociais mais amplas e foi assimilado por elas.
”212. No contexto brasileiro das décadas de 1930 e 1940, a construção da identidade
nacional estava cada vez mais orientada a esconder as desigualdades raciais sob o espectro
da miscigenação e os canais de negociação abertos pelo governo voltavam-se
principalmente para os “trabalhadores pobres”. Essa tendência também se impôs na atuação
política da época, inclusive nos partidos de esquerda, sobretudo o PCB. Logo, as primeiras
organizações comunitárias das favelas tenderam a se inserir num universo de lutas e
movimentos mais abrangentes, normalmente ligados somente a questões de classe, como
sindicatos, entidades da Igreja e partidos políticos.
Em nossas entrevistas também foi perceptível a predominância de indivíduos negros
entre os moradores mais antigos da favela. Esses, por sua vez, demonstram forte
consciência racial e dos efeitos do racismo em nossa sociedade. Otacílio afirma:

“O preconceito existia e ainda existe. O preconceito não acaba


rapaz...Porque o negro, continua sendo negro! Negro mesmo. Agora que nós
temos a oportunidade, que nós vivemos numa sociedade que tá misturada
também. Mas que tem muitas pessoas lá do alto, que eles gostam, de ter uma
empregada negra, gostam do motorista negro, entendeu? Chamam o carpinteiro
pra fazer o serviço lá na casa deles, botar uma porta, muito bonito, então dá valor
a ele. Mas com tudo isso, nós negros, nós continuamos ainda embaixo do chicote.
Então o negro teve a liberdade! Você vai no futebol, vai na Igreja, bota um terno,
mas com liberdade. Antigamente o negro não tinha liberdade. Era escravizado
mesmo, chicoteado! Mas não acaba isso, não acaba nunca. Você vai em
Copacabana, você não vê um garçom preto! Você já viu? Pode correr aqueles
bares, restaurantes, você não vê um garçom negro. E tem profissionais de
primeira!”213

211
OLIVEIRA, Ney Santos. Segregação e Mobilização Política em Guetos e Favelas. Um estudo comparativo
de raça e classe na formação de comunidades pobres. Revista VIVERCIDADES, Rio de Janeiro, v. V I, 2002.
212
Id. P. 4
213
DUARTE, Otacilio...Op. Cit.
114
Waldir barbosa, também demonstra um discurso crítico no que se refere às questões
raciais, representatividade e principalmente a dissimulação do racismo na sociedade
brasileira:

Tem vários tipos de preconceito, tem o social e o de raça. O preconceito


social é se mora mal ou mora bem, aí te deixa de lado...O preconceito racial é a
cor da tua pele né? Dos países preconceituosos, o Brasil é líder, sabe por causa de
quê? Ele finge que não é, mas ele é. Isso é pior ainda. Isso é pior ainda! Os
Estados Unidos é conhecido como um país preconceituoso, racista, mas eles se
declaram que é. Não esconde. E quando uma pessoa negra, nos Estados Unidos
tem valor, eles elogiam. No Brasil, não. No Brasil, não. É eles não cedem um
milímetro, entendeu? Infelizmente o preconceito é uma coisa que não merece
nem ser citado aqui né? (risos) É, faz parte né? E temos que falar sobre isso...só
isso. As Lojas Americanas mesmo, no passado, não admitia negros. Você não via
um funcionário negro nas Lojas Americanas, no passado, agora sim, mas tu não
via. Não via de jeito nenhum. Eles não admitem de maneira nenhuma.
Infelizmente esse é o país que vivemos. Não podemos tapar o sol com a
peneira. 214

Ainda que apresentassem uma postura firme com relação a sua identidade, ambos os
entrevistados demonstraram – através das expressões faciais e da mudança no tom de voz -
um certo constrangimento e revolta ao falar da temática do racismo. Mesmo que não
tenham relatado experiências próprias, possivelmente, o assunto tenha remetido a
recordações que não gostariam de lembrar, revelando feridas que não foram curadas e que
não irão cicatrizar tão cedo. Essas falas revelam também uma descrença em melhoras com
relação a essa questão. Uma desesperança que, segundo West 215 acompanha afro-
descendentes em diversas partes do mundo, fruto de experiências de discriminação,
violência, invisibilidade e humilhação.
De qualquer forma, ainda que essa condição identitária presente nas favelas não
tenha se tornado uma bandeira política centrada nas questões raciais, ela esteve e está
presente de outras formas, mais sutis do que costumam ser os discursos militantes, porém
não menos contundentes. Inclusive, através de maneiras diversas de organização. Ainda
segundo Oliveira:

“A solidariedade racial, como transmitida pelo movimento dos direitos


civis, e o papel histórico da igreja negra são elementos-chave na mobilização de
comunidades nos Estados Unidos. As favelas diferem dos guetos a esse respeito.
A identidade racial é construída em todas as entidades culturais e religiosas afro-
brasileiras das favelas, mas elas não formam a base para o engajamento político
em torno da raça. ” 216

214
BARBOSA, Waldir...Op. Cit.
215
WEST, Cornel. Questão de raça. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
216
OLIVEIRA, Ney Santos. Segregação e Mobilização Política em Guetos...Op. Cit. P. 4.
115
Embora nas favelas a identidade racial não estivesse claramente presente no
discurso político, ela se apresenta através dos laços de parentesco e amizade, e de
manifestações culturais negras tais como o jongo, a folia de reis, o samba. Este último de
grande importância, pois através dele os moradores – muitos deles originários de regiões
rurais diversas - construíram experiências organizativas, criaram espaços de convivência,
sociabilidade e fortaleceram sua noção de pertencimento ao lugar. Joel Rufino destaca, para
além da questão musical, o papel histórico do samba como forma de sociabilidade ou o
“lugar social do negro” no cenário urbano carioca:

“Ao dizer samba não se está falando, pois somente de um tipo de música
[...] A base material do samba são os grupos negros urbanos cariocas em
interação (trocas e fricções) com outros inclusive grupos rurais (Estado do Rio e
Minas) recém-imigrados. Samba é veículo musical de sociabilidade – trabalhos,
festas, rituais, linguagem, hábitos – desses grupos. Há, pois, samba gênero
musical – sambas, talvez fosse melhor dizer – e samba forma histórica de
sociabilidade ou lugar social. ” 217

Com relação a isso, nosso entrevistado Waldir revela como o cotidiano do Morro do
Salgueiro estava marcado pelo samba que, por sua vez também passou por consideráveis
metamorfoses ao longo das décadas naquela comunidade:

Roda de samba é o nome que eles dão atualmente. Uma roda com várias
pessoas cantando. Mas no passado essa palavra roda de samba não existia...samba
de roda! Samba de roda, não roda de samba. Roda de samba é uma coisa,
qualquer um cantando, mas samba de roda era diferente. Samba de roda significa
o quê? Os componentes da escola de samba cantando o samba, geralmente um
samba que não tinha a segunda parte, quer dizer a parte que deveria ser a segunda
era versada, em verso de improviso, então eles cantavam e depois versavam em
verso de improviso. Na segunda parte, não existia a primeira parte. E o nome
samba de roda é porque as pastoras evoluíam em círculo.... Poucas pessoas sabem
disso. É diferente. As pastoras cantavam evoluindo em círculo, por isso que era o
samba de roda. Esse eu peguei. [...] É não tinha luz. Era na luz do lampião, de
gambiarras. As gambiarras quer dizer assim, de onde clareava o ambiente.
Quando as noites eram claras de verão, de lua cheia nem precisava. Assim era o
samba de roda. Roda de samba, não. É uma meia dúzia de pessoas cantando
samba. Era samba de roda. As pastorinhas evoluindo em círculos. Aí ficava o
pessoal com instrumento e ficava dois pra versar. Não cantava a segunda parte
porque não tinha, e a segunda parte era de improviso. Conforme aqueles desafios
que têm no Nordeste, né?218
Por outro lado, Sormani Silva aponta as possibilidades políticas desses “espaços de
sociabilidade” construídos em territórios negros:

217
RUFINO, Joel dos Santos. Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004.
P. 151
218
BARBOSA, Waldir...Op. Cit.
116
As estratégias do recreativismo e da sociabilidade situam-se no sentido da
promoção dos laços comunitários de negros e mestiços no espaço urbano e,
descartavam em muitos casos, as propostas que se moviam por uma luta mais
ideológica ou revolucionária, sem deixar de absorver e até apoiá-las em muitos
casos. Em geral, a questão da sociabilidade estava mais vinculada a projetos que
garantissem conquistas dentro dos limites do discurso da “democracia racial”.219

Ainda que não tenham trazido discursos ou bandeiras ideológicas mais radicais, a
construção da resistência política na favela se deu por estratégias diversas, indissociáveis,
que nem sempre passavam pelo contato com partidos e candidatos políticos ou movimentos
sociais externos. Nesse sentido, resistência não é sinônimo de revolução. Resistências são
as diversas formas que a população encontra para lutar contra aquilo que lhe oprime, que
muitas vezes se dão em pequenas ações e estratégias da vida cotidiana – não raro
negligenciadas pela historiografia - e não dependem necessariamente de grandes revoltas e
mobilizações. Nessa mesma linha, Velloso afirma: “Historicamente, uma das características
da comunidade negra tem sido sua capacidade subterrânea de resistência [...] Nem sempre
ela entrou em confronto direto com o poder, preferindo, ao invés, aproveitar os interstícios
e brechas para fazer valer a sua influência.220
Dessa forma, Waldir lembra de Joaquim Casemiro, o “Calça Larga”, que em um
momento anterior às associações de moradores, foi para ele foi a maior liderança da história
do Morro do Salgueiro, e ficou marcado sobretudo por sua atuação no meio do samba:

“Ainda não tinha. Nem se pensava nisso. Depois que foi, com a evolução
que surgiu a associação de moradores. Mas nesse tempo nem se pensava nisso.
Tinha algumas pessoas que era líder né? Com a sua força de persuasão, de
convencer, se torna um líder entendeu, teve vários aqui. [...] Joaquim Casimiro,
conhecido como o “Calça Larga”. O seu poder de persuasão, de convencer era um
absurdo, era demais! Ele era uma verdadeira raposa, que simboliza a esperteza.
Ele era. E não era uma pessoa letrada não, hein! Mas era o dom dele. O líder você
não fabrica não, ele nasce líder. E esse era seu campo: as escolas de samba. Onde
ele comandava a escola de samba lá do alto, entendeu? A escola Unidos do
Salgueiro, entendeu, ele era um dos comandantes da escola.” 221

Como vimos, antes das sérias disputas de terra que deram origem ao Morro da
Liberdade, nos anos de 1940, Turano já tentara da mesma maneira, na década anterior,
despejar boa parte dos moradores do Morro do Salgueiro. Nessa favela, famosa por sua
ligação profunda com o samba, os laços comunitários e a experiência organizativa

219
SILVA, Sormani da Escola de Samba Deixa Malhar, batuques e outras sociabilidades no tempo de Mano
Elói na Chácara do Vintém entre 1934 e 1947. Dissertação (Mestrado). Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca , 2014. P. 55
220
VELLOSO, Monica Pimenta. As tias baianas tomam conta do pedaço. Espaço e identidade cultural no Rio
de Janeiro. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990, p.207-228. P. 13.
221
BARBOSA. Waldir...Op. Cit.
117
construída em torno das agremiações foram fundamentais na luta contra as ameaças de
despejo de Turano.
Em 1933, boa parte dos moradores da favela estavam inquietos com o perigo de
serem expulsos, já que o italiano reivindicava a propriedade da área. Na ocasião, a
resistência dos moradores se construiu com a liderança do sambista Antenor Santíssimo de
Araújo, conhecido como “Antenor Gargalhada”, que fez da escola de samba “Azul e
Branco” um centro de articulação dos habitantes do morro, uma espécie de embrião de uma
associação de moradores.222 A importância dessa liderança para a história do Salgueiro é
tanta que seu nome é frequentemente lembrado como um dos pioneiros articuladores do
samba e das escolas de samba. Nosso entrevistado Waldir Barbosa reforça o pioneirismo de
Gargalhada:

Olha, eu vou dizer pra você. Os grandes sambistas do Salgueiro, que depois
dele, depois é que vieram os outros. O primeiro sambista do Salgueiro chamava
Antenor, conhecido como Antenor Gargalhada. Esse foi seu primeiro grande
sambista. Você não encontra nenhum sambista no Salgueiro, pode perguntar aí
pelo morro, subir o morro e perguntar. Nenhum sambista anterior a Antenor, o
primeiro grande sambista. Ele é dos anos 30. Eu tinha meus 14, 12 anos. Antes de
Antenor você não conhece nenhum outro compositor antes dele não. Todos que
vieram, é depois de Antenor. Todas as gerações de sambistas vieram depois de
Antenor.223

Sua atuação foi fundamental para a continuidade da existência da comunidade.


Através da escola Azul e Branco, foi contratada a assistência jurídica necessária. Como
veremos adiante, as batalhas judiciais ainda perduraram por mais 11 anos, antes que Turano
fosse definitivamente derrotado.
Voltando para o nosso pedaço de chão em questão, temos a agremiação
carnavalesca “Deixa Malhar”, fundada em 1934, que revela a capacidade organizativa dos
moradores em torno do samba, antes mesmo das disputas com Emilio Turano e da
formação do chamado “Morro da Liberdade”. Sua sede situava-se na antiga Chácara do
Vintém - mais precisamente no fim da rua Delgado de Carvalho – na parte baixa da área
conhecida como “Morro do Turano”, ”Chácara do Vintém” ou “Morro do Vintém”.
Segundo Silva, a Chácara do Vintém integrava uma rede de territórios – que abrangeria a
região portuária, a Grande Tijuca, Vila Isabel, Mangueira e Estácio - com forte presença
negra, física e culturalmente.224 E também de ocupação que remonta fins do século XIX.

222
CABRAL, Sergio. As escolas de samba do Rio de Janeiro...Op. Cit. P. 55
223
BARBOSA, Waldir...Op. Cit.
224
SILVA, Sormani. Escola de Samba Deixa Malhar...Op. Cit. P. 44
118
Não por acaso, nessa região se concentraram algumas das favelas mais antigas e
também as primeiras agremiações da cidade: Estácio de Sá, Unidos da Tijuca, Império da
Tijuca; que são contemporâneas das extintas: Azul e Branco, Unidos do Salgueiro e Depois
Eu digo. Ainda segundo esse autor, a história do samba – principalmente na Tijuca - está
totalmente ligada à articulações, lutas e trajetórias negras no espaço urbano, principalmente
os morros da cidade:

A história do samba na Tijuca está associada à ocupação dos morros. A


história dessas agremiações não é apenas a história social do carnaval carioca.
Trata-se de uma via de mão dupla sobre a trajetória das populações negras no
espaço urbano. Nela se inscreve uma luta submersa sobre a ocupação do território
urbano, algo pouco dimensionado nas narrativas sobre o samba. 225

Embora praticamente esquecida dos estudos sobre o tema, a Deixa Malhar foi uma
das primeiras agremiações de samba do Rio de Janeiro. E surgiu durante o Estado Novo,
um momento de intensos debates que envolviam a construção a identidade nacional e sua
tensa relação com manifestações culturais negras. Para ter noção de sua importância na
época, basta lembrar que as primeiras reuniões para fundação da UES (União das Escolas
de Samba) se realizaram na sede do antigo bloco “Deixa Malhar” em 1934226.
Para além disso, ela foi fundada sob a liderança de Elói Antero Dias, o “Mano
Elói”, um personagem central para a compreensão da dinâmica cultural negra no pós-
abolição. Segundo Barbosa227, a singularidade de Elói reside justamente na desenvoltura
com que ele circulava – sempre em posições de liderança – entre diferentes dimensões da
vida da população negra, seja nos espaços de trabalho, de música ou religiosidade. Ainda
segundo a autora, ele era natural de Resende, e migrou muito jovem para a capital. Foi um
dos sambistas mais importantes de sua época, atuando como articulador e difusor do samba
em redutos como Mangueira e Madureira. Era ainda ogan228de candomblé e líder do
sindicato da Resistência, ligado a trabalhadores do porto e composto em franca maioria por
negros.
Assim como aconteceu com outras escolas de samba, a Deixa Malhar também
vivenciou conflitos sociais com a “boa sociedade” circundante. Uma articulação da
vizinhança tijucana contra suas atividades utilizou o argumento do incômodo causado pelo

225
Id. P. 43
226
Id. P. 43
227
BARBOSA, Alessandra. Estando com Mano Eloy com seu lindo terno Azul : trajetória e redes de
sociabilidade no pós abolição, Anais da Ampuh, 2015
228
Na religião afro-brasileira candomblé ogan é um sacerdote escolhido pela divindade ancestral orixá, que
permanece lúcido durante todos os trabalhos, não entrando em transe, responsável dentre outras funções, por
tocar os instrumentos percussivos nos terreiros.
119
barulho. Contudo, a partir da análise da carta de uma moradora ao “Correio da Manhã”,
observamos que o discurso acerca da escola era carregado de adjetivos preconceituosos,
que expõem uma visão racista e estereotipada:

“Imagine, com conjunto com caixas de rufo, tambores africanos, cuícas


estridentes pistões com circunstância de não haver trégua e ainda não pararem um
instante as caixas e os tambores malhados por possantes mãos e o
acompanhamento ser de um vultoso coro de verdadeiros doidos, e para completar
a garotada da estalagem e dos sócios também acompanham o compasso em latas
vazias. “Alega a diretoria do club estar licenciado pela polícia; não se acredita,
porém que a licença seja assim tão ampla que vá a ponto de não permitir que
durma. A polícia ali não aparece, tanto que sempre surgem cenas bem
desagradáveis, conflitos de civis, marinheiros, praças do Exército e de outras
corporações armadas e mesmo quando se retiram do baile, offerecem espetáculos
impróprios de uma metrópole civilizada e policiada. ”.... Com os sinceros
agradecimentos desta admiradora e patrícia. ”229

A autora da carta, além de se colocar em uma posição distinta, faz referência a


“tambores africanos” classifica os sambistas como “verdadeiros doidos”, explicitando um
claro choque cultural. Ela utiliza a premissa de aplicação da lei do silêncio, em nome dos
padrões civilizatórios para camuflar sua insatisfação com a proximidade de grupos sociais
indesejáveis. Como afirma Silva, no decorrer do século XIX, o barulho entrou na agenda
das “boas maneiras” e o silêncio tornou-se um elemento de discrição social. Assim, a
atitude de “silenciar” os ambientes entrou na pauta dos agentes atentos em civilizar os
costumes, enfatizando o domínio do corpo e das paixões. Neste processo, o silêncio
inscreveria uma espécie de código de conduta entre os grupos, que se reconhecem entre si,
ao mesmo tempo articula a distância das camadas populares.230
Portanto, não é de se surpreender que o samba de alguma maneira estivesse presente
nos conflitos entre Turano e os moradores do Morro do Salgueiro e do Morro da Liberdade.
Alguns sambistas, como Antenor Gargalhada citado acima, foram uma verdadeira “pedra
no sapato” do italiano. O próprio Mano Elói residiu por alguns anos na Chácara do Vintém.
Em 1948, um ano após a extinção da Deixa Malhar, seus caminhos cruzaram-se com os de
Emilio Turano, em meio a disputa com os moradores do local. O clima era de muita tensão
naquela favela e, como diversos outros moradores, Elói foi acusado de atrasar os aluguéis
do casebre que morava do qual o italiano alegava ser proprietário.
Não foi possível afirmar se, no período em que morou no local, ele se envolveu
mais ativamente na luta dos moradores por melhores condições de moradia e pela

229
Jornal Correio da Manhã - 20/08/1940 P. 9
230
Silva, Sormani da Escola de Samba Deixa Malhar, batuques e outras sociabilidades no tempo de Mano
Elói na Chácara do Vintém entre 1934 e 1947...Op. Cit.
120
permanência da favela. De qualquer maneira, podemos supor que, sendo uma pessoa
extremamente articulada e também por sua posição de liderança, Elói não deve ter
encontrado dificuldade para conseguir apoio jurídico para o caso em questão. O fato foi que
Turano requereu seu despejo em uma ação judicial na qual saiu - a exemplo de várias outras
ações – derrotado, por não conseguir provar sua propriedade sobre a área:

A Justiça vem novamente de se pronunciar sobre a discutida posse do Morro


do Vintém ou do Turano e dos casebres ali construídos. O italiano Emílio Turano
que tem influência na polícia civil e que é responsável por distúrbios e até por
morte ali verificada, requereu o despejo de Eloy Antero Dias e outro, alegando
que o primeiro estava em atraso com os alugueres de uma casa que lhe locara,
edificada em terreno de sua propriedade.
Julgando improcedente a ação, o Juiz da 12º Vara Cível, depois de ter
mandado realizar uma perícia no local por engenheiros, condenou Turano a pagar
dez vezes o valor das custas e mais honorários do advogado do réu por ter agido
com simulação e usado de violência na cobrança de alugueres. Salientou o
magistrado que o autor dera como sua uma casa que sabia ser de outrem e
pretendera achar-se o imóvel dentro do terreno que diz lhe pertencer, quando para
tanto precisava de uma ação demarcatória, da qual aliás havia desistido,
naturalmente por carência de direitos. 231

Mano Elói não foi, contudo, o único sambista alvo das arbitrariedades de Turano.
Nascido em Minas Gerais, Eduardo de Oliveira, o “Duduca” do Salgueiro, foi despejado
aos sete anos junto com sua família da Chácara do Vintém, por ação do italiano. De certo
modo, a ofensiva do italiano forçou a migração de vários moradores para favelas próximas.
Duduca conseguiu se estabelecer no vizinho Morro do Salgueiro e lá morou até sua morte,
em 1978.232
Para se ter uma ideia da importância das agremiações carnavalescas no
fortalecimento da união e solidariedade dos favelados, basta observar que em meio a
disputa com Emilio Turano os moradores do Morro da Liberdade criaram o bloco “União
da Liberdade”. É importante observar que o próprio título do bloco faz referência a ideia de
unidade dos moradores e a “Liberdade”, nome dado ao morro por seus próprios habitantes.
Sua formação se mistura com as próprias origens do samba na comunidade. Sobre o bloco,
nos relata Otacílio:

“ O primeiro lugar que teve batucada de samba, foi aqui pra cima onde
morava o Seu Guirimaldo. Que foi de cima pra baixo, lá embaixo ninguém podia
construir ali. Não podia morar ninguém. Aqui eles fundaram um bloco chamado
União da Liberdade, aqui da comunidade, União da Liberdade. No tempo do

231
Jornal “Diário de Notícias” 2/12/1948. Ed. 8009 P.5
232
CABRAL, Sergio. As escolas de samba do Rio de Janeiro...Op. Cit. P. 188
121
Joãzinho, aquela turma, seu Guirimaldo. Aquele pessoal ali. Tem até Parafuso,
que era compositor. Lembra dele? compositor dos blocos da Liberdade. E saía!
Era Parafuso, Prego e Tachinha. Era na claridade da Lua. A gente ia pra Saens
Pena, era pouca gente, rapaz! Depois veio o Coração da Liberdade, aí melhorou
mais que virou escola. Era uma escola maior. ” 233

No final de 1948, esse bloco se transformou na escola de samba “Coração da


Liberdade”, hoje extinta, tendo desfilado ao lado das escolas mais tradicionais do carnaval
carioca. O jornal “ A Manhã” assim anunciou seu primeiro desfile: “Surge vitoriosamente!
A escola de samba “Coração da Liberdade” obteve brilhantemente a terceira colocação
no primeiro desfile em que tomou parte”.234 E a Tribuna Popular – atento às formas
organizativas populares - ao visitar o morro, relata uma apresentação da escola:

“A tarde de ontem foi festiva no Morro da Liberdade. [...] Décio Alves,


jovem compositor e dirigente da Escola de Samba fez seus rapazes desfilar. O
samba é um grande veículo de união dos homens. A Escola ali tem uma função
construtiva. Sua luta é a luta de todos, luta pelas sentidas reivindicações da
favelinha. Muito tempo ficamos a ouvir as canções. O estandarte da Escola foi
levado em desfile pelas ladeiras, entre os becos estreitos. As mulheres seguiam o
ritmo da música como em uma festa carnavalesca. No meio de todos, um
negrinho mareando o passo. Um negrinho com uns poucos anos de idade. As
crianças e os homens cantando aquele samba triste de Décio Alves:

“Trabalho tanto,
Meu dinheiro não chega,
Por isso minha nega,
Diz que vai me abandonar...””235

3.3 A ORIGEM DOS MOVIMENTOS POLÍTICOS DAS FAVELAS E A


PARTICIPAÇÃO DOS COMITÊS POPULARES DEMOCRÁTICOS

A polarização e a mobilização política que caracterizou esse momento de reabertura


influíram significativamente na atuação mais sistemática e ampliada de diversos vereadores
e militantes, notadamente aqueles vinculados ao PTB – Partido Trabalhista Brasileiro,
fundado em fins do Estado Novo sob a influência de Getúlio Vargas– e do PCB, que,
movidos por orientações políticas e objetivos bastante distintos, impulsionam um estreito
contato com os moradores das favelas cariocas, atuando em defesa da conquista de direitos,
da permanência das moradias e de suas reivindicações cotidianas mais críticas e urgentes.
236

233
DUARTE, Otacilio...Op. Cit.
234
Jornal A Manhã - 22/01/1949, p. 11.
235
Jornal A Tribuna Popular – “Dia de festa nos barracos do Morro da Liberdade” - 07/08/1947. Ed. 670. P. 6
236
GUEDES, Marco A atuação da União dos Trabalhadores Favelados...Op. Cit.
122
Tratarei mais de perto da atuação do PCB que, recém-saído da ilegalidade,
aproveitou o momento de grande efervescência política para estabelecer apoio - sobretudo
jurídico e midiático - aos núcleos organizados de favelados em diversas comunidades,
como no chamado Morro do Turano.
Nos dois anos que este partido se manteve na legalidade (1945 a 1947), seus
membros destinaram boa parte de sua atuação política nas chamadas CPD’s: os Comitês
Populares Democráticos. Eles foram criados para funcionar como espaços de articulação de
progressistas em geral, não somente comunistas, nos locais de moradia dos trabalhadores
(principalmente favelas, bairros pobres ou no subúrbio semi-rural), no apoio à luta por
direitos sociais e de reivindicações mais urgentes, surgidas no dia-a-dia do trabalhador.
Formados, ao menos na teoria, como organismos desvinculados de relações partidárias, os
comitês acabaram se construindo como ferramenta de expansão da base de eleitoral e de
atuação do partido.237
De fato, nesse período o partido comunista vivencia uma verdadeira “explosão”,
conseguindo inclusive algumas vitórias eleitorais. Como observa Oliveira, o PCB crescia
embalado por um momento histórico em que se percebe cada vez mais claramente por parte
da classe trabalhadora, “o desejo por mudanças, a expectativa de garantir e conquistar
direitos e o envolvimento de um número cada vez maior de assalariados no debate de
temas políticos candentes”.238 Essa realidade se manteria por pouquíssimo tempo, uma vez
que, a partir de 1946, inicia-se uma nova onda repressiva que culminaria com a nova
colocação do PCB na ilegalidade em fins do ano seguinte.
Nas favelas os CPD’s se atuaram oferecendo apoio e incentivando a formação de
subcomitês, ligados aos comitês dos bairros, responsáveis por gerar visibilidade às
precárias condições de vida dos favelados, suscitando o debate de seus problemas mais
urgentes em esferas públicas, exercendo pressão para fossem incorporados na agenda dos
governantes. Mas não se limitavam a isso. Os comitês se propunham também a prestar
assistência social básica (serviços de medicina preventiva, cursos de alfabetização, etc.)
fortalecer ações coletivas (que, em grande medida, sempre foram levadas a cabo nessas
localidades) na resolução de problemas mais imediatos e a articular a mediação entre as

237
ROBAINA, Igor Martins Medeiros. Diferentes conflitos, poderes e disputas territoriais: o papel da Igreja
Católica no espaço das favelas na cidade do rio de janeiro (1947-1962). Revista Scripta Nova, vol. 16,
Barcelona, 2012
238
OLIVEIRA, Luis Eduardo de. “A Tribuna Popular e a orientação do PCB para o movimento sindical do
Rio de Janeiro nos primeiros anos da experiência democrática brasileira (1945-1946)” Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. P. 10
123
demandas da população local e as instituições públicas no que acreditavam ser obrigações
do Estado, fornecendo, por exemplo, apoio jurídico nas batalhas judiciais que
eventualmente os moradores se envolviam e apoio técnico na formulação de documentação
reivindicatória destinada aos governantes. 239
A atuação desses comitês foi amplamente divulgada no periódico “A Tribuna
Popular”, em circulação desde abril de 1945 até meados de 1947. É importante situar
historicamente o papel desse jornal e da própria imprensa no conturbado contexto social e
político dessas décadas. Segundo Barbosa 240, no Brasil pós 30, e, sobretudo, a partir da
implantação do Estado Novo, os meios de comunicação assumiram papel de protagonistas.
O rádio e o jornal tornaram-se massificados e ganharam relevo na difusão da ideologia
varguista. Porém, como vimos, esse momento também é marcado pelas ambiguidades e
contradições do regime. Se por um lado, os grupos dominantes dialogam e acolhem parte
das reivindicações da classe trabalhadora, sob o rótulo das “leis trabalhistas”, por outro, se
configura um autoritarismo e uma censura no sentido de inibir quaisquer posicionamentos
críticos ao governo.
A complexidade das relações políticas dos grupos no poder se reflete na
configuração do jornalismo da capital. Houve perseguição de inúmeros periódicos, mais
críticos, mas também uma cooptação e alinhamento dos dirigentes das principais
publicações ao regime, onde contribuíram na construção e difusão de um pensamento que
se pretendia como dominante, ligado a ideais do Estado Novo. 241Com a saída de Vargas do
poder em 1945, se constrói um momento de maior liberdade política que traz à tona uma
enxurrada de questionamentos, reivindicações e tensões abafadas pelo regime. Diante disso,
as páginas dos jornais, principalmente, nos grandes centros urbanos, viraram palco
privilegiado para difusão de ideias, acalorados debates acerca das questões mais sérias do
país e acirradas disputas políticas. E a favela era uma das questões políticas do momento.
O PCB volta a atuação, se expande carregando essas ideias e não deixa de investir
na imprensa, que se tornara uma ferramenta cada vez mais poderosa. Nesse contexto que
entra em circulação, ainda que por apenas dois anos, a “Tribuna Popular” funcionou como
um verdadeiro canal de divulgação política do PCB junto à população que chegou a tiragem

239
GUEDES, Marco M. Pestana de A.: A atuação da União dos Trabalhadores...Op. Cit.
240
BARBOSA, Marinalva.História Cultural da Imprensa (1900-2000). Rio de Janeiro, Mauad Editora, 2007.
241
ARAÚJO, Nelton S. "Imprensa e Poder nos anos 1930: uma análise historiográfica". Encontro nacional
UFRGS, 2008
124
de 50 mil exemplares.242 Por manter um posicionamento de crítica e denúncia social, a
“Tribuna Popular” foi o periódico que mais divulgou no período a questão da dificuldade
da vida nas favelas, da precariedade enfrentada por seus moradores, da exploração de
grileiros - incluindo o conflito no Morro do Turano ou Liberdade - e acabou sendo
perseguido e fechado junto com o PCB em 1947. É importante lembrar que foi nessa nova
onda autoritária de 1947 e 1948 que se desenrolou a “Batalha do Rio” 243, uma campanha
jornalística movida pelo “Correio da Manhã” e liderada por “Carlos Lacerda”. Em um
momento em que a imprensa se encontrava em transição de um jornalismo de opinião para
um jornalismo de massas, as campanhas jornalísticas cumpriam um papel especial na
definição de um foco de discussão da agenda política. Nesse caso era justamente a questão
das favelas e a preocupação com a expansão da atuação comunista nesses espaços.
Podemos pensar ainda que, nesse momento político em que o país acabara de sair de
uma ditadura de vários anos, onde a figura do comunista foi profundamente perseguida pelo
governo do Estado Novo, que o envolvimento com militantes comunista suscitasse não
somente temor como também rejeição de parte da população. Mesmo assim, a atuação dos
comitês (que não se apresentavam como comunistas) ao menos no que tange iniciativas
organizativas no interior das favelas contornou tais concepções e ganhou força justamente
através do discurso político amplo, de questões básicas como saúde, educação, moradia,
liberdade, reforma agrária, etc.
Por outro lado, reconhecer a participação de comunistas - através dos CPD’s - no
estímulo a criação de organizações no interior das favelas, não significa afirmar que o
partido foi o único responsável pela articulação política nesses espaços. Certamente
ocorreram diálogos onde os moradores não se mantiveram insensíveis ao discurso e a
atuação dos comunistas. A aliança com elementos do PCB foi indispensável para a luta dos
moradores do Morro da Liberdade, sobretudo, no que se refere ao acesso a um suporte
jurídico nas disputas fundiárias, suporte midiático - para garantir a visibilidade da sua luta -

242
OLIVEIRA, Luis Eduardo de. “A Tribuna Popular...Op. cit. P. 2
243
“A batalha do Rio de Janeiro” foi como ficou conhecida uma série de artigos jornalísticos escritos por
Carlos Lacerda no jornal “Correio de Manhã” em 1948, que gerou grande repercussão no cenário político
carioca da época. São artigos de forte caráter anticomunista, em um contexto de cassação da legalidade do
PCB, apresentando um projeto liberal –católico para as favelas em contraposição a antiga política getulista e a
atuação comunista. A campanha realiza uma forte defesa da instituição de assistencialismo católico Fundação
Leão XIII, criada em parceria com o poder público, justamente para rivalizar e esvaziar a atuação do PCB em
diversas favelas cariocas. Lacerda critica as medidas governamentais criadas pelo trabalhismo, pautadas no
que chama de “economia da caridade”. A partir de um discurso voltado para a classe média, a campanha
destaca os aspectos humanos das favelas, valorizando o papel da assistência social em favor dos
desfavorecidos e marginalizados. OLIVEIRA, Samuel S. R. A “batalha do Rio” e a representação da
“favela”. Encontro regional da AMPUH, Rio de Janeiro, 2010.
125
e político, através da defesa dos vereadores comunistas na câmara da cidade. Porém, esses
movimentos comunitários possuíam sua própria autonomia. A solidariedade e a ação
coletiva cotidiana já existia há muito tempo entre as comunidades rurais e desde o início
das próprias favelas. Na verdade, a solidariedade se fazia presente ao compartilhar com
outras pessoas um cotidiano de dificuldades advindos da pobreza, do trabalho árduo, da
violência e da instabilidade frequentes na realidade de comunidades negras social e
espacialmente segregadas.
Sendo assim, a luta tinha como base a moradia e melhorias de condição de vida,
com o acesso aos serviços públicos básicos. Bittencourt argumenta que até a década de
1960, pode-se distinguir duas fases de lutas dos moradores das favelas. Primeiramente, a
partir do início da década de 1930, os conflitos entre moradores e proprietários motivaram a
organização comunitária e a luta contra os despejos e caracterizou-se principalmente por
articulações locais em cada comunidade. Acerca desse momento, a documentação escrita é,
no geral, muito residual e fragmentária, restringindo-se a notas de jornais e cartas dos
moradores a autoridades. E outra fase, a partir da década 1950, que teve grande relação
com a formação de associações de moradores e articulações maiores entre diversas favelas
(como a UTF) com o objetivo de resistir a tentativas de remoções por parte do governo e
particulares, assim como pressionar o poder público no sentido de obter melhorias
estruturais nesses espaços.244
Por exemplo, em 1934, já atentos aos planos de destruição da favela, os moradores
do Morro de Santo Antônio criaram uma comissão e produziram um abaixo-assinado,
destinado presidente Getúlio Vargas. No tradicional morro de São Carlos, no Estácio, a
partir de 1932 seus moradores enfrentaram sucessivas tentativas de despejo coletivo
acionadas pelo suposto proprietário, apesar dos sérios indícios de grilagem. Segundo
reportagem do jornal “A Noite”245, nesse ano, Armênio Gonçalves Fontes afirmou ter
comprado o terreno que abrangia aquele morro e parte do vizinho, Morro do Querosene.
Ele ordenou o despejo coletivo de todos seus moradores. Essa ordem causou grande alarme
entre os moradores que, coletivamente, apresentaram uma contra-proposta: eles aceitariam
pagar um aluguel pelo terreno que ocupavam, desde que não comprometesse seus
orçamentos básicos. O proprietário aceitou, cobrando, contudo, o valor de 120$000 por

244
Bittencourt, Daniele Lopes. “O Morro é do povo”: memórias e experiências de mobilização em favelas
cariocas. 2012 – Dissertação em História Social – UFF. P. 140
245
Jornal “A Noite” 22-11-1932 Ed. 7543 P. 1
126
barraco, considerado extorsivo, pois era muito acima do que qualquer favelado poderia
pagar.
Assim sendo, os despejos começaram, causando revolta entre os moradores. Eles
argumentaram que seu direito de posse e as benfeitorias que tinham realizado deveriam ser
respeitados. Mesmo com suporte jurídico, diversos casebres foram derrubados. Sem
enxergar alternativas de diálogo com Fontes, os moradores organizaram um enorme
protesto. Ao meio dia de 22 de novembro, cerca de 5 mil moradores (um número não muito
confiável, que pode ter sido superestimado pelo jornal, mas que traduz uma manifestação
de grande vulto, para a época) desceram as ladeiras do São Carlos, atravessaram o Rio
Comprido, a rua Haddock Lobo, rua Estácio de Sá, Salvador de Sá, Mem de Sá, Lapa e
finalmente o palácio do Catete.
O deslocamento de um grupo tão grande de favelados insatisfeitos por diversos
bairros cariocas até atingir a sede do poder político nacional representava um perigo para a
ordem estabelecida. E, sem sombra de dúvidas, ligou o alerta para os representantes do
governo. A movimentação mostrou força e organização dos moradores do São Carlos, que
rapidamente foram ouvidos pelo secretário e o chefe da Casa Militar. Após isso, o próprio
líder do governo provisório, Getúlio Vargas se dispôs a dialogar. De imediato, Vargas
ordenou que se cessasse a ordem de despejo, até que o processo judicial estivesse
concluído. Por fim, antes de voltarem para casa, os moradores ainda se movimentaram em
direção ao prédio da Polícia Central para tratar da questão dos despejos.
Após uma verdadeira batalha judicial a população ali residente - muitos há mais
de 30 anos- conquistou sua permanência e atualmente o Complexo do São Carlos é uma das
maiores favelas do Rio de Janeiro. A organização e a luta dos moradores renderam frutos,
resultando na criação de um dos primeiros núcleos de associativismo político das favelas: a
Sociedade dos Trabalhadores Humildes do Morro de São Carlos, em 1937. Ela foi um
instrumento para lutar pelos diversos interesses e reivindicação dos moradores.
Por sua vez, em 1936, uma comissão representando todos os moradores do Morro
da Mangueira, que já havia tido um contato anterior com o presidente Getúlio Vargas,
conforme os integrantes da comissão informara, em seu texto, enviaram um telegrama ao
Palácio do Catete para relatar a continuidade das ações de grileiros que disputavam o
terreno da favela.246

246
Bittencourt, Daniele Lopes. “O Morro é do povo”...Op. Cit. P. 12
127
Anos mais tarde, moradores de morros da zona sul, uniram para resistir às tentativas
de remoções destes para os recém-criados parques proletários. Nas palavras de Burgos:

“Era evidente que o autoritarismo da pedagogia ensaiada e a precariedade


das instalações (concebidas como provisórias) não faziam dos parques uma ideia
atraente para os moradores das favelas, razão pela qual criaram, ainda em 1945,
as comissões de moradores, inicialmente nos morros do Pavão/Pavãozinho e
pouco depois nos morros do Cantagalo e Babilônia como forma de opor
resistência a um suposto plano da prefeitura de remover todos os moradores para
os parques. ”247

Esses movimentos embrionários – que sofreriam disputas de influência entre forças


políticas da esquerda e elementos conservadores ligados à Igreja católica – formariam a
base das associações de moradores nas décadas seguintes, e de entidades representativas
das diversas favelas da cidade, sobretudo a União dos Trabalhadores Favelados (UTF) e a
Coligação dos Trabalhadores Favelados, entre 1954 e 1959. Na década seguinte, em 1963
foi fundada a Federação das Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) e posteriormente, a
Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ).248
Nesse ponto é interessante observar que o discurso de memória construído por
Otacílio acerca da realidade política da época, em momento nenhum faz referência ao PCB
e sua possível atuação no morro. Quando interpelado se havia contato entre militantes
comunistas e os moradores do Turano, ele nos afirma que:

“Não, nada. O partido era PSD...PSD, PTB, que era o partido do Getúlio,
né? E UDN que era União Democrática Nacional, era o partido dos militares de
gente, gente...socorrida, que não repara né...das pessoas que tinha, da mídia né....
De boas condições era chamada UDN, União Democrática Nacional. Então a
gente, aqui da gente, a nossa classe, a classe pobre não votava nesses partidos.
Votava no PTB...Partido Social Democrata, que é do genro de Getúlio. ”249

Primeiramente, deve-se ter com clareza a noção de que temos diante de nós um
relato de memória e ela é, sobretudo, uma interpretação do passado dentre tantas outras
possíveis, uma construção social que assume o aspecto de seletividade, perpassada por
interesses específicos do entrevistado, seja relacionada a sua realidade daquele momento de
outrora, seja do momento da entrevista, em que sua memória é evocada e o discurso é
elaborado. Nesse sentido, como afirma Pollak (1992), ela assume a importância para seu
detentor de constituir identidades, no momento em que é externalizada, na medida em que

247
BURGOS, Marcelo Baumann. Dos parques proletários ao Favela Bairro as políticas públicas nas favelas do
Rio de Janeiro. p. 25-56 In.: ALVITO & ZALUAR (Orgs.) Um século de Favela, Ed. FGV, 2004. P 17
248
AMOROSO, Mauro & GONÇALVES, Rafael Soares. A união como acesso a cidade: a UTF entre a
história e a memória do movimento associativo de favelas do Rio de Janeiro. Revista do arquivo geral da
cidade do Rio de Janeiro. N° 7, 2013
249
DUARTE, Otacílio...Op. Cit.
128
produz uma imagem específica de si, para si mesmo e para os outros. A questão torna-se
mais complexa quando analisamos o relato de um morador, em entrevista ao Tribuna
Popular estabelece uma relação entre o retorno das ameaças de Turano e a extinção do
Partido Comunista:

“ – O homem é tão louco que não só pretendia ficar com a Chácara do


Vintém, como, inclusive, com o Morro do Salgueiro. Mas os moradores dali
fizeram uma barreira tremenda, e o juiz que lavrou a sentença chamava o Turano
de “grileiro desonesto”. Isto sim, que foi um juiz! [...]. Os moradores do Morro da
Liberdade também estavam lutando. Não deixariam levar o que é seu assim com
duas conversas, não. – É bem verdade que depois que fecharam o partido
comunista o pessoal aqui ficou intranquilo e o Turano voltou a nos ameaçar...
Mas o povo já está se refazendo do susto e vai lutar pelos seus direitos. ”250

Frente a isso, podemos realizar algumas suposições que não se excluem: a) que a
participação de militantes comunistas no movimento fosse superdimensionada pelo jornal
Tribuna Popular, uma vez que esse era um dos principais meios de divulgação da atuação
do partido; b) por razão dos CPD’s não serem constituídos, exclusivamente, por comunistas
e, provavelmente, seus integrantes não se apresentassem como tais, contribuiu para o não
reconhecimento, por parte de Otacílio da atuação destes; c) Levando em consideração que
nosso entrevistado vivenciou traumáticas experiências (principalmente durante a ditadura
militar e o governo Dutra 251) onde o envolvimento direto ou mesmo mera associação com
os movimentos de esquerda – sendo ainda negro e pobre – significava também a
possibilidade de sérios problemas, pois indicava sinal verde para a perseguição e repressão.
Portanto, ele constrói uma linha narrativa que tenta ligar a imagem dos moradores a
trabalhadores pacíficos, desvinculando-a do comunismo, ainda que não se posicione
claramente contrário a ele.

250
Jornal A Tribuna Popular, 15/06/1947, Ed. 625 P.2
251
Iniciado em 1946, o governo de Eurico Gaspar Dutra foi marcado por uma inicial abertura política com
relação ao período do Estado Novo, liderado por Getúlio Vargas, através da promulgação de uma constituição
que assegurava o voto secreto universal, diversos partidos, fim da censura e da pena de morte. Contudo,
manteve a estrutura fundiária, preservando intocáveis os grandes latifúndios, e a estrutura de grandes
sindicatos atrelados ao controle do Estado. O governo adotou medidas repressivas contra a tentativa de
reorganização sindical dos trabalhadores, proibindo a existência do Movimento Unificador dos Trabalhadores
(MUT), mantendo um posicionamento autoritário com relação à movimentos populares, principalmente
aqueles de cunho comunista. Em maio de 1947, o governo colocou na ilegalidade o PCB, e cerca de oito
meses depois cassou o mandato de seus representantes no Congresso, inclusive o mandato de Luis Carlos
Prestes, figura histórica que conseguiu se eleger senador com maior número de votos. FRANCHETTI,
Claudinéa Justino. Propaganda Política Comunista e Anticomunista no Governo Dutra, entre os Anos de 1948
e 1950 XXVII Simpósio Nacional de História da AMPUH.
129
3.4 -MORRO DA LIBERDADE OU DO TURANO? A DISPUTA CONTRA O
GRILEIRO EM UM CONTEXTO DE REABERTURA POLÍTICA

Foi nessa conjuntura histórica de queda do Estado Novo, de efervescência política e


de ascensão da esquerda na capital que Otacílio, segundo sua memória, chegaria ao Distrito
Federal. Pelo menos desde a da década de 1920 a região compreendida pelo Morro do
Turano, a Chácara do Vintém - com entradas pela Rua Barão de Itapagipe – e uma parte da
área do morro do Salgueiro (até 1944) eram exploradas com cobrança de rendimentos sobre
o uso do solo ou sobre qualquer barraco construído por intermédio do suposto proprietário
da área, o italiano Emilio Antônio Turano.
Segundo o jornal “A noite”, o europeu era: “antigo comerciante de calçados no
Estácio de Sá e, segundo fomos informados, tem uma fábrica no velho casarão situado no
topo dessa montanha, que em tempos remotos foi residência de um titular” 252 Em 1945 os
moradores já começavam a se mobilizar. Segundo uma pequena nota laçada pelo “Tribuna
Popular”, em setembro deste mesmo ano, o Comitê Popular Democrático da Tijuca havia
fundado um subcomitê na localidade da Chácara do Vintém no sentido de tentar
conjuntamente com os moradores satisfazer suas necessidades mais urgentes. Já haviam
instalado um curso de alfabetização no morro e foi promovida uma grande reunião entre os
moradores e Emilio Turano – este ainda reconhecido pelos editores do jornal como o
proprietário da localidade – no qual foram debatidas questões mais importantes relativas às
péssimas condições de vida no local, ficando acordado entre as partes o atendimento de três
reivindicações principais:

“A) Instalação de um grande reservatório d'água para o abastecimento da


população local, comprometendo-se o proprietário a fornecer o material
necessário à construção e os moradores a mão de obra; b) Instalação da luz
elétrica no morro, tendo o proprietário se prontificado, como maior interessado na
valorização do morro, a prestar a caução necessária. c) Redução do aluguel do
terreno onde são construídos os barracões. ”253

Tal reunião, que segundo afirmam os jornalistas, contou com mais de cem pessoas
já nos revela a existência de um nível razoável de organização por parte dos moradores,
capazes de articular os diversos interesses individuais em interesses coletivos mais amplos

252
Jornal A Noite, 7/2/1931 p. 10
253
Jornal A Tribuna Popular, 12/09/1945, p. 6
130
e importantes. Por outro lado, demonstra algum envolvimento e diálogo com o comitê
popular da Tijuca.
Além disso, é interessante chamar a atenção para as experiências prévias no mundo
rural vivenciadas pelos moradores migrantes, maior parte da população favelada de então.
Podemos supor que muitos deles possuíam um censo de organização e de luta já
constituídos anteriormente através de práticas e estratégias coletivas para assegurar acesso à
terra. Basta lembrar que nessa época o campo era sacudido por sérios conflitos onde o
latifúndio avançava, mas não sem resistência camponesa. Por exemplo, trabalhadores
oriundos de áreas canavieiras do norte-fluminense, principalmente de Campos dos
Goytacazes (de onde vinha grande parte dos moradores daquele morro, segundo Otacílio).
Pressionados por uma crescente mecanização dessa cultura e da concentração fundiária na
região, eles já apresentavam articulação política e algum conhecimento de leis relacionadas
a terra, em vista que, segundo Neves254, desde a década de 1930 lutavam por seus direitos
constantemente através da legislação, influenciando inclusive na criação do Estatuto da
Lavoura Canavieira, em 1941:

“Esse acirramento da concentração do poder pelos usineiros, que arbitravam


a quantidade de cana a ser absorvida, e pelo Estado, que determinava o preço,
estimulou a ação política dos agricultores, que passaram a tentar ampliar seu
poder (…) os agricultores intensificaram a reação, as formas de organização
política e o estabelecimento de alianças. Através do apoio recebido pela Câmara
dos Deputados moveram uma grande campanha em torno da garantia de uma
quota fixa de produção junto às usinas. ”

Os conflitos fundiários que se estabeleceram em diversas favelas do então Distrito


Federal na década de 1940 e principalmente de 1950, apresentavam diversos elementos
semelhantes aos que certos migrantes vivenciaram, relativos a ocupação e disputa da terra,
principalmente na esfera jurídica. O próprio Otacílio domina o conceito de grilagem, algo
muito incomum no conjunto da população urbana atualmente. Em suas palavras: ““Então
ele apoderou-se daqui. Chamava-se grileiro, apoderava-se das terras que não eram dele. Ele
comprou um terreno na rua e como era os fundos da casa dele, ele falou que era dono de
tudo. E ficou Turano o dono.”255
Voltando à questão do conflito, nos meses seguintes os acordos firmados na reunião
não seriam cumpridos por Emilio Turano, que além de tudo aumentara seu autoritarismo e
agressividade, contando com respaldo armado de empregados e policiais, a fim de manter o

254
NEVES, Delma Pessanha. Lavradores e Pequenos produtores de Cana. Zahar, 1981. P. 59
255
DUARTE, Otacílio...Op. Cit.
131
controle efetivo sobre a área através do uso indiscriminado da força.256 Devemos lembrar
que o italiano já havia perdido na justiça, desde o ano anterior, o direito da cobrança de
aluguéis que praticava em boa parte do Morro do Salgueiro, que de maneira semelhante,
alegava ser de sua propriedade. Nesse momento então, Turano centralizou seus negócios no
morro vizinho, que levava seu nome. Nas palavras de nosso entrevistado, a situação se
agravara quando:

“(...) ele viu que o aluguel tava...ia render muito dinheiro... Era 1500 réis, o
aluguel. O mais caro era 1500. 10 tostões. Você não sabe nem que dinheiro é esse
né? (...). Então quando ele viu, que ele cresceu os olhos, ele aumentou um tanto o
aluguel! Foi aí que.... Foi aí que o negócio (...). Então ele achou que aquilo era
uma fonte boa de renda né? Aqueles alugueis baratos, mas tinha uma porção de
gente que já tinha né...moravam. Então ele aumentou o aluguel de uma maneira
que a gente achou caro demais. Muito caro! Quer dizer, eu morava alugado com
meu irmão.”257

Considerando a valorização dos bairros vizinhos e o crescimento populacional do


morro, possivelmente o aumento dos aluguéis por parte do italiano encobriria a intenção de
desencadear uma situação de atraso geral dos aluguéis entre os moradores, justificando
possíveis despejos e a liberação do terreno para empreendimentos mais lucrativos. Na
verdade, ele conseguiu criar um clima de profunda insatisfação e a percepção da
necessidade de organização. Eles não questionavam a cobrança aluguéis em si, mas
rejeitavam uma cobrança considerada abusiva, ou seja, que comprometesse seu orçamento
mais fundamental e consequentemente inviabilizasse sua permanência no local. A “solução
possível” construída por trabalhadoras e trabalhadores negros para sobreviver em condições
adversas na “cidade maravilhosa” estava sob grave ameaça.
Voltando a cobertura da Tribuna Popular, em uma extensa e destacada reportagem
de fins do ano de 1945, com a manchete em claro tom sarcástico: “Luta-se no “Morro da
Liberdade contra a exploração de um grileiro: Emílio Turano nasceu na Itália, mas é
senhor feudal na cidade maravilhosa.”258 Nessa reportagem, ficam claras as acusações de
que Turano cobrava arrendamento através da violência física e psicológica, não só do
terreno utilizado como também dos barracões construídos com os parcos recursos e com o
esforço dos próprios moradores - atribuindo a si a propriedade de tais moradias, inclusive.
Informa ainda que, segundo os habitantes mais antigos o italiano não possui título de
propriedade algum da área, fato que desagrada enormemente a população.

256
Jornal “A Tribuna Popular, 18/12/1945
257
DUARTE, Otacílio...Op. Cit.
258
Jornal A Tribuna Popular, 18/12/1945 p. 8-9.
132
Essa posição hostil ao italiano se deve, em grande medida devido ao não
cumprimento dos acordos firmados com os moradores, esgotando as possibilidades de
negociações amigáveis; aos ataques ideológicos ao subcomitê da Chácara do Vintém; às
frequentes cenas de violência protagonizadas por ele ou a mando do mesmo. Informam
também que eram realizadas constantes reuniões de moradores, em que a questão da
moradia e da permanência daqueles que estavam ameaçados de despejo eram os temas mais
recorrentes. Em uma delas, eles decidiram por suspender integralmente o pagamento de
aluguéis até que fosse apresentada documentação comprobatória de propriedade por parte
do italiano, dada sua extrema intransigência.

“Nesse encontro, que foi noticiado pela imprensa, e que se verificou com a
presença de cerca de cem pessoas foram apresentadas ao sr. Turano as
reivindicações imediatas da gente do Morro: recibo em nome do terreno; garantia
de passagem; redução de 50% no aluguel. A tudo matreiramente, fingiu ceder o
Sr. Turano. Evidenciou-se logo depois não pretender ele cumprir a sua palavra.
Recusando-se a passar os recibos convencionados. Negou-se mesmo a reduzir os
aluguéis e declarou não reconhecer o Sub-Comitê, contra o qual iniciou uma
campanha surda e desonesta. Diante dessa atitude do Sr. Turano, em nova reunião
convocada, decidiram os moradores, plenamente apoiados pelo Sub-Comitê e
pelo Comitê, suspender o pagamento dos aluguéis até que o Sr. Turano prove
documentada e legalmente seus direitos (…) e uma petição no sentido de que
sejam tomadas providências para evitar que as provocações e arruaças do
audacioso Emilio Turano no Morro , resultem em incidente maior do que o já
ocorrido, quando o Sr. Turano de certa feita fez ameaças e acabou sacando de um
revolver contra um morador”259

Essa decisão, apoiada pelo CPD da Tijuca que desencadeara as mais violentas
retaliações sob o comando de Turano. Em resposta a todos esses acontecimentos, o jornal
afirma que em uma dessas reuniões:“[...] resolveram os moradores substituir o falso nome
do morro, chamado até agora “do Turano” pelo nome de “Morro da Liberdade, o que foi
aprovado com entusiástica salva de palmas. ” 260
Prevaleceu, ao longo das décadas o nome
do italiano como designação mais difundida e aceita dessa comunidade, que se tornou um
complexo de favelas. Contudo, a localidade conhecida como Morro da Liberdade
(justamente a área que concentrava a maior parte casas naquela época) constitui uma das
sete favelas261 que compõe de forma contígua a área do complexo do Turano. Nas
lembranças de Otacílio:

259
Jornal “A tribuna Popular” 18/12/1945, p. 6.
260
Id.
261
Atualmente o complexo do Turano é composto por sete favelas que possuem origem e trajetórias históricas
próprias mas guardam estreitas ligações entre si e atualmente ocupam um território contíguo. Além do Morro
da Liberdade, existe o Morro do 117, Morro da Matinha, Chacrinha, Rodo, Paula Ramos e Sumaré.
133
“Então esse morro é conhecido como morro do Turano, mas ele é morro da
Liberdade. Os moradores deram esse nome. É. Exatamente. Os moradores que
moram aqui não sabem disso, porque não tem... O senhor sabe, né? É, foi morro
da Liberdade depois dessa guerra.”262

Estamos, portanto, diante de um embate que também se estabeleceu no plano


simbólico, onde se disputou a identidade e a memória em relação a esse espaço e que se
refletiu na imprensa. Nas décadas imediatamente posteriores, encontramos ambas
nomenclaturas nos jornais ao referirem-se a este local. Ou seja, os moradores decidiram
coletivamente por “apagar” o nome de Turano – entendido como falso e totalmente
indesejável, substituindo-o por outro, “Liberdade”, carregado de simbolismo e amplamente
compreendido. A partir disso, os moradores estabelecem que não querem deixar referências
para a posteridade daquele que lhes explorava, e a favela estaria a partir dali “livre” de seus
desmandos. Temos aí um exemplo claro de conflito social entre grupos na disputa pelo
controle territorial e na perpetuação da memória. A batalha por essa liberdade estava
totalmente ligada à batalha de legitimidade com relação ao uso daquele território. Os
moradores engajados nesse movimento, tanto no morro da liberdade quanto em outras
favelas participaram através de experiências de organização e ação comunitárias, da
formação um grupo social com poder político e capacidade de mobilização e com interesses
coletivos próprios e mais definidos, articulados aos interesses mais amplos dos
trabalhadores em geral.
Nesse contexto, não faltam relatos, ao longo do ano de 1946, de comissões de
moradores do morro que procuravam os jornais solidários a causa (prática comum na
época) para denunciar a violência e do medo que eram envolvidos em sua realidade
cotidiana.263 As imagens abaixo, retiradas de diversos jornais, compõem raros registros
visuais de um dos canais de luta mais utilizados pelos moradores do Morro da Liberdade: a
visita de comissões de moradores - normalmente aqueles mais ativamente envolvidos no
movimento - a redações de jornais, para denunciar os problemas que estavam passando e
também dar visibilidade a luta que estava sendo empreendida contra Emilio Turano.
Podemos observar, através das fotografias, mesmo tendo baixa qualidade, que os moradores
articulados nesse movimento eram além de pobres, negros em sua maioria.

262
DUARTE, Otacílio...OP. Cit.
263
Por exemplo, publicou a tribuna popular: “Turano possui documentos falsos. O morro pertence a Fazenda
da União(...) A exemplo de tantos exploradores que por aí existem, quer manter sob suas ordens, com
ameaças e valentias, os humildes trabalhadores que ali residem(...)exige aluguéis dos moradores do Morro da
Liberdade, derruba barracões, faz despejos e toda a sorte de violências. ” Em 24/06/1946. P 7.

134
Imagem 11: Comissão de moradores visita a “Tribuna Popular”. São eles, da esquerda para a direita:
Eduardo Ferreira Lima, Rogério Manoel Domingos, Adelino Antonio Fernandes, Israel Adolfo Caldas e
Anastácio Bomfim.

Fonte: Jornal A Tribuna Popular, 09/05/1946 P. 6.

Imagem 8: Comissão de moradores visita o “Diário de Notícias”

Fonte: Jornal Diário de Notícias, 26/06/1946 P. 3

135
Chama especial atenção a matéria deste jornal intitulado “Dirigem-se ao prefeito os
moradores do Morro da Liberdade”.264 A reportagem trata principalmente da elaboração de
um memorial reivindicatório por parte dos moradores conjuntamente com os membros do
comitê popular, destinado ao prefeito da cidade, no momento o engenheiro Hildebrando de
Góis. Nesse texto, são expostos de maneira alarmante os principais problemas enfrentados
no seu dia a dia, considerado “um nível tão baixo de vida que não pode ser mais admitido
em uma cidade civilizada. [...] sem condições básicas para uma vida decente”.265 Suas
denúncias giravam em torno das péssimas condições das vias da favela, de habitação,
acesso a assistência de saúde, educação, saneamento e higiene e é claro, o arbítrio do
grileiro Turano. O interessante é que nesse texto a população do morro da Liberdade, logo
de início se apresenta ao governante como uma “população de trabalhadores: Trabalhamos
na construção civil, nas fábricas e oficinas, no comércio e os mais diversos misteres. ” E
ainda:
“Nem se diga, senhor prefeito que a população do Morro da Liberdade e da
Chácara do Vintém tenha ficado de braços cruzados diante de tão angustiosos
problemas. Procuramos exercer os nossos direitos cívicos, para, dentro da lei e da
ordem, através de uma organização local, conseguirmos um melhor nível de vida.
”266

Tal trecho revela pelo menos dois pontos interessantes: primeiramente, ao


declararem intencionados em exercer seus direitos cívicos dentro da lei e da ordem, os
moradores claramente tentam desfazer a imagem hegemônica e negativa do favelado,
disseminada pelas classes dominantes, de desordeiro, criminoso, vagabundo, etc.
Associam-na, então, aos ideais de trabalhador, consolidados no primeiro governo Vargas:
ordeiro, honesto e cidadão, portanto portadores de direitos. Além disso, eles reinterpretam e
o reutilizam o conceito de “cidade civilizada” – empregado tantas vezes em discursos
contra as favelas - a seu favor. Para eles, seria contrário à civilidade tamanha desigualdade,
onde em plena capital do país, os trabalhadores não têm seus direitos assegurados, vivendo
em condições extremamente precárias.
Eles sustentam suas reivindicações justamente em um dos pontos mais enfatizados
nos discursos do governo nesse momento: a garantia da habitação digna para os
trabalhadores. Por fim, a carta revela a disposição dos moradores em estabelecer uma
verdadeira mobilização comunitária, rejeitando a passividade e buscando soluções

264
Jornal “A tribuna Popular” 10/08/1946, p. 5
265
Id.
266
Id.
136
autônomas para seus problemas. Dessa maneira, propõem e reivindicam ao prefeito aquilo
que consideram como seus direitos básicos:

“Assim sendo, Exmo. Senhor Prefeito, vimos respeitosamente pleitear o que


passamos a enumerar: A) Construção de barracões para os atuais moradores do
morro, cuja mudança se faria paulatinamente, à medida em que ficassem prontos
para os novos; B) Habitação gratuita nesses barracões ou aluguéis que nunca
ultrapassassem um mínimo compatível com o orçamento da família beneficiada;
C) Construção de uma rede de tanques de água potável, com bicas para o
abastecimento dos moradores e lavagem de roupas com a utilização das nascentes
do alto do morro; D) Instalação de luz elétrica no morro e facilidade para
distribuição de luz ao barracão; E) Construção de fossas higiênicas; F) Instalação
de uma escola com fornecimento de alimentos, material escolar e roupas as
crianças; G) Instalação apropriada de um ambulatório com assistência médica,
enfermagem e remédios gratuitos; H) Arruamento do morro, construção de uma
escada para a subida e garantia de passagem permanente pela Rua Jacumã. I)
Investigação final e declaração sobre propriedade das terras do morro, para
liquidar de vez com a presença dos grileiros. [...]” (Idem).

Não se tem informação de qualquer manifestação do prefeito com relação ao tal


memorial e muitas dessas reivindicações só foram atendidas anos e até décadas depois,
através de muita mobilização no sentido de exercer pressão em setores do Estado. Contudo,
a publicação desse texto já demonstra um grau de articulação política dos moradores com o
comitê popular e a própria Tribuna Popular.
Demonstra ainda, que os moradores buscavam abrir canais de diálogo com os
representantes dos poderes públicos. Bittencourt observa que a produção de cartas
reivindicatórias foi uma das ferramentas mais comumente utilizadas na época por
trabalhadores de diversos segmentos e uma das formas de resistência praticadas pelos
moradores de favelas como Santo Antônio, Mangueira, Prazeres, etc. Foi uma tradição de
negociação aberta - junto com diversas outras políticas sociais – pelo governo varguista a
partir de 1930, baseando-se na busca por aproximação das “massas trabalhadoras”, de
reforçar a imagem do presidente como o “pai dos pobres” e “trabalhador número 1”. 267.
Segundo a autora:
[...] as cartas permitem analisar como os trabalhadores interpretaram e
reformularam discursos e práticas do governo Vargas, segundo suas próprias
concepções, não cedendo necessariamente à cooptação populista e à retórica de
conciliação de classes. Por meio de cartas e telegramas, trabalhadores
(assalariados ou não) entre os quais incluo os moradores de favelas, recorriam às
imagens e aos discursos de inclusão social construídos pela propaganda varguista
para estruturar seus apelos.268

267
BITTENCOURT, Danielle Lopes. O morro é do povo...Op. Cit.
268
Id. P. 61
137
Essa dinâmica demonstra que as relações de poder entre Estado e os trabalhadores
– apesar de desiguais - eram bem complexas e possuíam suas brechas, das quais os
moradores das favelas tentaram se aproveitar de acordo com seus interesses, questionando,
reivindicando ou negociando sempre que possível. Na verdade, o contexto dos anos 1930
representa um marco na visibilidade política das favelas. Segundo Silva, nessa época, o
prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto iniciou um diálogo político inédito com as
favelas – de olho em seu potencial eleitoral - sobretudo com os moradores do Morro da
Mangueira, realizando visitas, instalando serviços públicos e intermediando questões de
despejo e remoções. Após afastar o prefeito, que tornara seu desafeto, tal política de
aproximação com as favelas foi levada adiante pelo próprio Getúlio Vargas. 269
Assim, Oliveira270 defende que existe um perigo em superestimar o poder estatal no
que se refere à dominação dos trabalhadores. Esse seria um processo dialético, ainda que
totalmente desigual, inserido no “campo de lutas”. Assim, inerente ao processo de
dominação, existe sempre a resistência, presente de inúmeras maneiras. O Estado, ainda
que ditatorial, possuía várias brechas, por onde muitas vezes os trabalhadores souberam se
infiltrar e se aproveitar em benefício próprio. Os atores sociais estão em permanente
interação através do movimento de imposições, negociações, assimilações, rejeições,
redefinições. Além disso, o conceito de “hegemonia”, de Antonio Gramsci, é interpretado
pela autora como algo que se modifica de acordo com os aspectos da luta política, onde os
interesses e os valores das classes subalternas precisariam ser considerados em algum nível.
Logo, a hegemonia conviveria com processos não hegemônicos ou mesmo contra
hegemônicos. Ou seja, convive com reapropriações e ressignificações de suas práticas e
concepções pelas classes dominadas.

3.5 - “A GUERRA DO MORRO DO TURANO” E O SEU LUGAR DE DESTAQUE NA


MEMÓRIA DE OTACÍLIO DUARTE

É, nesse contexto conflituoso, que se inicia o “clímax” da narrativa de Otacílio. Isso


porque se percebe claramente que tudo o que foi relatado anteriormente estava orientado na
direção de preparar terreno e fundamentar um sentido lógico que desaguaria nesse

269
SILVA, Maria Lais Pereira. Favelas Cariocas...Op. Cit.
270
OLIVEIRA, Nathalia Fernandes. A repressão policial às religiões de matriz afro-brasileiras no estado novo
(1937-1945). Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-graduação em História Social – UFF – Niterói,
2015. P. 44.
138
momento mais que importante, a “guerra do Turano”, como o próprio afirma. Esse
momento tem uma posição bastante privilegiada em sua memória, pois é narrado com um
alto nível de detalhes e grande profundidade. Mesmo tratando-se de um processo
inegavelmente traumático, onde Otacílio diz ser “testemunha dessas coisas e, no entanto,
eu [Otacílio] penso toda noite e fico lembrando dessas coisas”271.
Ele narra com ares de orgulho de estar do lado daqueles que, apesar do duro embate,
lograram êxito na resistência contra a remoção e participaram ativamente da constituição do
que é o Morro do Turano na atualidade. É nesse contexto que Pollak (1992) enxerga uma
estreita relação entre memória e identidade, ou seja, da autoconsciência, como ela se
enxerga na realidade social e como quer que os outros a percebam. Para ele:

“(...) é o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem


que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que
ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria
representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser
percebida pelos outros. ” 272

Sabemos que a memória, coletiva ou individual, é um fenômeno constantemente


mutável, exposta às mais diversas condicionantes sociais e históricas. Logo, no discurso de
Otacílio sobressai ainda mais em importância quando ele analisa o baixo nível de
organização dos moradores atualmente, num momento de esvaziamento da autonomia
decisória do conjunto dos favelados. No final da entrevista, ele realiza um comparativo com
o momento vivenciado por ele na “guerra do Turano”, afirmando que:

“A organização aqui é muito difícil. Você perguntou tá muito pior de que


quando eu cheguei aqui porque se é hoje, o povo, a mente que eles têm hoje, a
cabeça deles não organizava pra libertar esse morro como foi organizado.
Perdia.... Hoje a gente reúne na reunião lá, lá que eu já fui os caras só querem
falar negócio de baile funk, tá certo tem que ter baile. Tem que ter baile funk!
Tem que ter baile comum, mas primeiro é os interesses da comunidade!
Entendeu...”273

É o que podemos chamar de “tempo das lutas”, delimitação cronológica


fundamental no imaginário daqueles que travaram nas favelas embates diretos pela sua
permanência. Esse lugar na memória está carregado de simbolismos, laços de afetividade e
influências do momento presente em que é evocada. E o ponto alto de todo esse processo
abarcado pela memória de nosso entrevistado será corporificado principalmente no

271
DUARTE, Otacilio...Op. Cit.
272
POLLACK, Michael. “Memória e identidade social...Op. Cit.P.6
273
DUARTE, Otacilio...Op. Cit.
139
momento do conflito armado direto entre os moradores e as forças policiais ligadas a
Emílio Turano, ocasião que gerou grande repercussão na mídia e da qual trataremos mais
adiante.
Nesse contexto de grande tensão, Otacílio nos relata o processo de movimentação
dos moradores, estabelecendo um local de protagonismo para a figura de seu irmão mais
velho, Silas Duarte, segundo ele, homem algum estudo, como o responsável direto pela
conscientização e união dos moradores frente as arbitrariedades do grileiro Turano:

“Quer dizer, eu morava alugado com meu irmão. Então.... Nisso, eu acho
que ele fez isso, aumentou muito os aluguéis, meu irmão tinha estudado mais um
pouco lá em Cabo Frio era um camarada muito assim sabe, um camarada
esclarecido, sabia de alguma coisa e achou.... Então ele reuniu os moradores para
tratar desse assunto. Nessa época eu era adolescente ainda, ia fazer 18 anos ainda,
quando começou isso. Aí ele fez aquele movimento e aquilo foi crescendo,
ficando os moradores, eles achavam que estava caro demais mesmo, que estavam
sendo explorados pelo Turano e começou aquilo a crescer. Nisso eles viram, lá
embaixo a família dele [do Turano] os amigos, a polícia achou que tava um
negócio assim meio complicado então eles reuniram lá embaixo também. Então
juntou a gente aqui e eles juntaram lá. Aí fomos pra luta! Pra guerra como a gente
chama né? Fomos pra luta, foi aí que o negócio começou a ficar tenso... E vamos,
e vamos fazer as reuniões e sempre vinha muita polícia, sabe? Aí os policiais
vinham, cada homão enorme, rapaz! Vinha armado, dois revolveres! Cada um na
cintura e a gente estava desprotegido. Apesar que havia arma, nessa ocasião não
havia problema. Andar armado não! Só possuir arma dentro de casa, né? Não
andávamos armados mas tinha arma. ”274

Nesse trecho da entrevista, além da posição de liderança de seu irmão, Otacílio


constrói um dado de extrema importância para nossa análise: Turano mantinha relações
estreitas com policiais, que atuava em seu auxílio, garantindo o recebimento do valor dos
aluguéis, através da coerção armada. Ainda segundo sua memória:

“Todos nós pagava, era obrigado a pagar! [o aluguel]. Eles corriam, via o que
tinham, andavam por aí, sabe? Ele tinha um genro que era da polícia especial:
Ataliba Bastos Ferreira(...)Ele tinha, era seguro por esses homens, da polícia. O
genro dele era detetive da polícia especial, lembra? De boné vermelho e uma
camisa verde né? Eles vinham, eram brabos aqueles homens, né? Então tinha
outro genro dele chamado até...Benjamin Serafim. ”275

E, interpelado acerca da atuação da polícia com relação aos favelados, ele nos
afirma:

“A polícia era muito violenta! Essa polícia [a especial] era o último recurso.
Essa polícia só ia quando o negócio não tinha mais jeito... Pra subir o morro,
igual, vamos dizer assim... Lá... Lá na Central, né? No Morro da Favella, ali
polícia não subia. Mas eles subia, eles subia ali o morro da Favella. Que hoje tem
outro nome. É... Providência. Aí veio nisso aí, ficou tempo nessa.... Aí o pessoal

274
DUARTE, Otacilio...Op. Cit.
275
Id.
140
ficava tudo assombrado. Os trabalhadores iam trabalhar e eles iam lá intimidavam
as mulheres, as donas de casa e ficava todo mundo sobressaltado, aquela coisa,
tinha medo.... Intimidavam as pessoas. E as pessoas ficavam tudo, sabe [fazendo
sinal de retraimento] tudo nervosa porque não tinha mais aquela paz que nós
tinha antes. ” 276

Antes de realizarmos um exame mais aprofundado na posição assumida por


integrantes da polícia nesse conflito, é importante ressaltar o importante papel que a
referida Polícia Especial, subordinada a Delegacia Especial de Segurança Política e Social
(DESPS) e citada por nosso entrevistado. Trata-se da divisão uniformizada da polícia civil
do Distrito Federal, criada já em 1932 e marcada na memória de Otacílio pelo boné
vermelho e por sua agressividade, que exerceu papel central na repressão política à classe
trabalhadora em momentos de grande efervescência política e insatisfação social, durante a
ditadura de Vargas e em posteriores governos (a polícia especial foi extinta somente em
1960).277
Segundo um ex-soldado dessa divisão policial, em entrevista para o “Diário de
Cuiabá” Affonso Solano, a PE fora criada como uma tropa de elite, com o intuito de
garantir a “ordem pública” e a “disciplina social” no país, aliando um preparo psicológico
específico a um aparato técnico sofisticado em armamentos e equipamentos – como a
utilização de motocicletas e metralhadoras. O que se destaca, contudo, é que a Polícia
Especial atuava como uma verdadeira tropa de choque da época, intervindo violentamente
em manifestações políticas e ações diretas – principalmente greves - de trabalhadores.
Assim, eles foram responsáveis pelo desenvolvimento de técnicas inovadoras no que se
refere à repressão a atos públicos e a atuação nas favelas que mais tarde seriam adotadas e
potencializadas pelos batalhões de choque e de operações especiais (o BOPE), da polícia
militar. 278
Os relatos presentes nos jornais, nos mostram que a violência promovida por
agentes do Estado tendo como alvo os moradores do Morro da Liberdade era, sob as mais
diversas justificativas, uma realidade recorrente. Certos integrantes da polícia militar
daquela área atuavam em diversas ocasiões como uma espécie de “milícia particular” do
grileiro Emílio Turano, normalmente representado nessas incursões violentas pela figura
de seu genro, o advogado José Bastos Ferreira. Apresentamos, abaixo, uma sequência de
fragmentos de jornais - todos de 1948, ao que parece o ano que o Turano mais realizou

276
Id.
277
OLIVEIRA, Nathalia Fernandes. A repressão policial às religiões ...Op. Cit.
278
Jornal Diário de Cuiabá 21/06/2009, p. 7
141
ações abusivas - nos mostra a atuação violenta dos policiais. Foram recorrentes agressões e
ameaças de despejo contra os trabalhadores daquela favela. Seguem reveladoras notas do
jornal “Diário de Notícias”:

“ [...] Domingas de Sousa, moradora, no morro do Turano dirige um apelo


ao chefe de Polícia. Diz que José Bastos Ferreira, genro de Emílio Turano que se
diz indevidamente dono do morro, intimou-a a retirar-se da casa em que reside
dentro ele três dias, sob pena de espancamento, lá esteve acompanhado de seis
policiais, três fardados e três à paisana. ”279

“O Sr. Manuel da Silva [...] teve o seu barracão invadido pelo Sr. José
Bastos Ferreira, genro de Turano, que para ali se dirigiu acompanhado do cabo da
Polícia Militar, José Delmonde Sousa, um irmão deste, também soldado daquela
corporação e do Sr. João Barateiro, encarregado de efetuar a cobrança dos
aluguéis dos barracões, com o visível propósito de intimidá-lo(...) E como os
espancamentos fazem parte da rotina instituída pelo "grileiro” naquele morro, o
Sr. Manuel da Silva pede por nosso intermédio, para que as autoridades
competentes inibam de uma vez por todos esses atos que tanta apreensão trazem
aos moradores do morro da Liberdade. 280

“Adelicio José de Sousa, de 22 anos, operário e morador no morro da


Liberdade, ao descer na noite de ontem, a fim de comprar velas para o velório de
sua irmã Ademil, foi interpelado por um cabo da Polícia Militar, que ali faz ronda
por conta do Italiano Emílio Turano que reivindica a propriedade de terras no
referido morro. O policial não aceitou as explicações dadas por Adelicio e o
alvejou com dois tiros, causando-lhe ferimentos nas pernas. A vítima foi
socorrida na Assistência e a polícia do 16° distrito teve conhecimento do fato. ”
281

[...] A primeira [denúncia] foi realizada no 17° distrito pelos trabalhadores


Manoel da Silva, Francisco Nunes Filho, Valdemar Nunes e Antônio Sulino, que
declararam ter sido ameaçados de espancamento e morte por José Bastos Ferreira,
genro de Emílio Turano, acompanhado de um cabo e diversos soldados da Policia
Militar, caso não desocupem as casas que construíram e nas quais vêm morando
com suas famílias. A segunda queixa-crime foi apresentada ao 16° Distrito por
Rogério Manoel Domingos, que alegou ter sido espancado pelos mesmos
militares apontados acima a mando de Emílio Turano. O casebre em que mora foi
reconhecido como de sua legítima propriedade por declaração do Tribunal de
Justiça, confirmando julgamento do juiz da 14° Vara Cível, mas os seus
agressores o intimaram a abandoná-lo dentro de poucos dias.282

Também houve denúncia, por parte de Rogério Manoel Domingos, de violência


policial sem qualquer fundamento, em ação de repressão ao lazer e sociabilidade na
comunidade, com o claro intuito de amedrontar e humilhar os moradores:

“Mas até essas diversões o Turano junto com a polícia procura impedir.
Outro dia, quando realizávamos por aqui uma dancinha, apareceu um grupo de
policiais. Aproveitando-se da discussão havida entre um casal, revistaram todo

279
Jornal Diário de Notícias 10/07/1948, p. 9
280
Jornal Diário de Notícias 24/08/1948, p. 3
281
Jornal Diário de Notícias 16/03/1948, p. 7
282
Jornal Diário de Notícias 11/09/1948, p. 9
142
mundo entre 60 homens que aqui estavam e não conseguiram encontrar um
canivete. Voltaram desapontados com o ambiente de ordem que encontraram,
mas proibiram terminantemente a brincadeira.”283

No intuito de fundamentar melhor a questão levantada, aproveitarei o momento para


resgatar a análise histórica de Mattos284 acerca da função policial na sociedade brasileira. O
autor enxerga que tanto a criminalização da pobreza quanto dos movimentos e lutas sociais
(ambos observados de forma evidente no conflito no Morro da Liberdade) são fenômenos
totalmente interligados, ou seja, duas faces da mesma moeda, a de utilização da coerção
armada na dominação da classe trabalhadora, majoritariamente negra. Situa ainda
historicamente o surgimento e disseminação das instituições policiais no momento de
emergência e consolidação do capitalismo, como uma instituição indispensável para a
manutenção dessa ordem, ou seja, a defesa da propriedade privada, a garantia das
desigualdades sociais e a manutenção da dominação de classes. 285 Em particular no caso
brasileiro, podemos incluir as desigualdades raciais, uma vez que esse processo se iniciou
no final da escravidão e se solidificou em um contexto de ampla estigmatização e repressão
dos negros nas décadas pós-abolição. As marcas desse momento histórico de “parto” da
polícia brasileira não podem ser negligenciadas em sua atuação posterior, marcada pela
seletividade, arbitrariedade e violência.
Ao longo das décadas do século passado, a população negra, pobre e sobretudo
moradora das favelas tornou-se alvo desproporcional de discursos criminalizantes e da ação
repressiva da polícia. Denúncias de abusos policiais no Morro da Liberdade e em outras
favelas são frequentes nos jornais da época, muitas das vezes agindo em favor de
particulares ou grileiros. Como já foi dito, a estigmatização imputada às favelas tem relação
com a vulnerabilidade econômica e a predominância negra de seus habitantes, além de sua
constante vinculação às ideias de informalidade e ilegalidade. Em função disso, construiu-
se uma percepção social que enquadra os favelados ora como constantes suspeitos de
crimes, ora como cidadãos de segunda classe, sem direitos plenos. Logo, passíveis de um
tratamento diferenciado, menos respeitoso e inferior àquele apresentado ao restante dos
cidadãos.

283
“O grileiro Turano ameaça tomar os barracos do Morro da Liberdade”, Jornal “A Tribuna Popular”
15/06/1947, Ed 625 P. 1-2
284
MATTOS, Marcelo Badaró. Trajetórias entre fronteiras: o fim da escravidão e o fazer-se da classe
trabalhadora no Rio de Janeiro. Revista Mundo do Trabalho. Vol. 1 N°1. 2009.
285
Id.
143
Essa lógica pode ser observada em relatos da atuação policial nas favelas cariocas
da década de 1940, nas décadas seguintes e, sobretudo, na atualidade. Para Bretas, deve-se
pensar a polícia como uma instituição mediadora da cidadania, determinando quem recebe
ou não, o estatuto de cidadão brasileiro, o que depende de valores sociais do policial em
exercício da atividade, que sempre seleciona o nível da cidadania de acordo com o sexo,
idade, cor e nível socioeconômico.286Tudo indica que, ao atuar nesse espaço supostamente
“ilegal”, habitado por pessoas subalternas e de certa forma descartáveis, os policiais -
amparados por valores e preconceitos difundidos na sociedade – historicamente também
tenham se sentido mais livres para agir de maneira ilegal, abusiva e violenta.
A emergência do Estado Novo marcou a vitória de uma proposta política
universalizante e pretensamente aglutinadora das classes, raças e demais segmentos sociais.
Para Oliveira, a polícia tinha um papel fundamental nessa proposta, sendo uma das
instituições através da qual a coesão da sociedade brasileira seria construída. Diante disso, a
polícia atuaria na homogeneização dos indivíduos, de seus desejos e comportamentos,
cabendo a esta, através de ações repressivas, doutrinar a população em direção ao modelo
de cidadão que esse Estado queria construir, ligado ao “culto ao trabalho”: um homem
responsável, afeito ao trabalho e a serviço do bem e do progresso da pátria.287Uma das
novas missões seria limpar a sociedade brasileira daqueles que não se adequaram a esse
novo momento da sociedade, o que fundamentou uma nova onda de repressão a vadiagem,
encarnada na figura do malandro. Waldir Barbosa recorda que o Morro Salgueiro não era
muito visado pela polícia. Segundo seu relato, compreendemos que as ações policiais eram
destinadas a controlar aqueles que não se enquadravam no perfil de “trabalhador
varguista”- muito numerosos na favela – e, sobretudo, a reprimir atividades ligadas ao lazer
e à sociabilidade. Segundo ele, a situação começou a piorar com o crescimento de atitudes
abusivas e corruptas dos policiais:
[As batidas policiais]Não eram constantes...poucas vezes você tinha notícias
de batidas policiais, era muito raro, entendeu? E tinham os valentões também,
mas a o polícia quase não se intevinha aqui. A polícia atacava muito o jogo de
bicho, entendeu? E o jogo de cartas. Mas aí outros tipos de deli...deli...de coisas
erradas, que não era correta, você quase não via a presença policial. A vadiagem
existia a muito tempo, isso dependia dos delegados, né? Dependia do delegado do
distrito que ele operava. A pessoa as vezes tava na rua. Ele era abordado e
perguntavam onde você trabalhava. “Cadê sua carteira de trabalho pra provar que
você trabalha? ” E levavam a pessoa presa por essa bobagem. Bobagem, mas em
parte, porque havia serviço. Hoje não podem prender ninguém por não estar

286
BRETAS, Marcos Luiz. A guerra nas ruas, o povo e a polícia na cidade do Rio de Janeiro. Arquivo
Nacional P. 63
287
OLIVEIRA, Nathalia Fernandes. A repressão policial ... Op. Cit.
144
trabalhando porque não há serviço. Então prendia assim [...] [quem trabalhava
informalmente] tava correndo risco. É, ela tava correndo risco, aí tava. Porque ele
não tinha a carteira assinada provando que ele era trabalhador. Era informal né?
Só isso, mais nada. E jogo de ronda, baralho que a polícia gostava de dar em
cima. E jogo do bicho. Era contravenção, né? Era e é contravenção. A polícia
então perseguia. Agora fora isso, não via muita presença de polícia, não. Ah era
um ambiente mais tranquilo. Ai depois que a polícia foi se modificando, a atitude
dos policiais. Aí começaram a....a acharcar as pessoas, aí piorou. Forjar flagrante,
entendeu? Ah é, queria dar um flagrante no cara, botava a arma no bolso dele.
Faziam muito dessas coisas, hoje não se fazem mais essas coisas também. E nem
têm condições de fazer.288

Ainda seguindo nessa análise, Mattos289 aponta que desde o momento inicial de
institucionalização da força policial no período pós-30, existiu a designação de um
departamento específico de “polícia política”, com atribuições de manutenção da ordem
social e política, leia-se aí um eufemismo para o controle e adequação sistemática dos
trabalhadores a uma lógica de trabalho assalariado e repressão direta a suas formas
organizativas de resistência – sindicatos, associação de moradores, etc. – e ações diretas,
tais como greves. Dessa maneira a “máquina” repressiva policial assumiu uma força e
complexidade sem precedentes a partir do governo Vargas e, sobretudo após a instauração
do Estado Novo, com uma hipertrofia da polícia política, num contexto de perseguição e
suspeição extrema de possíveis elementos e organizações comunistas, enxergados como
uma séria e real ameaça.
O chamado período de “abertura democrática” (em que o que menos se observa são
os elementos constitutivos de um regime democrático) após a saída de Vargas, em 1945,
não significou o fim da polícia política e o clima tenso de perseguição aos movimentos
sociais. Muito pelo contrário, observamos a expansão e o aperfeiçoamento do DESPS
criando novos parâmetros criminalizantes, vigiando, perseguindo e reprimindo os
movimentos da classe trabalhadora, sob a justificativa geral de combate a “ameaça
comunista”, num já visível clima de Guerra Fria. Contudo, nesse momento de enorme
desconfiança, os comunistas poderiam ser muitos, ou qualquer um que incomodasse o qual
desejava-se controlar. Isso incluía a população negra moradora de favela. E as
especulações policiais normalmente eram muito mais exageradas do que a realidade
concreta. Nas palavras do Sr. Otacílio, com relação ao clima tenso de perseguição nesse
período supostamente democrático:

288
BARBOSA, Waldir...Op. Cit.
289
MATTOS, Marcelo Badaró. Reorganizando em meio ao refluxo : ensaios de intervenção sobre a classe
trabalhadora no Brasil atual. Rio de Janeiro, 2009.
145
“(...) eles matavam mesmo! Sumia com as pessoas, né? Sumia.... Não
podia falar em comunismo naquela época. Eu sei que você olhava assim nas
fábricas, nas portas das fábricas, no comércio botavam aquele retrato, aquela
imagem, então eles faziam o seguinte: botavam aquele polícia desse
tamanho[fazendo um sinal de grande com as mãos] e o operário pequeno e o cara
agarrado, seguro no braço do cara e com a chibata vindo com a cara mais feia,
isso naquele...no que eles faziam né, no desenho. E o cara, cara com o braço, o
braço da grossura assim e botaram o trabalhador bem pequeno e o cara metendo o
couro! Então só de você olhar pra aquilo, você ficava com [medo] e tal...” 290

Otacílio nos fala ainda que as reuniões dos moradores para discutir seus problemas
coletivos, frequentemente, eram acompanhadas de perto por policiais armados. É
importante ressaltar ainda que, a perseguição a elementos supostamente comunistas e à
vadiagem manteve-se como principal argumento legitimador para a atuação violenta do
Estado nas favelas até meados da década de 1960, durante a ditadura civil-militar, quando a
legislação de combate às drogas “vai servir de justificativa formal para o “pé na porta”
cotidiano nas moradias de favela e a continuidade de uma política ininterrupta de vigilância
e repressão sobre esses territórios.

3.6 A RADICALIZAÇÃO DA LUTA: O CONFLITO ARMADO ENTRE POLICIAIS E


MORADORES

Em fins de 1947 ocorre ao capítulo mais dramático, segundo a memória de Otacílio,


da “guerra do Morro do Turano”. Tal episódio – conflito direto entre a polícia e populares –
não apresentou, em si, uma situação inédita, nem tampouco destoante do que ocorria por
vezes em outras favelas. Contudo, foi marcante principalmente pelo trauma e indignação
que gerou nos moradores, por terminar com o saldo de dois trabalhadores mortos (um deles
só viria a falecer algum tempo depois), alguns foragidos e diversos outros presos. E o
ocorrido ganhou as páginas de diversos jornais, uma vez que se levantou a hipótese de ação
de militantes comunistas no caso. Devemos lembrar que desde o início de 1947 o clima de
tolerância por parte do governo Dutra em relação ao comunismo estavam se dissipando.
Após intensa batalha judicial, o PCB teve seu registro cassado em maio, sob a alegação de
que estaria propagando a influência soviética no país. Iniciou-se então uma onda de
perseguição e repressão análoga aos anos ditatoriais do Estado Novo às forças de esquerda,

290
DUARTE, Otacilio...Op. Cit.
146
que passaram a atuar na clandestinidade. Em 1948 os vereadores do partido na capital
também foram cassados. 291
Em meio a esse clima de insegurança, os jornais conservadores instigavam ainda
mais a instauração de um cenário de suspeição generalizada. Com relação ao caso, em
específico, periódicos assumiram majoritariamente, cada um de acordo com sua postura
política, um posicionamento mais ou menos crítico a ação da polícia e do grupo de Emilio
Turano e favorável à causa dos moradores do Morro da Liberdade. Pode parecer estranho
aos olhos dos leitores atuais esse posicionamento, mas assassinatos ocasionados por
policiais nas favelas não eram tão corriqueiros nessa época como são atualmente.
Normalmente, geravam repercussão e polêmica na imprensa. Com relação à memória, a
narrativa de Otacílio, rica de detalhes, revela um acontecimento profundamente marcante
como também muito traumático:

“[...]. Fiquei. Mas enquanto eu tomava café, eu era solteiro, era sozinho,
tomava café ali no seu Aníbal na Barão de Itapagipe, não tinha família era
solteiro, aí fui lá tomar café. Quando eu desci para tomar o café, comecei a
encontrar os caras. Olhava assim, os caras de terno. Usava chapéu, terno, gravata,
a polícia, só andava assim. Eu olhava assim pra um cara, a cintura dele tava
gorda! Um revólver de cada lado, aí eu fiquei meio assim desconfiado, contava
dois subindo, mais na frente dois… Mais na frente dois, fui contando.... Fui lá,
tomei meu café rápido, voltei pra casa, quando eu cheguei eles estavam reunidos
ali. O delegado mandou os soldados do 15° e alguns do 18° pra tomar conta do
movimento, manter ordem, né? Na hora da reunião. Aí quando chegou, o pessoal
foi chegando, nisso eu fui na rua tomei um café rápido e voltei, o pessoal
começou a chegar, a chegar, assim meio desconfiados, foi chegando, foi
chegando e foi juntando. Mulher não tinha só vinha homem mesmo, sabe? Só
homem e foi, chegou mais ou menos uns trinta mais ou menos, chegou. Aí
fizeram aquele silêncio, a polícia, fizeram aquela roda assim. O meu irmão, ali
onde é a casa do seu Luiz barbeiro, quando passar lá mostra a ele. Aí ficou ali na
casa, não tinha casa nenhuma ali naquela parte não tinha nada, era vazio,
enquanto que eu fiquei lá do lado do meu irmão e fizemos aquela roda naquele
portão que dava pra fazenda, que chamavam.... É, onde é a quadra, era uma
fazenda, era a fazenda dele[Turano], tá entendendo? [...] Mas aí quando chegou
que reuniu, que ele viu que não chegava mais polícia viu que não chegava mais
ninguém, chegou os moradores todos, só os que tavam trabalhando... O que
aconteceu? Ele perguntou assim: quem é Silas Duarte, que era meu irmão. Perto
do meu irmão, que eu tava do lado dele assim, perto dele assim tinha um detetive
negão, que pra mim, desculpa eu falar negão porque eu sou negão também, pra
mim é aquele cara da Mangueira que morreu, aquele puxador de samba. Ele
morreu, mas não sai da minha mente que era ele[…] aí ele perguntou assim:
“Quem é Silas Duarte? ” Meu irmão falou assim: “Sou eu...” Quando ele falou
“sou eu” o cara que estava do lado dele deu-lhe uma bolacha de mão no pé do
ouvido, ele saiu assim de fincão que eu fiquei sozinho, ele saiu assim de lado, de
lado, caiu lá na casa do seu Luiz pra baixo naquele buraco ali, tinha um moleiro
de pedra […] Foi em mil novecentos e....Quarenta e oito! No ano em que minha
mãe morreu. Foi em 48. Mas meu irmão tava armado, eu nem sabia que ele

291
PANDOLFI, Dulce. Entre dois governos: 1945-1950. A cassação do Partido Comunista no cenário da
Guerra Fria. CPDOC. FGV, Rio de Janeiro, 2004 .
147
estava armado, precisa cortar, ou não? Mas meu irmão tava armado. Quando ele
caiu naquele buraco, meteu a mão no revólver e “pam”, saiu atirando. Aí
meteram a mão no revólver...Eu acho que o erro, foi meu irmão atirar primeiro,
né? Aí meteram a mão, todo mundo meteu a mão e começaram a dar tiro pra
cima, pro lado. Aí o pessoal caiu em cima deles. Os moradores já estavam
assustados com o negócio.... Aí começou entre a gente que tinha espingarda em
casa...Da outra vez não contei isso né? Não sei se eles era...entendeu? Aí tinha
revólver, espingarda, sabe? Aí foram correndo buscar, houve aquele tiroteio
tremendo.... Encheram a minha cara de terra, rapaz! Aí meu irmão tava lá e eu
fiquei e subi assim em cima. Eles atiravam aí pegava naquele moleiro, aquele...
“colt cavalinho”, alemão [calibre] 38 a arma, era revólver, o melhor que tinha na
época. Eles atiravam em quem estava atrás. Era garrucha, 38. Eles atiravam para
ver se pegava eu e meu irmão, a bala batia em cima daquele moledo, a areia, a
terra caía na cara da gente, nós ficamos ali. Quando deu a.... Cessou um pouco
que acabaram a bala, descarregaram o revolver, quando eles correram pra
carregar aí eu fui correr com meu irmão, eles correram atrás, atirando nas costas
dele e errou graças a deus não pegou nada. Eu corri com tanta força, que ali que
eu desci, desci direto, caí lá embaixo! Não arranhei nem...nem...nem o capim
arranhou meu dedo, minha mão, meu corpo. E aí eu fui lá pra mata, e a luta
continuou. Aí que ficou duro mesmo. Lá pra mata da Tijuca. Floresta da Tijuca.
Aí o que piorou mais, o que piorou foi quando chegou segunda-feira um jornal
chamado “A última Hora”, e esse deputado o jornal que ele lia era aquele jornal...
Só tô cortando a história, pra não ficar muito longo...Então ele lia “A Última
Hora”, esse deputado, Breno da Silveira, e foi lá na banca, ele morava no centro
da cidade. Foi lá, pegou o jornal, quando olhou: “Moradores do morro do Turano
enfrentaram a … Comunistas! Comunistas do Morro do Turano enfrentaram a
polícia à bala”. Por infelicidade da gente naquela época não podia nem falar em
comunista. [...]. Mataram um, mataram um tal de Salvaterno. Meu cunhado eles
prenderam deixaram de tanta pancada que deixaram ele surdo. Aristides,
conheceu o Aristides? Aí mataram ele [o Salvaterno], feriram mais um que eu até
esqueci o nome agora e..... Nosso movimento continuou a luta, continuou a luta, e
a gente apoiando, a polícia em cima, a polícia, aí foi lá bacana, deputado, foi
deputado senador que era a favor da gente e começaram a agir por nós. Custaram,
custaram a liberar esse morro. ”292

Após um relato tão intenso como este, precisamos dividir a análise em alguns
pontos. Primeiramente, é importante destacar que a narrativa dessa história (que tive
oportunidade ouvir duas vezes: uma como entrevistador e outra como observador) contém
alguns pontos ou marcos que, apesar de Otacílio não seguir necessariamente um
ordenamento cronológico, são aludidos constantemente e permanecem mais ou menos
coesos. O acontecimento do tiroteio é um desses pontos. Poderíamos afirmar que se trata de
um caso onde o trabalho de solidificação da memória foi tão intenso que não permite
alterações profundas, uma vez que, para o entrevistado, essa memória é tão importante (ele
nos narra que teve até um sonho de premonição do que ocorrera, uma noite antes) que
passou a fazer parte de sua própria essência como pessoa e indispensável na compreensão
de quem é Otacílio Duarte. Mas ainda assim certos movimentos são alterados dependendo
dos interlocutores ou da dinâmica de fala.

292
DUARTE, Otacilio...Op. Cit.
148
Um desses movimentos de memória diz respeito à preocupação de Otacílio em
perguntar se deveria cortar a informação de que seu irmão e outros moradores estavam
armados. Essa preocupação não é infundada, uma vez que poderia gerar impressões
distintas da qual ele queria construir, onde o caráter pacífico do movimento e,
consequentemente, a sua legitimidade, poderiam ser abalados. Outro ponto interessante é a
afirmação de Otacílio que na reunião só participavam homens, mulheres, não. Inclusive, em
nenhum caso de resistência desse conflito fundiário as mulheres são mencionadas – seja
pelos jornais, seja na entrevista – a exceção de quando estão na posição de vítimas de
alguma violência. Esse silêncio certamente não quer dizer que as mulheres do Morro da
Liberdade não tiveram um papel tão relevante quanto os homens na luta contra o grileiro
Turano, mas sim, um apagamento da sua participação – mais restritas à noção de resistência
cotidiana nos árduos afazeres do dia a dia. Essa construção se adequa à noção dominante à
época de que questões e debates políticos não eram espaços adequados para a presença
feminina.
Com relação à mídia, os jornais divergem em diversos pontos entre si na cobertura
do crime ocorrido. O Jornal “Diário de Notícias” acrescenta, em sua matéria, que recebeu a
visita de uma comissão de moradores do Morro da Liberdade, preocupados em desfazer o
discurso, propagado por alguns jornais de que seriam eles comunistas. Eles afirmam que
“não pertencem ao extinto Partido Comunista e nem nunca haviam professado a ideias
defendidas por aquela agremiação política”293. Nessa matéria, falam também advogados
(que ligados aos antigos comitês populares e ao agora ilegal PCB) Benedito Bomfim
Calheiros e Henrique Miranda, dois dos quais assumiram a defesa judicial a favor dos
moradores. Eles afirmaram que as informações de alguns jornais eram tendenciosas porque
seguiam o relato do advogado José Bastos Ferreira, genro de Turano. Para eles a ação
agressiva dos policiais seria uma forma de retaliação comandada pelo mesmo no intuito de
remover os trabalhadores à força, já que estava colecionando consecutivas derrotas
judiciais.
Imagem 9: Fragmento da capa do jornal “Diário de Notícias” no dia seguinte ao tiroteio.

293
Jornal “Diário de Notícias”, 16/12/1947, p. 4
149
Fonte: Jornal Dário de Notícias, do dia 16/12/1947, P. 1.
Curiosamente é do jornal “A manhã” - que também baseia sua nota no relato de José
Bastos - a versão que coincide em mais pontos com narrativa de Otacílio, apesar de
construir um discurso criminalizante. Visivelmente conservador, o jornal pinta com cores
fortes uma real ameaça de subversão da ordem, que partia do alto do morro por intermédio
de supostos elementos comunistas. Segundo o periódico, mesmo com a proibição de
qualquer atividade comunista, os militantes continuavam reunindo-se clandestinamente aos
domingos e, no caso do Morro do Turano (o jornal, assim como “A Noite” e o “Diário da
Noite” não designam o local como Morro da Liberdade) através da célula “André
Rebouças”. De fato, o PCB manteve na Tijuca uma atuante célula política homônima, mas
não se tem informação de que certos moradores da Liberdade, citados como comunistas
integravam suas fileiras. Conforme trecho publicado em “A Manhã”:

“Os moradores do morro, claro, nem a terça parte era comunista. Mas, por
causa de alguns “vermelhos” que ali foram morar e que continuavam a promover
comícios e a pregar a doutrina bolchevista, todos viriam a sofrer. Em breve, as
terras do “grileiro” estariam então desimpedidas. Por sua vez, os comunistas na
demagogia ”socialista” se apresentam como protetores dos pobres e humildes
moradores. E sob esse pretexto conseguiram infiltrar o “credo vermelho” na
mente dos pacatos habitantes da “favela”. E foi assim que de um momento para o
outro se viram os moradores do Morro do Turano envolvidos de um lado, pela
ambição do impiedoso grileiro e do outro pela nefasta doutrina dos agentes
“vermelhos”. [...] Minutos depois, chegava também uma turma da Ordem Política
e Social. Ali os levara uma denúncia: agentes vermelhos se reuniam naquele
morro de maneira ostensivamente. Daí então, a diligência policial, que deveria
150
surpreender os “vermelhos” numa de suas reuniões dominicais. Todavia, logo que
a caravana policial alcançou o morro, ouviu-se forte tiroteio que durou alguns
minutos. A polícia subjugou os amotinados, detendo Aristides José da Silva,
trabalhador do Moinho Inglês, sendo que dois outros indivíduos que tomaram
parte ativa no tiroteio conhecidos por Sila[sic] e Zequinha, fugiram.” 294

Dessa maneira temos versões consideravelmente distintas. Os três primeiros jornais


foram guiados por relatos de moradores, que possivelmente, a fim de afastar qualquer
suspeição de envolvimento com o PCB e consequente criminalização e deslegitimação de
seu movimento, omitiram alguns pontos – tal como a referida reunião - que poderiam
trazer-lhes complicações. Por outro lado, no outro extremo, o jornal “A Manhã” se baseia
unicamente no relato do genro do suposto proprietário. Com relação à intencionalidade dos
policiais, parecem prováveis as duas versões: que eles subiram o morro tanto para despejar
moradores (prática já comum, ainda mais se considerarmos que um deles, Ataliba Bastos
era também genro do italiano), quanto para desmobilizar a reunião e prender os suspeitos
de subversão, uma vez que, se tratavam de investigadores do Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS).
De fato, há um documento indicando que a favela e alguns de seus moradores eram
alvo de investigações de agentes da polícia política, associando-os a elementos comunistas,
demonstrando que estavam bem informados com relação às reuniões, às movimentações
dos moradores e à atuação do CPD’s, identificados como “células comunistas”:

“Esclarecimentos em forma de relatório quando a núcleo ou célula


comunista existente em terrenos de propriedade do Sr. Emilio Turano no morro
do Itapagipe.

Nos terrenos que margeiam e circundam a “Casa Branca” também


denominada “Fazenda Turano”, existe uma célula, núcleo ou sub-comitê,
denominado “André Rebouças”, com ramificações em vários pontos da grande
área de terrenos onde se acha edificada a conhecida “Casa Branca” de
propriedade do referido Sr. Emílio Turano, presentemente, com a denominação
que lhe deram os comunistas de “Morro da Liberdade”, atentando, assim, sobre o
direito de propriedade desse verdadeiro proprietário (...). Atualmente, com a
interdição da célula comunista feita pela polícia, ou seus membros se reúnem ora
no barracão de Rogério Manoel Domingos, ora num determinado local do morro
previamente anunciado pela imprensa e por folhetos distribuídos entre os seus
adeptos. Foi criada, recentemente, uma comissão de ajuda ao Morro da Liberdade
dirigida por destacados elementos comunistas, que vem funcionando ativamente
em determinados locais, inclusive no próprio morro, jamais no local anunciado
pela imprensa, o que se traduz no despistamento da polícia especializada. ” 295

Esse relatório, que foi produzido na década de 1940, mas que não tem data exata,
provavelmente é posterior a 1947, ano que o PCB foi posto novamente na ilegalidade, e quando

294
Jornal “A manhã” 15/12/1947, p. 8
295
Notação n° 1681, fundo DPS do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
151
ocorreu o conflito entre moradores e policiais. Revela ainda um posicionamento claramente
favorável ao italiano na disputa, ao afirmar que os comunistas, ao mudarem o nome do lugar,
atentavam contra “o direito de propriedade desse verdadeiro proprietário”. Por outro lado, os
investigadores expressam algum conhecimento de estratégias de colaboração de agentes da
imprensa (provavelmente se referindo ao jornal Tribuna Popular).
Outro ponto interessante nesse documento é a referência ao morador Rogério Manoel
Domingos, supostamente dono do barracão onde aconteceriam as reuniões. Sua citação nesse
documento não foi à toa. Apesar dele não ser mencionado pelos entrevistados, era presença
constante nas comissões de moradores que percorriam os jornais (como pode ser visto nas imagens
5 e 6) o que nos leva a supor que ele tenha exercido posição de liderança no movimento. Além de
ser citado por mais de uma vez como uma das vítimas das agressões e ameaças realizadas a mando
de Turano.296 Ao noticiar uma tarde de festa no Morro da Liberdade, em função de uma derrota
judicial de Turano, a Tribuna Popular descreve o discurso desse morador muito respeitado:

“Em torno da venda do preto Rogério os moradores se aglomeravam a fim


de ouvir a boa nova que a Tribuna fora lhes levar. Era a notícia de que Turano, o
conhecido explorador de favelas, havia sido derrotado na ação de despejo que
movera contra os trabalhadores Rogério, Israel Adolfo, Fernando Ferreira e
Adelino. [...]. Um homem nos recebeu emocionado. Seu barraco fora invadido,
certa vez, pela polícia, por ordem de Turano. Um outro fora agredido pelo
grileiro. Naquela tarde, entretanto, um sopro de esperança voou sobre os casebres
e empolgou as pessoas. Sempre vibra o povo com as suas vitórias. [...] Quando
Rogério tomou a palavra, fez-se um silêncio solene. Iniciou um pequeno discurso.
Simples e bela aquela solenidade espontânea do povo: “ – Eu estou livre do
Turano. Outros mais estarão livres também. Muitos precisam se libertar ainda.
Vocês sabem que essa vitória foi nossa! De nós organizados! ” 297

3.7 - “É PRECISO QUE O MORRO SEJA NOSSO! ” A VITÓRIA DOS MORADORES E


A CONTINUIDADE DA LIBERDADE

Em cenário de enorme controle e vigilância sobre os movimentos populares, onde


ocorreram as cassações do mandato dos vereadores comunistas, refletiram em um período
de intensa repressão e violência contra os moradores do Morro da Liberdade, a despeito das
sucessivas derrotas judiciais de Turano relação a pedidos de ação de despejo. Como nos
informa o Diário de Notícias, no início do ano de 1948, em inflamada denúncia da atuação
dos agentes do Estado nas favelas, intitulada “Terror nas Favelas”:

“Não há nenhum aviso. Nenhuma advertência, qualquer sinal antecipador:


abruptamente, como certos temporais aqui dos trópicos, os "choques" de policiais
municiados e afoitos freiam estridentemente diante dos pobres casebres

296
Jornal Diário de Notícias 11/09/1948, p. 9
297
Jornal A Tribuna Popular – “Dia de festa nos barracos do Morro da Liberdade” - 07/08/1947. Ed. 670. P. 6
152
equilibrados as grimpas miseráveis ou escorregando doentes, pelos costados dos
morros. Num instante, a "favela" se transforma numa praça de guerra — e é um
delírio de destruição. Os moradores, atônitos, são expulsos de seus barracos e dos
seus s lares improvisados. E o fogo da Lei numa mistura ativa de estupidez
oficiosa com gasolina e fósforo transformam aquilo tudo num montão de cinzas.
Se há qualquer protesto, outros métodos igualmente abençoados pelas autoridades
desabam sobre as costas e cabeças dos rebeldes, à maneira de sedativos. Alguns
litros de gasolina, uma caixa de fósforos e mais, quando necessário, uma rajada
de metralhadora ou uma carga cerrada de cassetete – tais têm sido as providências
nesta cidade, para a extinção do incomodo e antiestético problema das “favelas”.
Trata-se de uma solução forte, mas garante o Sr. Mendes de Morais que tudo está
sendo feito com o mínimo de gastos[…] Assim foi no morro do Turano, quando
um “grileiro" reconhecidamente arbitrário e perverso, conseguiu colaboração de
Investigadores da polícia para o tiroteio que desencadeou naquelas “suas” terras.
Lá ficou um morto, vítima de agressão covarde, desigual, e inutilmente a
Imprensa mais "brava” desta capital tentou transformar o fato num movimentado
capítulo da gasta e fastidiosa novela anticomunista. Não houve, no Turano,
comunismo: houve um crime. [...] é sabido que uma grande parte da classe
proletária do Rio tem sua residência nos barracões dos morros e nas choças das
favelas. Agredir com tanta brutalidade uma tal gente, como o vem fazendo o
dinamismo da Prefeitura, não é somente uma covardia revoltante: é um crime,
um crime frio. Daí se conclui que as autoridades que hoje se encontram
empenhadas na "batalha das favelas” devem, urgentemente, mudar as lentes dos
seus óculos; a ver os desastres e infortúnios terrestres com estes olhos que o
Senhor deu a cada um de nós. ”298

Esse caso mais trágico do Morro da Liberdade, ocorrido no final de 1947, foi
emblemático e obteve considerável repercussão na imprensa. Entretanto, como já falamos,
esse caso deu início a um momento que Emílio Turano passa a utilizar-se, mais
frequentemente, de práticas coercitivas para intimidar os moradores e reestabelecer, através
da violência, um controle territorial que estava cada vez mais sendo perdido. O ano de 1948
foi marcado por inúmeras denúncias e aberturas de processos por ameaças e agressões.
Por outro lado, os moradores se mantiveram firmes nas comissões e visitavam as
sedes dos jornais a fim de conquistar visibilidade para o conflito no qual estavam
envolvidos. Foi fundada por integrantes da sociedade civil a “comissão de ajuda aos
moradores do Morro da Liberdade”, contando com diversas pessoas solidárias aos
moradores – muitas das quais ligadas ao antigo Comitê Popular da Tijuca. No interior dessa
comissão, foram criadas várias subcomissões tais como “Assistência Social”, “Assistência
Médica e odontológica”, “Assistência Jurídica” e “Propaganda e Organização”. Como
afirma Otacílio a partir de então “foi lá bacana, deputado, foi deputado senador que era a
favor da gente e começaram a agir por nós. ”299

298
Jornal ”O diário de Notícias” - 25/01/1948 p. 1-2
299
DUARTE, Otacílio. Op. Cit.
153
Não podemos deixar de problematizar que, possivelmente, alguns desses políticos
procuravam promover-se com a situação aproveitando-a para constituir uma base eleitoral.
E, na verdade, esse embate já se espraiara pela esfera jurídica, levado a cabo pelos
advogados e causara, há algum tempo, polêmica na câmara dos vereadores, onde já
tramitava, desde o ano anterior, um projeto de lei do vereador comunista Amarílio
Vasconcelos para desapropriar a área e em defesa do qual a referida comissão fazia forte
campanha.300
Contudo, para Otacílio, o papel decisivo no processo é atribuído ao vereador do
PSD, Breno da Silveira. Para nosso entrevistado, apesar de ter ficado contrariado com as
notícias de que havia comunistas na favela, Breno, que segundo ele, estava,
frequentemente, naquele morro e simpatizava com os moradores. De fato, como se observa
nos jornais, o referido político exerceu defesa dos favelados de diversas localidades na
Câmara. Segundo Otacílio:

“Aí ele chegou lá e pegou a causa pra ele né? Aí ele e os companheiros dele
da política (...). Se envolveram por causa do Breno, do Breno da Silveira, sabe? O
Breno que começou todos os trabalhos. Então.... Aí ficou um negócio escarnecido
mesmo. Aí foi aquela luta, em defesa da gente.... Até que eles descobriram que a
propriedade dele[Turano] era a casa onde ele morava! O terreno tá lá até hoje, um
lote! Um lote desses comum, 40, na rua parece que é 40...não é muito não, não
chega a 50 m² não chega a 50. Foi aonde vieram com a documentação pronta,
pronta porque era do Estado né, então não havia documento com ninguém.
Ninguém era dono, era o Estado, ele apoderou-se e até hoje ninguém sabe...”301

Além dessa mobilização externa solidária aos moradores e a insistente resistência


desses em não pagar o aluguel, Turano via se perder a alternativa judicial para a
manutenção de seu domínio, já que o terreno carecia de demarcação para oficializá-lo em
seu nome. Ele não possuía tais documentos de propriedade, e não conseguira subjugar os
moradores nos tribunais nem através da força. Extremamente articulados entre si, agora
contando com apoio jurídico, de instituições da sociedade civil além de posicionamento
favorável da maioria dos jornais. Os poucos desistiu de seus empreendimentos naquela
área. O jornal “Gazeta de Notícias”, em um texto que defende a legitimidade da
propriedade de Turano, informa que nem o italiano e nem seu advogado estavam mais
conseguindo subir o morro em função de estarem ameaçados de morte caso aparecessem. 302

300
Jornal A tribuna Popular, 13/08/1947 P. 7
301
DUARTE, Otacilio...Op. Cit.
302
Jornal Gazeta de Notícias, 19/03/1949, p.5
154
A vitória dos moradores na luta pela permanência de sua comunidade foi
conquistada mesmo antes do resultado dos processos. Apesar de o caso seguir na justiça a
partir de meados do ano de 1949, já quase não se divulgam mais ações de Turano nos
jornais nem ações violentas comandadas por seus genros. Um deles, inclusive, Ataliba
Bastos, o chefe policial, como consta no jornal “A Manhã” suicidou-se neste mesmo ano,
algum tempo após ser condenado pelo assassinato de Salvaterno de Souza e José
Melhorança, enfraquecendo a ligação do grileiro com a polícia. 303 Emílio Turano se
mudaria de sua residência, na Rua Barão de Itapagipe em 1949304 e, em 1954, viria a
falecer305. Muitas lutas ainda estavam por ser travadas pelos moradores. Apesar de
conquistar a vitória sobre Turano, os moradores não garantiram a estabilidade, o direito a
serviços públicos muito menos a propriedade da terra. Contudo, esse processo de luta
marcou a formação de um forte senso comunitário e a construção de uma identidade local,
permeada por laços de solidariedade e coletividade e profundamente ligada ao território –
concreto e simbólico – da favela que eles batizaram de Morro da Liberdade.

303
Jornal A Manhã, 03/02/1949 p. 8
304
Jornal A Manhã, 07/03/1949, p. 4
305
Jornal A Manhã, 09/01/1958, p. 9
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sobreviver enfrentando grandes dificuldades e ainda lutar coletivamente por direitos


básicos para tornar a vida menos árdua, continuaram, nas décadas seguintes, sendo as
missões prioritárias dos moradores do Morro da Liberdade. Podemos perceber a
continuidade da luta quando, cansados de esperar a ação do poder público, em 1962 temos
a notícia da construção autônoma – com recursos próprios e trabalho coletivo - de um
reservatório e sistema de distribuição de água que atendia a diversas famílias no morro:

“Utilizando engenharia própria e tendo por lema o “slogan” “pé na tábua e


fé em Deus”, moradores do Morro da Liberdade”, no Rio Comprido, estão
resolvendo o problema da falta d’água, de forma totalmente inédita no Rio:
formaram uma sociedade de 65 membros, construíram uma cisterna na base do
morro, instalaram uma grande caixa no alto do morro e já estão abastecendo cerca
de 100 famílias. [...] Com Cr$ 1200 mil a sociedade construiu, na base do morro
uma cisterna de 18 mil litros e, no topo, uma caixa de 43 mil litros. Comprou
também 450 metros de cano de 2 polegadas, 260 metros de canos para
distribuição geral, uma bomba de 40 HP, fez contrato para possibilitar a subida da
água e realizou numerosas obras complementares. [...] Entre os moradores que
realizaram o serviço da água encontram-se bombeiros, eletricistas, torneiros,
pintores, carpinteiros, além de numerosos operários especializados [...]
“ – Tivemos que enfrentar a “dureza” para construir a caixa d’água.
Nossos filhos passaram fome e enfrentamos inclusive a reação de algumas
autoridades que, no começo, achavam graça do nosso plano. ”” 306

A solidariedade e união que se originou das experiências cotidianas compartilhadas


e da luta coletiva pela sobrevivência da comunidade lançou bases para formação da
associação de moradores, para a articulação política com diversas outras favelas e para
diversas conquistas tais como a luz, uma caixa d’água própria, escola, pavimentação nos
principais caminhos da favela, etc.
Ao que tudo indica, Emilio Turano e seus herdeiros perderam completamente o
controle que mantinham naquele espaço, em vista que nas décadas seguintes a favela se
expandiu enormemente passando a abranger áreas em que o italiano não permitia construir.
O antigo “solar” que era a sede da chamada “Fazenda Turano”, no alto da pedreira, deu
lugar à quadra Vista Alegre, na localidade da Raia, edificada sobre a fundação da antiga
construção. Ainda hoje, os mais antigos chamam a localidade de “Fazenda”. O Morro da
Liberdade e a Chácara do Vintém (atual Morro da Chacrinha) foram os núcleos iniciais do
que atualmente é o Complexo do Turano, que abrange sete favelas: 117, Matinha,
Chacrinha, Liberdade, Rodo Sumaré e Paula Ramos. Cada uma delas possui um processo

306
Jornal Tribuna de Imprensa, 30/04/1962, p. 5
156
de formação próprio em momentos distintos, mas que guarda profundas ligações entre si,
partindo de laços de parentesco ou amizade, mas, sobretudo, de uma identidade cultural,
racial e principalmente territorial forte que as une. Entretanto, a memória relativa ao
processo de resistência contra Emilio Turano é bem distante e difusa, restrita quase que
somente aos moradores mais antigos, tal como Otacílio Duarte. Os mais jovens, em sua
maioria, pouco sabem acerca da origem da favela e seu de nome. Há uma noção geral de
que, apesar de ter prevalecido o nome de Turano, o nome “verdadeiro” ou “original” é
Morro da Liberdade, mas poucos sabem o porquê e de onde vêm esses nomes. Tento
também com esse trabalho contribuir para o resgate dessa memória e, consequentemente, a
construção de uma consciência maior acerca da luta daqueles que, no passado, construíram
as bases para que hoje mais de dez mil pessoas pudessem ali morar e viver.
Na trajetória histórica de qualquer favela a extinção sempre foi uma ameaça. Casos
como o do Morro da Liberdade se multiplicaram ao longo do século XX e até os dias de
hoje. Nem sempre a resistência dos moradores terminava em êxito e algumas favelas – com
todo seu universo de práticas culturais, experiências e redes de sociabilidade – foram
violentamente extintas. Ainda assim, esse processo nos mostra que a população negra – a
despeito do apagamento na história- não deixou de existir e, principalmente de lutar após a
abolição, imprimindo sua marca cultural, construindo territorialidades e se organizando
politicamente. Ou seja, continuaram a ser protagonistas de sua própria história e também da
história do Rio de Janeiro e do Brasil.
E, mais do que isso, nos mostra que os moradores das favelas na primeira metade
do século XX, não eram simples vítimas da desigualdade, do racismo e da
agressividade/descaso do Estado. Mas, sobretudo, eram pessoas que pensaram, agiram,
sofreram, festejaram e sonharam. E, a cada barracão levantado, a cada caminho aberto, a
cada lata d'água trazida construíam a favela, a si mesmos e a cidade à sua maneira. Como
nos falou Otacílio: “… Era só a gente mesmo começando uma comunidade, não é? Era só
a gente mesmo. Mas a gente enfrentava aquilo tudo com alegria! Com alegria, porque era
melhor do que na roça onde eu estava! “

157
Imagem 10: Vista do morro a partir do Rio Comprido: A encosta no início do século XX e
atualmente ocupada pelo Complexo do Turano

(Acervo do AGCRJ, autor e data desconhecidos. Autor: Wilson Cesar Moraes, Ano: 2013).

158
FONTES DOCUMENTAIS

PERIÓDICOS

Jornal do Brasil A Noite

● 17-11-1909 p. 8 ● 07/02/1931 P. 1
● 23/01/1934. P. 14 ● 22/11/1932 P. 1
● 24/05/1927, P. 17
● 11/03/1927, P. 21
A Manhã
Tribuna Popular
● 15/12/1947 p. 8
● 12/09/1945. Pg. 5 ● 03/02/1949 p. 8
● 07/08/1947. Ed. 670. P. 6 ● 07/03/1949, p. 4
● 15/06/1947, Ed. 625 P.2 ● 09/01/1958, p. 9
● 12/09/1945, p. 6 ● 22/01/1949, p. 11
● 18/12/1945
● 18/12/1945 p. 8-9. Correio da Noite
● 18/12/1945, p. 6.
● 10/08/1946, p. 5 ● 8/6/1914, p. 10
● 07/08/1947. Ed. 670. P. 6
● 13/08/1947 P. 7 Diário da Noite

Correio da Manhã ● 18/6/1931 p. 1


● 15/12/1947 p. 2
● 09/07/1933. p. 3
● 23/01/1934. p. 6 Outros
● 23/01/1934, p. 6.
● Gazeta de Notícias, 19/03/1949, p.5
Diário de Notícias ● O Paiz, 23/01/1934 p. 4
● O Cruzeiro 09/05/1878 p 2
● 23/03/1944, p. 8 ● Revista da Semana, 04/1948. P.6-
● 07/02/1931 p. 1 10
● 2/12/1948. P.5 ● O Mequetrefe 22/07/1885, p.6
● 10/07/1948, p. 9 ● A Notícia 20/01/1898 ed. 18 p. 1
● 24/08/1948, p. 3 ● Gazeta da tarde 21-2-1883 p. 4
● 16/03/1948, p. 7 ● Revista da Semana ed. 12, 1938. P
● 11/09/1948, p. 9 19
● 16/12/1947, p. 4 ● Diário de Cuiabá 21/06/2009, p. 7
● 11/09/1948, p. 9 ● Jornal do Commercio, 14/06/1935,
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● 16/12/1947 p. 5 ● Jornal Imprensa Popular, 4/4/1951,
P.4
● Jornal Tribuna de Imprensa,
30/04/1962, p. 5

159
ARQUIVOS

● Rolo N° r.002.64-77, livro 383, folha 52 - Arquivo Nacional.


● Rolo N° 010.186-79 Livro 1190 Folha 92 - Arquivo Nacional
● Rolo N°: 010.187-79 Livro 1197 Folha 57 –Arquivo Nacional
● Rolo Nº 005.016-77 Livro 97 Folha 99 - Arquivo Nacional
● Notação n° 1681, fundo DPS do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
(APERJ).

ENTREVISTAS

MARIA VIANA DE SOUZA. Entrevista concedidaao autor em 23 de abril de 2019, no


Morro da Matinha, Rio de Janeiro.

OTACÍLIO DUARTE. Entrevista concedida ao autor em 4 de abril de 2012, no Morro da


Liberdade, Rio de Janeiro.

WALDIR BARBOSA. Entrevista concedida ao autor em 19 de junho de 2018, no Morro do


Salgueiro, Rio de Janeiro.

MAPAS

● Google maps, 2019. Disponível em “https://www.google.com.br/maps/@-


22.9261512,-43.2154687,16z”. Acessado em 24/02/2020.
● GUSMÃO, Hugo. Mapa racial do Rio de Janeiro. disponível em
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