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A teoria das práticas sociais em Bourdieu e Lahire:

diálogos e divergências
BERNARDO MATTES CAPRARA*

Resumo: O objetivo do artigo é examinar a teoria das práticas sociais a partir da sociologia de Pierre
Bourdieu e Bernard Lahire, sublinhando seus diálogos e divergências. As duas perspectivas dialogam
com o problema sociológico da relação entre indivíduo e sociedade, ação e estrutura, e podem ser
vistas como modelos praxiológicos de investigação da vida em sociedade. Bourdieu formulou uma
teoria das práticas que procura desenvolver uma relação dialética entre os comportamentos
individuais dos agentes, motivados por disposições socialmente adquiridas, o habitus, e as estruturas
objetivas, os campos. Lahire, por sua vez, opera com uma teoria das práticas que ambiciona dar conta
dos processos de diferenciação ocorridos desde a metade do século XX, definindo os indivíduos
como participantes de uma pluralidade de contextos de ação e portadores de patrimônios de
disposições plurais.
Palavras-chave: teoria sociológica; praxiologia; habitus; disposições.
The theory of social practices in Bourdieu and Lahire: dialogues and divergences
Abstract: The objective of the article is to examine the theory of social practices from the sociology
of Pierre Bourdieu and Bernard Lahire, highlighting their dialogues and divergences. The two
perspectives dialogue with the sociological problem of the relationship between individual and
society, action and structure, and can be seen as praxiological models for investigating life in society.
Bourdieu formulated a theory of practices that seeks to develop a dialectical relationship between the
individual behavior of agents, motivated by socially acquired dispositions, the habitus, and objective
structures, the fields. Lahire, in turn, operates with a theory of practices that aims to account for the
processes of differentiation that have occurred since the mid-twentieth century, defining individuals
as participants in a plurality of contexts of action and bearers of heritage of plural dispositions
Key words: sociological theory; praxiology; habitus; dispositions.

*
BERNARDO MATTES CAPRARA é professor de Sociologia no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da UFRGS. Doutor em Sociologia (UFRGS).

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Apresentação apresenta uma síntese das teorias das
O objetivo do artigo é examinar a teoria práticas de ambos os autores, sublinhando
das práticas sociais a partir da sociologia seus principais diálogos e divergências.
de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire. As A teoria das práticas em Pierre
duas perspectivas dialogam com o Bourdieu
problema tradicional sobre a relação entre A teoria das práticas de Pierre Bourdieu
indivíduo e sociedade, e podem ser vistas (2004, p. 49) é carregada pela intenção de
como modelos praxiológicos de solucionar os principais antagonismos que
investigação da vida em sociedade, na partem ao meio a sociologia. Por um lado,
medida em que definem o mundo social Bourdieu chama de “objetivista” as teorias
como feito de fluxos incessantes de que explicam a vida em sociedade a partir
práticas que fundamentam processos de causas subterrâneas que não se revelam
concomitantes de formação da sociedade à consciência imediata dos agentes, que
pelos agentes e dos agentes pela não são explícitas à compreensão
sociedade. consciente dos indivíduos. Por outro lado,
Bourdieu (2008, 2004, 1996) construiu o autor categoriza as teorias
uma teoria das práticas que procura “subjetivistas”, que explicam as relações
desenvolver uma relação dialética entre os sociais a partir das representações que os
comportamentos individuais dos agentes, agentes produzem sobre as próprias
motivados por disposições socialmente relações sociais, numa espécie de segunda
adquiridas (habitus), e as estruturas interpretação, na qual as explicações
objetivas (campos) pelas quais se subjetivistas formulariam interpretações
relacionam os agentes, ocupantes de sobre as interpretações forjadas pelos
diferentes posições sociais. Lahire (2008, indivíduos.
2005, 2001), por sua vez, trabalha uma Um importante alvo para o qual Bourdieu
teoria sociológica que dê conta dos aponta sua crítica ao “subjetivismo”
processos de diferenciação ocorridos consiste na fenomenologia existencialista
desde a metade do século XX, que de Jean-Paul Sartre, em derrocada no
colocam os indivíduos como participantes contexto da França da década de 1960.
de uma pluralidade de contextos de ação. Bourdieu observa a emergência do
Isso faz com que as ciências sociais estruturalismo e sua perspectiva
tenham de investigar as relações sociais “objetivista”, apontando como seu
em escala individual, enfatizando mais o principal acerto a adoção de um olhar
trabalho reflexivo que o agente faz sobre relacional para o mundo social, em que a
si mesmo. realidade da vida em sociedade não se
Se Bourdieu deu maior relevância aos equipara a substâncias, mas deve ser
traços de homogeneidade entre os agentes, entendida pelas suas relações. A vida em
originados a partir do habitus de classe, sociedade é definida como um conjunto de
sendo os habitus individuais derivações da relações não visíveis a olho nu, um espaço
estrutura objetiva de classe, Lahire de posições que são exteriores umas às
ilumina os processos multiformes de outras, e que são definidas também umas
incorporação do social por parte dos com relação às outras.
agentes. Em Lahire, é preciso valorizar a Diante disso, a sociologia deve operar,
análise das tensões entre as diferentes num primeiro momento, de modo
disposições que constituem o indivíduo, “objetivista”, construindo e analisando as
investigando as ativações, inibições ou posições relativas dos agentes e as
atualizações dessas disposições. O artigo

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relações objetivas que eles estabelecem a O conceito de habitus é justamente esse
partir das posições que ocupam no espaço mecanismo capaz de proporcionar a
social. Porém, numa segunda etapa, mediação entre um espaço de posições
afirma Bourdieu (2004, p. 152), se o objetivas e a sua incorporação em
momento “objetivista” dá conta de romper esquemas de disposições subjetivas, numa
com as representações imediatas dos relação de verticalidade
agentes, é necessário que o sociólogo (VANDENBERGHE, 2010, p. 64). O
efetue mais uma ruptura, dessa vez com o habitus é o mecanismo que dá forma à
próprio objetivismo. Ao passo em que o teoria disposicional de Bourdieu, o que
subjetivismo tem como tendência a possibilita sua teoria da ação a adicionar
redução das estruturas sociais às ações e ao objetivismo estruturalista a
interações individuais, o objetivismo tem intencionalidade dos agentes, ao mesmo
como tendência sobrevalorizar as tempo em que não permite que sua teoria
estruturas sociais, em detrimento das recaia ao subjetivismo da intencionalidade
ações e das interações. Isso atribui às livre de constrangimentos estruturantes
relações objetivas um caráter exterior ao relacionados a condições objetivas de
indivíduo e ao grupo social ao qual ele existência (BOURDIEU, 2004, p. 22).
pertence, e, portanto, joga peso demais nas O habitus é o centro gravitacional da
estruturas sociais e retira qualquer papel teoria de Bourdieu sobre a agência
de agência individual. Por essa razão, a humana. O conceito abrange a
sociologia precisa investigar também as composição histórico-social dos agentes,
percepções acerca das relações sociais sem desconsiderar as atuações dos
engendradas pelos próprios agentes, tendo próprios agentes na composição das
em vista que essas percepções também são relações sociais. Isso significa que a noção
relevantes na dinâmica das relações de Bourdieu faz parte das abordagens
humanas em sociedade, colaborando nas teórico-metodológicas nas ciências sociais
lutas que se desenvolvem para modificar que dão preponderância ao fato de que a
ou manter as estruturas sociais. agência individual é modelada em grande
A realidade social possui um caráter parte através da participação dos agentes
inevitavelmente duplo, possuindo nos contextos sociais e históricos em que
propriedades materiais e propriedades os mesmos estão inseridos. As estruturas
simbólicas, características objetivas e sociais e as condições objetivas modelam
subjetivas. Para escapar do antagonismo a subjetividade dos agentes, considerando
entre subjetivismo e objetivismo, as que os processos de socialização nos quais
ciências sociais devem examinar as os indivíduos estão inseridos influenciam
relações dialéticas entre as condições seus desejos conscientes ou não, além das
objetivas em que os agentes se localizam suas habilidades de cognição, expressão e
e as disposições subjetivas erigidas pelo suas próprias práticas. Desse modo, as
habitus, esse mediador entre o mundo socializações estruturantes das
externo e o mundo interno. É tarefa das subjetividades dos agentes não podem ser
ciências sociais analisar as práticas dos vistas apenas como limitadoras das
agentes, porque nelas se encontra a intencionalidades pretensamente livres
realização da dialética entre estruturas que o subjetivismo quereria indicar; ao
sociais e representações subjetivas dos contrário, as socializações estruturantes
agentes, a dialética entre condições das disposições subjetivas consistem em
objetivas e habitus. dimensões criadoras, capazes de
proporcionar aos indivíduos habilidades e
recursos práticos para a inserção na vida

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em sociedade. É justamente esse o aspecto de sucesso acadêmico na escolarização
dialético da relação entre agente e (BOURDIEU, 2007). Mesmo assim, é
estrutura que está contido no habitus, e possível que ocorram aprendizagens
que é capaz de fundamentar a sua realizadas mais tarde, em socializações
“sociação” e a sua “individuação” posteriores aos processos primários de
(PETERS, 2015, p. 73). socialização, em aprendizagens aceleradas
O habitus é um sistema de disposições que substituiriam a ausência da
duráveis e transponíveis que pode ser socialização familiar que teria
entendido como um mecanismo de proporcionado a incorporação das
antecipação assemelhado a hipóteses habilidades culturais agora adquiridas.
práticas oriundas das experiências As disposições subjetivas e suas
pretéritas (BOURDIEU, 2008, 2004, incorporações por parte dos agentes têm
1996). O habitus designa grande associação estreita com as condições
importância causal às experiências iniciais sociais objetivas às quais os agentes se
dos agentes, às suas socializações deparam na vida em sociedade, e às
primárias, porque elas seriam produtoras posições em que eles se localizam no
das estruturas do habitus e reverberariam espaço social. Essa homologia entre
nas percepções e apreciações que se condições objetivas de existência e
desenrolariam nas trajetórias dos agentes. disposições subjetivas de percepção e
Em função disso, as práticas não são apreciação pode ser lida como um traço de
confrontadas somente às circunstâncias do determinismo na obra de Bourdieu. Para
tempo presente, e tampouco é uma fugir dessa possibilidade, certificando-se
possibilidade derivá-las dessas de que os aspectos de classe não
circunstâncias. Da mesma forma, não se determinam totalmente as ações
pode pensar nas práticas como individuais, o autor afirma que as
consequência fechada das condições condições objetivas próximas no espaço
iniciais do habitus, na medida em que as social podem produzir habitus que se
práticas possuem a tendência de traduzem em práticas diversas e não
reproduzir o seu princípio gerador passíveis de previsão nos seus
ajustando-se às demandas da situação que pormenores. Os agentes que ocupam
se lhes apresenta. posições numa mesma classe social não se
Bourdieu sugere que a incorporação das deparam com as mesmas experiências de
disposições subjetivas acontece por meio vida, nos mesmos momentos específicos,
de processos de aprendizagem mas eles possuem muito mais chances de
atravessados às trajetórias dos agentes, terem se deparado com situações
constituintes das suas experiências semelhantes do que os agentes que
próprias diante da vida em sociedade. Essa ocupam posições em outras classes
incorporação por meio de processos de sociais.
aprendizagem não é mecânica e também Uma das principais críticas ao edifício
não é irreversível, mas sistemática e teórico de Bourdieu diz respeito ao ajuste
durável. Nos processos de socialização muito estreito concebido pelo habitus
primária, os agentes situados nas classes entre as condições sociais objetivas de
privilegiadas em termos de capital cultural existência e a produção das disposições
tendem a incorporar habilidades culturais subjetivas dos agentes. Esse ajuste muito
por intermédio de aprendizados muito estreito teria como consequência a
adiantados e aprofundados, e que depois reprodução social sem falhas, fendas ou
vão reverberar em maiores possibilidades lacunas, o que não daria margens para

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processos de transformações estruturais. diferentes grupos sociais e os diferentes
A resposta que a teoria de Bourdieu conflitos entre eles. Lahire tem como
propicia a essas críticas indica que o ajuste proposta uma sociologia disposicional que
estreito concebido pelo habitus tem como não somente remeta ao passado
prerrogativa que as condições nas quais o incorporado pelos agentes, mas que
habitus foi produzido sejam encontradas também reconstrua a gênese das suas
no presente, de modo que as disposições disposições e perscrute como elas foram
possam ser atualizadas. Isso seria um caso socialmente engendradas. Além disso,
particular do possível, mas não se essa sociologia disposicional pretende
concretizaria, em Bourdieu, numa analisar as modalidades de atualização das
possibilidade unívoca. Tanto que disposições incorporadas pelas
Bourdieu se dedica a examinar diferentes socializações anteriores, pretendendo
casos em que as disposições subjetivas dos ainda investigar as próprias socializações.
agentes não se ajustam às condições Com isso, Lahire acredita conseguir lidar
objetivas, desajuste que o autor define com pontos que a simples menção ao
como “histerese do habitus” (ALVES, passado incorporado faz com que
2016, p. 305). A histerese do habitus Bourdieu não tenha lidado com
ocorre quando as condições de geração profundidade, pois conseguiria examinar
dos mecanismos do habitus não se os mecanismos de incorporação das
encontram semelhantes para a sua disposições.
atualização em circunstâncias do presente. O fato de o habitus ser transferível de uma
A teoria das práticas em Bernard situação à outra, de maneira generalizada,
Lahire mobiliza uma das críticas centrais de
Bernard Lahire é outro autor importante Lahire (2005, p. 13) ao pensamento de
nos debates sobre as práticas, no contexto Bourdieu. O autor defende que a tese da
das teorias disposicionais. Assim como transferibilidade do habitus precisa ser
Bourdieu, Lahire problematiza as práticas examinada em pesquisas empíricas. A
buscando suplantar as oposições entre as transferência das disposições seria muito
diferentes teses, tanto as mais relativa, à medida que o seu conteúdo e a
individualistas como as mais sua organização sejam mobilizados mais
estruturalistas. Nesse intuito, o autor ou menos perto das condições que
configura um diálogo com e contra geraram as disposições. O problema é que
Bourdieu, demarcando seus próprios Bourdieu simplificaria demais um
entendimentos sobre as práticas e as ações processo em que o agente exterioriza a
humanas. interioridade, processo que é repleto de
complexidade e não poderia ser
De acordo com Lahire (2013, p. 17), para caracterizado como uma simples e
que seja possível compreender as práticas unívoca adaptação dos mecanismos
e os comportamentos dos agentes, há a incorporados pelos agentes às
necessidade de entender o social no seu circunstâncias apresentadas no presente.
estado incorporado, que se manifesta em
disposições para crer, agir e sentir. A sociologia fundamentada numa escala
Significa investigar as relações sociais nas individual, como propõe Lahire (2008),
suas interiorizações nos agentes, tende a mostrar que as disposições dos
apreendendo o social através de um corpo agentes são operadas de modo localizado,
individual. Esse corpo individual que em situações sociais específicas e em
interioriza a realidade social permeia as domínios de práticas particulares. Essa
relações do agente com as instituições, os operação localizada admite a

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possibilidade de que a transferência das experiências escolares, suas relações de
disposições não se dê por meio de uma trabalho, suas preferências e inserções
aplicação mecanizada. O que o autor culturais, religiosas e assim por diante. Os
argumenta é que opera um mecanismo indivíduos são entendidos enquanto
mais complexo de ativação ou suspensão expressões da variação da incorporação
das disposições, de inibição ou de plural das relações sociais.
atualização, indicando que os indivíduos Outra crítica de Lahire ao habitus
mobilizam uma pluralidade de disposições bourdieusiano ataca a definição de
que se relacionam com uma pluralidade de “necessidade feita virtude”, que seria uma
contextos sociais. fonte unívoca na relação com as
O que está por trás das críticas de Lahire a disposições. Na definição de Bourdieu, as
Bourdieu tem a ver com o crescimento dos disposições são fortes e decisivas para as
processos de individualização e práticas dos agentes, são necessidades que
diferenciação ocorridos na modernidade, se transformam em virtudes. Para Lahire,
marcadamente desde meados da década de esse entendimento ignora que as
1960. Nesse período, os indivíduos disposições são diferentes não apenas
passaram a se deparar com uma quanto à sua pluralidade, mas também
multiplicidade de processos que quanto à força que exercem nas práticas
atravessam a incorporação das relações dos indivíduos, variando conforme o seu
sociais, o que os faria portadores de uma grau de fixação nos processos de
pluralidade internalizada de disposições incorporação da exterioridade. Os
pouco ou nada homogêneas, e muitas indivíduos se relacionam de maneiras
vezes contraditórias. Porém, para Lahire, distintas com sua multiplicidade de
não se deve interpretar a sua obra como disposições incorporadas. Tal
representante das correntes de pensamento relacionamento variante é caudatário da
que desconstroem quaisquer entidades forma como foram incorporadas as
coletivas ou perspectivas macrossociais, disposições, das circunstâncias da vida do
como classes e instituições. A indivíduo quando elas foram incorporadas
investigação do social numa dimensão e também do contexto em que elas se
“dobrada” careceria de sentido se não atualizam no tempo presente.
tivesse a possibilidade de buscar Na teoria de Bourdieu, a aderência das
associações com as investigações do disposições subjetivas às práticas dos
social na dimensão “desdobrada”. agentes seria caracterizada, segundo
A investigação do social em estado Lahire, por uma força excessiva que não
“dobrado” vai se preocupar menos com o permite incertezas ou instabilidades. O
comportamento coletivo de um conjunto indivíduo não produziria resistências
de indivíduos, entendidos como internas e tampouco poderia ser aliciado
participantes de determinado grupo ou por vontades diversas ou pulsões outras.
classe, para lançar seu olhar em detalhes Essa abordagem não daria conta de
sobre o próprio indivíduo e a modelagem explicar as situações em que os indivíduos
social que permeou sua trajetória de vida. procuram se desprender de hábitos antigos
Dessa forma, uma sociologia e que intentam reconstruir suas vidas em
disposicionalista em escala individual, novos contextos. Lahire (2001) prefere
conforme os preceitos de Lahire (2005), conceber o indivíduo enquanto resultado
deve se debruçar sobre a incorporação do complexo de múltiplos processos
social nos indivíduos, examinando sua socializadores que acontecem em
socialização familiar e de classe, suas

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contextos sociais plurais e pouco são, na compreensão de Lahire, querelas
homogêneos. que devem ser investigadas na história e a
A perspectiva da sociologia em escala partir de trabalhos empíricos. Em paralelo,
individual arregimenta distinções entre as não deixam de se manifestar como
disposições para crer e as disposições para questões teóricas, pelas quais o
agir. Lahire define as disposições para crer pesquisador deve transitar interpelando as
como crenças assimiladas pelos condições históricas e sociais que
indivíduos, mas que nem sempre podem permitem a fabricação de um indivíduo
se transformar em disposições para agir. plural ou de um indivíduo composto por
As crenças assimiladas possuem um grau elevado de unicidade. Estando os
vinculações aos preceitos sociais atores situados numa multiplicidade de
formulados e disseminados pelas contextos sociais heterogêneos e/ou
instituições em voga na sociedade, e sua contraditórios, a tendência é que suas
incorporação advém de processos experiências sejam prematuras nesses
independentes das rotinas de ação que cenários e, portanto, tais atores se
constituem as disposições para agir. A constituam a partir de um patrimônio
maior ou menor potência das disposições plural de disposições, que se relacionam
para crer depende do alcance da sua com os contextos sociais dos quais
composição (aprendizado) e do alcance da emergiram.
sua confirmação (sobreaprendizado). No embate com Bourdieu, Lahire entende
Exemplo dessa distinção pode ser que sua teoria dá maior ênfase às
encontrado quando a análise teórica circunstâncias do tempo presente que se
identifica lacunas entre o que declaram os apresentam aos indivíduos, às
indivíduos e aquilo que é captado pelo circunstâncias do tempo presente que se
pesquisador por intermédio da observação relacionam com as ações e práticas dos
dos seus comportamentos. Nesses casos, é atores plurais. Bourdieu, por sua vez,
viável perceber quando os indivíduos estaria preso aos alicerces explicativos do
interiorizam valores, normas e ideais, mas habitus e sua atuação na qualidade de
não possuem rotinas de ação capazes de passado incorporado. Colocados diante de
favorecer a consecução dos valores, processos de socialização homogêneos, os
normas e ideais interiorizados. Podem indivíduos até podem agir com esquemas
ocorrer também casos em que os atores previsíveis de geração de práticas. No
assimilam determinadas crenças, sem que entanto, colocados diante de experiências
tenham as possibilidades materiais para heterogêneas que engendram sua
transformá-las em experiências concretas. pluralidade de disposições, os atores
encontram no tempo presente as
Lahire também se afasta do circunstâncias decisivas para ativar, inibir
individualismo metodológico e sua forma ou atualizar as experiências que
de conceber o indivíduo como autônomo fomentaram as suas disposições.
frente às “amarras” da socialização, e das
correntes descritas como pós-modernas e A sociologia disposicional em escala
suas interpretações que enxergam o individual oferece ao pesquisador e à
fracionamento identitário dos indivíduos pesquisadora a oportunidade de captar as
como um dado que sequer demanda alternâncias e vicissitudes das práticas
exames empíricos para a sua entre indivíduos e no interior dos próprios
categorização (ALVES, 2016). As atores. Desse modo, elabora um
querelas acerca da unicidade ou da entendimento das relações sociais que não
pluralidade que constituiriam os atores deixa de lado as singularidades dos

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indivíduos e, ao mesmo tempo, recusa a mover quase que exclusivamente através
produção de simulacros ou caricaturas do senso prático. Nessa linha de
culturais sobre coletividades ou classes abordagem, o habitus balança entre se
sociais. A proposição de Lahire resumir ao antagonismo do controle
movimenta exames dessas alternâncias e prático versus o simbólico, e se resumir a
vicissitudes entre indivíduos e no interior um domínio prático que não possui
dos próprios indivíduos nas suas relações consciência e opera na pré-reflexividade.
com diversos domínios de práticas ou Por isso, fica complicado caracterizar o
contextos de interação. habitus como um mecanismo geral de
O problema da tese bourdieusiana teria práticas, em função das indeterminações
aproximação com o fato de que ele nos princípios de regularidade e regulação
desenvolveu os contornos do habitus das práticas. Lahire propõe desviar essas
tendo como referências sociedades com indeterminações por intermédio do
fraca diferenciação e objetivação das conceito de hábito, que passa a consentir
práticas, como as sociedades sem escrita, com variações sociais importantes em
ao estilo das sociedades camponesas da diálogo com relevância maior ou menor da
Argélia. A importação de uma análise reflexividade nas socializações dos
eficiente para essa forma de organização distintos indivíduos.
social não seria adequada para sociedades No que concerne à problemática das
fortemente diferenciadas. Isso faria parte relações entre ação e intenção, Lahire se
da origem dos problemas que Lahire distancia de Bourdieu em duas dimensões,
aponta sobre o habitus, o que não permite tanto na questão da escala de análise,
que se tenha clareza acerca do hábito que quanto no sequenciamento estipulado para
funciona como modalidade da ação, a ação. Bourdieu entende a prática através
desprovida de intencionalidade, e do tipo da pré-reflexividade, através dos seus
de hábito e seu grau de reflexividade. O elementos desprovidos de
hábito de tipo pré-reflexivo seria uma intencionalidade, na medida em que a
possibilidade entre outras, e por isso ação se desenrola acionando as trajetórias
Bourdieu incorre numa limitação, porque dos agentes em diferentes campos, cada
enquadra o hábito num tipo específico de qual com suas relações de forças e lutas.
modalidade de ação, que é o tipo pré- Os agentes não carregam consciência
reflexivo (LAHIRE, 2001). expressa e clara a respeito da totalidade
Outro problema das teses bourdieusianas dos recursos e das razões que mobilizam
estaria refletido na sua procura por para realizar suas ações. Eles podem erigir
associar a engenharia da sua teoria da planejamentos e intencionalidades em
prática com as discussões a respeito das determinado domínio, levando em conta
diferenciações culturais entre as classes e determinada prática, e, segundo Lahire,
grupos. Na produção da homologia entre tais intencionalidades poderiam emergir
as disposições subjetivas e as condições desde um exame da prática em escala
objetivas de existência, para Bourdieu a individualizada e dos seus contextos de
tendência ao controle simbólico das ação.
práticas estaria depositada nos grupos e
classes sociais que detêm um
distanciamento quanto às demandas
econômicas. Os indivíduos que pertencem
aos demais grupos e classes, por sua vez,
seriam relativamente propensos a se

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Considerações finais disposições no âmago do próprio
Pierre Bourdieu e Bernard Lahire indivíduo. Sem desconsiderar esses
pretenderam articular alternativas para os afastamentos, vale ressaltar que os dois
antagonismos que percorrem as teorias da autores trabalham num eixo
ação nas ciências sociais. Os autores epistemológico bastante próximo, tendo
fizeram isso a partir de uma teoria em vista o entendimento da relação entre
disposicional das práticas, procurando teoria e empiria. Ambos entendem que
entender a dialética entre condições suas proposições teóricas sobre as práticas
sociais objetivas e disposições subjetivas só fazem sentido e ganham relevância
incorporadas. No entanto, ao enfrentar as sociológica informando de perto a
teses que chama de subjetivistas, voltadas investigação empírica.
para salientar a força da racionalidade, da
consciência e das intenções dos sujeitos, Referências
Bourdieu sublinha os aspectos pré-
ALVES, A. R. C.. Dos habitus de classe aos
reflexivos do habitus e o impacto das patrimônios individuais de disposições: reflexões
condições objetivas na sua incorporação. sobre a prática em Pierre Bourdieu e Bernard
O habitus daria coerência às práticas dos Lahire. Revista Sociologias, 18 (42), Porto
agentes, consistindo no senso prático do Alegre, 2016.
qual derivam todas as ações. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do
julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2008.
Lahire contraria o tom homogeneizante do
habitus, construindo uma crítica que __________. Escritos de Educação. Petrópolis:
fomenta o entendimento da incorporação Vozes, 2007.
de disposições pelos atores que podem ser __________. Coisas Ditas. São Paulo:
heterogêneas. As disposições podem ser Brasiliense, 2004.
contraditórias umas às outras, inclusive, __________. Razões Práticas: Sobre a teoria da
dado as diferentes socializações que ação. Campinas: Papirus, 1996.
atravessam a vida dos atores em diferentes LAHIRE, B. O singular plural. Cadernos do
contextos sociais. Nesse caminho, Lahire SocioFilo, 4º caderno, IESP/UERJ, 2013.
se afasta de Bourdieu, defendendo que os __________. Esboço do programa científico de
indivíduos são feitos de pluralidades uma Sociologia psicológica. Revista Educação e
internas, com conflitos e desajustes que se Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 2, p. 373-389,
dão entre as disposições subjetivas e as maio/ago. 2008.
condições objetivas. Para isso servem as __________. O Homem Plural: as molas da ação.
categorias de “hábito” e “patrimônios Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
individuais de disposições”. __________. Patrimônios individuais de
disposições: para uma sociologia à escala
É verdade que Bourdieu e Lahire possuem individual. Sociologia, Problemas e
distâncias relevantes quando abordam o Problemáticas, n. 49, 2005.
conceito de prática. Por um lado, Bourdieu
PETERS, G. Percursos na teoria das práticas
salienta uma espécie de homogeneidade sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu. São
no habitus, enquanto Lahire destaca a Paulo: Annablume, 2015.
heterogeneidade das disposições. Por VANDENBERGHE, F. Teoria Social Realista:
outro lado, Bourdieu entende o habitus a um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte: Ed.
partir da sua mobilidade geral transferível UFMG, 2010.
entre diferentes situações, embasada na Recebido em 2022-12-21
socialização de classe, enquanto Lahire Publicado em 2023-03-13
sublinha a plasticidade mutante das

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