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DEPARTAMENTO DE LETRAS
CURSO DE LETRAS
DISCIPLINA: Fundamentos de Linguística II
DOCENTE: Profª Dra. Maria da Graça dos Santos Faria
São Luís – MA
2023.2
DESVENDANDO A TEIA DISCURSIVA: UMA ANÁLISE À LUZ DE PIERRE BOURDIEU
INTRODUÇÃO
Bourdieu introduz o conceito de habitus como uma lente através da qual podemos
entender como as experiências passadas moldam as disposições presentes. Este termo
sugere que nossas ações e pensamentos são profundamente influenciados pela história de
nossas interações sociais, criando uma estrutura mental que guia nossas escolhas. Ao
explorar o habitus, podemos desvendar as raízes do comportamento humano e desafiar a
visão simplista de ações isoladas.
Bourdieu propõe que a sociedade seja composta por diversos campos, arenas
simbólicas onde agentes sociais competem por diferentes formas de capital. Estes campos,
que vão desde o campo cultural até o econômico, são espaços de luta simbólica, onde os
indivíduos buscam estabelecer e manter sua posição. Investigar a noção de campo nos
permite entender como as estruturas sociais são formadas, mantidas e contestadas.
Neste capítulo, de início, será feita uma breve explanação de três conceitos
importantes para a Análise do Discurso, desenvolvidos pelo sociólogo Bourdieu.
O autor vai dizer, que ao considerar habitus “estruturas estruturadas” será o mesmo
que confessar que esses esquemas de percepções e de ação estão interiorizados dentro do
indivíduo, por meio da socialização do seu cotidiano. Ao se predisporem a funcionar como
“estruturas estruturantes”, essas ações incorporadas pelo indivíduo têm o poder de impacto
nas suas práticas sociais. Adicionalmente, essas ações podem ser “objetivamente adaptadas
a seu fim, sem uma intenção consciente dos fins”. O agente, apesar de não ter plena
convicção, muitas vezes, pode ter comportamentos previsíveis, provenientes dessa
internalização social. Essas práticas também são frequentemente descritas como
coletivamente orquestradas, mas sem a necessidade de uma “ação organizadora
centralizada, como a de um regente”, ou seja, elas desempenham um papel na
representação das ações de uma sociedade, ocorrendo a partir das internalizações
compartilhadas em um determinado grupo, sem necessariamente um organizador inicial
(Bourdieu apud Silva, 2013).
2. Analisando o discurso
De acordo com Geraldi (2012), a leitura deve ser compreendida como “processo de
interlocução entre leitor/autor” (p. 91), onde o leitor não é um mero agente passivo que
decodifica uma determinada informação transmitida pelo autor através do texto. Na verdade,
o leitor tem papel muito mais ativo na leitura, principalmente quando se fala da construção
de sentido do texto:
Portanto, mesmo que o autor tenha pretendido um certo sentido para seu texto, este
não é o único sentido possível, visto que o leitor pode construir uma significação diferente
por meio de sua própria leitura. Inclusive, na concepção de Lajolo (1996), qualquer leitura
tem o poder de auxiliar o leitor na construção e reconstrução de novos sentidos e
conhecimentos, que serão internalizados nele, podendo até modificar sua forma de
percepção da realidade. Tais ideias podem ser associadas à teoria de Bourdieu, enquanto,
ao mesmo tempo que uma leitura pode provocar uma mudança nos sentidos que o leitor usa
para perceber a realidade (assim ajudando a constituir seu habitus), o leitor se posiciona em
relação ao texto lido buscando ressaltar sua opinião em detrimento da opinião dos demais
indivíduos, consoante o conceito de mercado linguístico de Bourdieu, responsável por
prescrever que tal posicionamento depende do habitus e do campo do qual o leitor participa,
além das interações sociais ocorridas nele.
Um bom gênero do discurso para se analisar a recepção de um texto por parte do
leitor é a resenha crítica, já que, conforme afirma Cassettari (2012), a resenha crítica tem
justamente o papel de avaliar uma obra (não necessariamente um livro) pelo viés da opinião
do autor da resenha, levando a uma indicação ou não da obra. Deste modo, todo resenhista
é um leitor e, portanto, empreende uma avaliação e se posiciona ao entrar em contato com
qualquer produção discursiva. O ponto diferencial do resenhista é que ele expõe sua
avaliação no papel, facilitando, logo, a análise desta. Assim, torna-se mais perceptível que,
apesar de assumir, na resenha, a autoria daquele posicionamento acerca da obra resenhada,
o resenhista não está totalmente livre da influência que seu habitus e o campo do qual
participa exercem sobre sua opinião.
A resenha crítica de Edmar Garcia (2021) tem caráter mais técnico, focando-se mais
em apresentar um breve resumo de Pedagogia do Oprimido em detrimento do
posicionamento do resenhista, que fica em segundo plano, embora ainda esteja presente.
Por exemplo, ao explanar sobre a ideia de opressor e oprimido para Paulo Freire, muito
relacionada a relações de poder econômico e de classes sociais (influência que Freire tem
de Karl Marx), Edmar Garcia (2021) aproveita para comparar a teoria do patrono da
educação brasileira com a realidade que observa em sua pesquisa com a EJA (Educação
de Jovens e Adultos):
1
Informação encontrada no Currículo Lattes do autor, disponível em:
http://lattes.cnpq.br/1765053492320597, acessado em 15 dez. 2023.
2Informação encontrada no Currículo Lattes da autora, disponível em:
http://lattes.cnpq.br/1011061874746923, acessado em 15 dez. 2023.
porém, não conseguem explicar por inteiro todas as relações de conflitos
sociais. E é exatamente este o ponto que diverge dos autores, tendo em vista
que os estigmas dentro da EJA não necessariamente possuem como objetivo
a manutenção de hegemonia de classe, uma vez que o público da EJA, do
ponto de vista socioeconômico configura-se como pessoas de classe média
baixa e/ou pobre (Garcia, 2021, p. 397).
Pode-se dizer que essa resenha também tem um tom um tanto quanto crítico, pois
começa apontando o seguinte: “Como falar da Pedagogia do Oprimido, sem falar da
pedagogia da oprimida? Sim. Pois ao falarmos da relação desumana entre opressores,
oprimidos e continuar invisibilizando a opressão e a exclusão vivida por mulheres é uma
violência estrutural” (Henrique, 2019, p. 59). Com tal afirmação, a autora destaca outra forma
de opressão que não é explicada em Pedagogia do Oprimido, embora não deixe de ser um
problema grave, como argumenta Juliana Henrique (2019) ao longo da resenha.
Nesse sentido, é notável que Juliana Henrique (2019) produz uma análise de
Pedagogia do Oprimido bastante distinta da análise feita por Edmar Garcia (2021). Mesmo
que ambos estejam tratando da mesma obra, eles fazem leituras diferentes dela, conforme
destaca Geraldi (2012), e, consequentemente, realizam avaliações diferentes dela,
defendendo ideias diferentes, em consonância com o conceito de mercado linguístico de
Bourdieu. Avaliações estas que chamam a atenção para a existência de conflitos sociais e
formas de opressão que não podem ser explicados pelas ideias presentes na obra
resenhada, mas os dois resenhistas promovem tais apontamentos seguindo perspectivas
diferentes, que condizem com aspectos perceptíveis de seus habitus e dos campos dos quais
participam.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao finalizar esta análise sobre a teoria de Pierre Bourdieu, torna-se evidente que
suas contribuições fornecem uma plataforma teórica sólida para desvendar as intrincadas
nuances do discurso. A interconexão entre o habitus, a noção de campo e o mercado
linguístico revela-se como um conjunto de ferramentas analíticas indispensáveis para
compreendermos a complexidade da linguagem.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo II: a experiência vivida. Tradução de Sérgio Millet.
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HENRIQUE, Juliana Ramos da Costa. Não se nasce oprimida, torna-se!. In: PADILHA, Paulo
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