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Epidemiologia da Violência contra a Mulher

O Conselho Federal de Psicologia (CFP), em sua nota sobre referências


técnicas para atuação psicológica em programas de atenção à mulher em
situação de violência discute que a dualidade histórica entre o homem e a
mulher vem sendo bastante criticada e perdendo lugar para uma perspectiva
mais integral de sexualidade, onde se propõe, inclusive, uma visão mais
simbólica, resultante de processos sócio históricos construídos e passíveis de
transformação. Em contrapartida, o homem ainda permanece em seu status de
dominação, o que leva muitas mulheres a um ciclo de perpetuação e acabam
por reforçar a prática da violência, uma vez que, ao lutar contra valores
vigentes, pode-se comprometer a afetividade.
Butler (2010) aponta que o gênero funciona como uma estratégia de
reafirmação das normas que delimitam os corpos. Existe uma latente
compulsão por adequar-se às normas, que funciona por uma ordem se os
corpos carregassem uma essência desde o nascimento. Assim, os estudos
pré-estruturalistas trazem a visão de que a violência de gênero ocorre como
resultado gênero como efeito das divisões de poder entre homens e mulheres
na sociedade, que servem para reforçar o regime capitalista de produção; e a
importância da diferenciação sexual.
Desde 1950, com o feminismo de Simone de Beauvoir, o gênero é
pensado como diferenças entre o biológico e o social, passando a servir como
análise para se investigar as construções sociais do feminino e masculino na
sociedade. Segundo Scott (1990), o gênero é uma forma primária de relações
significantes de poder.
O termo “violência de gênero”, segundo o CFP, é caracterizado
principalmente do homem contra a mulher – ainda que seja mais amplo –
ganha espaço nos estudos atuais e é analisado sob diversas perspectivas
como classe social, sexualidade, etnia e raça.
A mídia se coloca também como um indutor de violência quando se tem
papel formador de opinião na sociedade e se é reforçado, por exemplo, os
papeis sociais do homem e da mulher, tido como tradicional, ou objetificações
quanto ao corpo feminino, associada ao consumo e prazer do homem. Ao
passar dos anos e das lutas travadas por mulheres e estudiosos, a ideia da
mulher vítima de violência foi passada para mulher em situação de violência, o
que sugere possibilidades de resolução do conflito. O que, também induz à
necessidade de ressignificação dos processos de humilhação perpetuados,
como agressões morais, psicológicas, patrimoniais que, muitas vezes, a mulher
é submetida e, por medo, não denunciam ou buscam ajuda. Daí a importância
de um profissional de psicologia atuando em redes de serviço de atenção à
mulher em situação de violência; oferecendo informações e construindo,
juntamente à mulher, um plano de enfrentamento.
É importante destacar, pois, que a psicologia, enquanto ciência, dispõe
de instrumentos avaliativos possíveis de elucidação e identificação das
situações de violência que passam as mulheres. Existem alguns consensos
sobre os ciclos da violência doméstica contra a mulher, cujas fases variam em
intensidade e tempo para cada caso. As fases do ciclo são: situação de
conflito; episódio de violência; arrependimento e promessa de mudança; e fase
de lua de mel; retornando para a primeira. No entanto, se é preciso incorporar
outros paradigmas e práticas acolhedoras que fujam da naturalização e do
determinismo na compreensão do fenômeno da violência.
A violência afeta a vida da mulher de várias maneiras e demanda uma
atuação profissional múltipla e qualificada. Se fazendo necessário que o (a)
psicólogo (a) amplie sua carga de conhecimento sobre gênero, sobre toda
legislação, assim como sobre a rede de atendimento em saúde para possíveis
encaminhamentos.
Partindo desses pressupostos, escolhemos três textos de análise
epidemiológica da violência contra a mulher. Um artigo sobre dados
epidemiológicos do Distrito Federal, outro sobre Campina Grande, e um paper
apresentado sobre o Estado da Bahia.
No artigo intitulado “Distribuição espacial e perfil epidemiológico das
notificações da violência contra a mulher em uma cidade do nordeste
brasileiro”, realizado em Campina Grande, PB, entre os anos 2012 e 2013. A
metodologia observada foi estudo transversal, de base populacional,
quantitativo, descritivo.
Como resultados foram analisadas 109 notificações de violência contra a
mulher. Prevaleceram mulheres adultas, não gestantes, pardas, com baixa
escolaridade. Houve predominância da violência psicológica e física.
Percebeu-se um aumento de 22,5% das notificações a cada ano. O perfil
da vítima eram mulheres adultas (faixa etária entre 20 e 39 anos) 48,6% / não
gestantes 69,7% / de raça autodeclarada branca 43,1% / com nível de
escolaridade inferior a oito anos 40,4% / solteiras 47,7%.
Observou-se a predominância da violência psicológica (25,7%) / forma
dicotomizada, as formas “Física/Psicológica” prevaleceram (31,2%).
Ameaça configurou o meio mais utilizado para a perpetração da
violência (35,8%), quando na forma isolada. Com a força corporal, a ameaça
permeou 29,4% das notificações.
Sobre o autor da violência mostraram um perfil predominante do sexo
masculino (85,3%), onde em 90,8% dos casos apenas um indivíduo esteve
envolvido na ação, sem uso do álcool pelo autor (48,6%).
Em relação ao grau de parentesco dos prováveis autores da violência,
destacaram-se os cônjuges (25,7%) e os desconhecidos (20,2%). Local de
ocorrência destacou-se as residências (77%)
Em relação à negligência e a violência física estão mais associadas, na
maioria das vezes, às crianças menores de um ano, visto a total dependência
dessas aos seus cuidadores, ocasionadas devido a episódios de irritabilidade.
Em crianças maiores de um ano, a mudança do cenário aponta para maior
frequência da violência física e sexual, estando o corpo da criança em posição
de evidência em relação à da sexualização. A faixa etária relacionada aos
adolescentes e adultos aprece como a mais atingida pela violência psicológica,
seguida da física e sexual, podendo estar relacionadas aos conflitos sociais
inerentes a essas faixas etárias, sobretudo relacionados à sexualidade e
gênero, renda, relacionamentos amorosos e prática de atos ilícitos.
Esta pesquisa relevou uma baixa prevalência da violência em gestantes,
Essa baixa prevalência da violência na população gestante pode estar
relacionada à quantidade de locais de coleta: por ser unidade de referência,
apenas um hospital em Campina Grande notifica dados de violência em
gestantes.
O local da ocorrência mostra sobre a gravidade dela, sendo a maioria
em residências limita o monitoramento da violência. Além disso, as pesquisas
mostram que as denúncias e acompanhamentos por violência doméstica são
muito fragilizados por causa do medo da vítima em denunciar.
Em relação ao perfil do autor da violência a maioria é do sexo masculino,
reafirmando as questões de desigualdade de gênero que fazem parte da nossa
sociedade.
O uso de álcool pelos autores da violência não foi a porcentagem maior,
mas também foi um valor muito elevado nos levando a refletir sobre o poder
que essa substância tem de mudar a personalidade do indivíduo e contribuir
para a violência
Em suma, os dados trouxeram mais visibilidade para essa temática,
mostrando que é um problema alarmante de saúde pública e que necessita de
políticas voltadas para o seu enfrentamento.
No caso da pesquisa realizada no estado da Bahia, foi observado que
Oocorreram notificações de 4348 casos de violência sexual contra mulheres de
10-59 anos entre 2013 e 2017, havendo predominância na faixa etária de 10-14
anos, com ensino fundamental incompleto e de raça pardas.
Em relação às características da violência, houve predominância dos
casos que ocorreram nas residências e utilizaram do espancamento como
forma de violência da vítima, além das agressões de violência física e
psicológica/moral.
Segundo a natureza dos casos, houve alta incidência de estupros e
assédio sexual, sendo que grande parte dos agressores possuíam algum tipo
de parentesco com a vítima. Sobre o encaminhamento dos casos, os dados
mostram-se pouco efetivos, visto que a grande maioria das notificações não
destacaram o destino da vítima (acompanhamento ambulatorial ou internação
hospitalar).
Na pesquisa realizada no Distrito Federal, foram notificados 1.924 casos
de violência contra a mulher; os principais agressores foram desconhecidos
(25,7%) ou cônjuges (19,0%) das vítimas; predominaram vítimas da cor parda
(25,0%) e agressões em ambiente doméstico (38,5%); quanto ao tipo de
violência, destaca-se a forma física (46,8%) por meio da força (48,0%), sendo
os órgãos genitais (15,7%) e a cabeça (12,9%) as regiões mais afetadas.
Apesar dos avanços dos direitos femininos, a violência contra a mulher
ainda constitui um grande problema para a construção de uma sociedade mais
igualitária e acolhedora. Visando a adequada assistência à mulher, discussões
sobre a desigualdade de gênero, melhorias do sistema de notificações e
educação continuada sobre o amparo às vítimas da violência sexual aos
profissionais de saúde devem ser constantes.
Também é importante salientar que a maioria dos dados
epidemiológicos é recolhidos a partir do SINAN – Sistema de Informação de
Agravos de Notificações. Esse formulário abaixo anexado muitas vezes não
contém todos os dados preenchidos e muitas vezes nem sequer é realizada a
notificação pelo local onde a mulher foi acolhida inicialmente, até mesmo por
medo de represálias, já que o formulário é assinado por algum funcionário do
local de acolhimento dessa mulher.
É importante salientar que a predominância de mulheres pretas, pardas
e de baixa escolaridade nos mostra que a violência contra a mulher perpassa
as discussões de raça e classe, evidenciando que a vulnerabilidade social e
econômica pode ser considerado um fator desencadeador para a violência
contra a mulher.
REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
 
Conselho Federal de Psicologia. Referências técnicas para atuação de
psicólogas (os) em Programas de Atenção à Mulher em situação de Violência.
Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP, 2012.

Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de


Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e promoção da Saúde.
Viva: Instrutivo. Notificação de violência interpessoal e autoprovocada.
[Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2016 [acesso em 23/11/2020].
Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpesso
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SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista


Educação e Realidade, Porto Alegre, RS: 1990.

SILVA, L.E. ; OLIVEIRA, M.L.C . Características epidemiológicas da violência


contra a mulher no Distrito Federal, 2009 a 2012.. EPIDEMIOLOGIA E
SERVICOS DE SAUDE, v. 25, p. 331, 2016.

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Congresso de Saúde Coletiva da UFPR.

SILVA, G. C. B. ; NOBREGA, W. F. S. ; MELO NETO, O. M. ; SOARES, R. S.


C. ; OLINDA, R. A. ; CAVALCANTI, A. L. ; CAVALCANTI, S. D. L. B. .
Distribuição espacial e perfil epidemiológico das notificações da violência
contra a mulher em uma cidade do nordeste brasileiro. ARCHIVES OF
HEALTH INVESTIGATION , v. 8, p. 580-585, 2019.

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