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O Conselho Federal da OAB - por meio da OAB Editora - ressalta que as opiniões emitidas nesta
publicação, em seu inteiro teor, são de responsabilidade dos seus autores.
P195
ISBN: 978-65-5819-041-7.
CDDir: 341.556
CDU: 343.232:396(81)
VIOLÊNCIA SEXUAL NO A M B IE N T E U N IV ER SITÁR IO :
a n á l i s e a p a r t ir d a e x p e r i ê n c i a d e u m a A u d iê n c ia P ú b lic a
n o D is t r it o F e d e r a l
1 INTRODUÇÃO
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para a replicação de outras experiências semelhantes de mobilização da
comunidade acadêmica contra esta perversa forma de discriminação de gênero.
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mulheres pelas violências sofridas. Cada novo ato de violência sexual se torna
uma metalinguagem, que reforça a vigência da ordem de gênero como natural e
inevitável (v. ÁVILA, 2018).
Esta normalização da violência sexual já foi descrita como uma
“cultura do estupro” (CAMPOS et al., 2017). Nesta “cultura” há papéis de
gênero rígidos, com um dever de controle recíproco do cumprimento destes
papéis, de sorte que, a crítica a determinados comportamentos femininos que
fogem dos estereótipos de gênero legitimaria comportamentos violentos
masculinos de disciplina. Segundo Lee et al. (2007, p. 15) “compreender a
violência sexual como uma consequência previsível da cultura do estupro
possui um efeito profundo nas estratégias de prevenção à violência sexual. A
violência sexual passa a ser vista como um continuum de comportamentos, ao
invés de um ato isolado e desviante” .
Um dos mecanismos de normalização da violência sexual é a dúvida
sobre a palavra da mulher, quando ela se afasta do papel de “vítima ideal”,
associada à “mulher honesta” . Segundo Christie (2018, p. 20), “ Se as mulheres
optassem pelo status de vítima ideal, elas teriam de aceitar uma subordinação
eterna. [...] Com a equidade, as mulheres tiveram reduzidas suas chances de
serem reconhecidas como uma boa vítima clássica” . Esta normalização da
violência sexual opera-se por meio de mitos, como as ideias de que as mulheres
pedem para ser estupradas ao terem comportamentos tidos como perigosos,
como sair sozinha durante a noite, as mulheres mentem sobre o estupro para
proteger sua honra após se arrependerem de uma relação sexual consentida, a
ausência de marcas físicas significa que a mulher concordou com a relação
sexual, a demora em denunciar é indicativo da mentira, ou que não há estupro
dentro de uma relação íntima (BORGES; LEMOS, 2017).
Diversas pesquisas têm documentado como esta ordem sistêmica de
gênero se projeta para o ambiente universitário, replicando a violência de
gênero, tanto no Brasil (GOULART et al., 2013; ALMEIDA, 2017; BORGES;
LEMOS, 2017; BACCARINI et al., 2019) como em outros países
(DRAGIEWICZ; DEKESEREDY, 2011; PALUDI et a l, 2015; AHRC, 2017).
Segundo Behounek (2020), a violência contra as mulheres nas universidades é
derivada de quatro vetores: normas culturais, normas societárias, tolerância à
violência sexual e ao assédio sexual. Esta violência acompanha a vida escolar
da mulher; segundo o UNICEF (2014), em diversos países há indicativos da
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homens estudantes assediarem professoras, como uma forma de equalizar a
relação de poder, compensando a superioridade acadêmica da mulher com o
contrapoder das relações de gênero (BACCARINI et a l., 2019).
A própria percepção do que configura ou não assédio sexual é
genderizada, com homens usualmente sendo mais tolerantes para com
condutas de assédio sexual (BACCARINI et al., 2019; EKORE, 2012;
DRAGIEWICZ; DEKESEREDY, 2011), o que gera um ambiente de peer
support para as violências sexuais. Muitos dos agressores sexuais no campus
não são agressores ocasionais, mas sim recidivos (DRAGIEWICZ;
DEKESEREDY, 2011), o que reflete uma normalização da violência sexual.
A violência sexual nas universidades está fortemente ligada à divisão
sexual do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007) e sua projeção na
aceitabilidade das mulheres em determinados cursos universitários. Como a
função feminina está associada às atividades de cuidado ou de auxílio, há
determinados cursos tidos como femininos, como pedagogia, enfermagem ou
serviço social. Já os cursos de alta abstração ou de decisão são tidos como
masculinos, especialmente nas chamadas “ciências duras”, como tecnologia,
engenharias e matemática (BEHOUNEK, 2020). Isso significa que homens
que participam dos cursos femininos ou que buscam profissões que lhes
concedam flexibilidade de horário para poderem se dedicar à família sofrem
uma desvalorização de sua virilidade, e mulheres que se arriscam nas ciências
duras se expõem a um maior nível de assédio (VICTORIA, 2016). O assédio
gera a percepção de que as mulheres precisam ter uma performance
excepcional para serem aceitas, diferentemente dos homens, em que uma
performance meramente ordinária já assegura sua aceitação. Segundo
McGowan e Edmond (2017, s. p.), “em termos de equidade de gênero, os ideais
de meritocracia e igualdade transformam os obstáculos que as mulheres
experimentam em um problema de ausências [...] as mulheres têm falta de
excelência, falta de ambição, falta de dedicação, falta de capacidade”,
escondendo as discriminações de gênero subjacentes às dificuldades
experimentadas pelas mulheres.
Esta genderização dos cursos também se reflete nos salários das
respectivas profissões, com rendas menores às profissões tipicamente
femininas (HIRATA; KERGOAT, 2007; BRUSCHINI, 2007). Igualmente, as
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sexual no local de trabalho, bem como em instituições
educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e
c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer
que ocorra. [...]
Art. 6° O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange,
entre outros:
a) o direito da mulher a ser livre de todas as formas de
discriminação; e
b) o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões
estereotipados de comportamento de comportamento e costumes
sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou
subordinação. [...]
Art. 8° Os Estados Partes convêm em adotar, progressivamente,
medidas especificas, inclusive programas destinados a:
b) modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens
e mulheres, inclusive a formulação de programas formais e não
formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a
fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras
práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade
de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o
homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência
contra a mulher;
e) promover e apoiar programas de educação governamentais e
privados, destinados a conscientizar o público para os problemas
da violência contra a mulher, recursos jurídicos e reparação
relacionados com essa violência;
f) proporcionar à mulher sujeita a violência acesso a programas
eficazes de recuperação e treinamento que lhe permitam participar
plenamente da vida pública, privada e social; [...] (grifo nosso)
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abrange a elaboração de normas que reconheçam a ilicitude das diversas
formas de violência contra as mulheres e a revogação de normas
consuetudinárias que tolerem sua persistência. O item 30 desta Recomendação
Geral n. 35/2017, prevê a obrigação de se estabelecer políticas de prevenção
adequadas, especialmente mediante campanhas educativas; tornar os espaços
seguros à circulação das mulheres; e especificamente de fornecer atividades de
capacitação aos profissionais da área de educação sobre violência de gênero.
Especificamente neste último ponto, estas ações de educação devem incorporar
medidas de (CEDAW, 2017, item 30.b):
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assédio sexual possuem configuração criminal. Dentre as principais
configurações estão as seguintes infrações:
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professoras do Departamento de Sociologia sobre o tema, inclusive com
reunião em colegiado.
O levantamento preliminar realizado pelo Coletivo Afetadas produziu
um relatório (DISTRITO FEDERAL, 2016, p. 11-30), que documentou
diversos atos de violência de gênero no ambiente universitário, feitos por
alunas de diversos cursos, dentre os quais comunicação social, ciências sociais,
sociologia, serviço social, letras, matemática, urbanismo, psicologia, geografia
e administração. As principais reclamações foram de:
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indica uma inércia da Universidade em prevenir e proteger as vítimas e em
promover a responsabilização dos agressores.
Diante do recebimento destes relatos das diversas violências de
gênero no ambiente universitário, o Núcleo de Gênero do MPDFT entabulou
uma sequência de reuniões com o NEPeM e com o Coletivo Afetadas, para
elaborar a lista dos temas a serem abordados e uma estratégia de realização da
audiência2. Houve também reuniões com representantes do Coletivo Afetadas,
para explicar as possibilidades de atuação e encorajá-las a confiarem na
intervenção que se seguiria. Estes encontros também foram relevantes para
esclarecer quanto aos riscos de se realizar acusações de crimes sem o
embasamento em evidências que sejam consideradas provas suficientes pelo
sistema de justiça, portanto orientando-as a como denunciarem as violências
sem se colocarem em risco de sofrerem retaliações. Apesar de diversos estudos
indicarem que a maioria das mulheres reluta em denunciar um abuso sexual e
que eventuais falsas acusações são absolutamente minoritárias, infelizmente
há o risco de o sistema criminal, imerso na cultura sexista, reverter a denúncia
da vítima sem a possibilidade de provas adicionais (como sói ocorrer nos
crimes sexuais, sem testemunhas) em uma denunciação caluniosa, e até que se
arquive a denunciação haverá um irreversível abalo psicológico à denunciante
(v. SPOHN, 2020; PIMENTEL; MENDES, 2018). Muitas vezes, o viés
androcêntrico pelo sistema de justiça gera uma falha em não se considerar o
depoimento da mulher como prova suficiente da violência sexual, além da
perda outras evidências importantes, como as perícias psicossociais quanto aos
abalos derivados do crime.
A audiência pública foi designada para o dia 7 de novembro de 2016,
das 14h às 18h, no Auditório da Faculdade de Química da Universidade de
Brasília, com o tema geral “Assédio e Violência Sexual nas Instituições de
Ensino Superior do Distrito Federal” .
A audiência pública foi realizada de forma conjunta do MPDFT com
o Ministério Público Federal - MPF e o Ministério Público do Trabalho -
MPT, diante das possíveis repercussões quando aos servidores públicos
federais e funcionários terceirizados celetistas.
Os temas para a audiência pública foram os seguintes:
2Foram realizadas reuniões no NEPEM dias 22/05, 15/08 e 29/09/2016, e reunião na Diretoria
da Diversidade do Decanato de Extensão da UnB dia 13/06/2016.
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relato sobre as violências, além da possibilidade de eventuais presentes fazerem uso
da palavra. Dentre as convidadas estavam: Meninas Velozes, Grupo de Estudos
Mulheres Negras, Grupo Demodê, Coletivo de Mulheres GENPOSS, Coletivo de
Mulheres da FAC, Grupo de Mulheres em Movimento, Sindicato dos
Trabalhadores da Universidade de Brasília, Centro de Pesquisas e Pós-Graduação
sobre as Américas - CEPPAC, todas as IES do DF, todos os Institutos e
Departamentos da Universidade de Brasília, a Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão do MPF, parlamentares com ativismo a favor dos direitos das mulheres,
representantes de órgãos públicos de promoção dos direitos das mulheres (como a
coordenadora da então existente Casa da Mulher Brasileira do DF), e o comando do
posto policial da Polícia Militar responsável pela área da UnB. O evento teve ampla
divulgação na mídia local, fomentando debate público sobre a temática.
No dia da audiência, cerca de 90 pessoas se reuniram durante toda
uma tarde, para debater a temática da violência contra a mulher no ambiente
universitário, conforme lista de presença constante do procedimento.
Acompanharam a mesa de abertura desta audiência, além deste autor que a
presidiu, a Procuradora do Trabalho Renata Coelho, o juiz coordenador do
Núcleo Judiciário da Mulher do TJDFT Ben-Hur Viza, a Procurador Federal
dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat e a Professora Silvia Badim da
DIV/UnB. Participaram da audiência pública diversas alunas, professoras,
representantes dos servidores e terceirizados da UnB e de algumas IES
privadas, além de representantes de órgãos públicos. Os debates confirmaram
as denúncias recebidas pelo MPDFT, conforme consta da ata da audiência
pública (DISTRITO FEDERAL, 2016, p. 78-86).
A ata da audiência pública foi formalmente encaminhada à Reitoria
de todas as IES do DF, com recomendação de criação de grupo de trabalho
com representação dos diversos segmentos da comunidade acadêmica (corpo
discente, docente, apoio administrativo e terceirizadas) para a construção de
um projeto de promoção dos direitos das mulheres na Universidade. Na
oportunidade, recomendou-se às IES que levasse em consideração as seguintes
diretrizes na realização destes trabalhos (Ofício n. 138/2016 - NG/MPDFT, in
DISTRITO FEDERAL, 2016b, p. 11-12):
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Após um semestre, oficiou-se a todas as IES do DF, solicitando-se
resposta em relação às providências adotadas quanto à recomendação. Esta
movimentação institucional do Ministério Público colocou o tema na agenda de
atuação das IES, exigindo ao menos uma resposta sobre as medidas tomadas.
A UnB respondeu através da DIV, com resposta em 5 laudas
detalhando diversos projetos em curso para responder a cada uma das diretrizes
constantes da recomendação (DISTRITO FEDERAL, 2016b, p. 59-61). Dentre
as principais, destacam-se: aprovação de uma “política da diversidade” com
diretrizes de convivência universitária, promoção de diversas ações de
extensão, redefinição do fluxo de denúncias na ouvidoria, criação de formação
contínua ao corpo docente por meio de editais PROCAP, e instituição pela
Reitoria de uma comissão de segurança e gênero.
A ESCS, UniEuro, UPIS e UNIP e FACIPLAC responderam
informando da recente criação de uma comissão para iniciar a discussão do
tema. Especificamente a FACIPLAC informou da criação de folder orientativo
contra o assédio sexual afixado nos murais da universidade, bem como relatou
diversas palestras sobre o tema.
O UniCEUB encaminhou relatório de atividades que continha lista de
atividades pedagógicas ou grupos de pesquisa existentes ligados à temática.
A UDF respondeu informando da existência de Clínica-escola de
psicologia para prestar atendimento psicológico gratuito à comunidade
acadêmica e à existência de Comissão Disciplinar Institucional para receber
eventuais denúncias de assédio sexual, bem como informou quanto à
realização de ações reflexivas e preventivas.
O IFB respondeu quanto à existência de um Núcleo de Gênero e
Diversidade Sexual com ações nesta temática, ilustrando diversas ações
preventivas e informando da proposta de elaboração de um plano de ação
específico na temática.
O IESB respondeu quanto à existência de um Observatório de
Direitos Humanos, com o objetivo de mobilizar a comunidade acadêmica em
torno da temática dos direitos humanos, fomentar projetos de pesquisa no tema
e aperfeiçoar o regulamento de extensão da instituição. Informou ainda da
criação de uma “campanha de prevenção e combate às opressões de raça,
gênero e sexualidades no ambiente universitário”, com a realização de uma
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5 ANÁLISE CRÍTICA
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envolvimento de toda a comunidade acadêmica (DRAGIEWICZ;
DEKESEREDY, 2011).
Ademais, é necessário cuidado para não se perder o foco central na
demanda de enfrentamento à violência sexual contra as mulheres nas
universidades, que deve ser a promoção da equidade de gênero. Por exemplo,
ao ser demandada sobre o problema, a UnB apresentou solicitação de
intervenção policial quanto ao tráfico de drogas nos centros acadêmicos. O
tráfico de drogas claramente não é a causa da violência de gênero no espaço
universitário, apesar de haver estudos que indicam que uma elevação em geral
da criminalidade tenha correlação (enquanto fator de risco) com outras formas
de violência contra as mulheres (GOMES, 2017).
Diversas estratégias têm sido desenvolvidas em outros países para se
enfrentar o problema do assédio sexual no ambiente universitário. Nos EUA,
durante o governo Obama, houve a criação de uma comissão federal para estudar
o problema do assédio sexual nas universidades, tendo seu relatório final (Not
Alone) apontado as seguintes recomendações (PALUDI et a l, 2015, p. xxi):
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realizou o julgamento, mantendo a absolvição. Ou seja, durante 4 anos a autora da
publicação respondeu a uma ação penal privada por ter denunciado as notícias de
supostos abusos sexuais por este estudante, que à época já portava uma condenação
criminal (não transitada em julgado) por tráfico de drogas. O episódio induz à
reflexão sobre a relevância de se proporcionar às mulheres orientações sobre como
denunciar os assédios de forma segura, de forma a diminuir o risco de represálias
jurídicas que, ainda que infundadas, gerarão enorme transtorno pessoal.
Portanto, para além da educação para mudança cultural, é necessário
institucionalizar canais de recebimento de denúncias e sua apuração, com
adequada preparação dos seguranças da universidade para acolherem de forma
humanizada as denúncias de assédios às alunas, e um espaço especializado
para acolhimento e orientação às vítimas, a fim de que elas não sejam expostas
a situação de maior risco de retaliações ao denunciarem as violências sofridas,
bem como de articulação com serviços de apoio psicossocial e médico. Deve
haver adequado treinamento para que todos os integrantes da comunidade
acadêmica saibam quais são os valores institucionais e como agir diante de
uma notícia de violência sexual de forma acolhedora com a vítima. Há
instituições que tem se esforçado para efetivar a existência desses canais
internos e externos e a própria articulação do Coletivo Afetadas, o
NEPeM/UnB e o MPDFT é um exemplo da relevância desse tipo de
articulação externa à IES.
Um aspecto não discutido como recomendação pelo Ministério
Público foi o eventual uso da justiça restaurativa enquanto mecanismo de
resposta à notícia do assédio sexual. Nos EUA, Cyphert (2018) propõe a
possibilidade de uso deste mecanismo como forma de assegurar a reflexão pelo
assediador, que usualmente repete um comportamento tido como normalizado
sem se dar conta do potencial destrutivo à vítima, desde que haja assunção de
responsabilidade pelo agressor e as vítimas tenham um papel ativo em
construir o plano de reparação da ofensa. Da mesma forma, Clark (2015), a
partir de entrevistas com vítimas australianas de crimes sexuais, argumenta que
intervenções restaurativas poderiam atender melhor às expectativas das
vítimas para receberem reconhecimento e validação, bem como promover
responsabilização pelo agressor, segurança e prevenção. Todavia, outros
estudos (v. SANTOS; MACHADO, 2018) indicam que o uso de mecanismos
restaurativos em contexto de violência de gênero (como a violência doméstica)
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A violência nas universidades configura uma grave violação de
direitos humanos das mulheres, pois cerceia o direito das mulheres à educação
superior. Trata-se de uma responsabilidade direta do Estado pôr fim a estas
violências, em IES públicas e particulares, considerando que o exercício da
atividade de ensino em instituições privadas está vinculado ao dever de
obediência às normais gerais estabelecidas pelo Estado e condiciona-se por
prévia autorização e posterior avaliação estatais (CF/1988, art. 209).
A análise das soluções apresentadas por diversas universidades o DF,
na sequência da audiência pública, representa uma mobilização inicial sobre o
problema. Mas, claramente, não são suficientes à sua plena solução. É
essencial a criação de regras claras que proscrevam os diversos tipos de
comportamentos discriminatórios às mulheres no ambiente universitário,
campanhas de conscientização, espaços de acolhimento às mulheres que
experimentem discriminação de gênero no ambiente universitário, e diretrizes
de responsabilização dos agressores, tudo com uma clara perspectiva de
gênero. Nesse sentido, as diretrizes constantes da recomendação expedida pelo
MPDFT persistem atuais e prementes. Seria conveniente uma continuidade no
acompanhamento destes desdobramentos.
A plena emancipação das mulheres passa pela emancipação política e
econômica, o que por sua vez exige o pleno acesso à educação de nível
superior. A oferta de serviços educacionais em ambientes não seguros limita o
acesso pelas mulheres à educação. Esta plena segurança às mulheres exige uma
abordagem holística e interseccional.
O ambiente universitário deve ser um exemplo de civilidade e inclusão,
onde a convivência da comunidade acadêmica deve reproduzir os valores éticos
que fundamentam sua existência, com a diretriz do pleno acesso à educação.
Afinal, que educação é essa que tolera e fomenta a violência no próprio campus?
REFERÊNCIAS
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SPOHN, C. Sexual assault case processing: The more things change, the more
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