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GIDDENS, Anthony.

A Transformação da Intimidade – Sexualidade, Amor e Erotismo nas


Sociedades Modernas. São Paulo: Unesp, 1993.

INTRODUÇÃO
A primeira vista, o sexo é questão privada, dotada de um componente biológico,
mas primordialmente íntimo. Mas, na atualidade, ele tem vindo cada vez mais ao público e
freqüentemente o faz sendo apresentado como revolucionário; reino potencial da liberdade.
Este tema liga-se a importantes pontos, que atravessam os sentimentos e os gêneros
sobretudo: relacionamento puro, amor romântico, sexualidade plástica, controle dos
homens sobre as mulheres.

EXPERIÊNCIAS DO COTIDIANO
Igualdade sexual: a possibilidade de variedade de amantes (não necessariamente
simultâneos) à mulher sem que ela seja considerada “perdida” (em oposição à “virtuosa”).
A variedade sexual antes era considerada uma necessidade masculina proibida a quase
todas mulheres, mas mudanças neste ponto de vista exigem mudanças de comportamento e
de relacionamento.
A vida pessoal tornou-se um projeto aberto, criando novas demandas e novas ansiedades.
Nossa existência interpessoal está sendo completamente transfigurada, envolvendo todos
nós naquilo que chamarei de experiências sociais do cotidiano, com as quais as mudanças
sociais mais amplas nos obrigam a nos engajar. (18)
Seguindo Lillian Rubin, a exigência de virgindade pré-nupcial tem declinado nas
ultimas gerações, mas ainda assim uma certa divisão entre garotas decentes e vadias
permanece, apesar de alterada. Como resultado disso, as pessoas em geral chegam ao
casamento com um grau mais elevado de experiência sexual, e a satisfação com o sexo
passa a ser considerada essencial para a satisfação com a relação.
A homossexualidade tem deixado de ser vista como patológica, ou mesmo
“perversa” – quase totalmente pela medicina, ainda que alguns heterossexuais insistam em
sua não-naturalidade e imoralidade. Há uma crescente emergência da homossexualidade e
da autodenominação gay, com suas imagens características. “[...] o termo gay também
trouxe com ele uma referência cada vez mais difundida à sexualidade como uma qualidade
ou propriedade do eu.” (24)
Ainda que haja uma grande diversidade entre os parceiros entre os gays a idéia de
“relacionamento” também está presente entre os homossexuais e de fato talvez tenha
surgido aí antes de atingir os heterossexuais.
A sexualidade deixou de ser considerada natural, preestabelecida. “[...] a
sexualidade funciona como um aspecto maleável do eu, um ponto de conexão primário
entre o corpo, a auto-identidade e as normas sociais.” (25)

FOUCALT E A SEXUALIDADE
Após uma apresentação satisfatória de História da Sexualidade I – A vontade de
saber, Giddens afirma que
A sexualidade é uma elaboração social que opera dentro dos campos do poder, e não
simplesmente um conjunto de estímulos biológicos que encontram u não uma liberação
direta. Mas não podemos aceitar a tese de Foucault de que há um caminho de
desenvolvimento mais ou menos direto, desde um “fascínio” vitoriano pela sexualidade até
os tempos mais recentes” (33)
Há contrastes na literatura médica vitoriana e a mesma com o fenômeno cotidiano
hoje em dia. Além disso, as repressões da era vitoriana forma bastante reais. Foucault põe
demasiada ênfase no poder, no corpo e no discurso (certos discursos, aliais), deixando de
lado o gênero e o amor romântico.
Sobre este último ponto é necessário frisar que ele remoldou o casamento, visto
agora como um “empreendimento emocional conjunto”, no qual a contração no tamanho da
família tornou mais maleável – e, porque não, interessante – a sexualidade, (sobretudo o
feminino). Mais que elemento de reprodução, a sexualidade agora é autônoma, maleável, e
uma propriedade do indivíduo. É isto que Giddens chama de sexualidade plástica, condição
para a famosa revolução sexual (autonomia sexual feminina e florescimento da
homossexualidade: livre arbítrio sexual).
Giddens também se preocupa com o discurso, mas, antes de relaciona-lo ao poder,
vai em busca da reflexividade institucional: “é institucional por ser elemento estrutural
básico da atividade social nos ambientes modernos. É reflexivo no sentido de que os termos
introduzidos para descrever a vida social habitualmente chegam e a transformam [...]” (39)
Característica distintiva das sociedades modernas, a reflexividade institucional, no caso da
sexualidade, se dá mais por discursos informativos do que por propagandas e manifestos.
Rejeitando a confissão foucaultiana, enquanto tecnologia predominante de
construção do eu, Giddens aponta para o caráter aberto da auto-identidade e a natureza
reflexiva do corpo em sociedades com alta reflexividade: o eu como uma interrogação
contínua que busca apoio em diversas mídias e discursos, ao rejeitar os modelos e
estereótipos existentes.
Nesse sentido ao revelar as conexões entre a sexualidade e a auto-identidade, Freud
e a psicanálise proporcionam “[...] um ambiente e uma base rica de recursos teóricos e
conceituais para a criação de uma narrativa reflexivamente ordenada do eu”.(41)
O corpo torna-se cada vez mais reflexivo e portador de auto-identidade, o que não
nega a ação do poder disciplinar mas vai além dele.
O declínio da perversão, tornado comum a todos ( não apenas aos “anormais”) por
Freud, e substituído por “desvio sexual” por Havelock Ellis, se espalhou para o mundo
cotidiano, através de movimentos pró-diversidade social ( movimentos políticos e
pessoais). Isso permite (e provem de) uma maior sexualidade plástica na medida em que a
heterossexualidade voltada à reprodução deixa de ser o padrão pelo qual tudo mais é
julgado.
Não apenas a própria vida social, mas também o que costumava ser “natureza” passam a ser
dominadas por sistemas socialmente organizados. A reprodução um dia foi parte da natureza
e a atividade heterossexual era inevitavelmente o seu ponto principal. Uma vez que a
sexualidade tornou-se um componente “integral” da relações sociais, como resultado de
mudanças já discutidas, a heterossexualidade já não é mais um padrão pelo qual tudo é
julgado (45)

O AMOR ROMÂNTICO E OUTRAS LIGAÇÕES


Giddens considera o amor mais ou menos universal, e o amo romântico
culturalmente específico.
Antes da modernidade o casamento era sobretudo econômico, e, portanto,
largamente desvinculado do prazer, cuja a busca era privilégio de poucos, sobretudo os
mais poderosos: “a liberdade sexual acompanha o poder e é uma expressão do poder”(49).
Idealização do outro, auto-conhecimento e narrativa individualizada são
características dessa forma socialmente rara que é o amor romântico, crescentemente
associado à liberdade (como esta normalmente desejada) à medida que se desvincula da
simples atração sexual, do amor à primeira vista, e, portanto, do amour passion.
O amor romântico afeta as mulheres de diversos ângulos, e em conjunto com outras
influências, como a nova relação entre pais e filhos, proporcionada pelo surgimento da
infância, o afastamento entre lar e local de trabalho (que retira o homem da casa) e a
diminuição da família, que aumenta o controle das mulheres sobre os filhos.
Outro ponto importante é a idealização da maternidade, suavidade, da qualidade
feminina enquanto traço de personalidade. Sobre este ponto de vista, o amor romântico era
essencialmente feminilizado, ainda os homens também o sintam. Temos então uma divisão
de gênero na economia dos sentimentos: homem separando amour passion da amante e o
amor romântico da esposa; e mulheres crescentemente bovaristas. Mas isto não impede que
ele signifique mais ou menos o mesmo para todos: intimidade com apoio e idealização do
outro e projeto de desenvolvimento futuro (56), o que envolve uma suavização da
masculinidade e uma diminuição da passividade feminina.

AMOR, COMPROMISSO E RELACIONAMENTO PURO


Entre as mulheres, sobretudo, há o que se chama de “busca do romance”, vinculada
com a não passividade, possivelmente em conjunto com a diversidade pessoal, apesar de
certas atitudes masculinas ainda portarem ecos do passado. Isto vai além do casamento,
sendo esta busca definida pelo que Giddens chama de relacionamento puro, que por sua
vez vem paulatinamente modelando as escolhas sexuais e de casamento, em um contexto de
sexualidade plástica. Relacionamento puro pode ser definido como
[...] uma situação em que se entra em uma relação social apenas pela própria relação, pelo
que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de uma associação com outra, e que
só continua enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela satisfações suficientes,
para cada uma individualmente para nela permanecerem (68-69).
Já aos homens que sucumbem ao amor romântico em muitos sentidos são
desmasculinizados, tornam-se escravos de uma mulher, em um processo bastante diferente
da transformação da intimidade acima descrita. Neste sentido, os homens retardatários que
ainda procuram status e auto-identidade perante outros homens e no trabalho.
Entre em cena então o amor confluente ativo e contingente, que busca a construção
de um “relacionamento especial” mais do que o encontro de uma “pessoa especial”.
Ele presume uma igualdade na doação e recebimento emocionais, aproximando-se
da idéia de relacionamento puro.
O amor romântico é o amor sexual mas liberta a ars erotica. A satisfação e felicidade
sexuais, especialmente na forma fantasiada do romance, são supostamente garantidas pela
força muito erótica provocada pelo amor romântico. O amor confluente pela primeira vez
introduz a ars erotica no cerne do relacionamento conjugal e transforma a realização do
prazer sexual reciproco em um elemento chave na manutenção ou dissolução do
relacionamento. O cultivo de habilidades sexuais, a capacidade de proporcionar e
experimentar a satisfação sexual por parte de ambos os sexos, tornam-se organizados
reflexivamente via uma multiplicidade de fontes de informação, de aconselhamento e de
treinamento sexual. (73)
O amor confluente tem como característica não ser necessariamente heterossexual,
nem monogâmico sendo muito mais orientado por peculiaridade dos parceiros.

AMOR, SEXO E OUTROS VÍCIOS


O sexo hoje em dia pode ser considerado vício de algumas pessoas. Vícios são
comportamentos compulsivos: mais que padrões, mais que hábitos, são ações que não
podem parar de serem feitas pela simples vontade. Diz respeito, assim, a uma perda de
controle sobre o eu.
O êxtase, a dependência e o desligamento provocados pelo vício possibilitam “[...]
um afastamento do eu, um abandono temporário daquele preocupação reflexiva com a
proteção da auto-identidade, genérica à maior parte das situações da vida cotidiana” (85).
Isso pode vir a causar vergonha e remorso, de maneira que os viciados caminhem para a
liberação ou para a contenção, ou ainda para a substituição por outro vício
psicologicamente equivalente.
O vício deve ser compreendido em termos de uma sociedade em que a tradição tem sido
mais abandonada do que jamais foi, e em que o projeto reflexivo do eu assume
correspondentemente uma importância especial. Quando grandes áreas da vida de uma
pessoa não são mais compostas por padrões e hábitos preexistente, o indivíduo é
continuamente obrigado a negociar opções de estilo de vida. Além disto – e isto é crucial –,
tais escolhas não são apenas aspectos “externos” ou marginais da atitude do indivíduo, mas
definem quem o indivíduo “é”. Em outras palavras, as escolhas do estilo de vida constituem
a narrativa reflexiva do eu (87).
Assim, o vício é característica de uma sociedade pós-tradicional reflexiva, e pode
emergir de qualquer fragmento da vida cotidiana – inclusive o sexo – que se torne muito
distante da escolha, não havendo coações externas. No caso do sexo isso costuma se
manifestar de maneiras diferentes entre os gêneros, sendo o vício masculino mais próximo
do modelo do “garanhão”, e o feminino mais variado.
O “garanhão” é uma figura interessante: conjuga uma retórica de amor romântico
com uma espécie de sedução de certo modo obsoleta, já que não é mais capaz de agradar as
mulheres “virtuosas”, muito mais disponíveis hoje em dia, tornando-se, assim, dependente
das mulheres: um ladies’ man.

O SIGNIFICADO SOCIOLÓGICO DA CO-DEPENDÊNCIA


Há ainda aqueles que dependem da dependência de outros.
Uma pessoa co-dependente é alguém que, para manter uma sensação de segurança
ontológica requer outro indivíduo, ou um conjunto de indivíduos, para definir as suas
carências; ela ou ele não pode sentir autoconfiança sem estar dedicado às necessidades dos
outros. Um relacionamento co-dependente é aquele em que um indivíduo está ligado
psicologicamente a um parceiro cujas atividades são dirigidas por algum tipo de
compulsividade. Chamarei de relacionamento fixado, aqueles em que o próprio
relacionamento é o objeto do vício101-102).
A co-dependência, seja em sua forma “pura” ou na forma de relações fixadas
viciadas, dificulta a construção reflexiva do eu, pois se fixa em fontes externas. Para a
construção de uma relação pura baseada em amor confluente é necessário um
estabelecimento de limites pessoais, talvez certo egoísmo, na busca de um equilíbrio capaz
de fornecer intimidade (que depende de emancipação).
Passando à análise do parentesco e das famílias, Giddens percebe que aí também
opera a transformação da intimidade: instituições sociais como o divorcio geram uma
diversidade de novos laços que, justamente por serem novos, possuem a característica de
não serem estáticos: devem ser constantemente negociados, através da construção de
compromissos cumulativos e decisões que criam novas éticas da vida cotidiana. O caso da
relação pais e filhos, vemos “[...] uma ênfase sobre a intimidade que substitui a relação de
autoridade dos pais. De ambos os lados são solicitados sensibilidade e compreensão.” (111)
Giddens percebe que algo próximo à co-dependência pode existir entre pais e filhos,
nos relacionamentos com os chamados “pais tóxicos”, que impedem uma construção
emocionalmente confortável de uma narrativa do eu. Isto ilustra como as características do
amor confluente operam também nas relações entre adultos e crianças.

DISTÚRBIOS SEXUAIS, PROBLEMAS PESSOAIS


Pensando na sexualidade masculina, que se torna problemática na medida que certas
formas sociais preexistentes que lhe garantiam segurança dissolvem-se, Giddens faz uma
rápida apresentação de teorias freudianas:
Assim sendo, emboras Freud mais tarde tenha modificado os argumentos dos three essays...
a luz de suas percepções subsequentes, as idéias de que a sexualidade não possui um objeto
intrínseco e que a sexualidade masculina e a feminina são funcionalmente equivalentes
cederem lugar à suposição da masculinidade e da sexualidade masculina como norma. Os
meninos têm a vantagem de ter seus genitais visíveis e serem mais facilmente localizados
como a fonte de estimulação erótica. O desenvolvimento sexual é uma questão ameaçadora,
tanto para os meninos quanto para as meninas: sendo visível, o pênis é também vulnerável, e
a rivalidade do menino com seu pai é a base de uma mistura extremamente ansiosa de perda
e aquisição de autonomia. Mas a menininha é um ser despojado em um sentido mais
profundo, pois a sua inadequação visível é intrínseca a sua existência. Ela é despossuída
desde o início, porque nasceu “castrada”; sua heterossexualidade só é atingida de modo
secundário, quando percebe que jamais poderá possuir a mãe, porque não tem um pênis.
Não há um caminho direto para a feminilidade. (127)
Tais teorias foram duramente criticadas por lacanianos e pós-estruturalistas, que
insistem na crítica ao essencialismo e no caráter fragmentário da identidade. Giddens rejeita
tais críticas, argumentando que mesmo que na linguagem o significado seja definido pela
diferença e pelo contexto, não há porque pensar que a identidade não possua continuidade.
Dessa forma, o autor rejeita teorias lacanianas como as de Luce Irigaray, que afirma que
“não há organização representativa para o feminino: a feminilidade é um ‘buraco’ em um
sentido duplo” (129), concordando mais com Nancy Chodorow, que sugere que “a
‘linguagem masculina’, na medida em que ela existe, tende a ser mais instrumental e teórica
que aquela das mulheres; mas, em alguns aspectos importantes, a ‘linguagem masculina’
expressa tanto privação quanto dominação” (129).
A enorme influência materna na primeira infância, segundo Chodorow, cria uma
influência da qual é difícil libertar-se, sendo a criação de uma auto-identidade masculina
muita problemática. Neste processo, o falo é o símbolo-chave da libertação e da criação de
uma masculinidade energética e combativa, criação tensa que rejeita o que lhe é
fundamental: o amor materno. Esta tensão, em um contexto de amor confluente (no qual a
dependência emocional é insustentável), gera ansiedade.
Uma das respostas para tais ansiedades é uma pornografia padronizada, de baixa
emoção e alta intensidade, na qual a mulher é dominada e sua sexualidade é neutralizada.
trata-se de um tipo de sexo episódico extremamente seguro, no sentido de que o homem
possuirá sem riscos a mulher. Um exemplo ainda mais extremado do poder fálico é a
violência sexual e o estupro, também proveniente de certa insegurança e desajustamento
frente ao declínio da cumplicidade feminina.
As mulheres, na teoria de Freud, não possuem uma sexualidade complementar à
masculina, dada a ausência do falo e a percepção de uma castração que direciona sua culpa
à mãe, mas não cria uma identificação com o pai. Chodorow e outros, mais uma vez
subvertem a teoria freudiana, colocando que a ligação entre a mãe e a filha não é rompida
como entre aquela entre a mãe e o filho, de modo que as mulheres acabam por possuir
menos autonomia e individualidade, mas possuem mais identidade de gênero, o que carrega
consigo uma menor carga de sofrimento emocional.
Giddens faz uma ressalva à este quadro, lembrando que o amor confluente entre pais
e filhos busca, em geral, uma maior autonomia da criança, de ambos os sexos.
Deste ponto de vista, Giddens interpreta vários problemas do desenvolvimento
sexual masculino e feminino: poder do falo (142), a tendência a dominação e à submissão
(142-143), o pai ausente (143), masoquismo (143-144), o narcisismo feminino expresso em
sua sexualidade difusa (144), a necessidade de reafirmação masculina expressa na
sexualidade episódica (144-145) e a passividade feminina, considerada mais social do que
psico-sexual (145).
Tudo isso é sublinhado como não necessariamente universal, mas muito comum na
sociedade moderna, na qual a invenção da modernidade deu à mãe um papel proeminente
no cuidado dos filhos. Daí a dificuldade dos homens em estabelecer a comunicação
emocional necessária à intimidade, que os obriga a esconder sua dependência através de um
apego ao papel de dominante.

CONTRADIÇÕES DO RELACIONAMENTO PURO


“Os traços psicológicos discutidos no capítulo anterior, em especial na medida em
que estão essencial ou parcialmente localizados no inconsciente, provocaram tensões
fundamentais no mundo emergente dos relacionamentos puros” (149). Como já sabemos,
os homossexuais estão na vanguarda do relacionamento puro, já que não há regras
tradicionais para seus “casamentos”. Por isto, lésbicas serão o principal exemplo usado
neste capítulo.
O fato de um relacionamento puro exigir negociação constante gera uma série de
problemas e contradições, como aquele entre a necessidade de doar-se para conferir
garantia ao parceiro e a possibilidade inerente de um término. Isto é resolvido por
indicadores de intimidade exclusiva, que dão base para a confiança ao mesmo tempo que
proporcionam “um ambiente favorável ao projeto reflexivo do eu” (154). Lembrando-se
que a auto-identidade é móvel, temos aí uma segunda contradição, que diz respeito ao
equilíbrio entre autonomia e dependência.
Nos relacionamentos gays, tanto masculinos quanto femininos, pode-se testemunhar a
sexualidade completamente desvinculada da reprodução. S sexualidade das mulheres gays
forma-se a partir de uma necessidade e está quase totalmente relacionada às implicações
observadas no relacionamento puro. Ou seja, a plasticidade da resposta sexual é canalizada,
acima de tudo, por um reconhecimento dos gostos dos parceiros e de sua opinião sobre o
que é ou não agradável e tolerável. O poder diferencial pode ser restabelecido por uma
inclinação, por exemplo, para o sexo sadomasoquista. (158)
[...]
O sadomasoquismo consensual não precisa ser apresentado como uma receita pra a
experiência sexual compensadora, mas o princípio que ele expressa é suscetível a
generalização. (159)
[...]
Sade separa inteiramente a sexualidade feminina da reprodução e festeja a sua fuga crônica
a partir da subordinação a interesses fálicos (159)
A sexualidade episódica, por sua vez, tem como característica a recusa à intimidade
e consequentemente à auto-identidade, além de resistência da igualdade entre os sexos (no
caso de heterossexuais masculinos). No entanto, sobretudo para os gays, a sexualidade
episódica representa a sexualidade plástica em sua máxima expressão, na qual é possível
elaborar uma auto-identidade reflexiva.
A diferença entre homens e mulheres se define, no contexto estudado, sobretudo
pela deficiência econômica feminina e a deficiência emocional masculina, já que os
homens vêm perdendo seu papel de provedor, e agarram-se a este com toda forca. Daí
surgem novos conflitos sexuais, que Giddens centraliza na transformação do falo em pênis
(possível apêndice inútil), gerando impacto nos laços heterossexuais: o casamento ortodoxo
passa a ser apenas superficialmente central, sendo em realidade apenas mais um modelo. É
apenas um modelo mais fortemente institucionalizado, posto em cheque pela transformação
da intimidade.

SEXUALIADE, REPRESSÃO, CIVILIZAÇÃO


Reich é um crítico da sexualidade genital tradicional, origem dos sofrimentos da
modernidade através do represamento da energia sexual que gera a necessidade de
autoritarismo. O sexo pode ser libertador desde que despido de “um caráter que ele
descreve como sendo uma deformação do ego, que assume a forma de rigidez” (177), um
equilíbrio neurótico fixado na genitália. Cabe notar que, apesar de bastante revolucionário,
Reich tem uma visão negativa da homossexualidade, considerando-a fruto da libido
frustrada.
Marcuse é um crítico da disciplina econômica que gera uma sobrecarga de repressão
– a repressão excedente, historicamente localizável no ascetismo interno das instituições
modernas, que devem ser enfrentadas através do princípio da realização (mais específico
que o princípio de realidade). A primazia do prazer pode trazer a transcendência destas
instituições, e, para alcançá-la, é necessário livrar-se da tirania genital, que despoja o sexo
das partes do corpo necessárias para o trabalho industrial – “as perversões” sendo pontos de
resistência a tal tirania.
Sobre a crítica foucaultiana à hipótese repressiva, “Marcuse estava consciente da
questão e tinha uma resposta. Permissividade sexual não é absolutamente a mesma coisa
que liberação. A transformação da sexualidade em mercadoria é universal, mas o erotismo
fica quase completamente eliminado (186). Isto aproxima Foucault de Reich e Marcuse, já
que todos esses consideram a permissividade da época atual como um fenômenos de poder
não-emancipatório. A evitação de problemas acera de gênero e amor também os aproxima
de Foucault. a sexualidade aqui é andrógina, sem gênero; além disso, não há explicação das
origens da permissividade sexual criticada, de forma que a luta pela emancipação de Reich
e Marcuse torna-se insuficiente para compreender as dinâmicas da modernidade, assim
como o biopoder foucaultiano.
Em vista disso, repensemos a relação entre a sexualidade e o poder, partindo da asserção de
que o poder, como tal, nada realiza. Os aspectos generativos do poder, assim como suas
características distributivas, estão ligados a propriedades específicas da organização social, a
atividades de grupos e indivíduos em determinada situação, bem como a vários contextos e
modos de reflexividade institucional. A sexualidade não foi criada pelo “poder”, do mesmo
modo que a difusão da sexualidade, pelo menos em um caminho direto, não é o resultado da
sua importância central para esse “poder” (191)
Ainda que concorde com Foucault em pontos como a vigilância, Giddens se preocupa
menos com o poder e mais com a reflexividade institucional, que administra os desvios e os
limites, tornando os sistemas internamente referenciais.
Quanto mais o tempo de vida se converte em um referencial interno e quanto mais a auto-
identidade é assumida como um esforço reflexivamente organizado, mais a sexualidade se
converte em uma propriedade do indivíduo. Assim constituída, a sexualidade sai de cena,
seqüestrada tanto em um sentido físico quanto em um sentido social. Ela é agora um meio
de criarem-se ligações com os outros tendo como base a intimidade, não mais se apoiando
em uma ordem de parentesco imutável, mantida através das gerações. A paixão é
secularizada, extraída do amour passion e reorganizada como a idéia de amor romântico; é
privatizada e redefinida. (193)
A medida que a sexualidade se desvincula de traços morais e éticos transcendentais, como
religião, natureza e reprodução, cresce o vazio, a rotina, a vergonha.
Neste processo de “seqüestro” que confina a sexualidade feminina, e toma a
masculina como não-problemática, ao inserir o sexo no projeto reflexivo do eu, a
sexualidade torna-se central. isto não se dá através de sua mercantilização ou de sua tomada
como verdade ou como vício.
Destruída a justificativa biológica que tornava a heterossexualidade “normal”, as
“perversões” passaram a ser não mais que expressões da sexualidade plástica, e de como
ela é influente nas definições de auto-identidade. Diante de um pluralismo radical, as
escolhas sexuais deixam de ser moralmente hierarquizadas. Mas, para Giddens, apenas isto
Não torna a sexualidade revolucionária, nem as suas foras mais anti-convencionais em
vanguarda.
Mas se, como sugeri, a repressão sexual tem sido sobretudo uma questão de seqüestro social
associado ao poder do gênero, as coisas podem assumir uma posição um pouco diferente.
Não temos necessidade de fiar esperando por uma revolução sociopolítica para a criação de
mais programas de emancipação, nem tal revolução ajudaria muito. Processos
revolucionários já estão ocorrendo na infra-estrutura da ia pessoal. A transformação da
intimidade reclama por mudança psíquica e também por mudança social, e essa mudança,
partindo “de dentro para fora”, poderia potencialmente se ramificar através de outras
instituições, mais públicas. (200)

A INTIMIDADE COMO DEMOCRACIA


Ao contrário da democratização da esfera pública, cujos protagonistas são
masculinos, as mulheres possuem o papel principal na democratização da esfera privada.
Democracia significa sobretudo autonomia ao autodesenvolvimento individual
através de uma limitação (mas não negação) do poder e da autoridade. Isso implica em
igualdade, participação, discussão, pluralismo, responsabilidade pública, confiança e
reflexividade de direitos e deveres. Em ideal, é claro.
Vemos que este ideal macro de democracia se aproxima muito do modelo micro do
amor confluente e do relacionamento puro. Neste, a autonomia significa um projeto
reflexivo do eu bem-sucedido, capaz de se relacionar com outros de maneira igualitária,
respeitando seus limites. Isto inclui constante reflexividade e equalização das relações,
incluindo o respeito, a confiança, e a abertura ao outro na definição dos direitos e dos
deveres, que por sua vez definem a intimidade.
Na ausência de uma constituição, a opção apontada por Giddens como mecanismo
para a organização dos relacionamentos puros são os “contratos móveis”, que, sem lidar
com absolutos éticos, são construídos reflexivamente e em conjunto, através de
comunicação livre, sem compulsividades.
Toda a atividade sexual que respeite a autonomia de si e dos outros – sem
dominação ou compulsão, portanto – pode ser emancipatória no plano pessoal, a
democratização pública e a privada influenciam-se mutuamente, ambas exigindo (ou
tendendo a exigir) certo grau de paridade no acesso aos recursos – sem cair, entretanto, em
reducionismo econômico.
O que pode ser dito com alguma certeza é que a democracia não é o bastante. A política
emancipatória é uma política de sistemas internamente referenciais de modernidade; está
orientada para controlar o poder distributivo e não pode confrontar o poder em seu aspecto
generativo. Deixa de lado a maior parte das questões colocadas pelo seqüestro da
experiência. A sexualidade tem esta enorme importância na civilização moderna por ser um
ponto de contato com tudo aquilo que tem sido renunciado em prol da segurança ténica que
a vida cotidiana oferece. (214)
Criam-se então políticas de vida, que buscam pensar reflexivamente questões morais e
existenciais. E a identidade sexual define o próprio eu em construção. Isto implica em um
levante contra o código binário de gênero, que limitava as escolhas às anatomias, e às
anatomias as personalidades. Tradicionalmente associamos os homens à razão e as
mulheres à emoção – que é rechaçada e aproximada da loucura justamente por se afastar
dos princípios propriamente racionais. Mas, na construção de políticas de vida, sobretudo
num contexto de amor confluente e relacionamento puro, a emoção se torna essencial.
Com a emergência da modernidade, a emoção torna-se de muitas maneiras uma questão de
política de vida. no reino da sexualidade, a emoção como um meio de comunicação, e
também de compromisso e e cooperação com os outros, é especialmente importante. O
modelo do amor confluente sugere uma estrutura ética para a promoção de emoção não-
destrutiva na conduta do indivíduo e na vida comunitária. Proporciona a possibilidade de
uma revitalização do erótico – não como uma habilidade especial das mulheres impuras,
mas como uma qualidade genérica da sexualidade nas relações sociais formadas pela
mutualidade, ao invés do poder desigual. O erotismo é o cultivo do sentimento, expresso
pela sensação corporal, em um contexto comunicativo; uma arte de dar e receber prazer.
(220)

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