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1. Introdução
As mulheres, apesar de comporem cerca de metade da população mundial, são uma
minoria social. Isto quer dizer que elas representam uma coletividade que sofre processos de
estigmatização e discriminação, resultando em diversas formas de desigualdade ou exclusão
sociais, mesmo quando constituem a maioria numérica da população, como no caso do Brasil,
onde 50,8% da população pertence ao gênero feminino. De acordo com levantamento da
Organização das Nações Unidas (ONU), atualmente existem 101,8 homens para cada 100
mulheres no mundo. Assim sendo, pode-se dizer que a discrepância numérica entre os
gêneros é ínfima se comparada à discrepância social e cultural que separam homens e
mulheres ainda no século XXI.
Paralelamente aos seus esforços como minoria social, as mulheres são obrigadas a
enfrentar, como cidadãs, instituições “democráticas” que refletem a desigualdade enraizada
na sociedade. O Poder Judiciário brasileiro, por exemplo, é um claro exemplo de
desigualdade de gênero, sendo composto por 62,7% de homens e apenas 37,3% de mulheres.
Esse quadro é ainda mais problemático na Justiça Federal de segunda instância: até o presente
momento, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), que abrange os estados de
Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe, nunca admitiu uma
magistrada mulher2. Até 2017, o TRF1 era composto por 81,5% de homens; o TRF4, 76%; o
TRF2, 74%; e o TRF3, o mais “proporcional”, 72%. Na política, a realidade é semelhante:
dos 513 deputados federais atualmente em exercício, apenas 54 (10,5%) são mulheres. Isso
1
Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 5º
período.
2
BERNARDES, Célia Regina Ody. Poder Judiciário é retrato da desigualdade de gênero. Carta
Capital, 2017. Disponível em:
<http://justificando.cartacapital.com.br/2017/03/15/poder-judiciario-e-retrato-da-desigualdade-de-gen
ero/#_ftn3>. Acesso em: 01 jun. 2018.
coloca o Brasil em 152º lugar numa lista de 190 nações3, formulada pelo organismo
internacional União Interparlamentar sobre a participação feminina na política.
3
PAINS, Clarissa. Brasil tem menos parlamentares mulheres do que 151 países. O Globo, 2018.
Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-tem-menos-parlamentares-mulheres-do-que-151-paises-2
2462336>. Acesso em: 05 jun. 2018.
4
THERRIEN, Alex. Estudo com 46 mil pessoas conclui que mulheres têm, em média, mais empatia
que homens. BBC, 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-43380718> Acesso
em: 05 jun. 2018.
2. Lei do Feminicídio: conquistas e eficácia social
No Brasil contemporâneo, as mulheres vivenciam, na prática, constantes dilemas
controversos de ordem social e jurídica. Exemplos recentes são o duvidoso processo legal que
levou ao impeachment da primeira presidente do sexo feminino eleita no país e,
principalmente, a lei do feminicídio que, apesar de progressista, encontra diversos obstáculos
em sua aplicação. Apesar das controvérsias, o Brasil ainda é “referência” quando o assunto é
direito das mulheres, ao menos na América Latina. De acordo com o Global Gender Gap
Report, documento que avalia a desigualdade entre os sexos feito por pesquisadores da
Universidade de Harvard, o Brasil avançou para o 62º lugar no último ranking, subindo 20
posições e se configurando como um dos países subdesenvolvidos com a maior colocação.
Isso denota que a luta feminista, apesar de já ter conquistado muito, está longe de consumar
um objetivo ideal de dignidade às mulheres - tanto em escala nacional, quanto em escala
global.
O feminicídio se concretiza quando a vítima é uma mulher e, mais que isso, quando o
objetivo do assassino é o de matá-la por ser mulher. Entretanto, isso não significa que todo
assassinato cuja vítima tenha sido do sexo feminino seja um feminicídio: algumas vezes, isso
se expressa na forma do assassinato, apresentando mutilação ou ataques genitais; outras
vezes, o feminicídio indica-se apenas na motivação, nos casos dos “crimes de honra”,
motivados por alguma suspeita ou caso de transgressão sexual (quebra de regras e/ou tabus)
ou de comportamento, tais como adultério, relações sexuais ou gravidez fora do casamento5.
No Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo,
segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Do total de feminicídios
registrados no mundo em 2013, 33,2% dos homicidas eram parceiros ou ex-parceiros das
vítimas.
O grande debate atual acerca dessa lei é sobre a sua eficácia social. Como dito
anteriormente, o Poder Judiciário, assim como praticamente todos os segmentos “elitizados”
do país - e do mundo - são dominados por homens. Esse paradigma dificulta uma aplicação
neutra e, principalmente, empática do direito. As mulheres, ao dependerem de homens, nunca
estariam numa disputa de paridade de forças para fazerem valer os seus direitos. De um lado,
há aqueles que defendem a atual situação e não querem mudanças. Do outro, há aqueles que
defendem a integração dessas minorias, sem que isso implique na mudança de seu estilo de
vida. E no meio, há as minorias propriamente ditas, sem representatividade e sem
protagonismo6. Exemplo disso são as incontáveis notícias de julgamentos jurídicos que, a
priori, parecem irreais e retrógrados, mas que, na verdade, sempre apresentam uma “devida”
fundamentação legal, seja nos casos de feminicídio, de estupro ou de qualquer outra violação
referente ao direito das mulheres. Um dos casos nacionais que mais chamou a atenção dos
brasileiros recentemente foi o caso de um homem que ejaculou em uma passageira em um
ônibus. Menos de um dia após a apreensão do indivíduo, ele foi liberado por um juiz -
homem - que argumentou no seguinte sentido:
5
SOARES, Ana Lis. Violência contra a mulher. Terra, 2018. Disponível em:
<https://www.terra.com.br/noticias/mundo/violencia-contra-mulher/>. Acesso em 01 jun. 2018.
6
ASSIS, Pablo de. “O Direito de Lutar pelo Direito do Outro, ou como falta empatia entre nós”. 9 set.
2015.
7
BRASIL, Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Termo de Audiência de Custódia. Processo nº
0076565-59.2017.8.26.0050. Denunciado: Diego Ferreira de Novais. Juiz: José Eugenio do Amaral
Souza Neto. Bom Retiro/SP, 30 de Agosto de 2017.
Em sua fundamentação, o juiz, ao recusar o enquadramento do crime como estupro,
demonstra notória incapacidade de empatia pela vítima. Essa lógica, não tão incomum nos
ordenamentos jurídicos ao redor do mundo, se transportada aos casos de feminicídio, pode
ser fatal, uma vez que acaba por descartar demandas reais e falha em punir agressores e
potenciais assassinos.
8
YAGOUB, Mimi. Why Does Latin America Have the World’s Highest Female Murder Rates?
InSight Crime, 2016. Disponível em:
<https://www.insightcrime.org/news/analysis/why-does-latin-america-have-the-world-s-highest-femal
e-murder-rates/>. Acesso em 30 maio 2018.
9
UDICE, Kristina. 5 Countries Where Femicide Is At Its Worst And What We Can Do To Help. Elite
Daily, 2015. Disponível em:
<https://www.elitedaily.com/news/world/femicide-worst-countries/1077001>. Acesso em 30 maio
2018.
3. Aborto e (des)proporcionalidade: feminicídio velado?
Tido por muitos como uma forma de “feminicídio velado”, o aborto também merece
atenção na análise comparativa do direito das mulheres, uma vez que se trata de questão de
saúde pública - muitas vezes mascarada por debates puramente ideológicos e/ou religiosos.
Independentemente dos rumos que a legislação pátria venha a tomar, os dados já são
alarmantes. Em 2010, pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) publicaram a
Pesquisa Nacional do Aborto10, com participação de mulheres entre 18 e 39 anos,
alfabetizadas e residentes nas áreas urbanas. A pesquisa revelou que 55% das mulheres que
abortaram - legalmente ou clandestinamente - precisaram ser internadas em decorrência de
algum tipo de complicação no procedimento. Certamente os índices seriam ainda mais
elevados se levassem em consideração apenas os procedimentos feitos em clínicas
clandestinas de pequeno porte, realidade de quase todas as mulheres brasileiras pobres que
precisam abortar.
10
DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de
urna. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 1, p. 959-966, jun. 2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf>. Acesso em: 04 jun. 2018.
11
Os direitos da personalidade são normalmente definidos como o direito irrenunciável e
intransmissível de que todo indivíduo tem de controlar o uso de seu corpo, nome, imagem, aparência
ou quaisquer outros aspectos constitutivos de sua identidade, pode ser entendido então como direitos
atinentes à promoção da pessoa na defesa de sua essencialidade e dignidade
Nesse prisma, a não regularização do aborto pode ser vista como uma forma de
feminicídio endossada pela sociedade patriarcal e pelas normas do Estado, pois leva à morte
de milhares de mulheres pobres em clínicas clandestinas.
12
COSTA, Marília Ferruzzi; MACHADO, Isadora Vier. “Lei do Feminicídio e mulheres trans:
diálogos entre a instabilidade da categoria ‘mulher’ e o discurso jurídico”. Mundos de Mulheres &
Fazendo Gênero. 2011.
transexual encontra-se protegida pela referida lei, desde que tenha promovido a alteração de
seu registro civil ou a cirurgia de redesignação sexual. De acordo com Rogério Sanches
Cunha, “no caso de transsexual que formalmente obtém o direito de ser identificado
civilmente como mulher, não há como negar a incidência da lei penal porque, para todos os
demais efeitos, esta pessoa será considerada mulher”.
Entretanto, se a eficácia social da Lei do Feminicídio ainda não é uma realidade plena
para mulheres cis, para as mulheres trans ela se encontra ainda mais longe. Mais uma vez
percebe-se a falha crônica do direito casuístico no que diz respeito à empatia por terceiros.
Não é incomum assistir à recusa de inúmeras denúncias de feminicídio cometido contra
mulheres trans. Afinal, como dito anteriormente, o Poder Judiciário é dominado por homens -
brancos, héteros e cis - que, em sua maioria, se mostram incapazes de serem empáticos - seja
por minorias sociais, seja por pessoas de uma realidade social distante.
5. Conclusão
O paradigma atual do direito das mulheres em perspectiva comparada revela o
descompasso entre o problema e o empenho pela busca de uma possível solução. Somado a
isso, tem-se o fato de que o direito das mulheres, em diversas partes do mundo, ainda é
subordinado a questões opressoras provenientes de religião e de cultura, o que torna ainda
mais difícil um diálogo com os direitos civis.
13
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Apesar do viés idealista, é fundamental que a mentalidade dos indivíduos se alinhe ao
texto legal, pois, como dito anteriormente, uma lei sem eficácia social é uma lei sem utilidade
prática. É nessa conjuntura que o papel de um direito empático se faz imprescindível.
Referências bibliográficas
TRAT, Josette. Movimentos sociais. In: HIRATA, Helena et al. (Orgs.). Dicionário
crítico do feminismo. São Paulo: Ed. da Unesp, 2009.
CISNE, Mirla. Feminismo e Consciência de Classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2014.
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
YAGOUB, Mimi. Why Does Latin America Have the World’s Highest Female Murder Rates? InSight
Crime, 2016. Disponível em:
<https://www.insightcrime.org/news/analysis/why-does-latin-america-have-the-world-s-highest-femal
e-murder-rates/>. Acesso em: 30 maio 2018.
UDICE, Kristina. 5 Countries Where Femicide Is At Its Worst And What We Can Do To Help. Elite
Daily, 2015. Disponível em:
<https://www.elitedaily.com/news/world/femicide-worst-countries/1077001>. Acesso em: 30 maio
2018.
BERNARDES, Célia Regina Ody. Poder Judiciário é retrato da desigualdade de gênero. Carta Capital,
2017. Disponível em:
<http://justificando.cartacapital.com.br/2017/03/15/poder-judiciario-e-retrato-da-desigualdade-de-gen
ero/#_ftn3>. Acesso em: 01 jun. 2018.
PAINS, Clarissa. Brasil tem menos parlamentares mulheres do que 151 países. O Globo, 2018.
Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-tem-menos-parlamentares-mulheres-do-que-151-paises-2
2462336>. Acesso em: 05 jun. 2018.
THERRIEN, Alex. Estudo com 46 mil pessoas conclui que mulheres têm, em média, mais empatia
que homens. BBC, 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-43380718> Acesso
em: 05 jun. 2018.
SOARES, Ana Lis. Violência contra a mulher. Terra, 2018. Disponível em:
<https://www.terra.com.br/noticias/mundo/violencia-contra-mulher/>. Acesso em: 01 jun. 2018.
ASSIS, Pablo de. “O Direito de Lutar pelo Direito do Outro, ou como falta empatia entre nós”. 9 set.
2015.
BRASIL, Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Termo de Audiência de Custódia. Processo nº
0076565-59.2017.8.26.0050. Denunciado: Diego Ferreira de Novais. Juiz: José Eugenio do Amaral
Souza Neto. Bom Retiro/SP, 30 de Agosto de 2017.
DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de
urna. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 1, p. 959-966, jun. 2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf>. Acesso em: 04 jun. 2018.
COSTA, Marília Ferruzzi; MACHADO, Isadora Vier. “Lei do Feminicídio e mulheres trans: diálogos
entre a instabilidade da categoria ‘mulher’ e o discurso jurídico”. Mundos de Mulheres & Fazendo
Gênero. 2011. Disponível em:
<http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499460981_ARQUIVO_ArtigoFazend
oGenero-MariliaFerruzzi;IsadoraVier.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2018.