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Feminicídio em perspectiva comparada: pela aplicação de um direito empático

Gabriel Rezende Cruz1

1. Introdução
As mulheres, apesar de comporem cerca de metade da população mundial, são uma
minoria social. Isto quer dizer que elas representam uma coletividade que sofre processos de
estigmatização e discriminação, resultando em diversas formas de desigualdade ou exclusão
sociais, mesmo quando constituem a maioria numérica da população, como no caso do Brasil,
onde 50,8% da população pertence ao gênero feminino. De acordo com levantamento da
Organização das Nações Unidas (ONU), atualmente existem 101,8 homens para cada 100
mulheres no mundo. Assim sendo, pode-se dizer que a discrepância numérica entre os
gêneros é ínfima se comparada à discrepância social e cultural que separam homens e
mulheres ainda no século XXI.

Paralelamente aos seus esforços como minoria social, as mulheres são obrigadas a
enfrentar, como cidadãs, instituições “democráticas” que refletem a desigualdade enraizada
na sociedade. O Poder Judiciário brasileiro, por exemplo, é um claro exemplo de
desigualdade de gênero, sendo composto por 62,7% de homens e apenas 37,3% de mulheres.
Esse quadro é ainda mais problemático na Justiça Federal de segunda instância: até o presente
momento, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), que abrange os estados de
Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe, ​nunca admitiu uma
magistrada mulher2. Até 2017, o TRF1 era composto por 81,5% de homens; o TRF4, 76%; o
TRF2, 74%; e o TRF3, o mais “proporcional”, 72%. Na política, a realidade é semelhante:
dos 513 deputados federais atualmente em exercício, apenas 54 (10,5%) são mulheres. Isso

1
​Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 5º
período.

2
​BERNARDES, Célia Regina Ody. Poder Judiciário é retrato da desigualdade de gênero. Carta
Capital, 2017. Disponível em:
<​http://justificando.cartacapital.com.br/2017/03/15/poder-judiciario-e-retrato-da-desigualdade-de-gen
ero/#_ftn3​>. Acesso em: 01 jun. 2018.
coloca o Brasil em 152º lugar numa lista de 190 nações3, formulada pelo organismo
internacional União Interparlamentar sobre a participação feminina na política.

O paradigma contemporâneo das instituições políticas - que não é exclusivo do Brasil


- reflete, portanto, um problema crônico da humanidade: ​a falta de empatia na aplicação
casuística do direito. Entende-se por “empatia” o traço que nos permite compreender como
outras pessoas se sentem. A empatia ajuda a forjar conexões mais próximas com outros
indivíduos e influencia nosso comportamento em situações distintas. Pode-se dizer, portanto,
que a aplicação de um direito não empático jamais fará jus aos direitos fundamentais das
minorias sociais.

Um estudo feito em março de 2018 na Universidade de Cambridge, Inglaterra,


encontrou, pela primeira vez, evidências de que os genes têm um papel importante no nível
de empatia dos seres humanos4. Essa nova teoria refuta a ideia de que a empatia seria um
simples traço da personalidade de cada indivíduo. Mais do que isso, o referido estudo
constatou que as mulheres, geralmente, são mais empáticas do que os homens. Apesar de os
cientistas admitirem que a hipótese precisa ser testada com um número maior de pessoas (a
pesquisa atual foi feita com 46.000 indivíduos), esse resultado é um grande marco inaugural
na comunidade científica no que diz respeito a estudos que se prestam a conectar fatores
genéticos e não genéticos da empatia.

O problema crônico da falta de empatia abrange diversos setores da sociedade. É no


campo jurídico, entretanto, que ele acaba encontrando fundamentações legais que o validam e
o tornam prejudicial a muitas pessoas, geralmente aquelas pertencentes a algum tipo de
minoria social, como as mulheres, a comunidade LGBT, os negros, etc.

3
PAINS, Clarissa. Brasil tem menos parlamentares mulheres do que 151 países. O Globo, 2018.
Disponível em:
<​https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-tem-menos-parlamentares-mulheres-do-que-151-paises-2
2462336​>. Acesso em: 05 jun. 2018.

4
​THERRIEN, Alex. Estudo com 46 mil pessoas conclui que mulheres têm, em média, mais empatia
que homens. BBC, 2018. Disponível em:​ <​https://www.bbc.com/portuguese/geral-43380718​> Acesso
em: 05 jun. 2018.
2. Lei do Feminicídio: conquistas e eficácia social
No Brasil contemporâneo, as mulheres vivenciam, na prática, constantes dilemas
controversos de ordem social e jurídica. Exemplos recentes são o duvidoso processo legal que
levou ao impeachment da primeira presidente do sexo feminino eleita no país e,
principalmente, a lei do feminicídio que, apesar de progressista, encontra diversos obstáculos
em sua aplicação. Apesar das controvérsias, o Brasil ainda é “referência” quando o assunto é
direito das mulheres, ao menos na América Latina. De acordo com o Global Gender Gap
Report, documento que avalia a desigualdade entre os sexos feito por pesquisadores da
Universidade de Harvard, o Brasil avançou para o 62º lugar no último ranking, subindo 20
posições e se configurando como um dos países subdesenvolvidos com a maior colocação.
Isso denota que a luta feminista, apesar de já ter conquistado muito, está longe de consumar
um objetivo ideal de dignidade às mulheres - tanto em escala nacional, quanto em escala
global.

A Lei Federal de Combate à Violência Doméstica e Familiar, popularmente


conhecida como Lei Maria da Penha, já é uma velha conhecida da legislação brasileira, tendo
sido sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006. Ela foi a grande
responsável por incorporar o avanço legislativo internacional ao ordenamento brasileiro, e se
transformou no principal instrumento legal de enfrentamento à violência doméstica contra a
mulher no Brasil. Já a Lei do Feminicídio, o principal marco atual da luta feminista brasileira,
foi sancionada em 2015 pela ex-presidente Dilma Rousseff, e alterou o art. 121 do Código
Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio,
agravando-o.

O feminicídio se concretiza quando a vítima é uma mulher e, mais que isso, quando o
objetivo do assassino é o de matá-la por ser mulher. Entretanto, isso não significa que todo
assassinato cuja vítima tenha sido do sexo feminino seja um feminicídio: algumas vezes, isso
se expressa na forma do assassinato, apresentando mutilação ou ataques genitais; outras
vezes, o feminicídio indica-se apenas na motivação, nos casos dos “crimes de honra”,
motivados por alguma suspeita ou caso de transgressão sexual (quebra de regras e/ou tabus)
ou de comportamento, tais como adultério, relações sexuais ou gravidez fora do casamento5.
No Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo,
segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Do total de feminicídios
registrados no mundo em 2013, 33,2% dos homicidas eram parceiros ou ex-parceiros das
vítimas.

O grande debate atual acerca dessa lei é sobre a sua ​eficácia social. Como dito
anteriormente, o Poder Judiciário, assim como praticamente todos os segmentos “elitizados”
do país - e do mundo - são dominados por homens. Esse paradigma dificulta uma aplicação
neutra e, principalmente, empática do direito. As mulheres, ao dependerem de homens, nunca
estariam numa disputa de paridade de forças para fazerem valer os seus direitos. De um lado,
há aqueles que defendem a atual situação e não querem mudanças. Do outro, há aqueles que
defendem a integração dessas minorias, sem que isso implique na mudança de seu estilo de
vida. E no meio, há as minorias propriamente ditas, sem representatividade e sem
protagonismo6. Exemplo disso são as incontáveis notícias de julgamentos jurídicos que, a
priori, parecem irreais e retrógrados, mas que, na verdade, sempre apresentam uma “devida”
fundamentação legal, seja nos casos de feminicídio, de estupro ou de qualquer outra violação
referente ao direito das mulheres. Um dos casos nacionais que mais chamou a atenção dos
brasileiros recentemente foi o caso de um homem que ejaculou em uma passageira em um
ônibus. Menos de um dia após a apreensão do indivíduo, ele foi liberado por um juiz -
homem - que argumentou no seguinte sentido:

"Na espécie, entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência


ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus
quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado"7

5
​SOARES, Ana Lis. Violência contra a mulher. Terra, 2018. Disponível em:
<​https://www.terra.com.br/noticias/mundo/violencia-contra-mulher/​>. Acesso em 01 jun. 2018.

6
ASSIS, Pablo de. “O Direito de Lutar pelo Direito do Outro, ou como falta empatia entre nós”. 9 set.
2015.
7
BRASIL, Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Termo de Audiência de Custódia. Processo nº
0076565-59.2017.8.26.0050. Denunciado: Diego Ferreira de Novais. Juiz: José Eugenio do Amaral
Souza Neto. Bom Retiro/SP, 30 de Agosto de 2017.
Em sua fundamentação, o juiz, ao recusar o enquadramento do crime como estupro,
demonstra notória incapacidade de empatia pela vítima. Essa lógica, não tão incomum nos
ordenamentos jurídicos ao redor do mundo, se transportada aos casos de feminicídio, pode
ser fatal, uma vez que acaba por descartar demandas reais e falha em punir agressores e
potenciais assassinos.

A questão do feminicídio enfrenta os mesmos problemas da realidade brasileira em


diversos outros países. A América Latina se configura como a região com o maior número de
mulheres assassinadas por ano, um fenômeno que se deve, além do machismo secular, às
atividades de crime organizado, como o tráfico de pessoas e a violência de gangues. Para se
ter uma ideia da dimensão regional do problema, sete dos dez países com maior taxa de
feminicídio no mundo estão na América Latina8. El Salvador lidera a lista com uma taxa de
8,9 homicídios por 100.000 mulheres por ano, seguida pela Colômbia com 6,3, Guatemala
com 6,2, Rússia com 5,3 e Brasil com 4,8. O México e o Suriname também estão entre os dez
primeiros.

Em El Salvador, uma parcela irrisória de 3% dos casos foram levados a julgamento.


No México, apenas 24% das denúncias foram investigadas, das quais apenas 1% gerou algum
tipo de sentença ou condenação9. Os dados internacionais assemelham-se à realidade
brasileira, e revelam de forma clara como as demandas que partem de uma mulher, ao serem
apreciadas por instituições políticas e de polícia majoritariamente compostas por homens,
podem ser facilmente negligenciadas ou até mesmo descartadas, sem garantir à vítima o
devido processo legal e a contemplação de seus direitos constitucionalmente tutelados, em
qualquer lugar do mundo.

8
YAGOUB, Mimi. Why Does Latin America Have the World’s Highest Female Murder Rates?
InSight Crime, 2016. Disponível em:
<​https://www.insightcrime.org/news/analysis/why-does-latin-america-have-the-world-s-highest-femal
e-murder-rates/​>. Acesso em 30 maio 2018.

9
UDICE, Kristina. 5 Countries Where Femicide Is At Its Worst And What We Can Do To Help. Elite
Daily, 2015. Disponível em:
<​https://www.elitedaily.com/news/world/femicide-worst-countries/1077001​>. Acesso em 30 maio
2018.
3. Aborto e (des)proporcionalidade: feminicídio velado?
Tido por muitos como uma forma de ​“feminicídio velado”, o aborto também merece
atenção na análise comparativa do direito das mulheres, uma vez que se trata de questão de
saúde pública - muitas vezes mascarada por debates puramente ideológicos e/ou religiosos.

O direito de abortar é previsto em diversas legislações ao redor do mundo. Porém, a


ausência de sua positivação não impede que mulheres - de classes sociais superiores - o faça
de forma minimamente segura. O Brasil, considerado um país intermediário nessa questão,
admite o aborto em apenas três hipóteses: em caso de ​estupro; nos casos de ​indicação
médica, quando a gravidez traz risco de vida para a mulher (aborto terapêutico); e ​quando o
feto não tem condições de sobreviver, ou seja, quando o cérebro não se desenvolve (casos de
anencefalia). Esse panorama, já limitado, corre o risco de sofrer ainda mais restrições. O
Projeto de Emenda Constitucional 181/15 (PEC 181/15), que originalmente discutia a
extensão da licença-maternidade para o caso de bebês nascidos prematuramente, foi alargada
- por uma comissão especial formada majoritariamente por homens - e passou a tratar
também da mudança no artigo primeiro da Constituição, com a inclusão do trecho “dignidade
da pessoa humana ​desde a sua concepção”, nos ditames da Convenção Americana de
Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Além disso, no artigo 5º - que garante a
igualdade de todos perante a lei e a inviolabilidade do direito à vida - acrescentou-se a
expressão “a inviolabilidade do direito à vida ​desde a concepção”.

As tentativas de mudança denotam o ânimo dos conservadores em limitar mais ainda


o direito ao aborto legal no Brasil, já que prega a ideia de que a vida começa com a
concepção e que, portanto, não poderia ser violada nem mesmo nessa etapa. Enquanto muitos
argumentam no sentido que o código penal brasileiro coexistiu com o Pacto de San José da
Costa Rica desde 1992, e que a ideia de vida-concepção nunca foi um obstáculo para o aborto
legal nas hipóteses previstas em lei, outros mostram-se preocupados com a possibilidade de a
PEC 181/15 alterar o regime atual sobre o aborto no Brasil, tendo em vista a onda
conservadora que vem se concretizando no país.

Independentemente dos rumos que a legislação pátria venha a tomar, os dados já são
alarmantes. Em 2010, pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) publicaram a
Pesquisa Nacional do Aborto10, com participação de mulheres entre 18 e 39 anos,
alfabetizadas e residentes nas áreas urbanas. A pesquisa revelou que 55% das mulheres que
abortaram - legalmente ou clandestinamente - precisaram ser internadas em decorrência de
algum tipo de complicação no procedimento. Certamente os índices seriam ainda mais
elevados se levassem em consideração apenas os procedimentos feitos em clínicas
clandestinas de pequeno porte, realidade de quase todas as mulheres brasileiras pobres que
precisam abortar.

A regulação do corpo feminino, enquanto direito da personalidade11, não deveria ser


matéria de um ordenamento jurídico que, como dito antes, é composto, em sua maioria, por
homens e que, mais ainda, carece de empatia e conhecimento da realidade de outras camadas
socioeconômicas. Em países mais desenvolvidos, como a Alemanha, a Áustria e a França, a
decisão fica - como deveria ser - a cargo da mulher, desde que respeitado determinado limite:
em média, impõe-se como limite a 12ª semana de gestação, quando o sistema nervoso central
do feto ainda não está completamente formado.

Trata-se de uma clara aplicação do ​princípio da proporcionalidade. No mundo


jurídico, o princípio da proporcionalidade é a medida padrão que trata de ponderações de
valores. Ele é utilizado quando há um conflito entre dois direitos distintos, de maneira a
avaliar até que ponto a restrição de um direito colaboraria com a concretização de outro. No
caso em questão, parece correta a ponderação entre ​direito sobre o próprio corpo x direito à
vida do feto feita pelos países citados, uma vez que ela dá a mulher o direito de escolha, com
um prazo razoável e abrangente para que a decisão seja feita.

10
DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de
urna. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 1, p. 959-966, jun. 2010. Disponível em:
<​http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf​>. Acesso em: 04 jun. 2018.

11
Os direitos da personalidade são normalmente definidos como o direito irrenunciável e
intransmissível de que todo ​indivíduo​ tem de controlar o uso de seu ​corpo​, ​nome​, ​imagem​, aparência
ou quaisquer outros aspectos constitutivos de sua ​identidade​, pode ser entendido então como direitos
atinentes à promoção da pessoa na defesa de sua essencialidade e dignidade
Nesse prisma, a não regularização do aborto pode ser vista como uma forma de
feminicídio endossada pela sociedade patriarcal e pelas normas do Estado, pois leva à morte
de milhares de mulheres pobres em clínicas clandestinas.

4. O contexto das mulheres trans


Como dito anteriormente, a Lei do Feminicídio entrou em vigor no Brasil em 2015, de
modo a atribuir pena de reclusão de doze a trinta anos ao feminicídio, se praticado “contra a
mulher por razões da condição de ​sexo feminino, quando o crime envolver violência
doméstica e familiar ou motivado pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
O que passou despercebido - inclusive por muitos operadores do direito - foi o fato de que o
projeto de lei original, de 2013, trabalhava com o termo ​gênero feminino. A “sutil” mudança
representa uma manobra legislativa para excluir da aplicação da lei todas as mulheres que,
supostamente, não estariam enquadradas no conceito biológico de “mulher”, notadamente as
mulheres transsexuais12.

Afinal, é possível uma mulher transsexual figurar como vítima do crime de


feminicídio? Para responder a essa pergunta, é preciso distinguir ​sexo de ​gênero: ​gênero é o
termo utilizado para designar a ​construção social do sexo biológico. Este conceito faz uma
distinção entre a dimensão biológica e associada à natureza (sexo) da dimensão social e
associada à cultura (gênero). Assim, o conceito de “mulher” pode vir a ser muito mais
complexo do que se imagina. De acordo com Simone de Beauvoir, uma das principais figuras
feministas do século XX, ​“não se nasce mulher, torna-se mulher”. Sua célebre frase denota o
seu viés existencialista, seguido pelas correntes doutrinárias mais modernas e progressistas,
de modo a defender a ideia de que ​a existência precede a essência e que, portanto, não
deveríamos ficar adstritos à condição puramente biológica das pessoas.

No ordenamento jurídico brasileiro, há aqueles que defendem a ideia de que a mulher


transsexual não poderia, sob nenhuma circunstância, ser abrangida pelo escopo da Lei do
Feminicídio. Em contrapartida a essa corrente conservadora, existem aqueles que a mulher

12
COSTA, Marília Ferruzzi; MACHADO, Isadora Vier. “Lei do Feminicídio e mulheres trans:
diálogos entre a instabilidade da categoria ‘mulher’ e o discurso jurídico”. Mundos de Mulheres &
Fazendo Gênero. 2011.
transexual encontra-se protegida pela referida lei, desde que tenha promovido a alteração de
seu registro civil ou a cirurgia de redesignação sexual. De acordo com Rogério Sanches
Cunha, “​no caso de transsexual que formalmente obtém o direito de ser identificado
civilmente como mulher, não há como negar a incidência da lei penal porque, para todos os
demais efeitos, esta pessoa será considerada mulher”.

Entretanto, se a eficácia social da Lei do Feminicídio ainda não é uma realidade plena
para mulheres cis, para as mulheres trans ela se encontra ainda mais longe. Mais uma vez
percebe-se a falha crônica do direito casuístico no que diz respeito à empatia por terceiros.
Não é incomum assistir à recusa de inúmeras denúncias de feminicídio cometido contra
mulheres trans. Afinal, como dito anteriormente, o Poder Judiciário é dominado por homens -
brancos, héteros e cis - que, em sua maioria, se mostram incapazes de serem empáticos - seja
por minorias sociais, seja por pessoas de uma realidade social distante.

5. Conclusão
O paradigma atual do direito das mulheres em perspectiva comparada revela o
descompasso entre o problema e o empenho pela busca de uma possível solução. Somado a
isso, tem-se o fato de que o direito das mulheres, em diversas partes do mundo, ainda é
subordinado a questões opressoras provenientes de religião e de cultura, o que torna ainda
mais difícil um diálogo com os direitos civis.

A legislação - tanto a brasileira, quanto a de outros países - apresentou, ao longo das


últimas décadas, um processo de evolução como nunca visto antes na história da humanidade.
Apesar disso, é preciso dar a devida atenção à eficácia social das leis, e não apenas a sua
validade, pois ​“a validade é uma qualidade do Direito; a chamada eficácia é uma qualidade
da conduta efetiva dos homens e não do Direito em si”13. O princípio da proporcionalidade,
grande conhecido do ordenamento jurídico brasileiro, se tutelado de maneira devida, pode ser
um grande aliado na aplicação de um direito empático, de forma a permitir uma ponderação
justa de valores que não delimite o direito das mulheres, sobretudo nos casos de feminicídio.

13
​KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Apesar do viés idealista, é fundamental que a mentalidade dos indivíduos se alinhe ao
texto legal, pois, como dito anteriormente, uma lei sem eficácia social é uma lei sem utilidade
prática. É nessa conjuntura que o papel de um direito empático se faz imprescindível.

Referências bibliográficas

TRAT, Josette. Movimentos sociais. In: HIRATA, Helena et al. (Orgs.). Dicionário
crítico do feminismo. São Paulo: Ed. da Unesp, 2009.

CISNE, Mirla. Feminismo e Consciência de Classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2014.

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

YAGOUB, Mimi. Why Does Latin America Have the World’s Highest Female Murder Rates? InSight
Crime, 2016. Disponível em:
<​https://www.insightcrime.org/news/analysis/why-does-latin-america-have-the-world-s-highest-femal
e-murder-rates/​>. Acesso em: 30 maio 2018.

UDICE, Kristina. 5 Countries Where Femicide Is At Its Worst And What We Can Do To Help. Elite
Daily, 2015. Disponível em:
<​https://www.elitedaily.com/news/world/femicide-worst-countries/1077001​>. Acesso em: 30 maio
2018.

BERNARDES, Célia Regina Ody. Poder Judiciário é retrato da desigualdade de gênero. Carta Capital,
2017. Disponível em:
<​http://justificando.cartacapital.com.br/2017/03/15/poder-judiciario-e-retrato-da-desigualdade-de-gen
ero/#_ftn3​>. Acesso em: 01 jun. 2018.

PAINS, Clarissa. Brasil tem menos parlamentares mulheres do que 151 países. O Globo, 2018.
Disponível em:
<​https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-tem-menos-parlamentares-mulheres-do-que-151-paises-2
2462336​>. Acesso em: 05 jun. 2018.
THERRIEN, Alex. Estudo com 46 mil pessoas conclui que mulheres têm, em média, mais empatia
que homens. BBC, 2018. Disponível em:​ <​https://www.bbc.com/portuguese/geral-43380718​> Acesso
em: 05 jun. 2018.

SOARES, Ana Lis. Violência contra a mulher. Terra, 2018. Disponível em:
<​https://www.terra.com.br/noticias/mundo/violencia-contra-mulher/​>. Acesso em: 01 jun. 2018.

ASSIS, Pablo de. “O Direito de Lutar pelo Direito do Outro, ou como falta empatia entre nós”. 9 set.
2015.

BRASIL, Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Termo de Audiência de Custódia. Processo nº
0076565-59.2017.8.26.0050. Denunciado: Diego Ferreira de Novais. Juiz: José Eugenio do Amaral
Souza Neto. Bom Retiro/SP, 30 de Agosto de 2017.

DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de
urna. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 1, p. 959-966, jun. 2010. Disponível em:
<​http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf​>. Acesso em: 04 jun. 2018.

COSTA, Marília Ferruzzi; MACHADO, Isadora Vier. “Lei do Feminicídio e mulheres trans: diálogos
entre a instabilidade da categoria ‘mulher’ e o discurso jurídico”. Mundos de Mulheres & Fazendo
Gênero. 2011. Disponível em:
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