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A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

FATAL: O PROBLEMA DO
FEMINICÍDIO ÍNTIMO
NO BRASIL
EXPEDIENTE:

PRESIDENTA DA REPÚBLICA
Dilma Rousseff

MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA


José Eduardo Cardozo

SECRETÁRIO DA REFORMA DO JUDICIÁRIO


Flavio Crocce Caetano

DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE POLITICA JUDICIÁRIA


Kelly Oliveira Araújo

DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE POLITICA JUDICIÁRIA SUBSTITUTA


Patrícia Lamego de Teixeira Soares

COORDENADORA DO CENTRO DE ESTUDOS SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA


Olívia Alves Gomes Pessoa

COLABORADORES
Alice Gomes Carvalho
Lucas Magalhães de Souza Caminha
Thiago Sanches Battaglini
EQUIPE DE PESQUISA:

Marta Rodriguez de Assis Machado (Coordenação)


Fernanda Emy Matsuda
Arthur Roberto Capella Giannattasio
Maria Claudia Girotto do Couto
Thalita Sanção Tozi
Mariana Lins do Carli e Silva
Larissa Chacon Przybylski
Larissa Castro Chryssafidis

DIAGRAMAÇÃO:

Juliana Rodriguez

REALIZAÇÃO:

Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV DIREITO SP

FICHA CATALOGRÁFICA:

iciário .
341.556 A violência doméstica fatal : o problema do feminicídio íntimo no
V795d Brasil / coordenação: Marta Rodriguez de Assis Machado ;
colaboração: Fernanda Emy Matsuda ... [et al.]. -- Bra sília :
Ministério da Justiça, Secretaria da Reforma do Judiciário,
2015.
69 p. : il. color. -- (Coleção diálogos sobre a justiça)

ISBN:

1. Violência contra a mulher – Brasil. 2. Feminicídio - legislação -


América Latina. 3. Crime sexual - aspectos jurídicos – América
Latina. I. Machado, Marta Rodriguez de Assis, coord. II. Ministério
da Justiça. Secretaria de Reforma do Judiciário.
.
CDD

Ficha elaborada pela Biblioteca do Ministério da Justiça


Ficha elaborada pela Biblioteca do Ministério da Justiça
GOVERNO FEDERAL
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
SECRETARIA DE REFORMA DO JUDICIÁRIO

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA FATAL: O PROBLEMA DO


FEMINICÍDIO ÍNTIMO NO BRASIL

BRASÍLIA
2015
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 13
I. A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS 15
II. EXPERIÊNCIAS LEGISLATIVAS DE TIPIFICAÇÃO DO
FEMINICÍDIO EM PAÍSES DA AMÉRICA LATINA 19
III. ASSASSINATOS DE MULHERES NO SISTEMA
DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO 40
1. COMO MORREM AS MULHERES? 41
2. POR QUE MORREM AS MULHERES? 44
3. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DAS VÍTIMAS, DOS AGRESSORES E DO GÊNERO 47
4. O PROCESSAMENTO DOS CASOS PELO TRIBUNAL DO JÚRI 55
5. APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA 59

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS 66


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 71
PREFÁCIO

A Secretaria de Reforma do Judiciário que buscam combater a violência contra a


através da série “Diálogos sobre Justiça”, mulher, como a criação de normas pena-
promove pesquisas sobre temas que são lizantes e educacionais, tanto para os
relevantes para a compreensão sobre o operadores do direito como para a popu-
Sistema de Justiça no Brasil, buscando lação em geral.
discutir melhoria do acesso à Justiça como
garantia de consolidação da cidadania. As O presente estudo busca conhecer
distintas experiências e políticas que são as circunstâncias que permeiam o assassi-
objeto de análise nos estudos desenvolvidos nato de mulheres e a existência de relação
pela Secretaria enriquecem a discussão de com a violência doméstica, além de apontar
alternativas para a implementação de ações o tratamento jurídico acerca do assunto
e de políticas públicas que aprimorem o e como os aplicadores têm encarado a
trabalho do Poder Judiciário e dos demais violência baseada em situações de gênero,
órgãos do Estado. coabitação e poder hierárquico.

Com vistas a alcançar tal objetivo, O trabalho ainda aborda a aplicação


foram selecionados, inicialmente, temas da lei Maria da Penha e sua constante falta
de pesquisa de interesse público como de efetividade, em que medidas protetivas
o “estudo sobre assassinato de mulheres de urgência, em sua maioria, não são de
por razões de gênero: feminicídio”. Dados fato concedidas, inexistindo um enfrenta-
revelam que a violência fatal atingiu mais mento preliminar do problema. Por fim,
de 50 mil mulheres entre 2000 e 2010. O as pesquisas empíricas juntamente com
problema do feminicídio no Brasil e nos entrevistas aos operadores do sistema,
demais países da América Latina está dire- demonstram uma deficiência em incluir os
tamente relacionado à violência conjugal, homicídios em um contexto de gênero.
denominando-se feminicídio íntimo.
Cumpre ressaltar que a série “Diálogos
Devido à necessidade de repudiar as sobre a Justiça” é fruto de uma parceria
condutas que ocasionam os homicídios constituída pela Secretaria de Reforma do
provocados contra mulheres, por motivo Judiciário, o Programa das Nações Unidas
de gênero, a Legislação brasileira, no dia para o Desenvolvimento, com renomadas
09 de Março de 2015 sancionou a Lei de instituições de pesquisa do país, como a
Feminicídio n° 13.104. A presente lei está Fundação Getúlio Vargas, selecionada para
diretamente conexa com a lei Maria da Penha realizar este estudo, agregando qualidade
- 11.304/2006-, que inovou o tratamento ao trabalho desenvolvido, para que os dados
dado às vítimas de violência doméstica, e ideias aqui apresentados gerem reflexões
introduzindo a categoria “violência baseada sobre o feminicídio.
em gênero”, no sistema jurídico.

A análise da legislação estrangeira FLÁVIO CROCCE CAETANO


demonstra uma variedade de estratégias Secretário de Reforma do Judiciário
12
APRESENTAÇÃO

Os números que descrevem a violência vizinhos, atualmente está em discussão a


contra as mulheres no Brasil apontam para tipificação do feminicídio no Brasil, com a
a existência de um problema agudo e de previsão da situação em que o ato é prati-
longa duração. A violência fatal atingiu cado em contexto de violência doméstica.2
mais de 50 mil mulheres entre 2000 e 2010, Ao procurar conferir às mulheres um esta-
ano em que a taxa de mortes foi de 4,6 por tuto jurídico específico para a garantia
100 mil habitantes (Waiselfisz, 2012: 8).1 À do direito a uma vida sem violência, a
semelhança de outros países da América proposta de alteração legislativa está
Latina, o problema do feminicídio no em consonância com a lei 11.340/2006.
Brasil está estreitamente ligado à violência A Lei Maria da Penha instituiu um novo
conjugal: dentre as mulheres assassinadas, paradigma para os(as) profissionais que
muitas morreram pela ação de pessoas atuam no sistema de justiça criminal e
com quem mantinham ou mantiveram um para os(as) responsáveis pela formulação
relacionamento afetivo. Esse fenômeno é de políticas públicas. É uma lei que contou
conhecido como feminicídio íntimo. com a participação de representantes
dos movimentos de mulheres e trouxe
Enquanto em relação aos homens um programa inovador para o tratamento
15% dos homicídios ocorrem na residência, do problema da violência doméstica e
no que diz respeito às mulheres essa cifra familiar contra a mulher. Além disso, intro-
sobe para alarmantes 40%. A arma de duziu no ordenamento jurídico a categoria
fogo foi o meio usado para matar mais “violência baseada no gênero” (artigo 5º)
de 70% dos homens e menos de 50% das e a equiparação entre violência doméstica
mulheres que foram vítimas de homicídio e familiar contra a mulher e violação de
(Waiselfisz, 2012: 10). Esse fato indica que, direitos humanos.
nas mortes de mulheres, há a prevalência
de formas de violência possibilitadas É inegável que um dos efeitos mais
por maior contato interpessoal, como imediatos da Lei Maria da Penha foi dar
objetos penetrantes, cortantes ou contun- visibilidade ao problema da violência
dentes e sufocação. Os dados disponíveis doméstica e familiar contra a mulher,
permitem inferir que a violência doméstica angariando um espaço importante no
e conjugal é central para a caracterização debate público. Diversas pesquisas de
desse fenômeno e que a morte é, muitas opinião mostram que a Lei Maria da Penha
vezes, o desfecho de histórias marcadas é bastante conhecida e que a população
pela violência. considera grave a violência domés-
tica contra a mulher. Ao mesmo tempo,
Na esteira de um movimento legisla- essas pesquisas também evidenciam
tivo que também vem ocorrendo em países que a violência contra a mulher tornou-

1
Considerando a realidade brasileira, é preciso destacar que há diferenças regionais: no Espírito Santo, a taxa é de 9,8 por 100 mil
habitantes e no Piauí, 2,5 por 100 mil habitantes, segundo o Mapa da Violência 2012. O relatório Femicide: a global problem (2012)
aponta que a partir de 3 por 100 mil habitantes a taxa pode ser considerada muito alta.
2
De acordo com a redação dada ao artigo 121, inciso VI, § 7º do Código Penal pelo PLS 292/2013, aprovado no Senado Federal
em 17 de dezembro de 2014.u a pesquisa na base da legislação nacional.tido a aplicação do conceito de identidade de gênero.
Empresas privadas, Estado e seus órgãos em todos os níveis, e outras pessoas jurídicas não foram considerados na mesma.
13
se mais aguda e que o homicídio é um a violência doméstica possibilita um diag-
resultado até mesmo esperado, em espe- nóstico que contemple os aspectos comuns
cial quando as mulheres tentam pôr fim aos casos, para além das tragédias pessoais,
ao relacionamento.3
e o desenho de estratégias eficazes para a
promoção dos direitos das mulheres.
Apesar do reconhecimento social
da gravidade do problema, são poucas as
informações que dão conta de descrever Com o intuito de contribuir para a
como os homicídios de mulheres ocorrem construção desse diagnóstico, o Núcleo de
e, principalmente, como o sistema de justiça Estudos sobre o Crime e a Pena da Escola
criminal lida com essas mortes. Até mesmo de Direito da Fundação Getulio Vargas
a magnitude desses episódios fica preju- (FGV DIREITO SP) realizou a pesquisa “A
dicada em função da inexistência de uma
violência doméstica fatal: o problema do
classificação que permita distinguir, entre
feminicídio íntimo no Brasil”4. O relatório
os assassinatos de mulheres, aqueles que
que ora se apresenta traz os principais
ocorrem em razão do gênero.
resultados dessa investigação. Na primeira
Constata-se que, a despeito dos parte, aborda-se a inserção do Brasil no
avanços significativos consolidados na sistema internacional de proteção de
legislação, são grandes as dificuldades direitos humanos. Em seguida, apresenta-
enfrentadas pelas mulheres para terem se o estudo comparado da regulação do
seus direitos efetivamente reconhecidos,
feminicídio nos países latino-americanos.
diante das práticas discriminatórias que
Na última parte, são trazidos os resul-
não raro orientam as instituições poli-
ciais e judiciais. Dessa forma, conhecer as tados da pesquisa empírica que se voltou
circunstâncias que cercam o assassinato a casos de violência fatal praticada contra
de mulheres e a existência da relação com mulheres em cinco estados brasileiros.

3
Como a pesquisa Percepção da sociedade sobre violência e assassinatos de mulheres (2013).
4
Agradecemos a colaboração de diversos(as) profissionais que possibilitaram a realização da pesquisa: Olívia Alves Pessoa
(CEJUS-SRJ), Aline Yamamoto (SPM-PR), Elisa Sardão Colares (SPM-PR), Carolina Dalla Pacce (FGV DIREITO SP), Manuela
Schreiber Silva e Sousa (Ministério Público de São Paulo), Milena Dias (Tribunal de Justiça de São Paulo), Rosemeire Tomei
Gastaldo (Tribunal de Justiça de São Paulo), Nágila Maria Sales Brito (Tribunal de Justiça da Bahia), Lunelcia Almeida
(Coordenadoria da Mulher do TJ-BA), Márcia Teixeira (Ministério Público da Bahia), Firmiane Venâncio (Defensoria Pública
do Estado da Bahia), Des. Denise Kruger Pereira (Tribunal de Justiça do Paraná), Bruna Rosa (TJ-PR), James Portugal Neto
(TJ-PR), Evangelina Castilho Duarte (Tribunal de Justiça de Minas Gerais), Divina de Assis (TJ-MG) e funcionários(as) dos
Tribunais de Justiça de Mato Grosso e do Pará.
14
I. A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
NO SISTEMA INTERAMERICANO DE
DIREITOS HUMANOS
Mapear o ambiente regulatório inter- São três os tratados da Organização
nacional sobre os direitos humanos das dos Estados Americanos devotados especi-
mulheres no qual os países latino-ameri- ficamente para os direitos das mulheres: (i)
canos atualmente se encontram possibilita Convenção Interamericana sobre Direitos
identificar os compromissos jurídicos assu- Políticos das Mulheres, (ii) Convenção
midos por cada um deles, os quais podem Interamericana sobre Direitos Civis das
acarretar responsabilidade em caso de Mulheres e (iii) Convenção Interamericana
descumprimento. O levantamento de todos para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
os tratados internacionais adotados em contra as Mulheres (Convenção de Belém
âmbito regional (Sistema OEA) e universal do Pará). São 18 os países latino-ameri-
(Sistema ONU) sobre direitos humanos canos que se encontram simultaneamente
e, especificamente, sobre os direitos das vinculados a essas três convenções: Argen-
mulheres5 mostra que o Brasil é o único país tina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa
da América Latina que aderiu a ou ratificou Rica, República Dominicana, Equador, El
todos os 14 tratados internacionais univer- Salvador, Guatemala, Honduras, México,
sais6 e regionais,7 genéricos ou específicos, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Suriname,
que visam à proteção dos direitos das Uruguai e Venezuela.
mulheres na esfera internacional.8 Nenhum
outro país latino-americano está inserido Com o objetivo de fortalecer o reco-
na mesma malha normativa que envolve o nhecimento dos direitos humanos das
Estado brasileiro, o que lhe impõe um forte mulheres foi instituída, ainda no âmbito
compromisso perante a ordem jurídica inter- da União Pan-Americana, em 1928, a
nacional para a efetivação desses direitos. Comissão Interamericana de Mulheres

5
Essa operação resultou no quadro “Tratados internacionais e América Latina” (no fim desta seção), que traz a indicação
quanto ao compromisso jurídico na esfera internacional do Estado (regional e/ou universal) mediante ratificação ou adesão,
ficando excluídas as situações em que (i) houve assinatura do tratado, mas não ratificação, (ii) não houve assinatura, nem
adesão. Não se fez diferenciação entre ratificação e adesão, uma vez que geram os mesmos efeitos jurídicos – assunção de
dever perante a ordem jurídica internacional (Accioly, Nascimento e Silva e Casella, 2009). Os tratados internacionais e as
informações a respeito de sua ratificação foram retirados dos repositórios constantes dos sites de cada uma das organizações
internacionais. No caso dos tratados adotados no interior da estrutura da Organização dos Estados Americanos, as informações
foram retiradas do repositório cronológico da própria OEA, disponível em http://www.oas.org/dil/treaties_year.htm (consulta
em 10/12/2014). No caso dos tratados adotados no interior da estrutura da Organização das Nações Unidas, as informações
foram retiradas do repositório da ONU, disponível em https://treaties.un.org/pages/ParticipationStatus.aspx (consulta em
10/12/2014).
6
A saber, Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ICESCR), Pacto pelos Direitos Civis e Políticos
(ICCPR), Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), Convenção sobre
os Direitos Políticos das Mulheres (CPRW), Protocolo para Prevenir, Erradicar e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente
Mulheres e Crianças, suplementar à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (PPSPTP),
Protocolo Complementar à Convenção para a Erradicação do Tráfico de Mulheres e Crianças (PCSTWC), Protocolo Final
à Convenção para a Erradicação do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição (FPCSTP), Convenção sobre
a Nacionalidade das Mulheres Casadas (CNMW) e Convenção sobre Consentimento ao Casamento, Idade Mínima para o
Casamento e Registro de Casamentos (CCMMAMRM).
7
A saber, Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Políticos às Mulheres (ICGPRW), Convenção Interamericana
sobre a Concessão de Direitos Civis às Mulheres (ICGCRW), Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São
José da Costa Rica (PSJCR), o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos na Área de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais – Protocolo de São Salvador (APSJCR) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra as Mulheres – Convenção de Belém do Pará (CBP).
8
A Convenção Interamericana contra Todas as Formas de Discriminação e Intolerância (ICAFDI), assinada em 6 de julho de
2014, não havia sido, até o fechamento do relatório, ratificada por nenhum país da OEA. Por esse motivo, ela não foi incluída
entre os tratados internacionais regionais sobre direitos humanos sob análise.
15
(CIM), incorporada à Organização dos ação de violência,9 é possível depreender
Estados Americanos em 1948. Uma das que essa matéria tem sido objeto de cres-
atividades da CIM diz respeito ao Meca- cente atenção, o que pode ser conferido
nismo de Seguimento da Convenção nas audiências e nas relatorias temáticas,
Interamericana para Prevenir, Punir e nos cursos para a sociedade civil e, espe-
Erradicar a Violência contra as Mulheres cialmente, nos casos que ali tramitaram.
(MESECVI), que analisa a implementação
da Convenção pelos Estados. Na Comissão Interamericana, três
casos merecem destaque. No primeiro
No atinente aos tratados da ONU, vale caso, María Mamérita Mestanza Chávez
destacar que todos os 27 países latino-a- versus Peru (nº 12.191),10 solucionado por via
mericanos aderiram à Convenção sobre a amistosa entre as partes e encerrado em
Eliminação de Todas as Formas de Discri- 10 de outubro de 2003, o Estado peruano
minação contra as Mulheres (CEDAW), foi questionado perante a Comissão por
que é adotada atualmente por mais de praticar uma política pública localizada
170 países. Em 1999, a Assembleia Geral de esterilização forçada de mulheres, que
das Nações Unidas aprovou um Protocolo resultou na morte de uma mulher subme-
Facultativo, cuja ratificação pelos Estados tida a essa intervenção médica. No caso
enseja o reconhecimento da legitimidade Paloma Angélica Escobar Ledezma e
do Comitê CEDAW para receber e inves- outros versus México (nº 12.551),11 decidido
tigar denúncias de violações de direitos em 12 de julho de 2013, o Estado mexi-
estabelecidos na convenção, ampliando, cano foi considerado internacionalmente
por conseguinte, os mecanismos de moni- responsável por não assegurar condições
toramento. O Brasil aderiu ao Protocolo institucionais para que mulheres vivessem
Facultativo em 2002. livres de violência e discriminação, pois
seus agentes estatais não teriam atuado
A maior parte dos países latino-ame- com a devida diligência para procurar
ricanos está vinculada à Organização dos uma mulher sequestrada e para inves-
Estados Americanos e ao Sistema Inte- tigar as condições de sua morte, o que foi
ramericano de Direitos Humanos (SIDH), entendido como violência institucional.
mecanismo de solução de controvérsias O terceiro caso, decidido em 16 de abril
envolvendo direitos humanos, composto de 2001, Maria da Penha Maia Fernandes
pela Comissão e pela Corte Interameri- versus Brasil (nº 12.051),12 versa sobre
cana de Direitos Humanos e instituído contínua violência doméstica contra
pelo Pacto de São José da Costa Rica. a mulher e tornou o Estado brasileiro
Ao voltarmos o olhar para a atuação do responsável internacionalmente em razão
sistema regional de proteção aos direitos de demora injustificada na performance
humanos no que concerne aos direitos das do sistema de justiça criminal brasileiro, o
mulheres e, em especial, àquelas em situ- que poderia levar à impunidade de crimes

9
No caso da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, não há um sistema de busca por palavras-chave, mas tão-somente
uma apresentação em lista de todos os casos analisados pelo órgão, a partir de 2004. Não são disponibilizadas as decisões
na íntegra, apenas os relatórios divulgados em comunicados à imprensa, dos quais constam o resumo do processo, dos fatos
e da análise e das conclusões da Comissão.
No caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi consultada a base de dados por meio de busca pelas seguintes
palavras-chave: “mujer”, “género”, “feminicidio” e “femicidio”. Foram encontrados informes, petições iniciais e comunicados à
imprensa, sentenças na íntegra e tabelas relativas ao andamento do processo e decisões proferidas pela Corte IDH.
10
Disponível em http://www.cidh.oas.org/annualrep/2003sp/Peru.12191.htm. Consulta em 10/12/2014.
11
Disponível em http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/2013/MXPU12551ES.doc. Consulta em 10/12/2014.
12
Disponível em http://www.cidh.org/women/brazil12.051.htm. Consulta em 10/12/2014.
16
cometidos contra Maria da Penha por valas) afastaram explicações como violência
seu ex-marido. passional ou violência para fins sexuais.

Na Corte Interamericana, o caso mais Em março de 2002 o caso Campo


emblemático é González e outras versus Algodonero, sobre o desaparecimento e a
México, conhecido como Campo Algodo- morte de três jovens mulheres, foi levado
nero.13 Conforme aponta Wânia Pasinato à Comissão Interamericana de Direitos
(2011), a categoria feminicídio14 granjeou Humanos, denunciando-se o Estado mexi-
espaço no contexto latino-americano a cano pela falta de medidas de proteção às
partir desse caso, que trazia denúncias de vítimas (das quais duas eram menores de
desaparecimento, estupro, tortura e assas- idade), falta de prevenção a esses crimes,
sinato de mulheres em Ciudad Juárez, no falta de resposta das autoridades frente
México. Segundo a autora,15 a origem dos ao desaparecimento e falta de diligência
problemas na região remonta à década de na investigação dos assassinatos, assim
1960, quando houve uma mudança impor- como a denegação da justiça e a ausência
tante na economia local. O fim da política de reparação adequada, isso tudo diante
de arregimentação de homens mexicanos do pleno conhecimento de um padrão de
para o trabalho agrícola nos Estados violência de gênero que havia ocasionado a
Unidos e a instalação de grandes indús- morte de centenas de mulheres e meninas.
trias (maquilas), cujo desenvolvimento nas Em dezembro de 2009 o Estado mexicano
décadas seguintes se deu pela exploração foi considerado responsável. Trata-se de
da mão-de-obra feminina, provocaram uma decisão simbólica e exemplar, em que
“rearranjos nos papéis tradicionais de pela primeira vez a Corte Interamericana
gênero” (2011: 225).16 condenou um Estado pelo homicídio de
mulheres pela condição de gênero.
Na década de 1990, o local se carac-
terizava pela confluência de atividades O reconhecimento da responsa-
ilegais – imigração ilegal, tráfico de bilidade do Estado pela Comissão ou a
armas, pessoas e drogas, roubo de carros, condenação pela Corte Interamericana de
contrabando, corrupção policial – e foi Direitos Humanos têm impacto direto na
nesse cenário que passaram a ocorrer as agenda de produção normativa interna dos
mortes de mulheres. Semelhanças entre Estados, ao atestarem o não cumprimento
as vítimas (jovens migrantes ou de famí- de deveres assumidos por meio de tratados
lias de migrantes e operárias na indústria) regionais. Nesse sentido, frisem-se tanto a
e na forma de cometimento dos crimes decisão proferida pela Comissão em 2001
(violência sexual, tortura, mãos atadas, no caso nº 12.051, que colaborou para a
estrangulamento e desova dos corpos em aprovação da lei 11.340/2006 (Lei Maria da
13
Disponível em http://www.corteidh.or.cr/tablas/fichas/campoalgodonero.pdf. Consulta em 10/12/2014.
14
Na introdução à obra Femicide: the politics of women killing, Jill Radford13 conceitua o fenômeno como o assassinato misógino
de mulheres por homens, uma forma de violência sexual em que se expressa o desejo masculino de poder, dominação e controle
(Radford; Russell, 1992: 3). A autora rechaça as classificações legais e destaca que o conceito auxilia no reconhecimento de um
continuum de violência que marca as vidas das mulheres e, ainda, permite qualificar o debate sobre as mortes de mulheres,
que muitas vezes se circunscreve ao escrutínio do comportamento das vítimas e à desumanização dos autores dos crimes,
fórmula que mascara o significado político do feminicídio. Na acepção de Jill Radford, o feminicídio assume várias formas –
racista, homofóbico ou lesbofóbico, marital, serial, em massa – e engloba todas as mortes de mulheres decorrentes de atitudes
misóginas, causadas por abortamentos inseguros, cirurgias desnecessárias (como histerectomias), tradições culturais (como
abandono de bebês do sexo feminino e clitorectomias) e HIV transmitido por estupradores (Radford; Russell, 1992: 7).
15
Não se trata aqui de fazer uma revisão bibliográfica detalhada do conceito, mas de recuperar alguns aspectos que são
relevantes para a análise empreendida no relatório. Para uma revisão completa, ver o artigo de Wânia Pasinato (2011).
16
Vários(as) autores(as) associam a maior inclusão das mulheres no mercado de trabalho e a criação de um desequilíbrio no
lar com a ocorrência da violência. Ver, entre outros(as), MacMillan e Gartner (1999).
17
Penha) no Brasil, quanto a sentença conde- instituições no reforço ou na diminuição
natória proferida pela Corte em 2009 no da prática desses atos por agentes estatais
caso Campo Algodonero, que contribuiu e não estatais. As soluções dos casos
para a edição, em 14 de junho de 2012, apontam para a importância de adoção
do decreto que modificou o Código Penal de medidas que extrapolam a tutela do
Federal mexicano para introduzir o tipo direito penal. Normas e medidas de outra
penal feminicídio. qualidade podem desempenhar uma
função central no combate à violência
O exame dos casos do SIDH permite contra as mulheres. Assim, o estímulo à
notar a relevância que a temática tem atuação proativa dos Estados, por meio da
adquirido no âmbito regional interameri- previsão de protocolos e procedimentos
cano. Ainda que de forma esporádica, os especiais e da capacitação para a atuação
Estados foram efetivamente considerados diferenciada e diligente de agentes
responsáveis, direta ou indiretamente, estatais, por exemplo, pode ser decisivo
perante o direito internacional pelo assas- para o enfrentamento do problema.
sinato de mulheres em razão de gênero.
Em alguns casos, Estados são entendidos O contexto internacional tem influen-
como a origem das violações, com agentes ciado de maneira significativa a produção
estatais figurando como autores do femi- legislativa interna e a elaboração de polí-
nicídio. Em outros, como no caso do Brasil ticas públicas dos países latino-americanos
e do México, entende-se que os Estados no tema da igualdade de gênero. Tratados
forneceram condições institucionais para a internacionais ou decisões internacionais
prática de violações por agentes privados: em interação com as mobilizações nacio-
a legislação seria favorecedora da impu- nais compõem um elemento fundamental
nidade, fonte de violência institucional para compreender a positivação de leis de
dissimulada e manifesta pela ausência de combate à violência de gênero. Um estudo
diligência na investigação e no processa- mais aprofundado dos processos legisla-
mento, por exemplo. tivos internos certamente revelaria algum
grau, maior ou menor, de influência do
Essa percepção revela a necessidade elemento internacional na conformação das
de pensar o papel do Estado e de suas legislações nacionais.17

No que diz respeito à interação entre as esferas internacional e nacional no caso da Lei Maria da Penha, ver Barsted (2011) e
17

Calazans e Cortes (2011).


18
II. EXPERIÊNCIAS LEGISLATIVAS DE
TIPIFICAÇÃO DO FEMINICÍDIO EM PAÍSES
DA AMÉRICA LATINA
Aprofundar o conhecimento acerca Embora não tenham sido aqui explo-
das experiências legislativas de países radas as consequências da tipificação nos
vizinhos permite ampliar o repertório de cenários concretos dos países, percebeu-se
informações sobre o contexto de tipifi- que as experiências legislativas de adoção
cação do feminicídio e os impactos dessa de lei especial ofereceram maior riqueza de
medida, angariando contribuições impor- possibilidades regulatórias, pois em geral
tantes para o debate brasileiro. não apenas adotaram normas de compor-
tamento acompanhadas de sanções
Atualmente, 14 países da América para reprimir o feminicídio, mas também
Latina têm leis que versam sobre o crime de normas jurídicas de conteúdo não punitivo
feminicídio: Argentina (2012), Bolívia (2013), que promoveram mudanças processuais,
Chile (2010), Colômbia (2008), Costa Rica criação de instituições e de políticas
(2007), Equador (2013), El Salvador (2012), públicas, entre outros. Não obstante a
Guatemala (2008), Honduras (2013), México gama de possibilidades de análise para um
(2012), Nicarágua (2012), Panamá (2011), estudo comparado dessas legislações, este
Peru (2011) e Venezuela (2014). Também estudo priorizou três eixos para orientar o
constatou-se que (i) em dois países, Brasil18 exame das legislações atualmente em vigor
e Paraguai, há projetos de lei visando à na América Latina sobre o feminicídio: (a)
tipificação do feminicídio e (ii) em outros definição de feminicídio, (b) sanções e (c)
dois países, Trinidad e Tobago e Uruguai, dispositivos relativos ao processo judicial.
está em curso discussão sobre a alteração
de normas jurídicas em função da figura A construção do conceito legal de
do feminicídio. Nos demais países, não feminicídio, especialmente quando se
se identificaram, ao longo da pesquisa, trata de regulação penal, é uma tarefa
leis, projetos de leis ou discussões em bastante complexa, na medida em que
andamento sobre feminicídio. é preciso contemplar, a um só tempo, a
descrição da conduta com atenção ao
Ressalte-se que, entre os países da contexto em que a violência ocorre e o
América Latina que tipificaram o femini- respeito ao princípio da taxatividade – a
cídio, verificam-se diferentes estratégias clareza textual no que tange ao compor-
legislativas: (i) aprovação exclusiva- tamento sujeito à incriminação.
mente de uma lei especial (Costa Rica e
Guatemala, por exemplo), (ii) realização Uma das estratégias utilizadas diz
de reforma do Código Penal (Argentina, respeito ao aspecto subjetivo da definição,
Chile e Peru, por exemplo) ou (iii) adoção isto é, quanto à determinação do perfil da
de lei especial e reforma do Código vítima e do autor envolvidos na prática
Penal, concomitantemente (Nicarágua criminosa. Todas as legislações que atri-
e Panamá). buem explicitamente o nome feminicídio

18
A tipificação do feminicídio no Brasil ocorreu após a conclusão deste relatório (lei 13.104 de 9 de março de 2015).
19
ao comportamento de matar mulheres em conducta descrita en el artículo ante-
razão de gênero são unânimes em deter- rior se cometiere: 1. En la persona del
minar que a vítima deverá ser sempre uma ascendiente o descendiente, cónyuge,
pessoa do sexo feminino. Nesse sentido, compañero o compañera permanente,
basta observar o artigo 21 da lei 8.589 da hermano, adoptante o adoptivo, o
Costa Rica (“muerte a una mujer”), ou o pariente hasta el segundo grado de
artigo 45, caput, da lei 520 de El Salvador afinidad” (Colômbia, Código Penal).
(“causare la muerte a una mujer”), ou o
artigo 6º, caput, do decreto 22/2008 da A regulação argentina, ao mencionar a
Guatemala (“diere muerte a una mujer, por violência de gênero sem vinculá-la necessa-
su condición de mujer”), ou ainda o artigo riamente à vítima do sexo feminino, abrange,
57 da lei orgânica da Venezuela (“dado além do feminicídio, as violações do direito
muerte a una mujer”). O mesmo ocorre no à vida da população LGBTI. Já o exemplo da
artigo 252 bis do Código Penal boliviano legislação colombiana tem a desvantagem
(“a quien mate a una mujer”) e no artigo de obscurecer a questão específica da
325 do Código Penal Federal mexicano violência de gênero, já que insere o assassi-
(“quien prive de la vida a una mujer”). O nato de mulheres no âmbito de proteção da
artigo 390 da legislação do Chile espe- instituição familiar. De todo modo, verificou-
cifica que apenas quando o crime é se mais recorrentemente a preferência por
cometido contra “la cónyuge o la convi- definições que se restringem à violência
viente” corresponde ao tipo feminicídio. praticada contra a mulher e pelo uso do
termo feminicídio, ainda que com variações.
Há situações em que o legislador lati-
no-americano não lançou mão do nomen No que se refere ao autor do crime, a
iuris feminicídio e não restringiu a apli- leitura dos textos normativos revelou alguma
cação do dispositivo penal somente às variação, havendo leis que estabelecem
situações em que a vítima é do sexo femi- exclusivamente a pessoa do sexo mascu-
nino. Leis que tratam do assassinato em lino como sujeito ativo do crime e outras
razão de gênero, mas não exclusivamente que não o fazem. Como exemplo, se pode
de mulheres, foram encontradas: apontar o disposto na lei 520 de El Salvador:
embora o artigo 7º sustente que os “tipos y
“Art. 80. Se impondrá reclusión modalidades de violencia contemplados en
perpetua o prisión perpetua […] al la presente ley, tienen como origen la rela-
que matare: […] 4° Por placer, codicia, ción desigual de poder o de confianza; en
odio racial, religioso, de género o a la cual, la mujer se encuentra en posición
la orientación sexual, identidad de de desventaja respecto de los hombres”, a
género o su expresión. […] 11. A una pessoa autora da conduta delitiva é definida
mujer cuando el hecho sea perpetrado de maneira ampla, como “quien ejerce cual-
por un hombre y mediare violencia de quiera de los tipos de violencia contra las
género […]” (Argentina, Código Penal). mujeres, en una relación desigual de poder
y en cualquiera de sus modalidades” (artigo
“Art. 104. Circunstancias de agrava- 8º) e “quien le causare la muerte a una mujer
ción. La pena será de veinticinco (25) mediando motivos de odio o menosprecio
a cuarenta (40) años de prisión, si la por su condición de mujer” (artigo 45).

20
Outras legislações ilustram também essa o a quien es o ha sido su cónyuge o
opção: “la persona que, como resultado de su conviviente, será castigado, como
relaciones de poder manifestadas en cual- parricida, con la pena de presidio
quier tipo de violencia, dé muerte a una mayor en su grado máximo a presidio
mujer” (artigo 141 do Código Orgânico Inte- perpetuo calificado. Si la víctima del
gral Penal do Equador) e “comete el delito delito descrito en el inciso precedente
de feminicidio quien prive de la vida a una es o ha sido la cónyuge o la conviviente
mujer por razones de género” (artigo 325 de su autor, el delito tendrá el nombre
do Código Penal Federal do México). de femicidio” (Chile, Código Penal)

Descrições que se referem a condutas


envolvendo intimidade, com convívio domés- “Art. 21. Se le impondrá pena de prisión
tico ou não, entre agressor e vítima vigente de veinte a treinta y cinco años a quien
ou anterior à ocasião da prática da violência dé muerte a una mujer con la que
foram detectadas. mantenga una relación de matrimonio,
en unión de hecho declarada o no”
“Art. 80. Se impondrá reclusión perpe- (Costa Rica, lei 8.589).
tua o prisión perpetua, pudiendo apli-
carse lo dispuesto en el artículo 52, al
“Art. 57. […]
que matare:
1º Cuando intencionalmente el cónyu-
1º A su ascendiente, descendiente,
ge, excónyuge, concubino, exconcu-
cónyuge, ex cónyuge, o a la persona
bino, persona con quien la víctima
con quien mantiene o ha mantenido
mantuvo vida marital, unión estable de
una relación de pareja, mediare o no
hecho o relación de afectividad, con o
convivencia (Argentina, Código Penal).
sin convivencia, haya dado muerte a
una mujer, la pena a imponer será de
“Art. 252 bis. Se sancionará con la veinticinco a treinta años de prisión”
pena de presidio de treinta (30) años (Venezuela, Ley Orgánica sobre el De-
sin derecho a indulto, a quien mate recho de las Mujeres a una Vida Libre
a una mujer, en cualquiera de las si- de Violencia).
guientes circunstancias:
1. El autor sea o haya sido cónyuge o
Verifica-se a preocupação de registrar
conviviente de la víctima, esté o haya
que a relação íntima entre autor do crime e
estado ligada a esta por una análoga
vítima – seja a intimidade desenvolvida no
relación de afectividad o intimidad,
interior de convivência doméstica ou não –
aun sin convivencia […]” (Bolívia, Có-
pode ser o elemento facilitador, tendo em
digo Penal).
vista a confiança gerada entre os sujeitos.

“Art. 390. El que, conociendo las “Art. 325. Comete el delito de


relaciones que los ligan, mate a su feminicidio quien prive de la vida a
padre, madre o hijo, a cualquier otro una mujer por razones de género.
de sus ascendientes o descendientes Se considera que existen razones de

21
género cuando concurra alguna de las situación o relación de subordinación
siguientes circunstancias: […] o dependencia respecto del autor, o
tenga con éste una relación de amis-
III. Existan antecedentes o datos
tad, laboral o de compañerismo […]
de cualquier tipo de violencia en el
ámbito familiar, laboral o escolar, del 8. Cuando la muerte sea conexa al
sujeto activo en contra de la víctima; delito de trata o tráfico de personas
[…]” (Bolívia, Código Penal).
IV. Haya existido entre el activo y la
víctima una relación sentimental,
afectiva o de confianza […]” (México,
“Artigo 141. La persona que, como
Código Penal Federal).
resultado de relaciones de poder
manifestadas en cualquier tipo de
“Art. 108-B. Será reprimido con pena violencia, dé muerte a una mujer por
privativa de libertad no menor de quin- el hecho de serlo o por su condición
ce años el que mata a una mujer por su de género, será sancionada con pena
condición de tal, en cualquiera de los privativa de libertad de veintidós a
siguientes contextos: veintiséis años.

1. Violencia familiar; Artículo 142. Circunstancias agravan-


tes del femicidio.- Cuando concurran
[…]
una o más de las siguientes circuns-
3. Abuso de poder, confianza o de tancias se impondrá el máximo de la
cualquier otra posición o relación que pena prevista en el artículo anterior:
le confiera autoridad al agente; […]
4. Cualquier forma de discriminación 2. Exista o haya existido entre el sujeto
contra la mujer, independientemente activo y la víctima relaciones familiares,
de que exista o haya existido una conyugales, convivencia, intimidad,
relación conyugal o de convivencia noviazgo, amistad, compañerismo,
con el agente” (Peru, Código Penal). laborales, escolares o cualquier otra
que implique confianza, subordinaci-
Confiança, subordinação ou superio- ón o superioridad” (Equador, Código
ridade desenvolvidas no interior de relação Orgánico Integral Penal).
que não envolvam intimidade, tais como
relações de amizade, estudo e trabalho,
“Art. 132-A. Quien cause la muerte
entre outras, também aparecem nas legis-
a una mujer, en cualquiera de las si-
lações analisadas.
guientes circunstancias, será sancio-
nado con pena de veinticinco hasta
“Art. 252 bis. Se sancionará con la
treinta años de prisión: […]
pena de presidio de treinta (30) años
sin derecho a indulto, a quien mate 2. Cuando exista relación de confianza
a una mujer, en cualquiera de las si- con la víctima o de carácter laboral,
guientes circunstancias: […] docente o cualquiera que implique
subordinación o superioridad”
4. La víctima que se encuentre en una (Panamá, lei 82/2013).

22
Outras noções de feminicídio pre- circunstancias: […]
sentes nas legislações examinadas privile-
2. Por haberse negado la victima a
giam contextos de relações sociais desiguais
establecer con el autor, una relación de
de poder na explicação do fenômeno, sendo
pareja, enamoramiento, afectividad
a relação prévia entre agressor e vítima
o intimidad. […]
desnecessária para configurar o compor-
tamento penalmente punível. Nestes casos, 6. Cuando con anterioridad al hecho
a ação do autor do feminícidio tem como de la muerte, la mujer haya sido víc-
lastro a desigualdade de gênero, que leva à tima de violencia física, psicológica,
compreensão dos crimes cometidos como sexual o económica, cometida por el
resposta a manifestações de autonomia ou mismo agresor;
liberdade feminina em relação a pretensões 7. Cuando el hecho haya sido precedi-
masculinas que correspondem a constru- do por un delito contra la libertad indi-
ções tradicionais de submissão do feminino vidual o la libertad sexual […]” (Bolívia,
ao masculino. Código Penal).

“Art. 9º […]
“Artículo 141. Femicidio. La persona
b. forma extrema de violencia de que, como resultado de relaciones de
género contra las mujeres, producto poder manifestadas en cualquier tipo
de la violación de sus derechos de violencia, dé muerte a una mujer
humanos, en los ámbitos público y por el hecho de serlo o por su condi-
privado, conformada por el conjunto ción de género, será sancionada con
de conductas misóginas que conllevan pena privativa de libertad de veintidós
a la impunidad social o del Estado, a veintiséis años.
pudiendo culminar en feminicidio y
Artículo 142. Circunstancias agravan-
en otras formas de muerte violenta de
tes del femicidio. Cuando concurran
mujeres” (El Salvador, lei 520/2012).
una o más de las siguientes circuns-
tancias se impondrá el máximo de la
“Art. 3º […] pena prevista en el artículo anterior:

e. […] muerte violenta de una mujer, 1. Haber pretendido establecer o res-


ocasionada en el contexto de las tablecer una relación de pareja o de
relaciones desiguales de poder entre intimidad con la víctima. […]” (Equa-
hombres y mujeres, en ejercicio dor, Código Orgánico Integral Penal).
del poder de género en contra de
las mujeres” (Guatemala, decreto
“Art. 6º. Comete el delito de femicí-
22/2008).
dio quien, en el marco de las relaciones
desiguales de poder entre hombres y
mujeres, diere muerte a una mujer, por su
“Art. 252 bis. Se sancionará con la pena condición de mujer, valiéndose de cual-
de presidio de treinta (30) años sin quiera de las siguientes circunstancias:
derecho a indulto, a quien mate a una
mujer, en cualquiera de las siguientes a. Haber pretendido infructuosamente

23
establecer o restablecer una relación una relación de esta naturaleza o de
de pareja o de intimidad con la víctima. intimidad afectiva o existan vínculos
[…] de parentesco con la víctima. […]
c. Como resultado de la reiterada 6. Por el menosprecio o abuso del
manifestación de violencia en contra cuerpo de la víctima, para satisfacción
de la víctima. […] de instintos sexuales […].
e. En menosprecio del cuerpo de la 10. Por cualquier móvil generado por
víctima para satisfacción de instintos razón de su condición de mujer o en
sexuales […]. un contexto de relaciones desiguales
de poder” (Panamá, lei 82/2013).
f. Por misoginia […]” (Guatemala, de-
creto 22/2008).
“Art. 108-B. Será reprimido con pena
privativa de libertad no menor de quin-
“Art. 325. Comete el delito de femi-
ce años el que mata a una mujer por su
nicidio quien prive de la vida a una
condición de tal, en cualquiera de los
mujer por razones de género. Se con-
siguientes contextos:
sidera que existen razones de géne-
ro cuando concurra alguna de las si- […]
guientes circunstancias:
2. Coacción, hostigamiento o acoso sexual;
I. La víctima presente signos de vio-
[…]
lencia sexual de cualquier tipo;
4. Cualquier forma de discriminación
[…]
contra la mujer, independientemente
V. Existan datos que establezcan de que exista o haya existido una re-
que hubo amenazas relacionadas lación conyugal o de convivencia con
con el hecho delictuoso, acoso o le- el agente.
siones del sujeto activo en contra de
La pena privativa de libertad será no
la víctima;
menor de veinticinco años, cuando
VI. La víctima haya sido incomunica- concurra cualquiera de las siguientes
da, cualquiera que sea el tiempo pre- circunstancias agravantes: […]
vio a la privación de la vida” (México,
4. Si la víctima fue sometida previa-
Código Penal Federal).
mente a violación sexual […]” (Peru,
Código Penal).
“Art. 132-A. Quien cause la muerte
a una mujer, en cualquiera de las si- “Artículo 45. Feminicidio
guientes circunstancias, será sancio-
Quien le causare la muerte a una
nado con pena de veinricinco hasta
mujer mediando motivos de odio o
treinta años de prisión:
menosprecio por su condición de
mujer, será sancionado con pena de
1. Cuando exista una relación de prisión de veinte a treinta y cinco años.
pareja o hubiere intentado infructu-
osamente establecer o restablecer Se considera que existe odio o menos-

24
precio a la condición de mujer cuan- 9. Cuando la muerte sea resultado de
do ocurra cualquiera de las siguien- ritos, desafíos grupales o prácticas
tes circunstancias: culturales” (Bolívia, Código Penal).
a) Que a la muerte le haya precedido
algún incidente de violencia cometido “Artículo 141. Femicidio. La persona
por el autor contra la mujer, indepen- que, como resultado de relaciones de
dientemente que el hecho haya sido poder manifestadas en cualquier tipo
denunciado o no por la víctima. de violencia, dé muerte a una mujer por
[…] el hecho de serlo o por su condición
de género, será sancionada con pena
c) Que el autor se hubiere aprove-
privativa de libertad de veintidós a
chado de la superioridad que le ge-
veintiséis años.
neraban las relaciones desiguales de
poder basadas en el género. Artículo 142. Circunstancias agravantes
del femicidio. Cuando concurran una
d) Que previo a la muerte de la mujer
o más de las siguientes circunstancias
el autor hubiere cometido contra ella
se impondrá el máximo de la pena
cualquier conducta calificada como
prevista en el artículo anterior:
delito contra la libertad sexual” (El Sal-
vador, lei 520/2012). […]
3. Si el delito se comete en presencia
de hijas, hijos o cualquier otro familiar
Outra forma de definir o femini-
de la víctima.
cídio diz respeito às circunstâncias de
sua execução, com ênfase no meio ou no 4. El cuerpo de la víctima sea
contexto sórdido, perverso ou cruel. Dessa expuesto o arrojado en un lugar
maneira, as particularidades do come- público” (Equador, Código Orgánico
timento do crime é que caracterizam o Integral Penal).
feminicídio, e não a relação entre autor e
vítima ou a constatação da existência de
violência baseada no gênero. “Artículo 6. Femicídio. Comete el de-
lito de femicídio quien, en el marco
de las relaciones desiguales de poder
“Art. 252 bis. Se sancionará con la entre hombres y mujeres, diere muer-
pena de presidio de treinta (30) años te a una mujer, por su condición de
sin derecho a indulto, a quien mate mujer, valiéndose de cualquiera de
a una mujer, en cualquiera de las si- las siguientes circunstancias:
guientes circunstancias:
[…]
[…]
d. Como resultado de ritos grupales
3. Por estar la víctima en situación usando o no armas de cualquier tipo.
de embarazo;
e. En menosprecio del cuerpo de la
[…]
víctima […], cometiendo actos de
5. La víctima se encuentre en una situ- mutilación genital o cualquier otro
ación de vulnerabilidad; […] tipo de mutilación.

25
[…] II. A la víctima se le hayan infligido
lesiones o mutilaciones infamantes o
g. Cuando el hecho se cometa en pre-
degradantes, previas o posteriores a la
sencia de las hijas o hijos de la víctima.
privación de la vida o actos de necrofilia;
h. Concurriendo cualquiera de las
[…]
circunstancias de calificación con-
templadas en el artículo 132 del Có- VII. El cuerpo de la víctima sea
digo Penal”. expuesto o exhibido en un lugar pú-
blico” (México, Código Penal).
[…]
Artículo 132. Comete asesinato quien
matare a una persona: “Artículo 108-B. Feminicidio […]

1) Con alevosía La pena privativa de libertad será no


menor de veinticinco años, cuando
2) Por precio, recompensa, promesa,
concurra cualquiera de las siguientes
ánimo de lucro
circunstancias agravantes:
3) Por medio o en ocasión de inundación,
1. Si la víctima era menor de edad;
incendio, veneno, explosión, desmo-
ronamiento, derrumbe de edificio u 2. Si la víctima se encontraba en esta-
otro artificio que pueda ocasionar do de gestación;
gran estrago 3. Si la víctima se encontraba bajo
4) Con premeditación conocida cuidado o responsabilidad del agente;

5) Con ensañamiento 4. Si la víctima fue sometida previa-


mente a […] actos de mutilación;
6) Con impulso de perversidad brutal
5. Si al momento de cometerse el
7) Para preparar, facilitar, consumar y
delito, la víctima padeciera cualquier
ocultar otro delito o para asegurar sus
tipo de discapacidad;
resultados o la inmunidad para si o para
copartícepes o por no haber obtenido 6. Si la víctima fue sometida para fines
el resultado que se hubiere propuesto de trata de personas;
al intentar el otro hecho punible 7. Cuando hubiera concurrido cual-
8) Con fines terroristas o en desarrollo quiera de las circunstancias agravan-
de actividades terroristas […]” (Gua- tes establecidas en el artículo 108.
temala, decreto 22/2008). […]
Artículo 108. Homicidio calificado -
“Artículo 325. Comete el delito de Asesinato
feminicidio quien prive de la vida a Será reprimido con pena privativa de
una mujer por razones de género. libertad no menor de veinticinco años
Se considera que existen razones de el que mate a otro concurriendo cual-
género cuando concurra alguna de quiera de las circunstancias siguientes:
las siguientes circunstancias:
1.- Por ferocidad, por lucro o por placer;
[…] 2.- Para facilitar u ocultar otro delito;

26
3.- Con gran crueldad o alevosía; debruça-se sobre a qualidade e a quan-
tidade das penas. Primeiramente, cabe
4.- Por fuego, explosión, veneno o por
salientar que a pena privativa de liberdade
cualquier otro medio capaz de poner
consiste na punição penal uniforme-
en peligro la vida o salud de otras
mente prevista para os diferentes tipos
personas” (Peru, Código Penal).
de feminicídio estipulados nas legislações
examinadas, por vezes acompanhadas de
“Artículo 45. Feminicidio outras penas acessórias.

Quien le causare la muerte a una


No que se refere à punição, é possível
mujer mediando motivos de odio o
verificar variações não só em relação ao
menosprecio por su condición de
quantum da pena de prisão, mas também
mujer, será sancionado con pena de
no atinente aos parâmetros a partir dos
prisión de veinte a treinta y cinco años.
quais se dá a aplicação da sanção: (i)
Se considera que existe odio o menos pena fixa (30 anos, sem direito a indulto,
precio a la condición de mujer cuando na Bolívia e perpétua na Argentina); (ii)
ocurra cualquiera de las siguientes pena mínima de 15 anos de duração sem
circunstancias: […] previsão de limite máximo no tipo, tendo
b) Que el autor se hubiere aprovechado a forma agravada pena mínima de 25 anos
de cualquier condición de riesgo o (Peru); (iii) pena variável entre intervalos
vulnerabilidad física o psíquica en que fixos (exemplos: de 20 a 35 anos na Costa
se encontraba la mujer víctima. […] Rica e na Venezuela, de 25 a 40 anos na
Colômbia, de 30 a 40 anos em Honduras,
e) Muerte precedida por causa
de 30 a 50 anos em El Salvador, de 25 a
de mutilación.
50 anos na Guatemala, de 40 a 60 anos
Artículo 46. Feminicidio Agravado no México, de pena majorada até a prisão
El delito de feminicidio será sancionado perpétua no Chile). No Equador, a pena
con pena de treinta a cincuenta años cominada é de 22 a 26 anos na hipótese
de prisión, en los siguientes casos: do feminicídio, mas a lei prevê a aplicação
da pena máxima quando ocorrem circuns-
a) Si fuere realizado por funcionario
tâncias agravantes (artigos 141 e 142 do
o empleado público o municipal,
Código Orgânico Integral Penal). Outras
autoridad pública o agente de autoridad.
legislações também vinculam a existência
b) Si fuere realizado por dos o de duas ou mais circunstâncias agravantes
más personas. à pena fixa e mais agravada, como o Peru,
c) Si fuere cometido frente a cualquier que prevê prisão perpétua nesses casos.
familiar de la víctima.
Nas legislações em que a mulher não
d) Cuando la víctima sea menor de figura como sujeito passivo específico do
dieciocho años de edad, adulta mayor tipo, nota-se preocupação em estabelecer
o sufriere discapacidad física o mental” um tratamento especial para as mulheres.
(El Salvador, lei 520/2012). A lei argentina é um exemplo:

O eixo de análise referente à sanção “Art. 80. Se impondrá reclusión

27
perpetua o prisión perpetua, pudiendo para os autores do crime de feminicídio.
aplicarse lo dispuesto en el artículo 52, Por exemplo, o Código Penal argentino
al que matare: prevê que os que forem condenados a
pena privativa de liberdade superior a três
1º A su ascendiente, descendiente, cónyu-
anos, independentemente do crime em
ge, ex cónyuge, o a la persona con quien
questão, estão sujeitos também à inabili-
mantiene o ha mantenido una relación
tação absoluta e à privação do exercício
de pareja, mediare o no convivencia.
do poder familiar, da administração de
[…] bens ou da disposição deles por atos inter
Cuando en el caso del inciso 1º de este vivos (artigo 12). Essa pena pode ser apli-
artículo, mediaren circunstancias ex- cada nas sentenças condenatórias aos
traordinarias de atenuación, el juez po- autores do crime de feminicídio, mas não
drá aplicar prisión de ocho (8) a veinti- foram previstas no tipo.19
cinco (25) años. Esto no será aplicable
a quien anteriormente hubiera realiza- As penas restritivas de direitos visam
do actos de violencia contra la mujer a impedir o exercício regular de direito pela
víctima” (Argentina, Código Penal). pessoa condenada ou criar condições para
que o agressor não volte a cometer o crime.
Identificou-se na Nicarágua a previsão Seguindo a metodologia que mencionamos
de normas de sanção em que não se trata acima, observamos as regulacões especí-
de olhar para o tipo de relação entre autor ficas sobre o feminicidio e identificamos as
e vítima, mas para o local de cometimento seguintes penas acessórias restritivas de
do crime, sendo a prática “no âmbito direitos: (i) interdição para a prática de atos
privado” considerada mais grave: da vida civil, (ii) restrição ao exercício de
direitos políticos, (iii) vigilância por autori-
dade civil por período determinado, após o
“Art. 9º. Cuando el hecho se diera en el
término do período previsto para a prisão,
ámbito público la pena será de quince
(iv) perda de licenças, como porte de armas
a veinte años de prisión. Si ocurre
ou condução, (v) suspensão temporária ou
en el ámbito privado la pena será de
definitiva do exercício do cargo público ou
veinte a veinticinco años de prisión”
do emprego exercidos, (vi) impedimento de
(Nicarágua, lei 779/2012).
tutela, curatela ou administração de bens, (vii)
perda de direitos em relação à vítima, inclu-
Subsidiariamente à pena privativa sive os direitos sucessórios, (viii) restrição à
de liberdade, as legislações examinadas liberdade de locomoção, entre outros.
trazem outras modalidades de punição.
Não serão apresentadas aqui as penas Em relação à pena de inabilitação,
acessórias aplicáveis conforme a parte tem-se:
geral da legislação penal dos países (ou
seja, aplicáveis a todos os crimes previsto
“ARTÍCULO 81. (INHABILITACIÓN).
na legislacão daquele país), mas somente
aquelas que acompanharam o tipo penal Podrá aplicarse la sanción inhabilita-
e, portanto, são especificamente previstas ción cuando quien fuera sancionado

19
Uma análise que cotejasse todas as disposições gerais das legislações em questão exigiria estratégia comparativa distinta
e reduziria o alcance do panorama que se pretende traçar. Seria desejável, entretanto, que o tema integrasse uma agenda de
pesquisa futura sobre o tema.
28
por delitos de violencia hacia las mu- públicos en los que se expendan
jeres ejerza una profesión u ocupación bebidas alcohólicas y lenocinios;
relacionada con la educación, cuidado
3. Abstenerse de consumir drogas o
y atención de personas, independien-
alcohol; […]” (Bolívia, lei 348/2013).20
temente de su edad o situación, aten-
ción médica, psicológica, consejería o
asesoramiento, cargo administrativo “Artículo 66. Penas accesorias.
en universidades o unidades educa- En la sentencia condenatoria se
tivas, instituciones deportivas, milita- establecerán expresamente las penas
res, policiales; suspensión temporal accesorias que sean aplicables en cada
de autoridad paterna por el tiempo caso, de acuerdo con la naturaleza de
que dure la sanción, la clausura de lo- los hechos objeto de condena. Son
cales y la pérdida de licencias. Tiene penas accesorias:
un límite temporal de doce años y no 1. La interdicción civil durante el
pueden imponerse todas las restric- tiempo de condena en los casos de
ciones de esos derechos en una sola penas de presidio.
sentencia. Transcurrida la mitad del
2. La inhabilitación política mientras
plazo impuesto, o un mínimo de cinco
dure la pena.
años, puede darse la rehabilitación.
3. La sujeción a la vigilancia de la
ARTÍCULO 82. (CUMPLIMIENTO DE
autoridad por una quinta parte del
INSTRUCCIONES).
tiempo de la condena, desde que esta
La autoridad judicial podrá aplicar termine, la cual se cumplirá ante la
un plan de conducta al condenado primera autoridad civil del municipio
cuando le sean aplicadas sanciones donde reside.
alternativas que impliquen su libertad
4. La privación definitiva del derecho a la
total o parcial, en virtud del cual
tenencia y porte de armas, sin perjuicio
deberá cumplir con instrucciones
que su profesión, cargo u oficio sea
que no podrán ser vejatorias o
policial, militar o de seguridad.
susceptibles de ofender la dignidad
o la autoestima. Pueden modificarse 5. La suspensión o separación temporal
durante la ejecución de sentencia y del cargo o ejercicio de la profesión,
no pueden extenderse más allá del cuando el delito se hubiese cometido
tiempo que dure la pena principal. Las en ejercicio de sus funciones o con
instrucciones que se pueden imponer ocasión de éstas, debiendo remitirse
serán: […] copia certificada de la sentencia al
expediente administrativo laboral y
1. Prohibición de portar cualquier tipo al colegio gremial correspondiente,
si fuera el caso” (Venezuela, Ley
de arma, en especial de fuego;
Orgánica sobre el Derecho de las
2. Abstenerse de asistir a lugares Mujeres a una Vida Libre de Violencia).

20
É importante destacar que a legislação boliviana permite a aplicação de penas alternativas para crimes de violência contra
a mulher, inclusive feminicídio, nos termos do artigo 76, parágrafo primeiro, inciso I: “En delitos de violencia hacia las mujeres,
siempre que el autor no sea reincidente, se podrán aplicar sanciones alternativas a la privación de libertad, cuando: […] 2. A
solicitud del condenado a pena privativa de libertad superior a tres años que hubiera cumplido al menos la mitad de ésta,
las sanciones alternativas no podrán superar el tiempo de la pena principal impuesta.” Tais penas acessórias podem ser
aplicadas em conjunto com outras penas alternativas, como a pena de detenção de final de semana (art. 78) e a de trabalhos
comunitários (art. 79).
29
Há penas de conteúdo pedagógico, disponer de las condiciones adecua-
que obrigam a participação em programas das para el desarrollo de los programas
educativos de orientação, a fim de alterar de tratamiento y orientación previstos
as convicções do agressor e sua conduta en esta Ley” (Nicarágua, lei 779/2012).
violenta e, com isso, evitar a reincidência
na prática desses atos.
“Artículo 62-A. El tratamiento
terapéutico multidisciplinario con-
“ARTÍCULO 82. (CUMPLIMIENTO DE
siste en un programa de inter-
INSTRUCCIONES).
vención para evaluación diagnóstica
La autoridad judicial podrá aplicar pretratamiento, intervención psico-
un plan de conducta al condenado educativa y evaluación de eficacia
cuando le sean aplicadas sanciones y seguimiento de programa, es-
alternativas que impliquen su libertad tructurado según la conducta pu-
total o parcial, en virtud del cual de- nible, realizado por profesionales
berá cumplir con instrucciones que no titulados, cualificados y acreditados
podrán ser vejatorias o susceptibles en ciencias del comportamiento y
de ofender la dignidad o la autoesti- psicología y psiquiatría clínicas, con
ma. Pueden modificarse durante la la colaboración de trabajo social y
ejecución de sentencia y no pueden enfermería en salud mental, dirigido
extenderse más allá del tiempo que a modificar las actitudes, creencias
dure la pena principal. Las instruccio- y comportamientos de la persona
nes que se pueden imponer serán: […] agresora” (Panamá, Código Penal).
4. Incorporarse a grupos o programas
para modificar comportamientos
“Artículo 67. Programas de orientación.
que hayan incidido en la realización
Quienes resulten culpables de hechos
del hecho;
de violencia en contra de las mujeres
5. Asistirá un centro educativo o deberán participar obligatoriamente
aprender un oficio” (Bolívia, lei en programas de orientación, atención
348/2013). y prevención dirigidos a modificar
sus conductas violentas y evitar la
reincidencia. La sentencia condenatoria
“Art. 50. Ejecución de la Pena
establecerá la modalidad y duración,
Quienes resulten culpables de delitos-
conforme los límites de la pena
de violencia en contra de las mujeres,
impuesta” (Venezuela, Ley Orgánica
niñas, niños y adolescentes, deberán
sobre el Derecho de las Mujeres a una
participar obligatoriamente en progra-
Vida Libre de Violencia).
mas de orientación, atención y preven-
ción dirigidos a modificar sus conduc- Penas pecuniárias também são
tas violentas y evitar la reincidencia. previstas nas legislações estudadas, como
La sentencia condenatoria establece- no México:
rá la modalidad y duración, confor-
me los límites de la pena impuesta. El “Artículo 325. Comete el delito de
Sistema Penitenciario Nacional debe feminicidio quien prive de la vida a

30
una mujer por razones de género. “Artículo 4º. Principios Retores
Se considera que existen razones de
Los principios rectores de la presente
género cuando concurra alguna de las
ley son: […]
siguientes circunstancias: […]
e) Laicidad: Se refiere a que no puede
A quien cometa el delito de feminicidio
invocarse ninguna costumbre, tradici-
se le impondrán de cuarenta a sesenta
ón, ni consideración religiosa para jus-
años de prisión y de quinientos a mil
tificar la violencia contra la mujer” (El
días multa” (México, Código Penal).
Salvador, lei 520/2012).

As legislações dos países latino- Alguns textos legislativos reconhecem


americanos foram em sua maioria explicitamente os contextos culturais e
aprovadas em contextos em que se objetiva tradicionais em que estão enredadas as
punir condutas decorrentes de padrões de práticas de violência contra a mulher:
comportamento que reproduzem a lógica
de submissão do feminino ao masculino, na “La violencia de género encuentra sus
esfera privada ou pública. Nesse sentido, é raíces profundas en la característica
válido mencionar disposições normativas patriarcal de las sociedades en las que
que expressamente impedem a invocação prevalecen estructuras de subordina-
de costumes tradicionais locais para afastar ción y discriminación hacia la mujer
a aplicação das leis: que consolidan la conformación de
conceptos y valores que descalifican
“Art. 42-A. No podrán invocarse cos- sistemáticamente a la mujer, sus acti-
tumbres o tradiciones culturales o re- vidades y sus opiniones” (Venezuela,
ligiosas para impedir la investigación Exposição de Motivos da Ley Orgánica
penal ni como eximentes de culpabi- sobre el Derecho de las Mujeres a una
lidad para perpetrar, infligir, consentir, Vida Libre de Violencia).
promover, instigar o tolerar el delito
de violencia contra las mujeres o cual- Mencione-se ainda o reconhecimento
quier persona” (Panamá, lei 82/2013). da existência de “patrones socioculturales
que sostienen la desigualdad de género y
las relaciones de poder sobre las mujeres”
“Art. 9º. Prohibición de causales de (Venezuela, artigo 1º da Ley Orgánica sobre
justificación. En los delitos tipificados el Derecho de las Mujeres a una Vida Libre
contra la mujer no podrán invocarse de Violencia), ou ainda o texto de aber-
costumbres o tradiciones culturales o tura do decreto 520/2011 de El Salvador,
religiosas como causal de justificación segundo o qual “toda agresión perpetrada
o de exculpación para perpetrar, infligir, contra una mujer, está directamente vincu-
consentir, promover, instigar o tolerar la lada con la desigual distribución del poder y
violencia contra la mujer” (Guatemala, con las relaciones asimétricas entre mujeres
decreto 22/2008). y hombres en la sociedad”. Na Guatemala21

21
De acordo com Roselyn Constantino (2006), os assassinatos de mulheres são a manifestação da negação dos direitos
humanos às mulheres e da misoginia culturalmente gravada na sociedade guatemalteca, que não teria ainda superado as
atrocidades de 36 anos de conflitos internos (1960-96) marcados pelo genocídio da população indígena. As principais vítimas
são migrantes, subempregadas nas “maquilas”, profissionais do sexo. São mulheres que não seguem o papel social que lhes é
tradicionalmente atribuído (dona de casa, mãe e esposa) e que circulam por espaços considerados masculinos (fábrica e rua).
Não há preocupação em investigar os crimes, sendo recorrente a descrição das vítimas como pessoas não merecedoras da
atenção das autoridades.
31
adotou-se perspectiva similar: com atribuição de estabelecer políticas
públicas de combate à violência fatal
“[…] El problema de violencia y contra as mulheres e (ii) estabelecimento
discriminación en contra de las de programas de ação a serem adotados
mujeres, niñas y adolescentes que ha pelas instâncias estatais para combater a
imperado en el país se ha agravado violência contra as mulheres. Neste caso,
con el asesinato y la impunidad, debido ora há a definição de programas de sensibi-
a las relaciones desiguales de poder lização e educação voltados para agentes
existentes entre hombres y mujeres, privados (vítimas, agressores e membros
en el campo social, económico, da sociedade civil), ora para agentes esta-
jurídico, político, cultural y familiar […]” tais. Além de programas de sensibilização,
(Guatemala, decreto 22/2008). constataram-se outras iniciativas, que esta-
belecem serviços públicos exclusivos ou
É difuso nas legislações o entendi- especiais para o atendimento de mulheres
mento de que a complexidade da questão em situação de violência, entre outros.
exige iniciativas mais abrangentes do
que a punição, embora sua valorização Conforme já salientado anteriormente,
seja evidente. Como reconhece o texto o papel fundamental desempenhado pelo
de abertura da legislação salvadorenha, Estado na prática direta ou na tolerância à
“es necesario contar con una legisla- violência de gênero é um ponto importante
ción que regule de manera adecuada la na compreensão do fenômeno e integrou
política de detección, prevención, aten- a política pública formulada em alguns
ción, protección, reparación y sanción, países. As propostas de capacitação de
para la erradicación de todas las formas agentes estatais, destinada a combater
de violencia contra las mujeres”. Nesse todas as formas de violência contra a
contexto, outras estratégias, que não mulher, ilustram essa preocupação:
passam necessariamente pelo uso do direito
penal, foram identificadas no conjunto de “La capacitación de los funcionarios
leis dos países da América Latina. Ações encargados de la aplicación de la ley
dirigidas à modificação dos padrões en el sector justicia, corresponderá,
socioculturais de aceitação da sujeição de según sus respectivas competencias,
mulheres e desencadeadores da violência al Tribunal Supremo de Justicia, al Mi-
podem ser encontradas, estabelecendo nisterio Público, a los ministerios con
forma de intervenção estatal que não se competência en materia del interior y
desdobra na persecução criminal, mas em justicia, de salud y demás entes involu-
políticas públicas e medidas de sensibi- crados, lo que permitirá garantizar que
lização social de diversos níveis. Dentre el personal adscrito a los órganos re-
as legislações examinadas, em metade ceptores de denuncia, los y las fiscales
pôde se observar a presença desse tipo y los jueces y juezas, reconozcan las di-
de regulação – Bolívia, Colômbia, El mensiones y características de la pro-
Salvador, Guatemala, Nicarágua, Panamá blemática de la violencia de género y
e Venezuela –, que se concretizaram a dispongan de herramientas adecuadas
partir de dois tipos centrais de medidas: para su abordaje efectivo” (Venezuela,
(i) criação de órgãos administrativos Exposição de Motivos da Ley Orgánica

32
sobre el Derecho de las Mujeres a una protección de las víctimas” (Colômbia,
Vida Libre de Violencia). lei 1.257/2008).

A partir das legislações sob estudo,


podem se apontar, simplificadamente, Há, além disso, disposições que con-
três formas de capacitação ou de apri- templam o fomento a cursos de formação
moramento do desempenho dos agentes especificamente voltados para agentes
estatais: (i) por meio da prescrição de estatais de diferentes áreas de atuação,
protocolos e guias de atuação para a no próprio sistema de justiça (não apenas
garantia dos direitos das mulheres, (ii) criminal) e, ainda, nos serviços de aten-
por meio de cursos sobre violência de dimento a mulheres em situação de
gênero, e (iii) como requisito de ingresso violência. De acordo com esses textos
em cargos públicos. São exemplos de legais, é necessário envolver diferentes
previsão de protocolos: instituições e áreas de conhecimento para
prevenir e combater a violência contra as
mulheres e o feminicídio, com foco tanto
“ARTÍCULO 9. (APLICACIÓN).
na mudança social quanto nas vítimas.
Para la aplicación de la presente Ley,
los Órganos del Estado, las Entidades
“Artículo 17. Contenidos de la Política
Territoriales Autónomas e Institucio-
Nacional para el Acceso de las
nes Públicas, en el marco de sus com-
Mujeres a una Vida Libre de Violencia
petencias y responsabilidades respec-
La Política Nacional, deberá contener
tivas, deberán:
[…] programas de sensibilización,
1. Adoptar, implementar y supervi- conocimiento y especialización para el
sar protocolos de atención especia- personal prestatario de servicios para
lizada, en las diferentes instancias de la detección, prevención, atención y
atención, para el restablecimiento de protección de los casos de violencia
los derechos de mujeres en situación contra las mujeres, así como Protocolos
de violencia” (Bolívia, lei 348/2013). de Actuación y Coordinación con las
diferentes Instituciones del Estado.

“Artículo 13. Medidas en el ámbito de la […]


salud. El Ministerio de la Protección So- Artículo 22. Responsabilidades del
cial, además de las señaladas en otras Ministerio de Gobernación […]
leyes, tendrá las siguientes funciones:
Entre otras, podrán adoptarse las
medidas siguientes:
1. Elaborará o actualizará los
protocolos y guías de actuación de […]
las instituciones de salud y de su 2. Atención sanitaria, médica y psico-
personal ante los casos de violencia social que tome en cuenta el entorno
contra las mujeres. En el marco de la de riesgo de violencia y necesidades
presente ley, para la elaboración de específicas de las mujeres.
los protocolos el Ministerio tendrá
especial cuidado en la atención y […]

33
Artículo 23. Responsabilidades te servicios públicos, en el ámbito de
del Ministerio de Salud Pública y sus respectivas competencias, adopta-
Asistencia Social rán y desarrollarán programas de for-
mación específica relativos a la cultura
El Ministerio de Salud Pública y Asis-
contra la violencia, igualdad y no dis-
tencia Social, será el responsable de:
criminación por razón de sexo y sobre
[…] equidad de género, entre otros, los
b) Incorporar las medidas necesarias cuales deberán ser permanentemente
para el seguimiento y evaluación del actualizados y serán aplicados a todo
impacto en la salud de las mujeres el personal, independientemente de su
afectadas por la violencia, dando jerarquía, sin excepción y con carácter
especial atención a la salud mental obligatorio” (Bolívia, lei 348/2013).
y emocional.
Ainda sobre o tema de capacitação
[…]
de agentes estatais, as leis contêm normas
d) Garantizar la no discriminación de que procuram assegurar a difusão capila-
las mujeres en cuanto al acceso de rizada da lógica de erradicação de formas
los servicios de salud, así mismo, que de violência de gênero contra as mulheres,
el personal de salud no ejerza ningún com ênfase nas autoridades locais de
tipo de violencia a las usuarias de comunidades tradicionais.
los servicios, sin que anteponga sus
creencias, ni prejuicios durante la
“Artículo 24. Los municipios y las au-
prestación de los mismos.
toridades comarcales tendrán las
[…] siguientes atribuciones, acordes con
g) Garantizar el cumplimiento en todo los mandatos de los convenios inter-
el Sistema Nacional de Salud, de las nacionales, en adición a las que les
Normativas Internas en materia de pro- atribuye la Ley:
cedimientos de atención para mujeres,
1. Incluir el tema de violencia contra las
así como, el conocimiento y acceso de
mujeres y formación en las convenci-
las mismas a esos procedimientos” (El
ones internacionales de protección de
Salvador, decreto 520/2011).
los derechos de las mujeres que son
Ley de la República, en los programas
“ARTÍCULO 12. (FORMACIÓN). de capacitación y desarrollo municipal
y comarcal. Estos temas deben ser
Los Órganos del Estado, el Ministerio incluidos en la formación continua y
Público e Instituto de Investigaciones permanente del personal que labora
Forenses, la Policía Boliviana, la Defen- en las Corregidurías, las autoridades
soría del Pueblo, las Fuerzas Armadas, tradicionales y las personas que
la Procuraduría General del Estado, la atienden víctimas, con una periodicidad
Escuela de Gestión Pública Plurinacio- no menor de un año, así como en los
nal, la Escuela de Jueces del Estado, programas de difusión e información,
las Entidades Territoriales Autónomas que contribuyan a erradicar la violencia
y toda otra entidad pública o que pres- contra las mujeres en todas sus formas,

34
garantizar el respeto a la dignidad de con el perfil siguiente: […]
las mujeres y fomentar la igualdad
c) Especialización en materia de dere-
entre hombres y mujeres. Para ello,
chos de las mujeres.
se validarán en los distintos idiomas
indígenas nacionales y sistemas de d) Sensibilización en el respeto y cum-
comunicación, los módulos a utilizarse plimiento a los derechos humanos de
con el CONVIMU […]” (Panamá, lei las mujeres” (El Salvador, lei 520/2011).
82/2013).
A seleção de candidatos que não
Outra espécie de disposição normativa tenham histórico de prática de violência
atinente ao tema dos agentes públicos contra a mulher pode ser conferida na Ley
verifica-se no processo de escolha para Integral para Garantizar a las Mujeres una
integrar os quadros burocráticos estatais, Vida Libre de Violencia, da Bolívia:
que se expressa de dois modos: (i) exigência
de conhecimento temático adicional ao “ARTÍCULO 13. (ACCESO A CARGOS
conhecimento técnico e (ii) exigência de PÚBLICOS).
histórico pessoal que não registre problemas I. Para el acceso a un cargo público
relacionados à violência de gênero. No que de cualquier Órgano del Estado o ni-
se refere ao primeiro, consta como requisito, vel de administración, sea mediante
para ingresso em cargos públicos que elección, designación, nombramiento
envolvam cuidado, investigação e sanção o contratación, además de las previs-
de casos envolvendo mulheres em situação tas por Ley, se considerará como un
de violência de gênero, a formação ou requisito inexcusable el no contar con
experiência comprovada sobre gênero ou antecedentes de violencia ejercida
direitos das mulheres. contra una mujer o cualquier miembro
de su familia, que tenga sentencia eje-
“ARTÍCULO 13. (ACCESO A CARGOS cutoriada en calidad de cosa juzgada.
PÚBLICOS). […] El Sistema Integral Plurinacional de
Prevención, Atención, Sanción y Erra-
II. Para la designación en cargos públi-
dicación de la Violencia en razón de
cos que tengan relación con la atención,
protección, investigación y sanción Género – SIPPASE certificará los ante-
de casos de mujeres en situación cedentes referidos en el presente Artí-
de violencia, se requerirá además, la culo” (Bolívia, lei 348/2013).
formación o experiencia probada en
materia de género y/o derechos de las A orientação legislativa em capacitar
mujeres” (Bolívia, lei 348/2013). funcionários públicos pode ser entendida
como forma de tornar o Estado o centro
“Artículo 15. Integrantes de la Comisión de propagação de condutas exemplares no
Técnica Especializada que se refere à conscientização, à sensibili-
zação e ao combate de violência contra as
Para ser integrante de la Comisión mulheres, intenção presente na Ley Espe-
Técnica Especializada, las personas cial Integral para una Vida Libre de Violencia
representantes […] deberán cumplir para las Mujeres, de El Salvador:

35
“Artículo 27. Otras Instituciones [del daciones de los organismos inter-
Estado directamente responsables nacionales, en materia de Derechos
de la detección, prevención, atención, Humanos de las mujeres” (Colômbia,
protección y sanción de la violencia lei 1.257/2008).
contra las mujeres. […] Dichas institu-
ciones garantizarán que la formación “II. El Estado de Nicaragua ha suscrito
de su personal capacitador sea sis- y ratificado diversos instrumentos
temática y especializada en la sensi- internacionales como la “Convención
bilización, prevención y atención de para la Eliminación de todas las For-
las mujeres que enfrentan hechos de mas de Discriminación contra la Mu-
violencia. Dichos capacitadores, de- jer”, la “Convención Interamericana
berán conocer y transmitir el enfoque para Prevenir, Sancionar y Erradicar
de género, enfatizando en las causas la Violencia Contra la Mujer”, la “Con-
estructurales de la violencia contra las vención sobre los Derechos del Niño”,
mujeres, las causas de desigualdad de y la “Convención Internacional sobre
relaciones de poder entre hombres y los Derechos de las Personas con
mujeres, y las teorías de construcción Discapacidad”, entre otras. Estos
de las identidades masculinas” (El Sal- instrumentos obligan al Estado a
vador, decreto 520/2011). establecer normas especiales que
aseguren una efectiva igualdad ante
Colocar o Estado no cerne da solução la Ley, a eliminar la discriminación y
do problema, desprivatizando o conflito prohibir explícitamente la violencia
baseado no gênero e buscando transformar hacia la mujer en cualquiera de sus ma-
as posturas das instituições – e por conse- nifestaciones” (Nicarágua, lei 779/2012).
guinte suas respostas –, é uma ação que
“Artículo 2. […]
pode ser interpretada como reação às deci-
sões proferidas pelos órgãos do Sistema Esta Ley debe interpretarse según los
Interamericano de Direitos Humanos que principios contenidos en la Constituci-
condenaram Estados latino-americanos ón Política de la Republica, las leyes y
pela ausência da devida diligência na los tratados o convenios internaciona-
condução de casos envolvendo violência les de derechos humanos ratificados
de gênero contra as mulheres, em espe- por la República de Panamá, como
cial o feminicídio. A referência à esfera la Convención sobre la Eliminación
internacional aparece explicitamente nos de todas las Formas de Discrimina-
documentos nacionais: ción contra la Mujer y su Protocolo
Facultativo y la Convención Intera-
“Artículo 9°. Medidas de sensibilización
mericana para Prevenir, Sancionar y
y prevención. […]
Erradicar la Violencia contra la Mu-
El Gobierno Nacional: […] jer, o Convención de Belém do Pará.
[…]
3. Implementará en los ámbitos men-
cionados [servidores públicos que Artículo 15. Para los fines de esta
garanticen prevención, protección y Ley, el Estado tendrá las siguientes
atención a las mujeres] las recomen- obligaciones: […]

36
4. Implementar en todos los ámbitos a instituição de políticas públicas de capa-
las recomendaciones de los organis- citação de agentes estatais não estão
mos internacionales en materia de voltadas de maneira específica para o
derechos humanos de las mujeres, y tema do feminicídio, mas fazem parte de
promover la remoción de patrones programas mais amplos. Isso sinaliza a
socioculturales que conlleven y sos- preocupação dos diferentes trabalhos legis-
tengan la desigualdad de género y lativos da América Latina em combater,
las relaciones de poder sobre las mu- por meio de treinamento dos agentes esta-
jeres” (Panamá, lei 82/2013). tais, não apenas o feminicídio, mas outras
modalidades de violência de gênero contra
Por fim, note-se que a construção e as mulheres.

37
Tratados OEA

Países ICGPRW ICGCRW PSJCR APSJCR CBP ICAFDI

Argentina X X X X X
Bahamas X
Barbados X X
Belize X
Bolívia X X X X X
Brasil X X X X X
Chile X X X X
Colômbia X X X X X
Costa Rica X X X X X
Cuba X
República Dominicana X X X X
Equador X X X X X
El Salvador X X X X X
Guatemala X X X X X
Guiana X
Haiti X X X
Honduras X X X X X
Jamaica X X
México X X X X X
Nicarágua X X X X X
Panamá X X X X X
Paraguai X X X X X
Peru X X X X
Suriname X X X X X
Trinidad e Tobago X X
Uruguai X X X X X
Venezuela X X X X

ICGPRW: Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Políticos às Mulheres


ICGCRW: Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Civis às Mulheres
PSJCR: Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica
APSJCR: Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos na Área de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais – Protocolo de São Salvador
CBP: Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres – Convenção
de Belém do Pará
ICAFDI: Convenção Interamericana contra Todas as Formas de Discriminação e Intolerância

38
Tratados ONU

Países ICESCR ICCPR CEDAW CPRW PPSPTP PCSTWC FPCSTP CNMW CCMMAMRM

Argentina X X X X X X
Bahamas X X X X X
Barbados X X X X
Belize X X X
Bolívia X X X X X
Brasil X X X X X X X X X
Chile X X X X X
Colômbia X X X X X
Costa Rica X X X X X
Cuba X X X X X
República Dominicana X X X X X
Equador X X X X X
El Salvador X X X X X
Guatemala X X X X X X
Guiana X X X X
Haiti X X X X X X
Honduras X X X X
Jamaica X X X X X X
México X X X X X X X
Nicarágua X X X X X X
Panamá X X X X
Paraguai X X X X X
Peru X X X X X
Suriname X X X X
Trinidad e Tobago X X X X X
Uruguai X X X X
Venezuela X X X X X X

ICESCR: Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais


ICCPR: Pacto pelos Direitos Civis e Políticos
CEDAW: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
CPRW: Convenção sobre os Direitos Políticos das Mulheres
PPSPTP: Protocolo para Prevenir, Erradicar e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças,
suplementar à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
PCSTWC: Protocolo Complementar à Convenção para a Erradicação do Tráfico de Mulheres e Crianças
FPCSTP: Protocolo Final à Convenção para a Erradicação do Tráfico de Pessoas e da Exploração
da Prostituição
CNMW: Convenção sobre a Nacionalidade das Mulheres Casadas
CCMMAMRM: Convenção sobre Consentimento ao Casamento, Idade Mínima para o Casamento e Registro
de Casamentos

39
III. ASSASSINATOS DE MULHERES
NO SISTEMA DE JUSTIÇA
CRIMINAL BRASILEIRO
O estudo qualitativo de processos para a pesquisa, buscando-se contemplar
judiciais atinentes aos crimes de homi- a variedade regional. O estudo explora-
cídio tentado e consumado de mulheres tório revelou particularidades nos casos
foi a forma escolhida para acessar as que tramitaram nas comarcas das Capi-
questões que o fenômeno do feminicídio tais e nas comarcas do interior, de modo
íntimo suscita no interior do sistema de que ambas as realidades foram conside-
justiça criminal brasileiro. Procurou-se radas. Processos judiciais de Santo André,
contemplar a representação das cinco cidade da região metropolitana de São
regiões do país e escolher localidades que Paulo, também integraram o universo da
apresentassem altas taxas de assassinatos pesquisa. Foram preliminarmente exami-
de mulheres em comparação com o pano- nados 198 acórdãos, a partir dos quais
rama nacional, de acordo com os dados foram selecionados 64, tendo em vista os
do Mapa da Violência 2012. seguintes critérios: regularidade, extremi-
dade, singularidade e temporalidade (data
A estratégia utilizada para acessar do fato anterior e posterior à Lei Maria da
o material da pesquisa foi a consulta aos Penha).22 Após a seleção, solicitaram-se os
bancos de jurisprudência disponíveis nos processos judiciais na íntegra, por inter-
sites dos Tribunais de Justiça (TJ) esta- médio de ofícios dirigidos aos Tribunais de
duais, a partir das palavras “homicídio E Justiça estaduais.23 Foram analisados em
mulher” e “homicídio E doméstica”. No profundidade 34 processos judiciais.
curso da consulta, percebeu-se que cada
localidade tem suas particularidades no Para recompor o trâmite dos casos,
que diz respeito ao desenho e à alimen- foram privilegiadas as seguintes peças,
tação do banco de jurisprudência. Essa sem prejuízo da leitura capa a capa:
primeira aproximação em relação aos sites boletim de ocorrência, auto de prisão em
dos TJs levou à adoção de outro critério flagrante, laudos, termo de depoimento
de escolha das localidades, qual seja, a de testemunha, termo de interrogatório,
viabilidade para identificar os acórdãos de relatório da autoridade policial, denúncia,
interesse para o estudo a partir das bases sentença de pronúncia, ata da sessão de
de jurisprudência à disposição. julgamento, sentença final, recursos e
acórdão. Esse conjunto de documentos
Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, foi apreciado com especial atenção para
Pará e Paraná foram os estados escolhidos a violência doméstica e para o grau de

22
Os critérios para a escolha do caso, como aponta Álvaro Pires (2008), não são estanques. Pelo contrário, operam em
competição ou complementaridade. Os critérios aqui utilizados também se coadunam com a proposta desse autor, que
menciona: pertinência teórica (em relação aos objetivos iniciais da pesquisa), as características e a qualidade intrínseca do
caso, a tipicidade ou exemplaridade, a possibilidade de aprender com o caso escolhido, seu interesse social, sua acessibilidade
à investigação.
23
De modo geral, houve significativa demora e dificuldade na obtenção dos autos dos processos judiciais. Na maior parte
dos casos o acesso aos autos só foi obtido graças à intervenção da Secretaria de Reforma do Judiciário que reforçou nossas
solicitações, o que demonstra um cenário de dificuldades para a realização de pesquisa empírica no Judiciário brasileiro.
40
incorporação do paradigma proposto pela poderes simétricos de gênero ao
Lei Maria da Penha nas práticas das insti- afirmar o masculino-violento sobre o
tuições e dos(as) profissionais do direito. corpo feminino”.

Ao longo da análise dos autos dos O exame dos casos que são objeto da
processos, percebeu-se sua insuficiência presente pesquisa possibilitou perceber a
no que concerne ao que acontece nas recorrência e a relevância de elementos
plenárias do tribunal do júri: na maior parte factuais que revelam aspectos impor-
das vezes, há o registro apenas de um tantes sobre o fenômeno do feminicídio,
brevíssimo resumo das falas, sem que haja bem como o tratamento judicial que lhe é
a transcrição. Dessa maneira, para compre- conferido. Por se tratar de pesquisa quali-
ender o funcionamento desse momento tativa, reitera-se que essa análise deve
fundamental, restou imperativo à equipe ser entendida como adstrita ao universo
de pesquisa o acompanhamento de plená- analisado, ainda que se possam apontar
rias, o que foi feito no Tribunal do Júri do tendências mais gerais a partir da apre-
Fórum Central Criminal da Barra Funda, em ensão desse material empírico.
São Paulo.
1. COMO MORREM AS MULHERES?
Entrevistas semidirigidas com
profissionais do direito atuantes na área Faca, peixeira, canivete. Espingarda,
foram realizadas com o intuito de conhecer revólver. Socos, pontapés. Garrafa de
suas percepções sobre a violência de vidro, fio elétrico, martelo, pedra, cabo de
gênero e o papel e os desafios do sistema vassoura, botas, vara de pescar. Asfixia,
de justiça criminal diante do problema. veneno. Espancamento, empalamento.
Emboscada, ataques pelas costas, tiros à
queima-roupa. Cárcere privado, violência
sexual, desfiguração. Quando se volta o
Os processos criminais são docu- olhar para a maneira pela qual foi infligida a
mentos que consolidam a construção de violência, chamam a atenção a diversidade
fatos sociais e cristalizam percepções dos dos instrumentos usados no cometimento
diversos atores envolvidos, constituindo do crime e a imposição de sofrimento às
uma fonte privilegiada para acessar as vítimas anteriormente à execução.
representações que modulam as respostas
das instituições jurídicas. Em se tratando A arma branca (faca, peixeira e cani-
do assassinato de mulheres, a leitura vete) foi identificada em 14 dos 34 casos
dos processos permite, nas palavras de analisados.24 A quantidade de facadas
Lourdes Bandeira (2008: 12): verificada em algumas situações é expres-
siva – há processos em que as vítimas
“Desvendar sofisticados mecanismos foram atingidas por dezenas de facadas,25
socioculturais, econômicos, relacio- o que tende a indicar tanto a intenção de
nais e simbólicos já institucionaliza- provocar aflição suplementar anterior à
dos em vários espaços subjetivos e morte quanto o desejo de aniquilar fisica-
institucionais da sociedade brasileira, mente a mulher. As facadas são profundas
os quais negam a possibilidade de e não raro atravessam o corpo. As regiões

24
Processos 2, 4, 6, 8, 9, 10, 17, 19, 20, 21, 22, 25 e 33.
25
Processos 2, 6 e 10.
41
em que as agressões foram perpetradas “A depoente esclarece que a faca
geralmente são as vitais, como tronco e utilizada pelo conduzido é nova e esta
pescoço, e algumas vezes o ataque se dá foi comprada pelo conduzido sábado
pelas costas. passado [...] e o mesmo chegou em
casa informando que tal faca era para
Em um caso bastante emblemá- ‘fincar’ na vítima; que, então, a depoente
tico, as facadas foram dirigidas a seios e tomou a faca da mão do conduzido e
vagina, fato que suscita o intuito de atingir a guardou na sua casa, sendo que ele
a especificidade do corpo feminino. Ao a pegou sem a depoente perceber
final do ataque, a faca restou encravada, e acabou cumprindo o prometido”
até a metade do cabo, no peito da vítima.26 (trecho de depoimento de testemunha
Outro processo judicial versa sobre a morte no inquérito policial do processo 2).
bastante violenta de uma mulher por meio
de esgorjamento provocado por uma faca,
dentro de um veículo.27 Essa peculiaridade “Na fatídica tarde, o denunciado [...] já
é relatada nas entrevistas realizadas: portando a faca [...], deslocou-se até
o prédio onde a vítima passou a re-
“Muitas vezes a mulher já [está] mor- sidir após a separação. Lá chegando,
ta [e] as facadas continuam, como chamou pela vítima [...] fazendo com
se o agressor, o assassino dissesse que ela, inocentemente, descesse até
‘ninguém mais vai te ver bonita, seu o saguão do edifício. [...] Nesse mo-
corpo é meu, então eu o destruo para mento [...], golpeou-a violentamente
que ninguém mais o use’” (Promoto- por dezenas de vezes [...]” (trecho da
ra de Justiça, MP-BA). denúncia do processo 6).

“Uma coisa que eu percebo é que “[...] o implicado retirou uma faca de
geralmente são crimes com facadas um embrulho, segurou a vítima pelos
múltiplas, e, na outra vara, eu vi muito cabelos e desferiu uma facada no ab-
com fogo. Eu não sei se é a descarga dômen dela. [A vítima] então tentou
de raiva, eu não sei qual é o fator” tirar a faca das mãos [do agressor],
(Juíza de Direito, TJ-BA). ferindo-se nas duas mãos” (trecho da
denúncia do processo 9).

A partir da leitura dos autos dos


processos judiciais, percebe-se que a faca “Na manhã dos fatos, visando execu-
não é um objeto circunstancial para o tar seu plano criminoso, o ora denun-
cometimento do crime, ou seja, não é um ciado encaminhou-se até a moradia
instrumento que os réus tinham à mão no da vítima, já em poder de uma faca, e,
momento de uma discussão ou de uma após pular o muro de acesso ao cor-
altercação física e que foi então usado redor lateral, percebendo que a porta
para atacar as mulheres. Pelo contrário, a da cozinha estava aberta, ingressou
presença da faca aparece como elemento em seu interior” (trecho da denúncia
do planejamento dos crimes: do processo 19).

26
Processo 8.
27
Processo 20.
42
A arma de fogo aparece em 11 da rua carregando no colo seu bebê,
processos.28 Em algumas ocasiões, é pos- o denunciado efetuou vários disparos
sível apreender dos autos que a vítima foi com arma de fogo contra a vítima,
alvejada à queima-roupa, em circunstân- fugindo imediatamente em sua
cias em que o autor se valeu da confiança motocicleta” (trecho da denúncia do
da mulher para se aproximar. processo 7).

“Nesse contexto, no dia dos fatos, o


“O interrogando retornou a Salvador e
autor chegou à residência da ofendida
há cerca de 15 dias ficou planejando o
de forma amigável, e, sob o pretexto
crime, sendo que sábado [...] comprou
de que estava com o ouvido inflamado,
a arma do crime [...] sendo que duran-
aproximou-se dela. Ocorre que, no mo-
te o dia de hoje ficou na praça espe-
mento em que estava sozinho com ela,
rando a hora de [a vítima] passar; que
agarrou-a pelo braço e, covardemente,
[a vítima] entrou numa casa e ao sair, o
efetuou disparos de arma de fogo nas
interrogando ao se aproximar, a cerca
costas dela, à queima-roupa. Não sa-
de um metro de distância [da vítima]
tisfeito, efetuou outros disparos, quan-
tirou o revólver da cintura e fez cinco
do ela já estava caída no chão” (trecho
disparos contra a vítima, que caiu [...]”
da denúncia do processo 3).
(trecho do interrogatório policial do
processo 29).
“A vítima estava em sua casa, quando
lá chegou o denunciado (seu marido), Em processo judicial que diz respeito
em aparente atitude de paz [...]. Em a um homicídio em que não havia relação
seguida, o denunciado, primeiramen- íntima entre autor e vítima, o réu teria feito
te, sentou ao lado da vítima no sofá da uso da substância Diazepam dissolvida em
sala e pediu para que uma de suas ne- refrigerante para dopar a amiga de sua
tas fosse pegar um copo de água; de- enteada. Em seguida praticou violência
pois pediu que a outra neta fosse pe- sexual, com empalamento. A vítima sofreu a
gar um copo de café; e quando ficou ruptura da região vaginoperineal, antes de
sozinho com [a vítima], [...] sacou um falecer em decorrência de duas pancadas
revólver que tinha guardado no bolso na cabeça. Segundo o laudo pericial, havia
de sua calça e efetuou dois disparos na ainda sinais de afogamento no corpo
direção da vítima” (trecho da denúncia seminu encontrado boiando no rio.29
do processo 27).
Arsênico foi o instrumento esco-
Outros processos revelam que os lhido por um dos réus dos processos
réus abordaram as vítimas em embos- examinados para matar, de forma lenta e
cadas, impossibilitando-lhes a defesa: cruel, a companheira. Ao longo de dois
anos ele ministrou o veneno misturado à
“[...] Aproveitando-se do fato de comida da vítima, que passou por diversas
a vítima ter aberto o portão para hospitalizações por conta de problemas
receber compras, saindo para o meio gastrointestinais, mas não veio a falecer.30

28
Processos 3, 5, 7, 15, 16, 23, 24, 27, 28, 29 e 31.
29
Processo 32.
30
Processo 30.
43
A ocorrência de cárcere privado foi que o denunciado, inconformado com
verificada em dois processos criminais. o término do relacionamento, vinha
Em um deles, o réu invadiu o quarto de ameaçando a vítima de matá-la caso
sua ex-companheira, trancou a porta para se envolvesse amorosamente com
impedir que ela fugisse e que os fami- outra pessoa, o que na concepção
liares viessem em seu socorro, e desferiu [do denunciado] seria uma traição”
golpes de faca contra a vítima, atingindo- (trecho da denúncia do processo 6).
lhe pescoço e ombros. Fugiu pela janela,
deixando para trás a ex-companheira
esvaindo-se em sangue. Tudo ocorreu na “Segundo se apurou, o denunciado
presença do filho do casal, então com e a vítima encontravam-se no
três anos de idade.31 Em outro processo interior de sua residência (pois
que integrou o material da pesquisa, o são companheiros), sendo que, em
cárcere privado foi acompanhado de determinado momento, o agente se
tortura e ameaças. O réu, após espancar irritou com [a vítima] ao descobrir
com socos e pontapés sua companheira, que a mesma havia cozinhado feijão
que ficou com hematomas na face e nos para a filha, consumindo parte do gás
seios, manteve-a presa em casa enquanto que havia sido por ele adquirido. Ante
a ameaçava com água fervente e uma faca. confirmação, por parte da vítima, [...]
O réu destacou que se a vítima procurasse o ora denunciado se apoderou de uma
a polícia, ele mataria a ela e sua mãe.32 faca e desferiu diversos golpes contra
a mesma [...]” (trecho da denúncia do
Uma vítima fatal e outra sobre- processo 2).
vivente ficaram desfiguradas após a
violência sofrida. No primeiro caso, o corpo
“Encontrei ela [...] e ela disse-me
da vítima foi encontrado em um quarto de
palavras obscenas. Ela disse-me que
motel, com pés e mãos amarrados, roupa
o pênis dele era maior que o meu,
entrelaçada no pescoço e uma peça de
que eu era muito anãozinho para ela,
roupa na boca. Após espancar a vítima
e que com ele fazia sexo oral e anal
na cabeça e no rosto, o réu estrangulou
e que ele era melhor do que eu na
a vítima, causando-lhe a morte. Com a
cama. Aí minha vista embaralhou e
vítima inconsciente, colocou soda cáus-
aconteceu essa tragédia [...]” (trecho
tica em sua boca.33 No segundo caso, o
do interrogatório judicial do réu do
réu abordou a ex-companheira na rua,
processo 21).
alegando que queria conversar. Tendo sido
o pedido recusado, o réu fez um disparo
de espingarda municiada com chumbinho “O comportamento negativo da vítima,
contra o rosto da vítima, causando-lhe inicialmente em namorar na casa na
lesões na face.34 frente do bebê e em se dirigir contra o
acusado com chacotas, traduzidas em
2. POR QUE MORREM AS MULHERES? ofensas diretas (‘corno’), expressão de
desprezo e deboche, foi a causa deter-
“Depreende-se do inquérito policial minante da ação do acusado que cei-
31
Processo 19.
32
Processo 12.
33
Processo 11.
34
Processo 31.
44
fou a vida vítima” (trecho da resposta dirigiu-se à polícia e, em decorrência disso,
à acusação do processo 7). foi atingida na cabeça por um golpe de
martelo perpetrado pelo companheiro da
“[...] que a vítima começou a discu- filha, que resultou em lesões corporais de
tir com o declarante dizendo que ele natureza grave. Outro processo judicial que
estava conversando com os colegas a foi acessado pela pesquisa se refere à morte
respeito de mulheres que estavam na de uma advogada:
comemoração do batizado [...]; que
o declarante pediu para que a vítima “Insatisfeita [com o casamento], Z. de-
aguardasse que seus amigos fossem cidiu separar-se. Para tanto, contratou
embora para que conversassem sobre [a vítima] que era advogada, para que
aquele assunto; que a vítima disse para adotasse as medidas cabíveis e neces-
o declarante ‘então some para lá, vai sárias para a separação do casal. [...]
lamber a bunda desses seus colegas’ [A vítima] estava sentada na cadei-
[...]; que após os dizeres da vítima o ra giratória quando foi surpreendida
declarante pegou uma arma [...] e des- pelo acusado que, aproximou-se e, a
feriu disparos contra a vítima” (trecho curta distância, sacou o revólver e efe-
do interrogatório policial do réu do tuou o primeiro disparo que atingiu o
processo 5). dedo médio da mão esquerda, acertou
o pescoço do lado direito e saiu pelas
Discussões por razões variadas costas. [...] Na sequência, [o denun-
foram mencionadas como motivo para o ciado] agarrou a vítima pelos cabelos,
cometimento do crime: término de rela- puxou a cabeça para a frente, abai-
cionamento, compra de drogas,35 uso do xando-a, e efetuou o segundo disparo
gás de cozinha. Em algumas situações, certeiro [...]” (trecho da denúncia do
mobiliza-se o argumento de que a ação do processo 34).
autor foi uma reação à conduta da mulher: a
vítima permitiu a entrada de um homem em Na maior parte do material analisado,
casa na ausência do companheiro,36 a vítima alegações relativas a ciúmes ou senti-
desferiu um tapa no rosto do marido,37 a mento de posse em relação à vítima38 e
vítima disse para o marido “lamber a bunda” inconformismo com o término do rela-
dos amigos, a vítima chamou o ex-compa- cionamento39 apareceram nos processos.
nheiro de “corno”, a vítima disse que o pênis “Se não for minha, não vai ser de mais
do ex-companheiro era pequeno. ninguém” é uma frase que aparece em mais
de um processo,40 atribuída ao autor do
Duas vítimas foram enredadas em crime, e que exprime a ideia corriqueira
conflitos de terceiros e por isso sofreram de que a vontade da mulher de se separar
violência. Na primeira situação, uma mulher deve sucumbir ao desejo do namorado,
foi espancada, submetida a cárcere privado companheiro ou marido de manter o rela-
e ameaçada pelo companheiro. Quando cionamento. Não bastante, constata-se, nos
sua mãe tomou conhecimento dos fatos, discursos dos autores dos crimes, a expec-

35
Processo 10.
36
Processo 18.
37
Processo 1.
38
Processos 2, 4, 6, 8, 9, 11, 14, 15, 16, 18, 21, 23, 26, 27 e 28.
39
Processos 3, 6, 7, 8, 9, 13, 14, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 27, 29 e 31.
40
Processos 9 e 27, por exemplo.
45
tativa de fidelidade dessa mulher, mesmo recíprocas entre o casal ocorriam com
após a separação, já que o envolvimento frequência. No entanto, a vítima nunca
posterior da mulher com outra pessoa foi buscou o auxílio das autoridades
apontado como motivo do crime.41 locais em razão das ameaças feitas
pelo esposo, que prometia matá-la
A leitura das narrativas processuais caso a mesma ‘denunciasse’” (trecho
permite ainda inferir que a violência fatal do relatório da delegada de polícia
é o desfecho em alguma medida previsível que consta do processo 1).
de relacionamentos em que são comuns
xingamentos, ameaças, agressões. É
bastante presente, na análise dos femi- “Que há cerca de 15 dias sua filha apa-
nicídios íntimos, o histórico de violência receu com o rosto lesionado, porém
doméstica na relação entre vítimas e mesmo com insistência do marido da
autores.42 Esse convívio violento por muitas depoente [...] a mesma [a vítima] não
vezes mostrou-se naturalizado tanto pela veio registrar BO neste DP; que sua
mulher quanto pelo homem ou por teste- filha lhe confidenciou [...] que havia
munhas envolvidas. As partes, quando sofrido ameaça de morte pelo [indi-
inquiridas a respeito da existência de ciado], caso o abandonasse” (trecho
violência física ou psicológica, confirmam de depoimento de testemunha co-
que ela ocorria, como na relação de qual- lhido na fase de inquérito policial do
quer casal. Em diversos momentos a frase processo 16).
“mas que casal não tem seus problemas?”
(e congêneres) aparece nos processos, em As entrevistadas confirmam que isso
particular em peças da defesa do acusado, é comum a muitos casos:
sustentando que as agressões, ainda que
condenáveis, compunham a dinâmica do
“[...] o homem, ele não puxa a arma
relacionamento do casal, havendo inclu-
para matar a primeira vez. A primeira
sive alegações de que a vítima também
reação do homem não é matar. Antes
agredia fisicamente o acusado.
ele já tentou destruir a autoestima da
mulher com violência psicológica, com
Relatos das vítimas e das testemu-
ameaças, ele já atingiu a integridade
nhas sobre a existência de um ciclo de
física da mulher de outras formas e isso
violência doméstica, em que períodos de
vai num crescendo. Na verdade acho
agressões se revezam com períodos de
até que toda vez que ela dá a volta no
reconciliação, aparecem com frequência.
ciclo da violência, essa violência tende
Na vasta maioria dos casos analisados, foi
a se agravar” (Defensora Pública,
possível depreender que o homicídio se
DPE-BA).
deu não como um evento descolado da
vivência do casal, mas sim como momento “[...] Outra característica que também
culminante de uma trajetória violenta e é muito presente e que muitos colegas
que nunca foi levada ao sistema de justiça. relatam é que normalmente quando
essa mulher é morta, ainda que ela
“A segunda testemunha [...], irmã da não tenha prestado nenhuma queixa
vítima, mencionou que as agressões em nenhuma delegacia, ao conversar

41
Processos 7, 9 e 19, por exemplo.
42
Processos 1, 2, 3, 4, 6, 9, 10, 12, 13, 14, 16, 19, 22, 23, 27, 28, 29 e 31.
46
com as testemunhas e os familiares, se indivíduo” (Promotora de Justiça,
observa que foi um crime crescente. MP-BA).
Essa mulher já vivia num contexto de
ameaça, de lesão corporal leve, de Embora um fato pontual possa ser
lesão corporal grave, até chegar ao alegado como o estopim, a violência
homicídio. O homicídio, na grande parece estar entranhada na própria desi-
maioria das vezes, na grande maioria gualdade entre homens e mulheres que
dos casos, tem um histórico pretérito caracteriza as histórias captadas pela
de violência. Não é assim ‘tive ciúmes pesquisa. Entretanto, o pano de fundo
de você, acionei o gatilho e matei’. da desigualdade de gênero raramente é
Não é assim”. (Promotora de Justiça, considerado pelo sistema de justiça, que
MP-BA). privilegia uma visão descontextualizada
do ato de violência. As formas mesmas de
É marcante, nos processos anali- incriminação e penalização adotadas pelo
sados, a recorrência à ingestão de bebida sistema de justiça obscurecem o histórico
alcoólica como justificativa, apresentada e o substrato do conflito que redundou
não só pelo acusado, mas também por no crime, refletindo-se na condução dos
vítimas sobreviventes, para os comporta- processos, que seguem a mesma lógica.
mentos agressivos. Isso foi constatado em O centralismo da discussão em torno da
mais da metade dos casos. Ao se enfatizar motivação do autor – cara à própria estru-
a discussão pontual ou o uso de álcool tura do direito penal – mitiga a carga
ou drogas pelo autor do crime, todo o simbólica do ato praticado e distancia o
contexto é deixado de lado, como ressalta direito do papel de enfrentamento estru-
a promotora de justiça em entrevista: tural da violência contra a mulher.

“[...] a motivação é o egoísmo, a 3. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DAS


tentativa de possuir e subjugar o VÍTIMAS, DOS AGRESSORES E
outro. O álcool, as drogas e o ciúme DO GÊNERO
são os gatilhos ou as desculpas que
são utilizadas para esses crimes Em relação à atuação do sistema
hediondos. Então para mim não de justiça perante o feminicídio, um dos
existem os fundamentos de que aspectos que merecem aprofundamento
se matou por estar bêbado ou é a construção da imagem da vítima e do
drogado, ou por conta disso ou autor do crime na narrativa construída ao
daquilo. Acho que esses fatores longo do processo, por meio dos múltiplos
acionam gatilhos dessa violência atores que nele intervêm. Foram detec-
que está inerente àquele sujeito, tados dois pólos que, em grau menor
que com seus sentimentos sexistas ou maior, são demarcados nos discursos
e patriarcais convive com aquela que constam dos processos judiciais. As
mulher ou com aquelas mulheres, mulheres são classificadas no espectro
mas sempre com aquele sentimento que vai da castidade à devassidão, da
de posse, subjugação, propriedade. obediência à transgressão. Já os homens
Mas também não é uma patologia, vão do provedor honesto ao explorador,
mas sim uma constituinte daquele da normalidade à monstruosidade. Essas

47
categorias, da mesma forma que o gênero, “Ela tinha horário para trabalhar,
são relacionais, pois uma influencia direta- horários rígidos, de levar os meninos na
mente a outra no percurso processual. escola? Ela era uma mulher séria? Tran-
quila?” (perguntas do juiz em depoi-
Em uma das extremidades da régua mento de testemunha do processo 6).
tem-se as mulheres de família, de reputação
ilibada, boas mães, esposas dedicadas, Os argumentos utilizados, espe-
filhas exemplares, estudiosas, trabalhadoras cialmente pela defesa, evocam a outrora
e, portanto, credoras da tutela cuidadosa difundida e criticada tese da legítima
do Judiciário. No outro extremo, estão as defesa da honra que, embora não tenha
mulheres que de alguma forma transgridem sido citada de modo explícito em nenhum
um padrão de feminilidade associado à dos processos analisados para justificar
subserviência, que não correspondem às a atitude do agressor, parece ter alguma
expectativas que nelas são depositadas e repercussão na operação que procura
que, consequentemente, provocaram em afastar a culpabilidade do réu e legitimar a
alguma medida a violência praticada. Essa violência perpetrada, a partir do compor-
visão estereotipada, ainda que nem sempre tamento da vítima.43 Sintomático de tal
perfeitamente esculpida, é reforçada pela estratégia nos pareceu o seguinte trecho
lógica adversarial do tribunal do júri e tem extraído da defesa:
efeitos no desfecho processual.
“O comportamento negativo da vítima,
Para a construção dessas imagens inicialmente em namorar na casa na
colaboram os diversos atores que desem- frente do bebê e em se dirigir contra o
penham suas funções nos processos. acusado com chacotas, traduzidas em
Advogados de defesa e defensores ofensas diretas (‘corno’), expressão de
costumam explorar o perfil “transgressor” desprezo e deboche, foi a causa de-
da mulher versus o do homem trabalhador terminante da ação do acusado que
violado em sua honra para justificar o ceifou a vida vítima” (trecho da defesa
comportamento de seus clientes, ao passo prévia no processo 7).
que o discurso da acusação tende a viti-
mizar a mulher, caracterizando-a como boa Além disso, as passagens a seguir
mãe e esposa diante da figura do homem ilustram tentativas de desmoralização das
violento, alcólatra, desajustado social- mulheres a partir do uso de drogas ou
mente. O papel ativo que juízes(as) têm mesmo do contato com arma de fogo:
na instrução do processo penal também
provocou, em diversos casos, seu engaja- “Ela era usuária de drogas e já tinha
mento na busca por uma dessas versões. se relacionado com diversos homens”
Isso se fez visível na condução da instrução (trecho de depoimento de testemunha
probatória, na medida em que o compor- no processo 3).
tamento da mulher se torna central nos
processos. Em um dos casos, por exemplo, “[A vítima] tinha o costume de ir até
diante da suspeita de traição pela vítima, a casa do depoente e chutar a porta,
o magistrado se voltou à investigação do pular o portão, quebrar vidros, quando
comportamento da mulher assassinada: não era atendida pelo depoente”

43
Ver Pimentel, Pandjiarjian e Belloque (2006).
48
(trecho de interrogatório do réu no do processo 13).
processo 3).
“[A vítima] vai aprender a respeitar
“Ela já foi presa por porte ilegal de homem” (trecho de depoimento de
arma de fogo” (trecho de depoimento testemunha do processo 15).
de testemunha no processo 12).

“[O réu] roubou sua filha, sem consen-


O não atendimento às tarefas domés-
ticas e a inadequação ao papel social timento. [...] O acusado havia dito que
atribuído às mulheres também esteve recor- ia permitir que ela fosse à escola, além
rentemente presente nos processos: de fazer as tarefas domésticas” (tre-
cho de depoimento do pai da vítima
“Todo dia quando terminava o servi- do processo 16).
ço eu passava no açougue e tomava
umas cachaças; ela [vítima] ia lá e...
Ao invés de ela ir pra casa ou ficar em “Destarte, registramos que o atraso
casa para cuidar de suas obrigações, do envio dos autos deveu-se ao
ia me caçar lá no bar, aí eu chegava aguardo dessa peça importante, para
em casa e discutia mesmo com ela, di- fechamento das investigações, muito
zia ‘isso é baixaria, você ir no bar atrás embora tenhamos convicção que o filho
de mim’” (trecho do interrogatório do da vitimada era [do investigado], haja
réu do processo 1). vista, a ofendida ser uma professora
de caráter ilibado e nenhuma sombra
de mancha contra sua reputação ter
“Você deixa de cuidar de sua casa, de sido trazida aos autos que pudesse
seu marido, para cuidar da casa de ou- macular seu nome no conceito social”
tro macho? [...] Dona, o que a senhora (trecho do relatório final da delegada
acha de uma vagabunda que sai da sua do processo 28).
casa e vem dar para um outro safado?”
(trechos do interrogatório do réu do
processo 8, em que ele se refere a um “[A vítima era uma] adolescente
diálogo com a vítima). pura, de comportamento calmo,
não gostava de sair, nem de festas,
somente saía com a família, não
“Agora a vítima virou santa. [...] Era
possuindo namorados, sendo uma
uma pessoa muito nervosa, porque só
jovem muito ligada à família; era uma
ela trabalhava para sustentar os filhos,
moça de comportamento direito,
o marido e o vício do acusado” (trechos
uma exceção na cidade onde várias
do depoimento de testemunhas no
meninas se prostituem e não têm
processo 10).
comportamento condizente com a
moral” (trecho do depoimento da mãe
da vítima do processo 32).
“[A vítima] tem problema mental,
mas não é muito louca” (trecho do
depoimento do ex-marido da vítima “Ela [vítima] deveria fazer seus deveres

49
em vez de ficar na gandaia” (trecho das sendo o mesmo filho de uma família
alegações da defesa em plenária acom- libada [sic] e tradicional” (trecho da
panhada pela equipe de pesquisa). defesa prévia do processo 32).

Se os discursos sobre as mulheres


tendem majoritariamente a inverter sua “Tinha o comportamento tranquilo,
posição no processo (de vítimas a agres- porém não podia ver mulher” (trecho
soras ou provocadoras), no atinente aos do depoimento de testemunha do
homens o esforço é no sentido contrário, processo 32).
para suscitar aspectos que os transformam
em vítima na situação. Assim, a busca
“Não é coerente um sujeito de bem,
pelo estereótipo do homem trabalhador
simples e trabalhador, chegar em
e pai de família é traçada em diversos
casa depois de um dia longo e não ter
processos, frequentemente como forma
sequer a janta feita, ver as crianças sem
de mitigar a violência ocorrida, retratan-
tomar banho” (trecho das alegações
do-a como um episódio isolado e anormal
da defesa em plenária acompanhada
de sua conduta:
pela equipe de pesquisa).

“[Eu] trabalhava, tinha filhos, era


católico e não tinha vício” (trecho do Em contraste, a outra estratégia é a de
interrogatório do réu do processo 3). vitimizar a mulher e patologizar o homem.
Assim, encontramos descrições do acusado
“[O réu é] pessoa direita, honesta, como “ciumento e possessivo”,44 “extre-
trabalhador e de boa índole; após mamente violento”,45 agressivo, machão.
o término [do relacionamento], ele Tais narrativas são bastante significa-
vinha se humilhando para a vítima” tivas nas falas das vítimas de tentativas e
(trecho do depoimento da irmã da das testemunhas:
vítima do processo 6).
“Ele era agressivo, já matou a ex-
esposa” (trecho do depoimento de
“[O réu é] um pai exemplar” (trecho testemunha do processo 4).
do depoimento de testemunha do
processo 24).
“Quando fica sem tomar insulina fica
agressivo e não se recorda do que
“Ele [o réu] tinha vergonha da obesi-
ocorreu no dia” (trecho do interroga-
dade [da vítima]; tinha relacionamen-
tório do réu do processo 14).
tos extraconjugais; ele gostava de mui-
ta farra e muita mulherada; era pessoa
trabalhadora” (trecho do depoimento
“Ele era do tipo machão, estúpido, na
de testemunha do processo 5).
minha casa naquela época era só eu e
a [vítima] que morava junto, ele achava
“Não se sabe de qualquer má conduta que porque era homem podia falar
que desabone a sua moral e profissional, grosso, só que na minha casa quem fala

44
Processo 23.
45
Processo 27.
50
grosso sou eu” (trecho do depoimento para ele, ele acha que me dá essas
da mãe da vítima do processo 20). coisas para o [filho] e que eu sou
obrigada a ir lá na hora que ele quer”
“Embriaguez constante do acusado, (trecho do depoimento em que a
que não chegava a bater na mulher ou irmã da vítima relata uma conversa
nos filhos, mas que causava muita ten- com a vítima do processo 4).
são no ambiente familiar” (trecho do
relatório do delegado do processo 22). “Ele [réu] se interessava pela vítima
apenas para satisfazer seus desejos
Outras narrativas se inclinam para a sexuais” (trecho do depoimento de
compreensão da violência e do castigo amiga da vítima do processo 4).
físico praticados pelo agressor como inte-
rações sociais legítimas:
“Ele queria ter relações sexuais na
frente das crianças, bebia todos os
“O filho do casal disse que quando o
dias” (trecho do depoimento da vítima
pai não bebia, era normal. Já presen-
do processo 29).
ciou o pai dar tapas e socos em sua
mãe” (trecho do depoimento do filho
da vítima e do agressor do processo 1). “Observado certo desejo de práticas
sexuais com crianças e adolescentes.
[...] Rumores sobre o hábito de ver
“[O réu] era muito aparecido e gostava
filmes pornográficos com a enteada e
de aparecer para os amigos de boteco
filhos menores”. (trechos do relatório
e por isso sempre a agredia fisicamen-
do delegado do processo 32).
te” (trecho do depoimento de teste-
munha do processo 1).
A construção desses perfis tem
impactos sobre o andamento processual
“A família do acusado era conivente e seu desfecho. A descrição do agressor
com as atitudes dele. [...] Certa vez, como pai de família, trabalhador, reli-
[vítima] apanhou do amásio na gioso e honesto contribui para afastar sua
frente da sogra e da irmã do ofensor responsabilidade, como se os compor-
e que ambas não fizeram nada para tamentos sociais citados isentassem o
impedi-lo” (trecho do depoimento de acusado da prática, frequente ou passa-
testemunha do processo 10). geira, da violência contra a mulher. Ao
mesmo tempo, a mulher é estampada
Episódios relativos a investidas como alguém que provocou o agressor
sexuais, por vezes violentas, por parte do e, dessa maneira, frustrou a expecta-
autor do crime sob julgamento também tiva social de docilidade; ou alguém com
foram relatadas nos processos criminais: comportamento social questionável, o
que justificaria a agressão. Nesse conjunto
“[O réu] é folgado, ele acha que na de casos, os réus são em sua maioria são
hora que ele me chama eu tenho primários, sem envolvimento cotidiano com
que ir lá na casa dele abrir as pernas atividades ilícitas, o que os leva habitual-

51
mente a responderem ao processo criminal colhido, a dificuldade dos atores do sistema
em liberdade. As penas, nessas situações, de justiça em enxergarem a violência
são mais brandas, havendo o reconheci- doméstica como estruturante das relações
mento do homicídio privilegiado (artigo 121, sociais. A carência de reflexão acerca da
parágrafo 1º, do Código Penal) ou do homi- violência baseada no gênero presente nos
cídio simples (artigo 121, caput, do CP). processos de homicídios de mulheres em
situação de violência doméstica obstacu-
Diversamente, a imagem do homem liza a busca por soluções para o conflito e
violento colabora para a mobilização do concorre para que os assassinatos sejam
conceito de periculosidade, precipuamente encarados não como mortes anunciadas
explorada pela acusação, embasando a devido a um histórico de agressões, mas,
manutenção de custódias cautelares e a apli- sim, por circunstâncias eventuais nas vidas
cação de penas maiores. A monstruosidade dos acusados e das vítimas – um “acidente
e as perversões sexuais são enfatizadas, biográfico”. Isso pode ser explicado, em
sendo notáveis nesses processos a ocor- parte, pela própria lógica individualizante
rência de alguns pedidos de instauração de do processo criminal, que se dedica a veri-
insanidade mental pela própria defesa, que ficar a imputabilidade a partir de um fato.
poderiam redundar na aplicação da medida De outro lado, é preciso reconhecer que as
de segurança, o que não veio a ocorrer em abordagens dadas ao fato pelos atores – insti-
nenhum dos processos estudados. Nesse tucionais e não institucionais – que participam
padrão, a mulher vítima, merecedora de do processo agravam essa perspectiva.
proteção do sistema de justiça criminal, é a
boa mãe e esposa, recatada e trabalhadora. Muitas vezes, além de não situar o
crime em um contexto de expressão de
Notamos, dessa forma, que as narra- poder patriarcal, o sistema de justiça,
tivas produzidas no campo do sistema de por seus diversos atores, chega a fazer o
justiça criminal tendem a reforçar os este- oposto, reafirmando discursos de culpabi-
reótipos que correspondem aos papéis lização da vítima e o reconhecimento de
que homens e mulheres desempenham na papeis sociais que tendem a justificar as
sociedade. Além disso, tratam de explicar o agressões, como visto acima. São vários os
conflito a partir de uma lógica totalmente exemplos que corroboram essa percepção.
individual – ora resultado de atitudes de Em alguns casos a estratégia aparece de
homens sociopatas, ora provocados por forma bastante explícita. Mencione-se aqui
mulheres desajustadas, não cumpridoras um processo em que a defesa sustenta
de seus deveres sociais. Revela-se, dessa que a iniciativa criminosa do réu teria se
forma, um mecanismo limitado, que vem concretizado para se defender de um
funcionando de acordo com uma lógica xingamento proferido pela vítima: “o réu,
tradicional em que a violência fatal contra portanto, agrediu para se defender”.46 Em
a mulher é episódica, desconectada de um outro caso, a defesa alega que o réu, tendo
contexto mais amplo, seja o da trajetória do sido traído pela vítima, “teria sido mais
casal, seja o do problema social que repre- vítima que ela”. Na tentativa de retirar uma
senta a violência doméstica. qualificadora da imputação, o defensor
público prossegue: “se o apelante viu a
Restou demonstrada, no material mulher beijando outro homem na boca,

46
Processo 13.
52
o motivo não pode ser fútil”.47 A culpabi- mulher propriedade dele e não acei-
lização da vítima também é evidenciada te o fim do relacionamento, vindo a
diante de tentativas da defesa de excluir ceifar a vida da mulher. Ora, crimes
a qualificadora presente no inciso IV:48 “a como estes devem ser rechaçados
vítima tinha fundadas razões para esperar pela Justiça, sendo que a lei tem sido
pela agressão”.49 Como mencionado, não severa em circunstâncias como esta,
se encontrou menção expressa à legítima demonstrando horror a este siste-
defesa da honra, embora a lógica dessa ma arcaico de propriedade da mul-
argumentação tenha se feito presente. her pelo homem” (trecho do pedido
de conversão de prisão em flagran-
Observou-se, dentre os processos te em preventiva do processo 14).
da pesquisa, que os representantes do
Ministério Público foram os atores que
apresentaram teses mais situadas em um Também por parte desses atores,
contexto de gênero. foram observadas críticas aos resquícios
deixados pela tese de legítima defesa da
honra que ainda surgem nas defesas, como
“Utilizou-se o indiciado, ainda, de
no trecho destacado a seguir:
violência contra sua ex-companheira,
provocando-lhe, além dos danos físicos
e mortais, danos de ordem emocional, “Em regra, esses pseudodefendentes
mediante ameaças, agressões, humilha- da honra não passam de meros
ções e constrangimentos frequentes, matadores de mulheres: maus esposos,
causando-lhe, há tempos, prejuízo à péssimos pais; a opinião generalizada
saúde psicológica e autodeterminação” é a de não existir legítima defesa
(trecho da denúncia do processo 17). da honra em tais casos” (trecho de
parecer da Procuradoria de Justiça do
processo 8).
“Não se pode deixar de mencionar,
ainda, que [a vítima] não foi a única
mulher a sofrer nas mãos do acusa- Diante de um caso em que o sistema
do, pois foi comprovado que sua ex- de justiça demorou a apreciar o pedido
namorada também foi vítima de sua de medida protetiva e a vítima veio a ser
personalidade possessiva em relacio- morta, uma promotora do Juizado de
namentos afetivos” (trecho das alega- Violência Doméstica e Familiar contra a
ções finais do processo 23). Mulher50 teceu um discurso em que revela
não só a consciência das especificidades
das agressões sofridas por mulheres, mas
“É inconcebível que em pleno século também indignação diante da resposta
XXI um homem ainda considere uma do sistema:

47
Ainda no mesmo processo 15, consta a tentativa do réu de culpar a sogra pela suposta má educação da vítima: “A mãe de
M. deveria, ao menos, ensinar às filhas, decência. Não foi isso que fez. Levava as filhas para o ‘mau caminho’, segundo palavras
do próprio denunciado”.
48
Art. 121 [...] IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossivel a
defesa do ofendido.
49
Processo 2.
50
Trata-se de processo que correu em comarca do estado do Mato Grosso, em que o a primeira fase do processo do júri ocorre
no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
53
“O homem abusivo sente-se mais de- das relativamente simples que se tives-
safiado quando a mulher se libera do sem sido atendidas, teriam certamente
seu controle, ao sentir a perda da au- evitado o assassinato dessa jovem em
toridade... Mais mulheres são mortas tão cruéis condições. Pouco me resta
depois de abandonar o relacionamen- a fazer nesta oportunidade, além de la-
to abusivo do que quando nele con- mentar PROFUNDAMENTE o ocorrido
tinuam. [...] Nesse ínterim, contudo, o [...]. Neste caso, a Justiça tardou e falhou
caso deixou de ser considerado com de forma irremediável... Vamos aguar-
a devida importância, reponsabilidade, dar o próximo ou tomar as providên-
sensibilidade e zelo, a mulher vítima e cias necessárias para mudar nossa
suas mazelas foram ignoradas e trans- forma de atuação? De resto, diante
formadas em simples e frio número de de alguns acontecimentos lastimáveis
processo, junto a outros tantos que se que estão ocorrendo nesta Vara Espe-
acumulam nas prateleiras dos fóruns, cializada, nos resta tão somente en-
vindo aos autos DOIS MESES depois, caminhar cópia deste procedimento
pedido de dilação de prazo pela equi- para análise da CORREGEDORIA DO
pe multidisciplinar [...]. QUARENTA E CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA,
CINCO DIAS depois a julgadora des- o que será feito em momento oportu-
pachou e deferiu o pedido de dez dias no, bem como dirigir o caso para aná-
para a realização do estudo, que na lise da COMISSÃO INTERAMERICANA
verdade jamais chegou a ser efetuado DE DIREITOS HUMANOS, a fim de que
porque no dia 31 de julho de 2007, um finalmente seja o procedimento ava-
oficial de justiça noticiou que a vítima liado com o zelo que esta vítima,
fora assassinada pelo acusado em sua hoje irremediável, sempre mereceu”
residência. Após tal desalentadora (processo 10).
notícia, a vítima voltou a ser impor-
tante para o Poder Judiciário, que en-
fim determinou o acompanhamento O discurso dos(as) magistrados(as)
imediato do caso pela equipe multi- tende a não considerar a variável da violência
disciplinar. Depois de todo o ocorri- de gênero no momento da dosimetria.
do, desde que o juízo tomou conhe- Em geral, as circunstâncias judiciais fazem
cimento da ameaça em 09 de março menção a um eventual perfil agressivo do
de 2007, somente no dia 14 de agosto acusado, mas raramente se menciona, nas
de 2007 é que os autos finalmente fo- sentenças, o problema da violência domés-
ram encaminhados para o Ministério tica, como seria de se esperar nos processos
Público, que muito poderia ter feito iniciados após a aprovação da Lei Maria da
para evitar a ‘desgraça’, pois certa- Penha, como consequência não apenas
mente com o relato da vítima e da das alterações legais (como a previsão de
equipe multidisciplinar (caso tivesse agravante genérica no artigo 61 do Código
sido efetivado em prazo razoável ou Penal), mas em especial da visibilização
mesmo admissível) teria requerido a promovida pela lei. Algumas exceções, no
prisão preventiva do agressor e poste- entanto, merecem relevo:
rior encaminhamento do mesmo para
tratamento de desintoxicação, medi- “Considerando sua então compro-

54
metida conduta social, uma vez que, absoluto egoísmo emocional” (trecho
pelo menos também à época, era de da sentença do processo 7).
constante embriaguez; considerando,
como dito, e por corolário, sua
personalidade agressiva, e até um “Ressalto que a segregação cautelar
tanto arrogante à época; os motivos do acusado foi necessária, uma vez
nem tanto assim judicialmente que, além dos motivos elencados no
justificadores, eis que flagrantemente art. 312 do Código de Processo Penal,
desproporcionais a uma eventual o segregamento cautelar do Pacien-
má conduta ou maus costumes te encontra respaldo no artigo 20 da
por parte de uma esposa que não lei 11.340/06 e é, sem dúvida, como
parecia mesmo ser boa em âmbito in casu, medida de garantia do direi-
doméstico, mas que também não to fundamental da mulher vitimada
estaria, por isso, a merecer agressões em sua integridade, implícita ao direito
tão violentas e tão continuadas, que fundamental à vida” (trecho da sen-
tangenciavam até a crueldade, eis tença do processo 9).
que, comprovadamente, a vítima
vinha, há longos anos, sofrendo
“Revelou, ao assassinar a mulher com
as mais diversas humilhações e
quem conviveu maritalmente, seu ca-
reiteradas agressões oriundas de
ráter violento, machista, possessivo e
um comportamento covarde por
controlador, aspectos que desabonam
parte de [réu]; considerando [...]
a sua personalidade ao sustentar em
o comportamento social e familiar
juízo uma versão leviana para tentar
realmente comprometedor da
macular a honra da falecida (disse que
vítima, fixo-lhe a pena em 16 anos de
ela agrediu uma mulher que o acom-
reclusão [...] que deverá ser cumprida
panhava no bar) e tentar responsabili-
inicialmente em regime fechado”
zá-la pelo homicídio. [...] O motivo do
(trecho da sentença do processo 1).
crime é injustificável e censurável, o réu
matou a vítima simplesmente porque,
quando estava alcoolizado, se desen-
“A conduta do acusado é altamente re-
tendeu com ela, demonstrando dessa
provável, demonstrando o sentimento
forma seu destempero e incapacidade
machista de posse sobre a ex-compa-
de controlar seus próprios problemas
nheira, ceifando-lhe a vida pela delibe-
e frustrações [...]” (trecho da sentença
ração negativa da vítima na retomada
do processo 26).
do relacionamento amoroso. A atitude
criminosa revela a nefasta evolução
da violência doméstica, redundando
a ameaça pretérita em concreto ho- 4. O PROCESSAMENTO DOS CASOS
micídio. Não há, ao contrário da argu- PELO TRIBUNAL DO JÚRI
mentação da defesa pessoal e técnica,
sentimento de amor que atenue a cul- O tribunal do júri é uma instituição
pabilidade. Há, ao contrário, a exibição que integra um procedimento especial
trágica da mesquinhez humana e do a que se submetem, no Brasil, apenas

55
os crimes dolosos contra a vida – estão pena, na hipótese de condenação.
aqui, portanto, os casos de assassinato de
mulheres. Nesses crimes, o processamento Para a apreensão da dinâmica de
do caso tem duas fases: a primeira, chamada funcionamento do júri, é essencial ter em
de instrutória, funciona nos mesmos moldes mente que as “regras do jogo” extrapolam
do procedimento ordinário: a ação é instau- o que está previsto legalmente.51 Além do
rada, inicia-se a fase de produção probatória regramento processual penal que conduz
conduzida pelo(a) juiz(a) até que se chega o caso até o plenário, determina a forma
ao momento da sentença de pronúncia. como as provas são produzidas e exibidas
Em um caso comum, esse seria o momento e estabelece parâmetros de atuação para
em que o(a) juiz(a) proferiria a sentença e as partes, há um elemento que influi de
decidiria pela absolvição ou condenação, maneira decisiva no resultado do julga-
mas, no procedimento do júri, o que ele(a) mento, qual seja, o desempenho dos
decide é se o caso tem ou não os requi- atores em plenário.
sitos mínimos para ser enviado ao plenário,
onde o julgamento será feito pelos(as) As decisões dos(as) jurados(as)
jurados(as) que compõem o conselho de sobre a condenação ou absolvição e sobre
sentença. A segunda fase do procedimento os elementos que devem ser considerados
– o julgamento em sessão plenária – é assim no cálculo da pena não precisam ser funda-
o grande diferencial do julgamento dos mentadas, ao contrário do que acontece
casos submetidos a essa dinâmica. com o(a) juiz(a) togado(a): é o que se deno-
mina voto de consciência. Esse elemento
O momento do plenário é decisivo. É marca uma distinção fundamental entre o
ali que são definidos os cidadãos e cidadãs processo de construção decisória que tem
que integrarão o conselho de sentença. lugar no tribunal do júri. O voto de cons-
Diante de seus olhos, as provas são nova- ciência pode ser determinado por razões
mente produzidas e abre-se espaço para que excedem os termos legais: argumentos
o embate discursivo-performático entre de muitas extrações – moral, ética, política,
defesa e acusação. Os(as) jurados(as) religiosa, pragmática etc. – podem definir
permanecem incomunicáveis – entre si o voto. Elementos extraprocessuais, ou não
e em relação ao ambiente externo – até essencialmente técnicos, são, desse modo,
o final do julgamento, que se define por fartamente utilizados pela acusação e pela
meio da votação individual. É a única hipó- defesa para o convencimento de cada um
tese no sistema judicial brasileiro em que dos membros do conselho de sentença.
o caso não é decidido por um(a) juiz(a) Nesse confronto, valores e sentimentos são
togado(a), mas por cidadãos e cidadãs estimulados para que ao fim se obtenha
escolhidos por sorteio e instados a fazer de pelo menos quatro jurados(as) a alme-
um julgamento leigo. São os jurados e as jada decisão para o processo, que, como
juradas que, por votação em regime de dissemos, se dá na forma de votação diante
maioria, chegam ao veredito. Cabe ao(à) de quesitos formulados pelo(a) juiz(a).
magistrado(a) conduzir a sessão, zelar
para que tudo tramite nos termos da lei e, A falta de fundamentação da decisão
após a decisão do conselho de sentença, não é o único traço do que podemos
exarar a decisão e realizar o cálculo da perceber como insuficiência de registro

51
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, em seu estudo fundamental sobre o tribunal do júri, propõe esse paralelo com um
jogo (2013).
56
que permita a reconstrução posterior do do júri a partir dos autos dos processos,
procedimento. A ata da sessão plenária pois é aí que se consolidam as teses
contém informações bastante sinté- sustentadas pelas partes e, ainda, que se
ticas sobre o seu enredo. Dela não consta constrói a resolução para o caso concreto
parcela significativa do que ocorre durante sob exame, já que os membros do conselho
a sessão que é essencial para compreender de sentença ficam, na votação, adstritos
o desfecho processual, como a argumen- aos quesitos, respondidos com sim e não.
tação e os recursos utilizados pelas partes, A reconstrução da decisão, dessa forma, é
os acordos entre as partes e as motivações possível apenas pela comparação entre os
dos(as) jurados(as). Desses elementos, quesitos e o resultado da votação. Ou seja,
apenas a argumentação e a performance podemos observar a ocorrência de even-
das partes podem ser observadas pelos que tual exclusão de qualificadoras52 ou mesmo
assistem presencialmente à sessão. a desclassificação do crime de homicídio
para lesão corporal seguida de morte,53 mas
Pode-se afirmar, assim, que a sessão não se acessam as razões desse desfecho.
plenária, ponto alto do processo que tramita
no tribunal do júri, caracteriza-se pela Nos processos relativos a homicídios
efemeridade – não há registro completo do consumados, foi possível identificar três
que acontece e o que acontece é de impos- formas de enquadrar o ocorrido: em uma
sível reprodução – e pelo catartismo – não extremidade, a ausência do dolo de matar,
há necessidade de fundamentação pelo(a) acompanhado do pedido de absolvição do
jurado(a), que pode ser conduzido apenas réu54 e, na outra ponta, a caracterização da
por suas emoções. conduta como multiqualificada e o pedido
de condenação do réu a uma pena de
Do ponto de vista da pesquisa, essas longa duração. No entremeio, descreve-
características tornam o procedimento se a conduta como homicídio privilegiado,
do tribunal do júri de difícil apreensão. Os o que acarreta a diminuição da pena,
autos dos processos judiciais permitem ou, ainda, homicídio simples. Todavia, no
acessar uma série de informações a respeito material da pesquisa foi possível perceber
do crime e dos atores envolvidos, que que os fatos entendidos como feminicí-
possibilitam a reconstrução dos fatos em dios íntimos foram enquadrados, desde a
medida suficiente para sua compreensão, denúncia até a sentença de mérito, majori-
mas deixam a descoberto o momento da tariamente como homicídios qualificados,
sessão plenária. tentados ou consumados.55

Diante da limitação para acessar os As qualificadoras são objeto de


debates ocorridos na sessão plenária, o quesitação: motivo torpe (art. 121, §2º, I
momento da quesitação feita pelo(a) juiz(a) do CP),56 motivo fútil (art. 121, §2º, II do
é de suma importância para a abordagem CP),57 meio cruel (art. 121, §2º, III do CP)58

52
Como ocorreu no processo 13.
53
A exemplo do processo 25.
54
Em relação ao dolo homicida, as teses defensivas mostraram quais são as possibilidades: legítima defesa do réu contra
agressão da vítima, lesão acidental com o instrumento, ausência completa da atividade do réu (suicídio da vítima), ou ainda a
intenção limitada à lesão corporal.
55
Processos 1, 2, 3, 4, 5 ,6, 7, 9, 10, 11, 15, 18, 19, 21, 22, 23, 27, 29 e 31.
56
Processo 1, 6, 8, 10, 17, 18, 19, 32.
57
Processo 7.
58
Processo 1, 8, 10, 11, 14, 19 e 32.
57
e dificuldade de defesa da vítima (art. 121, seguida, a qualificadora mais recorrente-
§2º, IV do CP).59 Nos processos analisados, mente utilizada foi o motivo fútil.68
parece não haver uma orientação pací-
fica sobre o modo de subsunção quando Entre os homicídios qualificados,
se está diante de uma manifestação de consumados ou tentados, verificou-se que
violência de gênero. Sobre a qualificadora em cerca de um terço a sentença conde-
presente no inciso IV, qual seja, uso de natória trazia mais de uma qualificadora,68
“recurso que dificulte ou torne impossível geralmente uma combinação dos incisos
a defesa do ofendido”, havia a expectativa II e IV.70 Cumpre salientar que o homicídio
de que sua aplicação se desse, no caso de qualificado não só difere do homicídio
feminicídios íntimos, com a justificativa de simples em relação à quantidade da pena
que o agressor e a vítima conviveriam no prevista (de seis a 20 anos no simples e
mesmo ambiente e que os crimes seriam de 12 a 30 no qualificado), mas também
cometidos justamente no espaço de convi- no que tange à execução da pena, sendo
vência. Não foi isso o que se observou. A exigido, como requisito objetivo para a
qualificadora é a mais presente dentre os progressão de regime, o cumprimento de
processos selecionados para o resultado dois quintos (condenado primário) ou três
final da pesquisa60 e se apresenta com quintos da pena (condenado reincidente),
justificativas diversas, não sendo possível conforme dispõe a lei 11.464/2007. Em se
definir uma única orientação: ter o sujeito tratando do homicídio simples, que não é
agido de maneira premeditada e coor- tachado de hediondo (lei 8.072/1990), a
denada,61 ter sido a vítima encurralada,62 progressão de regime pode ocorrer após o
ter o réu agido com surpresa,63 ter o réu cumprimento de um sexto da pena priva-
utilizado superioridade de força,64 ter o tiva de liberdade.
réu trancado a porta de casa, impedindo
a saída da vítima,65 ter o réu fingido estar No conjunto de processos exami-
com ferimento no ouvido para aproximar a nados, constatou-se que, na parcela
vítima,66 e ter o réu atingido a vítima pelas referente aos homicídios qualificados
costas.67 Dessa maneira, ainda que tenha consumados, as maiores penas aplicadas
sido a qualificadora mais frequentemente foram: 32 anos e oito meses,71 29 anos
encontrada nos processos examinados, e 10 meses,72 29 anos e dois meses,73 25
não é possível relacionar as situações de anos, dois meses e 12 dias74 e 22 anos de
aplicação do inciso IV diretamente à parti- reclusão.75 Ainda sobre os homicídios
cularidade da violência doméstica. Em qualificados consumados, em dez dos

59
Processo 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 14, 13, 15, 17, 18, 19, 21, 22, 23, 25, 27, 29 e 32.
60
A qualificadora do inciso IV está presente nas sentenças dos processos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 15, 18, 19, 21, 22, 23, 27 e 29.
61
Processo 4.
62
Processo 5.
63
Processos 6, 7, 9, 10, 14, 15, 18, 19, 22, 29.
64
Processo 6.
65
Processo 8.
66
Processo 3.
67
Processo 17.
68
Processos 1, 2, 3, 4, 9, 15, 21 e 31.
69
Processos 1, 2, 3, 4, 6, 7, 9, 10, 15, 18, 19 e 21.
70
Processos 2, 3, 4, 9, 15 e 21.
71
Processo 19.
72
Processo 32.
73
Processo 18.
74
Processo 15.
75
Processo 23.
58
processos76 houve condenação em primeira do acórdão do processo 21).
instância a penas de prisão no intervalo de
12 a 20 anos de reclusão. No segundo júri desse caso sob
exame, o privilégio foi afastado e as quali-
A desclassificação da acusação por ficadoras referentes ao motivo fútil e à
homicídio para lesão corporal (art. 129, do dificuldade de defesa foram usadas para
CP) ocorreu em dois processos apreciados.77 agravar a pena.

Outra análise que é possível fazer recai Em outro processo, o juiz – em tom
sobre o abrandamento do motivo homi- de desabafo, provavelmente por não poder
cida, disponível na figura do privilégio. O reformar a decisão – mostrou discordância
privilégio traz para os jurados a avaliação a face à posição do conselho de sentença,
respeito do comportamento da vítima, se “a que reconheceu o privilégio e afastou as
vítima teria contribuído para a ocorrência do qualificadoras. O magistrado associou a
delito”. Esta figura dá margem à análise das figura do privilégio como estratégia para
condutas particulares da vítima e o papel acobertar o machismo:
social que lhe é exigido, conforme discu-
tido anteriormente. Dos onze processos78 “Com esse julgamento, chego à triste
que colocaram a questão do privilégio entre conclusão que enquanto vivermos em
os quesitos, em dois ocorreu o seu reco- uma sociedade machista, a mulher me-
nhecimento.77 Em um deles, em face do taforicamente continuará a ser tratada
recurso de apelação do Ministério Público, como um simples objeto que pode ser
o Tribunal de Justiça anulou o primeiro apossado, desapossado e até destru-
veredicto, porque a decisão do conselho de ído ao talante do homem. Entretanto,
sentença foi considerada manifestamente acredito que em um futuro bem pró-
contrária à prova dos autos, o que enseja a ximo a evolução virá e com isso ela
realização de novo júri (artigo 593, III, d e terá o seu valor reconhecido e atos
§3º do Código de Processo Penal): como esses serão mais severamente
repudiados pela sociedade” (trecho da
“[As provas colhidas nos autos] não sentença do processo 8).
demonstram que tenha existido
qualquer injusta provocação da vítima Quanto à atuação dos Tribunais de
para com o réu que tenha gerado no Justiça, verificou-se, quando houve inter-
mesmo violenta emoção. Geralmente posição de recurso para rever a pena, a
invoca-se a tese do homicídio passional tendência à manutenção do quantum defi-
para salvaguarda da honra dos homens nido em primeira instância.80
traídos. No caso em testilha nem
traição ocorreu, mormente porque o 5. APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA
casal se encontrava separado à época
dos fatos. Tendo agido por ciúmes não A Lei Maria da Penha, promulgada
condiz com a prova dos autos” (trecho em 2006, é um marco fundamental no

76
Processos 4, 5, 6, 7, 10, 11, 14, 21, 25 e 26.
77
Processos 12 e 17.
78
Processos 5, 7, 8, 9,10,11,12,21, 22, 23 e 29.
79
Processos 8 e 21.
80
Processos 2, 5, 7, 9, 13, 15, 18, 22, 23, 24 e 25.
59
enfrentamento da violência contra as sistema. [...] Então acho que esse seria
mulheres, tanto por visibilizar o problema o primeiro componente, ao meu ver, a
da violência contras as mulheres, como por urgência na concessão, porque é uma
introduzir no sistema brasileiro um pacote tutela rápida, e, portanto, em geral as
amplo de medidas – protetivas, puni- tutelas rápidas são mais eficientes.
tivas, de atendimento à mulher, criação de E o outro é a própria efetividade da
órgãos, ampliação de serviços, entre outras medida que é tirar o agressor do lar,
– para lidar com o problema. Dos processos ou o Estado falando com ele ‘olha, isso
judiciais analisados, cerca de dois terços não’, a linha vermelha que é traçada na
encontravam-se sob sua vigência, a partir vida dele. Então as medidas protetivas
de 22 de setembro de 2006. tiveram essa afirmação na sociedade
pela urgência com que elas são
Um dos mecanismos mais impor- concedidas e pela força que elas têm,
tantes trazidos pela lei foi a previsão de o conteúdo mesmo do provimento”
medidas protetivas de urgência (artigos (Promotora de Justiça, MP-SP).
22 a 24), que podem ser aplicadas diante
do risco de violência contra a mulher. Entretanto, a solicitação de medidas
Contudo, em apenas um caso verificamos a protetivas de urgência não se apresenta,
existência de medida de proteção prevista todavia, no material analisado, como um
pela Lei Maria da Penha em favor da vítima recurso diante de situações em que as
antes do fato que ensejou o processo vítimas se vêem ameaçadas.81 A situ-
examinado. Para uma das promotoras ação mais comumente encontrada foi a
entrevistadas, essas medidas são o dife- lavratura de boletim de ocorrência82 por
rencial da lei: agressões físicas ou mesmo ameaça que
não desencadeou nenhuma ação poste-
“Ela [Lei Maria da Penha] se afirmou rior de proteção que pudesse evitar o
muito na sociedade pelas medidas desfecho trágico. Um exemplo bastante
protetivas, então isso deu a essa eloquente e que evidencia a necessidade
sistemática uma credibilidade social, de instrumentos especiais para a proteção
e por quê? No meu modo de ver isso das mulheres é o caso em que o registro
tem dois componentes: o primeiro de boletim de ocorrência por ameaça se
é o fato de as medidas protetivas deu no dia anterior à violência homicida.83
terem recebido por parte dos órgãos
do sistema se justiça um tratamento Observamos ainda de modo significa-
prioritário, então se chega um pedido tivo casos em que o histórico de violência
de medida protetiva no fórum, que teve desfecho fatal não havia sido
baseado na lei Maria da Penha, esse jamais reportado aos órgãos públicos.84 Em
pedido ele tramita com urgência 18 dos casos que foram objeto do estudo
única, até semelhante, por exemplo, à em profundidade, consta nos autos histó-
comunicação da prisão em flagrante, rico de violência doméstica e apenas em
que é uma medida de grande urgência 10 dessas situações verifica-se que houve
porque é único caso de prisão sem recurso ao sistema de justiça criminal antes
ordem judicial hoje admitido no do crime de que trata o processo, especial-
81
Apresenta-se somente nos processos 12 e 14.
82
Como observado nos processos 9, 13, 22, 23, 29 e 31.
83
Processo 22.
84
Como, por exemplo, nos processos 1 e 16.
60
mente por meio do registro de boletins de dosimetria da pena,86 com a incidência da
ocorrência por lesão corporal e ameaça. agravante genérica.87
O recurso ao sistema de justiça a fim de
relatar as agressões sofridas somente se As manifestações dos Tribunais de
faz presente em metade dos casos anali- Justiça em geral demonstraram pouca
sados em que há notícia de violência permeabilidade à discussão sobre violência
anterior.85 Isso pode ser reflexo de medo e de gênero como elemento dos casos
insegurança da vítima, em boa parte moti- submetidos à análise. Em dois processos,
vado ainda pela baixa responsividade do chegou-se inclusive a desconsiderar o
sistema. Na opinião da entrevistada: cabimento da agravante genérica, sendo
que em um deles o que se defende é que
“Essa mulher por todas as razões que já a violência doméstica somente se configu-
conhecemos, por vergonha ou submis- raria caso vítima e agressor mantivessem
são, preocupação com a família, com relação de coabitação:
os filhos, geralmente ela não denuncia.
[...] Vem de um processo de evolução “Contudo, observo que as agravantes
daquela agressão, seja nos casos em reconhecidas na sentença (art. 61, II, ‘a’
que a mulher denunciou e não fun- e ‘f’, do Código Penal) foram sopesa-
cionou (porque acontece também), das com rigor em demasia. Isto por-
ou seja nos casos em que as mulheres que, ao invés de serem consideradas
não foram procurar, seja por descren- em conjunto, como recomenda o arti-
ça, seja por falta de coragem também, go 67, do Código Penal, foram indivi-
por imaginar que se ela fizer a denún- dualmente aplicadas na elevada fração
cia ele vai ficar mais agressivo, ela vai de 1/6 (um sexto). Neste ínterim, não
ter que voltar pra casa, aquele homem se pode olvidar ainda que o fato de o
vai ser solto imediatamente, então ela crime ter sido praticado prevalecendo-
pensa ‘quem vai tomar conta de mim? se de relações domésticas, com vio-
Quem vai me proteger da fúria daquela lência contra a mulher, insere-se, em
pessoa?’. Então são vários fatores que certa medida, nas próprias circunstân-
levam aquela mulher a se recolher, a fi- cias fáticas consideradas na valoração
car nesse espaço confinado de medo, da pena-base” (trecho do acórdão do
insegurança, absolutamente sem ser processo 3).
empoderada, então acontece o femini-
cídio” (Promotora de Justiça, MP-BA).
“Neste contexto, o fato de o apelante
No atinente à incorporação da Lei continuar indo à casa da vítima não é
Maria da Penha pelos tribunais do júri, suficiente para se concluir que ele pra-
dentre os processos que se encontravam ticou o homicídio prevalecendo-se de
sob sua vigência, verificamos que em relações domésticas, de coabitação ou
metade deles houve a mobilização dos de hospitalidade. Relações de coabita-
institutos da lei para a análise do caso ção indicam as ligações de convivência
concreto, principalmente no momento da entre as pessoas sob o mesmo teto. Se

85
Processos 6, 9, 10, 12, 13, 14, 22, 23, 29 e 31.
86
Processos 4, 5, 6, 14 e 18.
87
“Art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: [...] II - ter o
agente cometido o crime: [...] f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica” (redação dada pela lei 11.340/2006).
61
o réu e a vítima não estavam vivendo Nos casos em que a aplicação da Lei
na mesma casa, vez que já separados Maria da Penha foi constatada, isso se deu
de fato, me parece estranho falar de nas justificativas para a manutenção da
coabitação” (trecho do acórdão do custódia cautelar do réu (art. 20), na requi-
processo 6). sição de medidas protetivas de urgência
(arts. 18 a 24), na caracterização da violência
Algumas exceções foram identificadas: doméstica e familiar (art. 5º) e na definição
das formas de violência contra a mulher
“Para a configuração de violência (art. 7º) e, por fim, no uso do aparato estatal
doméstica não é necessário que as especializado no tratamento da violência
partes sejam necessariamente casa- doméstica e familiar contra a mulher, como
das ou já tenham sido, já que a união delegacias de atendimento à mulher, promo-
estável e o namoro também encon- torias e varas especializadas.
tram sob o manto protetivo da lei.
Basta a exigência de relação familiar Ademais, foram notadas diferenças
ou de afetividade, não importando o regionais em relação à aplicação da lei
gênero do agressor, já que a norma 11.340/2006. A leitura dos processos revelou
visa apenas a repressão e preven- que em Mato Grosso, Minas Gerais e Paraná
ção da violência doméstica contra a a lei foi mais recorrentemente aplicada do
mulher” (trecho do acórdão do que na Bahia e no Pará, locais em que foi
processo 4). mais rara a adoção dos seus institutos. No
estado do Mato Grosso, o aparato estatal
“Os motivos do crime são mais do especializado no combate e prevenção à
que evidenciados nos autos, quais violência doméstica e familiar se mostrou
sejam, o sentimento egoístico de mais consolidado, inclusive com a realização
propriedade e de posse sobre a da primeira fase do processo no Juizado
vítima-mulher; o desejo de exercer de Violência Doméstica e Familiar contra a
sobre a mesma o absoluto comando, Mulher, e não pelo próprio Tribunal do Júri.
vedando-lhe qualquer possibilidade Informações obtidas em entrevista escla-
de decidir sobre o próprio destino e recem esse aspecto:
condenando-a a morrer sob tortura,
por mera suspeita de infidelidade “Hoje temos Paraná, Mato Grosso e
por qualquer razão. Trata-se, pois, de Pará em que os promotores de com-
motivação egoística e discriminatória bate à violência doméstica trabalham
de gênero, que merece intenso até o momento da pronúncia. E esses
repúdio e desaprovação. [...] Por processos são deslocados para o júri.
derradeiro, da leitura dos autos não No Pará, em 2006 ou 2007 começam
se depreende que a vítima tenha sido também a fazer o júri. Houve vários re-
a mulher megera que tivesse levado cursos e isso foi suspenso. Não existe
o réu a tão elevado nível de mórbida mais Estado onde os promotores da
insensibilidade moral. Ao contrário, violência doméstica façam júri. Esses
seu perfil mostra-se como sendo de três estados vão até a pronúncia, por-
pessoa afetuosa e sensível” (trecho que a lei de organização judiciária dos
do acórdão do processo 11). demais estados não permite” (Promo-

62
tora de Justiça, MP-BA). (Promotora de Justiça, MP-BA).
“A primeira fase do júri tem que correr
Profissionais que atuam na área e
na vara de violência doméstica, no
que foram ouvidos durante a pesquisa
juizado. Fase de instrução e tal. Só
mostram-se divididos no que concerne à
depois que o processo termina e é
atuação do JVD na primeira fase do júri.
instruído, ele passa para a vara do júri.
Como desvantagem, apontam que quem
Isso minimiza, digamos assim, algum
atua na fase de instrução do processo deve
tipo de preconceito pelo menos na
atuar também no julgamento, pela proxi-
primeira fase de colheita de provas do
midade com os detalhes do caso. Além
processo de um homicídio. O restante é
disso, destacam que os casos de violência
preparar juízes e jurados acerca dessa
não fatal que tramitam no JVD podem ser
nova perspectiva porque as pessoas,
banalizados diante dos assassinatos, que
elas vão julgar com o aporte pessoal
são de maior gravidade e complexidade.88
que elas têm” (Defensora Pública,
A estrutura dos Juizados, muitas vezes
DPE-BA).
insuficiente para atender a demanda,
também dificultaria a absorção dos crimes Minas Gerais foi o estado que apre-
dolosos contra a vida. Como contraponto, sentou maior incidência da aplicação da
argumentos favoráveis foram coletados: agravante genérica prevista na Lei Maria
da Penha para casos de violência domés-
“Nós achamos [...] que os feminicídios tica no momento da dosimetria da pena:
deveriam estar vinculados às promoto- dos seis casos analisados, isso se veri-
rias de combate à violência doméstica. ficou em três. Dos cinco casos analisados
Uma outra parte entende, que não é a oriundos do Paraná, quatro continham
maioria, que mais importante seria se registros das delegacias de polícia, espe-
nos tribunais do júri tivéssemos pro- cializadas ou não, referentes à Lei Maria
motores de justiça com habilidade e da Penha.89 Percebe-se que as diferenças
conhecimento nessas áreas relacio- regionais e locais são bastante expres-
nadas a feminismo, gênero, violência sivas e que, embora haja uma tendência
doméstica, alguns conhecimentos das à expansão da aplicação da Lei Maria da
ciências sociais, dessa compreensão Penha, os órgãos do sistema de justiça
histórica, para que tivéssemos a tran- ainda têm dificuldades em reconhecer a
quilidade de ter um sistema de justiça violência contra a mulher e fazer incidir
de fato bem capacitado para cumprir os dispositivos da legislação específica,
sua função, seu mister. Ou, no máxi- sendo que em quase metade de todos os
mo, que tivéssemos uma vara do júri casos colhidos90 sequer houve menção à lei
especializada nesses temas, onde as 11.340/06. Uma das entrevistadas oferece
pessoas, os profissionais que tivessem uma explicação para essa resistência:
vocacionados para essas atividades,
que ocupassem essas vagas, através “[A Lei Maria da Penha é] uma lei nova
das habilitações administrativas que que chegou e há uma dificuldade, seja
estão previstas nas nossas leis orgâni- de aceitação, seja de operabilidade.
cas, por merecimento ou antiguidade” Então eu fico me colocando no lugar
88
Agradecemos aos(às) participantes da oficina organizada pelo CEJUS-SRJ e realizada em 17 de dezembro de 2014, que
ofereceram contribuições importantes para essa discussão.
89
Processos 12, 13, 14 e 16.
90
Processos 2, 7, 8, 11, 15, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30 e 32.
63
de alguém – um juiz, um defensor, um “Assassinar a mulher com quem con-
promotor público –, que sempre atuou viveu maritalmente, seu caráter violento,
de uma determinada forma e vai ter machista, possessivo e controlador,
que virar o leme, então acho que essa aspectos que desabonam a sua per-
é uma das circunstâncias que fazem sonalidade ao sustentar em juízo uma
com que não existam os mecanismos versão leviana para tentar macular a
que a lei trouxe, eles ainda não foram honra da falecida e tentar responsabi-
depurados, é uma lei nova e não lizá-la pelo homicídio. [...] O motivo do
foram depurados ainda no sistema, crime é injustificável e censurável, o réu
muitas pessoas não lidam mesmo matou a vítima simplesmente porque,
com esses mecanismos e não sabem quando estava alcoolizado, se desen-
como lidar. ‘Quer dizer então que tendeu com ela, demonstrando dessa
agora eu vou ter que atender a mulher forma seu destempero e incapacidade
que apanhou do marido na minha de controlar seus próprios problemas
promotoria? Como assim?’. Tem gente e frustrações [...]” (trecho da sentença
que ainda não encontrou o modo de do processo 26).
lidar com esses instrumentos, essas
ferramentas, porque é complicado
também aproximar demais o promotor O desafio de aplicação da Lei Maria da
de justiça da vítima, no meu ver. É Penha pelos profissionais do direito é desta-
custoso pro sistema, essa aproximação cado na fala das entrevistadas abordadas
é custosa e ela precisa ser feita com pela equipe de pesquisa, que ressaltam
muito cuidado, então tem um pouco a importância da lei não apenas por seu
do despreparo mesmo de lidar com aspecto criminalizador, mas por seu poten-
essas ferramentas. ‘Que ferramentas cial preventivo e pela prioridade prevista
são essas? Por que elas estão postas para as mulheres em situação de violência:
aí?’” (Promotora de Justiça, MP-SP).

No atinente à análise do reconheci- “Mas o que os operadores precisam


mento da violência doméstica nos quesitos, ver é que não a Lei Maria da Penha
apenas em dois processos verificaram-se as não é uma lei criminal. Ela é um
perguntas: “o réu era casado com a vítima?” microssistema que pode ser utilizado
e “o réu, ameaçando sua ex-companheira, em várias instâncias. Então o desafio
com quem conviveu por mais de um ano, que nós temos agora, além da questão
praticou violência contra a mulher na forma estrutural de equipamentos e etc.
da lei específica?”.91 O último quesito não dentro da lógica do Judiciário é fazer
integrou a série referente ao homicídio, mas com que os operadores jurídicos
ao delito conexo de ameaça. apliquem a Lei Maria da Penha no
tribunal do júri. Pra que as mulheres
Em geral, o reconhecimento da sobreviventes possam ser beneficiadas
violência doméstica é feito na ocasião da pelas medidas protetivas, pra que
determinação da pena, já que é uma agra- aquele processo criminal, ainda que
vante genérica. 92 não seja de réu preso, pra que aquela
prioridade da Lei Maria da Penha seja

91
Processos 8 e 13.
92
Houve reconhecimento da agravante genérica trazida pela Lei Maria da Penha nos processos 3, 4, 6, 7, 12, 18 e 19.
64
transportada para as varas do tribunal mo, você vai ver que não tem quase
do júri, para que aquele julgamento seja nenhum agressor condenado aqui na
também uma prioridade, como é para Bahia. E aí a gente não sabe se isso re-
o idoso e para o réu preso” (Promotora flete na quantidade de homicídios que
de Justiça, MP-BA). a gente tem, pode ser, mas a gente
tem um número enorme de mulheres
pedindo medidas protetivas. É o que
“O efeito da Lei Maria da Penha é mais eu digo, essas mulheres estão a salvo.
preventivo do que repressivo. Se você Hoje o que funciona na vara de violên-
for pegar o levantamento dos pro- cia doméstica é a medida protetiva”
cessos de julgamento da Bahia mes- (Defensora Pública, DPE-BA).

65
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados das frentes de pesquisa foi possível também encontrar a criação
mostram que o tema do feminicídio íntimo de normas de conteúdo não necessaria-
e a necessidade de sua regulação especial mente penalizante, que visam a aprimorar
vêm sendo discutidos de modo relevante a resposta do sistema de justiça e a trans-
em vários países da América Latina, que formação das práticas institucionais.
ou já incorporaram o fenômeno em suas
regulações ou já iniciaram uma discussão O estudo dos processos judiciais
no sentido de sua institucionalização, revela a importância de medidas voltadas
como é o caso do Brasil. Também na à conformidade das práticas dos atores
esfera internacional, observada a partir do sistema de justiça a padrões mais
do levantamento das decisões do Sistema adequados ao tratamento da violência
Interamericano de Direitos Humanos, foi de gênero. Nota-se, de modo geral, um
possível notar a presença crescente de cenário de recalcitrância à compre-
casos relacionados ao tema dos direitos ensão das mortes das mulheres como
das mulheres. As relações entre esferas produto da desigualdade no exercício
internacionais e nacionais são relevantes do poder. Percebeu-se que as reconstru-
na medida em que decisões da Comissão ções dos fatos no interior do sistema de
e da Corte Interamericanas têm impactos justiça criminal, resultante da atuação de
nos contextos domésticos, impulsionando distintos atores (defensores, advogados,
a elaboração de legislações específicas promotores, juízes, vítimas, testemunhas)
para enfrentar o assassinato de mulheres. no curso do processo, acabaram em sua
maioria descontextualizadas da violência
A leitura das leis que inseriram nos de gênero e do machismo embutido no
ordenamentos jurídicos dos países lati- ato de matar. Essa conclusão, que decorre
no-americanos o tipo penal feminicídio da análise do material empírico, encontra
evidenciou, em primeiro lugar, uma varie- respaldo nas opiniões das profissionais do
dade na forma de definição do fenômeno direito entrevistadas.
(caracterizando-o ora pelo ambiente, ora
pela forma da conduta, ora pelas carac- As explicações para os homicídios
terísticas dos envolvidos), bem como a de mulheres tenderam na maior parte dos
diversidade de estratégias para combater casos para a mobilizacão de construções
a violência. É notável que na grande arquetípicas da figura feminina e
maioria dos casos a discussão em torno masculina, que se alternavam conforme
da violência de gênero foi enquadrada o ponto de vista, mas que carregavam
sob o ponto de vista da violência prati- individualmente a responsabilidade pelo
cada contra a mulher, excluindo-se outros ato. Ora se tinha a mulher boa mãe e esposa,
grupos, como a população LGBTI. que enfrentou um homem patologizado,
agressivo, alcoolizado e repulsivo; ora a
No que diz respeito às soluções insti- mulher devassa, provocadora, fora dos
tucionais, nota-se a prevalência da atuação padrões sociais esperados, cuja conduta
via direito penal e uma forte tendência provocou a agressão do homem, bom
para a fixação de penas elevadas. Contudo, marido e pai de família trabalhador.

66
Em ambos os casos, o conflito é fruto boletim de ocorrência na delegacia de
de comportamentos individuais e não é polícia. Ou seja, as medidas protetivas da
compreendido no contexto estrutural da Lei Maria da Penha não chegaram a ser
violência de gênero. A invisibilização do aplicadas. Esses elementos atuam para
gênero nesse caso milita a favor, como vimos, compor um infeliz cenário, ao menos nos
da reprodução de posições tradicionais, casos estudados, em que o sistema de
que limitam a liberdade da mulher, as justiça apenas chegou a atuar no conflito
formas de exercício de sua sexualidade e após a morte da mulher. Esse quadro, em
justificam a violência machista. Além disso, consonância com diversos diagnósticos
acaba passando desapercebida ao sistema recentes sobre a aplicação da Lei Maria
a própria naturalização da violência no da Penha,93 aponta para a necessidade
seio das relações de afeto entre homem e de avanços, sobretudo para a implemen-
mulher. Notamos, não raro, depoimentos de tação dos serviços de atendimento e
testemunhas e vítimas sobreviventes que das medidas protetivas de urgência, que
encaravam a ação violenta do homem contra podem efetivamente evitar que mortes
a mulher como natural a qualquer relação. anunciadas se concretizem.

A forte mobilização desses estere- Além disso, esforços para ampliar a


ótipos de gênero no debate das partes conscientização dos(as) operadores(as)
apresentou consequências jurídicas em do direito para os mecanismos presentes
vários casos: desclassificação de homi- na Lei Maria da Penha e para minimizar
cídio para lesão corporal, reconhecimento os impactos da ideologia machista no
do privilégio. Esses mecanismos, embora desfecho dos casos mostram-se também
não lancem mão da expressão “legítima urgentes. Nesse sentido, a discussão
defesa da honra”, têm funcionamento acerca da criação de um tipo penal espe-
similar, ao culpabilizar a mulher e justificar cífico para o feminicídio, fortemente
a violência do homem. marcada pelos aspectos de gênero que
envolvem tal fenômeno, podem contribuir
A naturalização da violência, além para a disputa ideológica no interior do
do medo e da insegurança das vítimas, sistema de justiça. Se, até agora, o viés de
integra as possíveis explicações para algo gênero captado nos processos aparece de
que também se fez notar no material empí- forma subreptícia no reforço dos estereó-
rico acessado: em boa parte dos casos, tipos, sua visibilização e problematização
não obstante o histórico de violência pode ser fundamental para reverter os
contumaz, as vítimas não buscaram as padrões tradicionais de desigualdade e
instituições do sistema de justiça. dominação. Interessante notar que esse
potencial político da categoria apareceu
Ainda no que se refere à avaliação na fala de uma das profissionais entrevis-
do sistema de justiça criminal, observou- tadas, cuja reflexão é bastante oportuna:
se que na maior parte dos casos em que
a mulher venceu os obstáculos da comu- “Então é essa desigualdade dentro
nicação e recorreu aos órgãos públicos, do conflito doméstico e familiar que
o processo se encerrou na lavratura do o conceito de gênero traz para a lei,

93
Ver em especial o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência Contra a Mulher, de 2013, e
o relatório Condições para Aplicação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) nas Delegacias Especializadas de Atendimento
à Mulher (DEAMS) e nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar nas Capitais e no Distrito Federal, de 2010.
67
de a gente visualizar essa disparidade Se, diante desse cenário, a pesquisa
porque senão a gente ia ficar com aponta para a importância da disputa ideo-
a aquela ideia de porque é homem, lógica e simbólica sobre gênero no campo
porque é mulher, acho que quando da aplicação do direito e da formação de
traz o conceito de gênero que a gente agentes públicos, é preciso provocar uma
percebe que pode ser modificado reflexão sobre o uso do direito penal como
e a existência da lei para atacar essa estratégia de ampliação da política. Essa
violência é prova de que ela pode ser ferramenta tem caráter ambivalente.
modificada pela atuação de uma lei,
de um sistema de proteção e tal. Ou Por um conjunto de características que
seja, vai mesmo ao encontro dessa compõem o senso comum e os discursos
questão de construção cultural e de justificação do direito criminal, cris-
também de compreender essa relação talizou-se um modelo de pensamento que
entre homens e mulheres, mulheres e relaciona diretamente o grau de reprovabili-
mulheres, como uma relação de poder dade de determinadas condutas e a estima
e que é exatamente essa desigualdade social em relação ao objeto de proteção à
que é geradora do conflito. Ou a busca gravidade da sanção penal. Se do ponto de
pela igualdade gera o conflito, né? vista da dissuasão pairam muitas dúvidas
Em algum momento é isso, é esse sobre a eficácia da criminalização de deter-
jogo mesmo da relação” (Defensora minado comportamento, a criminalização,
Pública, DPE-BA). nesse contexto, vem exercendo um papel
simbólico relevante na comunicação de que
Nesse contexto de disputa política determinada conduta é reprovável. É esse
que se dá também no interior das institui- enquadramento dos discursos sobre o crime
ções do sistema de justiça, não se pode e a pena, sedimentado em um contexto
deixar de destacar que, embora excep- punitivista como a sociedade brasileira,
cionais, foram identificados discursos que ajuda a explicar a estratégia de crimi-
preocupados com a desigualdade de nalização de condutas ou agravamento de
gênero, o que aponta para a existência de penas quando se trata de sinalizar para a
alguma permeabilidade dos(as) profissio- importância de determinada questão. É essa
nais do direito atuantes nos processos, em a aposta feita pelos movimentos sociais –
especial com a mobilização da Lei Maria como o movimento negro, feminista, LGBTI
da Penha. Em outras palavras, é possível – quando demandam a criminalização de
levantar como hipótese que a edição da lei comportamentos como forma de obter
11.340/2006, ainda que de forma gradual, reconhecimento de suas causas.
bastante irregular e mediante resistências,
já venha surtindo efeito na qualidade da Não há dúvidas de que a previsão do
atenção aos casos de violência contra as racismo como crime inafiançável na Cons-
mulheres levados aos tribunais do júri das tituição Federal de 1988, por exemplo, foi
localidades escolhidas para a pesquisa, um marco importante na luta do movi-
em maior ou menor grau. Tal efeito mobi- mento negro. Da mesma forma, o caráter
lizador também pode ser ocasionado pela punitivo da Lei Maria da Penha foi funda-
transformação do feminicídio em cate- mental para sua popularidade e é até hoje
goria jurídica. sua faceta mais conhecida. Porém, há uma

68
série de questões cruciais envolvidas na desafios a serem enfrentados pelo direito
sua aplicação, que devem ser levadas em penal. De acordo com Álvaro Pires, o ato
consideração na avaliação de performance de atribuir uma punição não deve fechar-
dessa estratégia.94 se em si mesmo, mas “comunicar o sentido
dessa ação, ligando-a à atribuição de
O medo da prisão do companheiro responsabilidade para ter chance que ela
e a falta de controle sobre o futuro do seja compreendida como punição” (2005:
processo, por exemplo, podem ter um papel 202). No que tange à violência baseada
na explicação dos comportamentos das no gênero, cabe avaliar em que medida a
vítimas que jamais recorreram ao sistema comunicação por meio do crime e da pena
de justiça para fazer cessar as agressões a atua para o combate à assimetria de poder
que estavam submetidas ou para usufruir entre homens e mulheres na sociedade.
da rede de atendimento. O direito penal, Reconhecer a a ambivalência do direito
por sua própria forma de funcionar, indivi- penal e suas limitações é importante no
dualiza o conflito e o recorta em uma única momento de construção da política, pois
ação típica, um autor culpável e uma vítima. aponta para a necessidade de combinação
Dessa forma, seus próprios pressupostos entre estratégias de ação – a Lei Maria da
de funcionamento tendem a desconsiderar Penha possui medidas de caráter não pena-
a complexidade da violência de gênero. lizantes que são de extrema importância,
Além disso, trata-se de um campo em que por exemplo – ou mesmo a transitoriedade
as respostas estatais estão bastante conso- de algumas soluções.
lidadas em torno da punição aflitiva, mais
especificamente a pena prisão, cujo poten- Trata-se de uma empreitada impor-
cial transformador, de realidades e condutas, tante, para a academia, os movimentos
é bastante questionável.95 sociais e formuladores de políticas
públicas compatibilizar adequadamente
A crença de que a resposta natural ao os anseios de proteção de determinados
crime são o castigo, a pena e a expiação grupos da sociedade e a orientação puni-
do mal pelo mal persiste como um dos tiva do Estado.

94
Para uma aproximação em tom de avaliação da performance do direito penal no caso de racismo ver Machado, Neris e
Cutrupi (2015).
95
Para uma reflexão nesse sentido, ver Machado e Machado (2013).
69
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