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In: PALMA, Maria Fernanda et al. (Orgs.). Prof. Doutor Augusto Silva Dias In Memoriam.
v. II. Lisboa: AAFDL, 2022, p. 237-271.
Introdução
*
Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, sob orientação do Prof. Doutor
Augusto Silva Dias, com pós-doutorado em Criminologia pela Universidade Monash (Austrália). Professor
Associado do programa de Mestrado e Doutorado em Direito do UniCEUB. Investigador integrado do
Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Universidade de Lisboa. Promotor de
Justiça do MPDFT. O autor agradece às colaborações a este texto por Amom Albernaz Pires.
1
MACHADO, Lia Zanotta, “Perspectivas em confronto: relações de gênero ou patriarcado contemporâneo?”,
Série Antropologia 284, 2000, (pp. 1-12). SANTOS, Cecília Macdowell; PASINATO, Wânia, “Violência
contra as mulheres e violência de gênero: notas sobre estudos feministas no Brasil”, Estudios Interdisciplinarios
de América Latina y el Caribe 16(1), 2005, (pp. 147-164). SEGATO, Rita Laura, “Que és un feminicídio:
notas para un debate emergente”, Série Antropologia, n. 401, 2006, (pp. 1-11). BANDEIRA, Lourdes
Maria, “Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação”, Revista Sociedade e
Estado 29(2), 2014 (pp. 449-469). ZANELLO, Waleska, Saúde mental, gênero e dispositivos – cultura e
processos de subjetivação, Curitiba: Appris, 2018. CAMPOS, Carmen Hein de; SEVERI, Fabiana Cristina,
“Violência contra mulheres e a crítica jurídica feminista: breve análise da produção acadêmica brasileira”,
Direito & Práxis 10(2), 2019, (pp. 962-990).
2
CAMPOS, Carmen Hein de, “Razão e sensibilidade: teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha”,
in: CAMPOS, Carmen Hein de (Org.), Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-fe-
minista, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, (pp. 1-12). GOMES, Camilla de Magalhães, “Constituição e
feminismo entre gênero, raça e direito: das possibilidades de uma hermenêutica constitucional antiessen-
cialista e decolonial”, História: Debates e Tendências 18(3), 2018, (pp. 343-365). PIMENTEL, Elaine;
MENDES, Soraia, “A violência sexual: a epistemologia feminista como fundamento de uma dogmática
penal feminista”, Revista Brasileira de Ciências Criminais 146(26), 2018, (pp. 305-328). CNJ; IPEA, O
Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres, Brasília: CNJ,
2019. 759
237
Thiago Pierobom de Ávila
jurídicos para superar esta forma de violência institucional. Ela busca trazer o ponto
de vista (standpoint) da experiência das mulheres e a “lógica dos sujeitos múltiplos”8.
Novas correntes trazem a perspectiva interseccional e decolonial para a complexificação
desta teoria feminista do direito9.
A análise das consequências hermenêuticas a partir dessa nova visão das relações
de gênero utiliza-se dos insumos da teoria estruturante do direito de Müller, para o
qual a norma jurídica deriva de um processo de concretização que tem como ponto
de partida o texto normativo, mas deve necessariamente considerar o programa
normativo (interpretação hipotética a partir da finalidade legal), o âmbito material
(dados do caso concreto) e o âmbito normativo (confronto entre âmbito material e
programa normativo), para a construção da norma-decisão10. Nesta visão, não há pro-
priamente uma separação entre “ser” e “dever ser” na hermenêutica jurídica, mas uma
construção entre fatos, diretrizes políticas e texto normativo necessariamente informada
pelos saberes interdisciplinares (como os da sociologia, psicologia, economia, ciências
de saúde, dentre outros). Esta perspectiva também influencia a hermenêutica criminal,
que deve estar integrada pelos fins político-criminais materiais subjacentes à norma
penal, criando um direito penal orientado às suas consequências e aberto à dimensão
empírica11. Ou seja, a adequada compreensão das relações de gênero deve integrar o
âmbito normativo, o que altera o resultado da atividade hermenêutica criminal.
Destaca-se de partida que o direito penal não é o instrumento primário de afirmação
dos direitos das mulheres, que devem estar calcados num conjunto de políticas públicas
de promoção da equidade de gênero, nas áreas de educação para relações de respeito,
conscientização social, promoção de maior participação das mulheres nos espaços de
poder, promoção de autonomia econômica, relações trabalhistas equânimes, além de
atenção à saúde, assistência social, segurança pública e tutela cível de proteção12.
Apesar destas considerações sobre o caráter residual do direito penal, quando
determinado tipo de conduta violenta é reiteradamente praticado e não sancionado,
transmite-se a mensagem ao corpo social de que ela é aceita, tolerada, normalizada,
o que reforça a prática de outros comportamentos semelhantes. Isso é especialmente
8
HARDING, Sandra, “Rethinking standpoint epistemology: what is ‘strong objectivity?’”, The Centennial
Review 36(3), 1992, (pp. 437-470), p. 455.
9
CRENSHAW, Kimberlé, “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação ra-
cial relativos ao gênero”, Estudos Feministas 10, 2002, (pp. 171-188). FLAUZINA, “Lei Maria da Penha”,
cit. GOMES, Camilla de Magalhães, “Constituição e feminismo entre gênero, raça e direito”, cit. Vale re-
gistrar que o pensamento feminista não é monolítico e estático, mas diverso e em evolução, pelo que seria
mais correto falar em feminismos no plural. Usualmente estas correntes teóricas estão ligadas pelo reco-
nhecimento da condição da mulher e o compromisso com os valores de equidade e cidadania.
10
MÜLLER, Friedrich, Teoria estruturante do direito, São Paulo: RT, 2008.
11
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, “Nuevas tendencias político-criminales y actividad jurisprudencial del
Tribunal Supremo”, in: Dogmática penal, política criminal y criminología en evolución (coord.: Carlos
María Romeo Casabona), San Cristóbal de La Laguna: Centro de Estudios Criminológicos Universidad
de La Laguna, 1997, (pp. 309-323). ROXIN, Claus, Estudos de direito penal, trad. Luís Greco, Rio de Ja-
neiro: Renovar, 2008, p. 79.
12
PASINATO, Wania; MACHADO, Bruno Amaral; ÁVILA; Thiago Pierobom de (Orgs.), Políticas pú-
blicas de prevenção à violência contra a mulher, São Paulo: Marcial Pons, 2019. 761
239
Thiago Pierobom de Ávila
13
V. CAMPOS, “Razão e sensibilidade”, cit.
14
DIAS, Augusto Silva, “Delicta in se” e “delicta mere prohibita” – uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica, Coimbra: Coimbra Ed., 2008,
762
240 p. 728-729.
Dogmática penal com perspectiva de gênero
20
SEGATO, “Que és un feminicídio”, cit., p. 7.
DAHLBERG, Linda L.; KRUG, Etienne G., “Violência: um problema global de saúde pública”, Ciência
21
conta que estão praticando atos de discriminação. Ainda que haja nuances nesta
“cultura sexista” e seja possível que determinados indivíduos sejam por ela mais ou
menos influenciados, ela é uma tendência. A coerção derivada da violência de gênero
é usualmente invisível, imanente nas relações, há uma verdadeira microfísica do
poder23. Esta cultura sexista cria um ambiente endêmico de violência contra as mulheres,
que pode ter seu ápice no feminicídio. Segundo dados do FBSP, em 2017 ocorreram
1.151 feminicídios, e em 2018 foram 1.206 (segundo a definição legal do art. 121, §
2º, inciso VI, do CP), sendo que eles representam apenas 29,6% do total de homicídios
de mulheres, muitos dos quais também escondem formas mais invisíveis de violência
de gênero24.
Estes estereótipos de gênero não devem universalizar as mulheres, mas estar
abertos à intersecção com outros marcadores de discriminação, como raça, classe
social, idade, deficiência, orientação sexual, dentre outros, que constroem um
sujeito complexo e plural25. Portanto, uma teoria da experiência das mulheres
deve considerar que diferentes mulheres experimentam violências potencializadas
por múltiplos fatores. Por exemplo, mulheres negras sofrem o acréscimo da
violência racista, como no estereótipo de maior lascívia das mulheres negras, que
incrementa o risco de mais violências sexuais contra elas26. E as mulheres negras
e pobres sofrem violências (racistas e de exclusão social) ainda mais intensas que
as mulheres negras de classe média. Os estudos de gênero estão fortemente
interligados com o ativismo feminista de um projeto político de emancipação das
mulheres, com o reconhecimento de que os valores culturais não são imutáveis, mas
dinâmicos27.
Portanto, um duplo movimento de ativismo político por movimentos de mulheres
e feministas e de produção acadêmica sobre o campo da violência de gênero criou
uma agenda política para que o sistema jurídico pudesse reconhecer e adequadamente
enfrentar a violência contra as mulheres28. A partir da promulgação de normas jurídicas
reconhecendo as especificidades das relações de gênero, criou-se um campo de co-
nhecimento, tanto sociológico quanto jurídico29, que passou a gerar novas demandas
de refinamento dos antigos instrumentos dogmáticos de aplicação do direito, para se
tornarem coerentes e operacionais aos novos valores jus-fundamentais.
Esta nova ordem de valores parte da premissa de que comportamentos
socialmente tolerados que violam direitos fundamentais não podem ser normalizados
por um sistema jurídico efetivamente compromissado com estes direitos. Há um
23
FOUCAULT, Michel, Microfísica do poder, 20ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 2004.
24
FBSP, Anuário brasileiro de segurança pública 2019, São Paulo: FBSP, 2019.
25
HARDING, “Rethinking standpoint epistemology”, cit. CRENSHAW, “Documento para o encontro de
especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”, cit. CAMPOS, “Razão e sensibi-
lidade”, cit. GOMES, “Constituição e feminismo entre gênero, raça e direito”, cit.
26
FLAUZINA, “Lei Maria da Penha”, cit.
27
MACHADO, “Perspectivas em confronto: relações de gênero ou patriarcado contemporâneo?”, cit.
28
SANTOS/PASINATO, “Violência contra as mulheres e violência de gênero”, cit.
29
BANDEIRA, “Violência de gênero”, cit. CAMPOS, “Razão e sensibilidade”, cit. CASALEIRO, “O
poder do Direito e o poder do feminismo”, cit. SEVERI, “Justiça em uma perspectiva de gênero”, cit. 765
243
Thiago Pierobom de Ávila
Desde esta perspectiva, entendemos que a Lei Maria da Penha pode proporcionar
uma importante agenda para a superação e o enfrentamento aberto das tensões apre-
sentadas, sobretudo porque sua proposta ultrapassa o campo meramente repressivo
e os maniqueísmos determinados pela lógica binária das jurisdições cíveis ou
criminais. Neste aspecto entendemos crucial reforçar a ideia de que estamos perante
um novo modelo, regido por uma lógica diversa da forma mentis misógina que vem
regendo o Direito na Modernidade. [...] Assim, ao que tudo indica, ser feminista e
crítica/o seria possível apenas à medida que formos nos submetendo à complexidade
e à fragmentariedade da contemporaneidade.
40
ANDRADE, Vera Regina Pereira de, “Soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento
da violência sexual contra a mulher”, Revista Brasileira de Ciências Criminais 48, 2004, (pp. 260-290).
41
FLAUZINA, “Lei Maria da Penha”, cit.
42
CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de, “Tensões atuais entre a criminologia feminista e a
criminologia crítica: a experiência brasileira”, in: Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva ju-
rídico-feminista (Carmen Hein de Campos), Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, (pp. 143-169). MENDES,
Soraia da Rosa, “A violência de gênero e a lei dos mais fracos: a proteção como direito fundamental
exclusivo das mulheres na seara penal”, in: A mulher e a justiça – a violência doméstica sob a ótica dos
direitos humanos (coord: Thereza Karina de Figueiredo Gaudêncio Barbosa), Brasília: AMAGIS, 2016,
(pp. 65-78). PRANDO, Camila Cardoso de Mello, “O que veem as mulheres quando o direito as olha?
Reflexões sobre as possibilidades e os alcances de intervenção do direito nos casos de violência doméstica”,
Revista de Estudos Criminais 60, 2016, (pp. 115-142). BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN,
Silvia, Crimes contra mulheres, Salvador: Jus Podivm, 2019.
43
SILVA SÁNCHEZ, “Nuevas tendencias político-criminales y actividad jurisprudencial del Tribunal
Supremo”, cit., p. 331.
44
CAMPOS/CARVALHO, “Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica”, cit.,
pp. 166-167. 769247
Thiago Pierobom de Ávila
50
CHRISTIE, Nils, “The ideal victim”, in: Revisiting the ‘ideal victim’ – developments in critical victimology
(coord: Marian Duggan), Bristol: Bristol University Press, 2018, (pp. 11-23). 771
249
Thiago Pierobom de Ávila
II. A violência psicológica na VDFCM como coerção imanente e como lesão à saúde51
Um dos pontos mais sensíveis e inovadoras da Lei Maria da Penha foi o reco-
nhecimento da violência psicológica. Este conceito é trazido pelo art. 7º, inciso II, da
Lei n. 11.340/2006, que estabelece:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno de-
senvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças
e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua in-
timidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer
outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
Esta é uma das formas mais usuais de violência, pois dificilmente as outras
formas de violência (v.g., a física) ocorrem fora de um contexto de violências psicológicas
antecedentes e sempre configurarão, concomitantemente, um atentado à integridade
psicológica da mulher52. Segundo pesquisa de vitimização realizada com 10.000
mulheres nas capitais da região Nordeste do Brasil, 27% das entrevistadas afirmou
já ter sofrido um ato de violência psicológica ao longo da vida, e 11,9% nos últimos
12 meses anteriores à entrevista53.
Referido dispositivo traz disposições importantes para conceituar todas as formas
de violência psicológica como atos ilícitos de natureza civil, independentemente da
configuração criminal, a justificar as ações de proteção cabíveis, como o deferimento
de medidas protetivas de urgência. Ou seja, nem todo ato de violência psicológica
configurará concomitantemente um crime. Em alguns países, a legislação criminal já
tipifica diretamente uma conduta de “maus tratos psíquicos” no âmbito das relações
íntimas de afeto (v.g., o art. 152 do Código Penal português), o que já permite
perspectivar um histórico de sofrimento psicológico. No Brasil, a Lei n. 14.188/2021
criou o crime de violência psicológica no art. 147-B do Código Penal, que terá especial
aplicação prática para as violências que se prolongam no tempo (ainda que a habitualidade
não seja elemento essencial). Ainda assim, o conceito jurídico de violência psicológica
possui possível repercussão para os tipos penais tradicionais.
A incorporação dos estudos sobre as relações de gênero exige considerar a violência
simbólica derivada do controle coercitivo inerente ao contexto de violência doméstica
51
O texto da presente seção foi redigido antes da criação dos crimes de stalking e de violência psicológica
nos artigos 147-A e 147-B do Código Penal Brasileiro pelas Leis n. 14.132 e 14.188, ambas de 2021.
Fazemos referências pontuais aos novos crimes, sem aprofundarmos a sua análise dogmática, concen-
trando-nos nas possíveis repercussões da violência psicológica para os demais delitos.
V. DIAS, Isabel, Violência da família – uma abordagem sociológica, 2ª ed., Porto: Afrontamento, 2010,
52
p. 123.
53
CARVALHO, José Raimundo; OLIVEIRA, Victor Hugo, Pesquisa de condições socioeconômicas e
violência doméstica e familiar contra a mulher – prevalência – da violência doméstica e impacto nas
772
250 novas gerações, Fortaleza: UFC, 2016.
Dogmática penal com perspectiva de gênero
Uma violência que não é nem espetacular nem instantânea, mas sim incremental
e gradual, com suas repercussões calamitosas se concretizando ao longo de
uma faixa temporal. [...] A dispersão temporal da violência lenta afeta a
forma como percebemos e respondemos a uma variedade de problemas
sociais, desde a violência doméstica até o estresse pós-traumático e, em
particular, às calamidades ambientais.
57
BIANCHINI et al., Crimes contra mulheres, cit., p. 101.
58
RAVAZZOLA, Maria Cristina, Historias infames: los maltratos en las relaciones, Buenos Aires: Paidós,
1997.
59
COSTA, Dália Maria de Sousa Gonçalves, A intervenção em parceria na violência conjugal contra as
mulheres: um modelo inovador?, Tese de doutoramento em sociologia (Universidade Aberta), Lisboa,
2010, p. 70.
60
V. DIAS, Augusto Silva, Ramos emergentes do Direito Penal relacionados com a proteção do futuro –
ambiente, consumo e genética humana, Coimbra: Coimbra, 2008. Não afastamos a possibilidade de haver
um contexto de exploração abusiva da vulnerabilidade de uma mulher com um histórico de relacionamen-
tos abusivos, ou com experiências pessoais de transgeracionalidade na violência doméstica. Neste contexto,
o prévio conhecimento pelo agressor desta situação de vulnerabilidade da mulher e sua exploração em um
relacionamento abusivo trariam efeitos semelhantes.
61
NIXON, Rob, Slow violence and the environmentalism of the poor, Cambridge: Harvard University
774
252 Press, 2011, p. 2-3.
Dogmática penal com perspectiva de gênero
a intimidação seja suficiente para causar temor à vítima no momento em que praticado, restando a infração
penal configurada ainda que a vítima não tenha se sentido ameaçada [...]. 2. Consignado pelo Tribunal a
quo que o réu ameaçou a vítima de morte caso ela chamasse a polícia ou sua mãe passasse mal de novo,
não há falar em atipicidade da conduta. 3. Recurso especial provido para restabelecer a sentença condenatória
relativamente à condenação pelo crime de ameaça” (STJ, REsp 1712678/DF, rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª
T., j. 02/04/2019)
71
Neste sentido, precedente reconhecendo o crime de tortura em contexto de VDFCM: “1. Demonstrado
nos autos que o réu constrangeu a vítima com emprego de violência e grave ameaça, causando-lhe sofrimento
físico e mental, além de privar-lhe a liberdade mediante sequestro, a fim de obter confissão de suposta
traição conjugal, caracterizado está o crime de tortura, tipificado no art. 1º, inciso I, alínea “a”, c/c §4º,
inciso III, da Lei 9.455/1997. [...] 3. Configura o crime de estupro, descrito no art. 213, caput, do Código
Penal, o fato de o réu, após torturar a vítima durante a madrugada, manter com ela conjunção carnal ao
amanhecer do dia, valendo-se do temor causado pelas recentes agressões físicas e morais praticadas,
circunstância que levou a vítima a submeter-se ao ato sexual, por medo de ser novamente espancada”
(TJDFT, Acórdão 1158168, 20180210002880APR, rel. Des. Waldir Leôncio Lopes Júnior, 3ª T. Crim., j.
14/3/2019). 777
255
Thiago Pierobom de Ávila
72
DAY et al., “Violência doméstica e suas diferentes manifestações”, cit., p. 16.
73
JOHNSON/FERRARO, “Research on domestic violence in the 1990s”, cit., p. 952.
74
BIANCHINI, Alice, “Qual o bem jurídico tutelado pela Lei Maria da Penha?”, in: Estudos feministas
por um direito menos machista (coord: Aline Gostinski, Fernanda Martins), v. III. São Paulo: Tirant, 2018,
(pp. 13-24).
75
ÁVILA, Thiago Pierobom de, “The criminalization of femicide”, in: Intimate partner violence, risk and
security – securing women’s lives in a global world (coord: Kate Fitz-Gibbon, Sandra Walklate, Jude
778
256 Mcculloch, Janemaree Maher), Londres: Routledge, 2018, (pp. 181-198).
Dogmática penal com perspectiva de gênero
76
Por exemplo, este autor realizou consulta perante o Núcleo de Gênero do MPDFT em setembro de 2020
e não há registros de nenhuma condenação por esta modalidade de crime no Distrito Federal. V. BIANCHINI
et al., Crimes contra mulheres, cit., p. 96.
77
WALKLATE, Sandra; FITZ-GIBBON, Kate; MCCULLOCH, Jude; MAHER, JaneMaree, Towards a
global femicide index – counting the costs, Londres: Routledge, 2020, p. 64.
78
ONU MULHERES; BRASIL, Diretrizes nacionais feminicídio, cit., p. 40.
79
TOLEDO, Francisco de Assis, Princípios básicos de direito penal, 5ª ed., 9ª tir., São Paulo: Saraiva,
2001, p. 200.
80
ÁVILA, “The criminalization of femicide”, cit.
81
ÁVILA, Thiago Pierobom de, “Feminicídio e diretrizes internacionais: a inconvencionalidade da tese
de legítima defesa da honra”, in: VVAA., Estudos em homenagem ao Prof. Augusto Silva Dias, São Paulo:
Tirant lo Blanc, [no prelo]. Nesse sentido: STF, ADPF 779, Pleno, rel. Min. Dias Tofolli, j. 15 mar. 2021. 779
257
Thiago Pierobom de Ávila
88
KELLY, Liz, “The continuum of sexual violence”, in: HANMER, Jalna; MAYNARD, Mary (Orgs.),
Women, violence and social control, Londres: Macmillan, 1987, (pp. 46–60).
89
BORGES, Clara Maria Roman; LEMOS, Alessandra Prezepiorski, “Os estupros nas universidades: uma
análise da heteronormalidade e seus mitos”, Revista Brasileira de Ciências Criminais 133, 2017, (pp. 199-218).
90
FBSP, Anuário brasileiro de segurança pública 2019, cit., p. 116.
91
CAMPOS et al., “Cultura do estupro ou cultura antiestupro?”, cit., p. 981. 781
259
Thiago Pierobom de Ávila
92
GRECO, Rogério, Curso de Direito Penal – parte especial, v. II: Introdução à teoria geral da parte es-
pecial: crimes contra a pessoa, 14ª ed., Niterói: Impetus, 2017.
93
PRANDO, Camila Cardoso de Mello, “O que veem as mulheres quando o direito as olha?”, cit. CAMPOS
et al., “Cultura do estupro ou cultura antiestupro?”, cit. GOMES, “Constituição e feminismo entre gênero,
raça e direito”, cit.
94
PIMENTEL/MENDES, “A violência sexual”, cit.
95
MACKINNON, Feminism unmodified”, cit.
96
CARVALHO/OLIVEIRA, Pesquisa de condições socioeconômicas e violência doméstica e familiar
782
260 contra a mulher”, cit.
Dogmática penal com perspectiva de gênero
88,5% das vítimas são femininas97. Apesar da baixa comunicação, durante os anos de
2016 e 2017 houve 127.585 registros de ocorrências policiais de estupro e estupro de
vulnerável no Brasil, uma média de um registro policial de estupro a cada 8 minutos98.
O mesmo estudo indica que a maioria das vítimas possui menos de 13 anos de idade
e sofreram o crime de abusadores conhecidos. Esta baixa comunicação (estimada em
no máximo 10%) aliada a uma quantidade enorme de casos que ocorrem está ligada
não apenas à vergonha de expor-se publicamente enquanto vítima de estupro (como
uma mácula à castidade) e o medo de retaliação do agressor, mas especialmente ao
medo de ser desacreditada, das críticas que poderão ser recebidas das próprias instâncias
oficiais de persecução por não ter cumprido o papel de “mulher honesta” ou de receber
a pecha de “vingativa”99. Portanto, a excepcionalidade da denúncia deveria gerar a
valorização da coragem da mulher em denunciar a violência sexual sofrida e não a
desconfiança.
Ademais, estudos de neurociência têm indicado que, nos contextos de violência
sexual, o cérebro ativa reações fisiológicas de acordo com o tipo de ameaça e, em
37% a 50% dos casos, esta poderá ser o “congelamento” ou a imobilidade tônica100.
Ou seja, apesar de não haver uma única reação uniforme à violência sexual, frequentemente
as mulheres estão mais preocupadas em sobreviverem à violência (não serem mortas
ou mais agredidas) que propriamente em demonstrarem resistência heroica para
protegerem a honra da família. Muitas vezes, a resistência pode estimular ainda mais
o agressor e agravar a violência. Portanto, a ausência de resistência, ainda quando
possível, não pode ser tida como consentimento. Assim como na VDFCM, a realização
de perícias psicológicas se torna relevante para a documentação dos danos psicológicos
da violência sexual101.
Diversos casos têm sido denunciados de crimes sexuais contra vítimas diversas,
praticados por pessoas com relação de poder ou autoridade (líderes religiosos,
professores, técnicos esportivos, profissionais de saúde) ou ainda por um comportamento
reiterado contra múltiplas parceiras (v.g., encontros amorosos a partir de aplicativos
de encontros seguidos de uso de substância entorpecente para reduzir a resistência da
vítima). Nestes casos, Mendes argumenta que a multiplicidade das vítimas e sua fun-
gibilidade (qualquer mulher que estivesse naquela situação provavelmente sofreria a
mesma violência) permite reconhecer uma “vítima coletiva”, o gênero feminino. Estes
casos de serial rapist trazem novas configurações para o bem jurídico (uma dimensão
coletiva) e para a própria prova, já que o conjunto dos depoimentos convergentes
reforça sua credibilidade reciprocamente102.
97
CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz, Estupro no Brasil: uma radiografia segundo
os dados da Saúde, Brasília: IPEA, 2014, p. 6.
98
FBSP, Anuário brasileiro de segurança pública, cit.
99
FBSP, Anuário brasileiro de segurança pública, cit.
100
ROCHA, Luciana Lopes; NOGUEIRA, Regina Lúcia, “Violência sexual: um diálogo entre o direito e
a neurociência”, in: Leituras de direito: violência doméstica e familiar contra a mulher (coord: Cornélio
Alves de Azevedo Neto, Deyvis de Oliveira Marques), Natal: TJRN, 2017, (pp. 281-303).
101
MENDES, Soraia da Rosa, Processo penal feminista, São Paulo: Atlas, 2020, p. 104.
102
MENDES, Soraia da Rosa, Processo penal feminista, São Paulo: Atlas, 2020, p. 100. 783
261
Thiago Pierobom de Ávila
103
TÁVORA, Mariana Fernandes; MACHADO, Bruno Amaral, “O estupro na conjugalidade: ditos femi-
ninos escondidos”, Revista Brasileira de Ciências Criminais 164(28), 2020, (pp. 311-344).
104
BELEZA, Teresa Pizarro, “Legítima defesa e gênero feminino: paradoxos da ‘feminist jurisprudence’?”,
Revista Crítica de Ciências Sociais 31, 1991, (pp. 143-159). LARRAURI, “Violencia doméstica y legítima
defensa”, cit. AVELLA, “Mujer maltratada y exclusión de responsabilidad”, cit.
784
262 105
TOLEDO, Princípios básicos de direito penal, cit., p. 192.
Dogmática penal com perspectiva de gênero
para que elas não se convertam em uma generalizada autorização para matar ou violar
direitos sem qualquer controle106.
O primeiro problema da legítima defesa praticada pela mulher está em reconhecer
a agressão ilícita, o que coloca os mesmos problemas da visibilidade da violência de
gênero nas relações íntimas e familiares e um suposto “exercício regular de direito”
patriarcal (o que já foi abordado anteriormente). Há o risco de assimilação de “normas
de cultura” enquanto “causas supralegais de exclusão da culpabilidade”107, a legitimar
a histórica discriminação às mulheres. Uma adequada valoração da gravidade da
violência psicológica acumulada permite uma reconfiguração na ponderação com a
reação defensiva. Não se trata de negar valor à dignidade da vida dos homens autores
de violência, mas de reconhecer uma renovada compreensão dos bens jurídicos
protegidos com a ação defensiva, que em última análise remonta ao direito fundamental
a uma vida livre de todas as formas de violência (CBP, art. 3º). Nesse sentido, afirma
Frish que “quando o que está em jogo são bens de alto valor e, além disso, quando a
dignidade da pessoa humana da vítima é atingida – estando o agredido em uma situação
insuportável, é a ele admitida a possibilidade de utilizar-se de meios necessários, ainda
que desproporcionais”108.
Parte da doutrina exige, para a configuração da legítima defesa, a ausência de
provocação de quem se defende, especialmente quando constituir “injúria ou insulto
de certa gravidade, ou ainda uma agressão física”109. Uma adequada dogmática criminal
com perspectiva de gênero deve afastar eventuais teses que associam alegações de
mau cumprimento dos deveres associados à posição feminina, ou reclamações ao
homem, como uma forma de provocação pela mulher, a justificar ou minorar a gravidade
da violência masculina, portanto recusando à mulher o direito de defesa. Outra possível
representação da visão sexista seria a argumentação de “função de garante” da com-
panheira, numa visão de que ela deveria se sacrificar para manter a unidade do lar e
“ajudar” o agressor a abandonar o comportamento agressivo. A perspectiva de gênero
exige reconhecer que o dever de solidariedade cessa com uma situação de violência
doméstica, pois a dignidade da mulher possui valor jurídico mais elevado que a
proteção de uma família já corroída pela violência e não há se falar na figura de
garantido na posição do agressor110.
Ademais, o reconhecimento da legítima defesa pela mulher exige uma nova com-
preensão do conceito legal de “agressão iminente” (CP, art. 25), que tradicionalmente
recusa a legítima defesa contra ataques passados, ou contra ataques num futuro mais
distante (legítima defesa preventiva)111. A correta compreensão das relações de gênero
106
TOLEDO, Princípios básicos de direito penal, cit., p. 192-210. JESUS, Damásio, Direito penal, v. 1:
parte geral, 36ª ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 403-409.
107
JESUS, Direito penal, cit., p. 406.
108
FRISCH, Wolfgang, “Sobre a problemática e sobre a necessidade de uma refundação da dogmática da
legítima defesa”, Revista de Estudos Criminais 19(77), 2020, (pp. 7-34), p. 31.
109
TOLEDO, Princípios básicos de direito penal, cit., p. 197.
AVELLA, Marcela Roa, “Mujer maltratada y exclusión de responsabilidad”, Nova et Vétera 21(65),
110
exige perspectivar a violência doméstica não como um ato isolado, mas como uma
sequência de um histórico atos de violência simbólica, intercalados por momentos de
não violência física ou grave ameaça explícitos, mas que continuam inseridos na
lógica da coerção imanente e potencial. Esta situação de agressão potencial se torna,
por si só, já uma violência psicológica atual em estado permanente. E, “nos crimes
permanentes, a agressão será sempre atual enquanto não cessada a permanência,
enquanto durar o estado antijurídico”112. Portanto, numa relação de violência crônica,
a situação de perigo é constante e real na perspectiva da mulher, condicionando a
certeza da ocorrência de um ato potencialmente grave de agressão futura a si ou seus
filhos, não apenas à vida, mas igualmente à integridade física, psicológica e à liberdade
sexual, bem como gera o sentimento de desesperança por não conseguir sair da relação
violenta em segurança e de impossibilidade de se defender sozinha. “O controle
coercitivo retira da mulher os meios para sair de uma relação abusiva ou resistir com
eficiência”113. Esta reação pela mulher à violência não deve ser compreendida apenas
no nível individual, como uma síndrome psicológica de uma mulher doentia e incapaz,
mas acima de tudo problematizada como um fenômeno repetido e derivado das relações
culturais de poder que normalizam violências reiteradas às mulheres114. Portanto, o
reconhecimento da proporcionalidade deve incorporar os sentimentos da defendente,
suas emoções e reações, especialmente após ser submetida à violência doméstica. Ou
seja, deve-se avaliar a “razoabilidade exigível de uma mulher vítima de maus-tratos”115.
A perspectiva de gênero também condiciona a compreensão do uso moderado
dos meios necessários. É necessária muita força de vontade para superar o estado de
anestesia relacional, o que não raro gera reações aparentemente excessivas a um
observador externo (usualmente a partir de uma visão masculina). Ademais, se para
os homens a luta com o uso das mãos poderia ser um meio alternativo menos gravoso,
para as mulheres esta alternativa não existe, de sorte que o uso de uma faca pode ser,
na circunstância, o meio menos gravoso disponível para lesionar e sair da situação
de violência116. Não se trata apenas de diferença de força física, mas sobretudo de
diferença nas relações de poder que tolhem reações defensivas pelas mulheres117.
Portanto, o contexto de premeditação e de meios necessários deve ser perspectivado
dentro das alternativas reais de sair da situação de violência a partir da percepção da
mulher, sob pena de se condenar a mulher a uma “morte em prestações”118.
A proporcionalidade do meio de defesa está ligada às representações pela mulher
quanto às possibilidades reais de sair da situação de violência. Em situações ordinárias,
112
TOLEDO, Princípios básicos de direito penal, cit., p. 195.
113
BUZAWA, Eve S.; BUZAWA, Carl G.; STARK, Evan D., Responding to domestic violence: the inte-
gration of criminal justice and human services, 5ª ed., Thousand Oaks: SAGE, 2017, p. 353.
114
MACHADO, “Onde não há igualdade”, cit. DIAS, Violência da família, cit. BANDEIRA, “Violência
de gênero”, cit.
115
AVELLA, “Mujer maltratada y exclusión de responsabilidad”, cit.
116
LARRAURI, “Violencia doméstica y legítima defensa”, p. 22.
117
BELEZA, “Legítima defesa e gênero feminino”, cit.
786
264 118
LARRAURI, “Violencia doméstica y legítima defensa”, cit., 23.
Dogmática penal com perspectiva de gênero
119
V. CNJ; IPEA, O Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulhe-
res, cit.
120
CAMPBELL, Jacquelyn C., WEBSTER, Daniel W.; GLASS, Nancy, “The Danger Assessment: vali-
dations of a lethality risk assessment instrument for intimate partner femicide”, Journal of Interpersonal
Violence 24(4), 2009, (pp. 653-674).
SAGOT, Montserrat, La ruta crítica que siguen las mujeres afectadas por la violencia intrafamiliar en
121
America Latina – estudio de caso em diez países, Washington D.C.: OPAS, 2000.
122
AVELLA, Marcela Roa, “Mujer maltratada y exclusión de responsabilidad”, Nova et Vétera 21(65),
2012, (pp. 49-70).
123
BUZAWA et al., Responding to domestic violence, cit., 173.
SANTOS/PASINATO, “Violência contra as mulheres e violência de gênero”, cit. MACHADO, “Onde
124
125
BUZAWA et al., Responding to domestic violence, cit., 38-43.
126
FBSP, Anuário brasileiro de segurança pública 2019, cit.
BRASIL, Levantamento nacional de informações penitenciárias INFOPEN Mulheres, 2ª ed., Brasília:
127
medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, Brasília: CNJ, 2016.
133
TANNUSS et al., “Mulheres no tráfico”, cit. 789
267
Thiago Pierobom de Ávila
uma atenuante genérica (CP, art. 66). Ainda que não seja exatamente a mesma situação,
o sistema penal permite a compreensão que a participação de menor importância deve
ser apenada de forma menos gravosa (CP, art. 29, § 1º). Ou seja, deve-se colocar em
perspectiva o crime concreto dentro do sistema mais amplo da criminalidade, onde
as mulheres se inserem em posições de menor importância na logística do crime e,
portanto, o juízo de reprovabilidade não deveria ser idêntico ao dos homens. É claro
que este discrímen está diretamente associado à desigualdade de fato das mulheres
nas relações sociais. O dia em que alcançarmos a plena equidade de gênero, não fará
sentido a diferenciação. Mas a realidade é que estamos muito longe desta equidade
no dia-a-dia das mulheres e seu envolvimento na criminalidade está diretamente con-
dicionado por tais relações de poder.
Ainda que sem pretensão de análise exauriente, poderíamos analisar outras duas
áreas relacionadas à criminalidade feminina nas quais a perspectiva de gênero pode
trazer uma reconfiguração. Pesquisa documentou que as mulheres recebem punição
mais exacerbada quando acusadas de crimes omissivos impróprios relacionados ao
dever de cuidado dos filhos, especialmente quando não rompem relações afetivas que
expõem os filhos à violência doméstica (crime de maus tratos) ou ainda no caso de
o companheiro praticar estupro contra a filha e a mulher tomar conhecimento, mas
deixar de tomar providências134. Tem-se exigido “total impedimento” para escusar a
omissão de proteção pela mãe, quando a compreensão das relações de gênero deveria
levar ao melhor entendimento sobre as constrições culturais que mantêm as mulheres
presas em relacionamentos abusivos, silenciando na proteção de si mesmas e, muitas
vezes, dos próprios filhos. Esta atribuição de responsabilidade por omissão das mulheres
ocorre em clara reprodução dos estereótipos de gênero quanto à tolerância social ao
abandono da família pelo homem e a sobrecarga da mulher nas funções de cuidado
materno, explicitando o quanto o Direito é utilizado como instrumento de reforço dos
papéis de gênero. O risco de hiper-representação das mães como autoras de maus
tratos de crianças, especialmente na primeira infância, também pode ser visto como
expressão desta sobrecarga feminina nas funções de cuidado.
O aborto com consentimento da gestante (CP, art. 124) é um crime praticado por
mulheres, ainda que contem com auxílio de terceiros. O aborto possui tratamento
distinto em diversas culturas. A visão sobre o aborto configura, em última análise,
uma visão espiritual (e sacra) quanto ao momento de início da vida, cuja proibição
absoluta colidiria com o ideal de um Estado laico135. A crítica feminista tem acentuado
a função de controle sobre a sexualidade das mulheres derivada da proscrição absoluta
134
MAYCÁ, Giulia Vogt; BUDÓ, Marília de Nardin, “A criminalização da mulher e os estereótipos de
gênero: uma análise do discurso judicial em delitos omissivos impróprios”, in: Sistema de justiça criminal
e gênero – diálogos entre as criminologias crítica e feminista (Renata Monteiro Garcia et al.), João Pessoa:
Ed. CCTA, 2020, (pp. 89-120).
DWORKIN, Ronald, Domínio da vida – aborto, eutanásia e liberdades individuais, São Paulo: Martins
135
790
268 Fontes, 2003.
Dogmática penal com perspectiva de gênero
do aborto, a negação dos direitos reprodutivos (enquanto liberdade para decidir ter
ou não filhos), a sobrecarga à mulher quanto às funções de cuidado que advirão da
parentalidade (e, portanto, o impacto brutal em seu futuro e sua emancipação de vida),
bem como os riscos à saúde da mulher pela realização do aborto na clandestinidade,
especialmente das mulheres mais pobres136. Apesar da criminalização, trata-se de uma
conduta comum; segundo pesquisa de Diniz e Medeiros, uma em cada cinco mulheres
brasileiras, ao final de sua vida reprodutiva, já realizou um aborto137.
Para além da eventual crítica político-criminal quanto à legitimidade e efetividade
da criminalização do aborto, a crítica feminista permite trazer uma nova configuração
dogmática para o eventual reconhecimento de estado de necessidade ou de inexigibilidade
de conduta diversa, especialmente em situações de idade muito precoce da gestante,
existência de prole extensa ou situações de pobreza extrema, em que o resultado do
avanço da gravidez se tornassem catastróficos na vida daquela mulher, gerando uma
situação de desespero. Nesse sentido, Roxin afirma que a criminalização do aborto “é
ineficaz se uma mulher de qualquer maneira decidida a abortar vai a um charlatão e
ali realiza a intervenção cirúrgica. A história prova que isso ocorre [...]. Tais consequências
são, porém, indesejadas, uma vez que elas acarretam para a gestante perigos que vão
desde lesões à saúde até extorsões”138. Assim, ele conclui que a descriminalização do
aborto na fase inicial da gestação, acompanhada de apoio psicossocial à mulher e
programas de apoio financeiro às mães, seriam estratégias político-criminais mais
eficientes para se evitar a interrupção voluntária da gestação que a criminalização.
Há precedente da 1ª Turma do STF, sem efeito erga omnes, reconhecendo o
direito fundamental da mulher de interromper a gestação durante o primeiro trimestre,
portanto a ilegitimidade de incriminação do aborto nesse contexto139. O tema da des-
criminalização do aborto até a 12ª semana de gestação está atualmente em discussão
no STF, na ADPF 442, e envolve a alegação de inconstitucionalidade por ofensa aos
princípios da dignidade, liberdade, igualdade, saúde e proscrição de tratamentos
desumanos e degradantes, considerando especialmente as consequências desiguais
da criminalização para as mulheres negras, pobres e indígenas.
Conclusão
136
FERRAND, Michèle, “O aborto, uma condição para a emancipação feminina”, Estudos Feministas
16(2), 2008 (pp. 653-659). SCAVONE, Lucila, “Políticas feministas do aborto”, Estudos Feministas 16(2),
2008, (pp. 675-680). DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo, “Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar
com técnica de urna”, Ciência & Saúde Coletiva 15(1), 2010, (pp. 959-966).
137
DINIZ/MEDEIROS, “Aborto no Brasil”, cit.
138
ROXIN, Estudos de direito penal, cit., p. 174. Caso se supere a premissa de ilegitimidade da crimina-
lização do aborto sem considerar os impactos na vida da mulher, a intervenção de quem Roxin chama de
“charlatão” poderia ser reconfigurada, sem o caráter extorsivo, como um ato humanitário de socorro de
uma parteira à gestante desesperada (ainda que com riscos à saúde derivados da clandestinidade).
139
STF, HC 124.306/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 29 nov. 2016. 791269
Thiago Pierobom de Ávila
140
FOUCAULT, Michel, A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro: NAU, 2002.
141
SEVERI, “Justiça em uma perspectiva de gênero”, cit., p. 591.
142
RAGO, Margareth, “Epistemologia feminista: gênero e história”, in: Masculino, feminino, plural: gê-
nero na interdisciplinaridade (Joana Maria Pedro, Miriam Pillar Grossi), Florianópolis: Ed. Mulheres,
2006, (pp. 20-41).
792
270 143
BELEZA, “Legítima defesa e gênero feminino”, cit., p. 158.
Dogmática penal com perspectiva de gênero
793271