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RESUMO
O presente texto tem como objetivo apresentar os desafios e as estratégias metodológicas de
pesquisar com familiares-vítimas da letalidade policial. A reflexão é fruto de uma experiência
de pesquisa no Direito com viés criminológico, cujo objetivo é compreender como o direito
aparece e opera nas narrativas e reações de familiares-vítimas da letalidade policial. Para
cumprir o fim desse trabalho, apresento o percurso realizado na construção e implementação
do desenho metodológico da pesquisa. Por fim, com o objetivo de exemplificar os resultados
obtidos no trabalho, apresento as percepções que os familiares têm sobre o sistema de justiça
criminal.
Palavras chave: Metodologia; Letalidade policial; Pesquisa qualitativa; Antropologia jurídica.
1. INTRODUÇÃO
1 Pesquisa financiada pelo Programa de Iniciação Científica da Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas, 2018/2019, cujo título foi “A gente formiga e eles elefantes”: o direito nas narrativas de
familiares de vítimas da letalidade policial em Feira de Santana, sob orientação da Prof a. Dra. Maíra Machado e
do Prof. Dr. Riccardo Cappi, a quem agradeço publicamente pela generosidade em partilharem suas orientações.
PINHEIRO, Luciano Santana. A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:
desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.
2 Utilizo neste trabalho a expressão “familiares-vítimas” no lugar de familiares de vítimas porque entendo que as
famílias das vítimas dos homicídios também são vítimas da ação policial, na medida em que os eventos
traumáticos lhes provocam, com frequência, problemas de saúde física e psíquica, tais como problemas
cardiovasculares, ansiedade, depressão, entre outros problemas de saúde mental.
3 O trabalho de Ana Flauzina (2006) é importante em mostrar como o sistema penal brasileiro se mantém
compromissado com o genocídio antinegro. A contribuição de Poliana Ferreira e Ricardo Cappi, nesse sentido,
se dá por discutir juridicamente o termo genocídio para aplicar no Brasil.
4 Expressão utilizada pela socióloga baiana Vilma Reis (2005) para designar uma dimensão interseccional da
violência policial, denotando uma questão de gênero, racial e geracional das vítimas.
PINHEIRO, Luciano Santana. A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:
desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.
P A expressão “sujeito epistemológico” utilizada aqui é para fazer remissão a um conjunto de trabalhos,
sobretudo de intelectuais negras, que têm questionado as relações de poder existentes na produção de
conhecimento. Merece destaque, nesse conjunto de trabalhos, a socióloga feminista negra estadunidense, Patricia
Hill Collins (2019), que elabora uma teoria do pensamento feminista responsável em definir o processo de
validação do conhecimento e irrompe com as lógicas hegemônicas de produção de conhecimento. O trabalho da
antropóloga Lélia Gonzalez (1983) também se destaca nesse arsenal, ao propor a discussão em que o “lixo vai
falar”, em contraposição às narrativas que tem infantilizado, ou seja, falado pelas mulheres negras. Assim, ao
trazer os familiares-vítimas como sujeito epistemológico, estou tentando dar um sentido político e de fissura a
esses atores que são inviabilizados pelo direito enquanto atores responsáveis pela produção de conhecimento.
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desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.
Destaca-se no esquema o fato que os casos trabalhados nesta pesquisa tiveram como
ponto de partida os jornais policiais8 e a rede social Facebook. O acompanhamento da seção
policial dos jornais durante o período de pesquisa e a busca de matérias antigas de homicídios
4 Lucas, jovem de 16 anos, morreu executado por policiais no dia 16 de junho de 2018. Policiais invadiram sua
casa à procura dos supostos autores da morte de outro policial. O garoto e o restante de sua família foram
submetidos a tortura para que confessassem a autoria, mas como não houve a confissão, já que eles
desconheciam os autores do crime, Lucas foi levado a um local próximo de sua casa e executado sumariamente.
5 Cosme e Damião foram mortos por policiais militares. Eles se encontravam em um riacho próximo do local
que moravam, pescando e caçando, práticas muito comuns no bairro, e foram submetidos a tortura para entregar
informações sobre o tráfico da região. Por não terem dado as informações, já que não sabiam, Cosme teve sua
perna quebrada, “virada pra trás”, e seu amigo, Damião, teve as suas mãos e o seu rosto queimados.
Posteriormente, os meninos foram executados, cada um com um tiro.
6 Carlos tinha 16 anos, foi morto quando estava em frente à casa de um amigo. Ao avistar policiais chegando no
bairro, ele saiu correndo, momento em que foi alvejado com dois tiros, um na nuca e outro na cabeça.
7 Todos os nomes mencionados aqui são fictícios, para preservar a identidade dos jovens e das famílias.
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desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.
Nesta parte, pretendo explorar como o contato com campo, sumarizado acima, me
“afetou”, nos termos proposto por Favret-Saada (2005), antropóloga que desenvolve, a partir
da experiência etnográfica com a feitiçaria, a ideia de que é necessário ser tomado por
experiências que se localizam no registro do inenarrável, ou seja, que só se encontram
sentindo. Nesse passo, viso mostrar como esse processo de afetação me direcionou a dois
movimentos: a notar os limites da entrevista do tipo semiestrurada no contexto da pesquisa
que desenvolvo e a buscar novas ferramentas metodológicas para desenvolver o trabalho, o
que, consequentemente, me permitiu o benefício dos aportes teórico-metodológicos da
Antropologia. Há aqui, um encontro de um estudante de Direito com a perspectiva
antropológica.
A presente pesquisa se inscreve em uma abordagem que procura entender as formas
com as quais os indivíduos lidam com as estruturas, ou seja, as maneiras que os familiares-
vítimas vivenciam as estruturas (KAMINISKI, 2017). Uma formulação metodológica que
parte dos sujeitos envolvidos no problema permite compreender os efeitos do “racismo”,
“genocídio antinegro”, “necropolítica” e “gênero”, entre outras categorias importantes que
precisam de uma interpelação daqueles que experimentam a realidade para que possam
elucidar nuances que ficam ofuscadas nas categorias analíticas. Dessa forma, a formulação do
desenho metodológico de uma pesquisa com familiares-vítimas da letalidade policial deve se
preocupar em notar as justificativas de suas atitudes e as maneiras pelas quais os fenômenos
são percebidos. Mas qual a técnica possível para realizar essa tarefa?
A entrevista semiestruturada foi a técnica escolhida inicialmente para dar conta da
pergunta de partida e dos objetivos da pesquisa, uma vez que foi necessário desenvolver um
método de escuta que possibilitasse que sujeitos “subalternizados”, na sua situação de dor,
pudessem falar da maneira que suas relações são estabelecidas com Estado; e, ao mesmo
tempo, que funcionasse com um caráter político. Foi um método que no primeiro momento se
mostrou capaz de captar a narrativas sobre o Direito, cumprindo, dessa forma, o objetivo geral
do objeto de pesquisa.
Poupart (2010) apresenta três argumentos para justificar o recurso da entrevista do tipo
qualitativa. Eles são, respectivamente, de ordem epistemológica, ético-política e
metodológica: a possibilidade de analisar as realidades sociais segundo as perspectivas dos
atores sociais; a possibilidade de “denunciar os preconceitos, as práticas discriminatórias e as
iniquidades” (POUPART, 2010, p. 220), bem como a possibilidade de obter informação sobre
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Dona Rosa tem a pele negra, negra bem retinta, de estatura baixa, com veste
simples. Fui convidado para entrar em sua casa, atendi ao convite e sentei em um
sofá, em uma sala com pouca iluminação, a cozinha próxima a sala, em um cômodo
pequeno. Dona Rosa sentou na cabeceira do sofá, de forma diagonal em relação a
mim, em uma posição que denunciava a indisponibilidade dela em relatar o
acontecido. Durante toda a conversa pude perceber que, a despeito da
disponibilidade de sua filha de falar do acontecido, inclusive, tentando convencer a
sua mãe de igual atitude, a senhora sentou de forma inclinada e concentrava um
olhar fixado a um ponto qualquer, enquanto sua filha conversava comigo. Ela se
mostrava incomodada, raras eram as vezes em que ela intervia no diálogo. Em dado
momento, sua filha revelou que elas não conversavam sobre a morte do irmão e
disse que, diferente dela, que gosta de falar para saberem que o menino não está
errado, sua mãe não gostava de tocar no assunto. A vontade dela de não falar foi,
finalmente, revelada por um suspiro e uma declaração reticente dizendo que não
gosta de lembrar. (Caderno de Campo)
O contato com a mãe e irmã de Damião é representativo para pensar que nem sempre
as narrativas de dores serão acessíveis por meio da entrevista. A mãe dele apresentou inscrita
no seu corpo a recusa de agenciar sua narrativa, quando ela sentou em minha frente em uma
posição diagonal. Antes que uma leitura apressada diga, esse episódio não deve ser associado
simplesmente a uma timidez, na medida em que esse silêncio em relação a morte do filho dela
se estende nas relações privadas com a filha, e tampouco pode ser lida como uma inércia, já
que elas participam de atos públicos reivindicatórios de justiça para as vítimas. É necessário
notar o silêncio como uma resposta possível, portanto.
Dessa forma, é fácil notar que as respostas não se encontram necessariamente de
forma acessível no sentido audível, sobretudo em um contexto em que o Direito não se mostra
como um auditório para ouvir os familiares. Portanto, seria contraproducente tentar encontrar
respostas somente por meio de entrevista.
Nesse sentido, a busca de familiares e os contatos preliminares com eles foram
fundamentais para realizar uma formulação metodológica: utilizar não só a escuta, mas trazer
as cenas, as descrições. Foi a partir de situações como essa descrita, em que a carga emotiva
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foi intensa, e diante da impossibilidade de utilizar o gravador de voz, que fui convencido de
que o sentido da audição por si só deixa esvair outros elementos, outras formas de falar
igualmente importantes na pesquisa.
Não se trata aqui, no entanto, de excluir a entrevista do processo de pesquisa, mas de
colocá-la como uma técnica complementar, para responder à pergunta de partida e atender aos
objetivos do trabalho. Dessa forma, foi a partir da inserção no cotidiano das famílias que se
tornou possível entender com maior profundidade as reações, as narrativas e as representações
sobre o Direito, sobre como acontece na vivência das famílias.
O quadro teórico-metodológico da perspectiva antropológica me ofereceu uma maior
reflexão sobre essas questões informadas pelo campo. Nesse sentido, a contribuição das
antropólogas Das e Poole (2008, p. 24-25) tem alto relevo. As autoras apresentam três
definições do conceito analítico de margem que nos auxiliam na pesquisa: a) margem
entendida como espaço geográfico onde estão localizados indivíduos em oposição ao centro;
b) margem associada à “legibilidade e ilegibilidade”, trocando por outras palavras, está
relacionada à produção de documentos estatais que permitem que um cidadão seja lido ou não
pelo Estado. São, portanto, responsáveis pela consolidação do controle sobre os sujeitos,
populações, os territórios e as vidas; c) margem entendida como espaço entre corpo, leis e
disciplina. Nessa abordagem, as “margens proporcionam uma posição particularmente
privilegiada para observar a colonização da lei pelas disciplinas, bem como a produção de
categorias patológicas por meio de táticas parasitas da lei, mesmo quando mapeiam repertório
da mesma” (DAS; POOLE, 2008, p.24-25, tradução minha).
Nesse esforço de entender a margem, as autoras apostam no cotidiano para
compreender o Estado. É no “processo da vida diária que podemos ver como o estado é
configurado nas margens” (DAS; POOLE, 2008, p.34, tradução minha). A margem não é
apenas um espaço periférico, na medida em que não se submete passivamente às condições de
violência do Estado, mas desenvolve espaços visíveis de criatividade, criando ações
econômicas e políticas diante de um estado de exceção (DAS; POOLE, 2008, p. 34).
A partir destas considerações, o trabalho de Deborah Poole e Veena Das (2008) nos
oferece um arcabouço precioso para pensar como os familiares observam o direito,
especialmente o sistema a de justiça criminal, e como reagem diante da violência policial. Ao
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apostar na margem como ferramenta metodológica para capturar o Estado, elas aproximam
metodologicamente o direito da Antropologia. O Estado que está colocado na pesquisa é o
Estado brasileiro em suas cenas de violações de direitos fundamentais que obstaculizam a
concretização dos direitos humanos (FERREIRA, 2019, p. 124). Dessa forma, pensar com os
familiares é uma maneira de compreender como o Estado tem se manifestado e tem sido
pensado pelas famílias das vítimas da ação policial.
Das Veena (2007), de modo especial, nos oferece um elemento complementar para
entender que as narrativas de dor podem aparecer inscritas no corpo e não necessariamente na
fala. É esse registro discursivo que explica a reação da mãe de Damião descrita acima e que
informa sobre o desafio de captar narrativas do direito via não dito.
Assim, pelo fato de a etnografia ser a condensação de experiências sensitivas, já que é
“teoria do vivido” (PEIRANO, 2008), a abordagem etnográfica constitui uma formulação
metodológica que me inspirou na construção da pesquisa. Digo “inspirou” porque “etnografia
não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira de interpretar, uma
perspectiva analítica, a própria teoria em ação” (PEIRANO, 2008, p. 20). Logo, a abordagem
etnográfica está na forma como se deu a construção do campo, na maneira como foi
construída a condução dos diálogos e no modo em que as falas assumem lugar na construção
da teoria.
A relevância da observação participante na pesquisa, portanto, reside no fato de
“podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de
perguntas” (NETO, 2008, p. 60). Além disso, é essencial na apreensão do ponto de vista dos
familiares em relação ao Direito, porque “quanto mais próximo chegarmos às condições nas
quais tais pessoas atribuíram sentido aos objetos e eventos, mais precisas serão as descrições
de tais sentidos” (BECKER, 2014, p. 189). Esse movimento representa “[...]a possibilidade de
vivenciar a materialização do Direito, deixando de lado, por um momento, o referencial dos
códigos as Leis para explicitar e tentar entender o que de fato acontece e – no caso do Direito
– o que os operadores do campo e os cidadãos observados dizem que fazem (KANT DE
LIMA, BAPTISTA, 2014, p. 5)
Há que se destacar também que a observação participante foi primordial, em razão da
necessidade de estabelecer relações de confiança para a concretização da pesquisa, tanto na
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fase preliminar de mapeamento, quanto na própria relação entre as famílias. Nesse tipo de
trabalho a confiança é elemento fundamental para que os colaboradores se sintam
confortáveis em compartilhar histórias dolorosas e não se sintam amedrontados.
Por isso foi importante os colaboradores saberem quem eu sou, o que foi possível com
o trabalho de campo. Ter conhecimento de mim extrapola saber sobre o meu lugar acadêmico
e meus interesses de pesquisa, mas está relacionado à identificação. O sentido de identificação
que tomo aqui é o sentido antropológico manifesto na “verossimilhança”. Esse é um elemento
que permite a construção do campo e a comunicação entre pesquisador e colaboradores de
pesquisa. João Pina Cabral (2014) estabelece que é necessário um “pano de fundo” entre o
receptor e o emissor para construir a comunicação, e, consequentemente, o relato etnográfico
também depende da existência de semelhança. “Depende dela tanto para a sua produção (isto
é, o que permite ao etnógrafo no campo perceber o que percebe) como para sua aceitação”
(CABRAL, p. 114). Para ele, a verossimilhança é um elemento que faz parte da produção do
conhecimento etnográfico, à medida que potencializa a percepção do pesquisador. Acrescento
que é o que influencia na forma como os colaboradores de pesquisa percebem o pesquisador.
No caso específico deste trabalho, a verossimilhança foi certamente criada pela minha
racialidade e a dos colaboradores de pesquisa. O fato de ser “jovem-homem-negro” apareceu
em várias situações de campo e em alguns momentos facilitou as interações com os
familiares. Isso ficou evidente em várias falas que expõem a identificação e confiança dos
colaboradores de trabalho comigo: “você é gente como a gente”, “só tô falando isso porque é
para você”; “não falei isso para ninguém”; em situações que os familiares se referiam a
história de seus filhos como semelhantes a minha, “ele era um jovem como você” “ele
também queria fazer Direito”; ou em situações que a direção das escolas em que realizei
oficinas, de forma estratégica, se referiam à minha condição racial e ao fato de ser jovem
universitário, com o fim de utilizar minha trajetória pessoal como inspiração a outros.
A explicitação dessas questões, facilmente classificada pelos adeptos da “neutralidade
científica” como uma coisa “subjetiva”, ou “pouco técnica”, “pessoal demais”, é importante
na construção do desenho metodológico, na medida em que dizem respeito a outra ordem
epistemológica, já que referem sobre quem faz a pesquisa e como faz a pesquisa. Trazer essas
questões tem, portanto, o objetivo de dar sentido epistemológico e metodológico aos
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justiça
Tinha um policial aqui, o escrivão, né? Do lado. Os três ouvindo minha versão lá.
Dois calado. Só um me perguntando a coisa e eu falando a situação todinha sobre o
caso o que aconteceu. Eles perguntavam em relação aos meninos. Um monte de
pergunta. “Você acham que tava armado?”. Eu coloquei tudo negativo. Acredito que
não. Acredito não, tenho certeza! Pedi também para me apresentar a arma, as
porcarias que tava na mão. Pedi para me apresentar e não me apresentaram disse que
é uma questão de justiça e não podia me apresentar. Falei 'Beleza!'. Disse que
encontraram que tava na gaveta. É coisa que a gente fica até meio constrangido de
tá lá no meio. A gente formiga e eles elefantes. A gente tá ali no meio é meio
difícil né? Falei tudinho a situação, mas ademais ficou só nisso ai mesmo.
(Entrevista com Marcelo)9.
9 Utilizei as falas dos colaboradores de pesquisa em sua versão original, mantendo, inclusive, trechos de
entrevistas que, de acordo com a língua padrão, seriam considerados expressões incorretas gramaticalmente.
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Porque acho que não resolve nada, porque se a gente for na Defensoria é daqui
mesmo. Você fala alguma coisa que e só faz se expor a nossa vida. O povo foi prá
lá. Convidaram não sei quantas pessoas prá dar depoimento. O Governo manda. A
ordem do Governo é essa. Quando a mídia pipoca, o Governo chega “Não, a gente
não ensina, a gente não manda isso”. A ordem é essa. Em certos bairros chega
invade, mata. A ordem do governo. Só que quando pipoca, O Governo não vai
se expor a um escândalo desse. A polícia não ia ter a cara de pau de tá
invadindo as casa sem mandado com uma coisa que ia prejudicar ela. Ia? Não
existe. Faça uma análise você que está estudando pra advogado… [...] Eles invadir
sua casa se ia prejudicar. Nunca! Porque a ordem vem dos grandes, depois ó,
“Pra todo efeito se o bicho pegar é vocês ai. Vocês vão segurar a onda pra gente
aí”. É o que acontece. Não dá em nada. Morre crianças, morre mulher, morre
pai de família, morre tudo. Chega lá, como o governo já mandou, ele já seguro
a bronca do governo, aí o governo chega e abafa. Tem que abafar porque os
meninos faz e quando a “bronca” vem eles não expõe a gente. Então é aquele
negócio, um deve ao outro, um faz pelo outro, um deve o outro e só quem sobra é o
cidadão de bem.
Como se vê, a fala de Fábio sugere que a Defensoria Pública não é órgão ideal para
recorrer porque sendo a Instituição da mesma cidade que os policiais e sendo órgão do
Estado, sua atuação favoreceria a possível retaliação da família. Segundo a leitura dele, esse
corporativismo é um comportamento que faz parte do modo de operar de todos os órgãos
judiciais e para embasar seu raciocínio ele exemplifica outros casos de familiares e amigos
que fizeram manifestações, foram ouvidos e na visão dele não houve a devida resposta.
Além disso, outro elemento que chama atenção é a percepção do problema como
estrutural, na medida em que, ao explicar as mortes, ele não se limita à figura da polícia, mas
vê como um fenômeno mais amplo que conta com a cumplicidade do que ele chama de
“Governo” e todos os órgão judiciais, posto que "No Governo tem advogado. No Governo
tem promotor. Tem juiz. Tudo é do Governo. Vocês são advogados particulares. Mas quem
paga o Juiz? Né o Governo? Promotor. Esse negócio é uma máfia danada rapaz”.
A existência de uma articulação e cumplicidade entre “governo” e polícia é também
compartilhada por Marcelo, que acredita que as arbitrariedades, como a morte do seu irmão,
acontecem em razão do pacto entre Estado e instituição policial:
Eu acho que é por causa do poder. Eles sabem que por trás daquela farda ele
tem o governo que defende ele. Então isso ai é muito grande. O cara vai se sentir
lá em cima, né? Então eles dando tapa na cara da gente pra ele não vai dar em nada.
Agora se [disser], “Bora coloca mão na cabeça!” e agente não colocar , eu acredito
que isso vai ser mau pra gente, ai tem que obedecer. Por trás daquelas farda ali tem
outro que defende. Tipo assim eles fizeram esse fato aí, mas até eu consegui
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comprovar vai vim tanto órgãos. São governos e muitas coisas que tão defendo
ali, também o direito. Como eu tenho meu direito também eles ... O meu jeito
de não entender muita coisa, às vezes pra ele ali não vai ligar muito. Quando é
uma pessoa que entende sobre o caso, eu acredito que eles vão ficar meio lá, meio
cá, mas acredito que não vai dar em nada.
Dessa forma, ao contrário dos discursos dos policiais, as falas das famílias mostram
que o que organiza os motivos para morrer por ação policial é a existência de uma suspeição
generalizada forjada pelo território e pela racialidade, simultaneamente. Isso aparece de forma
explícita nas falas dos entrevistados:
Se você com essa bolsa aí, com duas pessoas andando aqui no bairro passar em
qualquer rua dessa aí andando, aí vai a primeira coisa…. Vou usar você aqui pela
cor da pele. Se você passar a viatura lhe ver com essa bolsa, ela lhe joga no canto.
Até você se explicar eles já lhe deram uma pressão. Se duvidar até lhe espancam até
saber quem foi. Porque? Por causa da periferia. A primeira coisa que eles ligam é a
cor da pele, como se cor da pele fosse caráter. Então a periferia é isso ai. Quando
pessoas aí, mãe de família, esculhamba, bate puxa o cabelo, joga no chão? Porque
acha que todo mundo é vagabundo. Acha que todo mundo da periferia são pessoas
erradas (...) Se te pega na Santa Mônica II, aqui no Mochila, os bairros da alta
sociedade. Se te pegar todo tatuado é filho de papai mas se te pega, pele preta,
tatuado na periferia é vagabundo, é ladrão. (Entrevista com pai de Pedro)
Quando eles vêm, vem sem saber quem é, porque, assim, infelizmente, hoje você é
punido pelo lugar que você mora. Se sua família… hoje você mora em uma família e
você tem dez irmão se dois faz e os oito não faz, o polícia onde lhe vê você vai ser
punido por causa só seu irmão.
A ideia de suspeição generalizada indica que o sistema penal, por meio das
intervenções policiais, reatualiza, em uma espécie de continuum, às táticas elaboradas no
processo escravagista e colonial. Assim, da mesma forma que ocorria coma a vadiagem, uma
criação do Estado para impedir a liberdade, “o sistema penal na contemporaneidade também
cria as condições para que sua atuação possa incidir sobre os corpos negros, agora como o
intuito expresso de eliminá-los” (FLAUZINA, 2006, p. 116)
Esses relatos dos familiares nos informam a ideia de que a experiência da população
negra é fundamentada em uma violência estrutural e gratuita (WILDENRSON, 2010).
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Primeiro porque atravessa de forma farta o cotidiano dos moradores, e gratuito porque a
população negra não precisa realizar nenhum ato que perturbe a ordem social, ou infração da
lei. Isso é visível em falas como que “resta é andar certo e rezar para não tomar um balaço
mesmo assim não garante nada” ou frases como “os negros sofrem por tudo, até por ser
negro”.
O repertório de narrativas trazido até aqui desenha uma concepção de Estado em que a
morte promovida por agentes estatais, através da polícia e garantida pelos órgãos de justiça,
gravita em torno de um morto que tem território e cor específica. Essa concepção ecoa a
percepção de Estado desenvolvida por Achille Mbembe. A categoria “necropolítica”,
desenvolvida pelo autor, é atualização da ideia do biopoder foucaultiano para a realidade dos
países colonizados. No necropoder, é a morte que sustenta a engenhosidade do Estado
moderno. Em outras palavras, aqui, não mais atua o binômio “fazer viver e deixar morrer”,
mas sim “fazer morrer e deixar viver”. Ou seja, nessa transição, o poder político assume outra
centralidade que é o “fazer morrer”. Assim, enquanto no biopoder, o poder político tinha
como objetivo otimizar a vida, alongar, ainda que seja através da morte, aqui a prioridade é
exterminar a vida dos indesejáveis. Dessa forma, “Governar pelo terror já não tem tanto a ver
com reprimir e disciplinar, mas sobretudo com matar, seja em massa ou em doses mais
contidas” (MBEMBE, 2016).
As narrativas dos familiares sobre a atuação da polícia e sobre os órgãos parece se
aproximar de forma muito evidente da ideia de necropolítica, pois elementos trazidos pelos
entrevistados, como a territorialidade e a racialidade, são elementos constitutivos do
necropoder, que parecem desenhar um poder político baseado na economia da morte.
4. Reflexões finais
REFERÊNCIAS
DAS, Veena. Life and Words. Violence and the descent into the ordinary. Berkeley:
University of California Press, 2007.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. O corpo negro caído no chão: o sistema penal e o
projeto genocida do estado brasileiro. 2006. 146f. Dissertação (Mestrado em Direito) –
Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2006.
MARTA, Maíra Rocha. Carandiru não é coisa do passado: um balanço sobre os processos,
as instituições e as narrativas 23 anos após o massacre. São Paulo: FGV Direito SP, 2015.
MISSE, Michel (org.). "Autos de Resistência": uma análise dos homicídios cometidos por
policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Relatório Final de Pesquisa - Núcleo de
Estudos da Cidadania, Conflitos e Violência Urbana. Rio de Janeiro: Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2011.
REIS, Vilma Maria dos Santos. Atucaiados pelo Estado: as políticas de segurança pública
implementadas nos bairros populares de Salvador e suas representações, 1991–2001.
2005. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005
WILDERSON, Frank B. Red, White, and Black: Cinema and the Structure of U.S.
Antagonism. Durham, NC: Duke University Press, 2010.