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PINHEIRO, Luciano Santana.

A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:


desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

A LETALIDADE POLICIAL PELO OLHAR DOS FAMILIARES-VÍTIMAS:


DESAFIOS E ESTRATÉGIAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS1

Luciano Santana Pinheiro


Graduando do curso de Direito da Universidade Estadual de
Feira de Santana. Membro do Grupo de Pesquisa em
Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana
(GPCrim). E-mail: lucianosantana12@hotmail.com

RESUMO
O presente texto tem como objetivo apresentar os desafios e as estratégias metodológicas de
pesquisar com familiares-vítimas da letalidade policial. A reflexão é fruto de uma experiência
de pesquisa no Direito com viés criminológico, cujo objetivo é compreender como o direito
aparece e opera nas narrativas e reações de familiares-vítimas da letalidade policial. Para
cumprir o fim desse trabalho, apresento o percurso realizado na construção e implementação
do desenho metodológico da pesquisa. Por fim, com o objetivo de exemplificar os resultados
obtidos no trabalho, apresento as percepções que os familiares têm sobre o sistema de justiça
criminal.
Palavras chave: Metodologia; Letalidade policial; Pesquisa qualitativa; Antropologia jurídica.

1. INTRODUÇÃO

Neste trabalho, pretendo apresentar um debate teórico-metodológico referente à


pesquisa com familiares-vítimas do Estado. A reflexão surge de uma pesquisa empírica com
viés criminológico que visa entender como o direito opera e aparece nas narrativas de
familiares-vítimas da letalidade policial. O trabalho pretende compreender como se dá a
relação entre familiares e Estado e como a percepção sobre o sistema de justiça é construída
nessa relação.
O objetivo central desse texto não é apresentar resultados da pesquisa, mas, antes de
qualquer coisa, refletir, a partir dessa experiência de pesquisa empírica, a construção do

1 Pesquisa financiada pelo Programa de Iniciação Científica da Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas, 2018/2019, cujo título foi “A gente formiga e eles elefantes”: o direito nas narrativas de
familiares de vítimas da letalidade policial em Feira de Santana, sob orientação da Prof a. Dra. Maíra Machado e
do Prof. Dr. Riccardo Cappi, a quem agradeço publicamente pela generosidade em partilharem suas orientações.
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desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
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desenho metodológico, discutindo como a Antropologia contribui para o processo de


investigação. Nos interessa, portanto, mostrar o percurso da pesquisa, bem como destacar as
principais dificuldades que envolvem entender as mobilizações de técnicas possíveis para
pesquisar a letalidade policial a partir do olhar dos familiares-vítimas 2 e como a perspectiva
antropológica é importante para solucionar algumas questões.
O cenário numérico acerca dos índices dos chamados autos de resistência, ou mortes
decorrentes de intervenções policiais, e as formas como ocorrem essas mortes têm dado conta
que o número da letalidade policial no Brasil assume a natureza de um “genocídio” 3
(FLAUZINA, 2006; NASCIMENTO, 2016; FERREIRA, CAPPI, 2016). No ano de 2018,
segundo o Fórum de Segurança Pública, o Brasil contabilizou cerca de 6.220 mortes
decorrentes de intervenções policiais, o que representa um crescimento de 19% em relação ao
ano de 2017. A distribuição dessas mortes concentra-se em “jovens-homens-negros” , na
medida em que 99,3% das vítimas são do sexo masculino, 77,9% com idade entre 15 e 29
anos e 75,4% são negros (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019).
O problema das mortes de civis motivadas por ações de agentes policiais tem sido
agenda de pesquisa de pesquisadoras e pesquisadores sob as mais diversas abordagens, tais
como: as percepções dos próprios agentes policiais que matam (SOARES, 2019); os
processamentos desses homicídios pelo sistema de justiça criminal brasileiro (MISSE, 2013);
a responsabilização dos policiais na esfera administrativa, civil e criminal (FERREIRA,
2019); as repercussões e respostas dadas pelo sistema nacional e internacional por casos
brasileiros (FERREIRA, MACHADO; MACHADO, 2012); as rotinas das Delegacias de
Homicídios no processo de investigação e no controle das mortes e etc (MEDEIROS, 2016).
A variedade de trabalhos demostra que a questão tem assumido relevante valor científico,
bem como constituído agendas de pesquisa sob diversos percursos metodológicos.

2 Utilizo neste trabalho a expressão “familiares-vítimas” no lugar de familiares de vítimas porque entendo que as
famílias das vítimas dos homicídios também são vítimas da ação policial, na medida em que os eventos
traumáticos lhes provocam, com frequência, problemas de saúde física e psíquica, tais como problemas
cardiovasculares, ansiedade, depressão, entre outros problemas de saúde mental.
3 O trabalho de Ana Flauzina (2006) é importante em mostrar como o sistema penal brasileiro se mantém
compromissado com o genocídio antinegro. A contribuição de Poliana Ferreira e Ricardo Cappi, nesse sentido,
se dá por discutir juridicamente o termo genocídio para aplicar no Brasil.
4 Expressão utilizada pela socióloga baiana Vilma Reis (2005) para designar uma dimensão interseccional da
violência policial, denotando uma questão de gênero, racial e geracional das vítimas.
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Apesar desse cenário de relativa diversidade de perspectivas, a abordagem a partir dos


familiares-vítimas da letalidade é incipiente, isto é, há poucas pesquisas nas ciências sociais a
partir das companheiras, irmãs, irmãos, pais de vítimas. No campo do Direito esse cenário é
ainda mais crítico, e torna-se mais acentuado se pensarmos sob uma perspectiva de
distribuição regional das pesquisas, uma vez que essas têm se concentrado no eixo sudeste. É
dessas lacunas que surge a necessidade de pensar os familiares como sujeito epistemológicoP .
Nesse sentido, o presente estudo focaliza nas reações dos familiares das vítimas da
letalidade policial em Feira de Santana diante das mortes de seus parentes. Mais
especificamente, pretende identificar as modalidades através das quais o Direto aparece em
suas narrativas. Assim, parte-se da seguinte pergunta: “Como o Direito aparece e opera nas
reações e nas narrativas dos familiares das vítimas da letalidade policial em Feira de
Santana?”.
Para cumprir seu objetivo, o texto está organizado em duas partes. No tópico 2,
primeiro apresento as estratégias metodológicas, de modo a mostrar a necessidade da
utilização dos aportes teóricos e metodológicos da Antropologia para serem abordados na
pesquisa em Direito.
Já no tópico 3, apresento as percepções que os familiares formulam acerca do sistema
de justiça criminal, na tentativa de entender como elas são construídas.

2. Abordagem metodológica: percursos, desafios e estratégias

O percurso realizado para encontrar os colaboradores de pesquisa se transformou no


encontro de um novo desenho metodológico. Esta seção está subdividida em duas partes, no
esforço de acompanhar os movimentos que realizei no trabalho de campo. No primeiro

P A expressão “sujeito epistemológico” utilizada aqui é para fazer remissão a um conjunto de trabalhos,
sobretudo de intelectuais negras, que têm questionado as relações de poder existentes na produção de
conhecimento. Merece destaque, nesse conjunto de trabalhos, a socióloga feminista negra estadunidense, Patricia
Hill Collins (2019), que elabora uma teoria do pensamento feminista responsável em definir o processo de
validação do conhecimento e irrompe com as lógicas hegemônicas de produção de conhecimento. O trabalho da
antropóloga Lélia Gonzalez (1983) também se destaca nesse arsenal, ao propor a discussão em que o “lixo vai
falar”, em contraposição às narrativas que tem infantilizado, ou seja, falado pelas mulheres negras. Assim, ao
trazer os familiares-vítimas como sujeito epistemológico, estou tentando dar um sentido político e de fissura a
esses atores que são inviabilizados pelo direito enquanto atores responsáveis pela produção de conhecimento.
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momento, apresento o processo de busca pelos colaboradores de pesquisa, e, posteriormente,


reflito acerca da concepção das ferramentas metodológicas escolhidas para a pesquisa. Em
seguida, exploro como o contato com a realidade e com os colaboradores de campo me
reposicionou para a busca de novas ferramentas metodológicas.
Inicialmente, vale dizer que parte significativa do processo de procura dos parentes
dos mortos foi fortemente marcado por um sentimento de medo por minha parte. Isso porque
pesquisar a letalidade policial a partir dos familiares é uma tarefa por si só difícil, uma vez
que é desvendar parte da caixa-preta do sistema penal brasileiro e de suas relações com os
cidadãos, é revelar o esconderijo do sistema penal informal subterrâneo que se operacionaliza
de forma muito acentuada na América Latina (ZAFFARONI, 2007).
As dificuldades tornam-se mais agudas no contexto de uma cidade média, no interior
do estado baiano, em que as informações circulam com maior facilidade, onde as pessoas se
conhecem mais facilmente, e, por consequência, as chances de retaliação se tornam mais
concretas. Nesse sentido, a entrada em campo em uma pesquisa como essa exigiu estratégias
de segurança, tanto para o pesquisador quanto para aqueles que participaram da pesquisa. A
experiência de busca pelos familiares, portanto, significou caminhar em um campo minado,
pois a todo momento foi necessário pensar e repensar os passos a serem dados, seja na hora de
marcar as conversas exploratórias, seja para chegar nos lugares combinados para o encontro
com um familiar, ou mesmo para saber o momento certo de anunciar que esta pesquisa visa
discutir letalidade policial. Ou seja, uma abordagem que, nos mínimos detalhes, exigia
precauções e transmissão de segurança: não foram raros os casos de pessoas que mostravam
interesse em realizar a pesquisa, mas depois informavam que não poderiam me ajudar. Assim,
essa procura pelos familiares constituiu, por si só, um verdadeiro processo investigativo, no
sentido amplo da palavra, e, por isso, se tornou uma das maiores dificuldades enfrentadas no
decorrer da pesquisa.
Outro fator que explica as dificuldades deste processo é a inexistência de uma rede
constituída de familiares-vítimas na cidade. Dessa forma, foi preciso desenvolver estratégias
próprias a fim conseguir chegar às famílias, o que tornou esse período de mapeamento mais
longo do que planejado.
A descrição do processo de busca também faz remissão ao trabalho de
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BronisławMalinowski (1922), quando aponta a necessidade de trabalhos etnográficos, e daí se


estende às pesquisas das ciências socais, com a exigência de apresentar as condições sob as
quais se fizeram as observações e se coletaram as informações. O procedimento, conforme
afirma o antropólogo, deve ser aprimorado a ponto de o leitor ser “capaz de avaliar com
precisão o grau de familiaridade pessoal do autor com o fato que descreve e de fazer uma
ideia das condições nas quais as informações foram obtidas dos nativos” (MALINOWSKI,
1922, p. 40). Nesse sentido, a descrição que segue tem a função de qualificar a pesquisa de
modo a garantir o que Malinowski (1922, p. 40) chama de “valor científico indiscutível”,
revelado pelos cuidados tomados na aproximação ao campo.
O relato da ida a campo também tem o papel de mostrar como se deu a construção
progressiva do arcabouço metodológico, que não poderia ser resumido a partir da citação de
uma simples técnica: a entrevista semiestruturada. Em grande medida, foi o contato com a
empiria, com as experiências de ida a campo, mais do que a leitura de bibliografia
especializada, que provocou reflexões acerca das possibilidades e dos limites da técnica. Foi
na ida aos atos públicos, durante as conversas nas escolas, nos encontros com familiares, que
fui percebendo o quanto se perde ao utilizar de maneira simplista a entrevista semiestruturada
como a técnica para coletar dados, ou, ainda, o quanto a rigidez de uma técnica, mobilizada
isoladamente, faz obstáculo na aproximação da “realidade”.
Desse modo, seguem alguns relatos dos espaços percorridos e a descrição do caminho
metodológico construído. Nada mais apropriado do que dizer, neste caso, que o caminho se
construiu ao caminhar.

2.1 A procura dos familiares: mapas e caminhos

O processo de busca dos colaboradores da pesquisa iniciou-se em alguns


estabelecimentos públicos. A opção se deu em razão da hipótese de que esses são órgãos com
os quais os familiares poderiam ter contato na possível peregrinação em busca pela justiça.
Dessa forma, foram realizadas visitas ao Centro de Referência Especializada (CREAS), ao
Fórum, à Defensoria Pública e a algumas Escolas Públicas.
As buscas nas instituições aconteceram em duas abordagens: um contato por telefone e
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uma entrevista pessoal, na tentativa de compreender de forma mais aprofundada a relação


entre essas instituições e os familiares-vítimas. Nesse percurso, em uma das buscas no
CREAS, tive uma resposta que parece ser emblemática para entender as interações entre
familiares e Estado: “Nós só atendemos vítimas!”.
A tentativa de estabelecer contato com os órgãos e as conversas foram marcadas por
um conjunto de dificuldades, tal como a experiência com a Defensoria Pública da Bahia na
cidade de Feira de Santana, com a qual fiz contato na tentativa de encontrar, na Fazenda
Pública, alguma ação indenizatória de familiar contra o Estado. Apesar do esforço, não
consegui, entretanto, realizar entrevistas com os defensores públicos. Uma busca análoga foi
realizada na vara da Fazenda Pública, que não disponibilizou informações sobre ações
indenizatórias, sob alegação de que os dados dos processos não estão sistematizados.
O que emergiu dessas buscas foi a invisibilidade dos familiares perante o Estado, que
se desenhou em cada ida a um órgão público, como as declarações da recepcionista do
CREAS que parecem explicar que familiares não são vítimas. O “não lugar” de vítimas
ocupado pelas famílias repercutiu nessa fase de mapeamento, como repercute, de maneira
geral, na forma com o Poder Público interage com as famílias. A blindagem adotada por parte
de algumas instituições, de forma consciente ou inconsciente, revela um distanciamento e
reforça o “agigantamento” que os órgãos judiciais têm em relação aos familiares, como será
explorado mais adiante. Essa dificuldade de se aproximar das instituições públicas contrasta,
no entanto, com a relativa facilidade de me aproximar das escolas e de alguns familiares,
conforme pode-se notar na descrição da figura a seguir.
A imagem que segue sintetiza o longo caminho para chegar até os familiares que
participaram deste trabalho. A pesquisa acompanhou cinco famílias de vítimas: as famílias de
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Lucas4, Damião, Cosme5, Carlos e Pedro6. Os jovens7tinham idade entre 16 e 21 anos, e em


nenhum dos casos trabalhados as circunstâncias foram efetivamente de troca de tiro entre
policiais e os jovens, ou seja, os jovens foram executados por agentes do estado.

Figura 1 – Caminho de chegada aos familiares

Destaca-se no esquema o fato que os casos trabalhados nesta pesquisa tiveram como
ponto de partida os jornais policiais8 e a rede social Facebook. O acompanhamento da seção
policial dos jornais durante o período de pesquisa e a busca de matérias antigas de homicídios
4 Lucas, jovem de 16 anos, morreu executado por policiais no dia 16 de junho de 2018. Policiais invadiram sua
casa à procura dos supostos autores da morte de outro policial. O garoto e o restante de sua família foram
submetidos a tortura para que confessassem a autoria, mas como não houve a confissão, já que eles
desconheciam os autores do crime, Lucas foi levado a um local próximo de sua casa e executado sumariamente.
5 Cosme e Damião foram mortos por policiais militares. Eles se encontravam em um riacho próximo do local
que moravam, pescando e caçando, práticas muito comuns no bairro, e foram submetidos a tortura para entregar
informações sobre o tráfico da região. Por não terem dado as informações, já que não sabiam, Cosme teve sua
perna quebrada, “virada pra trás”, e seu amigo, Damião, teve as suas mãos e o seu rosto queimados.
Posteriormente, os meninos foram executados, cada um com um tiro.
6 Carlos tinha 16 anos, foi morto quando estava em frente à casa de um amigo. Ao avistar policiais chegando no
bairro, ele saiu correndo, momento em que foi alvejado com dois tiros, um na nuca e outro na cabeça.
7 Todos os nomes mencionados aqui são fictícios, para preservar a identidade dos jovens e das famílias.
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decorrentes de ação policial foi importante. Essas reportagens permitiram identificar a


existência de conhecidos dos jovens, que interagiam com comentários contestando a versão
contada nas matérias; acessar informações que levavam a conhecer o bairro e também
facilitaram a localização de um possível intermediário, geralmente escolas do bairro ou um
líder comunitário. E a partir desse procedimento, envolvendo encontros prévios, apresentação
da pesquisa e do pesquisador, marcávamos o encontro no bairro da família.
Vale destacar que a família de Carlos foi a única que aceitou a conversa por contato
diretamente pelas redes sociais, sem um intermediário. Acredito que o fato de o entrevistado
ser um pastor, portanto, uma figura pública, facilitou essa receptividade. Mas, no geral, o
acesso a intermediários acontecia por meio de visitas às escolas, locais em que eu me
aproximava dos estudantes que poderiam conhecer algum dos familiares que eu tinha
encontrado no processo de mapeamento. Para estabelecer essa aproximação, foram realizadas
rodas de conversas sobre homicídios e racismo em um total de cinco escolas públicas, onde
pude conversar com funcionários e alunos e estabelecer ricas trocas de aprendizado.
Veja-se, então, que o processo de busca dos familiares constituiu por si só uma
experiência produtiva, pois me aproximou dos interlocutores, mas também foi primordial para
forjar a construção do desenho metodológico. Ainda que tenham sido colocados em seções
distintas, foram esses caminhos que conduziram ao ajuste da melhor técnica para alcançar a
resposta.

2.2 A entrevista semiestruturada em situações de experiência de dor: limites e


possibilidades

“A dor do outro encontra um lar na linguagem e um lar no


corpo” (DAS, 208, tradução livre).

Nesta parte, pretendo explorar como o contato com campo, sumarizado acima, me
“afetou”, nos termos proposto por Favret-Saada (2005), antropóloga que desenvolve, a partir

8 Os jornais utilizados foram “Acorda Cidade”: (https://www.acordacidade.com.br/) e “Polícia é viola”


(http://www.policiaeviola.jornalfolhadoestado.com/).
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da experiência etnográfica com a feitiçaria, a ideia de que é necessário ser tomado por
experiências que se localizam no registro do inenarrável, ou seja, que só se encontram
sentindo. Nesse passo, viso mostrar como esse processo de afetação me direcionou a dois
movimentos: a notar os limites da entrevista do tipo semiestrurada no contexto da pesquisa
que desenvolvo e a buscar novas ferramentas metodológicas para desenvolver o trabalho, o
que, consequentemente, me permitiu o benefício dos aportes teórico-metodológicos da
Antropologia. Há aqui, um encontro de um estudante de Direito com a perspectiva
antropológica.
A presente pesquisa se inscreve em uma abordagem que procura entender as formas
com as quais os indivíduos lidam com as estruturas, ou seja, as maneiras que os familiares-
vítimas vivenciam as estruturas (KAMINISKI, 2017). Uma formulação metodológica que
parte dos sujeitos envolvidos no problema permite compreender os efeitos do “racismo”,
“genocídio antinegro”, “necropolítica” e “gênero”, entre outras categorias importantes que
precisam de uma interpelação daqueles que experimentam a realidade para que possam
elucidar nuances que ficam ofuscadas nas categorias analíticas. Dessa forma, a formulação do
desenho metodológico de uma pesquisa com familiares-vítimas da letalidade policial deve se
preocupar em notar as justificativas de suas atitudes e as maneiras pelas quais os fenômenos
são percebidos. Mas qual a técnica possível para realizar essa tarefa?
A entrevista semiestruturada foi a técnica escolhida inicialmente para dar conta da
pergunta de partida e dos objetivos da pesquisa, uma vez que foi necessário desenvolver um
método de escuta que possibilitasse que sujeitos “subalternizados”, na sua situação de dor,
pudessem falar da maneira que suas relações são estabelecidas com Estado; e, ao mesmo
tempo, que funcionasse com um caráter político. Foi um método que no primeiro momento se
mostrou capaz de captar a narrativas sobre o Direito, cumprindo, dessa forma, o objetivo geral
do objeto de pesquisa.
Poupart (2010) apresenta três argumentos para justificar o recurso da entrevista do tipo
qualitativa. Eles são, respectivamente, de ordem epistemológica, ético-política e
metodológica: a possibilidade de analisar as realidades sociais segundo as perspectivas dos
atores sociais; a possibilidade de “denunciar os preconceitos, as práticas discriminatórias e as
iniquidades” (POUPART, 2010, p. 220), bem como a possibilidade de obter informação sobre
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as entidades sociais. Trata-se, enfim, de um instrumento privilegiado de exploração do vivido


dos atores sociais.
Em relação ao fundamento epistemológico, o autor acredita que a entrevista é utilizada
para “dar conta do ponto de vista dos atores sociais e considerá-los para compreender e
interpretar suas realidades” (POUPART, 2010, p. 216). Afirma, ainda, que “As condutas não
poderiam ser compreendidas nem explicadas fora da perspectiva dos atores sociais”
(POUPART, 2010, p. 216). Isso porque a técnica de entrevista, apesar dos limites, é uma
ferramenta “para apreender o sentido que os atores dão às suas condutas (os comportamentos
não falam por si mesmo), a maneira como eles representam o mundo e como eles vivem sua
situação, com os atores sendo vistos como aqueles em melhor posição para falar disso”
(POUPART, 2010, p. 217). Assim, o uso de entrevista é um recurso que se mostra coerente
para acessar as representações que as famílias têm acerca do Direito e entender as reações em
um contexto de perda de um parente em condições violentas.
Soma-se a essa justificativa outra de ordem ética e política: a possibilidade de
exploração em profundidade das condições de vida é vista como instrumento privilegiado
para denunciar, de dentro, os preconceitos sociais, as práticas discriminatórias ou de exclusão
que podem ser objeto dos ditos “desviantes” (POUPART, 2010). Essa justificativa está em
harmonia com os objetivos da pesquisa, pois, de alguma maneira, as histórias e narrativas dos
familiares trazem a oportunidade de ouvir denúncias acerca da forma como o sistema penal
funciona. Assim, o uso de entrevistas qualitativas no primeiro momento mostra-se como um
potente instrumento metodológico no trabalho.
Todavia, ao longo do percurso, fui percebendo que, em razão de tratar de experiências
traumáticas, a própria pesquisa enseja um arcabouço metodológico mais preocupado com o
bem-estar desses familiares, tanto do ponto de vista ético quanto da possibilidade de
execução. Em razão disso, surgiu uma celeuma: em que medida a técnica tradicional de
entrevista é adequada em uma pesquisa marcada pelo contexto de dor e sofrimento?
A ida a campo me fez refletir acerca dos limites da entrevista, uma vez que ela permite
captar somente as narrativas verbalizadas, perdendo, desse modo – ou deixando em segundo
plano – os elementos que não são verbalizáveis. Foi nos encontros com os familiares, nos
encontros com a dor das mães e pais, no confronto com situações em que as palavras
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escapavam na hora de fazer a pergunta, no contato face a face, no compartilhamento das


emoções, nas respostas ditas nas entrelinhas... Em tudo isso foi se percebendo o quanto se
perde ao priorizar a entrevista para registrar as narrativas. Para ilustrar isso, merece destaque
um trecho do caderno de campo que registra o contato com a mãe de Damião:

Dona Rosa tem a pele negra, negra bem retinta, de estatura baixa, com veste
simples. Fui convidado para entrar em sua casa, atendi ao convite e sentei em um
sofá, em uma sala com pouca iluminação, a cozinha próxima a sala, em um cômodo
pequeno. Dona Rosa sentou na cabeceira do sofá, de forma diagonal em relação a
mim, em uma posição que denunciava a indisponibilidade dela em relatar o
acontecido. Durante toda a conversa pude perceber que, a despeito da
disponibilidade de sua filha de falar do acontecido, inclusive, tentando convencer a
sua mãe de igual atitude, a senhora sentou de forma inclinada e concentrava um
olhar fixado a um ponto qualquer, enquanto sua filha conversava comigo. Ela se
mostrava incomodada, raras eram as vezes em que ela intervia no diálogo. Em dado
momento, sua filha revelou que elas não conversavam sobre a morte do irmão e
disse que, diferente dela, que gosta de falar para saberem que o menino não está
errado, sua mãe não gostava de tocar no assunto. A vontade dela de não falar foi,
finalmente, revelada por um suspiro e uma declaração reticente dizendo que não
gosta de lembrar. (Caderno de Campo)

O contato com a mãe e irmã de Damião é representativo para pensar que nem sempre
as narrativas de dores serão acessíveis por meio da entrevista. A mãe dele apresentou inscrita
no seu corpo a recusa de agenciar sua narrativa, quando ela sentou em minha frente em uma
posição diagonal. Antes que uma leitura apressada diga, esse episódio não deve ser associado
simplesmente a uma timidez, na medida em que esse silêncio em relação a morte do filho dela
se estende nas relações privadas com a filha, e tampouco pode ser lida como uma inércia, já
que elas participam de atos públicos reivindicatórios de justiça para as vítimas. É necessário
notar o silêncio como uma resposta possível, portanto.
Dessa forma, é fácil notar que as respostas não se encontram necessariamente de
forma acessível no sentido audível, sobretudo em um contexto em que o Direito não se mostra
como um auditório para ouvir os familiares. Portanto, seria contraproducente tentar encontrar
respostas somente por meio de entrevista.
Nesse sentido, a busca de familiares e os contatos preliminares com eles foram
fundamentais para realizar uma formulação metodológica: utilizar não só a escuta, mas trazer
as cenas, as descrições. Foi a partir de situações como essa descrita, em que a carga emotiva
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foi intensa, e diante da impossibilidade de utilizar o gravador de voz, que fui convencido de
que o sentido da audição por si só deixa esvair outros elementos, outras formas de falar
igualmente importantes na pesquisa.
Não se trata aqui, no entanto, de excluir a entrevista do processo de pesquisa, mas de
colocá-la como uma técnica complementar, para responder à pergunta de partida e atender aos
objetivos do trabalho. Dessa forma, foi a partir da inserção no cotidiano das famílias que se
tornou possível entender com maior profundidade as reações, as narrativas e as representações
sobre o Direito, sobre como acontece na vivência das famílias.
O quadro teórico-metodológico da perspectiva antropológica me ofereceu uma maior
reflexão sobre essas questões informadas pelo campo. Nesse sentido, a contribuição das
antropólogas Das e Poole (2008, p. 24-25) tem alto relevo. As autoras apresentam três
definições do conceito analítico de margem que nos auxiliam na pesquisa: a) margem
entendida como espaço geográfico onde estão localizados indivíduos em oposição ao centro;
b) margem associada à “legibilidade e ilegibilidade”, trocando por outras palavras, está
relacionada à produção de documentos estatais que permitem que um cidadão seja lido ou não
pelo Estado. São, portanto, responsáveis pela consolidação do controle sobre os sujeitos,
populações, os territórios e as vidas; c) margem entendida como espaço entre corpo, leis e
disciplina. Nessa abordagem, as “margens proporcionam uma posição particularmente
privilegiada para observar a colonização da lei pelas disciplinas, bem como a produção de
categorias patológicas por meio de táticas parasitas da lei, mesmo quando mapeiam repertório
da mesma” (DAS; POOLE, 2008, p.24-25, tradução minha).
Nesse esforço de entender a margem, as autoras apostam no cotidiano para
compreender o Estado. É no “processo da vida diária que podemos ver como o estado é
configurado nas margens” (DAS; POOLE, 2008, p.34, tradução minha). A margem não é
apenas um espaço periférico, na medida em que não se submete passivamente às condições de
violência do Estado, mas desenvolve espaços visíveis de criatividade, criando ações
econômicas e políticas diante de um estado de exceção (DAS; POOLE, 2008, p. 34).
A partir destas considerações, o trabalho de Deborah Poole e Veena Das (2008) nos
oferece um arcabouço precioso para pensar como os familiares observam o direito,
especialmente o sistema a de justiça criminal, e como reagem diante da violência policial. Ao
PINHEIRO, Luciano Santana. A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:
desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

apostar na margem como ferramenta metodológica para capturar o Estado, elas aproximam
metodologicamente o direito da Antropologia. O Estado que está colocado na pesquisa é o
Estado brasileiro em suas cenas de violações de direitos fundamentais que obstaculizam a
concretização dos direitos humanos (FERREIRA, 2019, p. 124). Dessa forma, pensar com os
familiares é uma maneira de compreender como o Estado tem se manifestado e tem sido
pensado pelas famílias das vítimas da ação policial.
Das Veena (2007), de modo especial, nos oferece um elemento complementar para
entender que as narrativas de dor podem aparecer inscritas no corpo e não necessariamente na
fala. É esse registro discursivo que explica a reação da mãe de Damião descrita acima e que
informa sobre o desafio de captar narrativas do direito via não dito.
Assim, pelo fato de a etnografia ser a condensação de experiências sensitivas, já que é
“teoria do vivido” (PEIRANO, 2008), a abordagem etnográfica constitui uma formulação
metodológica que me inspirou na construção da pesquisa. Digo “inspirou” porque “etnografia
não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira de interpretar, uma
perspectiva analítica, a própria teoria em ação” (PEIRANO, 2008, p. 20). Logo, a abordagem
etnográfica está na forma como se deu a construção do campo, na maneira como foi
construída a condução dos diálogos e no modo em que as falas assumem lugar na construção
da teoria.
A relevância da observação participante na pesquisa, portanto, reside no fato de
“podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de
perguntas” (NETO, 2008, p. 60). Além disso, é essencial na apreensão do ponto de vista dos
familiares em relação ao Direito, porque “quanto mais próximo chegarmos às condições nas
quais tais pessoas atribuíram sentido aos objetos e eventos, mais precisas serão as descrições
de tais sentidos” (BECKER, 2014, p. 189). Esse movimento representa “[...]a possibilidade de
vivenciar a materialização do Direito, deixando de lado, por um momento, o referencial dos
códigos as Leis para explicitar e tentar entender o que de fato acontece e – no caso do Direito
– o que os operadores do campo e os cidadãos observados dizem que fazem (KANT DE
LIMA, BAPTISTA, 2014, p. 5)
Há que se destacar também que a observação participante foi primordial, em razão da
necessidade de estabelecer relações de confiança para a concretização da pesquisa, tanto na
PINHEIRO, Luciano Santana. A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:
desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

fase preliminar de mapeamento, quanto na própria relação entre as famílias. Nesse tipo de
trabalho a confiança é elemento fundamental para que os colaboradores se sintam
confortáveis em compartilhar histórias dolorosas e não se sintam amedrontados.
Por isso foi importante os colaboradores saberem quem eu sou, o que foi possível com
o trabalho de campo. Ter conhecimento de mim extrapola saber sobre o meu lugar acadêmico
e meus interesses de pesquisa, mas está relacionado à identificação. O sentido de identificação
que tomo aqui é o sentido antropológico manifesto na “verossimilhança”. Esse é um elemento
que permite a construção do campo e a comunicação entre pesquisador e colaboradores de
pesquisa. João Pina Cabral (2014) estabelece que é necessário um “pano de fundo” entre o
receptor e o emissor para construir a comunicação, e, consequentemente, o relato etnográfico
também depende da existência de semelhança. “Depende dela tanto para a sua produção (isto
é, o que permite ao etnógrafo no campo perceber o que percebe) como para sua aceitação”
(CABRAL, p. 114). Para ele, a verossimilhança é um elemento que faz parte da produção do
conhecimento etnográfico, à medida que potencializa a percepção do pesquisador. Acrescento
que é o que influencia na forma como os colaboradores de pesquisa percebem o pesquisador.
No caso específico deste trabalho, a verossimilhança foi certamente criada pela minha
racialidade e a dos colaboradores de pesquisa. O fato de ser “jovem-homem-negro” apareceu
em várias situações de campo e em alguns momentos facilitou as interações com os
familiares. Isso ficou evidente em várias falas que expõem a identificação e confiança dos
colaboradores de trabalho comigo: “você é gente como a gente”, “só tô falando isso porque é
para você”; “não falei isso para ninguém”; em situações que os familiares se referiam a
história de seus filhos como semelhantes a minha, “ele era um jovem como você” “ele
também queria fazer Direito”; ou em situações que a direção das escolas em que realizei
oficinas, de forma estratégica, se referiam à minha condição racial e ao fato de ser jovem
universitário, com o fim de utilizar minha trajetória pessoal como inspiração a outros.
A explicitação dessas questões, facilmente classificada pelos adeptos da “neutralidade
científica” como uma coisa “subjetiva”, ou “pouco técnica”, “pessoal demais”, é importante
na construção do desenho metodológico, na medida em que dizem respeito a outra ordem
epistemológica, já que referem sobre quem faz a pesquisa e como faz a pesquisa. Trazer essas
questões tem, portanto, o objetivo de dar sentido epistemológico e metodológico aos
PINHEIRO, Luciano Santana. A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:
desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

marcadores sociais que modulam o campo e as interações na pesquisa.


Assim, foram estes conjuntos de elementos que construíram a estratégia metodológica
para abrir a “abrir caixa de pandora” (FERREIRA, 2018) acerca da letalidade policial a partir
do olhar de familiares-vítimas. Percebe-se que a abordagem antropológica foi essencial nesse
processo de pesquisa, tanto do ponto de vista teórico quanto metodológico. É importante
sublinhar que o que foi realizado está longe de ser uma etnografia, porque a minha formação é
no Direito, e a realização da etnografia necessita de uma formação que me habilite para isso.
Porém, a interface Direito e Antropologia é fundamental no processo de apreensão da
realidade marcada pela violência do Estado, e mostra uma relação extremamente profícua na
pesquisa empírica em Direito.
Então o percurso realizado até aqui me conduziu a constatar que a entrevista do tipo
semiestruturada em contextos de pesquisas empíricas que envolvem familiares-vítimas do
Estado precisa de cuidado especial e de inspiração na abordagem etnográfica porque:

i. a utilização de entrevista tradicional pode implicar em um processo de


revitimização dos participantes da pesquisa, caso não haja uma sensibilidade e
cuidado ao interagir com eles;
ii. a entrevista é insuficiente para captar as maneiras de respostas dada por
familiares-vítimas da letalidade policial, uma vez que estas respostas podem se
apresentar no não-dito;
iii. em uma pesquisa em que a relação de confiança se mostra necessária, a
inspiração na abordagem antropológica mostra uma estratégia profícua,
notadamente na forma do pesquisador se aproximar dos colaboradores de
pesquisa e no modo das interações acontecerem.

Assim, com a finalidade de exemplificar o que é possível acessar sobre letalidade


policial através do olhar dos familiares-vítimas, segue um trecho da pesquisa que apresenta as
percepções dos familiares sobre Justiça e Direito:

3. “A gente formiga e eles elefantes”: percepções dos familiares sobre o sistema de


PINHEIRO, Luciano Santana. A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:
desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

justiça

A seção que segue visa apresentar em parte como os familiares-vítimas compreendem


e percebem a Justiça, o Direito e principalmente a polícia. A expressão “A gente formiga e
eles elefantes” foi declarada por um irmão de uma vítima, Marcelo. A metáfora utilizada por
ele para designar a percepção de si em relação ao sistema de Justiça, especificamente a Polícia
Militar, se mostra emblemática para refletir os modos como as famílias compreendem as
instituições judiciais e pensar como são construídas tais compreensões. Em que medida o
contato com os órgãos judiciais possibilita forjar essa compreensão? Ou ainda, como essa
perspectiva nos possibilita compreender o papel do Estado e dos órgãos judiciais nesses
homicídios? O que implica ser formiga diante de um elefante?
Os sentidos e representações que os familiares-vítimas atribuem e constroem em
relação ao Direito estão expressivamente ligados não só às experiências que os sujeitos
vivenciaram a partir da perda de um ente querido, mas também com experiências vivenciadas
anteriormente com o sistema de justiça criminal, especificamente, com a atuação policial.
Tanto as experiências pessoais quanto de terceiros demonstram ter papel importante para os
familiares forjarem leituras das possíveis reações frente ao sistema de justiça.
A metáfora elaborada por Marcelo surgiu em um contexto em que ele relatava sua
experiência na Delegacia de Homicídios. Segundo ele, ao pedir aos policiais que
apresentassem a suposta arma que teria sido encontrada com o seu irmão, ele recebeu uma
negativa:

Tinha um policial aqui, o escrivão, né? Do lado. Os três ouvindo minha versão lá.
Dois calado. Só um me perguntando a coisa e eu falando a situação todinha sobre o
caso o que aconteceu. Eles perguntavam em relação aos meninos. Um monte de
pergunta. “Você acham que tava armado?”. Eu coloquei tudo negativo. Acredito que
não. Acredito não, tenho certeza! Pedi também para me apresentar a arma, as
porcarias que tava na mão. Pedi para me apresentar e não me apresentaram disse que
é uma questão de justiça e não podia me apresentar. Falei 'Beleza!'. Disse que
encontraram que tava na gaveta. É coisa que a gente fica até meio constrangido de
tá lá no meio. A gente formiga e eles elefantes. A gente tá ali no meio é meio
difícil né? Falei tudinho a situação, mas ademais ficou só nisso ai mesmo.
(Entrevista com Marcelo)9.

9 Utilizei as falas dos colaboradores de pesquisa em sua versão original, mantendo, inclusive, trechos de
entrevistas que, de acordo com a língua padrão, seriam considerados expressões incorretas gramaticalmente.
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desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

A contraposição estabelecida entre “a gente formiga”, enquanto pessoas pequenas e


“eles elefantes”, retrata uma percepção de desproporcionalidade aguda entre os moradores dos
bairros periféricos e a polícia. Tal cisão resulta em uma resignação e impotência diante da
polícia, a ponto de, mesmo estando convicto de que as armas foram forjadas pelos policiais,
restar somente a ele aceitar a justificativa do policial.
A percepção agigantada que o familiar traz sobre a justiça foi algo que se revelou
desde meu primeiro contato com ele, quando visitei a sua casa antes de um ato em
homenagem ao seu irmão, em que disse que não desejava participar da pesquisa e me
adiantou que não procuraria justiça porque seria “algo muito grande pra gente aqui”. Embora
essa desproporcionalidade entre a polícia e o sistema de justiça criminal apareça de forma
mais frequente nas falas de Marcelo, tal representação da Polícia e sistema penal parece
organizar toda a concepção dos demais familiares, ou seja, há uma percepção de inferioridade
do que dizem os familiares quando comparado com a Instituição. Isso se mostra evidente em
falas que destacam a supervalorização da narrativa policial em detrimento dos cidadãos: “aí é
sua fala contra o comando”; “aí é a fala deles contra a da gente”.
Essa compreensão remete à constatação de que o processamento nos casos de um
possível inquérito policial ou oferecimento de ação penal pelo Ministério Público é “marcado
pela preponderância da versão policial original fundamentada em não mais do que a '‘fé
pública’' depositada nesses agentes e formulações depreciativas sobre a conduta das vítimas”
(MISSE, 2013, p. 23).
O modo de pensar do pai de Lucas, por sua vez, além de estar situado no quadro das
narrativas que veem a polícia pela lente do agigantamento, nos fornece pistas explicativas
para entender os elementos que constroem o modo de ver as instituições judiciais. A fala que
segue apareceu quando conversávamos sobre respostas e ele pediu uma indicação de
advogado para lhe representar em uma possível judicialização, ocasião em que sugeri a
Defensoria Pública e ele recusou dizendo que seria “Estado contra Estado”. Diante daquela
fala, pedi a explicação, quando ele complementou com a seguinte afirmação:

Portanto, evitei usar o uso da expressão “sic”.


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Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

Porque acho que não resolve nada, porque se a gente for na Defensoria é daqui
mesmo. Você fala alguma coisa que e só faz se expor a nossa vida. O povo foi prá
lá. Convidaram não sei quantas pessoas prá dar depoimento. O Governo manda. A
ordem do Governo é essa. Quando a mídia pipoca, o Governo chega “Não, a gente
não ensina, a gente não manda isso”. A ordem é essa. Em certos bairros chega
invade, mata. A ordem do governo. Só que quando pipoca, O Governo não vai
se expor a um escândalo desse. A polícia não ia ter a cara de pau de tá
invadindo as casa sem mandado com uma coisa que ia prejudicar ela. Ia? Não
existe. Faça uma análise você que está estudando pra advogado… [...] Eles invadir
sua casa se ia prejudicar. Nunca! Porque a ordem vem dos grandes, depois ó,
“Pra todo efeito se o bicho pegar é vocês ai. Vocês vão segurar a onda pra gente
aí”. É o que acontece. Não dá em nada. Morre crianças, morre mulher, morre
pai de família, morre tudo. Chega lá, como o governo já mandou, ele já seguro
a bronca do governo, aí o governo chega e abafa. Tem que abafar porque os
meninos faz e quando a “bronca” vem eles não expõe a gente. Então é aquele
negócio, um deve ao outro, um faz pelo outro, um deve o outro e só quem sobra é o
cidadão de bem.

Como se vê, a fala de Fábio sugere que a Defensoria Pública não é órgão ideal para
recorrer porque sendo a Instituição da mesma cidade que os policiais e sendo órgão do
Estado, sua atuação favoreceria a possível retaliação da família. Segundo a leitura dele, esse
corporativismo é um comportamento que faz parte do modo de operar de todos os órgãos
judiciais e para embasar seu raciocínio ele exemplifica outros casos de familiares e amigos
que fizeram manifestações, foram ouvidos e na visão dele não houve a devida resposta.
Além disso, outro elemento que chama atenção é a percepção do problema como
estrutural, na medida em que, ao explicar as mortes, ele não se limita à figura da polícia, mas
vê como um fenômeno mais amplo que conta com a cumplicidade do que ele chama de
“Governo” e todos os órgão judiciais, posto que "No Governo tem advogado. No Governo
tem promotor. Tem juiz. Tudo é do Governo. Vocês são advogados particulares. Mas quem
paga o Juiz? Né o Governo? Promotor. Esse negócio é uma máfia danada rapaz”.
A existência de uma articulação e cumplicidade entre “governo” e polícia é também
compartilhada por Marcelo, que acredita que as arbitrariedades, como a morte do seu irmão,
acontecem em razão do pacto entre Estado e instituição policial:

Eu acho que é por causa do poder. Eles sabem que por trás daquela farda ele
tem o governo que defende ele. Então isso ai é muito grande. O cara vai se sentir
lá em cima, né? Então eles dando tapa na cara da gente pra ele não vai dar em nada.
Agora se [disser], “Bora coloca mão na cabeça!” e agente não colocar , eu acredito
que isso vai ser mau pra gente, ai tem que obedecer. Por trás daquelas farda ali tem
outro que defende. Tipo assim eles fizeram esse fato aí, mas até eu consegui
PINHEIRO, Luciano Santana. A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:
desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

comprovar vai vim tanto órgãos. São governos e muitas coisas que tão defendo
ali, também o direito. Como eu tenho meu direito também eles ... O meu jeito
de não entender muita coisa, às vezes pra ele ali não vai ligar muito. Quando é
uma pessoa que entende sobre o caso, eu acredito que eles vão ficar meio lá, meio
cá, mas acredito que não vai dar em nada.

Nesse sentido, essa chave de entendimento e explicação dos entrevistados reconhece a


atuação da polícia como parte de um problema geral mais amplo que conta com os órgãos
judiciais como cúmplices. Não podemos perder, no entanto, a ideia de que esta relação não é
um bloco homogêneo. Essa ressalva, aliás, em certa medida, aparece entres os familiares,
quando estes afirmam que os policiais não se opõem ao sistema, a não ser quando agem
contra uma pessoa da família dos policiais.
Além dessas questões, as narrativas dos familiares apresentam elementos que
permitem tecer uma reflexão acerca das disposições homicidas dos policiais, isto é, as
justificativas utilizadas pelos agentes para matar, e é fácil perceber que essas explicações
extrapolam as justificativas comumente mobilizadas pelos agentes.
Os estudos de polícia, a partir das representações dos próprios agentes policiais, ao
discutir as “disposições homicidas” (BUENO, 2018), ou os sentidos de “justiça da polícia”
(SOARES, 2019) indicam que a construção dos sujeitos matáveis é constituída por elementos
que opõem “cidadão de bem” versus “bandido”, construindo assim a ideia de sujeição
criminal.
Segundo o trabalho de Frederico Soares (2019), os policiais que matam apresentam
explicações que incorrem na lógica da moralidade. Porém, a maioria das vítimas com as quais
tive contato neste trabalho fugiam do estereótipo descrito pelos agentes policiais, pois
possuíam um comportamento moral que poderia ser valorado como positivo por eles próprios:
frequentadores de igreja neopentecostais, sem passagem pelo sistema de justiça criminal,
estudantes e trabalhadores.
Essa questão aparece de forma constante nas falas das famílias. Não raro os familiares
utilizam qualificadores de cunho moral para se referir às vítimas, a saber: “pai de família”;
“cidadão de bem”. Esses marcadores funcionam como mecanismo para contestar a versão
divulgada pela mídia e, consequentemente, realizar uma defesa da honra dos jovens e de sua
memória.
PINHEIRO, Luciano Santana. A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:
desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
Roberto (org). Entre normas e práticas. Os campos do Direito e da Segurança Pública
em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

Dessa forma, ao contrário dos discursos dos policiais, as falas das famílias mostram
que o que organiza os motivos para morrer por ação policial é a existência de uma suspeição
generalizada forjada pelo território e pela racialidade, simultaneamente. Isso aparece de forma
explícita nas falas dos entrevistados:

Se você com essa bolsa aí, com duas pessoas andando aqui no bairro passar em
qualquer rua dessa aí andando, aí vai a primeira coisa…. Vou usar você aqui pela
cor da pele. Se você passar a viatura lhe ver com essa bolsa, ela lhe joga no canto.
Até você se explicar eles já lhe deram uma pressão. Se duvidar até lhe espancam até
saber quem foi. Porque? Por causa da periferia. A primeira coisa que eles ligam é a
cor da pele, como se cor da pele fosse caráter. Então a periferia é isso ai. Quando
pessoas aí, mãe de família, esculhamba, bate puxa o cabelo, joga no chão? Porque
acha que todo mundo é vagabundo. Acha que todo mundo da periferia são pessoas
erradas (...) Se te pega na Santa Mônica II, aqui no Mochila, os bairros da alta
sociedade. Se te pegar todo tatuado é filho de papai mas se te pega, pele preta,
tatuado na periferia é vagabundo, é ladrão. (Entrevista com pai de Pedro)

Ao destacar que há um uso diferenciado da força policial a depender do bairro, o pai


de Pedro defende que a atuação da polícia é orientada pelo território e pela cor da pele dos
indivíduos. Há, portanto, na fala, uma simbiose entre território e racialidade, isso se mostra
muito evidente. O pai de Lucas, mesmo não apresentando em sua fala a questão racial como
constituinte da compreensão da atuação policial compartilha da ideia de suspeição:

Quando eles vêm, vem sem saber quem é, porque, assim, infelizmente, hoje você é
punido pelo lugar que você mora. Se sua família… hoje você mora em uma família e
você tem dez irmão se dois faz e os oito não faz, o polícia onde lhe vê você vai ser
punido por causa só seu irmão.

A ideia de suspeição generalizada indica que o sistema penal, por meio das
intervenções policiais, reatualiza, em uma espécie de continuum, às táticas elaboradas no
processo escravagista e colonial. Assim, da mesma forma que ocorria coma a vadiagem, uma
criação do Estado para impedir a liberdade, “o sistema penal na contemporaneidade também
cria as condições para que sua atuação possa incidir sobre os corpos negros, agora como o
intuito expresso de eliminá-los” (FLAUZINA, 2006, p. 116)
Esses relatos dos familiares nos informam a ideia de que a experiência da população
negra é fundamentada em uma violência estrutural e gratuita (WILDENRSON, 2010).
PINHEIRO, Luciano Santana. A letalidade policial pelo olhar dos familiares-vítimas:
desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
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em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

Primeiro porque atravessa de forma farta o cotidiano dos moradores, e gratuito porque a
população negra não precisa realizar nenhum ato que perturbe a ordem social, ou infração da
lei. Isso é visível em falas como que “resta é andar certo e rezar para não tomar um balaço
mesmo assim não garante nada” ou frases como “os negros sofrem por tudo, até por ser
negro”.
O repertório de narrativas trazido até aqui desenha uma concepção de Estado em que a
morte promovida por agentes estatais, através da polícia e garantida pelos órgãos de justiça,
gravita em torno de um morto que tem território e cor específica. Essa concepção ecoa a
percepção de Estado desenvolvida por Achille Mbembe. A categoria “necropolítica”,
desenvolvida pelo autor, é atualização da ideia do biopoder foucaultiano para a realidade dos
países colonizados. No necropoder, é a morte que sustenta a engenhosidade do Estado
moderno. Em outras palavras, aqui, não mais atua o binômio “fazer viver e deixar morrer”,
mas sim “fazer morrer e deixar viver”. Ou seja, nessa transição, o poder político assume outra
centralidade que é o “fazer morrer”. Assim, enquanto no biopoder, o poder político tinha
como objetivo otimizar a vida, alongar, ainda que seja através da morte, aqui a prioridade é
exterminar a vida dos indesejáveis. Dessa forma, “Governar pelo terror já não tem tanto a ver
com reprimir e disciplinar, mas sobretudo com matar, seja em massa ou em doses mais
contidas” (MBEMBE, 2016).
As narrativas dos familiares sobre a atuação da polícia e sobre os órgãos parece se
aproximar de forma muito evidente da ideia de necropolítica, pois elementos trazidos pelos
entrevistados, como a territorialidade e a racialidade, são elementos constitutivos do
necropoder, que parecem desenhar um poder político baseado na economia da morte.

4. Reflexões finais

Propus, neste trabalho, apresentar o desenho metodológico de uma pesquisa que


investiga as formas que familiares-vítimas da letalidade policial percebem o sistema de justiça
criminal. Um esforço, portanto, de pensar a letalidade policial a partir de quem fica. Para
cumprir o objetivo do estudo, apresentei o processo de busca dos familiares e as estratégias
que envolveram esse processo. Em seguida, refleti como o contato com familiares me obrigou
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desafios e estratégias teórico-metodológicas. In: LIMA, Michel; KANT DE LIMA,
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em Perspectiva Empírica. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

a pensar acerca dos limites da utilização da técnica da entrevista semiestruturada, e como os


aportes da Antropologia podem auxiliar na construção de um arcabouço metodológico mais
adequado para o trabalho.
No segundo momento, apresentei, de forma ilustrativa, as percepções que os familiares
têm acerca da letalidade policial, na tentativa de entender como essas percepções são
construídas e em que medida o sistema de justiça criminal contribui para essa lente. Destaca-
se nas narrativas uma visão agigantada, por parte dos colaboradores, em relação ao sistema de
justiça, que pode ser sintetizado na frase “A gente formiga e eles elefantes”, que organiza e dá
sentido a outras falas de familiares. É possível notar também pelas narrativas uma percepção
de Estado que produz morte, orientado racialmente e territorialmente, traduzindo uma ação
necropolítica.
Assim, o trabalho permitiu explorar como o processo de realizar uma pesquisa com
familiares-vítimas do Estado, marcado pela dor, precisa de uma abordagem especial, em razão
dos cuidados éticos necessários nestes casos e em razão das inúmeras possibilidades de
respostas que podem surgir dos familiares. Nesse sentido, o diálogo com a Antropologia foi
condição importante para o desenvolvimento deste trabalho.

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