Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
JUSTIÇA E PUNIÇÃO
Desafios à Segurança Cidadã
conselho editorial
Ana Paula Torres Megiani
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
VIOLÊNCIA, POLÍCIA,
JUSTIÇA E PUNIÇÃO
Desafios à Segurança Cidadã
V792
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7939-625-0
A organização da coletânea 7
Apresentação: Violência, Democracia e Segurança Cidadã: 13
avanços, desafios e limitações da reflexão sociológica
Maria Stela Grossi Porto
PARTE I
A DINÂMICA DA VIOLÊNCIA
Estudos sobre homicídios no âmbito do Instituto Nacional 29
de Ciência e Tecnologia – Violência, Democracia e
Segurança Cidadã: uma análise crítica
Edinilsa Ramos de Souza, Adalgisa Peixoto Ribeiro, Kathie Njaine,
Maria Cecília de Souza Minayo e Tauanne Nascimento Santos
PARTE III
JUSTIÇA: PERCEPÇÕES E IMPUNIDADE
Percepções sobre a Justiça entre moradores 375
da cidade de São Paulo: 2001-2013
Nancy Cardia, Frederico Castelo Branco,
Viviane de Oliveira Cubas, Renato Alves e Gustavo Higa
4 É cedo ainda prematuro avaliar se essas tendências irão prevalecer ou serão inter-
rompidas nas gestões governamentais federal e estaduais recém iniciadas (2019-2022).
Possivelmente, variações poderão ser identificadas em distintos estados da federação.
20 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
possível concordar com Adorno (2010, p. 13), para quem “um amistoso di-
álogo foi sendo construído entre pesquisadores e autoridades encarregadas
de formular e executar políticas de segurança pública, amenizando as tradi-
cionais desconfianças entre a universidade e os agentes da ordem, em espe-
cial policiais”. Mas amenizar não é sinônimo de eliminar e aí todo cuidado é
pouco. Ainda assim, poder-se-ia dizer, sem intenção de trocadilhos, que um
“desarmamento” mútuo decorrente do avanço do conhecimento, poderia
propiciar mais confiança entre os segmentos e, mais particularmente, aos
pesquisadores, caso se inteirem do seu lugar de fala, dos limites e das poten-
cialidades que este lugar contém.
Um pouco mais complexa, e por vezes ambígua e/ou tensa é a questão
da relação com a mídia, em sua condição de formadora de opinião. Essa
relação pode ser computada ao mesmo tempo como um avanço e como
um desafio. O avanço decorre da visibilidade que as pesquisas e os grupos
de pesquisa passam a ter junto ao grande público, contribuindo para que
setores da sociedade, que tem na mídia, sobretudo a televisiva, sua fonte
maior de informação, possam se inteirar, mesmo que superficialmente, do
trabalho que fazem as instituições de produção do conhecimento. Com as
ressalvas que a frase comporta, é como se abríssemos um pouco nossos la-
boratórios à sociedade e nos tornássemos um pouco mais próximos dela.
Do ponto de vista da própria mídia, parece haver algum reconhecimento
pelos órgãos de comunicação da relevância de apoiar suas afirmações e nar-
rativas na construção dos “especialistas”, que é como constamos nos créditos
dos finais das matérias. O convite para participação costuma vir qualificado:
estamos fazendo uma matéria x ou y e precisamos da “opinião” de um es-
pecialista. Atentem para os vocábulos – precisamos, opinião e especialistas.
Ou seja, a fala do “especialista” no corpo da matéria legitima os conteúdos
midiáticos. Especialista vem entre aspas neste texto para realçar que o sentido
do vocábulo foi se perdendo à proporção em que se tornou intensamente uti-
lizado, sobretudo para legitimar vozes e perspectivas alheias às inquietações
acadêmicas. Ou seja, conhecimento e interesse caminham juntos. E é aí que os
avanços têm necessariamente que ser vistos com um pé atrás; aí sim, todo cui-
dado é pouco. Também aqui se trata de ter clareza dos objetivos acadêmicos,
22 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Referências bibliográficas
ADORNO, Sérgio. “Prefácio”. In: PORTO, Maria Stela Grossi. A violência: do
conceito às Representações Sociais. Brasília: Ed. Francis/Verbena, 2010.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
CHAMPAGNE, Patrick. “La Vision Médiatique”. In: BOURDIEU, Pierre. La
misère du monde. Paris: Seuil, 1993.
PORTO, Maria Stela Grossi. “Mídia, segurança pública e representações so-
ciais”. Tempo Social – Revista de Sociologia da Universidade de São Paulo,
São Paulo, nº 2, vol. 1, nov. 2009.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 1991. Vol.1.
PARTE I
A DINÂMICA DA VIOLÊNCIA
Estudos sobre homicídios no âmbito
do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia – Violência, Democracia e
Segurança Cidadã: uma análise crítica
Introdução
Este capítulo tem como objetivo sistematizar a produção científica
sobre o tema dos homicídios, realizada por pesquisadores no âmbito Vio-
lência, Democracia e Segurança Cidadã do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia (INCT), no período de 2008 a 2013. Este INCT esteve composto
pelo Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-
-USP), que o coordenou; pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito
e Violência Urbana (NECVU) da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania (NEVC) da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul, Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP),
Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (NEVIS) da Universidade
de Brasília, Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli
(CLAVES) da Fundação Oswaldo Cruz, e pelo Laboratório de Estudos da
Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará.
Metodologia
Efetuou-se a sistematização do conjunto de publicações sobre homicí-
dio, realizadas por pesquisadores do INCT Violência, Democracia e Segu-
rança Cidadã, no período de 2008 a 2013.
A busca dessa produção bibliográfica inicialmente foi feita a partir das
informações contidas nos relatórios de atividades desse INCT. Para compor
o universo de publicações foram considerados os artigos, capítulos de li-
vro e livros em cujos títulos ou resumos constassem os termos “homicídio”,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 31
Resultados
Observa-se no acervo analisado uma predominância de publicações no
ano de 2012, que concentrou 35% dos trabalhos, conforme o gráfico 1. Nos
anos de 2008, 2009, 2012 e 2013 preponderou a publicação de artigos em
relação aos demais tipos de obras.
cídios por esse meio. No período houve 358.484 óbitos por causas externas,
e 16,6% (59.339) se efetuaram por armas de fogo. O risco de morrer por esse
meio foi superior entre homens jovens e o aumento da idade esteve associado
a menores riscos. O efeito da idade foi maior nas áreas urbanas e no quadriê-
nio de 1999 a 2002. Houve influência significativa do grau de urbanização no
risco de morrer por homicídio por arma de fogo e as autoras também associa-
ram essa tendência com a deterioração socioeconômica vivida pela população
argentina e ao fato de na Província de Buenos Aires, onde se concentram as
maiores taxas dessas mortes, haver forças policiais mais repressivas.
Outro artigo de Peres e colaboradores (2012) analisou a associação en-
tre homicídios e indicadores de segurança pública, após controle para taxa
de desemprego e proporção de jovens na população, entre 1996 e 2008, na
capital paulista. A análise univariada indicou associação entre homicídio
e taxa de aprisionamento-encarceramento e entre homicídios e atividade
policial. O método de regressão para analisar o papel dos indicadores de
segurança pública permitiu discutir três das hipóteses explicativas para a
redução das taxas de homicídio em São Paulo: investimento em ações de
segurança pública; mudanças socioeconômicas com melhoria da qualidade
de vida e alterações demográficas com redução da proporção de jovens na
população municipal. Os autores concluíram que as ações da área da segu-
rança pública não se mostraram tão importantes para explicar a redução
dos níveis de homicídio. Os achados reforçam a relevância dos fatores so-
cioeconômicos e demográficos.
Silva, Valadares e Souza (2013) buscaram compreender os homicídios,
por meio de uma abordagem sistêmica complexa, aplicando um modelo
ecológico, que considera as condições individuais e relacionais dos sujeitos
e do contexto. Trabalharam com dois estudos de caso e triangularam dados
quantitativos (taxas e indicadores de 1980 a 2007) e qualitativos (entrevistas
individuais e em grupo). Concluíram que os homicídios combinam sobre-
posições de vulnerabilidades econômicas e sociais, precariedades e ruptura
de vínculos na dimensão individual (baixa escolaridade, privação de acesso
a educação, desemprego, desestruturação de laços familiares e sociais que
levam a viver na rua com ausência de políticas que impeçam novas exclu-
44 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
casos que envolvem abuso de drogas e tráfico; (4) crimes financeiros; (5) ou-
tros; e acompanhou as etapas judiciárias de 159 processos ativos no Tribunal
do Júri de MG. Os resultados mostraram que muitos homicídios acontecem
entre pessoas conhecidas. Em alguns casos como o de conflitos cotidianos, a
relação social entre vítimas e agressores é de proximidade: parentes e amigos.
Outro achado indicou que as diferenças entre os tipos de homicídios parecem
explicar o fato de um processo tramitar ou não até a sessão do júri. Os casos
relacionados ao tráfico de drogas são os que mais caminham e os relacionados
a motivos financeiros são os que menos evoluem. A autora destacou que a
análise por tipologias diferentes do olhar do direito, que focaliza a motivação
dos agressores, busca enfatizar a construção social do crime pelos operado-
res do sistema de justiça penal. Por fim, ressaltou que o estudo quantitativo
permitiu-lhe perceber de que maneira as tipologias dos crimes interferem no
andamento e desfecho dos processos; e que o estudo qualitativo corroborou
os dados quantitativos e trouxe elementos caracterizadores do processo deci-
sório dos operadores da ação penal.
Lima e Brito (2011) analisaram como as instituições brasileiras têm difi-
culdade de se livrar de práticas do passado arraigadas nas relações sociais e no
relacionamento do Estado com a sociedade. Na época da ditadura militar o
modelo de desenvolvimento econômico se baseava na subordinação da socie-
dade ao Estado e que a Polícia Militar/PM nunca visou garantir os direitos dos
cidadãos. Essa estrutura e seus princípios foram mantidos na Constituição
que apenas deslocou o conceito de segurança nacional para segurança pública
sem avançar na modelagem do sistema de justiça criminal e do aparato que
garante a lei e a ordem no país. Os autores ressaltaram que as iniciativas de
transformação tendem a ações circunscritas a um governo ou a um dirigente.
Na alternância desses, há um retrocesso ao status quo ante, ou seja, aos proce-
dimentos cristalizados nas práticas e saberes informados pela ideologia da se-
gurança nacional. Ao finalizarem seu texto, os autores invertem a tradicional
ordem de associação entre violência e pobreza, mostrando que o impacto que
a violência gera reforça a pobreza, a segregação e a precarização da vida social.
Nesse sentido, investir em políticas de segurança pública significa entendê-las
como constituintes e fatores de desenvolvimento. O Estado por meio da polí-
50 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
por parte dos grupos criminosos tem sido eficaz na diminuição das mortes.
Houve outros exemplos analisados, embora menos frequentes, como o caso
do Fica Vivo em Minas Gerais e das UPPs no Rio de Janeiro. Todos esses
estudos, ainda que tragam mais hipóteses que certezas, consagram a tese de
que é preciso e é possível investir na diminuição dos homicídios, particular-
mente de jovens, e que esse investimento deve conter ações sociais, educa-
cionais, de reconhecimento e de inclusão social. Nesse sentido, vale lembrar
a concepção de Hannah Arendt de que a violência “pode dramatizar causas
e trazê-las à atenção pública” (Arendt, 2009, p. 58), pois o mal-estar que ela
provoca pode impulsionar movimentos em prol da cidadania e da democra-
cia com foco na inclusão social e dos jovens.
Não era propósito deste estudo indicar ações que promovam a segu-
rança e protejam a vida. No entanto, entende-se que a continuidade das
pesquisas precisa apontar para: avaliação das políticas públicas interse-
toriais, hoje já existentes, que dão consistência aos processos de inclusão
social, fortalecem a subjetividade e atuam no reconhecimento do sujeito
como é o caso da educação, da cultura e do lazer; análise da efetividade
das estratégias de prevenção; e desenvolvimento de propostas de apoio às
famílias e às pessoas feridas pela morte de parentes e vizinhos. É preciso
também aprofundar estudos mais específicos em vários aspectos, dentre os
quais, mostrando o que ocorre nas médias cidades e no interior; e eviden-
ciando não só as desvantagens segundo gênero, raça/cor, e contexto socio-
econômico, mas que apontem caminhos para superação das desigualdades
e dos fatores de vulnerabilidade.
Em resumo, depreende-se deste conjunto de estudos que é possível ge-
rar um conhecimento estratégico a favor da sociedade e que ajude as insti-
tuições de segurança e justiça a dar passos para servir melhor aos cidadãos.
É preciso continuar e, sobretudo, não parar de se perguntar sobre os pontos
obscuros que pairam sobre o conhecimento e cujas respostas possam con-
tribuir para os direitos humanos dos brasileiros.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 59
Referências bibliográficas
ADORNO, S. “Linchamento e poder”. In: BARREIRA, César (org.). Violên-
cia e Conflitos Sociais: trajetórias de pesquisa. Campinas: Pontes Edito-
res, 2010, p. 69-87.
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. São Paulo: Civilização Brasileira, 2009.
CARDIA, N. “Risco de ocorrência de homicídios dolosos no município de
São Paulo, 2000 a 2005”. Série Olhar São Paulo – Violência e Criminali-
dade, São Paulo: Secretaria de Planejamento da Prefeitura de São Paulo,
2008, p.10-12.
FACHINETTO, R. F. “Homicídios contra mulheres e campo jurídico: a atu-
ação dos operadores do direito na reprodução das categorias de gênero”.
In: AZEVEDO, R. G. (org.). Relações de gênero e sistema penal. Porto
Alegre: Ed. PUC-RS, 2011, p. 107-136.
FERREIRA, S. P.; LIMA, R. S.; BESSA, V. “Criminalidade violenta e homicí-
dios em São Paulo: fatores explicativos e movimentos recentes”. Coleção
Segurança com Cidadania, vol. 3, 2009, p. 11-20.
KRUG, E. et al. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: Organi-
zação Mundial da Saúde (OMS), 2002.
LIMA, R. S. “Ocupação do espaço urbano e homicídios”. In: KNEIP, Silvia
Anette; NERY, Marcelo Batista; WISSENBACH, Tomás Cortez (org.).
Série Olhar São Paulo – Violência e Criminalidade, São Paulo: Secretaria
de Planejamento da Prefeitura de São Paulo, vol. 1, 2008, p. 44-52.
LIMA, R. S; BRITO, D. C. “Segurança e desenvolvimento: da defesa do Es-
tado à defesa da Cidadania”. In: BARREIRA, César (org.). Violência e di-
lemas civilizatórios: práticas de punição e extermínio. Campinas: Editora
Pontes, 2011, p. 1-17.
MINAYO, M. C. S. “Mortes violentas no Brasil de 1980 a 2005”. Revista Saú-
de em Debate, Rio de Janeiro, vol. 41, 2008, p. 23-35.
MINAYO, M. C. S. “Seis características das mortes violentas no Brasil”. Re-
vista Brasileira de Estudos Populacionais, nº 1, vol. 26, 2009, p. 135-140.
MINAYO, M. C. S.; CONSTANTINO, P. “Visão ecossistêmica do homicídio”.
Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, nº 12, vol. 17, 2012, p. 3269-78.
60 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Introdução
Um dos objetivos principais durante o programa do INCT Violência,
Democracia e Segurança Cidadã foi analisar o paradoxo da queda nos homi-
cídios e o crescimento do crime organizado, além da presença continuada
de violações aos direitos humanos em São Paulo e seu impacto sobre as
percepções do público, em especial sobre o apoio ao Estado de Direito. O
estudo teve base quantitativa e qualitativa. Este capítulo tem por objetivo
apresentar, de forma resumida, os principais resultados encontrados, consi-
derando três eixos de análise: a análise quantitativa em uma perspectiva ma-
dos níveis de violência, mas da letalidade por violência no MSP. Uma avalia-
ção desta hipótese pede a análise das curvas de evolução de outros crimes,
a exemplo das lesões corporais e crimes contra o patrimônio, e indicadores
mais específicos para avaliação das ações no campo da saúde com possível
impacto nas curvas de mortalidade por homicídio.
Investimentos no campo da Segurança Pública também vêm sendo
apontados como possíveis determinantes da redução observada no MSP.
Aumento no orçamento destinado à área, o investimento em novas tecnolo-
gias, a criação de sistemas de informação e mudanças na linha adotada para
formação de recursos humanos com incorporação de temas como Direitos
Humanos e policiamento preventivo são exemplos de ações no campo da
segurança pública que poderiam explicar a redução das TMH.
Em um primeiro momento os resultados demonstraram haver uma
correlação entre investimentos municipal e estadual em Segurança Públi-
ca e redução das TMH. Em ambos os casos o crescimento da dotação or-
çamentária antecede a queda nas TMH, o que reforça a hipótese de uma
relação causal entre investimentos em segurança pública e queda dos ní-
veis de homicídios. Cabe mencionar ainda a associação entre TMH e TAE
(taxa de aprisionamento-encarceramento). O efeito do aumento da taxa
de encarceramento na redução de crimes violentos é ressaltado por LaFree
(1999), Levitt (2004) e Blumstein, Rivara e Rosenfeld (2000). Nesta análise,
a correlação entre TAE e TMH foi robusta e significante, o que indica que
o aumento na TAE está associado à redução da TMH, como esperado. Este
resultado confirma o encontrado por Nadanovsky (2009) no Estado de São
Paulo. Cabe ressaltar ainda que no caso de São Paulo o aumento na TAE
antecede a queda na TMH, e a curva mantém movimento ascendente até o
final do período. Os dados, portanto, reforçam a hipótese da importância do
aumento na TAE para queda dos homicídios em São Paulo.
Outra hipótese é aquela que atribui a redução nas TMH às ações para o
desarmamento, cujos marcos foram a aprovação do Estatuto 2003 e a cam-
panha para o desarmamento em 2004, com instituição do programa de in-
centivo à entrega de armas de fogo às autoridades policiais. São muitos os
autores que ressaltam a disponibilidade de armas de fogo como um impor-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 71
tante fator de risco para a mortalidade violenta. Neste sentido, medidas para
o controle da posse e do porte de armas de fogo seriam importantes para re-
dução das taxas de homicídios. Neste estudo a correlação entre as variações
percentuais anuais da TMH e da apreensão de armas de fogo foi robusta
e significante. Chama atenção que no período que antecede a campanha
para o desarmamento tenha ocorrido um discreto aumento no número de
armas apreendidas, com redução progressiva e constante no período que
coincide com a campanha e aprovação do Estatuto. Uma vez que a apreen-
são de armas limita-se às armas ilegais e que não temos informações dispo-
níveis sobre armas legalmente registradas, não é possível ter certeza sobre
alterações no número de armas disponíveis ou circulantes na população.
Da mesma forma não é possível saber se a redução na apreensão de armas
reflete o menor número de armas ilegais em circulação (efeito positivo das
ações para o desarmamento) ou a redução da atividade policial. Mais uma
vez a limitação de dados compromete o alcance da análise e conclusões. Já
a associação entre o acesso a armas de fogo e queda no número dos homi-
cídios não se mostrou significante, o que contraria resultados de estudos
prévios que apontam para a importância do acesso a armas de fogo como
fator de risco para homicídios. Dada a ausência de informações confiáveis
sobre armas em circulação, medimos o acesso a armas de fogo, através da
proporção de suicídios cometidos com armas de fogo, indicador proposto
por Cook (1978) e amplamente utilizado internacionalmente. Problemas
na qualidade das informações sobre mortes por suicídio, em especial a sua
subnotificação, podem comprometer a análise dos dados e os resultados en-
contrados, explicando, ao menos parcialmente, os resultados discordantes.
Análises adicionais devem ser feitas, utilizando indicadores de acesso a ar-
mas de fogo mais precisos.
No Brasil, a efetividade do Estatuto e da campanha para o desarma-
mento foi avaliada por Souza et al. (2007). Os autores encontraram uma
redução significativa, no País, da mortalidade e das hospitalizações por feri-
mento por projétil de arma de fogo entre 2003 e 2004. No MSP, entretanto,
apesar da importância da redução nos homicídios cometidos com armas de
fogo, parece pouco provável que tais medidas sejam a causa da modificação
72 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
policiais. Neste estudo foi utilizada a taxa de prisões efetuadas pela polícia
por 100 mil habitantes. O uso deste indicador se justifica pela falta de infor-
mações disponíveis sobre o contingente de policiais. Da mesma forma não
existem dados sistemáticos disponíveis sobre eventuais mudanças qualita-
tivas na forma de policiamento, questão apontada como fundamental para
explicar a queda dos homicídios nos EUA e em Nova Iorque.
Em resumo, em um primeiro momento, os indicadores de segurança
pública que se mostraram correlacionados à redução das TMH foram o per-
centual dos orçamentos Municipal e Estadual em segurança, a Taxa de Apri-
sionamento- Encarceramento (TAE) e a apreensão de armas. Um segundo
momento, entretanto, foi dedicado à construção de modelos de regressão
para analisar o papel dos indicadores de Segurança Pública na redução dos
óbitos por homicídio no MSP considerando o efeito de alterações socioeco-
nômicas e demográficas. Desse modo, o presente projeto permitiu discutir
de forma conjunta três das principais hipóteses explicativas para a redução
de homicídio: investimento em ações de segurança pública, mudanças so-
cioeconômicas com melhoria da qualidade de vida e alterações demográfi-
cas com redução na proporção de jovens na população.
Existem, entretanto, dificuldades para a construção de modelos mul-
tivariados em estudos ecológicos, dada a existência de correlações fortes
entre as variáveis preditoras no nível agregado. Este fenômeno, conhecido
como colinearidade, pode interferir nos parâmetros estimados pela re-
gressão, gerando instabilidade e dificultando a análise dos efeitos inde-
pendentes das diferentes co-variáveis. Neste projeto, a presença de coline-
aridade foi investigada através da análise de correlação entre as variáveis
de ajuste e não se mostrou um problema relevante, dada a baixa magnitu-
de do coeficiente de correlação (r = 0,22).
No que se refere ao papel das ações em segurança pública, os resultados
encontrados demonstram que a sua contribuição para a redução das mor-
tes por homicídios no MSP perde importância após o controle do efeito das
mudanças socioeconômicas e demográficas ocorridas no mesmo período. A
associação entre o número de óbitos por homicídio e a TAE, e entre número
de óbitos por homicídio e a Atividade Policial (ATP), que se mostraram sig-
74 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Eixo qualitativo
Principais resultados
o peso que foi dado a diferentes fatores como: a atuação da polícia, a participa-
ção popular nos assuntos de interesses coletivos (inclusive através da criação de
fóruns), o desenvolvimento das ONGs, o trabalho dos serviços de cunho assis-
tenciais e de proteção (como Serviços de Assistência Social à Família – SASF e
Conselhos Tutelares), as melhorias sociais e econômicas dos distritos e de renda
da população, bem como do papel regulador exercido pelo crime organizado
nesses territórios. Abaixo essas hipóteses são mais bem elucidadas.
Mobilização da comunidade
Desarmamento
Ainda no campo da segurança, ressalta-se o papel que teve a mudança
da legislação brasileira ocorrida em 2003 que tornou inafiançável o porte de
arma para o cidadão comum que não tiver autorização para tal. Com uma
diminuição da circulação de armas, aliada às prisões em flagrante efetuadas
pela polícia, a hipótese é de que isso tenha contribuído para diminuir o nú-
mero de homicídios. Contudo, é importante ressaltar que essa opinião ficou
muito mais restrita aos relatos dos policiais e de um delegado.
que diminuiu, o PCC não deixa mais ninguém matar ninguém!” [profissio-
nal e morador de CT]. Desse modo, é reconhecida a forte presença do crime
organizado nas comunidades estudadas (não havendo tanta convergência
se existe ou não de fato uma única facção, como o Primeiro Comando da
Capital – PCC) e a capacidade deste arbitrar os conflitos internos e exter-
nos ao “mundo do crime”. Na opinião dos moradores e profissionais nas
regiões estudadas, os homicídios teriam diminuído pelo fato de hoje este
fenômeno estar, portanto, regulado e contido pelo crime. Contenção dos
homicídios que, por sua vez, parece ser muito mais instrumental (inclusive
com o objetivo de não prejudicar as atividades ilícitas desses grupos), não
significando necessariamente um maior respeito ao direito à vida. Mesmo
porque se observa uma disseminação dos “tribunais do crime”,5 onde muitas
vezes está em questão a resolução sobre a morte ou vida de um acusado de
desrespeitar as regras impostas. Se como a população indica, esse é um fator
de grande relevância para entender a queda, coloca-se em suspenso o real
avanço da redução das TMH em termos de Estado de Direito.
Referências bibliográficas
BLUMSTEIN, A.; RIVARA, F. P.; ROSENFELD, R. “The rise and decline of
homicide – and why”. American Review of Public Health, nº 21, 2000, p.
505-541.
COOK, P. “The effect of gun availability on robbery and robbery murder:
a cross-section study of fifty cities”. Annual Police Studies Review, nº 2,
1978, p. 743-81.
DIAS, C. C. N. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consoli-
dação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário pau-
lista. Tese (doutorado em Sociologia) – FFLCH – USP, São Paulo, 2011.
Introdução
O controle social de crimes violentos se tornou uma obsessão de gover-
nos estaduais, em todo Brasil, e os últimos 30 anos podem ser estudados à
luz das experimentações feitas no terreno da segurança pública. No Ceará, a
seara segurança pública foi bastante fértil em sua constituição, inventivida-
des e implantações de políticas que permearam desde as formações policiais
até as ações de integração das forças de controle social.1 Além das ações
e políticas desenvolvidas, as gestões estaduais desenvolveram variadas ex-
plicações para justificar um avanço da violência, sobretudo, em territórios
urbanos. A capital do estado representou um caso emblemático porque, nos
últimos dez anos, experimentou uma deterioração importante das suas con-
1 A história desse processo pode ser observada em estudos que permearam o campo
da segurança pública no Ceará, analisando o que Barreira (2004) considerou como
estratégias para melhorar a ordem pública. Para compreender isto, consideramos im-
portante a leitura do estudo de Sá (2002) a respeito do processo de produção social dos
oficiais da Polícia Militar do Ceará, nas reflexões de Barreira et al. (2004) a respeito
das estratégias segurança pública implantadas pelo governo Jereissati e nas análises de
Barreira e Russo (2012), Paiva e Freitas (2015) e Brasil (2004) sobre o programa Ronda
do Quarteirão, entre outras pesquisas.
86 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
2 Na descrição da entrevista gravada consta que “apesar de reconhecer todos esses avan-
ços [da política de segurança], o jornalista questionou o aumento da violência urbana,
dos homicídios – principalmente das execuções – indo de encontro às conquistas.
Roberto Monteiro dá uma explicação curiosa sobre esse aspecto”. A entrevista inte-
gral está disponível no portal Tribuna do Ceará, no endereço: <http://tribunadoceara.
uol.com.br/noticias/policia/roberto-monteiro-faz-balanco-da-seguranca-publica-no-
-ceara/>. Acesso em: 22 abr. 2018.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 87
[...] acho que na hora em que você acirra uma disputa, aumenta a
demanda por pessoas que estejam do seu lado. Mas esse é um pro-
cesso que já vem de alguns anos, não só no Ceará. Em todo o país.
Essas facções, que nasceram fora do estado, se alastraram por todo
o país. E a gente sabe o seguinte: por mais que a gente faça combate
eficiente sobre facções e lideranças locais, a questão toda não vai se
resolver porque não depende só do Ceará. Porque, se você prende
todo mundo, essas facções vão continuar existindo. E, em algum
momento, eles vão querer voltar para o Ceará. É um Estado visado,
que cresce muito, econômica e financeiramente, e esse crescimento
desperta interesse das facções. (Jornal O Povo, 10 out. 2017)
Considerações metodológicas
Ao levar em conta a associação do aumento da violência e da crimina-
lidade com o tráfico e uso de entorpecentes, decidimos cruzar números de
homicídios com os de apreensão de entorpecentes, tencionando demonstrar
relações espaciais entre esses dois acontecimentos. A ideia, no entanto, não
foi fazer uma análise de conglomerados, com desenvolvimentos estatísti-
cos necessários para apontar evidências que possibilitassem a verificação
de hipóteses, causalidades e efeitos. A ideia é, simplesmente, juntar essas
informações e retratá-las em mapas que possam mostrar onde, na cidade de
Fortaleza, acontecem os homicídios e as apreensões de drogas por consumo
e tráfico. Ao cartografar essas situações de violência, tentamos mobilizar
outros resultados provenientes de pesquisas qualitativas para analisar as
informações retratadas pelo mapeamento feito. O objetivo é demonstrar o
panorama de crimes violentos e das apreensões de drogas na Cidade, pro-
blematizando os discursos oficiais a respeito das causas de homicídio.
É importante destacar o fato de que, em linhas gerais, a inclusão de
Fortaleza entre as cidades mais violentas do mundo enseja uma série de
novas percepções e avaliações de vários agentes sociais e políticos. Ao se-
rem tratados como problemas relevantes nas lutas políticas entre grupos
que disputam posições privilegiadas na gestão do poder governamental, os
assuntos de segurança pública representam desafio permanente para sujei-
tos dispostos a disputar lugares de poder. Do ponto de vista acadêmico, é
preciso observar as múltiplas disposições em torno de críticas e explicações
Jacarecanga 3º 52º
Jangurussu 5º 2º
Barra do Ceará 6º 1º
Aeroporto 9º 96º
Guajeru 1º 104º
Serrinha 2º 30º
Montese 3º 97º
Parquelândia 4º 81º
Aldeota 5º 67º
Granja Lisboa 6º 5º
Passaré 7º 6º
Messejana 8º 9º
Parque Santa
9º 73º
Rosa
Parque Santa
10º 69º
Maria
Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV
Violência, Polícia, Justiça e Punição 101
Aerolândia 1º 43
Paupina 2º 82
Mondubim 3º 6
Messejana 4º 19
Passaré 5º 3
Barra do Ceará 6º 1
Presidente Kennedy 7º 77
Bonsucesso 8º 21
Granja Lisboa 9º 2
Jardim Iracema 1º 19
Pici 2º 25
Granja Lisboa 3º 14
Bom Jardim 4º 3
Álvaro Weyne 5º 29
Edson Queiroz 6º 28
Itaoca 7º 59
Benfica 8º 97
Meireles 9º 100
Pirambú 10º 8
Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV
102 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Rodolfo Teófilo 1º 54
Bom Jardim 2º 2
Antônio Bezerra 4º 37
Barra do Ceará 5º 1
Messejana 6º 9
Monte Castelo 7º 64
Centro 8º 26
Pirambú 9º 24
Conjunto Ceará I e II 1º 46
Barra do Ceará 2º 1
Vicente Pinzon 3º 8
Centro 4º 25
Vila Pery 5º 56
Meireles 6º 81
Fátima 7º 92
Bom Jardim 8º 4
Edson Queiroz 9º 24
7 Entre outros trabalhos, citamos como exemplos os estudos de Beato Filho (1998;
2001) que analisam as distribuições espaciais e os conglomerados de homicídios na
cidade de Belo Horizonte. O Núcleo de Estudos da Violência (NEV), também, realiza
a sistematização de homicídios, com representações gráficas da distribuição desse e
outros crimes em seu sitio eletrônico. A tese de Nery (2016) examinou as variações dos
homicídios, na cidade de São Paulo, utilizando técnicas estatísticas e geoestatísticas. E
Menezes, Silveira-Neto e Ratton (2013) estudaram a dependência espacial relacionada
às taxas de homicídio de bairros urbanos do Recife.
104 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
8 Para compreender mais sobre essa dinâmica, ver o capítulo Jovens vítimas de violência:
as dinâmicas dos homicídios na periferia de Fortaleza.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 105
ber que, em 2012, dos três bairros com maior número de homicídios, dois
deles também estão entre aqueles com maior apreensão de drogas, e um
ficou na penúltima categoria (de 1001 g a 5000 g). Em 2013, dos dez com
maior quantidade de homicídios, seis também estavam entre aqueles com
maior apreensão de drogas e três estão na penúltima categoria. O Genibaú,
embora tendo elevado o total de homicídios, teve valores de apreensão de
drogas baixo. Em 2014, houve correspondência direta, pois os sete bairros
com maior número de homicídios também estão entre aqueles com maior
volume de apreensões. Se o panorama fosse somente este, poderíamos ga-
rantir que haveria significativa razão para acreditar que há uma ligação di-
reta entre apreensão de drogas e homicídios. Como podemos visualizar nas
tabelas, entretanto, os bairros com maiores apreensões de drogas não são,
necessariamente, aqueles com maior número de homicídios, com exceção
apenas de Messejana, no ano de 2012.
Em 2012, dos vinte e cinco bairros com apreensão de drogas acima
de cinco quilos, apenas três estavam entre aqueles com maior registro de
homicídios. Em 2013, foram vinte e quatro bairros com alta apreensão e
somente seis entre aqueles contando mais vítimas fatais. No ano de 2014,
foram quarenta e um bairros, o que significa um terço dos bairros de For-
taleza, com apreensões superiores a cinco quilos, sete figuram entre os
com maior total de homicídios.
No universo temporal analisado, a quantidade de drogas apreendida
aumentou em mais de seis vezes, passando de aproximadamente 540 kg,
em 2012, para quase três toneladas e meia, em 2014, sendo que mais de
duas toneladas foram apreendidas apenas na Aerolândia. Se podemos dizer
que aumentou a eficiência policial neste período, também é válido expressar
que Fortaleza recebeu cada vez mais drogas. Malgrado o aumento constante
do número de apreensões de drogas, a retirada de quantidades expressivas
de entorpecentes não significou nenhuma diminuição de homicídios. Ele
aumentou sistematicamente, acompanhando o trabalho de repressão e seus
prováveis efeitos na vida da cidade. É comum ouvir de policiais que o seu
trabalho é como “enxugar gelo”, pois apreendem cada vez mais e maiores
quantidades de drogas, sem que isso afete um mercado crescente em oferta
Violência, Polícia, Justiça e Punição 107
que o policial respeite e trate o todo cidadão como merece. (Em: <http://
mj.jusbrasil.com.br/noticias/2022984/fortaleza-e-o-mais-novo-territorio-
-de-paz-do-pronasci>. Acesso em: 25 abr. 2018).
Foi muito interessante perceber, em entrevistas realizadas com gesto-
res da área de segurança pública, que o Pronasci foi recebido em Fortaleza
como “um senhor projeto”. Essa ideia refletia as ambições do Programa em
transformar uma área considerada difícil, atuando onde os indicadores de
violência denotavam as realidades mais complicadas em virtude da difusão
do crime, sobretudo, os de homicídio. A leitura de que o Território da Paz
trouxe algo novo e importante para a segurança é seguida de uma visão
comum aos que participaram do projeto e avaliam como não foi possível
realizar as metas almejadas. Ao se tornar um Território da Paz, os indica-
dores dos bairros contemplados pelas ações, como os da região do Grande
Bom Jardim, experimentaram redução em suas taxas de criminalidade. No
mesmo período, no entanto, outros segmentos da periferia de Fortaleza pas-
saram a ter aumentos significativos nos índices de criminalidade violenta,
fazendo com que, no geral, a Cidade passasse, na segunda década do século
XXI, a figurar entre as mais violentas do Brasil e do Mundo.
Mesmo com ações de policiamento e projetos sociais na periferia, foi
observado nos anos percorridos por nosso trabalho de investigação que,
grosso modo, as guerras entre grupos rivais em determinados bairros não re-
cuaram, avançando e produzindo números de mortos inéditos no contexto
de determinadas áreas. Impressiona a situação de bairros que vivenciaram,
na fase analisada, finais de semana com dezenas de mortos decorrentes de
uma “aparente” guerra entre traficantes. Sem dúvida, as lutas pelo controle
do tráfico de drogas e armas representam componentes importantes da ex-
plicação do crescimento dos homicídios em Fortaleza. Não questionamos se
as mortes decorrentes do tráfico sejam predominantes em relação a outras
causalidades de homicídio. Isto não explica por que Fortaleza e outras regi-
ões do Estado do Ceará avançaram nas taxas de homicídio, enquanto muni-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 113
11 Para uma verificação dos indicadores de violências das cidades brasileiras ver Julio
Jacobo Waiselfisz, Mapa da violência: homicídios por armas de fogo no Brasil (Instituto
Sangari, 2016).
12 No dia 12 de novembro, 11 pessoas foram assassinadas na Grande Messejana, em uma
ação que envolveu a participação de policiais militares e civis. Cf. Luiz Fábio Paiva,
Mortes na periferia: considerações sobre a chacina de 12 de novembro em Fortaleza. O
público e o privado, v. 1, n. 26, 2016.
114 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
de um colega que não estava em serviço, muito menos foi morto por ser po-
licial, as primeiras notícias e a própria Secretaria considerou a possibilidade
de o crime ter resultado de um acerto de contas. A grande repercussão do
acontecimento ocorreu apenas pela suspeita levantada de que, naquele caso,
pessoas inocentes haviam sido assassinadas.
Matar tornou-se uma atividade comum aos praticantes de crimes em
Fortaleza, cientes de que não há interesse no sistema de segurança pública
em intervir significativamente nas disputas entre pessoas com algum grau
de envolvimento com o crime. Essa leitura ainda colabora com a constata-
ção dos próprios operadores de segurança pública de que a Polícia Civil não
dispõe de condições objetivas para investigar todos os casos de homicídio
ocorridos no Estado do Ceará. Em razão dos poucos recursos materiais e
humanos, é preciso escolher quais os casos aos quais cada equipe de um
Distrito Policial irá se dedicar. Portanto, a ideia fundamental é de que os
bandidos podem administrar seus conflitos decorrentes de seus interesses.
“Quem mandou se meter com bandidos?” – relatam pessoas que concordam
com a ideia de que as forças policiais devem, senão colaborar, pelo menos,
deixar que “eles se matem”. O problema é como gerir a violência produzida
por sujeitos que interpretam o assassinato como meio de alcançar interesses
e, consequentemente, impor às pessoas a legitimidade de seu mando, ampa-
rado na sua disposição de matar para cumprir seus objetivos. Ao se omitir,
o Estado contribuiu substancialmente para que a matança se tornasse no
Ceará um meio, sendo que policiais, além de sua atitude passiva, têm, como
no caso da chacina de Messajana, contribuído ainda ativamente para o total
de mortes violentas no Estado do Ceará.
Por fim, quando matar o outro se torna uma regra de convivialidade,
temos estabelecimento de interações perigosas que, em determinados mo-
mentos, incidem na população de maneira a produzir repercussões da vio-
lência como mecanismo de controle social. A cidadania deixa de ser um
princípio organizador para ceder lugar à possibilidade de lesão e eliminação
do outro. A situação parece mais grave, na periferia de Fortaleza, quando
observamos que ela é componente significativo de relações sociais e con-
teúdos de sentido compartilhados por agentes do Estado, do crime e dos
moradores da periferia de maneira geral.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 115
Referências bibliográficas
AQUINO, J. P. D. “Intersecções e pontos de contato entre o legal e o ilegal
no cotidiano da Praia de Iracema”. In: BARREIRA, César; BARREIRA,
Irlys (org.). Etnografias na cidade: redes, conflitos e lugares. Campinas:
Pontes, 2016.
BARREIRA, César. “Em nome da lei e da ordem: a propósito da política de
segurança pública”. São Paulo em Perspectiva, nº 1, vol. 18, 2004, p. 77-86.
BARREIRA, C. (org.). Questão de Segurança: políticas governamentais e prá-
ticas policiais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. (Série Antropolo-
gia da Política).
BARREIRA, César; RUSSO, Maurício Bastos. “O Ronda do quarteirão: re-
latos de uma experiência”. Revista Brasileira de Segurança Pública, São
Paulo, nº 2, vol. 6, ago./set. 2012, p. 282-297.
BARREIRA, César; RUSSO, Maurício Bastos; PAIVA, Luiz Fábio S. (org.).
Violência como campo de pesquisa e orientação. Campinas: Pontes, 2014.
BEATO FILHO, Cláudio Chaves et al. “Conglomerados de homicídios e o trá-
fico de drogas em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, de 1995 a 1999”.
Revista de Saúde Pública, São Paulo, nº 5, vol. 17, 2001, p. 1163-71.
BEATO FILHO; Cláudio Chaves. “Determinantes da criminalidade em Minas
Gerais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 37, vol. 13, 1998, p. 74-87.
BRASIL, Glaucíria Mota. “Formação e inteligência policial: desafios à política
pública de segurança”. O público e o privado, nº 4, jul./dez. 2004, p. 141-163.
ENTREVISTA com Coronel Bezerra, secretário de segurança do Ceará. O
Povo. Fortaleza, 17 mar. 2013.
MENEZES, Tatiane, SILVEIRA NETO, R., RATTON, J. L. “Spatial correla-
tion between homicide rates and inequality: evidence from urban nei-
ghborhoods”. Economics Letters, nº 1, vol. 120, 2013, p. 97-99.
MOREIRA, Marcus Giovani Ribeiro. Aqui o RAIO sempre cai no mesmo
lugar: Percepções da comunidade do lagamar em Fortaleza, CE sobre as
práticas de suspeição e abordagem da ronda de ações intensivas e ostensi-
vas (Raio). Dissertação (mestrado em Políticas Públicas) – UECE, For-
taleza, 2013.
116 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Considerações teórico-metodológicas
Neste escrito, elabora-se uma análise sociológica compreensiva2 sobre
o sentido e as condições sociais relacionadas às mortes de jovens pobres,
na periferia de Fortaleza. Não é um esforço exaustivo ou geral, pois cons-
titui a tarefa resultado de pesquisa qualitativa, o que impõe limites claros
para as generalizações decorrentes das informações trabalhadas. Embora
sejam considerados dados quantitativos, índices e percentuais, sua função
no texto é retratar a realidade mais abrangente das circunstâncias e situa-
ções trabalhadas para compreensão do problema social tratado. Menos do
que um esforço específico de pesquisa realizado para chegar a este texto
como resultado, conjugou-se uma série de intentos relacionados a pes-
quisas no âmbito de variados trabalhos nos quais pesquisadores do LEV
estiveram envolvidos. Buscou-se trabalhar com os discursos que tornam
o fenômeno social estudado possível de uma compreensão sociológica,
articulando a contribuição de autores preocupados com os efeitos sociais
da violência para determinado tipo de sociedade. Demandou-se, também,
escapar, a exemplo de Barreira (1998), na sua pesquisa com pistoleiros,
dos julgamentos morais para compreender os sentidos pertinentes a prá-
1 Trabalhos etnográficos como o de Paiva (2014), Matos Júnior (2008), Cavalcante (2011)
e Sá (2011) revelam os cotidianos das dinâmicas de crimes, violências e conflitos que
envolvem, sobretudo, os mais jovens nas periferias de Fortaleza. Destaca-se também tra-
balho de Freitas, Brasil e Almeida (2012) que evidencia como a população mais jovem
compõe as estatísticas criminais e o desafio desse fenômeno para as políticas públicas.
2 Intenta compreender o sentido da ação social nos documentos e nas falas de pessoas
da periferia, incorporando as ricas contribuições de Max Weber (1999), mas também
a crítica aos limites dos modelos interpretativos discutidos por Bourdieu (1974).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 119
ticas de violência como uma ação dotada de sentido para pessoas nas pe-
riferias de Fortaleza.
Considera-se como pressuposto para análise a existência, mesmo que
problemática, de um Estado Democrático de Direito, com instituições de
controle social e normalização das condutas que, em tese, deveriam atu-
ar em razão de princípios morais, e também legais, constituídos historica-
mente. O Estado, conforme definiu Weber (1999), busca ser o detentor do
monopólio da violência legítima e, em condições de modernidade, institui
o domínio legal por meio de variadas ações, com intuito de estabelecer, en-
tre outras coisas, relações sociais não violentas entre pessoas que compõem
uma comunidade política. Em tese, como Elias (1993) demonstrou em seu
estudo sobre o processo civilizador, os Estados nacionais modernos e oci-
dentais estabelecem a conformidade de relações não violentas, controladas
por mecanismos de controle e autocontrole das condutas. O controle do
Estado, de acordo com Bourdieu (2014), não se restringe apenas ao controle
da força, mas se estende também ao domínio simbólico estabelecido e incor-
porado por sujeitos que creem em suas leis e no seu poder de consagração.
Ao trabalhar em múltiplas instâncias da vida social, o Estado cria condições
sociais objetivas e referências que são conteúdos de sentido estruturantes de
práticas sociais. Os entendimentos desses autores são pressupostos acom-
panhados neste trabalho para refletir sobre práticas de violência que, em
Fortaleza, escapam à lógica normativa de um Estado moderno ocidental.
Ao analisar os dados que figuram em relatórios de pesquisas, conside-
raram-se tanto os aspectos panorâmicos relacionados às condições sociais
do crime na capital do Ceará, quanto os seus efeitos morai e políticos nos
discursos da imprensa e de governos sobre a realidade expressa. Os dados
possibilitam observar especificidades ao comparar a situação de Fortaleza
a de outras cidades, estabelecendo parâmetros normativos relacionados a
situações esperadas e outras que superam expectativas consideradas “nor-
mais”. Em linhas gerais, define-se o parâmetro da Organização Mundial de
Saúde (OMS) de dez homicídios por 100 mil habitantes como o aceitável.
No Brasil, desde o ano de 1989, a taxa supera os 20 homicídios por 100
mil habitantes, havendo chegado 29 homicídios por 100 mil habitantes, em
120 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
prisões bem como outras informações que evidenciam uma situação caótica
na reprodução da violência.
Apenas a repercussão negativa de dados gerais não é suficiente para
compreender as dimensões do problema, sobretudo, quando se observa cui-
dadosamente a morte de jovens pobres e negros nas periferias. De acordo
com dados disponibilizados pelo Mapa da Violência 2014: os jovens do Bra-
sil, jovens de 15 a 29 anos são as principais vítimas da violência e as taxas
específicas evidenciam outro patamar em termos de mortes violentas. Ao
considerar as taxas em municípios nacionais com mais de dez mil jovens,
no ano de 2012, o documento mostra Fortaleza na 24ª posição na relação
brasileira de homicídios de jovens por 100 mil habitantes, com a taxa de
76,6 crimes deste tipo por 100 mil habitantes. Outras cidades cearenses fi-
guraram nessa relação: Eusébio, na 13ª posição, com 207,9 homicídios por
100 mil habitantes; Itaitinga, na 20ª, com 181,9; Aquiraz, na 46ª, com 140,3;
Horizonte, na 56ª, com 134,4; Barbalha, na 66ª, 127,2; Maracanaú, na 70ª,
com 125,2; Caucaia, na 77ª, com 122; Juazeiro do Norte, na 93ª, com 114,6.
Juntamente com Fortaleza, são nove cidades do Estado do Ceará entre as
100 que expressam maior índice de homicídios de jovens de 15 a 29 anos.
Das cidades do Ceará, seis fazem parte da Região Metropolitana de Fortale-
za. Destaque seja conferido aos municípios de Eusébio e Itaitinga, que expri-
mem índices superiores ao da capital. Obviamente, é preciso considerar que
as duas compõem a Região Metropolitana e ocupam uma posição periférica
em relação ao centro econômico e político da capital. O relatório também
colabora para demonstrar a evolução das taxas dos anos de 2002 a 2012,
revelando que o crescimento dos indicadores de homicídios na população
de 15 a 29 anos foi de 141,1%.
O Mapa da Violência 2014: os jovens do Brasil ainda revela a situação
em relação aos jovens brancos e negros. No relatório, os autores explicam
que “[...] as categorias preto e pardo foram somadas para construir a cate-
goria negro” (p. 18). Em Fortaleza, enquanto a taxa de homicídios por 100
mil habitantes de jovens brancos é de 40,9, a de jovens negros é de 256,0.
Observa-se que a população negra é a principal vítima das ocorrências de
homicídio, revelando um importante aspecto da violência na cidade de For-
126 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
uma experiência social vivida pelos mais pobres, jovens do sexo masculino,
pardos e negros, nos bairros onde residem.
A situação dos jovens pobres de Fortaleza auferiu especial atenção
quando 11 pessoas foram assinadas, na região da Grande Messejana,11 no
dia 12 de novembro de 2015. Os crimes ocorreram nos bairros de Messeja-
na, Curió, São Miguel e Lagoa Redonda, da 00h20min (primeiro assassina-
to) às 03h57min (último). Nove das 11 vítimas da chacina, conhecida como
Chacina da Messejana, tinham de 16 a 19 anos. Na ocasião, chamou especial
atenção o destaque das linhas de investigação consideradas pela Secretária
de Segurança Pública e Defesa Social do Estado Ceará, amplamente divul-
gadas pela imprensa cearense nos dias 12 e 13 de novembro de 2015.
Linhas de investigação
Segundo o secretário-adjunto da SSPDS, coronel Lauro Prado, a Polícia
trabalha com três linhas de investigação. A primeira aponta para retaliação
pela morte do policial do 16º Batalhão da Polícia Militar (BPM), durante
tentativa de assalto, na Lagoa Redonda, na noite desta quarta-feira, 11.
A segunda linha de investigação sustenta que as mortes estariam rela-
cionadas à execução de Lindemberg Vieira Dias, 31 anos, que foi alvejado
com 32 tiros, na tarde de quarta, 11, no encontro do 4º Anel Viário com a
avenida Osório de Paiva, em Maracanaú.
A outra hipótese levantada é de que as execuções estejam relacionadas
à prisão de Carlos Alexandre Aberto da Silva, 39, conhecido como Castor,
na terça-feira, 10. Apontado como líder do tráfico de drogas no Jardim das
Oliveiras, ele possui antecedentes criminais por tráfico de drogas, porte e
posse ilegal de arma de fogo, ameaça, homicídios e tentativa de homicídio.
(Jornal O Povo [online], 2015)
No dia 12 de novembro de 2015, os pontos de vista da população já re-
percutiam nas redes sociais ao dizerem às pessoas que as mortes haviam sido
11 O trabalho de Paiva (2016), escrito ainda no calor dos acontecimentos, retrata como
esse acontecimento afetou as periferias da Cidade e foi considerado do ponto de vista
político pelos gestores da área de segurança pública do Estado do Ceará.
128 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
13 Estudo feito pelo LEV e o Centro de Defesa da Criança e Adolescente do Ceará que,
entre outras coisas, demonstrou como as mortes de jovens é naturalizada, sem repercus-
sões na Justiça para responsabilização dos envolvidos e também na própria família que,
em muitos casos, aceita o destino do adolescente com resignação (Barreira et al., 1999).
130 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
17 Como pensado por Max Weber (2004), a afinidade entre fenômenos sociais históricos
que, em linhas gerais, existem e estabelecem relações de causalidades sem que um
possa ser reduzido ou determinado pelo outro.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 135
19 Paiva (2009) analisou os efeitos morais e políticos dos homicídios na periferia, com
base na experiência de quem busca justiça em casos como o retratado no texto.
140 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
20 A análise desse fenômeno dialoga com os estudos filosóficos de Agamben (2007) sobre
o homo sacer e as reflexões de Butler (2006) vida precária não dignas de luto e reconhe-
cimento do seu valor.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 141
21 Como demonstra Lourenço (2016), com base nas possibilidades de vida colocadas
para um jovem da periferia de Salvador, é necessário considerar ainda que o enga-
jamento desses jovens com os mercados ilegais não se dá apenas por uma possível
relação de frustração com seus projetos de vida, mas de muitas outras significações e
peculiaridades que precisam ser levadas a sério na pesquisa sociológica.
22 Machado e Noronha (2002), com suporte em estudo realizado na cidade de Salvador,
ressaltam que a violência policial é fundada em concepções racialmente discriminató-
rias, afetando de maneira inevitável pessoas comuns residentes das periferias.
142 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
23 Os “rolezinhos” são referências a um rolê, uma gíria das cidades brasileiras para des-
crever um passeio entre amigos. Os “rolezinhos” se popularizaram, no Brasil, quando
jovens das periferias resolveram fazer seus rolês em shopping centers de cidades bra-
sileiras. Como retratado no texto, os “rolezinhos”, em Fortaleza, têm acontecido em
espaços públicos, na própria periferia.
24 Conforme a Prefeitura Municipal de Fortaleza (s. d.), “a Rede Cuca é uma rede de
proteção social e oportunidades formada por três Centros Urbanos de Cultura,
Arte, Ciência e Esporte (Cucas), mantidos pela Prefeitura de Fortaleza, por meio da
Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude. Geridos pelo Instituto
Cuca, os Cucas Barra, Mondubim e Jangurussu atendem, prioritariamente, jovens de
15 a 29 anos, oferecendo cursos, práticas esportivas, difusão cultural, formações e pro-
duções na área de comunicação e atividades que fortalecem o protagonismo juvenil e
realizam a promoção e garantia de direitos humanos” (Disponível em: <https://juven-
tude.fortaleza.ce.gov.br/rede-cuca>.).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 143
“Quando eles chegam, não querem saber quem está ou não fazendo algo
errado. Entra todo mundo na peia”, relatou jovem que participava de ati-
vidades culturais no equipamento, no bairro Jangurussu. Observa-se, em
geral, uma falta de discernimento e equilíbrio em ações que alcançam to-
dos, agressores e vítimas, envolvidos e não envolvidos. A discriminação e
o preconceito são os geradores de ações que afetam os jovens em suas mais
diversas sociabilidades, restando na periferia poucas ou nenhuma opção
realmente segura de lazer. Ao tratar todos como “bandidos”, a polícia sim-
plifica seu trabalho, abordando e atuando com violência para promoção
de seu “combate” ao crime. Esse “combate” parece pouco afeito a discutir
razões ou relativizar posições sociais predeterminadas pelos preconceitos
que estabelecem jovens pobres e negros como os sujeitos potenciais da
criminalidade.25
Outra situação observada durante a pesquisa foi a existência de co-
branças de propinas, o tradicional “arrego”. Para jovens entrevistados, é
comum que policiais nessas ações exijam o “arrego”, sobretudo, quando
sabem que o abordado tem envolvimento com os mercados ilegais de dro-
gas. Pagar o “arrego” é um jeito de evitar algo pior, pelo menos por um pe-
ríodo breve. Mesmo pagando o “arrego”, é preciso considerar que o pagan-
te se torna também testemunha de um crime cometido por policiais. Isto
traz uma série de problema para jovens que, efetivamente, não conseguem
sair de um circuito de cobranças que submetem sua vida a risco. “Às vezes
você não está nem querendo fazer nada, aí os cara de pega [policial] e tu tá
sem dinheiro. Ora, ali tu tem que fazer teu corre porque se não tu tá mor-
to”, afirmou um jovem que praticava assaltos pela cidade. Para quem está
dentro de esquemas que são compostos por outros que cometem crimes
e policiais que abordam em troca do “arrego”, grosso modo, sair é um pro-
blema quase intransponível. Para muitos envolvidos são poucas as chances
de sair da gangue, da “facção” ou escapar da extorsão policial. Por isso, é
comum que imaginem a morte como uma possibilidade real e única de
Rivalidade
Três jovens executados em chacina no Tancredo Neves.
O som de fogos de artifícios ouvidos na noite de domingo no bairro
Tancredo Neves não era a celebração de nenhuma festa. O barulho
indicava o ´sucesso´ de uma chacina que tirou a vida de três jovens,
que estavam em uma residência, na Rua Maçaranduba. Minutos
após a morte dos irmãos Jackson Rodrigues, 21 e Júnior Rodrigues,
23, e de Francisco Claudenilson Bernardo Pita, 19, sumariamente
executados com tiros de pistola de calibre nove milímetros e de
380, uma queima de fogos foi iniciada no Conjunto Tasso Jereissati,
onde, supostamente, os acusados do crime moram. “Parecia que
Violência, Polícia, Justiça e Punição 145
o mundo ia acabar com tanto tiro, depois eles fazem isso (soltam
fogos)”, disse uma testemunha. (Diário do Nordeste [online], 2010)
CONTROLE DO TRÁFICO
“Guerra” no São Miguel já provocou 17 mortes.
Ontem, mais um jovem foi eliminado na comunidade. No domin-
go passado, um adolescente também foi executado.
Subiu para 17 o número de mortos na ‘guerra’ de traficantes que se
desenrola, há meses, na comunidade do Conjunto São Miguel, em
Messejana. Na manhã de ontem, um rapaz morreu e outros dois
homens ficaram feridos, no terceiro tiroteio desde domingo. Foi
a segunda morte em 72 horas. O pano de fundo é a disputa entre
146 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
26 Um vídeo de um jovem sendo assassinado no Conjunto São Miguel pode ser acessa-
do no Portal UOL Mais. Disponível em: <http://mais.uol.com.br/view/pj4p9vzv54s1/
video-mostra-execucao-de-jovem-no-ceara-e-alvo-de-investigacao-da-policia-
-04028D1B306AE0995326?types=A&>. Acesso em: 13 set. 2017.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 147
A matéria ressalta algo que também aparece nas falas e parece afetar a
sensibilidade local, a crueldade existente na ação das “facções”.27 Não houve
tempo, nas pesquisas que alimentam este trabalho, para aprofundar o papel
dos “tribunais” nas dinâmicas criminais que compõem o trabalho das “fac-
ções” na periferia. As interlocuções com moradores, no entanto, mostram
que a lógica de mortes cruéis passou a ser um componente importante desde
a chegada das “facções”. A produção social do medo, com atos de esquarte-
jamento, parece um elemento importante e a matéria ajuda a propagar algo
politicamente relevante para as “facções” em seu trabalho de impor o mando e
a obediência na periferia. O desaparecimento de jovens que praticam assaltos
ou são identificados como aliados de outro grupo faz parte das rotinas im-
plementadas pelas “facções”. O reaparecimento do corpo esquartejado, com
marcas de tortura em razão de passagem pelo tribunal do crime é outro fato
relevante com o qual as pessoas vão convivendo nas periferias de Fortaleza.
Como nas outras situações narradas, são os jovens as principais vítimas de
uma ação violenta protagonizada por quem deseja se impor pela força.
Considerações finais
Assassinatos de jovens, nas periferias de Fortaleza, não são aconte-
cimentos isolados. Como é possível observar, este fenômeno retrata um
processo que precisa ser compreendido em sua extensão e complexidade
histórica. Nos últimos 20 anos, com a complexidade dos mercados ilegais
de drogas e armas, a letalidade relacionada ao crime se tornou mais eviden-
te, mas ela não passou a existir desde então. A cidade de Fortaleza atingiu
números expressivos e sua exposição ajuda a evidenciar o fenômeno. Não
parece demasiado, no entanto, acentuar que esse fenômeno tem raízes co-
loniais, com suporte nos assassinatos sistemáticos de indígenas, negros e
pobres. Como foi possível observar, os assassinatos de jovens pobres e ne-
gros nas periferias acontecem de maneira cruel e visível. Nenhuma ação do
poder público foi útil na diminuição da violência que atinge jovens, pobres
e negros nas periferias urbanas de Fortaleza, pelo menos, nos últimos dez
anos. Não são todos os jovens da periferia que irão morrer assassinados.
São, em sua maioria, do sexo masculino, negros, envolvidos ou “suspeitos”
de envolvimento com práticas de crimes. A suspeição recai sobre todos,
mas é mais comum encontrar corpos de negros alvejados e caídos no chão.
Mesmo sendo conhecidas, as condições sociais que estruturam as mortes
dessa parte da população permanecem intangíveis. Em outubro de 2017, as
matérias jornalísticas já apontavam para o fato de que o Estado do Ceará
continuava em seu caminho de crescimento dos números de homicídios,
com 3.696 registros de crimes violento letais intencionais.
As explicações do poder público insistem no fato de a “droga” ser a mo-
tivação de “guerras” entre bandidos, que se matam sem que as forças poli-
ciais possam impedir. Apesar dos mercados ilegais de drogas e armas terem
um papel importante, não explicam a totalidade das mortes. Elas ocorrem
também porque policiais interferem nos territórios, como no caso da Chaci-
na de Messejana. Como foi possível observar nas falas de autoridades após a
Chacina, pouco importa o evento em si, pois primeiro é preciso saber quem
são os mortos. Ao perguntar primeiro quem são os mortos, os governos
deixam claro que não têm interesse em impedir a morte de determinadas
pessoas, supostamente classificadas como “bandidos”. Existe uma autoriza-
150 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
ção para que “bandidos” sejam assassinados. Não se trata de algo implícito;
é explícito. As cenas do crime são marcadas pela identificação do morto.
Quando é estabelecida a relação dele com práticas de crimes, é produzida
uma explicação baseada na ideia de que o crime foi um “acerto de contas”
entre “bandidos”. Então, não há motivos para comoção social ou providên-
cias mais do que as necessárias para que o corpo do morto seja enterrado e
os processos arquivados.
Ao trabalharem em Fortaleza, as “facções” implementaram novas con-
cepções de como fazer o crime, se relacionar com o grupo e a comunidade.
Criaram rotinas, com novas armas e práticas entre o que se deve e não se
deve fazer. Sem nenhuma dúvida, ainda é necessário avançar na compreen-
são desse fenômeno, buscando compreender as mudanças sociais no crime
na periferia de Fortaleza, com a intensificação da ação de “facções” crimi-
nosas. Não obstante, é preciso registrar o fato de que as condições sociais
que possibilitaram o trabalho das “facções” existiam há muito tempo. Os
mercados ilegais de drogas e armas, articulados ao trabalho de grupos que
atuam em escala nacional e internacional, já existiam e foram incorporados
a uma engrenagem maior. As conflitualidades internas tiveram que se rea-
comodar no panorama de conflito estabelecido com PCC-GDE de um lado
e CV-FDN do outro. Observa-se que grupos que antes guerreavam entre si,
no interior de determinado bairro, promoveram alianças e estabeleceram
outros grupos de outros territórios ou ainda dos seus territórios como ini-
migos. Ainda é preciso mapear as novas dinâmicas territoriais e sua confi-
guração no âmbito da cidade de Fortaleza.
Em suma, é difícil imaginar que jovens pobres e negros estejam produ-
zindo armas e sejam os responsáveis pela comercialização, em larga escala,
de drogas como a cocaína. Estão, no máximo, participando como traba-
lhadores de grupos que movimentam mercados internacionais economica-
mente rentáveis e capazes de produzir adesão pelos efeitos econômicos que
produzem na vida de comunidades pobres. Não é possível menosprezar o
fator econômico na reprodução do crime, embora não se possa ficar preso
ou reduzir o fenômeno a ele. Jovens participam desse mercado em uma po-
sição subalterna, colocando suas vidas em jogo para movimentar um seg-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 151
Referências bibliográficas
ADORNO, Sergio; SALLA, Fernando. “Criminalidade organizada nas pri-
sões e os ataques do PCC”. Revista de Estudos Avançados, nº 61, vol. 21,
set. 2007, p. 7-29.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Ho-
rizonte: Ed. UFMG, 2007. Vol. 1.
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. São Paulo: Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, ano 10, 2016. Disponível em: <www.
forumseguranca.org.br/publicacoes/10o-anuario-brasileiro-de-segu-
ranca-publica/>. Acesso em: 17 mar. 2017
BARREIRA, César. Crimes por encomenda: violência e pistolagem no cenário
brasileiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
BARREIRA, César. “Violência difusa, medo e insegurança: as marcas recen-
tes da crueldade”. Revista Brasileira de Sociologia, Universidade Federal
de Sergipe, nº 1, vol. 1, jan./jul. 2013, p. 217-242.
BARREIRA, César et al. À espera de justiça: assassinato de crianças e ado-
lescentes na Grande Fortaleza. Fortaleza: Expressão Gráfica, 1999a.
BARREIRA, César et al. Ligado na galera: juventude, violência e cidadania
na cidade de Fortaleza. Brasília: Edições UNESCO, 1999b.
BARREIRA, César; AQUINO, Jânia P. D. “Pirangueiro, um personagem
estigmatizado: marcador de diferenças no universo criminal”. In: XVI
CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 16, 2013, Salvador.
Anais... Salvador: UFBA, 2013.
152 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
1 O trabalho de pesquisa é um trabalho coletivo; e este não foi diferente. Muito do re-
sultado final não teria sido possível sem o esforço de todo o grupo. Uma equipe séria
e dedicada esteve sempre presente. Várias foram as etapas e momentos em que cada
participação se revelou mais presente, mas a contribuição conjunta foi fundamental
para o resultado final do trabalho. Muito obrigada pela seriedade, dedicação e qua-
lidade do trabalho empreendido, a quem desde o momento inicial compartilhou e
acreditou neste trabalho coletivo: a professora Ana Maria V. Nogales e os pesquisa-
dores: Welliton Caixeta Maciel; Kamila Figueira; Thais Gwryszewski; Cláudio Dantas;
Rodrigo Suassuna; Gabriela Landim; Nelson Gomes; Marcelle Fiqueira; Gabriela Dias;
Tatiana Maranhão; Walter Menon. Agradeço também à professora Haydée Caruzo,
pelo tempo em que participou da equipe.
160 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Contexto empírico
O Distrito Federal foi o espaço selecionado para a análise. O interesse
em focalizar Brasília como locus empírico para pesquisar a violência decor-
reu do fato de as demais capitais serem, seguidamente, objeto de pesquisas
sobre a temática e Brasília pouco priorizada, em virtude de, muitas vezes,
164 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
insere no Distrito Federal, já que composto por cidades cuja população de-
pende em sua maioria do emprego e dos equipamentos urbanos mínimos
-segurança, saúde, lazer, educação- existentes, ou não, no DF (mesmo que
de forma não tão exclusiva como quando dos momentos iniciais de existên-
cia da capital federal). Muito frequentemente, os governos das duas áreas
se disputam quando se trata de atribuir deveres e responsabilidades ou de
apontar falhas e culpados pelo vazio político administrativo no qual a região
se tornou. Na prática, as disputas administrativas impedem ou dificultam
que os governos das duas regiões, Goiás e DF, trabalhem em parceria. A re-
presentação do entorno é então a de algo próximo a uma “terra de ninguém”
a assustar cada vez mais a “terra do poder, incapaz de reagir” e se sentindo
“contaminada” pela precariedade da região, e dos efeitos dessa, diretamente
ressentidos na capital federal. Ou seja, vista por esse prisma, Brasília com-
partilha características das grandes metrópoles, e isso vale para a questão da
violência. É uma cidade que comporta as benesses e delícias, mas também,
as mazelas e sofrimentos das grandes cidades. Em termos dessa grande arti-
culação urbana e do que isso significa enquanto representações sociais for-
muladas pelos mais distintos segmentos sociais, poder-se-ia, então, dizer, o
entorno é aqui. Mesmo concordando que em Brasília a violência seja difusa,
e que o sistema público de segurança detenha (ainda?) razoável controle so-
bre a região do plano piloto, (em que pese o fato de que algumas áreas serem
cada vez mais conhecidas por seus elevados índices de violência), não seria
exagero dizer que a cidade estaria rapidamente perdendo as barreiras ca-
pazes de, nos termos de Misse (2008), impedir a acumulação social da vio-
lência. Acrescentaria, em adendo ao argumento de Misse, que o potencial
para construir/desconstruir tais barreiras dependerá também da eficácia e
do conteúdo dessas representações mencionadas. Esse o motivo pelo qual,
mesmo não sendo o tema dessa exposição, o entorno mereceu essa contex-
tualização relativamente longa.
Assim, e concluindo estas notas metodológicas, a reflexão recorreu à
análise das representações sociais que a categoria (policial) elabora de si mes-
mo e das que constrói sobre o outro (ou os outros) com quem se relaciona ou
se confronta em sua prática cotidiana, dentro e fora das fronteiras da própria
166 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
profissão, enquanto contraponto para pensar e definir o “eu”. Esse outro que
pode ser o policial da própria corporação ou ainda da outra oposta à sua, ato-
res e segmentos da população civil, na figura do paisano como quer a lingua-
gem nativa, ou ainda toda uma região, como se viu com relação ao entorno.
Fonte: Todos os gráficos deste texto são resultado desta pesquisa, conforme ex-
plicitado no item dedicado à Coleta de Dados. As porcentagens foram calculadas
a partir das respostas válidas. Na PM 9% da amostra não respondeu, no caso da
PC, 11% da amostra não respondeu.
5 Para o trabalho de elaboração dos gráficos, atribuição dos pesos (segundo as orien-
tações amostrais da professora Nogales), cruzamentos e leitura das tabelas e dados
contou-se com o trabalho dedicado de Thais Gawryszewski e Kamila Figueira cujos
agradecimentos ficam aqui registrados.
170 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
afirmações não podem ser assumidas como falsas ou verdadeiras mas como
subsídios relevantes para a análise, pois a forma como o policial supõe ser
representado pela sociedade pode condicionar a forma como ele se relaciona
com ela, dado que RS se constituem em máximas orientadoras de conduta.
Representações com as características como as mostradas nos gráficos 1 e 2
poderiam, no limite, contribuir para uma atitude defensiva, ou até mesmo
agressiva do policial face a essa sociedade que, segundo ele, o representaria
como violento, ameaça ou um mal necessário. O eu da balança eu/nós ten-
deria a perder espaço para um nós que se avoluma, quase se agigantando em
termos de orientar a conduta policial.
Garantia de
manutenção da 29% 24% 26% 11% 9% 1% 100%
ordem
Proteção para a
36% 23% 14% 16% 10% 2% 100%
comunidade
Prestador de
22% 19% 8% 31% 18% 1% 100%
serviços
Representante ar-
13% 35% 4% 18% 20% 10% 100%
mado do Estado
7 Para uma análise mais profunda sobre o sentido da confiança na PM do DF, cf.
Suassuna, 2013.
174 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Na PC este gap entre como a polícia se vê e como ela acha que é vista
pela sociedade, aparece bem mais nuançado: alguns dados mais significati-
vos bastam como ilustração: Dos policiais da PC que se veem como garantia
de manutenção da ordem, 30% acredita que a sociedade os veja da mesma
forma; 39% que a sociedade os veja como proteção e para 17% a sociedade
os representaria como mal necessário. Os policiais civis não se veem e nem
parecem representar que a sociedade os veja como ameaça ou mal necessá-
rio, o que definitivamente os distingue das representações da PM.
Na condição de RS, tais afirmações não podem ser assumidas nem
como falsas nem como verdadeiras: são subsídios relevante para a análise,
pois a forma como o policial supõe ser representado pela sociedade pode
chegar a condicionar a forma como ele se relaciona com ela, dado que repre-
sentações sociais se constituem em máximas orientadoras de conduta. Uma
representação com tais ou quais características poderá contribuir para ati-
tudes mais ou menos defensivas, mais ou menos agressivas do policial face
a essa sociedade se esta, a seus olhos, o avalia negativamente. Dito de outro
modo, com relação, por exemplo, à PM, isso pode estar querendo dizer, en-
tre outras coisas, que, a seus olhos, a sociedade a representa como violenta,
ameaça e mal necessário.
A questão que originou o gráfico 03, abaixo, é, igualmente, porta de
entrada importante para a busca identitária que moveu esta pesquisa e
que procurou captar o que é, para as corporações, a natureza da função
policial. Embora as questões não fossem excludentes a demanda por uma
única alternativa visava a captar o que, para o respondente, era o mais
significativo como definidor da função policial. Esta questão atinge, em
cheio, a prática do policial.
176 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
tanto, não são valores ou credenciais que o policial ponha em sua conta, ou
currículo, “como saldo positivo”. Questão que abre um espaço vazio, se não
se quiser falar em um déficit no que se refere à construção identitária, com
marcas e pertenças que façam sentido individual e, sobretudo, que apontem
para a condição da identidade social ou coletiva; da identidade profissional.
Com ligeiras nuances é algo que pode ser dito de ambas as corporações.
Ainda no âmbito da função policial, mesmo que o modelo disciplinar do
exército venha perdendo espaço, suas bases permanecem sólidas no âmbito
do simbólico e participar de uma guerra diária ocupa espaço importante nas
representações sociais dos respondentes da PM (21%) quando comparadas ao
encontrado para a PC (10%). Dados que condizem com suas representações
no que concerne a se representarem como o braço armado do Estado, as quais
são, proporcionalmente, dois terços maiores do que os números encontrados
para as representações da PC.Essa questão sobre função ou exercício policial
é provavelmente uma das que melhor expressa as ambiguidades, incertezas e
paradoxos sobre como se veem os policiais, e aqui chamam a atenção sobre-
tudo as representações dos policiais militares: divididos entre as representa-
ções que poderíamos chamar guerreiras – participar de uma guerra diária,
participar de uma atividade de limpeza social e participar de uma atividade
de pacificação social e as que apontam para uma dimensão mais “pacífica” de
polícia como prestação de serviços ( aí incluída igualmente a resposta sobre
ajudar a sociedade a viver melhor) os respondentes não chegam a partilhar
um conteúdo comum agregador de sentido daquilo que a corporação repre-
sentaria como o exercício da função policial.
O conceito de habitus presente na perspectiva analítica proposta por
Elias e também por Bourdieu (1972, 1980, 1984) poderia ajudar a discernir os
componentes identitários e os espaços sociais e simbólicos a partir dos quais
o eu e o nós se definem, objetivando distâncias sociais e simbólicas, relevantes
para a compreensão das práticas. Nessa perspectiva o que parece possível de
se depreender das representações é que o habitus, se existe, revela-se relativa-
mente frágil como potencial agregador da atuação policial a partir da ideia
de profissão, não permitindo falar de uma identidade no grupo. Mesmo as
respostas em termos de “auxiliar a comunidade a viver melhor” (a questão foi
178 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
8 Também vale a pena mencionar que um volume recém publicado com resultados da
mesma pesquisa (Porto e Orga, 2017) avançou algumas análises deste capítulo por
meio do cruzamento de dados aqui tratados com as variáveis relativas a posições hie-
rárquicas (Polícia Militar) e cargos (Polícia Civil) e sexo. Cf., sobretudo, capítulos 3 e 5.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 179
práticas próprias. Por exemplo, neste quesito acima, a se julgar pelos dados,
a mudança pareceria incontestável: a entrada para a polícia fez do indivíduo
“outro homem”. Vejamos, então, o que é possível depreender da análise, com o
cuidado que as fragilidades que dados desta natureza podem significar.
A pergunta, comportando múltiplas respostas, visava a captar em que
medida a nova condição foi representada negativa ou positivamente e se o
pertencimento à instituição policial conduzia a um processo de re- sociali-
zação, mudando o modo de ser dos que a ela aderiram. A ideia era captar re-
presentações de mudanças nos valores, crenças e estilo de vida, decorrentes
de uma nova socialização. Algumas respostas podem ser esclarecedoras. Ao
admitirem de modo majoritário que a vida mudou, alguns policiais deixam
transparecer a existência de algo próximo a tal ressocialização, acompanha-
do de um habitus identificado e identificável à nova condição mas, a se acei-
tar que isto de fato ocorre, é preciso cautela para se dimensionar sua direção.
Ao que tudo indica, dentre os que admitem que mudanças aconteceram,
mesclam-se duas ordens de transformação: um conjunto de respostas é in-
dicativo de que, contrariamente ao que foi dito acima, um habitus poderia
estar sim se formando e constituindo indivíduos mais conscientes, mais res-
ponsáveis, disciplinados, organizados, observadores e desconfiados, carac-
terísticas decorrentes todas elas dos requerimentos profissionais, ligados à
prática profissional e também ao dia a dia nas ruas. Exemplo, representações
como: Traz mais desconfiança, maior atenção e sensação de perda da liber-
dade; Possibilita conscientização em relação ao modo de ver a sociedade e
a polícia; Modifica a postura diante da sociedade; Acarreta insensibilidade,
agressividade e estresse; Modifica a forma de agir como um todo; Promove
mais responsabilidade e disciplina; Traz melhoria de vida; Permite estabi-
lidade financeira e profissional. Já o outro conjunto de razões chamaria a
atenção para a perda de sensibilidade, o endurecimento e até mesmo o stress,
apontando os aspectos nada gratificantes da mudança. Essas características
estão presentes nas respostas da PM mas, igualmente, naquelas da PC, cujo
contato com a sociedade se faz muito mais no espaço das delegacias do que
nas ruas. Ou seja, o “sim” da mudança é permeado por ambiguidades: con-
templa aspectos positivos e negativos.
180 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
de, experiência e conhecimento; agir de modo novo, gostar do que faz; enquanto
que a PM alega gostar do que faz; ter mais responsabilidade e disciplina; ter
oportunidade de escolhas. Chama, por outro lado, a atenção a representação
da entrada para a polícia como algo que não alterou a vida do policial. Ao
responderem pela negação: sou a mesma pessoa (51 % na PC) e nada mudou
(38% na PM) estão afirmando que a vida na polícia não teve interferência em
seu modo de ser e de pensar. Ao que tudo indica, para esse grupo de policiais,
sua atividade seria um emprego como outro qualquer, nem melhor nem pior,
sem maiores especificidades. As demais afirmações atestam uma mudança
com sinal negativo, que contradiz blocos anteriores nos quais afirmavam o or-
gulho em ser policial, ou a tendência em incentivar os filhos a serem policiais,
como mostrado na próxima tabela, abaixo. São representações que apontam,
na PC, situações de aumento de stress e pressão; falta de reconhecimento; falta
de estrutura na corporação; falta de sensibilidade na corporação. Na PM, falta
de segurança e diminuição de liberdade; transformação em alguém mais duro;
aumento de estresse; falta de reconhecimento; surgimento de problemas de saú-
de e falta de gosto pela profissão. Em outras palavras, aqui o sentido se revela
bem mais entre o dito e o não dito, fala mais alto a linguagem do interdito,
indicativa de uma deterioração no modo de ser que é decorrente, esta sim,
de características que, ainda que não sejam exclusivas são bem particulares à
profissão policial.
Talvez não seja então o caso de se falar em um défict identitário, como
era a hipótese inicial desta pesquisa. De fato surgiram muitos conteúdos de
uma ausência de pertencimento, capturados pelo silenciado mais do que
pelo explicitado mas capturados igualmente por sinais negativos. Identida-
des conflitivas, deterioradas talvez? Com altos e baixos, com espaços vazios
demandando conteúdos de reconhecimento social que poderiam ser positi-
vamente preenchidos pela confiança que esperam venham a merecer da so-
ciedade. Tudo junto e misturado os mesmos conteúdos que aqui assumem
sinal positivo, querendo apontar uma especificidade da prática profissional
podem surgir a seguir, com sinal trocado com significação distinta, indi-
cando, ali, motivos de orgulho pela profissão e mais adiante desprestigio,
ausência de reconhecimento ou reconhecimento negativo. O que, como
182 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
e gosta do que faz, É uma profissão digna e relevante) nada têm de particular
à atividade policial; ao contrário, são características de diferentes outras pro-
fissões e remetem ao senso comum da maioria das “qualidades reverenciadas”
por várias profissões. No interior de cada uma das corporações estes conteú-
dos tornam-se ainda mais problemáticos: a ideia de que o orgulho expressado
pudesse significar homogeneidade no conteúdo das respostas, sinônimo de
uma identidade compartilhada, fica, de fato, comprometida. Da perspectiva
explicativa, em ambos os contextos, PM e PC, com poucas e irrelevantes nu-
ances, as razões explicitadas para o citado orgulho, além de uma dispersão
de motivos, não remetem, ou o fazem apenas indiretamente, a características
que de fato distinguem ou particularizam a função policial. Por vezes a res-
posta beira a tautologia ou o círculo vicioso: tem orgulho porque acredita e
gosta da profissão (49% PM e 38% PC). Por outras, a resposta é vaga como
nesta representação da PM: ajuda e serve aos outros (39%). Há conteúdos,
pouco representativos, como mencionado acima, nos quais as representações
se aproximam: é uma profissão digna e relevante (30%, PM e 33% PC) mas
que pouco avançam como perfil profissional ou marca identitária. Finalmen-
te, conteúdos que poderiam dizer respeito mais diretamente à função policial
tais como garantia de segurança e paz (20% PM e 29% PC), e promoção de
democracia e justiça (17% PM e 13%), ficaram em segundo plano, quando
analisados comparativamente.9
Em contraposição e considerando apenas a PM, já que os dados da
PC não foram em proporções significativas (apenas 10 policiais justifica-
ram seus motivos), as razões para a inexistência de orgulho em exercer a
atividade explicitam, prioritariamente, conteúdos diretamente vinculados
às condições materiais e simbólicas do trabalho policial: 81% justifica pela
ausência do reconhecimento, o que tem tudo a ver com a representação ne-
gativa trazida em uma questão anterior sobre como o policial avalia que a
sociedade o vê, seguidos da representação vinculada à falta de apoio dos
superiores (22%) à relativa ao caráter arriscado e precário da profissão (20%),
9 A porcentagem foi calculada a partir das respostas válidas; na PM 16% das respostas
positivas não apresentaram as razões e no caso da PC esse número foi de 21 %.
186 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
10 A porcentagem foi calculada a partir das respostas válidas; 16 % das respostas negati-
vas não apresentaram as razões.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 187
que tivesse feito a escolha valer a pena. Outro dado importante, a acrescen-
tar, o incentivo aos filhos é algo que não figura como horizonte das preferên-
cias de quase 50% dos respondentes, prontos a vislumbrar ocupações (não
estamos propositalmente falando em profissão) mais promissoras, menos
estressantes, mais gratificantes, aspectos recorrentes nas respostas aos ques-
tionários e, igualmente, nos GF e nas entrevistas.
11 Ao analisarem “percepção do risco” e “risco real”, vividos pelos policiais como uma
característica da profissão, as autoras situam a temática como permitindo a mediação
entre condições de trabalho e condições de vida.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 189
seu companheiro do lado, você não sabe se ele foi treinado, se ele tem a
devida habilidade pra te dar cobertura necessária no momento da atu-
ação. Isso dá insegurança. Num caso de sequestro, medo de falhar ali na
negociação, e isso é possível, e o elemento venha a matar a vítima... E aí
você é responsabilizado, você vai responder por isso. Isso dá medo, causa
stress (Entrevista, coronel).
Em outras palavras, matar ou morrer são fontes de “pavor existencial”.
Além do que, como alegam os policiais, o apoio institucional deixa a desejar.
f) Não tem o devido suporte na própria instituição (Grupo Focal – Sar-
gento nº 4).
g) O apoio, ele é incipiente...o nosso número de psicólogos é baixo; de psi-
quiatra é muito pequeno para a população policial que temos hoje... Ele
vai se refugiar, e a gente só vai descobrir isso, quando ele já está no álcool,
às vezes, ele vai pra droga, tá certo? (Entrevista, coronel).
A ausência de confiança seria substituída por situações de pessimismo,
pânico, bloqueios no processo de constituição da identidade. Ao policial da
rua, submetido à imprevisibilidade, convivendo diariamente com o medo e
o perigo sem o contraponto da confiança, restaria o pior dos mundos: a vio-
lência, como reação impensada, não prevista nem desejada e a deterioração
das condições de existência do policial. O autorreconhecimento negativo,
produtor e produto desse contexto, levando à constituição de identidades
submissas, subalternas, deterioradas mesmo, em resposta ao que o policial
supõe que os comandos e a sociedade esperam dele.
à sua, (seja em sua própria hierarquia, seja junto a seus superiores) e “outro”
significando a sociedade civil, em suas várias distinções, socioeconômicas,
culturais e políticas. Desse modo, conjugando individual e coletivo; objetivo
e subjetivo; biografia e estrutura, a noção, afirma o autor, “tenta introduzir a
dimensão subjetiva, vivida e psíquica no cerne da análise sociológica” (Du-
bar, 2005, p. 136). A divisão interna da identidade, a que se refere Dubar, se
expressa na forma de ambiguidade e tensão, e está presente em muitas das
representações registradas nos questionários. Alguns depoimentos ressalta-
ram a inter-relação, problemática e conflituosa entre a identidade para si e
a identidade para o outro; entre identidade grupo e identidade no grupo e
entre policial civil e policial militar.
Voltamos a essa ideia da incerteza entre o que o policial pensa que
a sociedade pensa e o que o policial constrói como sua identificação para
ressaltar que ela permeia vários depoimentos. Poder-se-ia admitir que pre-
valece uma negociação identitária (Dubar), entre sua identidade para si e
para o outro, pendendo ora para um reconhecimento positivo ora, negativo,
que aciona “estratégias identitárias destinadas a reduzir a distância entre as
duas identidades” (Dubar, 2005, p. 140). Essa forma de refletir sobre identi-
dade parece ser assim menos reducionista. A existência de um espaço social
entre o eu e a instituição parece transparecer dos depoimentos dos policiais
pesquisados. Isto posto, talvez seja mais fértil ao invés de se insistir na fra-
gilidade do habitus, profissional pensar que esses indivíduos se constroem
no cruzamento do eu e do outro cujas referências são não apenas os “pares”
mas o contexto social mais amplo. Sob esse ângulo, os paradoxos, as incer-
tezas e as contradições ganham um novo olhar: nessa perspectiva, o outro a
orientar as representações e as práticas policiais não seria nem apenas nem
prioritariamente seu colega de corporação ou da corporação contrária (re-
lação policial civil versus policial militar) nem apenas nem prioritariamente
o paisano (delinquente ou cidadão de bem) mas, igualmente, a família, os
vizinhos os amigos, referências tão ou mais importantes do que o chefe ou
o colega de trabalho, nesse intrincado, problemático e quase sempre confli-
tuoso processo de construção de identidade. Relativiza-se aqui a perspecti-
va de uma identidade profissional unívoca para se pensar numa identidade
Violência, Polícia, Justiça e Punição 193
dos negociados entre o que os atores representariam como sua atividade por
excelência- coisa de polícia (que também não fica definido com clareza) e o
que eles supõem seja a atividade que a sociedade demanda deles. Além dis-
to, e como desdobramento da análise dos dados, aparece o quanto o stress
pode ser componente de parte significativa de contextos de manifestação
da violência policial. Stress que é resultante de situações de insegurança e
até mesmo de medo, que é uma leitura possível de inúmeros testemunhos
atestando que a condição de policial fez do indivíduo alguém desconfiado,
que constantemente atento desacredita de tudo e de todos, o que leva a uma
atuação sob pressão. A imagem bem poderia ser a de uma faca de dois gu-
mes a se tornar cada dia mais afiada: a sociedade não confia na polícia, esta
falta de confiança gera sensação de insegurança, que provoca tensões e uma
busca por auto- proteção, na forma de mais armamento, segurança privada
e demanda por uma polícia reativa, ágil, que transmita esta confiança. Da
parte da polícia, responder a tais anseios da sociedade acaba por ser uma
possibilidade ( mais inconsciente do que consciente) e mais do que isto uma
necessidade de construir para si uma imagem afirmativa: na medida em
que o auto- reconhecimento é condição para o reconhecimento social, esta
construção pode, eventualmente, fazer uso de múltiplos recursos, inclusive
(e de novo, muito provavelmente de modo inconsciente) de práticas de vio-
lência para encurtar o longo caminho até o reconhecimento social.
Referências bibliográficas
BALMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
BAYLEY, D. H. Padrões de Policiamento: uma análise internacional compa-
rativa. São Paulo: Edusp, 2001. (Série Polícia e Sociedade, 1).
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade.
Petrópolis: Editora Vozes, 1978.
BECKER, H. S. Outsiders, études de sociologie de la dévience. Paris: Edition
A. M. Metailie, 1985.
BITTNER, E. Aspectos do trabalho policial. São Paulo: Edusp, 2003. (Série
Polícia e Sociedade, 8).
196 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Introdução
O presente capítulo trata das expectativas de reciprocidade trazidas por
policiais militares e civis do Distrito Federal (DF). Entendendo-se que reci-
procidade, como conteúdo de expectativas, encontra-se estreitamente ligada
às ideias modernas de complementaridade e igualdade, buscou-se mensurar
a intensidade das expectativas de reciprocidade manifestadas por policiais
militares e civis que atuam no DF, utilizando informações provenientes
de questionários autoaplicáveis. Com base na mensuração da intensidade
das expectativas de reciprocidade obtida com os questionários aplicados a
unidades da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) e da Polícia Civil
do Distrito Federal (PCDF), descreve-se a distribuição dessas intensidades
dentro de cada organização, medidas como uma escala de reciprocidade.
A partir dessa escala, é verificada a hipótese de que a maior intensidade de
manifestação dessas expectativas associa-se à maior confiança na relação
entre policiais e cidadãos. A hipótese pressupõe que ambas as variáveis –
grau de expectativa de reciprocidade e intensidade da confiança na relação
com a população civil – sejam explicadas pela reciprocidade e pela con-
fiança presentes nos encontros cotidianos entre policiais e cidadãos. Além
dos testes de hipótese, buscou-se um conhecimento mais aprofundado do
200 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
1 Uma dessas definições, com base nos objetivos organizacionais da polícia, é a de Bayley
(2001), que vê os policiais como as “pessoas autorizadas por um grupo para regular as
relações interpessoais dentro deste grupo através da aplicação da força física” (p. 20).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 201
Metodologia
Este capítulo conta com dados produzidos na pesquisa “Identidade
profissional e práticas policiais”, pesquisa institucional ligada ao Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia – Violência, Democracia e Segurança Pú-
blica. Tal pesquisa foi desenvolvida pelos pesquisadores do Núcleo de Estu-
dos sobre Violência e Segurança (NEVIS), da Universidade de Brasília, sob
a coordenação da professora Maria Stela Grossi Porto. A investigação teve
como objetivo principal interpretar as representações sociais que compõem
as identidades profissionais de policiais militares e civis do Distrito Federal,
como subsídio para compreender a função policial em sociedades demo-
cráticas. O estudo da identidade profissional policial fundamentou-se no
conceito de representações sociais, assim definido.
uma narrativa que ilustra bem essa distinção em favor do policial, na com-
paração com o cidadão comum.
P.: Na sua avaliação, o que distingue? Você acha que há alguma dis-
tinção entre o policial e o cidadão comum? [...]
R.: Bem, aí novamente falando como policial, o policial é aquele
que tem uma visão maior da sociedade. É aquele que vai ter uma
visão da sua... do lugar onde ele mora diferente, uma visão mais
crítica, tipo quando eu converso com um colega e o colega vai per-
guntar pra mim “E aí, tem uma boca de fumo perto da sua casa?”.
Enquanto que tem gente que passa na frente de uma, de um cida-
dão, de um “paisano” ele “Não, eu não sei. Tem?” Seja mentindo,
ou seja, por desconhecer, seja por desconhecer. Numa resolução
de conflito, a tendência é o policial militar agir intervindo no con-
flito, mesmo que esteja à paisana. Temos muitos casos de policiais
militares mortos na folga porque se esquecem que estão à paisana
e tentam agir. Tivemos um caso de um policial militar reformado
que foi tentar falar com um motorista de ônibus, e ele estava à pai-
sana, o motorista de ônibus estressado com o trânsito “Olha, tem
um problema ali atrás com o seu carro”. Aí o cara não entende e
fala “Vai para aquele lugar”. Aí o cara acha... sentiu-se como policial
militar, fez o cara parar, sacou da arma, fez o cara parar “Como
é que você trata assim autoridade?”. Aí o motorista dizia pra ele
assim “Mas quem é você?”. Aí que o cara acorda e vê que ele tá à
paisana. É preciso um outro policial chegar pra acalmar o cara e
explicar pra ele “Você tá na Reserva” ele se apresentou “Você não
tá fardado, o cara não sabia quem era você”. Então, acontece muito
isso. (Entrevista nº 1)
tem embate, a sociedade achar que a polícia não foi violenta. Quan-
do, às vezes, é necessário. (Entrevista nº 2)
A passagem acima aponta que, ainda que o policial faça uso de técnicas
bastante especializadas, como as de uso do bastão policial, essas técnicas
não encontram complementaridade com as demandas sociais. A ação poli-
cial é rotulada como violenta, mesmo quando faz uso de técnicas especiali-
zadas de contenção, segundo o entrevistado. Nessa configuração, é signifi-
cativo o desconhecimento das técnicas policiais por parte da população; as
práticas policiais não fazem sentido aos olhos do cidadão comum. Ou seja,
inexiste o vínculo social que poderia caracterizar a complementaridade em
uma relação orgânica.
É notório que as expectativas que caracterizam essa fala não são as de
reciprocidade, mas estão ligadas às prerrogativas unilaterais para o uso de
armas: “quem tá armado? Nós. Quem tá com o cassetete? Nós. Quem tá
com bala de borracha? Nós. Quem tá com gás lacrimogénio? Nós.” Indica-
-se assim que o senso de inferioridade manifestado nessa como em outras
entrevistas analisadas está relacionado a expectativas de autoridade. Tais
expectativas são frequentemente ambíguas quanto ao sentido de superiori-
dade ou de inferioridade a que estão ligadas.
A terceira entrevista submetida a escrutínio neste capítulo é a de nú-
mero 6, realizada com um delegado da alta administração da PCDF, com
14 anos de carreira no momento da entrevista. Essa entrevista, assim como
outras realizadas com policiais militares e civis, indicou a presença significa-
tiva de expectativas de reciprocidade. Os conteúdos ligados às expectativas
de reciprocidade nessas entrevistas podem ser agrupados em três tipos: (a) a
ideia de que a função policial é complementar às expectativas da população
civil, de modo que a avaliação pelos cidadãos passa a ter importância crucial
na orientação da atividade policial cotidiana; (b) a representação de que a
formação policial é específica a ponto de constituir uma profissão diferen-
ciada na divisão do trabalho contemporânea; e (c) a ideia de que o uso da
força legal origina-se menos de uma prerrogativa unilateral e mais de uma
demanda da sociedade por solução coercitiva.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 225
P.: Na sua opinião pra fazer o seu trabalho o policial precisa ser
violento? Ou, continuando a pergunta, agindo ou não dentro da lei
o policial vai ser sempre visto como violento? [...]
A Polícia sempre aparece sempre e está sempre em discussão o pa-
pel etc. Então o policial jamais tem que ser violento, na verdade,
ele tem que agir pra reprimir a violência, não é, e se necessário for
ele tem que usar da força compatível com aquela eventual reação
de alguém, que não vai deixar de ser um ato violento, mas é um ato
de contenção. Jamais. Até porque se ele for violento certamente ele
vai estar sendo submetido a um procedimento que vai colocar em
risco a carreira dele. (Entrevista nº 6).
Considerações finais
A reciprocidade, entendida como complementaridade e igualdade, é
um elemento essencial do vínculo social na modernidade, na medida em
que agrupa atores sociais diferentes e complementares em relações cuja for-
ma é o contrato. Entende-se que o trabalho policial nas democracias mo-
dernas ocorre sob expectativas de reciprocidade, que se referem à relação
policial-cidadão como um contrato de direitos e deveres mútuos. Na relação
entre polícia e sociedade, as expectativas de reciprocidade convivem com as
expectativas de autoridade ligadas ao trabalho policial, que atribuem prer-
rogativas unilaterais aos policiais, tais como o direito de andar armado ou o
direito de prender pessoas.
228 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Referências bibliográficas
BAYLEY, David. Padrões de policiamento. São Paulo: Edusp, 2001.
BITTNER, Egon. Functions of police in modern society. Cambridge: Oelges-
chlager, Gunn and Hain Publishers Inc., 1972.
BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-
-Claude. Ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na Sociologia. Pe-
trópolis: Ed. Vozes, 2004.
COSTA, Arthur Trindade Maranhão. “Police brutality in Brazil: Authorita-
rian Legacy or Institutional Weakness?” Latin American Perspectives, ed.
178, nº 5, vol. 38, 2011, p. 19-32.
DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DURKHEIM, Émile. A divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2008.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
Vol. 2.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 229
ências de integração: Rio Grande do Sul, Pará, Ceará e a nova ESP do Ceará.
A pesquisa de campo internacional implicou na visita a 15 países: Ar-
gentina; Uruguai; El Salvador; Venezuela; Colômbia; Estados Unidos; Ca-
nadá; Reino Unido: Inglaterra e Irlanda do Norte; França; Espanha: Cata-
lunha; Portugal; Alemanha; Suécia; e China. Nos limites deste texto, não
conseguimos analisar toda a documentação, a ser alvo de futuros estudos.
Procuramos, na medida das possibilidades da documentação, classifi-
car os currículos dos cursos de formação segundo as seguintes categorias:
ciências sociais; valorização profissional; estudos Jurídicos; gestão; estágios
profissionais; e atividades complementares.
Tais categorias foram aplicadas, inicialmente, ao estudo feito na década
passada por Milan Pagon et al, o qual forneceu os dados sobre os currículos
em várias escolas de polícia da Europa:
O caso da França
A Polícia Nacional (Police Nationale) é uma corporação policial civil da
França. Está ligada ao Ministério do Interior. Os policiais da Polícia Nacional
são servidores do Estado. A criação desta corporação decorre da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que tem força de dispositivo
Violência, Polícia, Justiça e Punição 235
O caso da Alemanha
A Alemanha tem uma polícia unificada, com escolas em cada um dos
Estados. Nos anos entre 1967 e 1972, verificou-se na Alemanha uma mu-
dança radical em relação ao serviço de Polícia (Gross, Frevel e Dams, 2008).1
Não foi apenas em decorrência da pressão social de fora, mas em especial
3 Rauschgiftkriminalität.
4 Ermittlungen und Auswertungen.
5 Organisierte und Allgemeine Kriminalität.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 245
O caso da Inglaterra
A National Police Improvement Agency (NPIA), ou Agência Nacional
de Melhoria da Polícia, foi criada em 2007, com os seguintes objetivos: “O
governo vê a necessidade de uma Escola Central de Polícia para agir com
o foco de desenvolvimento e promoção da excelência profissional através
do serviço policial. Seria também para treinamento de lideranças em nome
das forças policiais da Inglaterra e do País de Gales, assim como gostaria de
incentivar e desenvolver a compreensão internacional das questões de po-
liciamento” (NPIA, 2007, disponível em https://www.gov.uk/government/
organisations/national-policing-improvement-agency . Acesso em 15 de ja-
neiro de 2017, tradução do Autor).
Estas propostas representam uma oportunidade para elevar os padrões
na formação da polícia e equipar todo o pessoal com as habilidades que
precisam para seu trabalho e, assim, proporcionar um melhor policiamento:
Violência, Polícia, Justiça e Punição 247
tiva trabalhar com outras organizações, inclusive com o setor privado para
assegurar que o serviço policial seja capaz de acessar a melhor formação. E
vai trabalhar em estreita colaboração com parceiros internacionais.
Na Irlanda do Norte, durante o processo de Paz, o Relatório da Comis-
são Independente sobre Policiamento, de 1999, afirmava que a educação,
a formação e o desenvolvimento estratégico devem prever um serviço de
polícia dedicada à proteção dos direitos humanos e ao respeito da digni-
dade humana, nos seguintes termos: um serviço policial responsável, ágil,
comunicativo e transparente; um novo estilo de policiamento baseado em
parcerias com a comunidade; um serviço policial descentralizado, com res-
ponsabilidades de decisão descentralizadas em equipes e comandos distri-
tais; e uma gestão mais flexível.
No caso da relação com as Universidades, recomenda que o Diretor do
centro de formação deve ter os títulos acadêmicos e a experiência de gestão,
e que os instrutores civis devem ser empregados para realizar todos os pro-
gramas de treinamento possíveis. Recomenda, ainda, que alguns módulos
de treinamento devem ser contratados com as Universidades e oferecidos
nas instalações da Universidade, de preferência em conjunto com estudan-
tes não policiais: assuntos constitucionais, direitos humanos, aspectos do
sistema de justiça criminal, entre outros temas.
Afirma também o Relatório a prioridade na formação em Direitos Hu-
manos orientados a comunidades complexas: todos os membros do serviço
de polícia deverão ser instruídos sobre as implicações para o policiamento
dos Direitos Humanos, no contexto da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Para continuar
com a sua formação, o foco de atenção será a comunidade que servem; assim,
é fundamental para o trabalho da polícia a capacidade de interagir com outras
pessoas, pois a maioria dos trabalhos da polícia envolve lidar com pessoas.
Acontece que a sociedade está se tornando cada vez mais complexa,
muitos grupos, cada um com seus próprios interesses, padrões e pontos de
vista. Ou seja, a proposta ora em vigência na Irlanda do Norte é um serviço
policial orientado para trabalhar em comunidades complexas, para o que
realizam convênios com as Universidades.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 249
Gráfico 4. Tópicos dos currículos das Academias de Polícia nos Estados Unidos
– Total de 648 – Média de horas aula, 2006
Fonte dos dados brutos: Brian A. Reaves. State and Local Law Enforcement Trai-
ning Academies, 2006. USA Department of Justice.
Bureau of Justice Statistics, fev. 2009
O caso da Argentina
A Polícia Federal Argentina criou uma Universidade, na qual oferece-
rem diversos cursos abertos a todos. Nela, há uma Escola de Cadetes, cujo
Curso para Policial apresenta a seguinte distribuição de disciplinas:
Neste caso, há uma nítida presença das ciências sociais, seguidas pelo
estudo das tecnologias policiais, dos estudos jurídicos e das disciplinas re-
ferentes à Gestão.
Porém, a Província de Buenos Aires criou uma Polícia de orientação
comunitária, pedindo à Universidade de Lannus para garantir a educação,
como o seguinte panorama:
256 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Fonte: https://www.cepol.europa.eu/sites/default/files/exchange-program-
me-2015.pdf (tradução do Autor)
6 Fonte dos dados: Pesquisa Perfil das Instituições de Segurança Pública 2013 (Ano-base
2012). Ministério da Justiça, Brasilia, 2014.
260 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
As experiências de integração
Salientamos que o objetivo deste item é realizar uma avaliação das ex-
periências de integração institucional das Academias de Polícia Militar e
das Escolas da Polícia Civil, em particular nos Estados do Rio Grande do
Sul, Ceará e Pará. Pretende-se conhecer as opiniões e avaliações de todos os
atores sociais envolvidos em tais experiências – gestores, administradores,
professores e alunos – bem como os objetivos pedagógicos formulados, os
mapas curriculares, as disciplinas (ementas, conteúdos, bibliografia e siste-
ma de avaliação) e a metodologia de ensino-aprendizagem.
O período escolhido para a análise começa no ano de 1993, no Rio
Grande do Sul, com ênfase no convênio entre a Academia da Brigada Militar
e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mediante o qual professores
universitários ministraram disciplinas nos Cursos de Aperfeiçoamento de
Oficiais. Durante o Governo Olívio Dutra (1999-2002), com a realização
do Curso de Formação Unificada de novos policiais civis, militares e agen-
tes penitenciários, cerca de 90 professores e estudantes de pós-graduação
envolveram-se nas atividades de ensino.
No Estado do Ceará, em meados da década de 90, durante o governo
Jereissati, houve acordos semelhantes tanto com a Universidade Federal do
Ceará quanto com a Universidade Estadual do Ceará (Barreira, 2004; Bra-
sil, 2000). Houve a efetivação de um convênio da Secretaria de Segurança
Pública do Ceará com a Universidade Estadual do Ceará (UECE), através
Violência, Polícia, Justiça e Punição 271
lado, pela novidade que os conteúdos ofereciam aos alunos, muitos deles
recém chegados do 2º grau. No caso do RGS, havia uma forte disparidade
na escolaridade dos alunos, pois as turmas eram tinham três componentes:
alunos novos da Brigada Militar, recém-saídos do 2º grau; da Polícia Civil,
alguns já tinham até cursos superiores, o mesmo se passando com os ingres-
santes nos Serviços Penitenciários.
Uma das principais mudanças ocorridas com a participação dos pro-
fessores da Universidade nos Cursos da Secretaria da Justiça e da Segurança
do RS foram práticas em sala de aula. Incentivou-se outra forma de ensinar
com novos pressupostos; novas disciplinas foram introduzidas, com outro
enfoque; novas leituras foram estimuladas e muitos debates refletiram sobre
um novo modelo de polícia.
A análise comparativa dos Cursos integrados com os Cursos especí-
ficos em funcionamento na Secretaria indicava um avanço no sentido de
redução das horas aula da área jurídica; as disciplinas administrativas e as
chamadas científicas e operacionais, no entanto, não acompanham esta re-
dução. A análise também ressaltava a ausência de um corpo docente per-
manente, bem remunerado, para fazer face à experiência percebida como
positiva, bem como salientaram a necessidade de mais recursos para que as
instituições pudessem dar cabo da tarefa.
Outro elemento trazido pelos convênios foi uma reflexão teórica sobre
as práticas sociais e existenciais, levando aos alunos um exercício de ativi-
dade teórica que certamente foi uma novidade no ensino policial. Todavia,
as dificuldades de leitura por parte dos alunos foram marcantes, acentuadas
pela carência de biblioteca e de acesso a livros (Koch, 2005). Em outras pa-
lavras, a presença de várias instituições com poder pedagógico dentro do
Curso Unificado, no caso do RGS, acarretou obstáculos, embora a experi-
ência de convênios entre as Universidades e as organizações policiais tenha
sido percebida como de alta relevância.
No caso do Pará, durante os debates sobre a nova formação profissio-
nal dos quadros da PMPA, os críticos ao modelo de formação tradicional se
destacaram ao afirmar que o sucesso da integração resultaria, fundamental-
mente, do alinhamento de três dimensões: (1) a forma de se pensar democra-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 273
Conclusões
Seguindo as demonstrações trazidas nos itens anteriores, pode-se
concluir, em geral, que na formação não houve a ruptura com um modelo
de formação policial orientado pela perspectiva da formação do Exército,
orientada pela doutrina da segurança nacional, segundo a qual a polícia de-
veria ter como função a defesa do Estado. Partiu-se de um legado da tutela
militar sobre o ensino, passando pela realização de convênios com Univer-
sidades Públicas, federais e estaduais, e os processos de reestruturação dos
currículos. Houve a incorporação das ciências humanas, a relativização da
formação militar, a redução do enfoque positivista no ensino do Direito e
a absorção dos conteúdos de Direitos Humanos. Evidenciou-se a impor-
tância do relacionamento com as Universidades, a necessidade de superar
estigmas recíprocos. Por conseguinte, as tentativas de mudança no sistema
de ensino da polícia um ensino fragmentado no qual as propostas curricu-
lares, democráticas e críticas, coexistem com práticas pedagógicas arcaicas e
a continuidade do modo tradicional de ensino policial.
Há experiências de inovação curricular, de processos de ensino-apren-
dizagem, de metodologias didáticas e de integração institucional. A década
de 90 foi pródiga em experiências de ensino policial inovadoras, no interior
das instituições policiais de ensino e nos convênios realizados com Uni-
versidades, em vários Estados brasileiros, indicando uma discussão sobre
currículos, conteúdos e concepções do oficio de policial. No bojo de tais
experiências, partiu-se de um legado da tutela militar sobre o ensino, pas-
sando pela realização de convênios com Universidades Públicas, federais e
estaduais, e os processos de reestruturação dos currículos.
Diante da crise mundial das polícias, identificada nos anos de 1990,
houve uma série de reuniões mundiais nas quais as várias dimensões desta
crise foram discutidas, envolvendo acadêmicos e profissionais de segurança
pública. Nos Estados Unidos, a maior reação à crise apresentou duas faces:
a polícia comunitária, desde o Departamento de Polícia de Chicago, Boston
Violência, Polícia, Justiça e Punição 285
desde os Estados Unidos, o ILEA, para seis países; na União Europeia, pelo
CEPOL, sediado em Brumshill, Inglaterra; no MERCOSUL, por iniciativa
de uma rede de especialização de ensino policial (MERCOPOL).
A necessidade de Acordos entre Escolas de Polícia e Universidades: a
colaboração entre Universidades e Academias e Escolas de Polícia deveria
ser estimulada, bem como a avaliação do ensino. Os países que favorecem
os policiais no início da formação a realizarem Cursos de Graduação são a
Argentina, os Estados Unidos e a Irlanda do Norte; os Cursos de pós-gra-
duação, tanto o denominado Mestrado Profissional (M.B.A. ou Master) são
a Argentina, os Estados Unidos e a França. Há incentivo ao ensino superior
em Universidades conveniadas com as Escolas de Polícia (o caso dos Esta-
dos Unidos, da França, da Argentina e da Irlanda do Norte). A Universida-
de desempenha um papel de contribuir à titulação acadêmica dos policiais,
pessoalmente ou mediante ajuda de bolsas de estudo.
A categoria diversidade começou a ser incorporada, pois se observa a
ocorrência de um processo não linear de transformações na educação poli-
cial, pleno de ambivalências, mas com amplas possibilidades civilizatórias.
Parece, portanto, que está se delineando, em vários países, outra orientação
na Educação Policial: seja o Profissionalismo, seja a ênfase na Polícia Comu-
nitária ou na proposta de uma Segurança Cidadã. Todas afirmam o respeito
à dignidade humana para um novo padrão civilizatório. A expansão de uma
cidadania mundializada e a formação de uma sociedade civil transnacional
estimulam uma Educação policial preocupada com a prevenção do crime
e o controle das violências, garantindo a Segurança Cidadã enquanto um
direito fundamental.
A situação do treinamento e da progressão na carreira pode ser visua-
lizada, em todos os casos analisados, pelo fato de que há uma carreira única
nas polícias, sendo a formação de ensino médio um requisito de seleção, à
exceção do Canadá, onde os candidatos provêm de cursos graduação em
segurança pública oferecidos em universidades públicas, com duração de
três anos. O treinamento inicial tem a duração de 6 a 12 meses. Os conteú-
dos e seus enquadramentos constam no relatório, havendo a predominância
de tecnologias policiais. A maioria das disciplinas combinam aulas teóricas
Violência, Polícia, Justiça e Punição 287
Referências bibliográficas
ABREU, Sérgio Roberto de. “A proposta pedagógica adotada pela Secretaria
de Justiça e da Segurança do Rio Grande do Sul no período de 1999
a 2002”. In: SENASP; Ministério da Justiça; UFRGS. Integração institu-
cional das Academias de Polícia Militar e das Escolas da Polícia Civil e
os convênios realizados com Universidades Públicas, nos Estados do Rio
Grande do Sul, Ceará, Pará e Mato Grosso – Relatório Final. Porto Ale-
gre, dez. 2005.
ADORNO, Sérgio. “A criminalidade urbana violenta: um recorte temático”.
BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais,
Rio de Janeiro, ANPOCS, nº 35, 1993, p. 3-242.
ADORNO, Sérgio. “O gerenciamento público da violência urbana: a justiça
em ação?”. In: PINHEIRO, P. S. (ed.). São Paulo sem medo: diagnóstico
da violência urbana. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p. 243.
ADORNO, Sérgio. “Violência e civilização”. In: SANTOS, José Vicente Ta-
vares dos; GUGLIANO, Alfredo Alejandro (org.). A sociologia para o
século XXI. Pelotas: EDUCAT, 1999, p. 100-101.
ALBUQUERQUE, C. L. de; MACHADO, E. P. “Sob o signo de Marte: mo-
dernização, ensino e ritos da instituição policial militar”. Sociologias,
Porto Alegre, nº 5, jan./jul. 2001, p. 214-236.
AZEVEDO, Rodrigo G. de. Informalização da Justiça e Controle Social. São
Paulo: IBCCRIM, 2000.
ARAÚJO FILHO, Wilson de. “Ordem Pública ou ordem unida?”
In:Universidade Federal Fluminense e Instituto de Segurança Pública. Po-
líticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública 1. Niterói: EDUFF,
294 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
2003.
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Polícia e Direitos Humanos (do antagonis-
mo ao protagonismo). Porto Alegre: Anistia Internacional, 1994.
BALESTRERI, Ricardo Brisolla (org.). Na inquietude da Paz. Passo Fundo:
CAPEC, 2003a.
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Direitos Humanos: coisa de Polícia. Passo
Fundo: CAPEC, 2003b.
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Cidadania e Direitos Humanos: um sentido
para a Educação. Passo Fundo: CAPEC, 2000.
BALIEIRO, Almir. Avaliação do Processo Ensino-aprendizagem: a concepção
dos professores civis e militares da Academia de Polícia Militar Costa Ver-
de (MT). Dissertação (mestrado em Educação) – Instituto de Educação
– UFMT, Cuiabá, 2003.
BARP, Wilson; BRITO, Daniel C.; OLIVEIRA NETO, Sandoval B. de. “Inte-
gração institucional das Academias de Polícia militar e Escolas da Polí-
cia Civil e os convênios realizados com Universidades Públicas no Pará”.
In: SENASP; Ministério da Justiça; UFRGS. Integração institucional das
Academias de Polícia Militar e das Escolas da Polícia Civil... – Relatório
Final. Porto Alegre, dez. 2005.
BARREIRA, César et al. Questão de Segurança. Rio de Janeiro: Relume Du-
mará, 2004.
BARREIRA, César. Crime por encomenda: violência e pistolagem no cenário
brasileiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia (uma defesa das regras do
jogo). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
BRASIL, Maria Glaucíria Mota. A segurança pública no “Governo das Mu-
danças”: moralização, modernização e participação. Tese (doutorado em
Serviço Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2000.
BRASIL, Maria Glaucíria Mota. “As mudanças propostas para a formação
policial no ceará: entre o velho e o novo”. In: SENASP; Ministério da Jus-
tiça; UFRGS. Integração institucional das Academias de Polícia Militar e
Violência, Polícia, Justiça e Punição 295
das Escolas da Polícia Civil... – Relatório Final. Porto Alegre, dez. 2005.
BRASIL, Maria Glaucíria Mota; ALMEIDA, Rosemary de O.; FREITAS,
Geovani Jacó de (org.). Dilemas da “nova” formação policial: experiên-
cias e práticas de policiamento. Campinas, Pontes, 2015.
BRASIL. Ministério da Justiça. Programa Nacional de Segurança Pública e
Prevenção ao Crime. 1999. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sdh/
proposta2.htm>. Acesso em: 22 abr. 2018.
BRETAS, Marcos Luiz. “O crime na historiografia brasileira”. BIB – Revista
Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, Rio de Janei-
ro, nº 32, 1991, p. 49-61.
BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da autori-
dade policial no Rio de Janeiro, 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
BRODEUR, Jean-Paul. Como reconhecer um bom policiamento. São Paulo:
Edusp, 2002.
CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a Polícia na Era Vargas. Bra-
sília: Editora da UNB, 1993.
CANO, Ignácio; SANTOS, Nilton. Violência letal, renda e desigualdade so-
cial. Rio de Janeiro: ISER/7 LETRAS, 2001.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes,
1998.
CASTRO, Celso. O espírito militar: um estudo de antropologia social na Aca-
demia Militar das Agulhas Negras. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
CERQUEIRA, Carlos M. Nazareth. “Questões preliminares para a discussão
de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a Segurança Públi-
ca”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 22, 1998, p. 139-182.
CORDEIRO, Bernadete M. P.; SILVA, Suamy Santana da. Direitos Humanos:
uma perspectiva interdisciplinar e transversal. Brasília: Comitê Interna-
cional da Cruz Vermelha no Brasil, 2003.
COSTA, Arthur T. Maranhão. Entre a Lei e a Ordem. Rio de Janeiro: FGV,
2004.
DELLASOPPA, Emilio. Ao inimigo nem Justiça: violência política na Argen-
tina 1943-1983. São Paulo: HUCITEC, 1998.
DIAS NETO, Theodomiro. Policiamento comunitário e controle sobre a Polí-
296 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
mais de três décadas das transições políticas, muitos países da região con-
tinuam a conviver com práticas violentas, autoritárias e ilegais por parte de
agentes do Estado. É bem verdade que algumas destas práticas não foram
inventadas pelos antigos regimes autoritários. Elas sempre fizeram parte do
cotidiano dos grupos desprivilegiados. Nestes casos, os regimes autoritários
aumentaram seu escopo e alcance (Costa, 2011; Lima e Bueno, no prelo).
Diante deste movimento, David Pion-Berlin (2005) sugere que há dois
modos de analisar os efeitos destes legados autoritários. O primeiro, mais
comum, concentra-se em verificar como algumas práticas do passado se
institucionalizaram na forma de organizações, prerrogativas, acordos, e di-
visão de poderes. Nesse sentido, os legados autoritários, exercem uma gran-
de influência conservadora sobre as novas democracias. Já uma segunda
forma de analisar os legados autoritários é enfocar as tensões produzidas
pela introdução de novas agendas democráticas e os obstáculos deixados
pelo passado. Não há dúvida de que a redemocratização produziu polari-
zações e tensões. Apesar disso, são raros os estudos sobre os efeitos da re-
democratização na área de segurança pública, muitas vezes subssumida em
um tema tabu e associado à segurança nacional (Lima e Brito, 2011).
No caso brasileiro, alguns estudos mais recentes defenderão que a pre-
venção e o enfrentamento da violência são operados, no plano político e
institucional, a partir de um simulacro simbólico que faz com que as várias
iniciativas incrementais levadas a cabo nas últimas décadas não atinjam a
arquitetura das instituições encarregadas em prover justiça criminal e se-
gurança pública que, por sua vez, continuam a atuar a partir de um centro
de política criminal que independe das pressões democráticas por direitos.
Um simulacro que “espelha e reflete de volta qualquer tentativa de moder-
nização democrática efetiva da segurança pública. Na aparência e/ou no
plano do discurso, as organizações buscam se adaptar às demandas, mas,
na essência, simulam novos padrões de atuação sem, contudo, implicar em
novas práticas ou culturais organizacionais” (Lima e Bueno, no prelo; Lima,
Almeida e Sinhoretto, 2010 ).
Diante desta questão, faz-se necessário, portanto, discutir como as or-
ganizações encarregadas pela segurança pública foram impactadas pelos
306 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Considerações finais
Em suma, vivemos um período de grandes mudanças no campo da segu-
rança pública, com velhos e novos atores institucionais atuando na busca de
protagonismo em torno dos sentidos das políticas públicas de segurança no
país. Este artigo buscou descrever estas mudanças e avaliar suas repercussões
políticas e sociais. É necessário tratar a segurança pública como um campo de
disputas sobre as respostas mais legitimas e eficazes para os problemas de vio-
lência e criminalidade. E, nessa perspectiva, a discussão sobre a formação de
uma nova agenda democrática das políticas de segurança pública passa pela
reflexão acerca das tensões entre os legados autoritários e a ampliação da par-
ticipação social de novos atores políticos. As demandas por reformas exigidas
pelos grupos organizados da sociedade civil só poderão ser respondidas com
reformas estruturais que enfrentem alguns temas sensíveis, tais como: a distri-
buição e a articulação de competências entre União, Estados e Municípios e a
criação de mecanismos efetivos de cooperação entre eles e demais Poderes; a
reforma do modelo policial estabelecido pela Constituição; e o estabelecimen-
to de requisitos mínimos nacionais para as instituições de segurança pública
no que diz respeito à formação dos profissionais, transparência e prestação de
contas, uso da força e controle interno e externo.
Em termos práticos, concordando com Lima e Bueno (no prelo), artigo
dialoga com o fato de legislação e a jurisprudência dos tribunais brasileiros
Violência, Polícia, Justiça e Punição 321
não definirem o que vem a ser segurança e ordem pública, dizendo apenas
que instituições por elas são responsáveis. Nessa brecha, caberá à doutrina
jurídica e à prática cotidiana das polícias e demais instituições do sistema de
justiça criminal definirem quem será objeto de sua atenção e vigilância. E,
na medida em que instrumentos de governança democrática dos mandatos
das polícias não tenham sido estruturados (mecanismos de controle, trans-
parência e prestação de contas), mesmo após quase trinta anos da Consti-
tuição Federal, a tendência é que, diante da trajetória de dependência das
organizações de justiça criminal e segurança pública, dirigentes políticos
demandem ações pontuais e descontínuas deixando para a polícia a tarefa
de gerenciar a vida e a ordem da população.
Em uma era que aumenta os riscos de “desconsolidação” das demo-
cracias mais avançadas, como a dos EUA e de vários países europeus (Foa e
Mounk, 2016), nota-se o crescimento das dificuldades em torno da tarefa de
modernização da segurança pública brasileira. Ao que tudo indica, vivemos
um movimento que, infelizmente, afasta o Brasil (e vários outros países da
América Latina) do modelo de polícia cidadã e garantidora de direitos, re-
forçando antagonismos e a violência como resposta legítima frente ao crime
e à violência urbana. O artigo reconhece avanços e que há resistência a esse
novo movimento, mas assume um certo ceticismo em relação ao poder des-
tes em evitar retrocessos democráticos no controle do crime e da violência
no Brasil. A vida vale pouco e a violência continua sendo uma característica
das relações sociais brasileiras.
Referências bibliográficas
ADORNO, Sérgio; BARREIRA, César. “A Violência na Sociedade Brasilei-
ra”. In: MARTINS, Carlos Benedito; MARTINS, Heloisa Helena T. de
Souza (org.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil. 1ª Ed. São Paulo:
Barcarolla, 2010. p. 303-374.
ADORNO, Sérgio; CARDIA, Nancy. “Violência, crime, insegurança: há sa-
ídas possíveis?”. In: FONSECA, Rinaldo Barcia; DAVANZO, Aurea Ma-
ria Queiroz; NEGREIROS, Rovena M. C. (org.). Livro Verde: desafios
para a gestão da Região Metropolitana de Campinas. Campinas: Uni-
camp, 2002, p. 303-333.
322 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
SKOLNICK, Jerome H.; FYFE, James F. Above the law: police and the exces-
sive use of force. New York: Free Press, 1993.
SKOLNICK, Jerome H.; BAYLEY, David H. Policiamento comunitário: ques-
tões e práticas através do mundo. São Paulo: Edusp, 2002.
SOUZA, Letícia Godinho. Depois do 13º tiro: segurança cidadã, democracia
e os impasses do policiamento comunitário no Brasil. Tese (doutorado em
Ciência Política) – UFMG, 2011.
STANLEY, Ruth. “Controlling the police in Buenos Aires: a case study of ho-
rizontal and social accountability”. Bulletin of Latin American Research,
nº 1, vol. 24, jan. 2005, p. 71-91.
UNGAR, Mark. Policing democracy: overcoming obstacles to citizen security
in Latin America. Johns Hopkins University Press, 2010.
WILLIS, Graham Denyer. “Antagonistic authorities and the civil police in São
Paulo, Brazil”. Latin American Research Review, nº 1, vol. 49, 2014, p. 3-32.
Segurança pública, polícia e agenda
governamental no Rio de Janeiro:
entre discursos e práticas
Paula Poncioni1
Introdução
O trabalho, ora apresentado, é resultado da pesquisa realizada no âmbito
do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU),
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no quadro do Programa
“Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia – INCT/ Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq” 2 no período compreen-
dido entre 2011 e 2014. É, portanto, um texto bastante datado em relação ao
quadro da política de segurança pública no Rio de Janeiro, reportando-se tão
somente aos resultados da pesquisa realizada no período mencionado.
O objetivo principal da pesquisa em questão foi analisar os significados
atribuídos por gestores vinculados à área da segurança pública sobre a chama-
5 Na ocasião em que a entrevista foi realizada, esse policial havia se afastado do cargo cita-
do. Entretanto, o trabalho desenvolvido por ele em sua carreira profissional na organiza-
ção policial militar justificou sua permanência no universo de entrevistados da pesquisa.
6 Neste trabalho, o tratamento aos entrevistados se dará por intermédio da denomina-
ção “gestor de médio escalão” e “gestor de alto escalão”, e não pela identificação do car-
go ocupado no quadro de funcionários da Secretaria de Estado de Segurança Pública
do Rio de Janeiro (SESEG-RJ). Aproveito para agradecer a todos os entrevistados por
terem gentilmente cedido seu tempo para contribuir com essa pesquisa.
7 Foi também utilizado material relativo aos discursos de integrantes desse segmento que
tiveram a participação em diferentes fóruns, como em palestras, seminários e mesas re-
dondas (essencialmente, gravações e anotações de campo), nos quais estive presente.
332 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
a respeito, Santos (2007); Zaluar e Conceição (2008); Cano e Loot (2008); Cano e
Duarte (2012).
9 Ver, a propósito, Ribeiro, Dias e Carvalho (2008).
10 Para maiores informações quanto proposta das Unidades de Polícia Pacificadora, a
cronologia seguida na instalação e o número de unidades implantadas, a extensão de
área compreendida, bem como o contingente de policiais militares alocados no pro-
grama, consultar: <http://www.upprj.com/>.
334 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
13 Para um exame sobre as diferentes agendas para o setor no Rio de Janeiro, ver, espe-
cialmente a respeito, Carneiro (2010).
14 Sobre o recrudescimento dos discursos e das práticas penais no Brasil, ver, a propósito,
Pinto (2008).
15 Trata-se do I Plano Nacional de Segurança Pública (2000), do Plano de Segurança
Pública para o Brasil (2003) e do Programa Nacional de Segurança Pública com
Cidadania (2007).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 337
18 Na Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) essas mudanças foram realizadas
principalmente no governo Garotinho, com a criação do Programa Delegacia Legal,
por intermédio da Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de Segurança
do estado, cujo titular era um cientista social.
19 A implementação da filosofia do policiamento comunitário na Polícia Militar no Brasil
foi uma iniciativa do Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que comandou a
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, entre 1991 e 1994. Uma avaliação cuidado-
sa sobre a implementação desse programa em um bairro carioca pode ser consultada
em Muniz; Musumeci e Larvie (1997).
20 O GPAE foi criado em 2000, pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio
de Janeiro, baseando-se na filosofia e modalidade de policiamento comunitário, com
emprego em favelas. Concebido como uma unidade especial da Polícia Militar do
Rio de Janeiro (PMERJ) foi implantado, inicialmente, nas favelas Pavão-Pavãozinho
e Cantagalo, em Copacabana, bairro da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. A gran-
de novidade do programa foi a prestação do serviço policial nessas localidades, com
regularidade e interação com a população, a partir de uma perspectiva preventiva.
Antes desse programa, existiu o Grupamento de Aplicação Prático Escolar (GAPE),
com fundamentos e atribuições similares às do GPAE, igualmente idealizado pelo ex-
-coronel da PM, Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Ver a respeito, Albernaz; Caruso
e Patricio (2007); Dreyfus (2009).
340 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
armados nas favelas do Rio de Janeiro. Desde então, constata-se que as UPPs
são retratadas por amplos setores da sociedade – a mídia, impressa e televi-
siva, as autoridades de governos, os formuladores e gestores de políticas pú-
blicas de segurança e uma parte significativa de acadêmicos e dos próprios
policiais –, como um programa auspicioso para a área de segurança pública.21
Ressalta-se que, neste trabalho, se parte do pressuposto que uma “agen-
da” para o setor foi constituída, nos termos propostos por Kingdon (1985).
Ou seja, assume-se aqui que uma lista de problemas que vinham se acu-
mulando na área de segurança do Rio de Janeiro, sem solução exitosa, ob-
teve, em um determinado momento, a atenção das autoridades do governo
(e mesmo de pessoas fora dele), envolvendo um processo de especificação
de alternativas para lidar com os múltiplos desafios colocados para o se-
tor (Kingdon, op. cit., p. 3). Para Kingdon, as agendas governamentais22 são
estabelecidas por três distintos, mas complementares, processos ou fluxos,
21 O “modelo UPP” foi divulgado por diferentes meios – imprensa, escrita e televisiva,
seminários, mesas redondas etc. –, nacional e internacionalmente, como uma bem-
-sucedida experiência na área da segurança pública. O modelo chegou a ser reprodu-
zido em Curitiba, Paraná, com o nome de “Unidade Paraná Seguro” (UPS). De acordo
com a matéria publicada em jornal de grande circulação no Rio de Janeiro, sob o título
“Paraná se inspira no Rio e cria versão de UPP- Bairro violento em Curitiba é ocupado
para sediar a primeira Unidade Paraná Seguro”, “A medida [a “importação” do “mode-
lo UPP” para Curitiba] tem como objetivo inicial mapear pontos de venda de drogas.
(…) Além de cumprir mandados de prisão, os policiais ouvirão moradores para saber
seus problemas. Em seguida, entrarão políticas públicas, para prover as áreas com cre-
ches, escolas, postos de saúde etc.” (Jornal O Globo – RJ, em 05/03/2012).
22 De acordo com Kingdon deve-se, ainda, distinguir entre a agenda governamental e a
agenda de decisões, que compreende a lista de problemas e assuntos dentro da agenda
governamental que serão decididos (op. cit., p. 4).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 341
27 Nesse sentido, vale a pena observar a atenção dispensada ao efetivo de policiais lotados
nas UPPs, não só no que se refere a relação do número de policiais por habitantes (que
344 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
“Eu uso uma expressão de que a UPP foi da intenção ao gesto. Por-
que se eu for escrever a UPP, fazer um projeto como vocês fazem
na universidade, não sai nenhuma, porque no serviço público as
coisas não andam, não sai. É verba que não veio, TCU que não sei o
quê, MP que não sei o quê e as pessoas a mercê do déspota dentro
de um lugar desses. Instalar uma política de segurança pública em
um local baseado na política da tirania e passar isso para a conver-
sa, para o diálogo, para o processo, não é uma solução fácil, não
existe manual para isso. Tem lugares, como o Dona Marta, onde há
a conversa, outros tem uma visão ruim da polícia, eles se afastaram
da polícia, não foi em vão, a polícia sempre os tratou mal. Agora,
começar uma relação nova, quebrar as desconfianças, quebrar a
história das arbitrariedades, quebrar toda essa problemática, não é
algo de fácil solução. Porque os policiais cometiam muitos excessos
lá dentro. Em contrapartida, as pessoas escondiam armas, vinham
queimar ônibus a mando. Então, eu não acho que seja algo de fácil
solução. Uma coisa que demorou 40 anos, não vai ser da noite para
o dia, talvez serão em 8, 10 anos, talvez percamos uma geração para
arrumar isso”. (Gestor de alto escalão, SESEG-RJ)
“Esses são dois pilares básicos nossos, que são: para as áreas con-
flagradas, onde se tem guerra, implantar as UPP’s e no asfalto, ex-
pressão que eu não gosto, se ter uma cobrança de metas. Paralela-
mente, nós instituímos a subsecretaria de educação e capacitação,
algo nunca pensado antes, e partimos para um contato direto com
as próprias comunidades, com ONG’s, estudiosos, inclusive no
manual, a gente está escrevendo a UPP. Nos meus primeiros dias
de secretaria, eu trouxe todos aqui, porque eu sou filho do banco
universitário, então eu tenho que acreditar na universidade. Agora
tomamos uma atitude muito significativa, que eu acho que só tem
três no Brasil, o nosso é o quarto, que é o Conselho Estadual de
Segurança, um mecanismo de diálogo com as pessoas. A ideia é
dialogar com as comunidades, ver o que a população quer, o que
ela entende que deve ser feito”. (Gestor de alto escalão, SESEG-RJ)
“Tudo o que se faz tem que se medir, tem que se ter um controle
(…) e medir a produtividade nas ruas: inquéritos relatados, auto-
“Tenho tido total [apoio], ontem eu troquei três e-mails com o go-
vernador. O secretário SMS direto, o tempo todo, comando da PM
também é assim. Se há uma coisa que eu não posso reclamar é de
apoio, porque nas minhas dificuldades e nas ideias que passam a
Violência, Polícia, Justiça e Punição 351
“A Polícia Civil ficou fora no início desse projeto por uma opção da
Secretaria de Segurança ou por uma indisposição da Chefia de Po-
lícia, na época, com o projeto. Não sei, mas que há necessidade dela
participar, não há a menor dúvida, não há a menor dúvida. Seja com
projeção, seja com delegacia, né? Eu acho que há necessidade. (...)
está aí o Alemão, Rocinha, que são os dois grandes problemas, né? O
Alemão e Rocinha são muito complexos, são muito complexos; por
isso que a chefe [de Polícia Civil] propôs, o secretário aceitou, o go-
vernador abraçou imediatamente. Numa velocidade impressionante,
arrumou a área, está mandando fazer adaptação etc., para botar essas
duas delegacias”. (Gestor de Médio Escalão, PCERJ)
“Acho que se a gente olhar para trás, o que era o Rio de Janeiro há
sete anos atrás? Uma cidade onde a cultura de segurança pública
era de enfrentamento, onde nós tínhamos a insegurança como um
sentimento muito forte na população, as empresas estavam saindo
do Rio de Janeiro… então, não tem emprego, diminui a arreca-
dação de impostos e a geração de empregos. Com isso, você tem
a possibilidade de aumento do risco da criminalidade, você tem
um número menor de oportunidades para os jovens que estão en-
trando no mercado de trabalho”. Quando você pacifica, você cria a
sensação de paz, é uma nova realidade. Tanto é que hoje o Rio de
Janeiro é um grande polo de atração e de divertimento, nacional e
estrangeiro. Você vê empresas voltando, você vê grandes eventos
sendo realizados no Rio de Janeiro. Tivemos a Copa das Confe-
derações, Jornada Mundial da Juventude, evento maravilhoso re-
alizado ano passado, nós teremos a Copa e depois as Olimpíadas.
Então eu acho que estamos numa nova realidade. É um processo
sem volta. Se algum governante resolver não pagar mais essa conta,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 353
30 Outras categorias presentes no discurso dos gestores para qualificar seu campo de ação
podem ser destacadas: “comunidade”, “asfalto”, “funk”, “tráfico de drogas”, “favelado”,
“autonomia política”, dentre outras. Entretanto, para fins dos objetivos propostos neste
artigo priorizou-se aquelas que pudessem contribuir mais diretamente para o exame
dos significados conferidos pelos gestores da área no estado à “política de pacificação”
implementada por intermédio do “policiamento de proximidade”, bem como às práticas
articuladas para a formação profissional desenvolvida para a “modelagem” de policiais
alinhada às metas e diretrizes propostos pelo Programa das UPPs no Rio de Janeiro.
354 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
“Porque uma crítica que eu sempre tive era que esse isolamento, que
esse grande quadrilátero aqui que acaba né... essa coisa da intuição
total, afaste, desligue esse jovem dos seus afetos (...) e depois de três
anos a gente devolve esse jovem [a sociedade]. E, muitas vezes…,
33 Essa comissão era formada por policiais vinculados ao setor de ensino da corporação –
comandante, subcomandante e pedagogas das escolas [academias da polícia militar] –,
como também por uma consultora externa, contratada pela SESEG-RJ. Acompanhei,
por aproximadamente quatro meses, como observadora, os trabalhos desenvolvidos
pela mesma. Agradeço, particularmente, ao Coronel Antônio Carlos Carballo Blanco,
então diretor da Escola Superior de Polícia Militar (ESPM), pela oportunidade de par-
ticipar dessa comissão de trabalho.
358 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
38 Houve comentários em off, que indicavam que essa falta de instrutores era regular,
haja vista que a presença dos mesmos no EPP dependia da disponibilidade e até mes-
mo da “boa-vontade” deles para ali estarem.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 363
uso em sala de aula – data show, computadores, pilots etc. –, como também
referentes a salas de aula, que estavam superlotadas de alunos, sem ar con-
dicionado por problemas de queda de fase na região, dentre outros aspectos
importantes para o favorecimento de boas condições para o funcionamento
e aproveitamento do curso de formação e treinamento profissional.
Como argumenta uma gestora de primeiro escalão:
ta na decisão de uma política, haja vista que é preciso que o problema seja
reconhecido e que existam soluções viáveis e aceitáveis. “É a conjunção dos
três fluxos (problems, policies, politics) que abre uma ‘janela de oportunida-
de’ (policy window) para que uma questão vá para a agenda de decisão – do
mesmo modo, uma ‘janela’ se fecha quando um dos fluxos se desconjunta
dos demais” (p. 9, grifo meu).
Desse modo, uma questão crucial para que o programa das UPPs não fi-
que como uma experiência “alternativa” ou “personalista” no Rio de Janeiro,
mais um experimento fragmentado e episódico, constituindo de fato uma
política pública de segurança exitosa e com amplo e duradouro escopo, diz
respeito a superação dos fatores internos e externos ao programa, indicados
anteriormente, que afetam a estrutura, a organização e o funcionamento do
programa, tais como: apoio político e governamental, adesão dos policiais,
civis e militares, à filosofia e estratégias estabelecidas pelo programa para a
atuação policial – com a substituição do paradigma da “cultura da guerra”
baseado na força, na qual “o policial não se enxerga se ele não estiver com
um fuzil na mão, se ele não estiver com uma lógica de apreensão de drogas
e de prisão” por outro padrão da “cultura da paz”, na qual o policial é essen-
cialmente um “prestador de serviço” – articulação/cooperação entre todos
os órgãos de segurança e integração/colaboração entre esses e as de organi-
zações de “bem-estar” social, aceitação e confiança da população na polícia,
dentre outros. É preciso, ainda, que tenha capacitação continuada e acom-
panhamento sobre o desempenho das atividades realizadas pelos policiais.
No que diz respeito ao treinamento profissional, é imperativo que con-
teúdos e metodologias para a educação policial promovam o incremento e
a consolidação dos valores, das normas, das competências e das habilidades
para atuação nesse modelo. Para isso, comunicação, diversidade, resolução
de problemas, envolvimento da comunidade e prevenção da criminalidade,
dentre os mais importantes, são conteúdos imprescindíveis. Outro aspec-
to relevante, relaciona-se com a capacitação dos próprios instrutores, que
precisam ser capazes de fornecer o conhecimento especializado em policia-
mento comunitário e não apenas a experiência no campo. Também é indis-
pensável que hajam instalações e equipamentos apropriados nos centros de
Violência, Polícia, Justiça e Punição 367
Referências bibliográficas
ADORNO, Sergio. “Políticas públicas de segurança e justiça penal”. Cader-
nos Adenauer IX: Segurança Pública. Rio de Janeiro: Fundação Ade-
nauer, nº 4, jan. 2009, p. 9-27.
ALBERNAZ, E.; CARUSO, H.; PATRÍCIO, L. “Tensões e Desafios de um
Policiamento Comunitário em Favelas: o caso do Grupamento de Poli-
ciamento em Áreas Especiais”, São Paulo em Perspectiva, São Paulo, nº
2, vol. 21, jul./dez. 2007, p. 39-52.
BARRETO, Ricardo Candéa Sá. O Empoderamento de Comunidades e o
Desenvolvimento Local. s.d. Disponível em: <http://www.sober.org.br/
palestra/12/06P378.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2015.
CANO, Ignácio. Letalidade Policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER,
1997.
CANO, Ignácio. “Seis por meia dúzia? Um estudo exploratório do fenôme-
no das chamadas ‘milícias’ no Rio de Janeiro”. In: RIBEIRO, C. et al.
(coord.). Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
ONG Justiça Global; Fundação Heinrich Böll, 2008.
CANO, Ignácio (coord.). “Os donos do morro”: uma avaliação exploratória
do impacto das UPPs no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fórum Brasi-
leiro de Segurança Pública; Laboratório de Análise da Violência (LAV-
-UERJ), 2012.
CANO, Ignácio; DUARTE, Thais (coord.). Pesquisa de Kryssia Ettel e Fer-
nanda Novaes Cruz. “No sapatinho”: a evolução das milícias no Rio de
Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012.
CAPELLA, Ana Cláudia N. “Perspectivas Teóricas sobre o Processo de For-
mulação de Políticas Públicas”. BIB – Boletim de Informações Bibliográ-
ficas, São Paulo, n° 61, jan./jul. 2006, p. 25-52.
CARNEIRO, Leandro P. “Mudança de guarda: as agendas da segurança pú-
blica no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 4,
nº 7, ago./set. 2010, p. 48-71.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 369
5 O mesmo ocorre com os estudos sobre imagem da polícia em menor grau, pois o
número de pesquisas sobre policias ao redor do mundo vem crescendo, enquanto o
de estudos sobre a justiça continuar a predominar na cultura anglo-saxã (Jacob, 1971;
Tyler e Huo, 2002).
378 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
das pessoas acusadas; c) Benesh (2005) com base no survey conduzido pelo
National Center for State Courts nos Estados Unidos, identificou as seguin-
tes variáveis como afetando a imagem da justiça :escolaridade; experiência
de ter participado de júri; informação sobre o sistema de justiça; taxas de
criminalidade; confiança nas instituições de governo em geral e no processo
de indicação de juízes, em particular. Estes fatores mostraram-se determi-
nantes para que houvesse alta confiança nos tribunais estaduais. Por outro
lado, baixa escolaridade, ter sido acusado por um delito, baixa informação
sobre o sistema, altas taxas de criminalidade e juízes eleitos pelos moradores
explicavam uma baixa confiança na justiça. Os resultados de Benesh (2005)
mostram que outras variáveis podem influenciar tanto na percepção de
equidade do processo judicial como na avaliação que fazem do tratamento
dispensado ao cidadão, mas os tribunais não teriam influência sobre vários
fatores que influenciam a confiança como, por exemplo, as taxas criminais e
o processo de indicação dos juízes.
Alguns autores destacam ainda a influência que casos de grande reper-
cussão e exposição na mídia têm na imagem da justiça (Rottman, 1998).
Segundo Rottman, estes casos podem ter impacto sobre as avaliações ao
mobilizarem grande atenção e com isso estimularem determinadas expec-
tativas e opiniões sobre a eficiência desta instituição. Olson e Huth (1998)
destacam que há evidencias de que o apoio à justiça também esteja ligado
ao ambiente sociopolítico, ou seja, o quão ativo e visível é o judiciário em
ações controversas, que envolvem questões partidárias, ideológicas e visões
sobre políticas públicas. Passadas quase três décadas desde que retorno à
democracia, como as pessoas percebem o judiciário no Brasil?
Há pouca tradição de pesquisa sobre a imagem e confiança na instituição
judiciário no Brasil. A maioria das pesquisas realizadas é bastante recente:
1- O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) realizou, em
2011, o estudo “Sistema de Indicadores de Percepções Sociais do Serviço
Público” (SIPS). Nesse estudo, o sistema de justiça (promotores, juízes, po-
liciais federais, policiais civis, defensores públicos e advogados) foi um dos
serviços públicos considerados, sendo de modo geral, mal avaliado pelos
respondentes. O mesmo padrão de baixa avaliação se manteve quando as-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 379
pectos específicos foram avaliados: rapidez, acesso, custo, justeza das de-
cisões, honestidade e imparcialidade. A média das avaliações se manteve
baixa em todas as regiões e grupos pesquisados.
2- Analisando os dados da pesquisa “A Desconfiança dos Cidadãos das
Instituições Democráticas” coletados em 2006, Del Porto (2013) traçou um
quadro não mais animador. Esta autora corroborou dados coletados em traba-
lhos anteriores que demonstraram que a população tem pouco conhecimento
de seus direitos civis e que a baixa procura pela justiça para a resolução de con-
flitos decorre da percepção de que falta aos tribunais condições para atender
as demandas dos cidadãos (responsividade), da desconfiança quanto a impar-
cialidade e igualdade de tratamento por parte do judiciário, e da percepção de
baixa eficiência do mesmo. Surpreendente é outro resultado deste estudo que
a percepção de desigualdade tanto perante a lei quanto no acesso à justiça não
teriam efeito sobre a confiança dos cidadãos no judiciário no Brasil.
3- Por fim, outro estudo relevante para esse tem é o “Índice de Con-
fiança na Justiça no Brasil” da Fundação Getúlio Vargas (ICJ Brasil). Esta
pesquisa traça um amplo panorama reunindo as percepções dos cidadãos
sobre o judiciário no Brasil. Os resultados deste estudo mostram que, em
2013, 29% das 3.325 pessoas entrevistadas no país afirmaram confiar no
judiciário, valor esse menor do que os obtidos em pesquisas anteriores. Em
um “ranking” de 11 instituições o judiciário ficou em oitavo lugar, à frente
somente do governo federal, congresso nacional e partidos políticos.6
O ICJ (FGV, 2013) revelou ainda que há uma percepção negativa da
forma como os serviços do judiciário são prestados. Contudo, apesar desta
percepção, a procurar o judiciário para resolver conflitos é um comporta-
mento valorizado pela população. Os jovens (de 18 a 34 anos), pessoas com
maior renda (mais que oito salários mínimos) e com maior escolaridade
foram os mais positivos em sua avaliação do judiciário.
Outro dado importante é que participar de processo judicial foi impor-
tante diferencial para uma maior confiança assim como uma melhor per-
6 As instituições mais bem avaliadas foram: Forças Armadas, Igreja Católica, Ministério
Público, Imprensa escrita, Grandes Empresas, Polícia e Emissoras de TV nesta ordem.
380 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Imagem da Justiça
Desde 2001 o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo (NEV/USP) vem realizando a “Pesquisa domiciliar sobre atitudes, nor-
mas culturais e valores em relação à violência e violação de direitos humanos”,7
cujo objetivo principal é monitorar o impacto que a contínua exposição à vio-
lência tem sobre a percepção, as atitudes e valores em relação à justiça, direi-
tos humanos e instituições encarregadas de aplicar a lei.8 Foram entrevistadas
pessoas com 16 anos ou mais. Apresentamos aqui os resultados relativos a
duas questões: avaliação do judiciário ao longo dos anos e expectativas de
tratamento por parte de um juiz se tivessem um caso correndo na justiça.
7 A pesquisa compreende sete coletas de dados sendo que destas, duas (1999 e 2010)
ocorreram em 10 capitais (1999) e em 11 capitais (2010) e cinco coletas de dados
foram realizadas só em São Paulo em 2001, 2003, 2006, 2008, e 2013. Em 1999, foram
10 capitais (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife,
Belém, Manaus, Porto Velho e Goiânia). Em 2011, Fortaleza foi incluída entre as capi-
tais anteriormente pesquisadas.
8 Foram aplicados 1000 questionários em 2001 e 2003, e 1300 em 2006, 2008, e 2013.
Em 2010 foram 1200 questionários. A aplicação dos questionários, elaborados pelo
NEV foi feita pelo IBOPE.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 381
9 Para fins de apresentação as categorias “muito boa” e “boa” foram agrupadas tendo o
mesmo ocorrido com “muito ruim” e “ruim”.
382 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Gráfico 2. Como esperariam ser tratados por um juiz, São Paulo: 2001-2013
d) O juiz ouviria todos os lados para tomar uma boa decisão? Sim,
Não, Não sabe/ Não opinou.
384 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Tabela 1. Avaliação da Justiça, entre homens e mulheres, por idade, raça, esco-
laridade e renda familiar, em 2001
(em
> 5 e < = 10 36,1 40,7 50,2 31,9 46 32,3
salário
mínimo) > 10 e <
44,3 32,1 42,1 29,5 32,9 38,9
= 20
36 18 50 25 31,7 51,6
2013
Total 74,8
Masculino 74,3
Sexo
Feminino 75,3
< = 19 anos 62,6
20 a 29 anos 70,9
30 a 39 anos 74
Idade
40 a 49 anos 78
50 a 59 anos 77,6
60 ou mais 83,2
Analfabeto 75
0a4 76,5
Anos de estudo 5a8 71,2
9 a 12 74,5
O juiz respeitaria seus direitos como cidadão
12 ou mais 79,6
Branco/amarelo 75,4
Raça
Negro/pardo 73,9
<=1 66,8
>1e<=2 88,4
> 20 74,3
60 ou mais 82,3
Analfabeto 73,3
0a4 77,7
Anos de estudo 5a8 75,1
9 a 12 77,1
12 ou mais 81,2
Branco/amarelo 75,6
Raça
Negro/pardo 78,9
<=1 82,6
>1e<=2 88,8
Renda familiar (em salá- >2e<=5 80,8
rio mínimo) > 5 e < = 10 81,2
> 10 e < = 20 74,1
> 20 71,5
Fonte: NEV-USP
390 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Idade
40 a 49 anos 55,1
50 a 59 anos 47,3
60 ou mais 53,8
Analfabeto 40,9
0a4 52,1
Anos de estudo 5a8 49
9 a 12 54,4
12 ou mais 56,3
Branco/amarelo 53
Raça
Negro/pardo 52,2
<=1 16,8
>1e<=2 54,3
Renda familiar (em >2e<=5 53,8
salário mínimo) > 5 e < = 10 56
> 10 e < = 20 49,2
> 20 46,8
60 ou mais 79,7
Analfabeto 79,4
0a4 76,7
Anos de estudo 5a8 77
9 a 12 75,8
12 ou mais 76,4
Branco/amarelo 76,4
Raça
Negro/pardo 76,6
<=1 50,9
>1e<=2 91,9
Renda familiar (em salário >2e<=5 77,1
mínimo) > 5 e < = 10 80,6
> 10 e < = 20 74,4
> 20 75,5
Percepções de Justiça
Se por um lado estas questões permitem ter alguma ideia sobre a per-
cepção dos entrevistados em relação aos juízes, por outro, elas também re-
velam as expectativas que possuíam sobre o que consideram uma atuação
justa por parte destes agentes. Neste sentido, há da parte dos respondentes,
uma grande expectativa de, caso venham a ser acionados ou acessem a jus-
tiça, terem seus direitos respeitados, serem ouvidos e de terem a oportuni-
dade de contar sua versão dos fatos.
Considerações finais
A pesquisa do NEV revela duas percepções entre os entrevistados: uma
que se refere à instituição justiça e outra às expectativas que têm na intera-
394 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
significa que os julgamentos que o público faz desta instituição são passíveis
de mudança.
Referências bibliográficas
BENESH, Sara C. “Understanding Public Confidence in American Courts”.
Journal of Politics, nº 3, vol. 68, ago. 2006, p. 697-707.
CARDIA, Nancy (coord.). Pesquisa nacional, por amostragem domiciliar, so-
bre atitudes, normas culturais e valores em relação à violação de direitos
humanos e violência: um estudo em 11 capitais de estado. São Paulo: Nú-
cleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2012, 413 p.
DEL PORTO, Fabíola B. “A avaliação do Judiciário e o acesso à cidadania:
visão dos brasileiros”. In: MOISÉS, José A.; MENEGUELLO, Rachel
(org.). A desconfiança política e seus impactos na qualidade da democra-
cia. São Paulo: Edusp, 2013, p. 281-308.
DIAMOND, Larry; MORLINO, Leonardo. “Introduction”. In: DIAMOND,
Larry; MORLINO, Leonardo (org). Assessing the quality of democracy.
Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2005, p. 9-43.
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (FGV) – Escola de Direito de São
Paulo. Relatório ICJBrasil 2º semestre de 2013. São Paulo, 2014, 34
p. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstre-
am/handle/10438/11575/Relat%C3%B3rio%20ICJBrasil%20-%20
2%C2%BA%20Semestre%20-%202013.pdf?sequence=1>. Acesso em: 5
maio 2018.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Siste-
ma de Indicadores de Percepção Social (SIPS) – Justiça. Brasília, 2011.
Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/
SIPS/110531_sips_justica.pdf>. Acesso em: 6 maio 2018.
JACOB, Herbert. “Black and white perceptions of justice in the city”. Law
and Society Review, nº 1, vol. 6, 1971, p. 69-89.
KAUKINEN, Catherine; COLAVECCHIA, Sandra. “Public perceptions of the
courts: an examination of attitudes toward the treatment of victims and
accused”. Canadian Journal of Criminology, nº 3, vol. 41, 1999, p. 365-384.
396 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
2 Adorno tratou, junto com outros pesquisadores, das tendências de evolução dos cri-
mes e da violência em ao menos três publicações (Adorno, 2013; Adorno; Dias; Néry,
2016; Adorno; Néry, 2019). Há inúmeros estudos sobre essas tendências em todo o
país, inclusive vários capítulos desta coletânea também as analisam.
404 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Métodos
A base de dados do estudo Violência, impunidade e confiança na demo-
cracia, São Paulo (1991-1997) são as ocorrências policiais registradas em 14
delegacias e duas delegacias especiais da mulher que compõem a 3ª Seccio-
nal de Polícia do município de São Paulo. Esses distritos policiais abrangem
24 distritos censitários ao noroeste da capital paulista. Congregam áreas com
elevada heterogeneidade econômica, social e demográfica, compreendendo
bairros com população de elevada renda e outros com populações de média e
baixa renda. Essa opção teve por propósito exercer alguma sorte de controle
sobre o desempenho das instituições encarregadas de aplicar lei e ordem.
Definiu-se que o universo amostral corresponderia às ocorrências re-
gistradas entre 1º de janeiro de 1991 a 31 de dezembro de 1997. Este in-
tervalo de tempo compreende o período em que crimes de roubo, tráfico
de drogas, extorsão mediante sequestro e homicídios acusaram as maiores
taxas de crescimento desde que as séries históricas começaram a ser produ-
zidas na década de 1980 (Caldeira, 2000).
A coleta de dados seguiu três etapas.5 No primeiro momento, foram
consultados os Livros de Registro de Boletins de Ocorrência e os Livros de
Registro de Inquéritos Policiais em cada uma das delegacias selecionadas
para o estudo. A seguir, foram localizados os inquéritos policiais para crime
de homicídio correspondentes a esses registros. Por último, com base nos
inquéritos encontrados foi definida amostra probabilística.
A pesquisa consistiu em realizar follow-up institucional, segundo o mé-
todo longitudinal. Através deste método, as ocorrências foram individual-
mente identificadas e acompanhadas no seu curso durante todas as etapas
5 Na primeira etapa da pesquisa, foram consultados cerca de 344 mil boletins de ocor-
rência, englobando crimes violentos (homicídios, tentativas, roubos, extorsão median-
te sequestro, tráfico de drogas, estupro) e não violentos (furtos, uso de drogas). Nas
etapas subsequentes, decidiu-se concentrar a investigação apenas nos casos de homi-
cídio que representavam à época e na região observada cerca de 4.500 registros.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 407
7 Não estão sendo considerados os crimes que sequer chegam ao conhecimento da auto-
ridade policial. Compõem o que, na literatura criminológica, se convencionou nomear
de “cifras negras”, conceito presentemente em revisão.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 409
8 Não foi feito porque essa sorte de observação requereria deslocar a observação para
os arquivos da Secretaria de Administração Penitenciária justamente em um período
de emergência do crime organizado nas prisões do Estado de São Paulo. Certamente,
esta seria uma terceira etapa e retardaria o cumprimento do cronograma de execução,
já atrasado em virtude das paralisações involuntárias.
9 Suspeita-se ser elevado o número de mandados de prisão por condenação que não che-
ga a ser cumprido. Ver a respeito Estado de São Paulo tem 137 mil mandados de prisão
a cumprir, disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/09/11/
estado-de-sao-paulo-tem-137-mil-mandados-de-prisao-a-cumprir.ghtml>.
10 Por certo, esta é uma representação gráfica universal. Em todos os sistemas de justiça
criminal, é maior o número de casos policiais registrados na entrada que na saída. O
410 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
problema é quando a base do funil é larga e o gargalo é estreito – sinal de que taxas de
impunidade são elevadas.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 411
11 Em alguns pontos do texto optou-se por considerar o número do caso como unida-
de de análise. Isso porque para os processos penais desmembrados não foi possível
acompanhar os processos através do follow-up institucional. Processos desmembrados
podem ser redistribuídos entre varas criminais e, dessa maneira, tornou-se, à época,
impossível identificar e localizá-los no Arquivo de Justiça.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 413
Sob essa perspectiva, a função de controle social à qual o direito penal está adstrito
compreende também operações que pretendem adentrar a “alma” dos acusados, iden-
tificar-lhes características que possam estar associadas ao desvio criminal que, assim
lhes parece, é a face visível do desvio da conduta moral.
416 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
14 O motivo fútil e o motivo torpe estão previstos como qualificadores do crime de ho-
micídio, conforme redação do art. 121 do Código Penal de 1940. Se confirmadas pelo
tribunal do júri, os qualificadores do crime de homicídio induzem ao aumento da
pena. O Código Penal traz seção específica em que o motivo torpe é definido como “o
motivo que suscita a aversão ou repugnância geral, v. g.: a cupidez, a luxúria, o despeito
da imoralidade contrariada, o prazer do mal, etc.”; enquanto o fútil consiste no crime
que “pela sua mínima importância, não é causa suficiente para o crime” (BRASIL,
1999, p. 23). Certamente, este domínio está sujeito a interpretações subjetivas, inclusi-
ve arbitrárias. Atos considerados por muitos como torpes ou fúteis podem ser objetos
420 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
fatizam a pressuposta índole homicida dos infratores. É preciso frisar que está
previsto em lei que julgadores possam avaliar a “personalidade do réu”. Con-
tudo, na forma própria como os promotores, defensores e juízes a compreen-
dem e constroem, a “personalidade do réu” comporta múltiplos significados.
A invocação de retratos morais estabelece tensões entre objetividade e subje-
tividade na aplicação dos preceitos legais e introduz, no fluxo do sistema de
justiça, incertezas sobre os desfechos que se poderiam esperar dos processos.
A segunda etapa do estudo da impunidade penal identificou também
evidências de acordos informais promovidos na sessão do júri entre a acu-
sação e a defesa. São informais porque não estão previstos no Código de
Processo Penal para crimes de homicídio. E, nesse sentido, diferenciam-se
dos acordos judiciais estabelecidos em audiências de conciliação dos juiza-
dos especiais cíveis porque não são conduzidos por procedimentos legais
e não definem diretamente a decisão final do processo. Antes, os acordos
informais na sessão do júri são estratégias adotadas pelas partes para limi-
tar as hipóteses que serão apresentadas aos jurados. Com os acordos, bus-
cam influenciar o julgamento de maneira a restringir os desfechos possíveis
àqueles acordados entre as partes interessadas.
Em um único caso o acordo chegou a ser registrado em ata da sessão, o que
ocasionou, posteriormente, a anulação do júri pelo tribunal de segunda instân-
cia. Nos demais casos, as atas da sessão do júri fornecem indícios e evidências
dos acordos ao registrar os pedidos elaborados pelas partes durante os debates
da sessão do júri. Conforme constam das atas analisadas, dificilmente os pro-
motores e os defensores persistem na defesa de suas teses apresentadas ante-
riormente, na peça de denúncia ou nas defesas prévias. O mais recorrente é que
modifiquem seus pedidos diante dos jurados. Nesses casos, a defesa reconhece
a autoria, acompanhada da confissão do réu que assume a responsabilidade da
ação. Uma vez garantida a autoria pela confissão, o promotor tende a relaxar a
culpabilidade do réu, abrindo mão principalmente dos qualificadores do mo-
tivo torpe ou fútil, optando por homicídio simples ou reconhecendo circuns-
tâncias atenuantes em alguns casos. Ao final, a principal evidência dos acordos
encontra-se no fato de que promotor e defensor muitas vezes defendem a mes-
ma tese, contrariando o que havia sido documentado os autos.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 423
Considerações finais
A análise desenvolvida focalizou a economia interna dos inquéritos e
processos penais, a partir do exame das diferentes estratégias empregadas
424 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
16 É certo que todo esse cenário pode ter se modificado, nestas duas últimas dé-
cadas, sobretudo por força do emprego de controles administrativos baseados
nos recursos proporcionados pela informática. Ainda assim, dados referentes ao
acúmulo de processos penais nos tribunais, por todo o país, sugerem que o em-
prego desses recursos não foi suficiente para modificar o quadro administrati-
vo existente. Ver Conselho Nacional de Justiça – CNJ: <http://www.cnj.jus.br/
programas-e-acoes/politica-nacional-de-priorizacao-do-1-grau-de-jurisdicao/
dados-estatisticos-priorizacao>.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 429
Referências bibliográficas
ADORNO, Sergio. “Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo”.
Novos estudos, São Paulo, nº 43, 1995, p. 45-63. Disponível em: <https://
edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/203942/mod_resource/content/1/
Adorno.pdf>. Acesso em: 19 maio 2019.
ADORNO, Sergio e PASINATO, Wânia. Violência e punição: estudo da impu-
nidade no município de S. Paulo, 1991-1997. Relatório de pesquisa vol. 1
– Da criminalidade detectada à criminalidade investigada. São Paulo: Nú-
cleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2008. 150p.
ADORNO, Sergio; PASINATO, Wânia. “Violência e impunidade penal: da
criminalidade detectada à criminalidade investigada.” Dilemas. Revista
de Estudos de Conflito e Controle Social, nº 7, vol. 3, 2010, p. 51-84. Dis-
ponível em: <http://nevusp.org/wp-content/uploads/2015/04/Dilema-
s7Art3.pdf>. Acesso em: 19 maio 2019.
ADORNO, Sergio. “O perfil da violência brasileira contemporânea e as res-
postas do Estado”. In: BIASOTO JÚNIOR, Geraldo; PALMA E SILVA,
Luiz Antônio (org.). Aporias para o Planejamento Público. 1ª ed. São
Paulo: FUNDAP, vol. 1, 2013, p. 159-176.
ADORNO, Sergio; DIAS, Camila Nunes; NÉRY, Marcelo Batista. “A cidade
e a dinâmica da violência”. In: KOWARICK, Lucio; FRÚGULI, Heitor.
Pluralidade em São Paulo. 1ª. ed. São Paulo: 34, 2016, p. 381-403.
ADORNO, Sergio; NERY, Marcelo Batista. “Crime e violências em São Pau-
lo: retrospectiva teórico-metodológica, avanços, limites e perspectivas
futuras”. Cadernos Metrópole, nº 44, vol. 21, 2019, p. 169-194.
ADORNO, Sergio; PASINATO, Wania; JESUS, Maria Gorete M; OLIVEI-
RA, Renan T.; ROLEMBERG, Igor; LACERDA, Larissa. “Police inves-
tigation and judicial process in São Paulo: the case of homicides”. 12th
Report. Center for the Study of Violence, University of São Paulo. São
Paulo: NEV-CEPID/USP, 2008-2012, p. 52-58, http://nevusp.org/wp-
-content/uploads/2015/01/down273.pdf Acesso em 07 julho 2019.
BONELLI, Maria da Glória. “Perfil social e de carreira dos delegados de
polícia”. In: SADEK, Maria Tereza Sadek (org.). Delegados de Polícia. 1ª
Violência, Polícia, Justiça e Punição 431
Apresentação
No Brasil, a violência urbana torna-se um problema nacional desde os anos
1970, em meio ao contexto de resistência à ditadura e de luta pela redemocra-
tização. Em diferentes contextos e momentos, o debate sobre o tema permitiu
passagens entre questões científicas e preocupações públicas, por meio da arti-
culação do ativismo na sociedade civil e no interior do Estado com centros de
pesquisa universitários. Uma série de reuniões, seminários e congressos mobi-
lizam parlamentares, juristas, cientistas sociais, agentes do Estado, meios de co-
municação e sociedade civil organizada no intuito de definir o problema e suas
estratégias de controle. Na medida em que ela foi incorporada às preocupações
da sociedade e do Estado, temas antes circunscritos às disciplinas do Direito e
da Medicina passam a envolver também outras disciplinas, como a Antropolo-
gia, a Sociologia, a Ciência Política, a Psicologia, a Educação e a Saúde Pública.
das ciências sociais com as políticas públicas para uma “gradativa perda de
autonomia dos pesquisadores da temática, no que diz respeito à formulação
de problemas de pesquisa, escolha de perspectivas teóricas e empregos de
técnicas de pesquisa” (p. 195).20 Questões caras às reflexões da teoria socio-
lógica se perderiam frente a perspectivas mais pragmáticas que, apesar de
terem tido mais espaço, não teriam se tornado relevantes na reversão dos
problemas mais crônicos e graves da segurança pública e justiça criminal.
Alguns pontos poderiam ser contestados, como: qual o critério para
afirmar o “desnível teórico” de uma produção, que não é discutida no nível
conceitual (não é discernível se é uma análise de parte dos artigos Qualis
A1 abordados, ou uma impressão geral sobre a produção disseminada em
outros periódicos)? Esse desnível se dá na comparação entre a “Sociologia
da Punição” e os estudos que se aproximaram de políticas públicas ou afeta
ambos, derivando da expansão do campo, e lógica de massificação e repro-
dução de referências? Mas não é o momento para uma análise mais detida
sobre o texto, que pontua questões relevantes. Cabe apenas considerar que
ele é expressão do esforço de consolidação de uma rede de pesquisadores
que não ocuparam posições de centralidade nas articulações políticas nos
últimos anos, mas que procura, no momento de crise destas articulações,
ganhar espaço através da legitimidade acadêmica, ao orientar a interpre-
tação das pesquisas sobre prisão e atividades criminais que estão ligadas a
uma perspectiva “societária” e não “estatizante” (Machado da Silva in Lima
e Ratton, 2011), para um espaço teórico de seu domínio a partir da consoli-
dação de uma “sociologia da unição”.
O outro trabalho é Humanizar e Expandir: uma genealogia da segu-
rança pública em São Paulo, de Adalton Marques (2017), que analisa a
conformação de uma “razão democrática e humanista no seio da seguran-
ça pública pensada e elaborada em São Paulo” durante o fim da Ditadura
Militar, baseada no que chama de “tríptico segurança pública – democra-
cia – direitos humanos”, que teria não apenas possibilitado, mas incitado a
20 O que contraria outras interpretações, que minimizam tais riscos frente ao grande
déficit ainda existente na construção de uma universidade engajada na solução de pro-
blemas públicos (Soares, 2006).
458 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Conclusões
Nosso propósito foi demonstrar como os estudos feitos sobre esse
campo intelectual têm refletido, em maior ou menor grau, as disputas aqui
24 Neste ponto vale esclarecer alguns ruídos de interpretação entre outros esforços pa-
ralelos de discussão sobre o campo intelectual e o que desenvolvemos: Pradal afirma
que nosso trabalho “não se propõe a uma análise da relação política sobre o lugar do
intelectual” (Pradal, 2017, p. 122), quando esta é justamente uma de suas principais
questões; para Alvarez & Campos (2017), nossa pesquisa abordaria a “constituição
de um efetivo campo da segurança pública (1968-2010)”, fazendo crer que usamos a
expressão “campo da segurança pública” para delimitar todo o processo de discussão
mais amplo sobre violência, crime e punição no Brasil desde os anos 1960, quando
este é apenas uma das configurações assumida pela relação entre intelectuais e política;
Marques (2017), por sua vez, chega à uma interpretação inversa à proposta da pes-
quisa: “Ele define a Sociologia da Violência como um “campo da segurança pública”,
noção que indica a conformação de “um campo intelectual e não o campo dos agentes
e das políticas de segurança pública com o qual a área de estudos sobre violência, cri-
me e punição se relacionaria” (Vasconcelos, 2012, p. 572; nota de rodapé 2)” (p. 173).
Contraditória em si mesma, a citação é oriunda de uma interpretação equivocada do
sentido de uma nota de rodapé de uma resenha que fizemos sobre o livro As Ciências
Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos no Brasil
(Lima e Ratton, 2011), na qual se propõe seria possível indagar/questionar o uso nati-
vo de “campo da segurança pública” para abordar todo o campo intelectual.
466 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
Referências bibliográficas
ADORNO, Sergio. “A criminalidade urbana violenta no Brasil: um recorte
temático”. BIB - Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais,
Rio de Janeiro, nº 35, jan./jun. 1993, p. 3-24.
ADORNO, Sergio. A Gestão Urbana do Medo e da Insegurança: Violência,
Crime e Justiça Penal na Sociedade Brasileira Contemporânea. Tese de
Livre-docência –FFLCH–USP, São Paulo, 1996.
ADORNO, Sergio; BARREIRA, César. “A violência na sociedade brasileira”.
In: MARTINS, Carlos Benedito; MARTINS, Heloísa T. de Souza (coord.).
Horizontes das Ciências Sociais: Sociologia. São Paulo: Associação Nacio-
nal de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – Anpocs, 2010.
ANITUA, Gabriel I. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janei-
ro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2010. (Série Pensamento
Criminológico, 15).
468 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)
LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz (org.). As Ciências Sociais e os
pioneiros no estudo do crime, da violência e dos direitos humanos no Brasil.
São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Urbania; Anpocs, 2011.
LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghi-
ringhelli de (org.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Editora
Contexto, 2014.
LIMA, Roberto Kant de. “Antropologia, Direito e Segurança Pública: uma
combinação heterodoxa”. Cuadernos de Antropología Social, Buenos Ai-
res, nº 37, 2013, p. 43–57.
LOPES, Edson. Política e segurança pública: uma vontade de sujeição. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2009.
LOURENÇO, Luiz C. “Contribuições pioneiras das Ciências Sociais no es-
tudo sobre as prisões brasileiras do século XX”. Vivência - Revista de
Antropologia, vol. 1, 2016, p. 169-180.
MACHADO, Bruno Amaral. Discursos criminológicos sobre o crime e o di-
reito penal: comunicação e diferencial funcional. (Curso de Atualização
em Tópicos em Sociologia Jurídica e Filosofia do Direito: Comunicação,
Sistema Jurídico e Organizações). Fundação Escola Superior do Minis-
tério Público do Distrito Federal e Territórios. 2012. Disponível em:
<https://www.uniceub.br/media/180340/Artigo_DiscursosCriminolo-
gicos.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2017. (Apostila).
MARQUES, Adalton. “Humanizar e Expandir: uma genealogia da seguran-
ça pública em São Paulo”. Tese (Doutorado em Sociologia). Programa de
Pós-Graduação em Sociologia – UFSCAR, São Carlos, 2017.
MEDVETZ Thomas. “Les think tanks aux États-Unis: L’émergence d’un
sous-espace de production des savoirs”. Actes de la recherche en sciences
sociales, Paris, n° 176-177, vol. 1, 2009, p. 82-93.
MINGARDI, Guaracy. Tiras, gansos e trutas. São Paulo: Editora Scritta,
1992. v. 01
MISSE, Michel; LIMA, Roberto Kant de; MIRANDA, Ana Paula M. “Violên-
cia, criminalidade, segurança pública e justiça criminal no Brasil: uma
bibliografia”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 50, 2º semestre 2000, p. 45-123.
472 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)