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VIOLÊNCIA, POLÍCIA,

JUSTIÇA E PUNIÇÃO
Desafios à Segurança Cidadã
conselho editorial
Ana Paula Torres Megiani
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
VIOLÊNCIA, POLÍCIA,
JUSTIÇA E PUNIÇÃO
Desafios à Segurança Cidadã

Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima


Organização
Copyright © 2019 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que


entrou em vigor no Brasil em 2009.

Edição: Haroldo Ceravolo Sereza / Joana Monteleone


Editora assistente: Danielly de Jesus Teles
Projeto gráfico e diagramação: Danielly de Jesus Teles
Assistente acadêmica: Bruna Marques
Revisão: Alexandra Colontini
Imagem da capa:

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

V792

Violência, polícia, justiça e punição : desafios à segurança cidadã


/ organização Sérgio Adorno, Renato Sérgio de Lima. - 1. ed. -
São Paulo : Alameda, 2019.
476 p. ; 23 cm.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7939-625-0

1. Violência - Prevenção - Brasil. 3. Punição - Brasil. 3. Controle


social. 4. Segurança pública - Brasil. I. Adorno, Sérgio. II. Lima,
Renato Sérgio de.

19-59939 CDD: 353.40981


CDU: 351.75(81)

ALAMEDA CASA EDITORIAL


Rua 13 de Maio, 353 – Bela Vista
CEP 01327-000 – São Paulo, SP
Tel. (11) 3012-2403
www.alamedaeditorial.com.br
Sumário

A organização da coletânea 7
Apresentação: Violência, Democracia e Segurança Cidadã: 13
avanços, desafios e limitações da reflexão sociológica
Maria Stela Grossi Porto

PARTE I
A DINÂMICA DA VIOLÊNCIA
Estudos sobre homicídios no âmbito do Instituto Nacional 29
de Ciência e Tecnologia – Violência, Democracia e
Segurança Cidadã: uma análise crítica
Edinilsa Ramos de Souza, Adalgisa Peixoto Ribeiro, Kathie Njaine,
Maria Cecília de Souza Minayo e Tauanne Nascimento Santos

Análise da queda das taxas de homicídio 65


na cidade de São Paulo 2000-2008
Maria Fernanda Tourinho Peres, Caren Ruotti, Diego Vicentin,
Ednilsa Ramos, Fernanda Lopes Regina,
Juliana Feliciano de Almeida, Marcelo Batista Nery,
Nancy Cardia, Renato Sergio de Lima e Sergio Adorno

Homicídios, drogas e explicações: notas para uma 85


discussão sobre as causas e efeitos da violência em Fortaleza
César Barreira, Maurício Bastos Russo,
Luiz Fábio Paiva e Leonardo Damasceno Sá

Jovens vítimas de violência: as dinâmicas dos 117


homicídios nas periferias de Fortaleza
César Barreira, Luiz, Fábio S. Paiva e Maurício Russo
PARTE II
POLÍCIA E SEGURANÇA PÚBLICA
A atividade policial entre práticas e representações sociais 159
Maria Stela Grossi Porto

As expectativas de reciprocidade dos 199


policiaisdo Distrito Federal
Rodrigo Figueiredo Suassuna

Ambivalências do Ensino Policial: educar ou treinar? 231


Um estudo em sociologia da conflitualidade
José Vicente Tavares Dos Santos

A Redemocratização e o campo da 303


Segurança Pública Brasileiro
Arthur Trindade M. Costa e Renato Sérgio de Lima

Segurança pública, polícia e agenda governamental 329


no Rio de Janeiro: entre discursos e práticas
Paula Poncioni

PARTE III
JUSTIÇA: PERCEPÇÕES E IMPUNIDADE
Percepções sobre a Justiça entre moradores 375
da cidade de São Paulo: 2001-2013
Nancy Cardia, Frederico Castelo Branco,
Viviane de Oliveira Cubas, Renato Alves e Gustavo Higa

Entre números e palavras: magnitude e 397


produção institucional da impunidade
Sergio Adorno e Renan Theodoro de Oliveira

Intelectuais e política nos estudos sobre a “questão criminal” no 433


Brasil: engajamentos, narrativas de fundação e divisões disciplinares
Francisco Thiago Rocha Vasconcelos
A organização da coletânea

Na tentativa de dar conta da temática da Violência e da Segurança Cida-


dã em um cenário democrático, a coletânea contempla eixos que conformam
as três partes desta obra: a primeira denominada “A dinâmica da Violência”; a
segunda “Polícia e Segurança Pública”; e a última “Justiça: percepções e impu-
nidade”. A primeira parte é formada por quatro capítulos que abordam, fun-
damentalmente, a configuração dos homicídios no Brasil, focalizando as cida-
des de São Paulo e Fortaleza como casos paradigmáticos.1 O primeiro capítulo
apresenta um balanço da produção bibliográfica nesse campo de estudos, des-
tacando suas principais linhas de investigação e análise, buscando sobretudo
identificar padrões espaciais e temporais na ocorrência de homicídios dolosos
no Brasil. Os outros três capítulos abordam a dinâmica dos homicídios na ci-
dade de São Paulo e na cidade de Fortaleza. O capítulo que privilegia a cidade
de São Paulo analisou o paradoxo da queda nos homicídios fenômeno con-
temporâneo à expansão do crime organizado, além da presença continuada
de graves violações de direitos humanos. O estudo está fundamentado tan-
to em a análise quantitativa sob perspectiva macro/global quanto em análise

1 Os homicídios na cidade do Rio de Janeiro, caso igualmente paradigmático do cenário


da violência no Brasil, foi objeto da coletânea Misse, Michel e Adorno, Sérgio (orgs),
Mercados ilegais, vioência e criminalização, São Paulo: Alameda, 2018.
8 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

qualitativa sob perspectiva micro/local. O terceiro e quarto capítulos tiveram


como campo empírico a cidade de Fortaleza. No terceiro capítulo é proble-
matizada a relação de causa e efeito retratada nas falas de secretários de segu-
rança do Estado do Ceará, a partir de um duplo movimento de sistematização
de informações qualitativas e quantitativas. O capítulo privilegiou analisar o
número de homicídios, a apreensão de drogas e informações oriundas de pes-
quisas realizadas pelo Laboratório de Estudos da Violência (LEV) no âmbito
do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia “Violência, Democracia e Se-
gurança Cidadã”. O quarto capítulo dá continuidade ao estudo sobre a cidade
de Fortaleza destacando, no primeiro momento, o modo como a evolução
das taxas de homicídio, retratadas em relatórios de pesquisa, repercutiram
na situação da morte de jovens naquela capital do estado do Ceará. Em um
segundo momento, observou-se como os saberes dos residentes das periferias
de Fortaleza compreendem e avaliam a situação de mortes de jovens em suas
comunidades. Nos últimos dez anos, as taxas de homicídios, na cidade de
Fortaleza, experimentaram evolução significativa, tornando-a constante ob-
jeto de representação do que é considerado um território violento e perigoso,
sobretudo, em comparação a outras cidades do Brasil e do mundo. A situação,
embora afete de maneiras distintas a população, em geral, significa algo mais
para jovens do sexo masculino, pardos e negros, residentes nas periferias da
capital cearense. Neste capítulo, destaca-se preocupação analítica para com-
preender as disputas entre grupamentos (facções criminosas) exógenos como
Comando Vermelho (CV), Família do Norte (FDN) e Primeiro Comando da
Capital (PCC), assim como o papel de um grupo local, com características
bem específicas, denominado os Guardiões do Estado (GDE).
A segunda parte da coletânea, intitulada “Polícia e Segurança Pública”
possui cinco capítulos. Os dois primeiros capítulos tiveram o Distrito Fede-
ral como espaço selecionado para a análise, tendo como justificativa o fato
de que Brasília é pouco priorizada, como locus empírico para pesquisar a
violência em virtude de, muitas vezes, ser representada como espaço atípico,
em comparação com outras capitais. Estes capítulos analisaram as relações
entre identidade profissional e práticas policiais, bem como as expectativas
de reciprocidade de policiais militares e civis de Brasília, visando, sobretudo,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 9

à compreensão das relações do policial com a sociedade. Nesta perspectiva


foram analisadas possíveis relações de causalidade entre práticas policiais
violentas e os complexos e por vezes contraditórios processos de constru-
ção identitária profissional. O capítulo seguinte aborda o ensino policial de-
senvolvido na sociedade contemporânea, em um conjunto selecionado de
países, destacando os aspectos atuais das experiências educativas, principal-
mente como uma forma de superar a crise institucional e a resistência à ino-
vação nas instituições de ensino policial. A pesquisa de campo foi realizada
entre 2010 e 2015. No Brasil, foram visitadas cerca de 22 instituições de en-
sino policial e no exterior foram observados 15 países. Este estudo destaca
que a Segurança cidadã e democracia tornaram-se o foco de variadas ações
educacionais. Outro aspecto conclusivo é que a “literatura especializada e a
pesquisa de campo revelaram que há um reconhecimento de que o policial
que tem o melhor nível de escolaridade pode ser considerado o melhor poli-
cial, desde que a estrutura curricular incorpore a inovação em ciência e tec-
nologia aplicadas ao ofício de polícia”. O quarto capítulo analisa a incômoda
associação entre crescimento da violência e o movimento de retomada de-
mocrática, uma problemática central para o INCT Violencia, Democracia
e Segurança Cidadã. O capítulo analisa como as organizações responsáveis
pela segurança pública foram impactadas pelos processos de mudança po-
lítica, discutindo os efeitos da redemocratização brasileira sobre o campo
organizacional da segurança pública. Como destaque, esse capítulo coloca
em evidência tendências, verificadas tanto no Brasil como na América La-
tina, indicativas de distanciamento do modelo de polícia cidadã, que busca
conciliar segurança pública eficiente com garantia de direitos, para um mo-
delo militarizado. O quinto capítulo procurou, fundamentalmente, “anali-
sar os significados atribuídos pelos gestores vinculados a área da segurança
pública sobre a chamada ‘política de pacificação’ implementada no Rio de
Janeiro, por intermédio do Programa das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs)”. Como sugerem seus autores, a reprodução dos “velhos princípios”
do “fazer policial” constitui tônica dominante nas políticas de segurança
pública, na qual prevalece sobretudo a interação arbitrária e violenta entre
polícia e sociedade, em especial quando o alvo dessas ações recai preferen-
10 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

cialmente sobre cidadãos pertencentes aos grupos sociais mais vulneráveis


à proteção dos direitos.
A terceira parte da coletânea intitulada “Justiça: percepções e impuni-
dade” é composta de três capítulos. O primeiro tem por objeto percepções
sociais sobre a justiça. Dois focos foram examinados: um as imagens e re-
presentações sobre a instituição justiça; e o outro as expectativas em relação
à interação com juízes. Quanto ao primeiro foco, a investigação revelou que,
a partir de 2013, tendências ao fortalecimento de imagens negativas, repre-
sentadas pela maior insatisfação dos entrevistados para com a eficiência da
instituição. Não obstante, a figura de seu agente principal – o juiz – mereceu
avaliações positivas. Não sem motivos, diante deste paradoxo, os autores
do capitulo afirmam que os dados apresentados levantam mais perguntas
do que respostas, de forma que não há atitudes e percepções simples, mas
uma gama de padrões que mudam ao longo do tempo. O objeto do segundo
capítulo nasce justamente de um cenário de inquietações sociais para com
o futuro da violência da sociedade brasileira. Trata-se do sentimento de que
os crimes, ao longo das últimas décadas, cresceram, se tornaram mais vio-
lentos e não são punidos. O capítulo está baseado em resultados de pesquisa
longitudinal que teve por objetivos tanto mensurar a magnitude da impu-
nidade penal para crimes de homicídios registrados na cidade de S. Paulo,
quanto examinar as circunstâncias institucionais que mais inclinam os ca-
sos observados para a desistência de aplicação de sanção penal. O estudo
revelou a existência dessas circunstâncias e mecanismos institucionais nas
esferas policial e judicial. O terceiro capítulo, desta última parte, intitulado
“Intelectuais e política nos estudos sobre a ‘questão criminal’ no Brasil: en-
gajamentos, narrativas de fundação e divisões disciplinares” tem como pro-
pósito, a partir de análise da produção bibliográfica brasileira, examinar o
processo de constituição de um campo de estudos em torno da inicialmente
enfeixado em torno de uma disciplina que se poderia nomear “Sociologia
da Violência”. Ao fazê-lo, o estudo sublinha as disputas que atravessam o
campo e tendem a influenciar os debates acadêmicos e públicos.
Esta obra com forte inserção no campo empírico, que caracteriza a
maior parte dos estudos aqui apresentados, abre novas possibilidades de
Violência, Polícia, Justiça e Punição 11

uma estimulante agenda de pesquisa na temática da violência, democracia


e segurança cidadã.
Cesar Barreira
Sérgio Adorno
Renato Sérgio de Lima
Apresentação: Violência, Democracia e
Segurança Cidadã: avanços, desafios
e limitações da reflexão sociológica

Maria Stela Grossi Porto1

Esse livro é um dos marcos do encerramento da pesquisa voltada à te-


mática da Violência, Democracia e Segurança Cidadã, realizada no contex-
to do INCT. Nesse sentido, não abarca todo o amplo espectro da temática
abordada, mas apenas alguns aspectos. Outros textos foram produzidos,
artigos científicos e livros.2 Além disso, os desdobramentos desta pesquisa
terão certamente continuidade nos próximos anos, o que indica a pertinên-
cia e a oportunidade da reflexão sobre os caminhos percorridos e os rumos a
serem buscados para o futuro. Mais do que um balanço ou avaliação do que
foi feito no contexto da pesquisa, este capítulo inicial busca apontar avanços,
limitações, perspectivas e desafios que se apresentam ao final desta etapa, e
que poderão se constituir em propostas para projetos futuros.
Pensando no que motivou a proposta inicial do INCT, é possível dizer
que, por um lado, vivemos e convivemos, ainda, com uma democracia in-
completa, da qual estão ausentes as garantias de acesso universal aos direitos

1 Professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.


Pesquisadora do NEVIS – Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB).
2 Foram publicados anteriormente: Porto, Maria Stela Grossi (org), Violência, demo-
cracia e segurança cidadã: o caso das polícias no Distrito Federal. Brasília, Verbena
Editora, 2017; e Misse, Michel e Adorno, Sérgio (orgs), Mercados ilegais, violência e
criminalização. São Paulo: Alameda, 2018.
14 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

humanos e à proteção da lei, com sua contrapartida perversa que é a perma-


nência da violência e da seletividade como modus operandi da polícia e do
conjunto do sistema de justiça criminal. Ao lado dessa realidade, é indiscu-
tível que os cinco últimos anos foram marcados por mudança significativa
nas características da manifestação e/ ou participação da sociedade civil em
vários aspectos cruciais da vida nacional, pelo surgimento, transformações
e permanências nas formas de manifestação da criminalidade, sobretudo no
contexto urbano. Da mesma forma, o período3 caracteriza-se por mudanças
e desdobramentos em termos das formas como as agências responsáveis por
controle social, punição e garantia de manutenção de lei e ordem, respon-
dem e/ou reagem a este novo cenário.
Tais constatações e questionamentos orientaram a trajetória de pesquisa
deste INCT, centrada em quatro grandes eixos de análise: 1-existência e con-
figurações dos mercados ilegais e suas implicações na resolução de conflitos,
2-situação dos homicídios, abordados em termos quantitativos e em seus sen-
tidos e significados; 3-paradoxos e contradições entre os progressos no trata-
mento da questão dos direitos humanos versus a persistência no desrespeito e
nas violações a este relacionados, com todas as questões afetas ao sistema de
justiça criminal; 4- recorrente abuso no uso da força por parte de forças poli-
ciais, incluindo processos extralegais de resolução de conflitos, torturas e maus
tratos no sistema prisional. São todas questões que apontam a importância da
reflexão sobre processos de controle do crime, mandato policial, formação po-
licial em sentido amplo além do questionamento sobre as relações polícia e so-
ciedade, as quais têm como uma vertente possível de análise as representações
sociais elaboradas pelos segmentos aí envolvidos bem como sobre a questão
da identidade profissional. Sob a ótica destas temáticas está em questão refletir
acerca das condições e requisitos para a vivência e a convivência democráticas.
Nesse sentido, as análises realizadas poderão se confrontar com o contexto e
as heranças passadas, indagar-se sobre tarefas cumpridas e não cumpridas e
refletir sobre os novos desafios da segurança pública no Brasil.

3 O período de observação coberto pelos diferentes projetos alcança o início da transi-


ção democrática até meados da década de 2010.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 15

Ao final de um período de cinco anos de intenso trabalho de pesquisa


em rede, o grupo que compõe este INCT acumulou um conjunto significa-
tivo de conteúdos e de resultados e um estoque de conhecimentos, organi-
zados quantitativa e qualitativamente que convidam, necessariamente, ao
aprofundamento do olhar sociológico sobre a realidade da sociedade brasi-
leira, buscando melhor entender o cenário que conforma a área da seguran-
ça pública hoje, e também articular interconexões com os demais grupos, na
formação de novas agendas de pesquisas.
Tendo como pano de fundo alguns dos projetos desenvolvidos durante
a vigência deste INCT, e consciente da impossibilidade de abarcar todo o rol
das temáticas e conteúdos estudados, este livro visa à reflexão e compreen-
são das transformações e permanências de alguns destes temas. Os capítulos
contemplam uma dupla vertente: a que diz respeito aos aspectos ou resulta-
dos quantitativos, ou seja, o INCT em números, cuja apresentação em pro-
fundidade tem no Anuário Estatístico (publicado pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública) um de seus produtos mais significativos; e a qualitativa,
que visa a aprofundar sentidos, valores e representações presentes em cada
uma das temáticas abordadas, os quais, ao orientarem práticas, conformam
estilos de vida no dia a dia da sociedade brasileira.
As reflexões aqui desenvolvidas são necessariamente mais gerais e
abrangentes, como convém a um texto introdutório. As inquietações vol-
tam-se à compreensão dos processos e formas de gestão, atores e institui-
ções das corporações policiais assim como aos atores e instituições do sis-
tema de justiça. O interesse é contemplar tais questões ressaltando avanços,
e enumerando desafios e limitações decorrentes da pesquisa, os quais po-
derão se constituir em subsídios para a reflexão sociológica. Considerando
os fenômenos estudados, se é verdade que algumas das transformações evi-
denciadas pela pesquisa poderão caracterizar avanços, não necessariamen-
te as permanências serão sempre sinônimo de limitações, embora algumas
possam sê-lo. De um modo ou de outro, restarão muitos desafios.
Se se quiser iniciar estas reflexões pelos avanços, uma primeira e signifi-
cativa conquista deste INCT Violência, Democracia e Segurança Cidadã rela-
ciona-se à formação, estruturação e consolidação do trabalho em rede, o que
16 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

permitiu potencializar o conhecimento e as agendas de pesquisa, desenvol-


ver um denominador comum responsável pelo alargamento dos horizontes
teórico-metodológicos, conseguindo, ainda assim, preservar a pluralidade e
a diversidade de enfoques responsáveis pela identidade característica de cada
um dos núcleos/laboratórios parceiros. Em nossos múltiplos encontros e se-
minários de reflexão e de tomada de decisões como grupo gestor, reforçou-se
a certeza de que a atividade de pesquisa é uma tarefa coletiva.
Ainda na linha dos avanços e ressaltando uma proposta de trabalho par-
ticularmente cara ao grupo, ressalte-se o ganho que significou a incorporação
da dimensão simbólica a qual, juntamente com a dimensão fática, é consti-
tutiva da realidade, fazendo do símbolo algo tão real quanto necessário. Daí
sua relevância como estratégia para o avanço no processo de conhecimento
desta mesma realidade. Dimensão simbólica que, em algumas das linhas de
pesquisa aqui desenvolvidas, vem sendo incorporada por meio do estudo das
representações sociais, caminho metodológico que leva em consideração o
que a população, através de seus mais distintos segmentos, pensa sobre crime,
violência, segurança ou insegurança pública, polícia, justiça, violência poli-
cial, etc. Em outras palavras, busca-se, no processo de investigação, considerar
os conteúdos de natureza subjetiva, expressos nas Representações Sociais, ela-
boradas e produzidas pelos representantes da segurança pública, (quer se trate
de gestores formuladores de políticas ou dos encarregados da execução das
mesmas) mas produzidas, igualmente, por aqueles que direta ou indiretamen-
te se beneficiam ou sofrem as consequências de seus acertos ou desacertos, ou
seja, a sociedade, em seus distintos segmentos.
Com relação à segurança e ainda considerando a dimensão do universo
simbólico, pode-se dizer que os atores sociais criam expectativas e, muitas
vezes, a distância entre tais expectativas e as políticas públicas de segurança
pode ser fonte do fracasso das políticas e da crise do/ no sistema. Privilegiar
a análise das representações significa reconhecer sua importância teórico-
-metodológica enquanto estratégia de conhecimento do social. Representa-
ções sociais são centrais para se entender as sensações de medo e de insegu-
rança produzidas pelo imaginário social, em sua articulação com questões
como as das drogas e das armas, por exemplo, representadas como fonte de
Violência, Polícia, Justiça e Punição 17

aumento da violência: este imaginário orienta condutas e quando os cida-


dãos desacreditam do aparato da justiça e da polícia, decidem fazer justiça
com as próprias mãos.
Considerando as representações sociais como matéria prima do “fazer
sociológico” afirmaria, arriscando o exagero, que quando se trata de segu-
rança pública e da elaboração de políticas de segurança pública, interessa
menos o fato e mais sua versão ou representação, já que esta orienta o agir
dos atores sociais. Buscando o equilíbrio, seria, talvez, mais sensato dizer
que interessa tanto o fato, o acontecimento, quanto sua representação, que
é, igualmente, parte de sua definição, “criando-o”, portanto.
Também seria possível contabilizar como avanço significativo o fato
de que este INCT e, muito provavelmente, não apenas este, deu um passo
decisivo em direção à maior visibilidade do que seja a função social e ins-
titucional da ciência e da tecnologia ao promover cursos de formação e de
treinamento ao longo de toda a trajetória do INCT. Neste sentido, é possível
dizer que o INCT tem sido um importante fator de estruturação e consoli-
dação do campo da segurança pública, contribuindo para a constituição de
um corpo de gestores, mais e mais preparados para atuar nessa área. Nesse
sentido, não parece mais prematuro falar em campo da segurança pública. A
área está institucionalizada e visível no Diretório de pesquisa do CNPq, nas
agências de fomento em C&T e nos processos de avaliação da CAPES. As
disputas existentes hoje no campo se concentram mais nas denominações
do que nos conteúdos substantivos que têm orientado as pesquisas.
Antes de dar sequência aos avanços havidos, ressalta-se uma questão
neste campo da relação universidade/ segurança pública que poderia ser co-
locada no rol das limitações que confrontamos e refere-se ao risco, concreti-
zado aqui e ali, de que esteja havendo uma mudança na natureza do discurso
de representantes da segurança pública, e mesmo de policiais: este discurso,
cada vez mais próximo e semelhante ao discurso acadêmico, não tem a cor-
respondente modificação das práticas que, ao contrário, parecem ter extrema
dificuldade em se transformarem. Convive-se cada vez mais com práticas dis-
cursivas que falam em mudanças curriculares, em redirecionamento nas polí-
ticas de segurança pública de modo a incluir perspectivas que assumam uma
18 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

maior aproximação polícia/sociedade, em uma filosofia de policiamento que


pense a função policial como serviço e como prevenção mais do que como
repressão. No entanto, não se observam mudanças correspondentes nas prá-
ticas: em múltiplas situações, a atuação policial permanece compatível com
velhas práticas de repressão. É o caso da forma como a polícia tem lidado com
a população em manifestações, sobretudo a partir de 2013, demonstrando
despreparo e incapacidade de articular reações planejadas que mantenham
o policial no controle da situação. Naquelas manifestações testemunhou-se
tanto um tipo de atuação policial violenta, que a mídia fartamente se apressou
em noticiar, quanto outra que se caracterizaria por vezes pela inércia e pela
ausência de atuação e de interferência.
Aí as limitações são evidentes e a universidade é confrontada com
elas: o desafio, então, é a avaliação constante dos conteúdos disponibi-
lizados em seus cursos de formação e gestão, os quais serão tanto mais
efetivos quanto mais tiverem condições de reduzir o gap entre discursos
e práticas. A avaliação é condição sine qua non para o aprimoramento e a
continuidade de toda atividade de produção e de difusão de conhecimento
e não seria diferente neste contexto.
Em que pese esta ressalva que pontua uma limitação nada desprezí-
vel pode-se, ainda assim, ressaltar que essa contribuição do INCT face à
função da universidade é um aspecto importante nesse recente processo de
intercâmbio: tem sido crescente a demanda que chega de governos, de suas
agências, de distintos órgãos vinculados à segurança pública, de ONGs, no
sentido de buscar subsídios da ciência e da tecnologia para o cumprimento
de suas funções no campo da segurança pública. Muitas vezes, resultados
de pesquisas, análises e diagnósticos produzidos pelo campo científico se
constituem em subsídio para que organismos governamentais elaborem seu
planejamento e construam suas políticas. Mais do que isso, foi crescente, no
período observado, o número dos cientistas sociais e pesquisadores chama-
dos a exercer funções de comando e cargos-chave em áreas cruciais da segu-
rança pública, num reconhecimento de que o conhecimento fundamentado
cientificamente, apoiado em trabalho sério de pesquisa, possa ser requisito,
senão suficiente, certamente necessário, para desempenhos cada vez mais
Violência, Polícia, Justiça e Punição 19

eficientes e competentes de uma gestão democrática na área da segurança


pública, aí incluído o sistema de justiça criminal.4
Tais considerações face aos avanços contabilizados pelo grupo apon-
tam a necessidade de pontuar outra ressalva ou limitação: trata-se do ris-
co de a reflexão sociológica se deixar colonizar pelo contexto empírico,
colocando-se a serviço das agências responsáveis pela segurança. Ressalva
que não é, no entanto, sinônimo de um desinteresse pela questão, já que
sensibilidade, para o social é um requisito e uma qualidade da reflexão
sociológica. Nessa trilha, ainda que a sociologia se ocupe da produção de
conhecimento, quando se estreitam as parcerias universidade/ segurança
pública, como tem sido o caso mais recentemente, temos que pensar sobre
possibilidades e limites desta articulação. Ou seja, mesmo que se esteja
longe da faca de dois gumes este avanço confronta os estudiosos com o
desafio de refletir sobre o papel ou função da universidade e, no caso mais
específico, da sociologia em suas interações com as agências de segurança
pública e sobre a natureza destas parcerias.
Tal desafio precisaria ser pensado a partir de duas óticas distintas. A
primeira se refere à própria construção dos objetos de pesquisa; a segunda
se vincula à agenda dos responsáveis pelos processos de elaboração de polí-
ticas públicas vinculadas à justiça e à polícia e voltadas ao enfrentamento da
violência e do crime. É fundamental admitir que são óticas distintas, com
prioridades e objetivos distintos, mesmo que se reconheça o incremento e
a importância nas parcerias público/privado, as quais têm ampliado o de-
bate e o diálogo entre a academia, as agências e órgãos governamentais res-
ponsáveis pela elaboração de políticas. Não apenas resultados de pesquisas,
análises e diagnósticos produzidos pelo campo científico se constituem em
subsídio para que organismos governamentais elaborem seu planejamento
e construam suas políticas: da mesma forma, o trânsito que leva pesquisa-
dores e professores às agências e órgãos de segurança pública, como gestores
ou assessores, foi constante. Avanços e desafios voltam a se tocar, ressal-

4 É cedo ainda prematuro avaliar se essas tendências irão prevalecer ou serão inter-
rompidas nas gestões governamentais federal e estaduais recém iniciadas (2019-2022).
Possivelmente, variações poderão ser identificadas em distintos estados da federação.
20 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

tando a urgência de se ter sempre presente a distinção entre os campos.


Saber separar e distinguir os campos, este é o principal desafio: ainda que
sem abrir mão do olhar sensível e atento para o social, a universidade não
constrói nem seleciona seus objetos de pesquisa com vistas unicamente a
instrumentalizar a atuação da segurança pública.
Sob esse aspecto, permanecem atuais os ensinamentos weberianos so-
bre serem ciência e política duas vocações, com especificidades e objetivos
distintos. Não seria o caso de se retomar a polêmica, falsa em certo sentido,
sobre ser cientista ou político, mas ressalte-se a distinção entre meios e fins
que informa o “fazer” de cada um dos atores: sem pretender exagerar ou
marcar uma posição totalmente estanque seria possível considerar-se que
o cientista busca prioritariamente o conhecimento; o político, o convenci-
mento; os atores da segurança pública, a ação. Os resultados do processo de
produção do conhecimento não podem ter como critério único para jul-
gamento de sua pertinência, os bons ou maus resultados das políticas que
de algum modo inspiraram, assim como a sociologia não está em questão
caso os pesquisadores e especialistas ocupantes das burocracias e agências
da área não obtenham sucesso (seja lá o que isso possa significar) ou forem
mal avaliados em suas participações na política.
Ainda em relação à questão dos objetos de pesquisa e guardando as es-
pecificidades entre meios e fins: mesmo que não seja função da universidade
formular políticas, produzir estatísticas, fazer ou gerenciar banco de dados, ta-
refas que cabem aos governos em seus distintos níveis e instâncias, este INCT
poderia se colocar como desafio oferecer ou evidenciar conteúdos e parâme-
tros que possibilitem a maior homogeneização de informações consideradas
chave, as quais poderão subsidiar a construção, pelas agências oficiais, de um
banco de dados que permita estudos comparativos, a partir de séries históri-
cas consistentes, nos níveis federal, estadual e municipal mesmo se guardadas
as especificidades regionais e locais. A intenção não é pleitear uma sociologia
asséptica, mas tão somente chamar a atenção para a clareza quanto ao lugar da
ciência e para a responsabilidade social do cientista.
Entretanto, em que pesem as diferenças e as possíveis tensões entre a
instância acadêmica e aquela voltada às políticas de segurança pública, é
Violência, Polícia, Justiça e Punição 21

possível concordar com Adorno (2010, p. 13), para quem “um amistoso di-
álogo foi sendo construído entre pesquisadores e autoridades encarregadas
de formular e executar políticas de segurança pública, amenizando as tradi-
cionais desconfianças entre a universidade e os agentes da ordem, em espe-
cial policiais”. Mas amenizar não é sinônimo de eliminar e aí todo cuidado é
pouco. Ainda assim, poder-se-ia dizer, sem intenção de trocadilhos, que um
“desarmamento” mútuo decorrente do avanço do conhecimento, poderia
propiciar mais confiança entre os segmentos e, mais particularmente, aos
pesquisadores, caso se inteirem do seu lugar de fala, dos limites e das poten-
cialidades que este lugar contém.
Um pouco mais complexa, e por vezes ambígua e/ou tensa é a questão
da relação com a mídia, em sua condição de formadora de opinião. Essa
relação pode ser computada ao mesmo tempo como um avanço e como
um desafio. O avanço decorre da visibilidade que as pesquisas e os grupos
de pesquisa passam a ter junto ao grande público, contribuindo para que
setores da sociedade, que tem na mídia, sobretudo a televisiva, sua fonte
maior de informação, possam se inteirar, mesmo que superficialmente, do
trabalho que fazem as instituições de produção do conhecimento. Com as
ressalvas que a frase comporta, é como se abríssemos um pouco nossos la-
boratórios à sociedade e nos tornássemos um pouco mais próximos dela.
Do ponto de vista da própria mídia, parece haver algum reconhecimento
pelos órgãos de comunicação da relevância de apoiar suas afirmações e nar-
rativas na construção dos “especialistas”, que é como constamos nos créditos
dos finais das matérias. O convite para participação costuma vir qualificado:
estamos fazendo uma matéria x ou y e precisamos da “opinião” de um es-
pecialista. Atentem para os vocábulos – precisamos, opinião e especialistas.
Ou seja, a fala do “especialista” no corpo da matéria legitima os conteúdos
midiáticos. Especialista vem entre aspas neste texto para realçar que o sentido
do vocábulo foi se perdendo à proporção em que se tornou intensamente uti-
lizado, sobretudo para legitimar vozes e perspectivas alheias às inquietações
acadêmicas. Ou seja, conhecimento e interesse caminham juntos. E é aí que os
avanços têm necessariamente que ser vistos com um pé atrás; aí sim, todo cui-
dado é pouco. Também aqui se trata de ter clareza dos objetivos acadêmicos,
22 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

da responsabilidade social do sociólogo quando ocupa esses espaços midiáti-


cos e de como a academia pode ser usada como canal de legitimação de pers-
pectivas, propostas, políticas ou filosofia de atuação de redes de comunicação.
A mídia constrói, reconstrói e seleciona os fatos que chegam até a so-
ciedade na condição de notícia. Poucos deixarão de admitir que ela, em suas
diferentes facetas, mas com claro predomínio dos meios televisivos, tem pro-
tagonizado de modo crescente a função pragmática de “explicar o mundo” e
“fabricar” muitos dos sentidos que consumimos sob a forma de notícia, en-
tendida como mercadoria. Focando, por exemplo, nos conteúdos pesquisados
no âmbito do INCT – tal como crime, violência, homicídio – observa-se que
eles são apresentados como fatos da realidade, já dados. Interpretados e cons-
truídos como notícia no mercado da informação, esses conteúdos possuem
enorme poder de venda: transformados em objetos de consumo e sem distin-
ção acerca de suas múltiplas manifestações passam a fazer parte do dia a dia
até mesmo daqueles que nunca os confrontaram diretamente. Para Patrick
Champagne (1993), a mídia não apenas apresenta, mas também representa a
realidade da qual trata. Aqui não se trata de julgamento de valor, mas de uma
constatação. Assim, se a realidade é midiaticamente construída, apresentada,
representada por meio de narrativas e imagens de guerra, criminalidade, vio-
lência, tais construções podem ter efeitos sobre as formas como a população
vai orientar suas condutas, para fazer face ao contexto representado. Da mes-
ma forma, tais representações podem “pautar” o conteúdo das políticas públi-
cas, centrado, por exemplo, em práticas repressivas se vierem como resposta a
acusações de ineficiência e ineficácia.
Por outro lado, ao assumir o desafio de entender como a mídia processa
e entrega ao público determinados conteúdos, como os de que se ocupam
este INCT, a sociologia não pretende divinizá-la ou demonizá-la, mas cons-
tituir o binômio mídia/fatos de violência e criminalidade como objetos de
análise, levando em conta sua turbulenta interdependência e os desdobra-
mentos daí decorrentes. Exemplo de tal turbulência, na atualidade é cada
vez mais comum se encontrar nos espaços midiáticos policiais na condi-
ção de “especialistas” e comentadores dos fatos da violência e jornalistas
acompanhando e, por vezes, pautando operações policiais e estabelecendo
Violência, Polícia, Justiça e Punição 23

cumplicidades com os policiais para conseguirem o furo de reportagem.


Mas falar em cumplicidade não é assumir que mídia e polícia partilhem o
melhor dos mundos: pelo contrário, é complexa, porque tensa e contraditó-
ria, consensual e cúmplice a natureza dessas relações. Na prática, cada um
dos polos desse binômio constrói a realidade social por meio de sentidos e
de narrativas que representam, por exemplo, a “realidade” da violência e a
violência como realidade, segundo interesses que nem sempre se equiva-
lem porque obedecem a formações discursivas diferentes. Colocadas face
a face, a mídia e a segurança pública têm afinidades, mas também muito se
estranham (Porto, 2009). Encontrar parâmetros e paradigmas para situar
este emaranhado de tensões, de idas e vindas, aproximações e escaramuças
que constituem quase sempre tais relações, entender de que maneira os mí-
dia produzem sentido sobre o atual momento é um desafio, e certamente
não dos menores, que os núcleos e laboratórios de pesquisa que constituem
este INCT ainda confrontam. Na condição de ciência a sociologia é tam-
bém produtora de sentidos. Daí que seria relevante entender de que modo a
mídia se apropria destes sentidos. Um desdobramento ou efeito desta com-
preensão seria o desafio de tomar a decisão de aceitar ou recusar, de forma
momentânea ou definitiva, a participação em emissões ou reportagens de
tal ou qual agência ou canal de comunicação, a depender dos conteúdos e
do potencial de manipulação implícito no convite para dado programa ou
jornal. Sabedoria e bom senso, ou senso de oportunidade seriam, sob esse
aspecto, boas companhias. A votação sobre a mudança na maioridade penal
tem sido um exemplo por excelência, nesta direção. As mudanças na legis-
lação sobre desarmamento também.
Assim, a maior visibilidade adquirida pelas pesquisas ao longo destes
anos de construção institucional do INCT representa avanços, mas tem
também seus lados perversos.
Um deles é esta instrumentalização/legitimação de que podem ser ví-
timas os especialistas menos avisados. Outro, é o fato de a mídia promover,
não necessariamente sozinha nem de modo consciente, a intensa politiza-
ção e espetacularização da violência, o que acaba por produzir uma overdo-
se de informação sobre crime, polícia e prisão e a levar a representações de
24 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

um contexto de crise permanente. Essa situação, por sua vez, potencializa


o medo e a sensação de insegurança, cuja contrapartida é a demanda por
mais repressão e, como desdobramento, a busca por auto proteção e por
segurança privada. Desmistificar este clima de guerra e esta sensação de que
voltamos à barbárie é parte dos desafios que vão se colocar os pesquisadores
do campo da segurança pública, cujos desdobramentos não se tem condi-
ções de aprofundar no âmbito deste texto.
Os itens apresentados até agora remetem à questão e desafio central
de como pensar a atuação e a função policial no contexto das sociedades
democráticas, nas quais o binômio lei/ ordem teria que ser equacionado na
estrita observância dos direitos humanos. Essa discussão repõe a questão
dos limites a partir dos quais se pode falar em legitimidade quando se fala
da atuação policial, enquanto detentora da prerrogativa do uso da força.
Como outro avanço da pesquisa, os dados levam a problematizar pos-
síveis determinantes causais (para além da ausência de normas de conduta e
códigos de deontologia capazes de estruturar a prática, já detectados) para a
inexistência da ideia de profissão (e os efeitos daí decorrentes) para a prática
policial. É relevante lembrar que da perspectiva weberiana (Weber, 1991)
mérito, especialização de funções, impessoalidade versus critérios centrados
em favoritismo e interesses pessoais, são requisitos centrais à construção de
uma dada atividade como profissão. A ausência de identidade profissional
responde, ao que parece, pela fragmentação e pela heterogeneidade das for-
mas de atuação policial, não apenas no conjunto das polícias no âmbito da
federação, mas também internamente: no espaço de uma única unidade da
federação, dentro de uma mesma corporação, de um destacamento a outro.
O elenco de prioridades que se colocou o INCT representa, a um só
tempo, avanços, limitações e possibilidades. Se alguns desses aspectos já
estão devidamente trabalhados e analisados pelo curso das investigações,
outros se situam no horizonte de conteúdos que demandam ainda maior
aprofundamento e investimento apontando para uma agenda em aberto de
pesquisa, com desdobramentos a serem contemplados na continuidade des-
ta rede de instituições e pesquisadores.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 25

Referências bibliográficas
ADORNO, Sérgio. “Prefácio”. In: PORTO, Maria Stela Grossi. A violência: do
conceito às Representações Sociais. Brasília: Ed. Francis/Verbena, 2010.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
CHAMPAGNE, Patrick. “La Vision Médiatique”. In: BOURDIEU, Pierre. La
misère du monde. Paris: Seuil, 1993.
PORTO, Maria Stela Grossi. “Mídia, segurança pública e representações so-
ciais”. Tempo Social – Revista de Sociologia da Universidade de São Paulo,
São Paulo, nº 2, vol. 1, nov. 2009.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 1991. Vol.1.
PARTE I
A DINÂMICA DA VIOLÊNCIA
Estudos sobre homicídios no âmbito
do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia – Violência, Democracia e
Segurança Cidadã: uma análise crítica

Edinilsa Ramos de Souza, Adalgisa Peixoto Ribeiro, Kathie Njaine,


Maria Cecília de Souza Minayo1 e Tauanne Nascimento Santos2

Introdução
Este capítulo tem como objetivo sistematizar a produção científica
sobre o tema dos homicídios, realizada por pesquisadores no âmbito Vio-
lência, Democracia e Segurança Cidadã do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia (INCT), no período de 2008 a 2013. Este INCT esteve composto
pelo Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-
-USP), que o coordenou; pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito
e Violência Urbana (NECVU) da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania (NEVC) da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul, Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP),
Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (NEVIS) da Universidade
de Brasília, Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli
(CLAVES) da Fundação Oswaldo Cruz, e pelo Laboratório de Estudos da
Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará.

1 Pesquisadoras do Departamento de Estudos sobre Violência


e Saúde Jorge Careli (CLAVES), da Escola Nacional de Saúde Públi-
ca Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.
2 Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
30 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

O homicídio, indicador universal do nível de violência social, é defini-


do pelo setor da Saúde como morte por agressão independentemente de sua
tipificação legal e é responsável por elevados índices de mortalidade da po-
pulação mundial. Como ocorre com todas as mortes por causas violentas, os
homicídios se distribuem de forma heterogênea entre regiões e continentes.
A América Latina concentra as mais elevadas taxas de mortalidade por essa
causa (19,9/100.000 habitantes), vindo a seguir, o Caribe (16,3/100.000), a
África (10,1/100.000), a América do Norte (5,6/100.000 habitantes) e em úl-
timo lugar, a Europa (1,2/100.000) (UNODC, 2011; WHO, 2002; Krug et al.,
2002). Na América Latina, o perfil epidemiológico das vítimas de homicídio
e dos agressores é, em geral, de pessoas jovens, do sexo masculino, negras ou
pardas, pertencentes aos estratos sociais mais desfavorecidos e com baixo
nível de escolaridade.
Para realizar esta sistematização foram coletados artigos, livros e capítu-
los de livros publicados nacional e internacionalmente, a partir dos estudos
e pesquisas feitas no Brasil e parceiros da América Latina e Estados Unidos
da América, no período de vigência do referido INCT. Ela permite integrar
os estudos acerca dos homicídios desenvolvidos por este INCT e possibi-
lita verificar as contribuições dos membros do Instituto para o avanço do
conhecimento sobre o tema, bem como apontar as lacunas ainda presentes
que possam nortear a organização de novas pesquisas. Trata-se também de
uma oportunidade ímpar de promover o conhecimento dos métodos e das
técnicas utilizadas pelos diferentes Centros de Pesquisa do INCT na abor-
dagem de seus objetos.

Metodologia
Efetuou-se a sistematização do conjunto de publicações sobre homicí-
dio, realizadas por pesquisadores do INCT Violência, Democracia e Segu-
rança Cidadã, no período de 2008 a 2013.
A busca dessa produção bibliográfica inicialmente foi feita a partir das
informações contidas nos relatórios de atividades desse INCT. Para compor
o universo de publicações foram considerados os artigos, capítulos de li-
vro e livros em cujos títulos ou resumos constassem os termos “homicídio”,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 31

“mortes violentas” e “assassinato”. Do total das 608 referências informadas


no relatório final do INCT, identificaram-se 44 textos que se referiam aos
termos pesquisados. Desse acervo, foram excluídos 19: um relatório, 11 tra-
balhos apresentados em congressos nacionais e internacionais, dois artigos
e cinco capítulos de livro. Os critérios dessa exclusão foram: em primeiro
lugar, textos que não se referiam aos termos pesquisados como estudos de
matadores, violência interpessoal sem explicitar o tipo e criminalidade em
geral; em segundo lugar, resumos apresentados em congressos e relatórios
de pesquisa que constituem parte do processo de investigação, mas não dos
produtos. Após a limpeza do banco de documentos, restaram 25 que trata-
vam especificamente do tema em foco.
Como etapa complementar à busca anterior foi realizada uma pesquisa
nos currículos lattes dos autores cuja produção já havia sido identificada e
de seus parceiros de autoria. Dessa forma foram localizadas mais 15 pro-
duções bibliográficas que atendiam aos critérios de inclusão. O acesso aos
textos publicados em revistas não disponíveis online, foi obtido por meio de
solicitação aos autores.
O acervo que compõe o presente estudo, portanto, totalizou 40 traba-
lhos, dos quais 24 são artigos publicados em periódicos nacionais e inter-
nacionais; 15 são capítulos de livro divulgados no Brasil e em outros paí-
ses e um livro publicado no país. Buscou-se contemplar uma abordagem
quantitativa com frequências absolutas e relativas da produção, segundo o
tipo (livro, capítulo, artigo), país e ano de publicação, área do conhecimento,
área de abrangência do estudo (país, capital, área de fronteira, interior, entre
outros), ator social enfocado (população em geral, família, jovens, homens,
mulheres, adolescentes, e outros) e algumas variáveis transversais como
sexo, gênero, raça/cor/etnia, estrato ou classe social, saúde mental, interse-
torialidade, políticas públicas e direitos humanos. Para os artigos científicos,
além das informações anteriores, verificou-se o periódico da publicação.
Simultaneamente, foi realizada uma análise qualitativa dessa produção, na
qual se buscou explicitar os referenciais teórico-conceituais, os principais
resultados e discussões, os avanços e as lacunas no conhecimento acerca da
temática em pauta e as recomendações efetuadas pelos autores. Comple-
32 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

mentarmente, procurou-se identificar como esses estudiosos se articularam


em relação à produção sobre homicídios, no âmbito e período de vigência
do INCT Violência, Democracia e Segurança Cidadã, visando a conhecer
as interações entre os grupos de pesquisa que o constituem e desses com
outros investigadores.

Resultados
Observa-se no acervo analisado uma predominância de publicações no
ano de 2012, que concentrou 35% dos trabalhos, conforme o gráfico 1. Nos
anos de 2008, 2009, 2012 e 2013 preponderou a publicação de artigos em
relação aos demais tipos de obras.

Gráfico 1. Produção bibliográfica do INCT Violência, Democracia e Segurança


Cidadã, segundo tipo, no período de 2008-2013 (N=40)

A grande maioria dos trabalhos foi publicada em periódicos e editoras


nacionais (85%). Entre os 24 artigos do acervo analisado, apenas cinco são
publicações internacionais (gráfico 2).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 33

Gráfico 2. Produção bibliográfica do INCT Violência, Democracia e Segurança


Cidadã, no período de 2008-2013, segundo tipo e país de publicação

Dos 40 documentos analisados, 40% abrangeram dados ou informa-


ções locais municipais, 12,5% focalizaram Unidades da Federação, 35% o
país, e os demais foram estudos em áreas de fronteira do Brasil e em países
da América Latina. Em três trabalhos, essa variável não se aplicou por se
tratarem de ensaios.
O gráfico 3 mostra que a Saúde Pública/Saúde Coletiva e a Epidemio-
logia constituem o campo de conhecimento da maioria dos trabalhos e,
juntamente com as áreas do Direito, Justiça e Sociologia, perfazem 85% de
toda a produção analisada. Aparecem, em pequeno número, publicações
das áreas de Planejamento e Políticas Públicas, de Segurança Pública, de
Demografia e de Psicologia.
34 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Gráfico 3. Produção bibliográfica do INCT Violência, Democracia e Segurança


Cidadã, no período de 2008-2013, segundo áreas disciplinares (N=40)

Os atores sociais focalizados nos estudos foram prioritariamente a po-


pulação geral (20 artigos, 14 capítulos de livro e um livro). Apesar de os ho-
micídios afetarem sobremaneira os jovens, esse grupo foi privilegiado por
apenas 10% dos trabalhos analisados. Alguns autores utilizaram o conceito
de “vulnerabilidade” como uma abordagem teórica para explicar a vitimiza-
ção dos jovens pela violência fatal (Ruotti, Massa, Peres, 2011; Lima, Brito,
2011). Entretanto, Salla e Malvasi (2013) fazem uma crítica a esse conceito,
entendendo que ele pode contribuir para rotular esse grupo etário e os es-
paços sociais mais empobrecidos onde vivem e circulam.
Foram também apresentadas análises da mortalidade de jovens por
agressão no Brasil (Souza et al., 2012) e nas cidades de fronteira (Salla e
Malvasi, 2013). Zilli e Vargas (2013) discutiram o descompasso entre os
crescentes indicadores de homicídios desse grupo etário, a complexidade
do fenômeno e as respostas legais, burocratizadas, cartoriais e descontínuas
do sistema de justiça criminal.
Apenas um capítulo de livro se dedicou a estudar os homicídios de mu-
lheres, ressaltando como os operadores do direito atuam na reprodução dos
estereótipos de gênero (Fachinetto, 2011).
A análise da articulação entre os grupos de pesquisa mostrou que, dos
40 trabalhos, 26 (65%) possuem vários autores e 14 (35%) são de autoria
isolada. Entre as 26 publicações com diversos autores, 14 são de um mesmo
Violência, Polícia, Justiça e Punição 35

núcleo e 12 foram escritos em conjunto por pesquisadores pertencentes a


diferentes grupos do INCT e desses com outros centros de pesquisa. Dos
26 trabalhos produzidos em coautoria, o CLAVES se destacou com 11 pu-
blicações, seguido pelo NEV com nove; o NECVU com três; o Fórum de
Segurança Pública com duas e o NEVC com uma publicação. É interessante
notar que, em 30% dos textos analisados, houve uma interação entre os gru-
pos de pesquisa do INCT para a produção conjunta sobre o tema e, além
disso, foram incluídos pesquisadores externos.
Foi analisado se os trabalhos consideraram de forma transversal algumas
variáveis. Das 40 publicações, sete realizaram análises com a variável sexo e
oito discutiram questões de gênero. A raça/cor da pele apareceu em apenas
cinco textos e o estrato/classe social foi uma questão incluída em 19 estudos.
A intersetorialidade, fundamental na abordagem de um problema complexo
como o homicídio, foi abordada de alguma forma em apenas cinco textos. No
entanto, o tema políticas públicas e direitos humanos esteve presente em 21
publicações. Apenas dois estudos abordaram questões de saúde mental.
Foram identificados dois grandes grupos de abordagem do tema: tex-
tos com enfoque epidemiológico e textos sociológicos e de cunho compreen-
sivo e crítico.
A seguir apresenta-se uma síntese dos trabalhos sistematizados por
grupos de abordagem em ordem cronológica de publicação.

Grupo de textos com enfoque epidemiológico


Neste grupo foram incluídas 19 publicações, que apresentam análises de
tendências temporais, espaciais e territoriais. Alguns trabalhos são descriti-
vos, enquanto outros realizam análises dos prováveis fatores explicativos.
Zunino, Souza e Lauritzem (2008) analisaram números, percentuais,
taxas brutas e ajustadas desses óbitos no Brasil e na Argentina, segundo
sexo, e usaram ainda alguns indicadores sociais passíveis de serem compa-
rados. Os autores ressaltaram no Brasil, a importância da violência social;
a desigualdade de renda e a exclusão social; o aumento e o fortalecimento
de grupos armados (narcotráfico, milícia e polícia); a expansão de ativida-
des ilegais e do contrabando de mercadorias e armas como fatores associa-
36 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

dos aos homicídios. Na Argentina, destacaram o crescimento da violência


social como consequência da deterioração socioeconômica e dos aparatos
institucionais de controle da violência. Ainda nesse país foram analisados o
aumento do desemprego e da pobreza resultantes de políticas neoliberais,
a debilidade das organizações laborais e a queda dos salários. Os autores
consideraram indispensável que sejam realizados estudos em nível munici-
pal para explicar melhor as diferenças regionais. Também assinalaram um
ponto importante para o Brasil: a diminuição das taxas de homicídio, o que
coincide com uma discreta melhora dos níveis de desigualdade social e com
fortes campanhas a favor do desarmamento.
O trabalho de Cardia (2008) buscou explicar as diferenças nas taxas e a
redução dos óbitos por homicídio no município de São Paulo. Mostrou que
a tendência de ocorrência desses agravos se consolidou ao longo dos últi-
mos 25 anos, apresentando maior risco nos pontos mais extremos da cidade
nas Zonas Sul, Leste e Norte. O risco se expandiu das áreas centrais para as
fronteiras dentro do que a autora chamou de “modelo de contaminação pro-
gressiva”. Assim, sua hipótese é que a diminuição das mortes por homicídio
deveria ocorrer em sentido inverso. Nas áreas mais centrais há maior hete-
rogeneidade das causas dos homicídios e nas periferias eles se concentram
em locais de ocupação irregular e pouca presença dos poderes públicos para
intervir na solução de problemas e conflitos. Existem, assim, diferenças de
riscos e de causas no espaço sociogeográfico analisado.
Peres et al. (2008) estudaram a associação entre violência policial e co-
eficientes de mortalidade por homicídio, considerando o efeito de variáveis
contextuais no município de São Paulo. Por meio de um estudo ecológico de
corte transversal, análise de regressão linear simples e múltipla, trabalharam
para o ano 2000. Encontraram associação forte e significativa entre os coe-
ficientes de mortalidade por homicídio, violência policial e todos os indica-
dores sociodemográficos e de acesso a bens e serviços como renda, saúde,
educação e habitação. Concluem que a ação policial centrada na violação
de direitos humanos, em lugar de diminuir as taxas de violência tendem a
contribuir para sua elevação.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 37

O texto Homicides in Brazil: evolution and impacts de Souza, Lima e


Bezerra (2010) analisou a evolução e os impactos dos homicídios no Brasil
de 1980 a 2006. Comparou a situação brasileira com a de outros países e
aborda políticas públicas como a campanha do desarmamento ao analisar
o uso das armas de fogo como meio mais usado para a produção dessas
mortes. Os autores destacaram a implicação das mortes na juventude e as
diferenciações por gênero e raça/cor em relação à mortalidade por homi-
cídios, mostrando a tendência de maior concentração dos óbitos entre os
jovens pardos. Associaram também a escolaridade e o Índice de Desenvolvi-
mento Humano (IDH) por região apontando as diferenças macrorregionais
e sociais que os homicídios expressam. O texto ressaltou que os impactos
dos homicídios ocorrem nas esferas individual e coletiva. Do ponto de vista
subjetivo geram sentimentos de insegurança, medo, impotência, problemas
psicossomáticos, ataques de pânico, depressão e outros distúrbios mentais.
Algumas situações tendem a estimular reações e comportamentos violen-
tos. Também há impactos nas áreas econômicas, de assistência social e na
operacionalização de políticas públicas, indicando que as consequências
dos homicídios são complexas, gerando perdas em vários âmbitos. As estra-
tégias de intervenção precisam envolver vários setores da sociedade e diver-
sas áreas de conhecimento.
Por meio da metodologia das cartografias sociais que permitem orga-
nizar e hierarquizar os fenômenos sociais e suas múltiplas relações, Santos
e Russo (2010) mapearam a cidade de Porto Alegre como espaço urbano
complexo, diferenciado, tanto para o crescimento da violência como para
expansão da cidadania. Usaram mapas com números absolutos e taxas com
o objetivo de minimizar possíveis distorções do estudo. O trabalho introdu-
ziu uma análise dos homicídios nas outras regiões do Brasil, capitais, áreas
metropolitanas e municípios com mais de 500 mil habitantes e estabeleceu
uma comparação entre a região Sul e a capital analisada. O estudo concluiu
que existe uma diferenciação de dimensões socioestruturais e demográficas
quanto à renda e à escolaridade, que se associam às taxas de criminalidade
e violência. A violência também é espacializada segundo tipo de crime e
de ato violento. Comparando-se com os outros estados da região Sul, o Rio
38 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Grande do Sul apresentou uma queda na taxa de mortalidade por homicídio


no período de 2002 a 2006, ficando atrás do estado do Paraná. Alguns pou-
cos bairros de Porto Alegre concentraram os homicídios e nesses sobressaiu
a segregação social.
No artigo publicado em 2011, Peres e colaboradores analisaram a que-
da dos homicídios no município de São Paulo, trabalhando com taxas de
mortalidade por essa causa, indicadores sociodemográficos e áreas de in-
clusão/exclusão social. Os autores consideraram alguns fatores explicati-
vos como: a campanha do desarmamento, embora a queda das taxas tenha
começado antes desta campanha; as novas práticas policiais (policiamento
comunitário, aumento do contingente); a redução da população jovem; as
políticas sociais voltadas para melhorar as condições de vida e a queda do
desemprego; os investimentos em educação e cultura; e as ações específicas
de movimentos sociais. Os autores mostraram que seu estudo não é conclu-
sivo, pois seria necessário aprofundar alguns fatores que vêm atuando de
forma sinérgica do ponto de vista micro e macrossocial, tanto para a coesão
como para a dissuasão da violência.
Reichenheim e colaboradores (2011) em um artigo publicado na revis-
ta The Lancet chamaram atenção para as altas taxas brasileiras de homicídio
(média de 26/100.000) levando-se em conta diferenças regionais e a ten-
dência de aumento nas regiões Nordeste e Sul. Foram destacados os fatores
estruturais como concentração de renda, urbanização acelerada, aumento
da população jovem que geralmente é a que mais mata e mais morre nas
sociedades, alta taxa de desemprego e de informalidade, tráfico de armas e
de drogas, gangues de jovens, violência policial e conflitos de terra. O texto
mostrou os altos custos dos homicídios e das violências do ponto de vista
individual, social e para o setor saúde, a depreciação de espaços urbanos
com a queda dos preços dos imóveis e o crescimento da indústria que ven-
de segurança (alarme, segurança privada, grades). Os autores assinalaram
como o país tem lidado com o excesso de violência (particularmente com
homicídios) por meio da legislação e de planos de enfrentamento, embora
as respostas ainda sejam muito tímidas.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 39

Salla e Alvarez (2012) destacaram que, entre 2000 e 2009, Rondônia


liderou, por seis vezes, o ranking dos sete estados da região Norte em taxas
de homicídio. Comparando-se aos estados brasileiros, Rondônia em 2000
ocupava a 8ª posição e passou para o 4º lugar, de 2001 a 2004 (taxas de 40,4;
41,4, 37,9 e 37/100.000 respectivamente. Nos anos subsequentes houve uma
queda tanto na posição ocupada como nas taxas que, contudo, permane-
ceram muito elevadas. No estudo, o aumento dos homicídios é atribuído
a alguns fatores como processo acelerado de ocupação do solo conjugado
com a expansão da fronteira agrícola, com a abertura de áreas de garim-
po e conflitos agrários particularmente entre donos e posseiros de terra e
indígenas. Rondônia é um dos 11 estados brasileiros que possui faixa de
fronteira. Os 27 municípios fronteiriços do estado apresentaram a maior
taxa média de homicídios de 1997 a 2009 (38,1), se comparados aos demais
municípios e estados de fronteira. Em seguida aparecem os estados de Mato
Grosso do Sul (33,7/100.000) e Roraima, (32,7/100.000 habitantes). Esses
mesmos autores, no 5º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no
Brasil (2012), examinaram os homicídios no estado do Acre, de 2000 a 2009.
Neste trabalho, apresentam dois tipos de mortes emblemáticas por homicí-
dio e violação dos direitos humanos no estado: o assassinato do líder dos
seringueiros, Chico Mendes, em 1988; e os assassinatos cometidos por de-
linquentes ligados ao narcotráfico, no final da década de 1990. No entanto,
nos anos 2000, o estado não apresentou taxas elevadas de homicídio. Mes-
mo pertencendo à faixa de fronteira, é em Rio Branco que os homicídios se
concentram. Em relação às demais Unidades da Federação (UF), o Acre es-
teve entre os menos violentos em 2008, com taxas inferiores às médias para
o Brasil, com exceção da capital. Na região Norte, Acre e Roraima possuem
todos os seus municípios integrantes da faixa de fronteira (150 km da divisa
para o interior). Os autores não discutiram os fatores que diferenciam taxas
relativamente mais baixas de homicídios no Acre do que nos outros estados
da região Norte, nem mesmo o fato de este ser um estado de área fronteiriça,
situação que serviu, para eles, como explicação para a situação de Rondônia.
Em uma análise da mortalidade por arma de fogo na Argentina, de
1990 a 2006, Zunino, Roux e Souza (2012) identificaram as diferenças nos
40 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

percentuais e taxas entre as jurisdições do país. A província de Buenos Aires


apresentou as maiores taxas brutas e ajustadas. As autoras concluem que es-
ses resultados se devem, em parte, à deterioração econômica e social vivida
na Argentina no final do século XX, impactando de forma mais intensa a
província de Buenos Aires que perdeu, nessa crise, seu dinamismo econô-
mico o que foi acompanhado por uma força policial mais repressiva.
Estudo epidemiológico descritivo sobre homicídios na Argentina, Bra-
sil, Colômbia e México, de 1990 a 2007, realizado por Souza e colaboradores
(2012) usou o modelo de regressão linear para análise de tendência desses
eventos. Os dados foram contextualizados por meio de informações socioe-
conômicas e demográficas. Exceto na Argentina, onde os índices são baixos,
os demais países possuem taxas elevadas de homicídios, sobretudo a Co-
lômbia. Mas a evolução das taxas por faixa etária e sexo mostrou-se distinta
nos países analisados. No Brasil, em todos os grupos etários a evolução foi
crescente, passando de 21,2/100.000 em 1990 para 23,1/100.000 em 2007;
enquanto na Colômbia foi decrescente, passando de 68,8 em 1990 para 38,6
em 2007. No México as taxas se apresentaram instáveis, mas com tendência
de crescimento no período analisado. Na Argentina os índices cresceram le-
vemente em 1996, aumentaram mais nos primeiros anos da década de 2000
e em seguida mostraram tendência de volta ao nível tradicional (entre 4,2 e
4,3/100.000). Os autores chamaram atenção para o fato de que nesses quatro
países houve 1.432.971 homicídios e 4.086.216 mortes por causas violentas
no período. Grande parte desses óbitos é de jovens do sexo masculino, das
classes populares e moradores das periferias urbanas. Os autores ressalta-
ram a necessidade de políticas sociais de educação, de formação profissional
e de cultura inclusivas, que ampliem e consolidem a democracia e os direi-
tos humanos da população como um todo, mas que priorizem os jovens.
Estudo de Peres (2012) apresentou um panorama geral das mortes por
homicídios no Brasil, descrevendo as principais tendências na década de
2000 a 2010. Mostrou uma queda nas taxas entre 2003 e 2007 e um cresci-
mento a partir de 2009, voltando-se ao patamar do início da série. Segundo
a autora, esse nível de “estabilidade” se deve à diversidade de tendências
no contexto nacional, com fortes reduções em alguns Estados e importante
Violência, Polícia, Justiça e Punição 41

crescimento em outros com ênfase no Espírito Santo, Alagoas e Bahia. Des-


tacou a queda acentuada dos homicídios em São Paulo (62%) no período,
atribuindo-a às mudanças na qualidade de vida e nos indicadores socioe-
conômicos, maior investimento em políticas públicas, mudanças demográ-
ficas com diminuição da população jovem, redução do acesso às armas de
fogo, maior investimento em segurança pública, aumento na taxa de encar-
ceramento, ação de organizações não governamentais e maior organização
de grupos criminosos que estariam atuando na mediação dos conflitos lo-
cais com impacto na redução das mortes violentas.
Souza, Ribeiro e Valadares (2012) analisaram a mortalidade por homi-
cídio no Brasil de 2000 a 2009. O estudo apontou que houve um incremento
das taxas de 1,6% quando se compara o primeiro com o último ano da série.
A única região que não apresentou crescimento nas taxas foi a Sudeste que,
ao contrário, as reduziu em 40,4%. Olhando-se por Estados dessa região,
São Paulo teve uma queda de 62,31%, o Rio de Janeiro, 32,55% e apenas o
Espírito Santo cresceu (19,43%). As autoras destacaram que a fidedignidade
das taxas é influenciada por fatores diversos, como o esclarecimento ade-
quado da causa básica do óbito, o que compromete as análises. Ressaltaram
que, embora os registros sobre mortalidade violenta tenham melhorado no
país, vários fatores limitam o esclarecimento dos homicídios. Dentre eles,
a atuação distinta das várias áreas envolvidas como saúde, polícia e justiça,
que utilizam diferentes conceitos e não registram adequadamente as infor-
mações em seus formulários. Por exemplo, o que para a saúde é a causa
básica do óbito, para a polícia e a justiça é a causa jurídica. Além do fato de
os Institutos Médico Legais funcionarem de forma precária no país e inexis-
tirem em várias localidades. As autoras focaram as conclusões de seu texto
sobre problemas de informação, ressaltando que no Brasil há pouca consci-
ência da importância dos dados para planejamento de ações preventivas e
para a consolidação da cidadania.
Outro estudo de Souza e colaboradores (2012) realizou uma análise epi-
demiológica da mortalidade, internação e atendimento de urgência e emer-
gência por agressão, e discutiu fatores que vulnerabilizam homens jovens e
aumentam o risco vitimização por violência. O foco do artigo foi o grupo
42 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

etário de 15 a 29, além de balizá-lo com outras variáveis referentes às vítimas,


aos agressores e ao evento. Os autores destacaram o predomínio do sexo mas-
culino em relação ao feminino na mortalidade (11,6 homens para 1 mulher)
nas internações (4,5:1), e 2,8:1 nos atendimentos de emergência. Em 2007,
a taxa de mortalidade de jovens na referida faixa de idade foi de 98/100.000
habitantes. Ressaltaram questões socioculturais e socioespaciais como fato-
res que contribuem para a maior vitimização dos negros, dos que têm baixa
escolaridade, e vivem nas periferias das grandes cidades. Em seguida, apro-
fundaram o peso da aculturação dos jovens do sexo masculino, como a hi-
permasculinidade associada a traços como supervalorização da virilidade, da
agressividade, do risco e do perigo, naturalização da dominação sobre mulhe-
res e crianças, como forte componente das agressões que levam os jovens a
matarem mais e a morrerem mais que qualquer outro grupo etário.
O artigo de Batista e colaboradores (2012) buscou identificar padrões
espaciais e temporais na ocorrência de homicídios dolosos no município de
São Paulo e discutir o valor analítico deste tipo de estudo para compreender
a dinâmica e os fatores associados a tais eventos. Foram estudados todos os
homicídios dolosos entre 2000 e 2008. Os resultados indicaram não haver
tendência homogênea e sistemática do comportamento dos homicídios no
período. Mas identificaram-se sete padrões de distribuição espacial desses
eventos na capital: setor censitário com altas taxas de homicídios dolosos
em vizinhanças com altas taxas, mas nenhuma ocorrência no período; com
altas taxas em vizinhança também com altas taxas; com nenhum homicídio
doloso registrado no período em estudo; com baixas taxas numa vizinhança
com baixas taxas; com baixas taxas em vizinhança com altas taxas; com altas
taxas em uma vizinhança com baixas taxas; e setores que não repetiram exa-
tamente o mesmo padrão pelo menos em cinco dos nove anos observados.
Os autores ressaltaram que existem fatores socioeconômicos, estruturais,
demográficos, sociais, dentre outros, invariavelmente associados com altas
taxas de homicídios dolosos.
Estudo epidemiológico descritivo sobre a mortalidade por armas de fogo
na Argentina foi feito por Zunino e Souza (2012). As autoras usaram técnicas
de níveis múltiplos e o efeito do tempo para analisar a ocorrência de homi-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 43

cídios por esse meio. No período houve 358.484 óbitos por causas externas,
e 16,6% (59.339) se efetuaram por armas de fogo. O risco de morrer por esse
meio foi superior entre homens jovens e o aumento da idade esteve associado
a menores riscos. O efeito da idade foi maior nas áreas urbanas e no quadriê-
nio de 1999 a 2002. Houve influência significativa do grau de urbanização no
risco de morrer por homicídio por arma de fogo e as autoras também associa-
ram essa tendência com a deterioração socioeconômica vivida pela população
argentina e ao fato de na Província de Buenos Aires, onde se concentram as
maiores taxas dessas mortes, haver forças policiais mais repressivas.
Outro artigo de Peres e colaboradores (2012) analisou a associação en-
tre homicídios e indicadores de segurança pública, após controle para taxa
de desemprego e proporção de jovens na população, entre 1996 e 2008, na
capital paulista. A análise univariada indicou associação entre homicídio
e taxa de aprisionamento-encarceramento e entre homicídios e atividade
policial. O método de regressão para analisar o papel dos indicadores de
segurança pública permitiu discutir três das hipóteses explicativas para a
redução das taxas de homicídio em São Paulo: investimento em ações de
segurança pública; mudanças socioeconômicas com melhoria da qualidade
de vida e alterações demográficas com redução da proporção de jovens na
população municipal. Os autores concluíram que as ações da área da segu-
rança pública não se mostraram tão importantes para explicar a redução
dos níveis de homicídio. Os achados reforçam a relevância dos fatores so-
cioeconômicos e demográficos.
Silva, Valadares e Souza (2013) buscaram compreender os homicídios,
por meio de uma abordagem sistêmica complexa, aplicando um modelo
ecológico, que considera as condições individuais e relacionais dos sujeitos
e do contexto. Trabalharam com dois estudos de caso e triangularam dados
quantitativos (taxas e indicadores de 1980 a 2007) e qualitativos (entrevistas
individuais e em grupo). Concluíram que os homicídios combinam sobre-
posições de vulnerabilidades econômicas e sociais, precariedades e ruptura
de vínculos na dimensão individual (baixa escolaridade, privação de acesso
a educação, desemprego, desestruturação de laços familiares e sociais que
levam a viver na rua com ausência de políticas que impeçam novas exclu-
44 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

sões) e social (grupos organizados do tráfico, posse ilegal e tráfico de armas,


política de segurança repressiva, vulnerabilidade social das famílias, padrões
culturais patriarcais e machistas, modelos de masculinidade definindo vio-
lências de gênero, questões étnicas discriminatórias e modos de organização
do trabalho). As autoras ressaltaram a importância do modelo ecológico
para a compreensão da dinâmica dos homicídios, uma vez que, por meio
dele, é possível articular condições individuais, relacionais, comunitárias e
sociais que se interpenetram. O limite do modelo é a impossibilidade de
generalização dos dados. As autoras também concluíram que, dada a mul-
tifatorialidade do fenômeno do homicídio, as ações de prevenção precisam
ser inclusivas, intersetoriais e interdisciplinares.
Salla e Malvasi (2013) analisaram os homicídios de adolescentes nos
municípios da faixa de fronteira do Brasil, de 2000 a 2010, mostrando que,
nesse período, dos 225 locais fronteiriços 43,4% não tiveram óbito na popu-
lação de 15 a 19 anos por essa causa. Os autores focalizaram quatro dos 20
municípios que apresentavam as maiores taxas de morte por essa causa no
país e argumentaram que as ocorrências desses óbitos estavam associadas
de modo mais ou menos intensas com atividades e mercados ilegais e com
as ações de repressão a esses mercados. Nesse contexto, o pressuposto dos
autores foi de que a participação de adolescentes em organizações crimi-
nosas é estratégica para os adultos que controlam essas atividades, uma vez
que eles não são passíveis de penas severas. O estudo discutiu o uso acrítico
da noção de vulnerabilidade e aplicação desse conceito que tende a aumen-
tar a percepção preconceituosa em relação aos mais pobres. Para os autores
essa noção precisaria ser problematizada para não se fazer uma associação
automática entre vulnerabilidade, pobreza, crime e violência. O estudo nas
quatro cidades de fronteira (Foz do Iguaçu e Guaíra no Paraná, Coronel
Sapucaia no Mato Grosso do Sul e Chupinguaia em Rondônia) apontou a
necessidade de aprofundamento qualitativo para se conhecer melhor as di-
nâmicas dos homicídios, pois no período analisado, algumas delas tiveram
taxas menores do que a média nacional.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 45

Grupo de textos sociológicos e de cunho compreensivo e crítico


Este grupo de estudos reuniu 21 publicações que buscaram aprofundar
os diferentes temas que envolvem e contextualizam os homicídios e o apa-
rato policial-legal que trata dos inquéritos, denúncias, atribuição de penas e
punições e configura o sistema penal.
No conjunto destes documentos Silva (2008) buscou identificar as ca-
racterísticas relacionadas aos diversos tipos de homicídios e tentativas ocor-
ridos em Belo Horizonte e denunciados pelo Ministério Público de Minas
Gerais de 2003 a 2005. No período foram 265 denúncias de mortes consu-
madas e tentadas. A autora trabalhou com técnicas qualitativas (análise de
conteúdo) e quantitativas (análises uni e bivariadas, fatorial e espacial) e
nove tipos de homicídios: (1) bala perdida; (2) caput ou crimes cujas cir-
cunstâncias não foram suficientemente apuradas; (3) atuação policial; (4)
drogas e tráfico; (5) vingança; (6) motivos financeiros; (7) motivos amoro-
sos; (8) conflitos cotidianos; e (9) outros. Os resultados mostraram que os ti-
pos mais recorrentes de homicídio são por conflitos cotidianos, abuso e trá-
fico de drogas e vingança que juntos respondem por 67,5% desses eventos.
A arma de fogo foi o meio mais usado (em 69% dos casos) com ênfase nos
eventos vinculados a drogas. Nos homicídios que resultaram dos conflitos
cotidianos os meios mais empregados foram a força física e armas brancas.
A maioria dos crimes ocorreu em áreas socialmente desfavorecidas.
Lima (2008) apresentou a proposta de avaliar o grau de mobilidade es-
pacial das vítimas de homicídio como um indicativo da rede de sociabili-
dade à qual estavam vinculadas, adotando a orientação dos estudos sobre a
jornada do crime. O autor constatou que, em geral, as vítimas de homicídio
em São Paulo mantinham algum tipo de relacionamento que os associavam
a dinâmicas locais das comunidades. Por isso, analisou a distância entre a
residência da vítima e a ocorrência do óbito em alguns distritos mais violen-
tos da cidade utilizando dados do PRO-AIM de 2001 a 2005. Sua hipótese
foi de que se a distância é pequena, o homicídio pode ser explicado pelas
dinâmicas locais; a distância grande envolve dinâmicas de criminalidade
urbana, com crimes patrimoniais e latrocínios. O autor concluiu que existe
46 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

uma concentração espacial dos homicídios em torno de algumas regiões e


perfil de pessoas nelas residentes. A sensação de medo e insegurança, que é
geral, no entanto não tem relação com essa dinâmica que precisa ser com-
preendida para que as ações de prevenção e de transformação sejam efetivas.
O texto de Minayo (2008) analisou dados de morbimortalidade por
causas externas, entre elas as agressões, e caracterizou essa mortalidade em
sete categorias: taxas elevadas e crescentes; distribuição diferenciada nos
municípios; predomínio dos homicídios; dispersão dos acidentes de trân-
sito e transporte; baixas taxas de suicídio e seu crescimento na população
idosa; gênero, idade e local de moradia; armas de fogo. A autora discutiu os
fatores associados a esses eventos, chamando a atenção para as transições
socioculturais, dentre elas o acirramento das relações sociais, as mudanças
no mundo do trabalho, as novas lógicas de espaço tempo e seu impacto na
subjetividade, principalmente entre jovens, além das imensas desigualdades
(marginalizando social e culturalmente jovens) e diferenciados estilos de
vida. A autora mostrou que as mortes violentas desafiam a lógica médica
restrita e que sua prevenção cabe no conceito de promoção e na visão am-
pliada de saúde. Finalmente, recomendou estudos locais visando à inclusão
social e uma política permanente de desarmamento, e abordagens interdis-
ciplinares, interprofissionais e intersetoriais para atuação associada ao apoio
da sociedade civil.
Essa autora (Minayo, 2009) retoma a conformação das mortes violen-
tas no Brasil, no período de 1980 a 2005, ressaltando como características
principais: (1) elevadas e crescentes taxas de óbitos por causas violentas,
cuja participação na mortalidade geral passou de 11% para 15% no período;
(2) distribuição desigual desses eventos, os quais se concentram nas gran-
des cidades e regiões metropolitanas. No período, em 2.633 municípios dos
5.561 não houve homicídios; (3) dispersão espacial dos acidentes de trânsito
e transporte que atinge inclusive municípios pequenos. Porém, no período
estudado, em 1.802 deles não houve óbitos por essa causa; (4) taxas baixas
de suicídio, mas crescimento entre jovens e idosos; (5) sobremortalidade de
homens por todas as causas violentas e concentração dos homicídios nas
faixas etárias de adolescentes e jovens. Nos últimos 25 anos, cerca de 70%
Violência, Polícia, Justiça e Punição 47

de todos os homicídios incidiram sobre pessoas entre 15 a 29 anos de idade,


com tendência de crescimento no grupo de 15 a 19 anos; (6) concentração
das mortes perpetradas com armas de fogo, num percentual acima de 60%.
Em alguns Estados como Amapá, Pernambuco, Alagoas, Espírito Santo e
Distrito Federal, a proporção de homicídios usando esse meio foi superior
a 90%. A autora ponderou ao final que os temas aqui mencionados preci-
sam ser cada vez mais aprofundados, mas a compreensão que os estudos já
permitem, pode colaborar para ações sociais, de saúde e segurança pública
visando à preservação da vida e à cidadania.
Ferreira, Lima e Bessa (2009) refletiram sobre os fatores explicativos
que vêm sendo elaborados para a redução da violência em São Paulo, a par-
tir da análise da literatura. Apontaram que o aperfeiçoamento dos mecanis-
mos de planejamento, gestão e controle têm sido um dos argumentos mais
usados para explicar essa queda. Mostraram o aumento do papel e do poder
dos municípios no âmbito das políticas de segurança pública, assim como
o apoio e parcerias das organizações sociais e da comunidade com o po-
der público. Outros fatores foram tratados como a redução das disputas por
territórios por parte das facções criminosas e as transformações sociais de
longo e médio prazo, assim como a diminuição dos estratos populacionais
jovens, a elevação da escolaridade da população geral e a maior inserção
de pessoas no mercado de trabalho. Os autores ressaltaram alguns pontos
importantes: a queda acelerada da taxa de homicídios na capital e região
metropolitana (43,2/100.000 em 1999 para 22/100.000 em 2005) que tende
a descaracterizar a violência como um fenômeno metropolitano; e que os
fatores que influenciaram na diminuição das taxas foram territorialmente
concentrados e atuaram sobre grupos sociais específicos.
Resultados de uma grande pesquisa que buscou compreender o papel
e a função que o inquérito policial assume no processamento de crimes no
Brasil foram publicados por Vargas e Nascimento (2009). Com base na aná-
lise do fluxo do sistema criminal, do estudo etnográfico realizado na divisão
dos crimes contra a vida de Belo Horizonte e de entrevistas com os operado-
res desse sistema o trabalho concluiu que a investigação criminal sob o mo-
delo do inquérito policial privilegia a atividade burocrática em detrimento
48 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

da atividade investigativa; que existe um comportamento protocolar entre a


Polícia Civil e o Ministério Público que se dá apenas através de papéis, evi-
denciando mais uma disjunção do que uma integração. A descontinuidade
e o descompasso entre os diversos profissionais que compõem o sistema ju-
dicial criminal contribui para a pouca efetividade do trabalho que precisaria
ser interativo e colaborativo.
Adorno (2010) reconstruiu casos selecionados de violação de direitos
humanos ocorridos entre 1980 e 1989. Analisou aproximadamente 5.000
notícias de violação dos direitos humanos em relatórios oficiais, inquéritos
policiais, processos penais, dossiês e boletins de organizações não governa-
mentais, matérias veiculadas em jornais e revistas. O resultado deste traba-
lho permitiu a identificação de 162 casos de linchamento ocorridos no eixo
Rio de Janeiro - São Paulo. O texto está baseado na análise de 10 casos desses
linchamentos que aconteceram no estado de São Paulo levando-se em conta
os seguintes aspectos: os protagonistas e seu contexto social; relações hie-
rárquicas entre os protagonistas; linchamento e poder. O autor concluiu que
se instaurou uma espécie de vazio institucional no controle da ordem pú-
blica em São Paulo naqueles anos, propiciando uma escalada vertiginosa da
criminalidade urbana violenta e organizada, e igualmente uma explosão de
conflitos em bairros populares que não convergiram para a devida solução
legal: “ao que tudo indica, foram estes os fatos que conformaram contextos
e cenários para os linchamentos” (Adorno, 2010, p.86).
O trabalho de Silva (2010) se insere nas análises da sociologia do crime
e do sistema de justiça criminal no contexto brasileiro. O texto analisou do
ponto de vista qualitativo e quantitativo como se opera a construção social
da incriminação do sujeito-autor e a construção de verdades judiciárias por
parte dos promotores de justiça dos I e II Tribunais do Júri de Minas Gerais/
MG. A autora trabalhou com processos em andamento entre 2007 e 2009, e
analisou características sociobiográficas dos agressores; características estru-
turais das ocorrências, e motivações atribuídas pelos promotores aos autores
dos crimes. Usou uma tipologia criada com base na leitura de 265 denúncias
de homicídios dolosos oferecidos ao sistema de justiça criminal entre 2003 e
2005, e os classificou como (1) conflitos cotidianos; (2) conflitos amorosos; (3)
Violência, Polícia, Justiça e Punição 49

casos que envolvem abuso de drogas e tráfico; (4) crimes financeiros; (5) ou-
tros; e acompanhou as etapas judiciárias de 159 processos ativos no Tribunal
do Júri de MG. Os resultados mostraram que muitos homicídios acontecem
entre pessoas conhecidas. Em alguns casos como o de conflitos cotidianos, a
relação social entre vítimas e agressores é de proximidade: parentes e amigos.
Outro achado indicou que as diferenças entre os tipos de homicídios parecem
explicar o fato de um processo tramitar ou não até a sessão do júri. Os casos
relacionados ao tráfico de drogas são os que mais caminham e os relacionados
a motivos financeiros são os que menos evoluem. A autora destacou que a
análise por tipologias diferentes do olhar do direito, que focaliza a motivação
dos agressores, busca enfatizar a construção social do crime pelos operado-
res do sistema de justiça penal. Por fim, ressaltou que o estudo quantitativo
permitiu-lhe perceber de que maneira as tipologias dos crimes interferem no
andamento e desfecho dos processos; e que o estudo qualitativo corroborou
os dados quantitativos e trouxe elementos caracterizadores do processo deci-
sório dos operadores da ação penal.
Lima e Brito (2011) analisaram como as instituições brasileiras têm difi-
culdade de se livrar de práticas do passado arraigadas nas relações sociais e no
relacionamento do Estado com a sociedade. Na época da ditadura militar o
modelo de desenvolvimento econômico se baseava na subordinação da socie-
dade ao Estado e que a Polícia Militar/PM nunca visou garantir os direitos dos
cidadãos. Essa estrutura e seus princípios foram mantidos na Constituição
que apenas deslocou o conceito de segurança nacional para segurança pública
sem avançar na modelagem do sistema de justiça criminal e do aparato que
garante a lei e a ordem no país. Os autores ressaltaram que as iniciativas de
transformação tendem a ações circunscritas a um governo ou a um dirigente.
Na alternância desses, há um retrocesso ao status quo ante, ou seja, aos proce-
dimentos cristalizados nas práticas e saberes informados pela ideologia da se-
gurança nacional. Ao finalizarem seu texto, os autores invertem a tradicional
ordem de associação entre violência e pobreza, mostrando que o impacto que
a violência gera reforça a pobreza, a segregação e a precarização da vida social.
Nesse sentido, investir em políticas de segurança pública significa entendê-las
como constituintes e fatores de desenvolvimento. O Estado por meio da polí-
50 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

cia (seu aparato mediador) precisa atuar baseado no princípio de cidadania e


não subordinar os interesses da sociedade.
O filme Abril Despedaçado, baseado na obra de Ismail Kadare, dirigido
por Walter Salles, foi objeto de análise do texto de Silva (2011). No filme
é narrada a história de duas famílias que se digladiam por oito gerações e
cujo mote é a vingança. Silva refletiu sobre o fenômeno da violência sendo
instrumentalizada ora como elemento de coesão e de agregação de um co-
letivo; ora como vetor de desagregação social. E a partir das subjetividades
expostas, o texto mostra como as instituições são utilizadas para justificar
a transgressão e para manter a tradição de vingança. O autor trabalhou o
homicídio a partir de categorias como tradição, honra e ordem. E a violên-
cia é vista como uma prática cultural, um componente do cotidiano e um
instrumento de regulação social do comportamento coletivo que carrega as
noções de direito, honra e justiça. No mesmo sentido, a vingança soa como
um gesto de obediência à ordem cultural.
O texto de Misse (2011) analisou a construção da sujeição criminal evi-
denciando como o crime sai da esfera individual para servir à construção de
tipos sociais. O autor tomou como hipótese o fato de que existe uma falsa re-
lação entre pobreza urbana e criminalidade e que sem a mediação da sujeição
criminal, a relação entre pobreza urbana e crime torna-se incompreensível e
preconceituosa. Ele usou o termo “sujeição criminal” em lugar de rótulo, es-
tigma e desvio para falar de uma identidade social que se subjetiva não apenas
como a incorporação de um papel como “personificação do crime” e faz uma
crítica histórica e teórica aos conceitos e noções que, a seu ver, não dão conta
da realidade. A partir da análise dos dados de auto de resistência, nos quais
costumam morrer supostos “bandidos”, o estudo demonstrou empiricamente
como essa categoria constitui a plenitude da sujeição criminal e foi responsá-
vel por justificar muitos extermínios nos anos 1990.
Os conceitos de risco e vulnerabilidade levando em consideração os
processos sociais e culturais, presentes nos homicídios de jovens, foram
discutidos no artigo de Ruotti, Massa e Peres (2011). As autoras partiram
do princípio de que a categoria analítica “risco” não dá conta das análises
do fenômeno da sobremortalidade masculina por homicídio que prevalece
Violência, Polícia, Justiça e Punição 51

no espaço público, e dos homicídios femininos que ocorrem, preferencial-


mente, no espaço privado e relacionado a conflitos familiares. O grande
desafio, em seu ponto de vista, é entender os significados da exposição ao
risco voluntária ou involuntária. O pano de fundo são os processos sociais
e os contornos da socialização das novas gerações, entre eles, a configu-
ração do risco como categoria central na sociedade contemporânea que
se caracteriza pela flexibilização do emprego, pela expansão do tráfico de
drogas e pela expressão nunca vista das aspirações individuais quanto à
mobilidade social e de oportunidades. No entanto, faltam a muitos jovens
padrões estáveis de organização familiar, social e política e lhes sobra uma
familiaridade com o risco de morte e em locais ambiental e relacionalmen-
te conflituosos. As autoras analisaram a entrada do conceito de vulnera-
bilidade no campo da saúde a partir dos estudos da AIDS. E, em seguida,
mostraram sua potência para análise de outras situações, na medida em
que, vulnerabilidade engloba a exposição ao risco no contexto, o que vai
além dos aspectos individuais, e considera também as possibilidades de
proteção para os sujeitos-alvo. Assim, o uso do conceito permite considerar
a multicausalidade do fenômeno, os significados e sentidos da exposição
ao risco em contextos sociais e culturais que permeiam os processos de
individualização. Por isso, as autoras acreditam ser essencial seu uso para a
compreensão das violências envolvendo jovens, pois permite considerar a
multicausalidade do fenômeno e os vários sentidos atribuídos ao risco, os
quais devem ser conectados às configurações sociais e culturais que per-
meiam o processo de formação e individualização.
O texto de Vargas e Rodrigues (2011) realizou uma análise crítica do
inquérito policial e sua importância e acompanhou os argumentos desen-
volvidos por meio de uma pesquisa empírica sobre o encaminhamento dos
processos por homicídio em Belo Horizonte. A hipótese do trabalho foi de
que o aumento da criminalidade violenta, nos últimos 30 anos no Brasil,
concorreu para diminuir a efetividade do Sistema de Justiça Criminal que
já era baixa: novas modalidades de crimes, um volume cada vez maior de
inquéritos policiais e a morosidade crescente no processamento das infor-
mações e decisões nas várias instâncias. As autoras comentaram que o in-
52 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

quérito policial também vem perdendo legitimidade e há várias propostas


acaloradas de reforma ou de extinção desse instrumento. Consideram que
se trata de um desafio de grandes proporções, tendo em vista que, entre os
operadores que o manejam, não se imagina a investigação sem o recurso
desse modelo. O texto demonstrou na apresentação dos resultados, que o
inquérito policial, por privilegiar a confissão do suspeito, é meio decisivo
para fazer progredir o processo de formação da culpa, em busca da “verdade
real”; ele também desempenha um papel crucial de articulação das ativida-
des dos operadores da fase de investigação. No entanto, esse instrumento
reproduz a ordem social brasileira que tem como uma das suas principais
marcas a distância entre os dispositivos previstos nas leis (Estado) e as prá-
ticas efetivas (Sociedade).
Em editorial de um número temático sobre homicídios, em revista
cientifica, Souza (2012) ressaltou esse evento como indicador universal da
violência e destacou que na América Latina é a população jovem que mais
mata e mais morre. A autora introduziu o tema dizendo que a violência é
ao mesmo tempo sintoma e expressão de problemas sociais e contamina a
cultura e as subjetividades, colocando questões para a agenda pública dos
distintos setores das sociedades contemporâneas. Por suas repercussões em
todos os âmbitos da vida dos indivíduos, grupos e nações, e por sua mag-
nitude e fortes impactos físicos e psicológicos constitui um grave problema
e grande desafio para o setor saúde. Souza ressaltou a definição de homicí-
dio como uma agressão a terceiro que utiliza qualquer meio para provocar
danos, lesões ou morte à vítima. É também o principal responsável pelos
elevados índices de mortalidade na América Latina, região com as mais ele-
vadas taxas de óbitos por esse evento no mundo.
O trabalho de Silva (2012) discutiu do ponto de vista sócioantropoló-
gico o sistema de justiça criminal no Brasil. Apresentou um olhar sobre esse
sistema focalizando dados de homicídios dolosos, por meio de uma tipologia
construída a partir de uma categoria nativa do campo do Direito – as tipifi-
cações jurídicas – elencadas pelos promotores de justiça ao redigirem as de-
núncias: (1) conflitos cotidianos; (2) mortes por abuso de drogas e tráfico; (3)
óbitos por armas de fogo; (4) defesa de natureza privada; (5) reincidência no
Violência, Polícia, Justiça e Punição 53

crime pelo réu; e (6) se a vítima estava acompanhada no momento do even-


to, o que indica ter havido testemunha. No Brasil, as verdades jurídicas são
construídas de duas formas: (a) inquérito policial produzido pela polícia civil
e (b) processo judicial produzido pelo judiciário. A autora avançou no estudo
que realizou anteriormente, atualizando os dados de homicídio para 2011 e
acompanhando as fases judiciárias dos processos, o que foi viabilizado pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais: fluxo, tempo, possíveis determinantes,
sentenças condenatórias e cumprimento da pena estipulada nas sentenças.
Reafirmou algumas das conclusões apresentadas em outras publicações: que
os homicídios por abuso ou tráfico de drogas são os mais punidos e que existe
uma preponderância das armas de fogo como meio de matar alguém.
Minayo e Constantino (2012) utilizaram a abordagem teórica dos siste-
mas complexos que considera uma articulação entre o sistema local em suas
interconexões internas, a influência do contexto externo e o acoplamento psí-
quico. Ou seja, essa teoria propõe a interpenetração entre o sistema social e
as subjetividades. Analisaram os casos de quatro municípios, dois do Brasil
e dois da Argentina, tendo como foco as taxas de homicídios no período de
1980 a 2007. Para a análise ecossistêmica utilizaram-se conceitos próprios
dessa abordagem para se observar a relação entre violência e criminalidade:
capital social, eficácia coletiva e efeitos de reciprocidade. Os resultados indi-
caram que tanto nas localidades que concentram altas taxas de homicídios
como nas de baixas taxas os fatores internos de coesão, eficácia e reciprocida-
de (ou a falta deles) são os mais importantes. São eles que coexistem com o
ambiente externo, como as políticas macrossociais e macroeconômicas, que
podem ajudar e reforçar ou atrapalhar a organização social, o governo local
e a participação comunitária. As autoras destacaram que outros estudos já
apontaram que quando ações coordenadas e persistentes se unem a investi-
mentos sociais, econômicos e culturais podem produzir resultados positivos
na prevenção e redução dos homicídios e para isso citam casos do programa
Fica Vivo de Minas Gerais; o investimento em Jardim Ângela em São Paulo e
as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro.
Na introdução do 5º Relatório sobre os Direitos Humanos no Brasil,
Possas (2012) fez um balanço das violações de direitos humanos e dos
54 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

enfrentamentos às mesmas na primeira década dos anos 2000. A autora


definiu o recorte do relatório no direito à vida e à integridade física e dis-
sertou sobre os direitos civis e a violação de direitos humanos no Brasil.
Fez um levantamento dos relatórios sobre direitos humanos na América
Latina e no Brasil, produzidos por órgãos nacionais e internacionais. Des-
tacou problemas relativos à falta de informação, como a baixa qualidade
dos dados e a inexistência de informações confiáveis sobre violência poli-
cial. Discutiu cada um dos temas trabalhados no relatório como: violência
policial, violência no sistema carcerário, homicídios, dentre outros. Res-
saltou que, mesmo vivendo numa democracia, a população do país ain-
da tem uma visão ambígua dos direitos humanos, mais especificamente,
quando se trata da garantia dos direitos civis. Em relação aos homicídios
citou que a distinção entre esses e os autos de resistência sugere, do ponto
de vista simbólico, que os últimos podem ser socialmente aceitos quando
se trata da morte de criminosos.
Os efeitos do crescimento dos homicídios no Brasil, nos últimos 30
anos, sobre o trabalho policial investigativo foi objeto do artigo de Zilli e
Vargas (2013). Esses autores realizaram uma pesquisa etnográfica em Dele-
gacias Especializadas de Homicídios em Belo Horizonte, nos anos de 2009 e
2010. Os autores entrevistaram delegados e investigadores e mostraram um
descompasso entre a crescente complexidade do fenômeno criminal, com
vasto leque de dinâmicas sociais, e as práticas procedimentais legais prescri-
tas para a investigação. Os autores comentaram que na tentativa de conter o
crescimento das taxas de homicídio e se adequar à crescente complexidade
desse fenômeno, a atividade policial investigativa vem sendo reestruturada.
Mas há vários “desencaixes”: a falta de conhecimento dos contextos onde
grande parte dos homicídios ocorrem; equipes especializadas que não co-
nhecem os territórios; exigência de cumprimento de metas quantitativas
que por vezes contradizem a qualidade dos inquéritos. E por fim, os autores
consideraram o ponto mais agudo: a complexificação das dinâmicas sociais
e criminais responsáveis por elevados níveis de letalidade e o caráter inqui-
sitorial, formalista e cartorial dos inquéritos na forma como são conduzidos.
E apontaram a necessidade de modernização efetiva da polícia, investimen-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 55

tos em metodologias técnicas científicas de investigação, em detrimento dos


modos tradicionais de atuação.
Fachinetto (2011) refletiu sobre os assassinatos de mulheres a partir dos
boletins de ocorrência das delegacias de polícia. Apresentou vários estudos
e destacou como os discursos dos operadores contribuem para a desigual-
dade de gênero. Além disso, a autora destacou que vários trabalhos que uti-
lizam como fonte de informação os boletins de ocorrência e dados gerados
nas delegacias de polícia mostram como os discursos dos operadores do
direito contribuem para manter as desigualdades de gênero. Essas situações
se refletem no julgamento moral dos homens envolvidos para enfatizar ou
atenuar sua imagem de criminosos ou vítimas; no tratamento diferenciado
no campo jurídico que dá ênfase à lógica patriarcal: “o direito é masculino”,
“o direito tem gênero”. Para essa autora, o assassinato das mulheres configu-
ra uma trajetória de agressões, maus tratos e torna-se necessário investir em
estudos para se perceber a ilusão da igualdade na aplicação da lei.
Misse e colaboradores (2013) realizaram análises estatísticas de dados
oriundos do Sistema de Justiça Criminal (Polícia Civil e Ministério Públi-
co), juntamente com etnografias e análises de laudos da Perícia da Divisão
de Homicídios da cidade do Rio de Janeiro e do Posto Regional de Polícia
Técnico Científica de Angra dos Reis/RJ. Os resultados indicaram que a cria-
ção da Divisão de Homicídios pode ter tido impacto na melhoria das taxas
de relatoria dos inquéritos com autoria identificada. Contudo, ressaltaram
que isso não pode ser atribuído ao trabalho dessa unidade especializada,
que mesmo propiciando um ambiente favorável à comunicação interseto-
rial, acaba por ser subsumida a uma lógica cartorial do sistema de justiça
criminal. Alertaram para a falta de investimento em aparatos tecnológicos,
falta de padronização dos procedimentos das perícias, mesmo na unidade
especializada. Este diagnóstico levantou os principais problemas, avanços
e desafios para o trabalho de perícia, em especial para as investigações de
homicídios dolosos. O estudo Quando a polícia mata, de Misse et al. (2013)
revelou que, de 2002 a 2010, ocorreram 10 mil autos de resistência no Rio
de Janeiro. Os autores realizaram importante reflexão sobre alguns pontos: a
ideia corrente de que se a polícia está envolvida na ação, o homicídio é legal;
56 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

que tanto os homicídios em geral como os autos de resistência mantêm um


padrão e uma localização; e que quase não há punição dos policiais culpa-
dos que tendem a adulterar o local de ocorrência. Por exemplo, em 2005,
foram 707 casos, dos quais 510 geraram registros de ocorrência, ou seja,
mais de uma vítima em cada notificação. Apenas 355 se transformaram em
inquéritos, e desses 19 chegaram ao Tribunal de Justiça em até dois anos; 16
foram arquivados; dois foram para julgamento e apenas um caso terminou
em condenação. Outro ponto assinalado pelos pesquisadores foi a profunda
indiferença em relação à vida e morte dessas pessoas, principalmente da-
quelas sobre as quais pairavam suspeitas. Uma das principais dificuldades
para a resolução dos casos, segundo os autores, é a falta de elementos técni-
cos que deem conta da investigação. Além disso, o processamento legal dos
autos de resistência, o que acontece depois que a polícia mata, não represen-
ta um tipo penal, é apenas uma classificação da prática policial. Algo que, de
acordo com os pesquisadores, deveria gerar uma atuação mais incisiva do
Ministério Público que, ao contrário, acaba se abstendo. Algumas conside-
rações sobre os avanços e as lacunas do conhecimento
Este capítulo, que reuniu os trabalhos sobre homicídios publicados pe-
los grupos que compuseram o INCT Violência, Cidadania e Segurança Ci-
dadã, de 2008 a 2013, permitiu observar vários avanços. Em primeiro lugar,
ressalta-se o empenho dos autores de produzir um tipo de conhecimento
que está, o tempo todo, buscando fornecer subsídios teóricos e técnicos para
a ação dos agentes públicos. Em segundo lugar é importante assinalar a pre-
sença de grupos ativos e atuantes responsáveis por pesquisas que focalizam
e, ao mesmo tempo, ultrapassam temas específicos como o homicídio. Esse
duplo movimento, que abrange o foco e as circunstâncias, permitiu analisar
os fatos não apenas com os números frios das estatísticas, mas dando-lhes
carne e osso da vida social, dos conflitos, do papel das instituições e dos
provisórios desfechos que o excesso de mortes violentas provocam sobre a
sociedade, a economia, a cultura, as famílias e, em particular, sobre a subje-
tividade dos jovens.
Vários conceitos foram trabalhados como direitos humanos, cidada-
nia, consciência social, homicídio, auto de resistência, risco, vulnerabilidade,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 57

desenvolvimento, urbanização, sujeição criminal dentro de marcos meto-


dológicos complexos como o georreferenciamento, as análises ecológicas e
ecossistêmicas, e as abordagens etnográficas, históricas e críticas que ultra-
passaram os estudos meramente descritivos. Como novidade, focalizaram-
-se regiões pouco estudadas como as fronteiras do país e foram realizadas
análises comparativas entre países da região latino-americana.
Houve também um investimento particular nos estudos do sistema de
justiça criminal e da segurança pública em que o homicídio aparece não
como um evento neutro, mas como um tema que revela muito mais da so-
ciedade brasileira do que os operadores da lei poderiam supor: uma espécie
de hierarquia desse tipo de morte e dos crimes segundo as motivações que
os propiciaram; uma desigualdade de gênero no tratamento dado pela jus-
tiça criminal; uma forma burocrática e cartorial que dificulta as análises e
as soluções de justiça para os casos; uma forma de discriminar e proteger
os agentes da lei que matam em detrimento da sociedade, particularmen-
te quando o morto é considerado merecedor da pena fatal; uma máquina
do sistema de justiça criminal muito pouco preparada para atender às de-
mandas atuais da sociedade e para dar um desfecho desejado aos processos
criminais e, por fim, um conjunto de agentes (Polícia Judiciária, Ministério
Público, Justiça Criminal) que não interage e tradicionalmente só se comu-
nica por papéis. Os textos que se dedicaram a esse último ponto mostram a
necessidade de investimento na modernização das técnicas e procedimen-
tos investigativos e jurídicos.Houve um investimento de vários autores para
mostrar situações de sucesso em relação à diminuição dos homicídios. O
caso mais emblemático, estudado por vários pesquisadores, é o de São Paulo
em que houve um acelerado e consistente decréscimo das taxas no Estado
como um todo, no município e particularmente nas áreas mais desfavoreci-
das em que a diminuição foi maior. Os estudiosos apresentaram várias hipó-
teses em que o investimento em políticas sociais que melhoraram a vida da
população, o aumento da escolaridade e a diminuição do número de jovens
na demografia da cidade são pontos consensuais. Há quem postule que o
aumento da repressão policial e do encarceramento não teve tanto impacto
como lhe é atribuído, mas que, certo controle de determinadas populações
58 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

por parte dos grupos criminosos tem sido eficaz na diminuição das mortes.
Houve outros exemplos analisados, embora menos frequentes, como o caso
do Fica Vivo em Minas Gerais e das UPPs no Rio de Janeiro. Todos esses
estudos, ainda que tragam mais hipóteses que certezas, consagram a tese de
que é preciso e é possível investir na diminuição dos homicídios, particular-
mente de jovens, e que esse investimento deve conter ações sociais, educa-
cionais, de reconhecimento e de inclusão social. Nesse sentido, vale lembrar
a concepção de Hannah Arendt de que a violência “pode dramatizar causas
e trazê-las à atenção pública” (Arendt, 2009, p. 58), pois o mal-estar que ela
provoca pode impulsionar movimentos em prol da cidadania e da democra-
cia com foco na inclusão social e dos jovens.
Não era propósito deste estudo indicar ações que promovam a segu-
rança e protejam a vida. No entanto, entende-se que a continuidade das
pesquisas precisa apontar para: avaliação das políticas públicas interse-
toriais, hoje já existentes, que dão consistência aos processos de inclusão
social, fortalecem a subjetividade e atuam no reconhecimento do sujeito
como é o caso da educação, da cultura e do lazer; análise da efetividade
das estratégias de prevenção; e desenvolvimento de propostas de apoio às
famílias e às pessoas feridas pela morte de parentes e vizinhos. É preciso
também aprofundar estudos mais específicos em vários aspectos, dentre os
quais, mostrando o que ocorre nas médias cidades e no interior; e eviden-
ciando não só as desvantagens segundo gênero, raça/cor, e contexto socio-
econômico, mas que apontem caminhos para superação das desigualdades
e dos fatores de vulnerabilidade.
Em resumo, depreende-se deste conjunto de estudos que é possível ge-
rar um conhecimento estratégico a favor da sociedade e que ajude as insti-
tuições de segurança e justiça a dar passos para servir melhor aos cidadãos.
É preciso continuar e, sobretudo, não parar de se perguntar sobre os pontos
obscuros que pairam sobre o conhecimento e cujas respostas possam con-
tribuir para os direitos humanos dos brasileiros.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 59

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Ednilsa Ramos, Fernanda Lopes Regina, Juliana Feliciano de Almeida,
Marcelo Batista Nery, Nancy Cardia, Renato Sergio de Lima e Sergio Adorno

Introdução
Um dos objetivos principais durante o programa do INCT Violência,
Democracia e Segurança Cidadã foi analisar o paradoxo da queda nos homi-
cídios e o crescimento do crime organizado, além da presença continuada
de violações aos direitos humanos em São Paulo e seu impacto sobre as
percepções do público, em especial sobre o apoio ao Estado de Direito. O
estudo teve base quantitativa e qualitativa. Este capítulo tem por objetivo
apresentar, de forma resumida, os principais resultados encontrados, consi-
derando três eixos de análise: a análise quantitativa em uma perspectiva ma-

1 Este capítulo é uma compilação de três artigos previamente publicados, os quais foram


aqui reproduzidos mediante autorização e conhecimwn5o formais por parte das revis-
tas. São eles: Maria Fernanda Tourinho Peres et al. “Evolução dos homicídios e indica-
dores de segurança pública no Município de São Paulo entre 1996 a 2008: um estudo
ecológico de séries temporais”. Revista Ciência & Saúde Coletiva, nº 12, vol. 17, 2012, p.
3249-57; Peres et al. “Queda dos homicídios no município de São Paulo: uma análise ex-
ploratória de possíveis condicionantes”. Revista Brasileira de Epidemiologia, nº 4, vol. 14,
2011, p. 709-721; Peres et al. “Queda dos homicídios em São Paulo, Brasil: uma análise
descritiva”. Revista Panamericana de Salud Publica, nº 1, vol. 29, 2011, p. 17-26..
2 Agradecimentos à equipe de pesquisa, constituída por Juliana Feliciano de Almeida,
Viviane Massa, Diego Vicentin e Marina Matar.
66 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

cro/global, a análise quantitativa em uma perspectiva micro/local e a análise


do componente qualitativo.

Perspectiva macro/global: municípios e distritos


administrativos de São Paulo
No município de São Paulo reduções importantes nas TMH a partir de
2001 são observadas em todos os grupos etários, na população masculina
e feminina, entre brancos e negros e em áreas com diferentes graus de ex-
clusão social. Em que pese esta característica, é possível identificar alguns
grupos sociais nos quais a redução parece mais intensa: são os homens, os
jovens de 15 e 24 e de 25 e 34 anos, e os moradores de áreas de exclusão so-
cial extrema ou de alta exclusão social. Nestes grupos as quedas foram mais
pronunciadas e ultrapassaram a encontrada para a população total do MSP.
Além disso, uma queda mais importante foi encontrada nos homicídios co-
metidos com armas de fogo.
São muitos os estudos que apontam os jovens do sexo masculino mo-
radores em áreas com superposição de desvantagens como grupo especial-
mente exposto ao risco de morte por homicídios no Brasil e, em especial
nos grandes centros urbanos (Souza, 1994; Jorge, Gawryszewski e Latorre,
1997). Autores sugerem ainda que este grupo é preferencialmente vitimado
pela violência comunitária e criminal, com destaque ao tráfico de drogas e
outras atividades ilegais (Peralva, 2000; Zaluar, 2004). Um dado que reforça
esta hipótese é o predomínio de mortes por armas de fogo. Os dados indi-
cam, portanto, que a redução na TMH em São Paulo ocorre, sobretudo, em
função de alterações no padrão de violência comunitária e criminal.
Com base nos resultados da análise por distritos observa-se que a que-
da na TMH no MSP não é um processo restrito a áreas específicas da cidade.
Uma tendência de redução foi encontrada em 89 dos 96 Distritos Adminis-
trativos (DAs). A análise deste achado, isoladamente, poderia sugerir que
a mudança no cenário da violência urbana resulta de algum processo de
ordem macroestrutural que atingiu todo o município. Entretanto, um olhar
mais detido permite identificar distintos padrões de evolução que resultam
em magnitudes também distintas de queda, com maiores reduções encon-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 67

tradas em distritos periféricos, em comparação aos distritos situados na


área central da cidade. Isso ocorreu independente da magnitude das TMH
no início da série analisada. Às diferenças geoespaciais somam-se distintas
características socioeconômicas e demográficas que indicam que nas áreas
com maiores reduções nas TMH predominavam, no início da série, grupos
populacionais de maior risco de morte violenta (homens e jovens), assim
como eram maiores as proporções de população de baixa renda e escola-
ridade. Reproduzindo essas características, entre as vítimas de morte por
homicídio, nos distritos com tendência de redução mais pronunciada, pre-
dominam vítimas com baixa escolarização e são maiores as proporções de
negros e jovens. A proporção de mulheres, entre as vítimas, foi menor nos
DAs com maior tendência de queda, embora o diferencial homem/mulher
tenha sido maior nesses distritos. Nos distritos com as reduções mais inten-
sas houve, ainda, maior porcentagem de óbitos por armas de fogo.
Embora os resultados demonstrem uma maior queda em distritos com
piores condições de vida e uma tendência à aproximação dos valores ex-
tremos das TMH, a redução observada não foi suficiente para minimizar a
desigualdade na distribuição no risco de morte por homicídio no MSP, con-
trariando a hipótese levantada por Peres et al. (2011), quando da análise da
evolução das TMH por áreas de exclusão/inclusão social no MSP. A análise
específica por DAs evidencia que maiores TMH permanecem sendo encon-
tradas em distritos periféricos e o risco relativo de morte, quando conside-
rados os extremos nas TMH, se mantém bastante elevado: era de 18,9% em
2000 e passa a 19,1% em 2010.
Fatores socioeconômicos e demográficos são apontados como possí-
veis determinantes para a redução nas TMH. Nas análises feitas para o MSP
identificou-se que redução da TMH no MSP apresenta forte correlação com
a proporção de jovens na população, taxa de desemprego, investimentos es-
taduais em educação, cultura, saúde e saneamento.
Alguns autores, como Phillips (2006), destacam as mudanças na com-
posição demográfica da população, em especial a redução da proporção de
jovens, grupo populacional mais exposto ao risco de vitimização por homi-
cídio como fator relevante para a queda nas TMH. No MSP, a proporção de
68 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

jovens de 15 a 24 anos na população cresceu discretamente, de 18,98% para


19,32% entre 1996 e 2000. A redução na proporção de jovens na população
do MSP inicia em 2001, concomitante à queda nas TMH. No presente estudo
a correlação entre a proporção de jovens e TMH reforça a hipótese da im-
portância das alterações demográficas como fator explicativo para a queda
dos homicídios. Com base nos dados apresentados estima-se que a redução
na proporção de jovens em uma unidade associa-se a uma queda de cerca de
30% nos óbitos por homicídio. Este resultado está de acordo com os achados
de Mello e Schneider (2007) no Estado de São Paulo (ESP), após controle para
evasão escolar e tamanho populacional. São muitos os estudos que discutem
a importância da redução na proporção de jovens na população para a queda
das TMH, por serem os jovens o grupo populacional sob maior risco de en-
volvimento com situações de violência como vítimas e agressores. Para Pam-
pel e Gartner (1995), e Phillips (2006), entretanto, a associação entre índices
de homicídio e composição etária das populações torna-se irrelevante quando
outros indicadores sociais são controlados. Apesar da associação encontrada e
da relação temporal entre os eventos estudados reforçarem a hipótese de uma
relação causal em São Paulo, parece pouco profícuo explicar a redução dos
homicídios, exclusivamente, em função da transição demográfica. A grande
magnitude da queda dos homicídios no MSP, da ordem de 74%, entretanto,
torna pouco plausível que esta seja a única explicação para a tendência que se
observa e se mantêm constante desde o início dos anos 2000. Fatores adicio-
nais, portanto, ainda devem ser buscados para uma melhor compreensão da
redução dos níveis de violência letal.
Investimentos em políticas sociais com consequente alteração nos indi-
cadores socioeconômicos e melhoria da qualidade de vida também são apon-
tados como determinantes da mortalidade por homicídios. Entre os outros
fatores considerados importantes encontra-se a expansão da economia, com
consequente redução do desemprego, aumento na renda e no poder de com-
pra da população. No MSP, com base nos resultados apresentados, vimos que
a taxa de desemprego apresentou uma correlação importante com a TMH,
mas a relação temporal entre as curvas põe em questão a causalidade da rela-
ção, já que a redução da TMH antecede em dois anos o início da queda do de-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 69

semprego. Pode-se supor, entretanto, que a redução dos níveis de desemprego,


constante desde 2004, esteja contribuindo para manutenção da tendência de
queda observada. Ainda com base nos resultados vimos que a redução em um
ponto na taxa de desemprego associa-se a uma redução de cerca de 10% no
número de óbitos. Este dado evidencia o impacto que a aceleração da econo-
mia com a criação de novos empregos pode exercer na redução dos índices de
violência letal no MSP. Cabe ressaltar que análises prévias demonstram que
no MSP a redução dos homicídios antecede a queda nas taxas de desemprego,
o que afasta a hipótese de uma relação causal entre os dois fenômenos. Entre-
tanto, a associação encontrada reforça a hipótese de que a redução nos níveis
de desemprego exerce um papel importante na manutenção da tendência de
queda observada ao longo da última década.
Além da expansão econômica, investimentos em políticas sociais com
consequente melhoria na qualidade de vida e maior presença do Estado em
áreas com concentração de desvantagens pode levar a uma redução nos ní-
veis de violência e homicídios. A relação existente entre investimentos em
políticas sociais e capital social (Kawachi et al., 1997) permite sustentar esta
hipótese. Em São Paulo, embora a relação entre as curvas da TMH e do per-
centual do orçamento investido em educação e cultura sugira possível efeito
dos investimentos estadual e municipal na redução nas TMH, na análise de
correlação apenas investimento Estadual em ações de educação e cultura
se mostraram associados à queda nas TMH. Investimentos do Estado em
educação e cultura, para além do efeito geral na melhoria da qualidade de
vida da população, atingem mais diretamente a faixa etária sob maior risco
de morte por homicídio, o que pode explicar a associação encontrada. En-
tretanto, análises adicionais, com a construção de modelos multivariados,
precisam ser realizadas para o controle de possíveis fatores de confusão.
Da mesma forma, apenas os investimentos Estaduais em Saúde e Sane-
amento apresentaram correlação significante com a TMH, demonstrando
haver associação entre a variação anual no investimento orçamentário na
pasta e na TMH de homicídio. Este efeito pode ser decorrente da melhoria
na assistência, especialmente extra-hospitalar, de urgência e emergência, e
hospitalar. Neste caso a redução das TMH apontaria não para uma redução
70 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

dos níveis de violência, mas da letalidade por violência no MSP. Uma avalia-
ção desta hipótese pede a análise das curvas de evolução de outros crimes,
a exemplo das lesões corporais e crimes contra o patrimônio, e indicadores
mais específicos para avaliação das ações no campo da saúde com possível
impacto nas curvas de mortalidade por homicídio.
Investimentos no campo da Segurança Pública também vêm sendo
apontados como possíveis determinantes da redução observada no MSP.
Aumento no orçamento destinado à área, o investimento em novas tecnolo-
gias, a criação de sistemas de informação e mudanças na linha adotada para
formação de recursos humanos com incorporação de temas como Direitos
Humanos e policiamento preventivo são exemplos de ações no campo da
segurança pública que poderiam explicar a redução das TMH.
Em um primeiro momento os resultados demonstraram haver uma
correlação entre investimentos municipal e estadual em Segurança Públi-
ca e redução das TMH. Em ambos os casos o crescimento da dotação or-
çamentária antecede a queda nas TMH, o que reforça a hipótese de uma
relação causal entre investimentos em segurança pública e queda dos ní-
veis de homicídios. Cabe mencionar ainda a associação entre TMH e TAE
(taxa de aprisionamento-encarceramento). O efeito do aumento da taxa
de encarceramento na redução de crimes violentos é ressaltado por LaFree
(1999), Levitt (2004) e Blumstein, Rivara e Rosenfeld (2000). Nesta análise,
a correlação entre TAE e TMH foi robusta e significante, o que indica que
o aumento na TAE está associado à redução da TMH, como esperado. Este
resultado confirma o encontrado por Nadanovsky (2009) no Estado de São
Paulo. Cabe ressaltar ainda que no caso de São Paulo o aumento na TAE
antecede a queda na TMH, e a curva mantém movimento ascendente até o
final do período. Os dados, portanto, reforçam a hipótese da importância do
aumento na TAE para queda dos homicídios em São Paulo.
Outra hipótese é aquela que atribui a redução nas TMH às ações para o
desarmamento, cujos marcos foram a aprovação do Estatuto 2003 e a cam-
panha para o desarmamento em 2004, com instituição do programa de in-
centivo à entrega de armas de fogo às autoridades policiais. São muitos os
autores que ressaltam a disponibilidade de armas de fogo como um impor-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 71

tante fator de risco para a mortalidade violenta. Neste sentido, medidas para
o controle da posse e do porte de armas de fogo seriam importantes para re-
dução das taxas de homicídios. Neste estudo a correlação entre as variações
percentuais anuais da TMH e da apreensão de armas de fogo foi robusta
e significante. Chama atenção que no período que antecede a campanha
para o desarmamento tenha ocorrido um discreto aumento no número de
armas apreendidas, com redução progressiva e constante no período que
coincide com a campanha e aprovação do Estatuto. Uma vez que a apreen-
são de armas limita-se às armas ilegais e que não temos informações dispo-
níveis sobre armas legalmente registradas, não é possível ter certeza sobre
alterações no número de armas disponíveis ou circulantes na população.
Da mesma forma não é possível saber se a redução na apreensão de armas
reflete o menor número de armas ilegais em circulação (efeito positivo das
ações para o desarmamento) ou a redução da atividade policial. Mais uma
vez a limitação de dados compromete o alcance da análise e conclusões. Já
a associação entre o acesso a armas de fogo e queda no número dos homi-
cídios não se mostrou significante, o que contraria resultados de estudos
prévios que apontam para a importância do acesso a armas de fogo como
fator de risco para homicídios. Dada a ausência de informações confiáveis
sobre armas em circulação, medimos o acesso a armas de fogo, através da
proporção de suicídios cometidos com armas de fogo, indicador proposto
por Cook (1978) e amplamente utilizado internacionalmente. Problemas
na qualidade das informações sobre mortes por suicídio, em especial a sua
subnotificação, podem comprometer a análise dos dados e os resultados en-
contrados, explicando, ao menos parcialmente, os resultados discordantes.
Análises adicionais devem ser feitas, utilizando indicadores de acesso a ar-
mas de fogo mais precisos.
No Brasil, a efetividade do Estatuto e da campanha para o desarma-
mento foi avaliada por Souza et al. (2007). Os autores encontraram uma
redução significativa, no País, da mortalidade e das hospitalizações por feri-
mento por projétil de arma de fogo entre 2003 e 2004. No MSP, entretanto,
apesar da importância da redução nos homicídios cometidos com armas de
fogo, parece pouco provável que tais medidas sejam a causa da modificação
72 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

da tendência de crescimento na mortalidade por homicídio que se observa-


va até 2001. Como vimos, a queda inicia antes da aprovação do Estatuto e
da campanha para o desarmamento. Para Cerqueira3 as ações para o desar-
mamento no MSP antecedem a aprovação do Estatuto uma vez que a partir
2001 o Estado de São Paulo começou a ampliar os esforços para apreensão
de armas. Segundo o autor, a política de desarmamento empreendida no
Estado de São Paulo, aliada à aprovação do Estatuto e à campanha explicam
21% da queda dos homicídios no MSP, a partir de 2001. Para Cerqueira a
cada 18 armas apreendidas no MSP uma vida foi poupada, o que resulta
em um total de cerca 13.000 que deixaram de ser assassinadas entre 2001 e
2007. É possível supor, portanto, que as ações para o desarmamento tenham
exercido um papel importante para a manutenção da queda na mortalidade
por homicídio ou até mesmo para sua aceleração.
Autores destacam a importância da adoção de novas práticas e procedi-
mentos policiais em São Paulo, a exemplo das bases de policiamento comu-
nitário, “operações saturação” e “virada social”, cujos efeitos se fariam sentir
em áreas específicas do Município, alvo direto das ações. Infelizmente não
existem dados disponíveis que permitam uma análise mais aprofundada
destas hipóteses. O mesmo pode ser dito sobre o possível efeito do aumento
do contingente de policiais. Com base em análise de regressão percebe-se
que no MSP ambos, atividade policial e TMH caíram. Seria possível nes-
te caso, aventar a possibilidade de causalidade reversa, quando a redução
nos níveis de violência leva à redução na atividade policial. Entretanto, a
redução da atividade policial antecede, em dois anos, o início da queda na
TMH, o que afasta essa hipótese. Os resultados, portanto, enfraquecem a
hipótese de uma relação causal entre os dois fenômenos, no MSP, em dis-
cordância com o que vem sendo demonstrado na literatura internacional. A
divergência pode ser explicada por diferenças nos indicadores de atividade
policial utilizados. Estudos internacionais utilizam o aumento do efetivo de

3 Daniel Ricardo de Castro Cerqueira, “Menos armas e menos crimes: o emblemático


caso de São Paulo”. Seminário apresentado à ENCE – Escola Nacional de Ciências
e Estatísticas, para o Programa de Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas
Sociais. São Paulo, 9 de novembro de 2009.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 73

policiais. Neste estudo foi utilizada a taxa de prisões efetuadas pela polícia
por 100 mil habitantes. O uso deste indicador se justifica pela falta de infor-
mações disponíveis sobre o contingente de policiais. Da mesma forma não
existem dados sistemáticos disponíveis sobre eventuais mudanças qualita-
tivas na forma de policiamento, questão apontada como fundamental para
explicar a queda dos homicídios nos EUA e em Nova Iorque.
Em resumo, em um primeiro momento, os indicadores de segurança
pública que se mostraram correlacionados à redução das TMH foram o per-
centual dos orçamentos Municipal e Estadual em segurança, a Taxa de Apri-
sionamento- Encarceramento (TAE) e a apreensão de armas. Um segundo
momento, entretanto, foi dedicado à construção de modelos de regressão
para analisar o papel dos indicadores de Segurança Pública na redução dos
óbitos por homicídio no MSP considerando o efeito de alterações socioeco-
nômicas e demográficas. Desse modo, o presente projeto permitiu discutir
de forma conjunta três das principais hipóteses explicativas para a redução
de homicídio: investimento em ações de segurança pública, mudanças so-
cioeconômicas com melhoria da qualidade de vida e alterações demográfi-
cas com redução na proporção de jovens na população.
Existem, entretanto, dificuldades para a construção de modelos mul-
tivariados em estudos ecológicos, dada a existência de correlações fortes
entre as variáveis preditoras no nível agregado. Este fenômeno, conhecido
como colinearidade, pode interferir nos parâmetros estimados pela re-
gressão, gerando instabilidade e dificultando a análise dos efeitos inde-
pendentes das diferentes co-variáveis. Neste projeto, a presença de coline-
aridade foi investigada através da análise de correlação entre as variáveis
de ajuste e não se mostrou um problema relevante, dada a baixa magnitu-
de do coeficiente de correlação (r = 0,22).
No que se refere ao papel das ações em segurança pública, os resultados
encontrados demonstram que a sua contribuição para a redução das mor-
tes por homicídios no MSP perde importância após o controle do efeito das
mudanças socioeconômicas e demográficas ocorridas no mesmo período. A
associação entre o número de óbitos por homicídio e a TAE, e entre número
de óbitos por homicídio e a Atividade Policial (ATP), que se mostraram sig-
74 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

nificantes na análise bivariada, perderam em magnitude e significância após


controle para alterações na taxa de desemprego e proporção de jovens na po-
pulação. O Acesso a Armas de Fogo (AAF) e as mortes por homicídios, por
sua vez, não se mostraram associados na análise de regressão simples. Já a
associação entre número de óbitos por homicídio e taxa de desemprego, e
número de óbitos por homicídios e proporção de jovens mantiveram-se sig-
nificantes em ambos os modelos, o que ressalta a importância dos fatores so-
ciodemográficos e econômicos para a redução dos homicídios em São Paulo.
A análise sustenta ainda a hipótese de que determinantes que atuam
em distintos níveis – macro/global e micro/local – estão na base da drásti-
ca redução nas TMH no MSP. Neste sentido, os efeitos de ações de ordem
local – a exemplo dos programas de segurança pública adotados no MSP e
implementados em regiões específicas, da atuação do crime organizado e
seu efeito de controle social em áreas delimitadas da cidade, e da mobiliza-
ção e participação social – devem ser considerados de forma articulada a
fenômenos de ordem mais global –, tais como alterações demográficas, in-
vestimento em políticas públicas (sociais e de segurança), com consequente
alteração nos indicadores socioeconômicos e demográficos e melhoria da
qualidade de vida, e atuação da gestão municipal com medidas que visam
recuperar o espaço público. Desse modo, verifica-se a importância de uma
análise conjunta com os dados do eixo qualitativo.

Perspectiva micro/local: Setores Censitários de São Paulo


Entre 2000 e 2008 houve uma queda de 73% nas taxas de homicídios
dolosos no MSP, de 55,7% para 14,9% por 100.000 habitantes (segundo dados
da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo). Entretanto, a análise dos
dados por setor censitário (as menores unidades territoriais estabelecidas pelo
IBGE para fins de coletas de dados) mostra que a queda não foi homogênea
e sistemática. Foi encontrada a presença de padrões de distribuição espaciais,
ou seja, de regimes espaciais, para a ocorrência de homicídios dolosos que
não estavam contidos nos limites dos setores censitários no MSP.
O exame dos regimes permitiu identificar sub-regiões que apresenta-
vam um padrão espacial próprio, que se manteve constante na maior parte
Violência, Polícia, Justiça e Punição 75

do período de estudo (anos 2000 a 2008). A análise espacial revelou a pre-


sença de sete tipos de regimes, cada qual apresentando um padrão distinto
de distribuição e concentração. Sendo eles:

Setor censitário com altas taxas de homicídios dolosos em vizi-


nhança com altas taxas, mas sem nenhuma ocorrência registrada
no período 2000-08.
Altas taxas de homicídios dolosos em uma vizinhança com altas
taxas.
Nenhum homicídio doloso registrado no período 2000-2008.
Baixas taxas de homicídios dolosos em uma vizinhança com baixas
taxas.
Baixas taxas de homicídios dolosos em uma vizinhança com altas
taxas.
Altas taxas de homicídios dolosos em uma vizinhança com baixas
taxas.
Setores que não repetiram exatamente o mesmo padrão em ao me-
nos 5 dos 9 anos observados.

Com esses resultados em mãos, utilizamos buscamos identificar os


condicionantes da dinâmica dos homicídios dolosos no Município de São
Paulo (MSP). Como condicionantes empregamos os dados dos censos de
2000 e para 2010 para criar indicadores em cada um dos setores censitá-
rios da capital paulista, a cada ano. Além disso, construímos um banco de
dados contendo as informações dos setores. Esses setores foram agrupados
de acordo com os seguintes critérios: 1- setores especiais de aglomerado
subnormal (AGL) em 2000 e 2010; 2- setores com indícios de organizações
criminosas (IOC); 3- regimes espaciais.
Os testes revelaram que a diminuição dos homicídios dolosos não está
necessariamente relacionada com a melhora econômica, de infraestrutura,
demográfica, sociais, entre outros. Em alguns lugares a relação entre indica-
dores socioeconômicos e homicídios, por exemplo, é significativa e negativa
(portanto, quanto melhores esses indicadores, menores as taxas de homicí-
dios), em outros locais essa relação pode não existir ou, até mesmo, ser po-
76 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

sitiva. Todavia, os já mencionados fatores socioeconômicos e demográficos


apresentam determinadas especificidades que permitem uma análise mais
qualificada, uma vez que são mais significativos como condicionantes para
a redução nas TMH em conjunturas nas quais as taxas homicídio são meno-
res de 28 por 100 000 habitantes, aproximadamente.
Os homicídios estão condicionados por fatores interdependentes, que
atuam direta ou indiretamente em conjunto. Esses fatores apresentam um
comportamento volátil, são múltiplos, interagem uns com os outros, são
determinados histórica e socialmente e produzidos territorialmente, em ou-
tras palavras, não tem a mesma importância e os mesmos padrões em todos
os períodos e localidades. Assim, evidencia-se uma ampla heterogeneidade
que se deixa ver, de modo mais acentuado, nos padrões espaço-temporais -
de homicídios, características demográficas e condições sociais.
Apesar dessas especificidades, verificou-se que, grosso modo, os grupos
que têm maior risco de terem seus direitos violados são constituídos por
jovens (em especial homens, nas faixas etárias de 10 a 19 anos e de 25 a 29
anos), em um contexto de grande volume de pessoas, baixa escolaridade e
precariedade de infraestrutura habitacional, bem como em localidades com
indícios de presença de atividade criminosa organizada.

Eixo qualitativo
Principais resultados

Os dois distritos selecionados para a realização da vertente qualitativa


estão localizados administrativamente em regiões diferentes do município,
o Jardim Ângela, no extremo sul, e Cidade Tiradentes, no extremo leste.
Embora distantes, eles possuem algumas características socioeconômicas e
estruturais semelhantes (inclusive indicadores socioeconômicos com valo-
res abaixo da média do MSP), além do fato de terem, no passado, apresen-
tado altas taxas de homicídios e, na atualidade, uma queda representativa.
Não obstante as características comuns, os distritos possuem processos
de constituição muito distintos entre si. O Jardim Ângela é uma área mais an-
tiga. O primeiro processo de ocupação data do século XVII e a modificação da
região, ao que conhecemos hoje, começa na década de 1950, com seu processo
Violência, Polícia, Justiça e Punição 77

de degradação, iniciado com o desmembramento dos antigos sítios e chácaras


que compunham a região em lotes. No auge da industrialização, diversas vilas
começaram a surgir na zona sul, em sua maioria moradia dos operários que
estavam chegando de vários estados e do interior paulista para trabalharem
nas fábricas que se instalaram em Santo Amaro. A grande explosão ocorreu
em 1960, quando a ocupação tornou-se predatória e desordenada.
Cidade Tiradentes caracteriza um tipo específico de política de habita-
ção no município de São Paulo. No final da década de 1970, o poder públi-
co iniciou o processo de aquisição de uma gleba de terra situada na região
que era conhecida como Fazenda Santa Etelvina, a partir deste momento,
prédios começaram a ser construídos e o local começou a ser habitado por
enormes contingentes de famílias que aguardavam na “fila” da casa própria
de companhias habitacionais. É, segundo Marques (2007), o “caso mais pa-
radigmático em São Paulo da produção habitacional implantada no regime
militar e continuada posteriormente – a produção em larga escala de uni-
dades novas para venda financiada em conjuntos habitacionais massificados
localizados na extrema periferia” (p.72-73).
Apesar desses diferentes contextos de formação, os dois distritos apre-
sentam na atualidade, conforme indicado anteriormente, muitas semelhan-
ças entre si. A grande maioria dos entrevistados identificou, sobretudo nos
últimos dez anos, melhorias no provimento de serviços públicos, tais como
os de educação – construção de escolas, de Centros de Educação Unificados
(CEUs) e de Escolas Técnicas (ETECs), saúde (construção de hospitais e
centros de saúde), transporte (construção de terminais de ônibus e expan-
são das linhas) e segurança (instalação de companhias da polícia militar, de
bases comunitárias, corpo de bombeiros, delegacias, aumento do efetivo da
polícia militar e das viaturas no patrulhamento). Essa melhoria é fortemente
atribuída pelos entrevistados à conscientização e consequente mobilização
dos grupos de moradores e entidades não governamentais que teriam cha-
mado a atenção do Estado para as vulnerabilidades locais, conquistando
com isso, a maior presença de recursos nos distritos. A condição econômica
dos moradores, ao longo do tempo, também é indicada como apresentando
melhorias, às quais são atribuídas diferentes razões: ampliação dos ramos
78 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

comerciais, de serviços e mesmo industriais de pequeno porte nos próprios


distritos, que teriam aumentado a absorção de mão de obra local; a melhor
qualificação profissional dos moradores dessas localidades, que permitiria
maior alcance a melhores postos de trabalho; consequente diminuição do
desemprego; e ainda programas de distribuição de renda do governo fede-
ral, ampliando o acesso a direitos sociais e econômicos, que teriam colabo-
rado para a melhoria da qualidade de vida dessas regiões.
Entretanto, os entrevistados também ressaltam que, embora essas mu-
danças socioeconômicas se mostrem expressivas, esse processo não pode
ser observado em todo o território que compreende os distritos pesquisa-
dos. Ou seja, são melhorias que também são relativas, já que não alcançam
toda a extensão dessas regiões e às vezes se mostram mais quantitativas do
que qualitativas, formando “bolsões” de extrema precariedade social, onde
a criminalidade é mais acentuada.
No que se refere à percepção da população desses locais sobre a varia-
ção dos homicídios ao longo do tempo, a maior parte identifica que houve
uma redução, a qual teria se iniciado em meados dos anos 2000. Muitos dos
relatos indicam que hoje já não se veem mais pessoas mortas, vítimas de
homicídio, espalhadas pelos bairros como antigamente, o que representava
uma situação de grande insegurança. Entretanto, apesar da forte percepção
de queda dos homicídios ao longo dos anos, há concomitantemente a per-
cepção que o crime organizado tem se expandido e consolidado nessas regi-
ões, principalmente por meio do tráfico de drogas e que essa situação pode
explodir a qualquer momento, inclusive por meio do aumento dos níveis de
violência. E, de outra maneira, mas de forma atrelada, também são fortes os
relatos sobre o caráter de atuação das forças policiais que ainda estaria longe
de ser eficiente e de seguir os preceitos legais.
Observa-se nos relatos um consenso de que a queda deve-se não a um fator
em específico, mas a um conjunto de fatores. Assim, dentre as hipóteses espon-
tâneas4 levantadas acerca da diminuição desse fenômeno é importante ressaltar

4 O roteiro de entrevista foi composto de duas questões específicas sobre as causas da


variação dos homicídios nos distritos: uma espontânea (na qual o entrevistado fa-
lava livremente sobre suas hipóteses) e uma dirigida (onde o pesquisador questio-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 79

o peso que foi dado a diferentes fatores como: a atuação da polícia, a participa-
ção popular nos assuntos de interesses coletivos (inclusive através da criação de
fóruns), o desenvolvimento das ONGs, o trabalho dos serviços de cunho assis-
tenciais e de proteção (como Serviços de Assistência Social à Família – SASF e
Conselhos Tutelares), as melhorias sociais e econômicas dos distritos e de renda
da população, bem como do papel regulador exercido pelo crime organizado
nesses territórios. Abaixo essas hipóteses são mais bem elucidadas.

Maior presença do Estado (através da atuação de diferentes


instituições) e melhorias nas condições de infraestrutura e
socioeconômica da população local

Neste tópico, os entrevistados atribuem a queda dos homicídios a uma


maior presença do Estado, representado por maiores investimentos na in-
fraestrutura dos distritos, inclusive pela construção de equipamentos pú-
blicos (como hospitais, unidades de saúde, escolas e creches), bem como
pelo trabalho desenvolvido pelas instituições de assistência social, escolas
e conselhos tutelares. Além da melhoria das condições socioeconômicas da
população seja através da maior inserção no mercado de trabalho ou da
existência de programas de complementação de renda.

Mobilização da comunidade

Outro aspecto indicado na redução dos homicídios diz respeito à mo-


bilização da comunidade por meio de associações e grupos de moradores
para reivindicar uma maior presença do poder público no desenvolvimento
da região e melhoria na qualidade de vida, inclusive por meio da criação
de fóruns, articulação com entidades sociais e também da participação nos
Conselhos de Segurança (CONSEGs).

Fortalecimento das ONGs

A queda dos homicídios está relacionada para muitos entrevistados ao


grande número de ONGs que atuam em diferentes frentes e projetos nas

nava sobre as hipóteses previstas na literatura e não mencionadas pelo entrevistado


espontaneamente).
80 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

duas comunidades estudadas, sendo estas responsáveis por promover a au-


toestima dos moradores, o acesso à informação, o desenvolvimento de ati-
vidades educativas, a participação em atividades culturais e ações voltadas
para a inserção, sobretudo dos mais jovens, no mercado de trabalho e outras
expectativas e possibilidades de vida. Destaca-se também neste sentido, o
papel que desempenham as ONGs em relação à mudança de valores da po-
pulação no que se refere ao maior respeito à vida, mostrando que o diálogo
é a ferramenta mais importante na resolução dos conflitos.

Atuação da polícia (policiamento ostensivo, trabalho preventivo junto às


escolas, aumento do efetivo policial, instalação de bases comunitárias e
implementação do policiamento comunitário)

Um fator levantado pelos entrevistados acerca do papel da segurança


pública na redução dos homicídios associa-se ao aumento do efetivo poli-
cial, de viaturas, do policiamento ostensivo, do policiamento comunitário,
da implantação de bases comunitárias e ao setor de inteligência da polícia.
Ademais, alguns relatos também apontam para o trabalho de prevenção à
violência e do uso de drogas dentro das escolas públicas, destacando-se os
projetos JCC (Construindo a Cidadania) e o PROERD (Programa Educa-
cional de Resistência às Drogas e à Violência). Essa hipótese, embora apare-
ça entre alguns moradores e profissionais dos distritos, os quais destacam a
maior presença policial na área ao longo dos anos, é mais fortemente apoia-
da pelos próprios membros da polícia. Ademais, o peso desse fator precisa
ser visto com cautela, pois:
1. Essa maior presença policial não ocorre de forma homogênea, pro-
vocando um movimento de migração dos grupos criminosos para os
“bolsões” já mencionados, ou seja, locais de maior precariedade socioe-
conômica e onde a ação da polícia aparece de forma mais restrita ainda;
2. De outra forma, mesmo com esse aumento da presença policial, al-
guns questionam sua atuação na comunidade, já que a maior quantida-
de não estaria refletindo num trabalho de segurança efetivo pra popu-
lação, há mesmo o questionamento se a polícia estaria ali pra proteger a
população ou os “irmãos” (membros do “mundo do crime”);
Violência, Polícia, Justiça e Punição 81

3. Assim, observa-se em vários relatos uma percepção negativa e falta


de confiança da população em relação à polícia devido à:

a) Ausência de atuação ou ineficiência;


b) Abusos, ações arbitrárias e violência (inclusive, abordagens des-
respeitosas e humilhantes contra jovens, preferencialmente jovens
negros, destruição de documentos e até abuso sexual em troca de
não apreender jovens usuários de drogas);
c) Criminalização da população (chegando mesmo a produzir pro-
vas falsas);
d) Corrupção e extorsão (como recebimento de dinheiro de trafi-
cantes para não prendê-los);
e) Diferentes tipos de ligações com o crime organizado (inclusive
por meio de conivência com suas atividades – vários são os relatos
de “vistas grossas” feitas ao comércio ilegal de drogas e chantagens
em troca de acertos monetários);
f) Ações de extermínio.

Desarmamento
Ainda no campo da segurança, ressalta-se o papel que teve a mudança
da legislação brasileira ocorrida em 2003 que tornou inafiançável o porte de
arma para o cidadão comum que não tiver autorização para tal. Com uma
diminuição da circulação de armas, aliada às prisões em flagrante efetuadas
pela polícia, a hipótese é de que isso tenha contribuído para diminuir o nú-
mero de homicídios. Contudo, é importante ressaltar que essa opinião ficou
muito mais restrita aos relatos dos policiais e de um delegado.

Expansão e consolidação do poder exercido pelo


crime organizado e regulação exercida
Outra hipótese fortemente levantada refere-se ao poder exercido pelo
crime organizado através da imposição de regras que impediriam a ocor-
rência dos homicídios sem autorização. Grande parte dos entrevistados
apresenta esta hipótese entre os fatores principais da queda, mesmo existin-
do outras igualmente relevantes. Há relatos enfáticos sobre isso: “É lógico
82 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

que diminuiu, o PCC não deixa mais ninguém matar ninguém!” [profissio-
nal e morador de CT]. Desse modo, é reconhecida a forte presença do crime
organizado nas comunidades estudadas (não havendo tanta convergência
se existe ou não de fato uma única facção, como o Primeiro Comando da
Capital – PCC) e a capacidade deste arbitrar os conflitos internos e exter-
nos ao “mundo do crime”. Na opinião dos moradores e profissionais nas
regiões estudadas, os homicídios teriam diminuído pelo fato de hoje este
fenômeno estar, portanto, regulado e contido pelo crime. Contenção dos
homicídios que, por sua vez, parece ser muito mais instrumental (inclusive
com o objetivo de não prejudicar as atividades ilícitas desses grupos), não
significando necessariamente um maior respeito ao direito à vida. Mesmo
porque se observa uma disseminação dos “tribunais do crime”,5 onde muitas
vezes está em questão a resolução sobre a morte ou vida de um acusado de
desrespeitar as regras impostas. Se como a população indica, esse é um fator
de grande relevância para entender a queda, coloca-se em suspenso o real
avanço da redução das TMH em termos de Estado de Direito.

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5 Dispositivo instituído pelos membros do “mundo do crime” em São Paulo, sobretudo


pela facção criminosa PCC, para arbitrar conflitos internos ou externos ao mundo do
crime nos presídios e também nas periferias onde exercem suas atividades ilícitas, a par-
tir de regulamento próprio e com a mediação de terceiros (Feltran, 2010; Dias, 2011).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 83

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Homicídios, drogas e explicações:
notas para uma discussão sobre as
causas e efeitos da violência em Fortaleza

César Barreira, Maurício Bastos Russo,


Luiz Fábio Paiva e Leonardo Damasceno Sá

Introdução
O controle social de crimes violentos se tornou uma obsessão de gover-
nos estaduais, em todo Brasil, e os últimos 30 anos podem ser estudados à
luz das experimentações feitas no terreno da segurança pública. No Ceará, a
seara segurança pública foi bastante fértil em sua constituição, inventivida-
des e implantações de políticas que permearam desde as formações policiais
até as ações de integração das forças de controle social.1 Além das ações
e políticas desenvolvidas, as gestões estaduais desenvolveram variadas ex-
plicações para justificar um avanço da violência, sobretudo, em territórios
urbanos. A capital do estado representou um caso emblemático porque, nos
últimos dez anos, experimentou uma deterioração importante das suas con-

1 A história desse processo pode ser observada em estudos que permearam o campo
da segurança pública no Ceará, analisando o que Barreira (2004) considerou como
estratégias para melhorar a ordem pública. Para compreender isto, consideramos im-
portante a leitura do estudo de Sá (2002) a respeito do processo de produção social dos
oficiais da Polícia Militar do Ceará, nas reflexões de Barreira et al. (2004) a respeito
das estratégias segurança pública implantadas pelo governo Jereissati e nas análises de
Barreira e Russo (2012), Paiva e Freitas (2015) e Brasil (2004) sobre o programa Ronda
do Quarteirão, entre outras pesquisas.
86 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

dições de segurança pública, com aumento significativo em seus números


de homicídios. A cidade de Fortaleza tornou-se objeto constante de tensões
e lutas políticas que, entre outras coisas, ressaltaram a ineficiência de ações
de governo para controle social de crimes violentos. Ao considerar a situa-
ção, gestores públicos investiram em justificações que atribuem o aumento
de crimes violentos, no Ceará, a problemas exógenos, com destaque para o
desenvolvimento de mercados ilegais de drogas e armas. Assim, o discur-
so oficial de várias gestões de governo se pautou na ideia de que medidas
adequadas foram tomadas e o trabalho realizado, mas o crime violento con-
tinuou avançado em razão de mercados ilegais que não podem ser controla-
dos apenas com medidas das gestões estaduais.
Em decorrência da necessidade de explicar as razões de crimes vio-
lentos se desenvolverem, os governos do Estado do Ceará, na figura dos
seus gestores de segurança pública, passaram a fomentar a ideia de que as
drogas exercem papel determinante na escalada de crimes violentos como
o homicídio. Em 2009, quando a situação era tratada pela imprensa como
grave, o então secretário de segurança pública do governo Cid Gomes, o
delegado da Polícia Federal (PF) Roberto Monteiro, em entrevista ao jor-
nalista Nonato Albuquerque, deu uma explicação considerada “curiosa”. 2
Para ele, em virtude da implementação do Programa Ronda do Quarteirão,
restaram poucas opções para traficantes de drogas obterem a restituição de
dívidas geradas em suas negociações, aumentando as execuções como prá-
ticas de acertos de contas entre os envolvidos na compra e venda de drogas.
O Secretário que o substitui no cargo, em 2012, coronel da Polícia Militar
(PM) Francisco Bezerra, insistiu na ideia de que “[...] a grande maioria das
pessoas que estão sendo mortas e que estão matando são aquelas direta-

2 Na descrição da entrevista gravada consta que “apesar de reconhecer todos esses avan-
ços [da política de segurança], o jornalista questionou o aumento da violência urbana,
dos homicídios – principalmente das execuções – indo de encontro às conquistas.
Roberto Monteiro dá uma explicação curiosa sobre esse aspecto”. A entrevista inte-
gral está disponível no portal Tribuna do Ceará, no endereço: <http://tribunadoceara.
uol.com.br/noticias/policia/roberto-monteiro-faz-balanco-da-seguranca-publica-no-
-ceara/>. Acesso em: 22 abr. 2018.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 87

mente ligadas ao tráfico de entorpecentes” (Entrevista, 2013). Sevilho Paiva,


delegado da PF, assumiu, em setembro de 2013, com a missão de conduzir
a política pública de segurança durante o período de preparação da cidade
de Fortaleza para a Copa do Mundo de 2014. Em sua gestão, preferiu consi-
derar os homicídios como um problema complexo a ser tratado por gestão
técnica, identificação das áreas críticas e trabalho policial pautado pela in-
teligência. Sua gestão foi marcada por denúncias de que existiria um grupo
de extermínio na Polícia Militar do Estado. Insinuações nesse sentido foram
feitas, também, pelo próprio governador do Estado, na época, Cid Gomes.
Em 2014, já na gestão do governador Camilo Santana, assumiu a gestão
da segurança o também delegado da PF Delci Teixeira. Nessa administração,
ao contrário do que ocorreu nas anteriores, as taxas de homicídio caíram.
Seu sucesso, no entanto, foi questionado pelos rumores de que facções cri-
minosas promoveram uma “pacificação” nas periferias de cidades cearenses,
locais de grande concentração dos homicídios. Delci também destacou que
o tráfico de drogas era um problema substantivo e afirmou que seria ne-
cessário maior controle das divisas do Estado para contenção do comércio
ilegal de entorpecentes.
Em comum, os secretários de segurança que mencionamos afirmaram
que apesar do panorama de violência evidenciado pelas taxas de homicídio,
o “trabalho estava sendo feito”, com recortes de prisões, contratações de po-
liciais e compras de equipamentos. No período de 2006 a 2016, investimen-
tos na força policial militar foram a grande tendência do Estado do Ceará,
aumentando o efetivo e criando programas como o Ronda do Quarteirão e
o Batalhão de Rondas Intensivas e Ostensivas (BPRAIO), popularmente co-
nhecido apenas como Raio.3 Esses investimentos estão diretamente relaciona-
dos à ideia de que os problemas de homicídio precisam ser enfrentados por
políticas de controle social, com medidas de repressão nas áreas identificadas
como críticas. Em geral, essas áreas são os bairros da periferia nos quais os
índices de homicídios são mais altos. Esses territórios são classificados como

3 Moreira (2013) analisou as dinâmicas de trabalho desse Batalhão, demonstrando


como suas operações se desenvolvem em bairros da periferia de Fortaleza.
88 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

perigosos e campo de atuação de grupos de criminosos que entram em confli-


to pelo controle dos mercados ilegais de drogas. Assim, suas práticas estariam
na origem dos problemas geradores de homicídios, agravados, desde 2015,
pela ação de fações criminosas exógenas ao Estado do Ceará, como Comando
Vermelho (CV), Família do Norte (FDN) e Primeiro Comando da Capital
(PCC). Em 2017, o governo de Camilo Santana substituiu Delci Teixeira por
outro delegado da PF, André Costa. O novo secretário apresentou um perfil
bastante alinhado com o uso de redes socais, com publicações quase diárias,
para 104.380 seguidores no Facebook e, diante de um ano inteiro de aumentos
das taxas de homicídio, mês a mês, assumiu o discurso de que o problema é
“nacional”. Segundo ele (André Costa),

[...] acho que na hora em que você acirra uma disputa, aumenta a
demanda por pessoas que estejam do seu lado. Mas esse é um pro-
cesso que já vem de alguns anos, não só no Ceará. Em todo o país.
Essas facções, que nasceram fora do estado, se alastraram por todo
o país. E a gente sabe o seguinte: por mais que a gente faça combate
eficiente sobre facções e lideranças locais, a questão toda não vai se
resolver porque não depende só do Ceará. Porque, se você prende
todo mundo, essas facções vão continuar existindo. E, em algum
momento, eles vão querer voltar para o Ceará. É um Estado visado,
que cresce muito, econômica e financeiramente, e esse crescimento
desperta interesse das facções. (Jornal O Povo, 10 out. 2017)

O discurso de André Costa segue um caminho já traçado por outros


secretários de segurança pública para falar dos fracassos de políticas públi-
cas de redução de homicídios no Estado do Ceará. Os governos Cid Gomes
e Camilo Santana insistiram em políticas de enfrentamento que não redu-
ziram os problemas de violência. Amargaram, em suas gestões, aumentos
sucessivos de homicídios que fizeram a cidade de Fortaleza figurar em ran-
ques nacionais e internacionais como uma das mais violentas. Problemas re-
lacionados a grupos de extermínio, greve de policiais e controle de presídios
e comunidades por facções criminosas foram parte de suas rotinas. Ainda
enfrentaram a ascensão política de um capitão da Polícia Militar, Wagner
Violência, Polícia, Justiça e Punição 89

Souza Gomes, cujo discurso de oposição se tornou o principal entrave para


reprodução dos governadores no poder.4 Por isso, Cid e Camilo, em ne-
nhum momento, optaram por uma autocrítica, com suporte em avaliações
técnicas de suas ações na área de segurança pública. Preferiram sustentar
que o “trabalho está sendo feito”, sempre da “melhor maneira possível”. Esse
discurso é a base de sustentação de suas argumentações que, entre outras
coisas, apontam o tráfico de drogas e a impunidade, também, como um
problema gerador de homicídios. Esses dois elementos se tornaram impor-
tantes para o Governo do Ceará porque eles retiram do Estado parte da
responsabilidade, deslocando-a para questões estruturais e que dependem
de outras forças políticas que, grosso modo, estão fora do alcance das gestões
estaduais. Não é nossa intenção discutir a validade dos discursos de gover-
no, mas problematizar, com suporte em pesquisas qualitativas e alguns nú-
meros de homicídios e apreensões de drogas a relação de causalidade entre
os mercados ilegais de drogas e os homicídios.
Neste ensaio, portanto, problematizamos a relação de causa e efeito re-
tratada nas falas de secretários de segurança do Estado do Ceará, realizando
um duplo movimento de sistematização de informações qualitativas e quan-
titativas. O trabalho consistiu em analisar números de homicídio, apreensão
de drogas e informações qualitativas oriundas de pesquisas realizadas pelo
Laboratório de Estudos da Violência (LEV) no âmbito do Instituto Nacio-
nal de Ciências e Tecnologia “Violência, Democracia e Segurança Cidadã”.
Trata-se de uma leitura que considera a existência de situações de violência
que marcam a Capital cearense em sua diversidade, afetando territórios da
cidade de maneira diferenciada e revelando características, também, das
desigualdades e injustiças sociais que a compõem. Observamos como essa
“cidade violenta” é fragmentada pela maneira como as práticas de crime se
distribuem em seus vários territórios, compondo um panorama desigual
que revela as multiplicidades territoriais de mundos sociais não definidos

4 O trabalho de Silva Neto (2016) analisa como se estabeleceram lideranças políticas


oriundas da PM-CE, com destaque para trajetória do Capitão Wagner (eleito deputa-
do estadual) e do Cabo Sabino (eleito deputado federal).
90 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

pelas mesmas condições sociais de produção e reprodução da violência.5


Para entendimento desse problema social e sua configuração, elaboramos
uma série de mapas, com suporte em informações do período de 2012 a
2014, possibilitando verificação do comportamento de taxas de homicídios
nos bairros de Fortaleza.

Considerações metodológicas
Ao levar em conta a associação do aumento da violência e da crimina-
lidade com o tráfico e uso de entorpecentes, decidimos cruzar números de
homicídios com os de apreensão de entorpecentes, tencionando demonstrar
relações espaciais entre esses dois acontecimentos. A ideia, no entanto, não
foi fazer uma análise de conglomerados, com desenvolvimentos estatísti-
cos necessários para apontar evidências que possibilitassem a verificação
de hipóteses, causalidades e efeitos. A ideia é, simplesmente, juntar essas
informações e retratá-las em mapas que possam mostrar onde, na cidade de
Fortaleza, acontecem os homicídios e as apreensões de drogas por consumo
e tráfico. Ao cartografar essas situações de violência, tentamos mobilizar
outros resultados provenientes de pesquisas qualitativas para analisar as
informações retratadas pelo mapeamento feito. O objetivo é demonstrar o
panorama de crimes violentos e das apreensões de drogas na Cidade, pro-
blematizando os discursos oficiais a respeito das causas de homicídio.
É importante destacar o fato de que, em linhas gerais, a inclusão de
Fortaleza entre as cidades mais violentas do mundo enseja uma série de
novas percepções e avaliações de vários agentes sociais e políticos. Ao se-
rem tratados como problemas relevantes nas lutas políticas entre grupos
que disputam posições privilegiadas na gestão do poder governamental, os
assuntos de segurança pública representam desafio permanente para sujei-
tos dispostos a disputar lugares de poder. Do ponto de vista acadêmico, é
preciso observar as múltiplas disposições em torno de críticas e explicações

5 As pesquisas de Barreira (2008), Diógenes (1999), Sá (2010), Aquino (2016) e Paiva


(2014) demonstram as dinâmicas de conflitualidades, ilegalismos e violências que per-
meiam os territórios urbanos de Fortaleza, situando suas periferias como áreas despres-
tigiadas do ponto de vista material e simbólico no contexto social da Capital cearense.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 91

para a gestão das políticas de controle social desenvolvidas no Estado do


Ceará. Neste trabalho, realizamos algumas aproximações e distanciamentos
analíticos que permitem problematizar a significação moral e política do
fenômeno, lidando com dados que podem revelar pistas, ensejar problemá-
ticas e novas descrições sobre a complexidade das relações entre práticas e
discursos, pensando Fortaleza como um caso concreto no espaço dos pos-
síveis. Ao problematizar a Cidade, pensamos os acontecimentos criminais
como problemas sociais relevantes para indicar a pluralidade de ações e re-
lações sociais que, em linhas gerais, povoam um centro urbano de múltiplas
confluências e contradições.
Antes de mostrarmos os mapas, são necessárias algumas considerações
metodológicas. A malha digital foi obtida no sitio do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), portanto, utiliza uma divisão por bairros con-
siderados oficiais. Em alguns casos, os dados disponibilizados pela Secreta-
ria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informam localidades que,
embora reconhecidas socialmente, não são “bairros oficiais”. É o caso, por
exemplo, da Gentilândia, que na verdade se constitui numa subárea do bairro
Benfica. Nestes casos, os dados disponibilizados por subárea foram agregados
aos indicadores do bairro oficial. Outra dificuldade está relacionada aos indi-
cadores agregados a uma área, quando na realidade a composição é de dois
bairros. Por exemplo, os dados informam que um fato ocorreu no Conjunto
Ceará, mas sem informar se foi no Conjunto Ceará I (nº 42, no mapa) ou no
Conjunto Ceará II (nº 75). Nestes casos, foi preciso considerar os dois bairros
como região única, portanto, os valores serão os mesmos para os dois bairros.
Caso semelhante ocorreu com Praia do Futuro I e II.
Trabalhamos com dados gerais de apreensão de entorpecentes. De tal
modo, não podemos fazer uma discriminação mais detalhada do tipo de
comércio que estava sendo desenvolvido. As informações qualitativas que
sustentam a análise, também, são restritas a determinadas áreas da cida-
de, onde os pesquisadores do LEV desenvolveram trabalhos sistemáticos de
pesquisa. Não obstante, sustentam as nossas reflexões entrevistas realizadas
com operadores de segurança pública, promotores, defensores públicos, li-
deranças comunitárias, militantes de direitos humanos, advogados e juízes
92 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

que atuam em praticamente toda a Fortaleza. Por isso, insistimos em uma


análise sobre a Cidade e não de um bairro específico. Os resultados, no en-
tanto, são submetidos a ampla revisão e outros investimentos de pesquisa
que possam questionar seu alcance. Nos mapas, trabalhamos com núme-
ros absolutos, mostrados em seus aspectos brutos para ilustrar de maneira
muito simples os locais onde foram registrados homicídios e apreensões de
drogas. Ao longo do trabalho, indicamos algumas considerações sobre os
locais destacados nos resultados de nossos cruzamentos expressos em ta-
belas, com definição dos territórios que concentram os maiores números
de homicídio e apreensão de drogas. Partimos do pressuposto que as apre-
ensões retratam a existência de mercados ilegais de drogas e seus desenvol-
vimentos locais, com manutenção de esquemas que, em um determinado
momento, foram alvo de atenção de operações policiais direcionadas para o
controle social das drogas.

Mapeamento dos homicídios e das apreensões


de drogas em Fortaleza
Para compor os mapeamentos relacionados aos homicídios em Fortale-
za e às apreensões de drogas em bairros da Capital, contamos com informa-
ções da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) do estado
do Ceará. O período analisado recaiu nos anos de 2012 a 2014, quando a
cidade Fortaleza foi retratada no relatório do Consejo Ciudadano para la
Seguridad Pública y Justicia Penal do México6 como uma das dez cidades
“mais violentas do mundo”. A Capital do Ceará figurou, em 2013, na sétima
posição (72,81 homicídios por 100 mil/hab.) e, em 2014, na oitava (66,65
homicídios por 100 mil/hab). Convém ressaltar que, em 2012, Fortaleza já
aparecia na décima segunda posição. Por isso, esses foram os anos escolhi-
dos para que pudéssemos analisar o comportamento dos homicídios nos
bairros urbanos da Cidade.

6 Disponível em: <http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/sala-de-prensa/1356-cara-


cas-venezuela-la-ciudad-mas-violenta-del-mundo-del-2015>. Acesso em: 22 abr. 2018.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 93

Gráfico 1. Total de homicídios, Fortaleza, 2012-2014.

Fonte: Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS/CE)

Interessa-nos saber como ocorreu a espacialização desses homicídios


em Fortaleza, problematizando sua distribuição espacial e submetendo o re-
trato oferecido pelos mapas a análises decorrentes de pesquisas qualitativas
realizadas no âmbito dos projetos desenvolvidos pelo LEV. Este representa
um exercício analítico submetido à crítica da comunidade acadêmica para
avaliação e desenvolvimento de outras estratégias de pesquisa para conhe-
cer as causalidades e efeitos do fenômeno estudado. Conforme verificado,
observamos que a cidade de Fortaleza possui 120 bairros. Para facilitar a
identificação de cada um deles nos mapas, segue a tabela com o código uti-
lizado para sua representação.
94 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Tabela 1. Códigos de bairros de Fortaleza

Código Bairro Código Bairro


1 São Gerardo 61 Jangurussu
2 Aldeota 62 Jardim das Oliveiras
3 Álvaro Weyne 63 Lagoa Redonda
4 Amadeu Furtado 64 Sapiranga/Coité
5 Moura Brasil 65 Messejana
6 Barra do Ceará 66 Parque Iracema
7 Benfica 67 Parque Manibura
8 Bom Futuro 68 Paupina
9 Carlito Pamplona 69 Pedras
10 Centro 70 Sabiaguaba
11 Cocó 71 Salinas
12 Cristo Redentor 72 Bom Jardim
13 Damas 73 Bonsucesso
14 Dionísio Torres 74 Canindezinho
15 Farias Brito 75 Conjunto Ceará II
16 Fátima 76 Conjunto Esperança
17 Floresta 77 Dendê
18 Jacarecanga 78 Granja Lisboa
19 Jardim América 79 Granja Portugal
20 Jardim Guanabara 80 Jardim Cearense
21 Jardim Iracema 81 Manoel Sátiro
22 Joaquim Távora 82 Maraponga
23 José Bonifácio 83 Mondubim
24 Meireles 84 Parque Dois Irmãos
25 Monte Castelo 85 Parque Presidente Vargas
26 Mucuripe 86 Parque São José
27 Papicu 87 Parque Santa Rosa
28 Parque Araxá 88 Passaré
29 Parquelândia 89 Prefeito José Valter
30 Parreão 90 Siqueira
31 Pirambú 91 Aerolândia
32 Praia de Iracema 92 Aeroporto
33 Presidente Kennedy 93 Alto da Balança
34 Rodolfo Teófilo 94 Bela Vista
35 São João do Tauape 95 Boa Vista
Violência, Polícia, Justiça e Punição 95

36 Varjota 96 Couto Fernandes


37 Vicente Pinzon 97 Demócrito Rocha
38 Vila Ellery 98 Dias Macêdo
39 Vila Velha 99 Itaoca
40 Antônio Bezerra 100 Itaperi
41 Autran Nunes 101 Jóquei Clube
42 Conjunto Ceará I 102 Parque Santa Maria
43 Dom Lustosa 103 Montese
44 Genibaú 104 Pan Americano
45 Henrique Jorge 105 Parangaba
46 João XXIII 106 Pici
47 Padre Andrade 107 Serrinha
48 Quintino Cunha 108 Vila Pery
49 José de Alencar 109 Vila União
50 Ancuri 110 Cais do Porto
51 Barroso 111 Cidade 2000
52 Cajazeiras 112 Manuel Dias Branco
53 Cambeba 113 Praia do Futuro I
54 Cidade dos funcionários 114 Praia do Futuro II
55 Coaçu 115 Planalto Ayrton Senna
56 Curió 116 De Lourdes
57 Edson Queiroz 117 Conjunto Palmeiras
58 Engenheiro Luciano Cavalcante 118 São Bento
59 Guajerú 119 Olavo Oliveira
60 Guararapes 120 Novo Mondubim
96 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Mapa 1. Total de homicídios e entorpecentes apreendidos (g), Fortaleza, 2012.

Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV

Mapa 2. Total de homicídios e entorpecentes apreendidos (g), Fortaleza, 2013

Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV


Violência, Polícia, Justiça e Punição 97

Mapa 3. Total de homicídios e entorpecentes apreendidos (g), Fortaleza, 2014

Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV

Mapa 4. Total de homicídios e consumo de entorpecentes (g), Fortaleza, 2012

Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV


98 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Mapa 5. Total de homicídios e consumo de entorpecentes (g), Fortaleza, 2013

Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV

Mapa 6. Total de homicídios e consumo de entorpecentes (g), Fortaleza, 2014

Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV


Violência, Polícia, Justiça e Punição 99

Tabela 2. Posição dos bairros, apreensão de entorpecentes e homicídios em


Fortaleza, 2012
Apreensão de
Bairros Homicídios
entorpecentes
Messejana 1º 6º

Cidade dos Funcionários 2º 63º

Jacarecanga 3º 52º

Vila Ellery 4º 81º

Jangurussu 5º 2º

Barra do Ceará 6º 1º

Boa Vista 7º 68º

São João do Tauape 8º 26º

Aeroporto 9º 96º

Conjunto Palmeiras 10º 5º

Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV


100 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Tabela 3. Posição dos bairros, apreensão de entorpecentes


e homicídios em Fortaleza, 2013

Bairros Apreensão de entorpecentes Homicídios

Guajeru 1º 104º

Serrinha 2º 30º

Montese 3º 97º

Parquelândia 4º 81º

Aldeota 5º 67º

Granja Lisboa 6º 5º

Passaré 7º 6º

Messejana 8º 9º
Parque Santa
9º 73º
Rosa
Parque Santa
10º 69º
Maria
Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV
Violência, Polícia, Justiça e Punição 101

Tabela 4. Posição dos bairros, apreensão de entorpecentes


e homicídios em Fortaleza, 2014

Bairros Apreensão de entorpecentes Homicídios

Aerolândia 1º 43

Paupina 2º 82

Mondubim 3º 6

Messejana 4º 19

Passaré 5º 3

Barra do Ceará 6º 1

Presidente Kennedy 7º 77

Bonsucesso 8º 21

Granja Lisboa 9º 2

Jóquei Clube 10º 80

Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV

Tabela 5. Posição dos bairros, consumo de entorpecentes


e homicídios em Fortaleza, 2012

Bairros Consumo de entorpecentes Homicídios

Jardim Iracema 1º 19

Pici 2º 25

Granja Lisboa 3º 14

Bom Jardim 4º 3

Álvaro Weyne 5º 29

Edson Queiroz 6º 28

Itaoca 7º 59

Benfica 8º 97

Meireles 9º 100

Pirambú 10º 8
Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV
102 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Tabela 6. Posição dos bairros, consumo de entorpecentes


e homicídios em Fortaleza, 2013

Bairros Consumo de entorpecentes Homicídios

Rodolfo Teófilo 1º 54

Bom Jardim 2º 2

Prefeito José Valter 3º 28

Antônio Bezerra 4º 37

Barra do Ceará 5º 1

Messejana 6º 9

Monte Castelo 7º 64

Centro 8º 26

Pirambú 9º 24

Praia de Iracema 10º 78


Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV

Tabela 7. Posição dos bairros, consumo de entorpecentes


e homicídios em Fortaleza, 2014

Bairros Consumo de intorpecentes Homicídios

Conjunto Ceará I e II 1º 46
Barra do Ceará 2º 1
Vicente Pinzon 3º 8
Centro 4º 25

Vila Pery 5º 56

Meireles 6º 81

Fátima 7º 92

Bom Jardim 8º 4

Edson Queiroz 9º 24

Praia de Iracema 10º 90

Fonte: SSPDS/CE e Tabulação Especial LEV


Violência, Polícia, Justiça e Punição 103

Sobre os resultados do mapeamento


Como em outros trabalhos de pesquisa que cartografaram a violên-
cia em centros urbanos, observamos que o maior número de homicídios
acontece na periferia, afetando as populações mais pobres, sobretudo, os
mais jovens e negros.7 Os discursos de governantes e gestores da área de
segurança, no Ceará, como já demonstrado, associam os homicídios aos
mercados ilegais de drogas. É comum que operadores da área de segu-
rança pública interpretem, seguindo essa linha de pensamento, atribuam
aos assassinos e aos assassinados o envolvimento com os mercados ilegais
de drogas como elemento comum. Ao considerar a ideia produzida por
esses discursos, buscamos testar a hipótese, relacionando a informações
de homicídio, com amparo em informações disponibilizadas pela SSPDS
a respeito de apreensões de drogas por tráfico e consumo, na cidade de
Fortaleza, no período de 2012 a 2014.
Arrimados no que foi demonstrado nos mapas, em linhas gerais, os
bairros que denotam maiores indicadores de violência são os que con-
centram maior número de trabalhadores pobres, com precários serviços
públicos e situações de violência relacionadas a disputas internas pelo
controle do tráfico nas comunidades locais. São bairros delineados por
antigas divisões territoriais, oriundas de rivalidades entre gangues pro-
venientes dos anos de 1980 e 1990. Como é possível observar no Mapa 1,
existem correlações entre homicídios e apreensões de entorpecentes na
Cidade, sendo as áreas de maior incidência de crimes de homicídio as que
concentram grandes apreensões de entorpecentes. São lugares de trânsito,

7 Entre outros trabalhos, citamos como exemplos os estudos de Beato Filho (1998;
2001) que analisam as distribuições espaciais e os conglomerados de homicídios na
cidade de Belo Horizonte. O Núcleo de Estudos da Violência (NEV), também, realiza
a sistematização de homicídios, com representações gráficas da distribuição desse e
outros crimes em seu sitio eletrônico. A tese de Nery (2016) examinou as variações dos
homicídios, na cidade de São Paulo, utilizando técnicas estatísticas e geoestatísticas. E
Menezes, Silveira-Neto e Ratton (2013) estudaram a dependência espacial relacionada
às taxas de homicídio de bairros urbanos do Recife.
104 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

atuação e conflitos entre grupos locais e “organizações criminosas”, tam-


bém conhecidas como “facções” e “o crime”.8
As pesquisas realizadas na periferia revelaram que os mercados ilegais
de drogas têm um papel relevante em mortes violentas, decorrentes de con-
flitos territoriais e acertos de contas entre os envolvidos nos esquemas de
comercialização de entorpecentes. Esta relação, no entanto, não é de cau-
salidade mecânica e envolve mais do que uma verdade que funciona para
explicar todos os crimes de homicídio na Cidade, como intentam fazer crer
governantes e gestores da área de segurança pública. Os mercados ilegais de
drogas, apesar de afetarem a vida de moradores pobres, estão em pratica-
mente todos os bairros de Fortaleza. O problema é que apenas na periferia
se observa que existem grupos com incidência direta na vida da comunida-
de. Deixar viver e fazer morrer é parte do trabalho de envolvidos nas dinâ-
micas locais, com apoio de um controle armado que se intensifica e influi de
maneira significativa no número de homicídios. Ao verificar a concentração
dos homicídios em bairros da periferia, percebemos que existem apreen-
sões importantes de grandes quantidades de drogas. Essas, no entanto, não
são exclusivas dos mais pobres e evidenciam algo conhecido na Capital do
Ceará: o consumo e o tráfico ocorrem com igual intensidade em bairros
urbanos das classes média e alta.
Grandes apreensões de drogas foram realizadas em bairros que não fi-
guram entre os mais violentos da Cidade e que, inclusive, possuem poucos
casos de homicídios em comparação a periferia. Na análise, ainda é preciso
considerar a existência de bairros de classe média, com poucos índices de
homicídio, em geral, concentrados em zonas muito pobres. Com exceção
de Messejana, Jangurussu, Barra do Ceará e Conjunto Palmeiras, os demais
com maior número de apreensão de drogas estão bem distantes das primei-
ras dez primeiras posições dos bairros com maior número de homicídios. O
bairro Aeroporto está ao lado da Serrinha, região onde a violência se inten-
sificou em virtude da ação de gangues que disputam uma área estratégica,

8 Para compreender mais sobre essa dinâmica, ver o capítulo Jovens vítimas de violência:
as dinâmicas dos homicídios na periferia de Fortaleza.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 105

próxima à BR-116, uma das principais entradas e saídas de Fortaleza, e a


bairros de consumo, como o Benfica. Esse último, que é boêmio e universi-
tário, com drogas como maconha e cocaína circulando entre festas e bares
da localidade. Outro elemento importante é o aeroporto, que se localiza no
bairro e também é palco de apreensões de drogas que saem de Fortaleza
com destino à Europa. Obviamente, as apreensões não podem ser pensadas
se não forem consideradas as escolhas feitas por forças policiais atuantes no
controle social do tráfico de drogas no Ceará.
No ano de 2013, dos dez bairros com maior apreensão de drogas so-
mente Granja Lisboa, Passaré e Messejana fazem parte dos dez com maior
quantitativo de homicídios. O Guajeru, com a maior apreensão de drogas,
teve somente dois homicídios no ano. A Barra do Ceará, com a maior quan-
tidade de homicídios nestes anos (65) aparece em décimo segundo lugar na
lista de apreensão de drogas. No ano de 2014, verificamos que as apreensões
se intensificaram na Cidade, com maior número de drogas apreendidas nos
bairros com maior número de crimes de homicídio. O Centro também apa-
rece entre aqueles de considerável quantitativo de apreensões. Em relação a
2012 e 2013, a novidade são as apreensões na Aerolândia, situada em região
próxima ao Aeroporto e local de passagem da periferia para a área nobre de
Fortaleza. A Aerolândia, juntamente com Aeroporto e Serrinha, está situada
num ponto central, mas com problemas comuns aos bairros onde se con-
centram os maiores números de homicídios e estão situados nas áreas do
perímetro mais distante em relação ao Centro. Além de uma periferia fisica-
mente distante das áreas nobres, Fortaleza dispõe de inúmeras áreas pobres
que permanecem conjugadas aos territórios de ocupação das suas elites e da
classe média alta. Segundo nossos interlocutores, o tráfico de drogas encon-
trou nessas áreas a facilidade para recrutar sua mão de obra e as condições
ideais de movimentar o negócio próximo a um mercado consumidor capaz
de pagar por drogas de “boa qualidade e preços mais altos”.
No ano de 2014, somente Passaré, Mondubim, Granja Lisboa e a Bar-
ra do Ceará aparecem entre os dez nas duas listas. Aerolândia, que teve a
maior quantidade de drogas apreendida, ficou bem longe das primeiras po-
sições em relação ao homicídio. Analisando os três mapas, é possível perce-
106 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ber que, em 2012, dos três bairros com maior número de homicídios, dois
deles também estão entre aqueles com maior apreensão de drogas, e um
ficou na penúltima categoria (de 1001 g a 5000 g). Em 2013, dos dez com
maior quantidade de homicídios, seis também estavam entre aqueles com
maior apreensão de drogas e três estão na penúltima categoria. O Genibaú,
embora tendo elevado o total de homicídios, teve valores de apreensão de
drogas baixo. Em 2014, houve correspondência direta, pois os sete bairros
com maior número de homicídios também estão entre aqueles com maior
volume de apreensões. Se o panorama fosse somente este, poderíamos ga-
rantir que haveria significativa razão para acreditar que há uma ligação di-
reta entre apreensão de drogas e homicídios. Como podemos visualizar nas
tabelas, entretanto, os bairros com maiores apreensões de drogas não são,
necessariamente, aqueles com maior número de homicídios, com exceção
apenas de Messejana, no ano de 2012.
Em 2012, dos vinte e cinco bairros com apreensão de drogas acima
de cinco quilos, apenas três estavam entre aqueles com maior registro de
homicídios. Em 2013, foram vinte e quatro bairros com alta apreensão e
somente seis entre aqueles contando mais vítimas fatais. No ano de 2014,
foram quarenta e um bairros, o que significa um terço dos bairros de For-
taleza, com apreensões superiores a cinco quilos, sete figuram entre os
com maior total de homicídios.
No universo temporal analisado, a quantidade de drogas apreendida
aumentou em mais de seis vezes, passando de aproximadamente 540 kg,
em 2012, para quase três toneladas e meia, em 2014, sendo que mais de
duas toneladas foram apreendidas apenas na Aerolândia. Se podemos dizer
que aumentou a eficiência policial neste período, também é válido expressar
que Fortaleza recebeu cada vez mais drogas. Malgrado o aumento constante
do número de apreensões de drogas, a retirada de quantidades expressivas
de entorpecentes não significou nenhuma diminuição de homicídios. Ele
aumentou sistematicamente, acompanhando o trabalho de repressão e seus
prováveis efeitos na vida da cidade. É comum ouvir de policiais que o seu
trabalho é como “enxugar gelo”, pois apreendem cada vez mais e maiores
quantidades de drogas, sem que isso afete um mercado crescente em oferta
Violência, Polícia, Justiça e Punição 107

e procura. Foram os próprios operadores de segurança pública que nos aler-


taram para o fato de Fortaleza não apenas ser mais um local de passagem,
como também locus de mercado rentável. Esse fenômeno auferiu grande
força nos últimos cinco anos, quando policiais asseveram que a repressão
nunca foi tão “eficiente” em razão das grandes quantidades de drogas retira-
das de circulação. É oportuno ressaltar a ideia de que as dinâmicas do tráfi-
co incidem em outras manifestações criminais decorrentes dos processos de
lavagem de dinheiro e acertos de contas, envolvendo múltiplos agentes que,
entre outras coisas, assumem compromissos econômicos e também morais
com a gestão do crime no território urbano.
Assim como no caso da apreensão de drogas, dos dez primeiros bairros
com maior ocorrência de consumo de entorpecentes registrado, apenas dois
figuram na lista com maior número de homicídios – Bom Jardim e Pirambú
– ambos com até cem gramas de entorpecentes apreendidos para consumo.
A Barra do Ceará, embora seja um dos três com maior quantidade de homi-
cídios, neste ano, registrou um valor muito pequeno de consumo. Esse, no
entanto, aparece de maneira significativa em áreas de circulação das classes
médias e da elite, como os bairros universitários Benfica e Pici. Assim, a inves-
tigação demonstra que, embora ações policiais de apreensão se concentrem
na periferia, o tráfico de drogas funciona de maneira muito mais abrangente.
Ele é fenômeno multissituado em um espaço geográfico de variadas possibi-
lidades de movimentação econômica que, em linhas gerais, incide em vio-
lência apenas para os mais pobres, enquanto a classe média e a elite gozam
da proteção social para o consumo em suas áreas de circulação, lazer, estudo
e trabalho. O mapeamento realizado demonstra que as drogas circulam por
toda a Cidade, mas a “famigerada violência do tráfico” se concentra nas mes-
mas áreas ano após ano. Isso demonstra que o Estado opera orientado para
“combater” o crime em territórios prescritos pela violência dos homicídios,
enquanto ele se movimenta de maneira mais ágil, imprimindo lógicas dis-
tintas aos diversos espaços sociais em que se desdobram seus esquemas. O
traficante da faculdade enfrentará, possivelmente, dificuldades diferentes do
traficante que atua na periferia e o mesmo vale para os consumidores em áreas
compreendidas pelo poder público como diferenciadas.
108 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Apenas três bairros com maior quantidade de homicídios registrados


este ano aparecem na lista: Barra do Ceará, Bom Jardim e Messejana. Rodol-
fo Teófilo registrou 13 homicídios neste ano, longe dos primeiros lugares,
mas teve mais de 900 gramas de entorpecentes apreendidos por consumo,
duas vezes e meia do segundo colocado. Em 2014, apenas Barra do Ceará e
Bom Jardim estão entre aqueles com maior número de homicídios que fi-
guram na lista de consumo de entorpecentes. Em linhas gerais, observamos
que a interpretação de que os homicídios têm relação direta com o tráfico de
drogas é, apenas, parcialmente correta. Essa ideia é sustentada de maneira
substancial por gestores da área de segurança pública e justiça criminal no
estado do Ceará.9 Eles sustentam que as drogas são o principal vetor da cri-
minalidade violenta, alegando que atuam de maneira insistente e do melhor
modo possível. O problema, na visão de governantes, é que os mercados
ilegais de drogas possuem esquemas que escapam das possibilidades de en-
frentamento disponíveis pelos governos estaduais. Eles insistem na mesma
lógica de trabalho, porque acreditam que se fizessem diferente a situação
poderia ser ainda pior. O problema do tráfico de drogas é agenciado como
uma espécie de “mal incontornável”, necessitando esforços da União e de
outras áreas do poder público para sua contenção.
Ao transferir a responsabilidade dos problemas de segurança para as
drogas, os governos do Estado do Ceará aceitam a ideia de que “fizeram
tudo o possível”, mas o tráfico é um problema que ultrapassa suas gestões.
Não se discute o modo como suas gestões reproduzem a mesma lógica que,
historicamente, é ineficaz no tratamento do problema. Como observamos,
embora o tráfico de drogas esteja situado na cidade, com o consumo em to-
das as suas áreas, inclusive nobres, a insistência do Estado é “combater com
violência” segmentos desse mercado ilegal situado na periferia. Tais razões

9 Sobre a situação, o governador, no período aqui analisado, Cid Gomes, e membros


da sua equipe de governo, ao longo de sua gestão, deram várias declarações respon-
sabilizando o tráfico de drogas pelo crime no Ceará. Ver CID Gomes culpa tráfico de
drogas por violência. Diário do Nordeste, Fortaleza, 25 de julho de 2013. Disponível
em: <http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/cidade/cid-gomes-cul-
pa-trafico-de-drogas-por-violencia-1.371433>. Acesso em: 4 abr. 2016.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 109

proporcionam não a resolução, mas a complicação de um problema que, em


cidades como Fortaleza, afeta os mais pobres duplamente: primeiro, porque
são as vítimas da violência típica das organizações criminosas; e, segundo,
pelo fato de serem também as vítimas da mais violência gerada pelo Estado.
O combate ao tráfico de drogas, em Fortaleza, enseja inúmeras mortes,
mas elas estão concentradas nos locais de moradia dos mais pobres. En-
quanto isso, as drogas por bairros nobres, com um consumo relativamente
tranquilo em lugares reconhecidos como “que dá pra fumar e cheirar” sem a
interferência de nenhuma força de segurança pública. Portanto, para avaliar
a responsabilidade e o peso do mercado ilegal de drogas nos crimes de ho-
micídio, é preciso compreender as dinâmicas de enfrentamento do tráfico
de drogas em uma metrópole com demarcações materiais e simbólicas que
precisam ser consideradas.10 Em suma, as drogas não ensejam a morte de
nenhuma pessoa, mas sim as relações que envolvem a distribuição espacial
do crime em justaposição às políticas de controle social implementadas para
o enfrentamento do crime e violência na Capital do Ceará. Menos do que
um problema decorrente do tráfico e do consumo de drogas, nos reporta-
mos a um problema efetivo do modelo de execução de uma política pública
ineficiente na proteção social e garantia de direitos dos mais pobres.

Algumas considerações sobre a reprodução da violência em Fortaleza


Os mapas dos homicídios em Fortaleza revelam que há uma espécie de
“cinturão vermelho” nos limites da Capital cearense. Acontece um fenôme-
no comum a outras cidades brasileiras cuja espacialidade do crime revela
que o maior número de homicídios ocorre na periferia. A situação de Forta-
leza é peculiar em duas dimensões: 1- o período de 2006 a 2014 foi virtuoso
na execução de projetos na área de segurança pública, com investimentos
significativos na Polícia Militar e em projetos subsidiados com recursos do
Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci); 2- a

10 A pesquisa de Snyder e Duran-Martinez (2009) analisa, entre outras coisas, como a


violência não é uma condição inerente aos mercados de drogas. Para entender as di-
nâmicas desses mercados, é preciso compreender, também, os esquemas de proteção
disponíveis para os envolvidos possam desenvolver suas ações.
110 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

consolidação do tráfico de drogas e armas na Cidade não produziu pacifi-


cação das áreas urbanas que se tornaram estratégicas para o mercado ilegal
de drogas e armas, persistindo lutas territoriais e separações decorrentes
de guerras entre gangues rivais que, historicamente, compõem o território
fortalezense. Antes de expor as considerações sobre esses dois pontos, é pre-
ciso esclarecer que eles não esgotam analiticamente as possibilidades expli-
cativas do problema ora sob foco, pois apenas o situam com base no que
consideramos substancial nessa discussão, sendo sempre possível que pes-
quisadores encontrem outras chaves analíticas para explicar esse problema.
Desde o de 2006, a segurança pública passou a ser um problema central
do governo eleito do Estado do Ceará, sendo o programa Ronda do Quar-
teirão sua principal plataforma eleitoral (Barreira e Russo, 2012). Ademais,
é importante ressaltar o fato de que o Ronda do Quarteirão surgiu em um
momento político importante, na realidade brasileira, cuja segurança pú-
blica foi pauta nacional e alvo de ações do Governo Federal para o setor
por intermédio do Pronasci. A articulação do Ronda do Quarteirão com
projetos sociais como Território da Paz e Mulheres da Paz foi um elemento
importante da política de segurança pública desenvolvida no Estado. O que
desperta atenção ao visualizar em geral as informações de crime no Ceará
é o fato de, ao contrário de outras cidades brasileiras, com investimentos
semelhantes na área de segurança pública, não tem havido retração dos ho-
micídios. Pelo contrário, cidades como Fortaleza e outros municípios do
Estado passaram a denotar indicadores de violência que foram se agravando
no período de 2006 a 2014.
Os recursos aplicados no Programa Ronda do Quarteirão e dos pro-
jetos subsidiados pelo Pronasci não surtiram efeitos positivos na redução
dos homicídios no Ceará. Essa evidência demonstra que ações, no terreno
da segurança pública, esbarraram em problemas sociais graves que envol-
vem tanto o funcionamento do sistema de segurança pública e justiça cri-
minal, quanto as dinâmicas das violências, crimes e conflitos estruturantes
das condições sociais de reprodução dos homicídios. Observamos que a
expansão dos números de casos de homicídio aconteceu em detrimento de
esforços que, como no caso do Ronda do Quarteirão e projetos do Pronasci,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 111

tinham como objetivo a mudança de circunstâncias propícias aos crimes,


sobretudo, na periferia.
Em linhas gerias, verificamos que as ações na seara da segurança pú-
blica, inventadas e reinventadas a cada governo, encontraram um limite es-
pecífico na dinâmica institucional das forças atuantes no campo. Assim, o
Ronda do Quarteirão logrou êxito em seu trabalho de aproximar a comuni-
dade das forças policiais. Não obstante, problemas cotidianos relacionados
à falta de apoio institucional e à dinâmica do trabalho com as forças poli-
ciais civis revelaram algumas realidades difíceis de superar. Nas primeiras
intervenções do Ronda do Quarteirão, foi possível observar dificuldades
em garantir que prisões realizadas fossem efetivadas por incapacidade de a
Delegacia Distrital receber os presos. “A polícia prende e a justiça solta” tor-
nou-se fala de rotina dos policiais do Ronda que, segundo nossos interlocu-
tores, foram minando o trabalhando “diferenciado”, conforme pretendido a
princípio pelo Projeto. Práticas comuns aos trabalhos das forças de policiais
militares passaram a ser denunciadas pelas comunidades, evidenciando que
o processo de acomodação dos novos policiais às classificadas “velhas prá-
ticas” se tornou comum e possibilitou recuos significativos em relação as
pretensões iniciais do Programa. Assim, ao final do Governo Cid Gomes, os
relatos sobre o Ronda do Quarteirão se concentravam na constatação de que
ele havia sido uma boa ideia, mas, em virtude de problemas na execução, o
Programa precisava ser reestruturado pela nova gestão.
O Pronasci representou ainda algo mais frustrante do ponto de vista
das políticas públicas para a segurança pública no Estado do Ceará. Ao criar
os Territórios da Paz, o Programa federal visava a estruturar os bairros com
maiores índices de violência por meio de ações coordenadas em diversas
áreas de ação do Governo. Lançado pelo Ministério da Justiça, o Programa
tinha a seguinte perspectiva em relação ao campo da segurança pública:
O Pronasci é o inverso da política de segurança pública tradicional.
Ele articula um conjunto de projetos de acolhimento do jovem e ações para
mudar aquela polícia que entra na comunidade, bate e, às vezes, mata as
pessoas e sai, disse o ministro, reafirmando a mudança de paradigma que o
programa representa. Uma das metas é oferecer condições de trabalho para
112 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

que o policial respeite e trate o todo cidadão como merece. (Em: <http://
mj.jusbrasil.com.br/noticias/2022984/fortaleza-e-o-mais-novo-territorio-
-de-paz-do-pronasci>. Acesso em: 25 abr. 2018).
Foi muito interessante perceber, em entrevistas realizadas com gesto-
res da área de segurança pública, que o Pronasci foi recebido em Fortaleza
como “um senhor projeto”. Essa ideia refletia as ambições do Programa em
transformar uma área considerada difícil, atuando onde os indicadores de
violência denotavam as realidades mais complicadas em virtude da difusão
do crime, sobretudo, os de homicídio. A leitura de que o Território da Paz
trouxe algo novo e importante para a segurança é seguida de uma visão
comum aos que participaram do projeto e avaliam como não foi possível
realizar as metas almejadas. Ao se tornar um Território da Paz, os indica-
dores dos bairros contemplados pelas ações, como os da região do Grande
Bom Jardim, experimentaram redução em suas taxas de criminalidade. No
mesmo período, no entanto, outros segmentos da periferia de Fortaleza pas-
saram a ter aumentos significativos nos índices de criminalidade violenta,
fazendo com que, no geral, a Cidade passasse, na segunda década do século
XXI, a figurar entre as mais violentas do Brasil e do Mundo.
Mesmo com ações de policiamento e projetos sociais na periferia, foi
observado nos anos percorridos por nosso trabalho de investigação que,
grosso modo, as guerras entre grupos rivais em determinados bairros não re-
cuaram, avançando e produzindo números de mortos inéditos no contexto
de determinadas áreas. Impressiona a situação de bairros que vivenciaram,
na fase analisada, finais de semana com dezenas de mortos decorrentes de
uma “aparente” guerra entre traficantes. Sem dúvida, as lutas pelo controle
do tráfico de drogas e armas representam componentes importantes da ex-
plicação do crescimento dos homicídios em Fortaleza. Não questionamos se
as mortes decorrentes do tráfico sejam predominantes em relação a outras
causalidades de homicídio. Isto não explica por que Fortaleza e outras regi-
ões do Estado do Ceará avançaram nas taxas de homicídio, enquanto muni-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 113

cípios do mesmo porte regrediram substantivamente seus indicadores.11 As


guerras entre grupos rivais, na Capital cearense, são fenômenos decorrentes
de rivalidades anteriores ao próprio tráfico de drogas. Quando as drogas e as
armas chegam a Fortaleza, os sujeitos que outrora disputavam o mando com
“murros e pedradas” passaram a utilizar tocaias e balas para resolver suas
diferenças. Neste fenômeno, o Estado se tornou conivente com o morticínio
na periferia, ao se omitir da obrigação de investigar casos de homicídios
que, em tese, eram suspeitos de ser casos de “acertos de conta”.
Passou a ser um modus operandi das forças de segurança pública e jus-
tiça, na periferia de Fortaleza, “deixar morrer”. Os programas policiais evi-
denciaram como que o primeiro passo da ação na cena do crime era iden-
tificar quem era o morto e se ele tinha algum tipo de antecedente criminal.
Bastava suspeitar de que o morto tinha alguma espécie de envolvimento,
conhecimento ou proximidade com ações ilegais e criminosas para concluir
a morte como “mais um caso de acerto de contas”. Cultivou-se cuidado-
samente, pela ineficiência e omissão, a cultura do assassinato como meio
regular de resolução de conflitos entre envolvidos com práticas criminosas.
Importante é destacar o fato de que essa orientação se associou ao precon-
ceito que recaiu sobre, praticamente, todos os bairros pobres de Fortaleza.
Assim, não bastava estar envolvido, mas ser suspeito de envolvimento para
que a morte pudesse ser tratada como um “acerto de contas”. A situação se
tornou tão grave que, no dia 12 de novembro, quando aconteceu o even-
to conhecido como a Chacina de Messejana,12 a primeira iniciativa do se-
cretário de Segurança Pública e Defesa Social foi verificar os antecedentes
criminais dos mortos para poder falar à opinião pública sobre quem eram.
Mesmo sendo uma ação decorrente de uma retaliação de policiais à morte

11 Para uma verificação dos indicadores de violências das cidades brasileiras ver Julio
Jacobo Waiselfisz, Mapa da violência: homicídios por armas de fogo no Brasil (Instituto
Sangari, 2016).
12 No dia 12 de novembro, 11 pessoas foram assassinadas na Grande Messejana, em uma
ação que envolveu a participação de policiais militares e civis. Cf. Luiz Fábio Paiva,
Mortes na periferia: considerações sobre a chacina de 12 de novembro em Fortaleza. O
público e o privado, v. 1, n. 26, 2016.
114 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

de um colega que não estava em serviço, muito menos foi morto por ser po-
licial, as primeiras notícias e a própria Secretaria considerou a possibilidade
de o crime ter resultado de um acerto de contas. A grande repercussão do
acontecimento ocorreu apenas pela suspeita levantada de que, naquele caso,
pessoas inocentes haviam sido assassinadas.
Matar tornou-se uma atividade comum aos praticantes de crimes em
Fortaleza, cientes de que não há interesse no sistema de segurança pública
em intervir significativamente nas disputas entre pessoas com algum grau
de envolvimento com o crime. Essa leitura ainda colabora com a constata-
ção dos próprios operadores de segurança pública de que a Polícia Civil não
dispõe de condições objetivas para investigar todos os casos de homicídio
ocorridos no Estado do Ceará. Em razão dos poucos recursos materiais e
humanos, é preciso escolher quais os casos aos quais cada equipe de um
Distrito Policial irá se dedicar. Portanto, a ideia fundamental é de que os
bandidos podem administrar seus conflitos decorrentes de seus interesses.
“Quem mandou se meter com bandidos?” – relatam pessoas que concordam
com a ideia de que as forças policiais devem, senão colaborar, pelo menos,
deixar que “eles se matem”. O problema é como gerir a violência produzida
por sujeitos que interpretam o assassinato como meio de alcançar interesses
e, consequentemente, impor às pessoas a legitimidade de seu mando, ampa-
rado na sua disposição de matar para cumprir seus objetivos. Ao se omitir,
o Estado contribuiu substancialmente para que a matança se tornasse no
Ceará um meio, sendo que policiais, além de sua atitude passiva, têm, como
no caso da chacina de Messajana, contribuído ainda ativamente para o total
de mortes violentas no Estado do Ceará.
Por fim, quando matar o outro se torna uma regra de convivialidade,
temos estabelecimento de interações perigosas que, em determinados mo-
mentos, incidem na população de maneira a produzir repercussões da vio-
lência como mecanismo de controle social. A cidadania deixa de ser um
princípio organizador para ceder lugar à possibilidade de lesão e eliminação
do outro. A situação parece mais grave, na periferia de Fortaleza, quando
observamos que ela é componente significativo de relações sociais e con-
teúdos de sentido compartilhados por agentes do Estado, do crime e dos
moradores da periferia de maneira geral.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 115

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Jovens vítimas de violência: as dinâmicas
dos homicídios nas periferias de Fortaleza

César Barreira, Luiz, Fábio S. Paiva e Maurício Russo

Nos últimos dez anos, as taxas de homicídios, na cidade de Fortale-


za, experimentaram evolução significativa, tornando-a constante objeto de
representação do que é um território violento e perigoso, sobretudo, em
comparação a outras cidades do Brasil e do mundo. Essa situação, embora
afete de maneiras distintas a população, em geral, significa algo mais para
jovens do sexo masculino, pardos e negros, residentes das periferias da capi-
tal cearense. São eles os que mais morrem e, consequentemente, compõem
as estatísticas que figuram em relatórios de pesquisas e ranques que clas-
sificam Fortaleza como uma das “cidades mais violentas do mundo”. Ante
tal problema, discutem-se os efeitos sociais das violências que compõem os
cotidianos das periferias e afetam as vidas de sua população mais jovem.
As pesquisas realizadas pelo Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da
Universidade Federal do Ceará, no âmbito do Instituto Nacional de Ciência
e Tecnologia (INCT) Sobre Violência, Democracia e Segurança Cidadã são
agenciadas neste texto em um esforço analítico para compreender os efeitos
sociais e políticos de homicídios de jovens nas periferias. Supõe-se, logo de
saída, que os homicídios não afetam de igual modo toda a população, mas
especialmente os jovens pobres do sexo masculino, pardos e negros, que
moram em bairros populares cujo cotidiano é afetado pelas dinâmicas de
118 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

mercados ilegais de drogas e armas.1 Em linhas gerais, o texto se debruça, no


primeiro momento, sobre o modo como a evolução das taxas de homicídio
retratadas em relatórios de pesquisa que, em algum momento, repercutiram
a situação da morte de jovens na Cidade. Em seguida, observam-se como os
saberes dos residentes das periferias de Fortaleza compreendem e avaliam a
situação de mortes de jovens em suas comunidades.

Considerações teórico-metodológicas
Neste escrito, elabora-se uma análise sociológica compreensiva2 sobre
o sentido e as condições sociais relacionadas às mortes de jovens pobres,
na periferia de Fortaleza. Não é um esforço exaustivo ou geral, pois cons-
titui a tarefa resultado de pesquisa qualitativa, o que impõe limites claros
para as generalizações decorrentes das informações trabalhadas. Embora
sejam considerados dados quantitativos, índices e percentuais, sua função
no texto é retratar a realidade mais abrangente das circunstâncias e situa-
ções trabalhadas para compreensão do problema social tratado. Menos do
que um esforço específico de pesquisa realizado para chegar a este texto
como resultado, conjugou-se uma série de intentos relacionados a pes-
quisas no âmbito de variados trabalhos nos quais pesquisadores do LEV
estiveram envolvidos. Buscou-se trabalhar com os discursos que tornam
o fenômeno social estudado possível de uma compreensão sociológica,
articulando a contribuição de autores preocupados com os efeitos sociais
da violência para determinado tipo de sociedade. Demandou-se, também,
escapar, a exemplo de Barreira (1998), na sua pesquisa com pistoleiros,
dos julgamentos morais para compreender os sentidos pertinentes a prá-

1 Trabalhos etnográficos como o de Paiva (2014), Matos Júnior (2008), Cavalcante (2011)
e Sá (2011) revelam os cotidianos das dinâmicas de crimes, violências e conflitos que
envolvem, sobretudo, os mais jovens nas periferias de Fortaleza. Destaca-se também tra-
balho de Freitas, Brasil e Almeida (2012) que evidencia como a população mais jovem
compõe as estatísticas criminais e o desafio desse fenômeno para as políticas públicas.
2 Intenta compreender o sentido da ação social nos documentos e nas falas de pessoas
da periferia, incorporando as ricas contribuições de Max Weber (1999), mas também
a crítica aos limites dos modelos interpretativos discutidos por Bourdieu (1974).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 119

ticas de violência como uma ação dotada de sentido para pessoas nas pe-
riferias de Fortaleza.
Considera-se como pressuposto para análise a existência, mesmo que
problemática, de um Estado Democrático de Direito, com instituições de
controle social e normalização das condutas que, em tese, deveriam atu-
ar em razão de princípios morais, e também legais, constituídos historica-
mente. O Estado, conforme definiu Weber (1999), busca ser o detentor do
monopólio da violência legítima e, em condições de modernidade, institui
o domínio legal por meio de variadas ações, com intuito de estabelecer, en-
tre outras coisas, relações sociais não violentas entre pessoas que compõem
uma comunidade política. Em tese, como Elias (1993) demonstrou em seu
estudo sobre o processo civilizador, os Estados nacionais modernos e oci-
dentais estabelecem a conformidade de relações não violentas, controladas
por mecanismos de controle e autocontrole das condutas. O controle do
Estado, de acordo com Bourdieu (2014), não se restringe apenas ao controle
da força, mas se estende também ao domínio simbólico estabelecido e incor-
porado por sujeitos que creem em suas leis e no seu poder de consagração.
Ao trabalhar em múltiplas instâncias da vida social, o Estado cria condições
sociais objetivas e referências que são conteúdos de sentido estruturantes de
práticas sociais. Os entendimentos desses autores são pressupostos acom-
panhados neste trabalho para refletir sobre práticas de violência que, em
Fortaleza, escapam à lógica normativa de um Estado moderno ocidental.
Ao analisar os dados que figuram em relatórios de pesquisas, conside-
raram-se tanto os aspectos panorâmicos relacionados às condições sociais
do crime na capital do Ceará, quanto os seus efeitos morai e políticos nos
discursos da imprensa e de governos sobre a realidade expressa. Os dados
possibilitam observar especificidades ao comparar a situação de Fortaleza
a de outras cidades, estabelecendo parâmetros normativos relacionados a
situações esperadas e outras que superam expectativas consideradas “nor-
mais”. Em linhas gerais, define-se o parâmetro da Organização Mundial de
Saúde (OMS) de dez homicídios por 100 mil habitantes como o aceitável.
No Brasil, desde o ano de 1989, a taxa supera os 20 homicídios por 100
mil habitantes, havendo chegado 29 homicídios por 100 mil habitantes, em
120 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

2012.3 Apesar de o índice global ser em si bastante significativo, os mapea-


mentos demonstram que as principais vítimas de homicídios são os jovens
brasileiros de 15 a 29 anos.4 Ao considerar a realidade nacional, a compre-
ensão dos homicídios de jovens nas periferias de Fortaleza passa pelo enten-
dimento de que a violência letal é um elemento constitutivo da vida dessas
pessoas. Os dados qualitativos exprimem que jovens das periferias falam
de amigos mortos como algo comum, o que não acontece entre jovens dos
segmentos mais bem-sucedidos do ponto de vista econômico.
Ao falar com jovens pobres nas periferias ou examinar indicadores de
relatórios e matérias jornalísticas, demandou-se, ainda, estabelecer a rela-
ção entre as mortes de pessoas e o projeto de um Estado moderno que visa
a criar uma sociedade fundamentada em relações não violentas. Em boa
medida, as reflexões sobre as sociedades pós-coloniais contribuíram para
pensar que as condições de modernidade nesses contextos sociais são por
demais distintas.5 Embora o projeto colonial europeu tenha alcançado os
países africanos, asiáticos e latino-americanos em seu objetivo de expandir
os ideais ocidentais de sociedades não violentas, sua sujeição aconteceu por
meio de inúmeros massacres e torturas que repercutem ainda na vida social
de suas populações. É impossível pensar o Brasil, sua formação, sem consi-
derar o papel da violência como fenômeno estruturante entre as classes que
compõem esta comunidade moral e política. Não é o caso de reivindicar
aqui uma abordagem que possa dar conta de um contexto histórico mais
amplo. Impende apenas se ressaltar que, em linhas gerais, se consideram

3 Os números relativos a mortes violentas no Brasil são objeto de debates importantes,


nas Ciências Sociais brasileiras, como demonstram os trabalhos de Cruz e Batitucci
(2007), Soares (2008), Beltrão e Dellasoppa (2011).
4 Ao analisar o papel das estatísticas criminais, Lima (2008) entende que elas são úteis
para retratar o problema, mas seu uso não foi incorporado como informação e conhe-
cimento para políticas públicas na área de segurança pública.
5 Para Bhabha (1998), o Estado moderno não pode ser compreendido sem a considera-
ção de um discurso colonial que, entre outras coisas, almeja a realização de um projeto
pós-iluminista de normalização do mundo. Foucault (1999) ofereceu uma boa base
para se pensar esse projeto em suas dimensões biopolíticas cuja finalidade e controle
da vida e da morte das populações ocidentalizadas.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 121

aqui o Estado e o monopólio da violência, por aquele reivindicado, como


um projeto político em movimento e não uma realização em si.
Nas incursões etnográficas que sustentam o estudo, encontraram-se
falas da violência que situam o que acontece com jovens pobres nas peri-
ferias. É importante destacar o fato de que, ao longo do projeto INCT Vio-
lência, Democracia e Segurança Cidadã, foram realizadas várias investiga-
ções, com finalidades distintas. Neste artigo, reuniram-se os resultados dos
trabalhos de campo dos autores, bem assim pesquisas coletivas realizadas
por eles com moradores, operadores de segurança pública e justiça criminal
atuantes em Fortaleza. Entre os trabalhos realizados, destaca-se uma série
de 32 entrevistas com lideranças comunitárias, jovens da periferia, policiais
militares, civis, guardas municipais, promotores de justiça, defensores pú-
blicos, gestores municipais e estaduais da área de segurança a respeito dos
homicídios nas periferias. Também foram feitos levantamentos dos relató-
rios de pesquisa com informações sobre violência na cidade de Fortaleza
e de matérias jornalísticas que deram visibilidade ao homicídio de jovens
nessa capital. Privilegiou-se pensar os conteúdos, com suporte na análise
compreensiva do que eles revelam a respeito da Cidade e das práticas de
violência que tocam, sobretudo, os segmentos mais jovens da população que
vive e morre nas periferias.
As falas de jovens, familiares e moradores foram interpretadas como
saberes de quem convive com a violência em seu local de moradia.6 Ao fa-
lar da morte de amigos e conhecidos, os jovens expressaram suas visões
políticas, expectativas sociais e frustrações com as dinâmicas de bairros em
que vivem e veem morrer de maneira violenta seus amigos e parentes. Seus
discursos possibilitaram saber das suas relações e como são alcançados em
seu dia a dia pela violência que atinge as periferias da Cidade. Soube-se por
eles que outrora suas relações eram mediadas por determinados tipos de
violências que, nos últimos anos, se transformaram e afetaram as maneiras
pelas quais se envolvem com práticas de crimes. É o caso da maior ocorrên-

6 Pesquisa de Marinho (2004) demonstra como as viúvas de jovens envolvidos em co-


tidianos marcados por situações de violência constroem significados e vivenciam a
experiência do luto, evidenciando aspectos culturais relevantes das periferias urbanas.
122 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

cia de “organizações” ou “facções” criminosas que, desde 2015, passaram a


disputar os mercados ilegais de armas e drogas nas periferias de Fortaleza.
Para fins desta análise, adota-se no texto o termo preferencial “facção”, pois,
por enquanto, ele parece expressar melhor a ideia de um grupo que produz
adesão, pertencimento e afetos entre os jovens nas periferias de Fortaleza. É
possível assinalar que a categoria “facção” é trabalhada como categoria nati-
va, embora jovens também falem do grupo como “organização”, “o crime”, “o
comando”, “tudo 2”, “tudo 3’, entre outras expressões. Disputas entre grupos
locais foram incorporadas, pacificadas ou ativadas pela ação de grupamen-
tos exógenos como Comando Vermelho (CV), Família do Norte (FDN) e
Primeiro Comando da Capital (PCC), assim como pelo papel de um grupo
local denominado os Guardiões do Estado (GDE).7 As relações entre esses
grupos e seus efeitos sociais nas periferias serão consideradas no exame dos
relatos de jovens interlocutores.
Por fim, este escrito retrata uma compreensão do problema da violên-
cia, especialmente dos crimes de homicídio, em uma faixa da população
de Fortaleza que, geralmente, é considerada de 15 a 29 anos de idade. São
os casos de homicídios como expressões de violências que, ao serem con-
sideradas nas falas de jovens pobres das periferias, estruturam sentidos a
respeito da vida social, da maneira como vivem e morrem. É incorporada
ao debate uma reflexão compreensiva do problema, destacando que o texto
não o esgota, mas apenas oferece um ponto de vista a respeito de um proble-
ma que merece atenção das instâncias de saber e da gestão da esfera pública.

7 Sobre o Primeiro Comando da Capital, é importante considerar os trabalhos de


Adorno e Salla (2007), Dias (2011), Biondi (2014), Marques (2010), Feltran (2010)
e Sinhoreto (2017). O Comando Vermelho também aparece em estudos como os de
Misse (2007), Lessing (2008), Rafael (2001), Zaluar e Barcellos (2013). Candotti,
Cunha e Siqueira (2017) fizeram primeiro esforço de reflexão sobre a Família do
Norte. Não há estudos publicados ainda sobre os Guardiões do Estado. É importante
destacar que não se trata de uma revisão, mas algumas indicações de estudos a serem
considerados na discussão do tema.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 123

Sobre os números de jovens mortos


Algumas das cidades brasileiras figuram em relatórios internacionais
como as “mais violentas do mundo”. É o caso da cidade de Fortaleza, com
indicadores que a situam em posição “privilegiada” em ranques nacionais
e internacionais. É oportuno ressaltar o fato de que este fenômeno ganhou
configuração na segunda metade dos anos 2000. Como demonstra, por
exemplo, o Mapa da Violência 2016: homicídios por armas de fogo, em 2004,
Fortaleza ocupava apenas a 19° posição entre as cidades como maior índice
de mortes por armas de fogo, com taxa de 18,4 homicídios desse tipo por
100 mil habitantes. Em 2014, o Mapa da Violência demonstrou que esse in-
dicador passou para 81,5, tornando a Cidade cearense a primeira do ranque
nacional de mortes por armas de fogo.
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016,
produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Fortaleza
denotou, em 2014, um índice geral de homicídios dolosos de 75 por 100
mil habitantes, o maior entre as capitais brasileiras. No ano seguinte, o in-
dicador baixou para 61,9, de acordo com o mesmo relatório, mas a capital
do Ceará continuou em primeiro entre as capitais brasileiras. Além de ser
partícipe dos documentos nacionais, a Cidade se tornou objeto de aprecia-
ção em escala internacional, graças ao lançamento de uma lista produzida
pela organização mexicana Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y
Justicia Penal A. C. Ao contrário de outros relatórios, o do Consejo avalia as
taxas de homicídios por 100 mil habitantes apenas em cidades com 300 mil
habitantes ou mais. Lançado anualmente, o relatório enfoca as 50 cidades
mais violentas do Mundo, com destaque para seu “Top 10”. Em 2012, con-
siderando dados de 2011, Fortaleza apareceu no relatório do Consejo na 37º
posição. O documento de 2012, com indicadores do ano anterior, demons-
trou a evolução dos índices da Cidade, alcançando a 13º posição, com 66,39
homicídios por 100 mil habitantes. Os relatórios de 2014 e 2015, respectiva-
mente, retrataram a cidade na 7º e 8º posições, com índices de 72,81 e 66,55.
A situação de Fortaleza ganhou repercussão nacional, com a imprensa
retratando os dados e questionando sua eleição para sediar jogos da Copa
do Mundo de 2014. Na edição do dia 23 de março de 2014, o programa de
124 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

televisão Fantástico, das Organizações Globo, retratou a situação da capi-


tal cearense em uma matéria intitulada “Três cidades brasileiras estão entre
as dez mais violentas do planeta”.8 Juntamente com Maceió e João Pessoa,
Fortaleza é retratada na matéria como um município com taxa de homicí-
dios considerada epidêmica, segundo os parâmetros da OMS. Na matéria,
emergem questionamentos sobre a segurança em uma das capitais que se-
diaria jogos do Brasil, na Copa do Mundo. Demonstra que, como nas outras
capitais, as principais vítimas dos homicídios são jovens do sexo masculino
de até 29 anos. Mostra um jovem morto com dois tiros e destaca que “[...]
o assassino não foi preso e conta com a estatística oficial a seu favor”. En-
tão, a reportagem retrata algumas informações importantes sobre o fato de,
no Estado Ceará, haver, aproximadamente, 58 mil foragidos, sendo 11 mil
deles acusados de homicídio. A matéria expressa, ainda, que “[...] o Fantás-
tico teve acesso a mandados de prisão que deveriam ter sido cumpridos em
1995, 1994 e até em 1991, ou seja, 23 anos engavetado”.
A matéria do Fantástico ainda explorou os problemas relacionados ao
trabalho da Polícia Civil no Estado do Ceará. Retrata depoimento emblemá-
tico do então presidente do Sindicato de Policiais Civis do Ceará, Gustavo
Simplício Moreira. Segundo ele, “[...] o criminoso, no Ceará, para ser preso,
tem que ser muito azarado. A Polícia Civil não tem efetivo para investigar
nenhum crime”. A matéria também retrata a situação de precariedade de
uma delegacia de Polícia Civil, com celas lotadas de presos sem o adequado
encaminhamento processual. Como contraposição das críticas, abriu espa-
ço para que se manifestasse o então Secretário de Segurança, o delegado da
Polícia Federal Servilho de Paiva. Consoante o Secretário, “[...] a gente tem
uma situação que não é de conforto. Mas você tem a polícia fazendo o seu
papel, dando as respostas adequadas. Para você ter ideia, nós realizamos
nos últimos cinco meses cerca de 10.500 prisões em flagrante”. Os depoi-
mentos revelam as contradições entre um “trabalho policial” que, segundo
o Secretário, era feito diariamente, como demonstram seus dados sobre as

8 É possível conferir a matéria na página da Internet do Programa Fantástico. Disponível


em: <http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/03/tres-cidades-brasileiras-estao-
-entre-dez-mais-violentas-do-planeta.html>. Acesso em: 26 abr. 2018.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 125

prisões bem como outras informações que evidenciam uma situação caótica
na reprodução da violência.
Apenas a repercussão negativa de dados gerais não é suficiente para
compreender as dimensões do problema, sobretudo, quando se observa cui-
dadosamente a morte de jovens pobres e negros nas periferias. De acordo
com dados disponibilizados pelo Mapa da Violência 2014: os jovens do Bra-
sil, jovens de 15 a 29 anos são as principais vítimas da violência e as taxas
específicas evidenciam outro patamar em termos de mortes violentas. Ao
considerar as taxas em municípios nacionais com mais de dez mil jovens,
no ano de 2012, o documento mostra Fortaleza na 24ª posição na relação
brasileira de homicídios de jovens por 100 mil habitantes, com a taxa de
76,6 crimes deste tipo por 100 mil habitantes. Outras cidades cearenses fi-
guraram nessa relação: Eusébio, na 13ª posição, com 207,9 homicídios por
100 mil habitantes; Itaitinga, na 20ª, com 181,9; Aquiraz, na 46ª, com 140,3;
Horizonte, na 56ª, com 134,4; Barbalha, na 66ª, 127,2; Maracanaú, na 70ª,
com 125,2; Caucaia, na 77ª, com 122; Juazeiro do Norte, na 93ª, com 114,6.
Juntamente com Fortaleza, são nove cidades do Estado do Ceará entre as
100 que expressam maior índice de homicídios de jovens de 15 a 29 anos.
Das cidades do Ceará, seis fazem parte da Região Metropolitana de Fortale-
za. Destaque seja conferido aos municípios de Eusébio e Itaitinga, que expri-
mem índices superiores ao da capital. Obviamente, é preciso considerar que
as duas compõem a Região Metropolitana e ocupam uma posição periférica
em relação ao centro econômico e político da capital. O relatório também
colabora para demonstrar a evolução das taxas dos anos de 2002 a 2012,
revelando que o crescimento dos indicadores de homicídios na população
de 15 a 29 anos foi de 141,1%.
O Mapa da Violência 2014: os jovens do Brasil ainda revela a situação
em relação aos jovens brancos e negros. No relatório, os autores explicam
que “[...] as categorias preto e pardo foram somadas para construir a cate-
goria negro” (p. 18). Em Fortaleza, enquanto a taxa de homicídios por 100
mil habitantes de jovens brancos é de 40,9, a de jovens negros é de 256,0.
Observa-se que a população negra é a principal vítima das ocorrências de
homicídio, revelando um importante aspecto da violência na cidade de For-
126 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

taleza. No ano seguinte, o Mapa da violência: adolescentes de 16 e 17 anos


do Brasil ajudou a compreender a situação entre o segmento que ainda não
alcançou a maioridade penal. Ao considerar os indicadores de 2013, entre
as capitais brasileiras, novamente Fortaleza aparece em destaque, com uma
taxa de 267,7 homicídios por 100 mil habitantes de adolescentes de 16 e 17
anos. Mais uma vez, a Cidade é alçada ao primeiro lugar entre as capitais
brasileiras. O documento também evidencia a evolução dos crimes de ho-
micídio nessa capital, destacando que, em 2003, a mesma taxa era de apenas
23,5, evoluindo nesse período 1.040%.
Outro dado importante, revelado por estudos como a Pesquisa Carto-
grafia da Criminalidade e da Violência na Cidade de Fortaleza9 e Evidências
da Criminalidade no Ceará: Experiências Internacionais e Fundamentação
para Construção de um Pacto Social de Combate a Violência no Estado,10
é quanto à localização dos crimes. A população assassinada pode ser geo-
graficamente localizada, estando o maior número de casos em bairros dos
segmentos de menor capital econômico. Ao considerar os eventos de morte
no período de 2007 a 2009, a Cartografia mostrou que 11 pessoas foram as-
sassinadas no bairro Aldeota, onde reside a população de maior poder aqui-
sitivo da capital. No mesmo período, morreram assassinadas 149 pessoas no
Bom Jardim, bairro que concentra os segmentos de menor poder aquisitivo.
O estudo Evidências da Criminalidade no Ceará possibilita a verificação
cartográfica da distribuição dos homicídios, no período de 2012 a 2014, de-
monstrando importante concentração dos casos nas periferias, com ocor-
rências mais significativas nas áreas de menor Índice de Desenvolvimento
Humano do Município de Fortaleza (IDH-M). Ambos os trabalhos, junta-
mente com os demais analisados, colaboram para uma conclusão conhecida
da comunidade científica brasileira, qual seja, a de que os homicídios são

9 O estudo foi desenvolvido pelo Laboratório de Estudos da Violência (LEV),


Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética-LABVIDA, Laboratório de
Estudos da Conflitualidade e Violência-(COVIO).
10 Estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará
(IPECE).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 127

uma experiência social vivida pelos mais pobres, jovens do sexo masculino,
pardos e negros, nos bairros onde residem.
A situação dos jovens pobres de Fortaleza auferiu especial atenção
quando 11 pessoas foram assinadas, na região da Grande Messejana,11 no
dia 12 de novembro de 2015. Os crimes ocorreram nos bairros de Messeja-
na, Curió, São Miguel e Lagoa Redonda, da 00h20min (primeiro assassina-
to) às 03h57min (último). Nove das 11 vítimas da chacina, conhecida como
Chacina da Messejana, tinham de 16 a 19 anos. Na ocasião, chamou especial
atenção o destaque das linhas de investigação consideradas pela Secretária
de Segurança Pública e Defesa Social do Estado Ceará, amplamente divul-
gadas pela imprensa cearense nos dias 12 e 13 de novembro de 2015.

Linhas de investigação
Segundo o secretário-adjunto da SSPDS, coronel Lauro Prado, a Polícia
trabalha com três linhas de investigação. A primeira aponta para retaliação
pela morte do policial do 16º Batalhão da Polícia Militar (BPM), durante
tentativa de assalto, na Lagoa Redonda, na noite desta quarta-feira, 11.
A segunda linha de investigação sustenta que as mortes estariam rela-
cionadas à execução de Lindemberg Vieira Dias, 31 anos, que foi alvejado
com 32 tiros, na tarde de quarta, 11, no encontro do 4º Anel Viário com a
avenida Osório de Paiva, em Maracanaú.
A outra hipótese levantada é de que as execuções estejam relacionadas
à prisão de Carlos Alexandre Aberto da Silva, 39, conhecido como Castor,
na terça-feira, 10. Apontado como líder do tráfico de drogas no Jardim das
Oliveiras, ele possui antecedentes criminais por tráfico de drogas, porte e
posse ilegal de arma de fogo, ameaça, homicídios e tentativa de homicídio.
(Jornal O Povo [online], 2015)
No dia 12 de novembro de 2015, os pontos de vista da população já re-
percutiam nas redes sociais ao dizerem às pessoas que as mortes haviam sido

11 O trabalho de Paiva (2016), escrito ainda no calor dos acontecimentos, retrata como
esse acontecimento afetou as periferias da Cidade e foi considerado do ponto de vista
político pelos gestores da área de segurança pública do Estado do Ceará.
128 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

protagonizadas por policiais, com suporte inclusive de outros, em serviço,


omissos em relação aos pedidos de socorro de familiares das vítimas. Mes-
mo assim, a Secretária de Segurança e Defesa Social (SSPDS) manifestou-se
publicamente, considerando que as mortes poderiam ser um acerto de con-
tas entre bandidos. Convém salientar que a justificativa é recorrentemente
usada nas cenas de crime, quando policiais em ocorrências nas periferias
explicam a repórteres de programas policiais o que aconteceu.12 Assim, a
Chacina de Messejana poderia ser apenas mais um capítulo de uma guerra
entre “traficantes”, o que supostamente explica os altos índices de homicí-
dios em Fortaleza. Nas primeiras declarações das autoridades do Governo
do Estado do Ceará, elas pediram calma à imprensa e à população, pois
estavam realizando o levantamento dos antecedentes criminais dos mortos.
Após o trabalho realizado, a Secretária informou que apenas duas pessoas
tinham antecedentes, sendo que uma delas era por ameaça e outra pelo não
pagamento de pensão alimentícia. Sete meses depois, o Ministério Público
do Estado do Ceará apresentou acusação contra 45 policiais. Transpondo
os muitos desdobramentos desse caso, a análise proposta aqui privilegia o
elemento discriminatório que está na ideia generalista de que vítimas de
assassinato, nas periferias, são sempre pessoas envolvidas com crime, so-
bretudo tráfico de drogas. Isso permite que inúmeras vítimas sejam tratadas
como “traficantes” e suas mortes permaneçam impunes em razão da com-
pleta omissão do Estado em apurar o caso.
Em tal circunstância, em fevereiro de 2016, a Assembleia Legislativa
do Estado do Ceará, em articulação com o Governo Estadual e o Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef), lançou o Comitê Cearense pela Pre-
venção dos Homicídios na Adolescência. O intuito dessa iniciativa foi conhe-
cer em profundidade o problema da violência sofrida por adolescentes de 10
a 18 anos, com o objetivo de elaborar e propor recomendações aos diversos
níveis de poder e à sociedade. Em dezembro de 2016, o Comitê publicou seu

12 Morales (2014) analisou como os programas policiais exercem papel importante na


elaboração da violência urbana como um fenômeno social de abrangência significativa
na sociedade cearense. Os policiais aparecem como falas autorizadas para retratar um
fenômeno em detrimento de sujeitos sem voz, como os “bandidos”.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 129

relatório final, intitulado de maneira oportuna como Cada vida importa. O


título é contraposto ao discurso oficial pautado pela ideia de que, em linhas
gerais, “bandidos” seriam “matáveis”. Como é possível observar na prática
das apurações de crimes nas periferias, esses “bandidos” podem ser qual-
quer jovem pobre e negro. Entre os dados relevantes do relatório, estão a
análise de 1.524 processos de homicídio de adolescentes protocolizados nos
últimos cinco anos, no sistema de justiça cearense. Conforme demonstra
o relatório do Comitê, evidenciou-se que em apenas 2,8% dos casos hou-
ve responsabilização dos autores do crime. Tal fato se tornou possível pela
resiliência e omissão dos agentes do Estado em cuidar de casos de jovens
classificados como “bandido”. Jovens considerados “matáveis” cuja morte é
explicada pelo discurso oficial e o senso comum como resultado provenien-
te de escolhas pessoais.13
O Relatório do Comitê inovou na amostra de resultados por também
produzir dados originais sobre os jovens assassinados. Foram realizados
trabalhos de incursão etnográfica, com diários de campo, além de aplica-
ção de questionários, realização de entrevistas e grupos focais. A pesquisa
foi realizada em 7 municípios, com uma amostra de 816 famílias de jovens
assassinados selecionadas e 263 efetivamente entrevistadas. Também foram
ouvidos 121 adolescentes acusados de assassinatos praticados, nas Unidades
de Atendimento a Jovens em Conflito com a Lei, em 2015. Os dados revela-
ram que em 64% dos casos, os familiares alegaram que os jovens assassina-
dos tinham amigos que também foram assassinados. Em 73% dos eventos
examinados, na capital cearense, os homicídios ocorreram no próprio bair-
ro da vítima. Estas informações colaboram com a ideia de que existem cir-
cuitos muitos específicos por onde a violência urbana circula, em condições
sociais muito peculiares e que afetam as populações mais pobres, enquanto
outros segmentos sociais não são atingidos pelas mesmas situações.

13 Estudo feito pelo LEV e o Centro de Defesa da Criança e Adolescente do Ceará que,
entre outras coisas, demonstrou como as mortes de jovens é naturalizada, sem repercus-
sões na Justiça para responsabilização dos envolvidos e também na própria família que,
em muitos casos, aceita o destino do adolescente com resignação (Barreira et al., 1999).
130 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

A repercussão das informações do Relatório do Comitê também fomen-


tou o interesse da imprensa em retratar os dados e as explicações de autorida-
des governamentais sobre a situação. O Jornal O Povo, inclusive, ao retratar
o trabalho do Comité, destacou o fato de que, no ano de 2017, em apenas
cinco meses, morreram 227 crianças e adolescentes (Brito, 2017). Na ocasião,
a matéria retratou que o Relatório do Comitê estimou que o maior número de
homicídios, em Fortaleza, se concentrava em 52 comunidades, o que repre-
sentaria 4% do território da Cidade. No dia 2 de maio de 2017, em sessão ple-
nária, o Comité apresentou o relatório aos prefeitos de municípios cearenses,
com 12 recomendações para prevenção de mortes de adolescentes:

1. Apoio e proteção às famílias vítimas de violência;


2. Ampliação da rede de programas e projetos sociais a adolescente
vulnerável ao homicídio;
3. Qualificação urbana dos territórios vulneráveis aos homicídios;
4. Busca ativa para inclusão de adolescentes no sistema escolar;
5. Prevenção a experimentação precoce de drogas e apoio às fa-
mílias;
6. Mediação de conflitos e proteção a ameaçados;
7. Atendimento integral no sistema de medidas socioeducativas;
8. Oportunidades de trabalho com renda;
9. Formação de policiais na abordagem ao adolescente;
10. Controle de armas de fogo e munições;
11. Mídia sem violação de direitos;
12. Responsabilização dos homicídios.

Na ocasião, o relator do Comitê, o deputado Renato Roseno, destacou


o papel das recomendações do relatório, com ênfase na ideia de que a redu-
ção dos homicídios poderia acontecer potencializando a rede preventiva em
curso. Como é possível verificar nas periferias de Fortaleza, existem equipa-
mentos e serviços públicos que, na prática, funcionam de maneira precária
ou não têm nenhum curso, mesmo possuindo alguma estrutura. Apesar de
Violência, Polícia, Justiça e Punição 131

uma série de compromissos assumidos em torno da iniciativa, ainda é di-


fícil afirmar o resultado e o alcance de suas recomendações. Por fim, o que
os relatórios mostram é uma situação sistêmica em que as mortes de jovens
pobres aparecem como fenômeno naturalizado e sua complexidade é re-
duzida às contradições internas aos bairros pobres. Embora identifiquem
com qualidade a situação, os resultados dos relatórios possibilitaram mais
o diagnóstico do que as soluções para um problema que afeta a população
mais pobre da Cidade. Ao encerrar com um conjunto de recomendações, o
Relatório do Comitê destaca dimensões importantes pela qual o problema
poderia começar a ser enfrentado. As diferenças políticas e as lutas pelo
poder na Cidade e no Estado, no entanto, são elementos que precisam ser
considerados para se entender as disjunções do conhecimento do problema
em relação às suas soluções. A seguir, são analisadas as dimensões dessa
questão, com suporte nas pesquisas qualitativas realizadas pelo LEV no âm-
bito do INCT Violência, Democracia e Segurança Cidadã.

“Bandido bom é jovem morto”


“Matam um lá na praça, aí vem os de lá, mata um daqui, depois os da-
qui vão lá, matam, aí é assim essa esculhambação”. A fala de uma moradora
do Pirambu faz referência a jovens envolvidos com o crime e, consequen-
temente, em uma “guerra” com outros envolvidos do Bairro. Essa situação
poderia ter sido narrada por pessoas dos mais diversos bairros de Fortaleza,
pois é circunstância repetitiva e as vítimas, em geral, são jovens acusados de
envolvimento com o crime. “São moleques que estão se matando, tudo bem
novinho”, insiste o morador. “E a polícia faz o quê”, questionam os pesqui-
sadores. “Ora, não faz nada! Aqui ninguém faz nada, o pessoal só diz assim:
bandido bom é bandido morto”, explica. Acompanharam-se algumas dessas
rotinas de vingança entre moradores de um mesmo bairro que residem em
zonas diferenciadas pelas demarcações simbólicas das comunidades locais.
Algumas dessas “guerras” não têm uma explicação clara, pois elas existem
há muito tempo e ninguém é capaz de explicar como exatamente começa-
132 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ram.14 Tudo o que os moradores sabem é que as pessoas assassinadas são


aquelas envolvidas com “o que não presta”.15
Em relação a essas “guerras”, os moradores relatam um antes depois
das “facções” criminosas. No texto, as expressões retratam os saberes locais
que ora tratam como organizações ora como “facções” grupos como PCC,
CV, FDN e GDE. Embora não seja possível aprofundar o papel de cada um
desses grupos nas mudanças sociais do crime em Fortaleza, é importante
destacar que, historicamente, esta capital foi uma cidade marcada por con-
flitos territoriais entre grupos na periferia (Barreira et al., 1999a; Diógenes
1998). Assim, bairros urbanos foram demarcados por grupos locais e essas
demarcações definiam por onde pessoas poderiam se deslocar e como iriam
conviver. No final do ano de 2015, e início de 2016, verificaram-se nas pe-
riferias algumas mudanças sociais importantes que afetaram essas demar-
cações, relativamente alteradas em virtude da ação conjunta das “facções”
para a “paz”. Conhecido como “pacificação”,16 o fenômeno possibilitou que
pessoas circulassem livremente pelos bairros, pois as guerras territoriais ha-
viam terminado. “Bailes de favela”, entre outros eventos, aconteceram como
maneira de os moradores locais celebrarem a “pacificação” entre os grupos
que, outrora, eram considerados por operadores de segurança pública como
os responsáveis pelos altos índices de homicídios em Fortaleza.
As reduções nos números de homicídios apareceram nos relatórios da
SSPDS, e Fortaleza, em 2016, registrou a taxa de 44,98 homicídios por 100
mil habitantes, figurando na 35º posição do ranque estabelecido pelo relató-
rio do Consejo Ciudadano para la Seguridad Publica y Justiça Penal A.C. Na

14 Diógenes (1998) analisou as conflitualidades juvenis que compõem as relações sociais


entres seus grupos e territórios, na Fortaleza dos anos de 1990. Essa relação também
foi estudada por Paiva (2014) em territórios classificados como violentos e perigosos
no contexto urbano da capital cearense.
15 As categorias nativas para definir “quem não presta” enunciam símbolos da discrimi-
nação como o “pirangueiro” cujas características foram objeto de estudo de Barreira e
Aquino (2013).
16 Pacheco (2016) analisou a categoria “pacificação” e seus usos na história do Brasil e,
especificamente, na cidade do Rio de Janeiro, atribuindo a ela papel importante nas
intervenções políticas do Estado brasileiro em territórios marginalizados.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 133

periferia, os moradores atribuem as “facções” a paz entre os grupos locais,


unindo-os em torno de interesses comuns relativos aos mercados ilegais de
drogas e armas. Os problemas relacionados às guerras internas reaparece-
ram, no entanto, em meados do ano de 2016. A causa é atribuída ao um
novo embate entre PCC e CV por causa da morte do traficante Jorge Rafa-
at Toumani. Segundo matérias da imprensa, o assassinato do traficante foi
protagonizado pelo PCC, em sua busca pelo controle de mercados ilegais
de tráfico de drogas (Benites, 2016). O acontecimento teria como uma das
consequências o fim da “trégua” estabelecida pelas lideranças do CV e PCC.
Apesar de não ser possível asseverar a extensão desses eventos e a causali-
dade dele nas disputas entre PCC e CV, ficou claro que, na segunda metade
do ano de 2016, a situação começou a se degradar na periferia de Fortaleza.
Os grupos aliados ao CV e FDN formaram uma aliança cuja contraposição
foi uma aliança entre PCC e GDE. Assim, uma nova configuração territorial
emergiu, com implicações diferentes das que existiam nas periferias urba-
nas de Fortaleza. Grupos locais se acomodaram ao abrigo da aliança entre
as “facções”. Os conflitos e sua estruturação territorial passaram a ter como
referência as alianças CV-FDN e PCC-GDE. Então, foi possível observar
que grupos locais, historicamente inimigos, se tornaram aliados ou aliados
se fizeram inimigos. Também mudou a escala do conflito porque bairros
inteiros passaram a ser CV-FDN ou PCC-GDE. Portanto, mudou também
a escala da violência, com problemas novos. Invasões de bairro, chacinas,
proibição de roubos na comunidade, tribunais do crime, punições exempla-
res com requinte de crueldade, expulsão de famílias de suas casas ou vilas
inteiras, assim como controle interno dos mercados ilegais de drogas e ar-
mas foram algumas das práticas que refletiram uma intensificação do poder
de grupos estruturados para fazer o crime “organizado”.
Apesar de ser um fenômeno recente nas periferias de Fortaleza, as ações
das “facções” só foram possíveis em um território com práticas e maneiras
de fazer o crime que possibilitaram seu desenvolvimento. Pode-se afirmar
que, entre as experiências das “facções” e dos grupos locais, haveria afini-
134 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

dades eletivas17 que possibilitaram o desenvolvimento de conflitualidades e


violências com origem em condições sociais que já existiam nos territórios.
Assim, os grupos locais foram aderindo a um sistema que, apesar de novo,
realizava uma tarefa semelhante às operações feitas por grupos locais, tanto
em relação aos mercados ilegais de drogas e armas, quanto às disputas ter-
ritoriais. Não obstante, antes da chegada das “facções”, era comum que as
guerras fossem também limitadas pelo território, com matanças de um lado
e de outro, sem que um dos lados ocupasse o território do inimigo. Agora,
as falas de moradores revelam que existem assassinatos no intuito de ocupar
o território e uma série de outros para manutenção do seu domínio, com
imposições claras de regras para toda a comunidade. Aqui, não será possível
adentrar as implicações dessa nova configuração, pois boa parte do mate-
rial desenvolvido no âmbito do INCT Violência, Democracia e Segurança
Cidadão ainda remonta a um período anterior aos acontecimentos de 2016.
Não obstante, serão feitas algumas considerações ao longo do texto para
observar como esses processos têm afetado a vida de jovens pobres e, conse-
quentemente, explicitam práticas que ajudam no entendimento da evolução
de Fortaleza nos ranques de crimes de homicídio.
A primeira discussão que precisa ser feita diz respeito ao envolvimento
de jovens com o crime. O “envolvido” é aquele que está no “movimento”,
seja realizando furtos e roubos, os “corres”, cumprindo serviços dentro dos
mercados ilegais de drogas, compondo grupos locais, como as gangues ou as
“facções” criminosas. Em linhas gerais, nos anos de 1970 e 1980, Diógenes
(1998) explica que eram comuns os encontros de gangues que rivalizavam
em bairros da Cidade e frequentavam bailes funks para, entre outras coisas,
entrar em confronto e expor sua valentia. Aos poucos, no final dos anos de
1990, com a intensificação do tráfico de drogas, as gangues passaram a se
utilizar desse meio para financiar suas ações e intensificar a violência. Aos
poucos, os socos e pontapés de outrora foram substituídos pelos tiros, as-
sassinatos e chacinas. “Ninguém hoje se encontra para brigar, eles marcam

17 Como pensado por Max Weber (2004), a afinidade entre fenômenos sociais históricos
que, em linhas gerais, existem e estabelecem relações de causalidades sem que um
possa ser reduzido ou determinado pelo outro.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 135

de se matar”, relatou morador do bairro Bom Jardim. Dessa maneira, eles


morrem sistematicamente em razão de “guerras” territoriais que envolvem
drogas e rivalidades entre grupos armados e dispostos a matar. Do tempo
das gangues, sobraram as rivalidades territoriais que, no âmbito das perife-
rias, foram reestruturadas pelas alianças entre CV-FDN e PCC-GDE.
Em comum, o passado e o presente carregam os comprometimentos de
jovens pobres da periferia com um grupo estruturado em torno da finali-
dade de fazer o crime e estabelecer diferenças sociais que, grosso modo, têm
efeitos nos assassinatos praticados. Como observado, muitas dessas mortes
acontecem dentro do mesmo bairro e são classificadas como “acertos de
contas”, os quais, geralmente, retratam sistemas de vinganças localizadas e
inseridas na dinâmica das guerras territoriais entre grupos locais. Na ação
das “facções”, também cumprem uma função de estabelecer o “proceder”
entre os que fazem o crime. Consoante sugere Marques (2010), o “proceder”
enuncia, entre outras coisas, orientações e regras que estabelecem o “certo”,
o “errado”, quem tem e quem não tem, como e quando se deve agir. Entre
as novidades no trabalho das “facções” está o estabelecimento de regras,
como a proibição de assaltos dentro do bairro. Desobedecer pode signifi-
car a “falta de proceder”, o que é possível de acarretar a morte de quem, no
seu “corre”, desafiam a autoridade da “facção”. É comum que jovens sejam
enquadrados na ideia de “falta de proceder”, compreendidos como ameaças
pelas “facções” e vítimas de assassinatos que tencionam normalizar as coisas
com esteio no controle efetivo de um grupo que também se reconhece como
“o crime”. Esta categoria aparece em várias assinaturas de pichações com
ordens expressas do tipo, “se roubar na comunidade vai morrer”, “quando
entrar na favela baixe os vidros e retire o capacete”. É comum que essas pi-
chações venham assinadas como “o crime”.
Ao falar dos assassinatos de jovens na periferia, operadores de segu-
rança pública avaliam tanto o contexto anterior quando o posterior às “fac-
ções” como uma dinâmica de homicídios restrita aos bandidos, em especial,
traficantes. “Foi mais um acerto de contas entre traficantes” – é uma frase
que faz parte do repertório de policiais e gestores para explicar as razões
de Fortaleza figurar entre as cidades mais violentas nos ranques discutidos
136 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

anteriormente. A difusão da violência entre esses grupos torna a vida, nas


periferias, bastante perigosa, seja para os envolvidos nessas pelejas ou para
às pessoas que, em virtude da proximidade, podem se tornar vítimas por
diversas razões, desde o engano até a vingança por suspeitas de tentar preju-
dicar os protagonistas desse conflito. Embora os acertos de contas existam,
são usados de maneira indiscriminada, como se todas as mortes pudessem
ser enquadradas nesse termo e, consequentemente, justificadas. Assim, de-
saparecem as nuanças dos casos, as injustiças e as causalidades que não se
encaixam no modelo reivindicado pelas forças de segurança como o deter-
minante para as centenas de mortes de jovens pobres.
É preciso considerar que os mercados ilegais de drogas e armas cum-
prem um papel importante no envolvimento de jovens com o crime e tem
influência na sua vitimização. Isto ocorre pelos inúmeros compromissos
impostos aos que se arriscam nas associações locais e nacionais para prática
de crimes necessários ao funcionamento desses mercados. Nas investiga-
ções realizadas, encontraram-se casos de pessoas que morreram por dívi-
das produzidas em razão do seu consumo de drogas ou manejo inadequado
da comercialização do produto com o qual se comprometeu. “Morrem por
qualquer valor”, asseguram interlocutores. Nos relatos de homicídios, foram
registradas falas de pessoas dizendo que o seu familiar foi morto por dívidas
de até dois reais. Isto ocorre porque a dívida nos mercados ilegais envolve
valores que não podem ser calculados apenas em dinheiro, mas também em
torno dos outros capitais que movimentam esses mercados. A chegada das
“facções” também afetou a maneira pela qual os jovens assumem responsa-
bilidades ao serem incorporados por grupos para praticarem crimes. Cum-
prir ou não cumprir “missões” tem influxo no reconhecimento social e sta-
tus do jovem no grupo. Desobedecer ou não cumprir de acordo uma ordem
pode significar um risco real cuja consequência poderá ser o seu assassinato.
As regras de conduta impostas pelas “facções” tornaram complexas as
responsabilidades daqueles envolvidos com as maneiras de fazer o crime em
Fortaleza. Antes das “facções”, havia compromissos que precisavam ser cum-
pridos em uma escala menor do que as impostas por grupos como CV e PCC.
Depois das fações, os moradores relatam ser preciso que os jovens sejam mais
Violência, Polícia, Justiça e Punição 137

cautelosos no cumprimento de condutas esperadas, pois, além do sistema de


vingança estabelecido pelas gangues, as “facções” estabelecem o “proceder”.
Descumprir as maneiras de fazer o crime impostas pelas fações significa está
à mercê do seu julgamento. Os “tribunais do crime”18 passaram a compor a
realidade da cidade e submeter os jovens ao mando de quem opera com diver-
sos procedimentos para estabelecer pela força a obediência as regras do jogo.
As “guerras entre facções” e os “tribunais do crime” tornaram as vidas
de jovens pobres e negros ainda mais difíceis ante as situações que, efeti-
vamente, o podem conduzir à morte. Apesar da intensificação das mortes
de jovens após o trabalho das “facções” criminosas, é importante destacar
a existência de muitos outros problemas que, também, causam mortes vio-
lentas nas periferias. Jovens pobres e negros são assassinados desde os tem-
pos coloniais, como sujeitos marginalizados pelas forças hegemônicas na
esfera política e econômica (Fernandes, 1964; Pacheco, 2016). Por isso, a
sensação em alguns lugares é de que a situação continua igual ou pior, mas
a violência sempre existiu, vitimando, sobretudo, os mais jovens, muito an-
tes das “facções”. Seriam necessários, obviamente, outros investimentos de
pesquisa para responder a essa consideração. Por enquanto, interessa saber
apenas que as mortes de jovens são fenômenos que compõem as histórias
das periferias urbanas e as percepções de moradores que, grosso modo, se
“acostumaram” a ver seus filhos, amigos e conhecidos morrerem.
Aqui se mata por qualquer coisinha. Você tem que ter cuidado e não
vacilar! O cara mata porque tu deve a ele, mas te mata também porque tu
olhou torto, mexeu com a mulher dele ou ele não foi com a tua cara. É foda!
Pior ainda é que você não pode dá sopa pro azar não! Meu irmão foi separar
uma briga aí o cara jurou voltar! Não deu outra, veio com uns caras arma-
dos, ainda confundiram meu irmão com o cara que tinha batido no outro
e ele acabou levando a pior. Foi se meter nisso porque, né? Uma pessoa boa
que morreu à toa. Como ele tem muitos aqui... Eu conheço vários jovens que

18 De acordo com estudo de Feltran (2010a), constituem um dispositivo de normalização


que passou a operar e estabelecer relações de “justiça” desde ascensão do “mundo do
crime” como instância normativa legítima para pelo menos uma parte das pessoas que
vivem nas periferias onde atuam facções criminosas.
138 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

cresceram comigo e morreram nas brigas de gangue, no tráfico, por rixa... É


assim, aqui só precisa tá vivo mesmo pra morrer! (JOVEM de 24 anos, mo-
rador do Bom Jardim. Perdeu um irmão, um tio, dois primos assassinados e
vários amigos e conhecidos no Bairro)
Independentemente do trabalho feito por quem movimenta os mer-
cados ilegais de drogas e armas, seja ele feito pelas gangues locais ou pe-
las “facções nacionais”, o elemento que conecta o passado e o presente é
a naturalização da morte de jovens pobres nas periferias. Por isso, a che-
gada das “facções” encontrou um ambiente consideravelmente deteriorado
para o seu desenvolvimento. É comum ouvir pessoas falando de dezenas de
mortos que elas conhecem, sendo alguns parentes, outros amigos. Apesar
do papel do tráfico de drogas nesse processo, não é apenas por isso que as
pessoas morrem. As 11 vítimas da Chacina de Messejana morreram, se-
gundo os interlocutores da pesquisa, em razão de estarem na rua tarde da
noite. São mortes banais que se somam e são feitas invisíveis pelo discurso
de que o tráfico de drogas é o fator determinante da violência nas periferias.
Problema social mais significativo que o tráfico, em consonância com as
informações disponíveis, é a omissão do poder público ante os crimes que
atingem os jovens pobres e negros, sobretudo, quando estão envolvidos em
práticas desviantes.
Existe uma crença compartilhada pelo poder público e demais segmen-
tos da sociedade, inclusive entre os mais pobres, de que a vida de um jovem
envolvido com o crime “não vale nada”. Esses jovens não são invisíveis, mui-
to pelo contrário. São alvos cotidianos de uma comunidade moral e política
que os compreende como problema e, como tal, eles podem ser eliminados,
produzindo alguma dor em seus parentes, mas nenhuma disposição para
responsabilização dos autores de sua morte. O Estado, como detentor do
monopólio legítimo da violência, pelo menos em tese, atua por omissão,
com suporte na ideia de que essas pessoas podem morrer. “Aqui, a polícia
chega, olha, pergunta quem era e se tinha envolvimento com o crime. Se
teve, pronto, fica por isso mesmo” – explica uma liderança comunitária. É
importante destacar que o “envolvimento” não precisa ser comprovado por
provas legais, apenas a suspeita já é suficiente para que o caso “fique por isso
Violência, Polícia, Justiça e Punição 139

mesmo”. Em determinada ocasião, no bairro Bom Jardim, em um bar, três


pessoas foram assassinadas. Na cena do crime, um policial explicou para
uma repórter que dois tinham envolvimento com clonagem de cartão e o
crime havia sido cometido por um acerto de contas entre bandidos. Quanto
ao terceiro, o policial foi esclarecedor: “ainda não temos nada contra ele,
mas é aquela coisa: me dizes com quem tua andas que eu te direi quem és”.
A consequência desse caso foi a mãe do rapaz ter que recorrer a imprensa
para afirmar que seu filho, brutalmente assassinado, não era bandido.19 O
caso nunca foi solucionado.
A possibilidade iminente de homicídio se tornou algo tão potente na
vida de jovens envolvidos com o crime nas periferias que, em geral, suas
mortes são previsíveis e esperadas. Em determinados casos, familiares falam
dela como se fosse uma espécie de alívio, pois, como demonstra a pesquisa
de Sá (2011), a permanência do jovem “matável” no bairro cria tensões que
afetam toda a comunidade. Familiares falam de seus mortos, quando envol-
vidos com o crime, de uma maneira que a morte em si é apenas o fechamen-
to, o derradeiro capítulo, a cena final de uma peça com roteiro já conhecido.
Alguns jovens envolvidos em crimes, quando presos, respondem por suas
ações de uma maneira distante e, não poucas vezes, demonstrando profunda
indiferença. Mesmo quando acusados de cometer crimes “bárbaros”, como
em casos de homicídio, demonstram uma indiferença perturbadora para
quem espera deles uma conduta que demonstre arrependimento e remorso.
Esse menino, ele foi preso ontem acusado de matar um rapaz que re-
agiu ao assalto. Pode ver aí, ele está até rindo! Não demonstrou remorso,
arrependimento nenhum. Quando a gente perguntou por que ele matou o
rapaz, ele só respondeu porque ele reagiu. O rapaz implorou pra não morrer
e ele deu três tiros a queima roupa, friamente. Depois foi beber! Pegamos
ele num bar, com o tênis, bebendo tranquilamente. (INSPETOR de Polícia,
ao relatar para o repórter de um programa policial a prisão de jovem de 19
anos, preso por latrocínio)

19 Paiva (2009) analisou os efeitos morais e políticos dos homicídios na periferia, com
base na experiência de quem busca justiça em casos como o retratado no texto.
140 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Ao considerar o discurso do inspetor de polícia civil, é importante des-


tacar que ele fala de um fenômeno em curso na fala de jovens que cometem
assassinatos na periferia de Fortaleza. Em suas manifestações públicas, al-
guns desses jovens realmente retratam um comportamento de indiferença
em relação à vida de suas vítimas. Ao perguntar pela vida do outro, no en-
tanto, policiais e repórteres se esquecem de indagar sobre o que ele pen-
sa da própria vida. Aí reside um problema relacional importante. Quando
conversamos com jovens da periferia envolvidos na prática de crimes, eles
relatam que “sua hora” vai chegar, ou seja, suas vidas estão determinadas a se
encerrar de maneira violenta. Ora, se eles não encontram na sociedade em
que vivem reconhecimento do valor das próprias vidas, como esperar que
eles atribuam valor diferenciado a vida dos outros, inclusive dos que dese-
jam a sua morte? Esse é um problema importante da sociedade. Centenas de
jovens vivem hoje sem que suas vidas possam ser reconhecidas como por-
tadoras de dignidade, o que abre espaço para o surgimento da ideia de que
matar ou morrer faz parte do destino. Assim, para familiares, operadores de
segurança pública e de justiça criminal, falar da vida de jovens envolvidos
é se reportar à existência de pessoas “matáveis” cujo fim não irá incorrer na
mobilização do aparato do Estado para as devidas responsabilizações.20
Como as investigações demonstraram, matar e morrer são elementos
constitutivos das ações de jovens envolvidos em práticas de crimes, sobre-
tudo, quando estão dentro de uma gangue ou “facção”. A adesão já é um
componente importante porque com ela vem uma série de compromissos
relacionados a matar e morrer. No dia a dia desses grupos, morrer é sem-
pre uma possibilidade de quem está dentro de um grupo engajado em
ações de assaltos, comercialização de drogas, tráfico de armas, controles
territoriais na periferia, nos presídios e também nas unidades de atendi-
mento a jovens em conflito com a lei. Compor essas ações e estar nesses
espaços em associação com grupos, em geral, por um lado, traz a proteção
de um coletivo, por outro, a possibilidade de ser alvo da vingança de vários

20 A análise desse fenômeno dialoga com os estudos filosóficos de Agamben (2007) sobre
o homo sacer e as reflexões de Butler (2006) vida precária não dignas de luto e reconhe-
cimento do seu valor.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 141

outros coletivos. A vida de jovens é objeto constante das negociações e das


conflitualidades que compõem as relações de quem faz o crime na cidade
de Fortaleza.21
Resta saber o que faz o Estado, efetivamente, para conter a matança de
jovens que acontece na periferia de Fortaleza. Como já demonstrado, em ca-
sos como a Chacina de Messejana e pelos números do relatório final do Co-
mitê Cearense Pela Prevenção dos Homicídios na Adolescência, por um lado,
operadores de segurança pública participam da violência e, de outra parte,
eles são omissos em relação ao que acontece. Os relatos de jovens envolvidos
com práticas de crime denotam que as abordagens policiais acontecem de
maneira por demais violenta.22 Convém salientar que a experiência de sofrer
violência policial não é exclusividade de jovens envolvidos, pois esses relatos
são compartilhados, também, por residentes das periferias não envolvidos
na prática de crime. As falas demonstram que os policiais não querem saber
“quem é”, chegam sempre com uma força desproporcional. Os envolvidos,
no entanto, relatam que os policiais os conhecem e por isso chegam de ma-
neira violenta, mesmo quando não há naquele momento uma razão para a
abordagem. “Se você foi pego uma vez, vai ser pego sempre, já chegam logo
no esculacho”, relatou um interlocutor, ao afirmar que cometeu um assalto,
foi recolhido para Unidade de Atendimento e, desde sua saída, mesmo não
cometendo novos crimes, é alvo diário de abordagens no bairro onde mora.
Em 2016, quando as “facções” criminosas estabeleceram um pacto de
não agressão entre os envolvidos nas práticas de crime, com demarcações
territoriais desfeitas, assaltos proibidos na comunidade e o fim das rixas
territoriais, inúmeras festas foram realizadas. Os populares “bailes de Fa-

21 Como demonstra Lourenço (2016), com base nas possibilidades de vida colocadas
para um jovem da periferia de Salvador, é necessário considerar ainda que o enga-
jamento desses jovens com os mercados ilegais não se dá apenas por uma possível
relação de frustração com seus projetos de vida, mas de muitas outras significações e
peculiaridades que precisam ser levadas a sério na pesquisa sociológica.
22 Machado e Noronha (2002), com suporte em estudo realizado na cidade de Salvador,
ressaltam que a violência policial é fundada em concepções racialmente discriminató-
rias, afetando de maneira inevitável pessoas comuns residentes das periferias.
142 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

vela”, assim como “rolezinhos”23 passaram a compor as dinâmicas de lazer


das pessoas na periferia. Desde então, a violência policial se tornou uma
constante. “Eles chegam aqui e num querem nem saber, ‘acaba’, ‘acaba’, vão
gritando e se você dizer um ‘aí’ leva logo uma mãozada nos beiços”, ressalta
uma moradora do Pirambu, ao falar das festas no Bairro, após a “pacifica-
ção”. Além das festas, os “rolezinhos” feitos em praças públicas, como no
Polo de Lazer do Conjunto Ceará, registraram ações de policiais para pôr
fim ao evento, espontaneamente feito por jovens da periferia. Igualmente,
os reggaes, festas feitas por adolescentes nas periferias, em geral com algum
consumo de drogas como a maconha, também são reprimidos de maneira
violenta pela polícia.
A contradição é ainda mais marcante, quando a violência policial
atinge inclusive projetos e programas de governo. É o caso de ações de-
senvolvidas pelos Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte
(Cucas) da Prefeitura Municipal de Fortaleza.24 Jovens frequentadores do
espaço narram inúmeras intervenções violentas de policiais e guardas mu-
nicipais durante ações desenvolvidas no equipamento pela própria Prefei-
tura Municipal, em contradição com a proposta de integração e proteção
social desenvolvida. A ação dessas forças, necessárias em razão de ocor-
rências criminais que vitimam jovens, é sempre desmedida e generalizada.

23 Os “rolezinhos” são referências a um rolê, uma gíria das cidades brasileiras para des-
crever um passeio entre amigos. Os “rolezinhos” se popularizaram, no Brasil, quando
jovens das periferias resolveram fazer seus rolês em shopping centers de cidades bra-
sileiras. Como retratado no texto, os “rolezinhos”, em Fortaleza, têm acontecido em
espaços públicos, na própria periferia.
24 Conforme a Prefeitura Municipal de Fortaleza (s. d.), “a Rede Cuca é uma rede de
proteção social e oportunidades formada por três Centros Urbanos de Cultura,
Arte, Ciência e Esporte (Cucas), mantidos pela Prefeitura de Fortaleza, por meio da
Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude. Geridos pelo Instituto
Cuca, os Cucas Barra, Mondubim e Jangurussu atendem, prioritariamente, jovens de
15 a 29 anos, oferecendo cursos, práticas esportivas, difusão cultural, formações e pro-
duções na área de comunicação e atividades que fortalecem o protagonismo juvenil e
realizam a promoção e garantia de direitos humanos” (Disponível em: <https://juven-
tude.fortaleza.ce.gov.br/rede-cuca>.).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 143

“Quando eles chegam, não querem saber quem está ou não fazendo algo
errado. Entra todo mundo na peia”, relatou jovem que participava de ati-
vidades culturais no equipamento, no bairro Jangurussu. Observa-se, em
geral, uma falta de discernimento e equilíbrio em ações que alcançam to-
dos, agressores e vítimas, envolvidos e não envolvidos. A discriminação e
o preconceito são os geradores de ações que afetam os jovens em suas mais
diversas sociabilidades, restando na periferia poucas ou nenhuma opção
realmente segura de lazer. Ao tratar todos como “bandidos”, a polícia sim-
plifica seu trabalho, abordando e atuando com violência para promoção
de seu “combate” ao crime. Esse “combate” parece pouco afeito a discutir
razões ou relativizar posições sociais predeterminadas pelos preconceitos
que estabelecem jovens pobres e negros como os sujeitos potenciais da
criminalidade.25
Outra situação observada durante a pesquisa foi a existência de co-
branças de propinas, o tradicional “arrego”. Para jovens entrevistados, é
comum que policiais nessas ações exijam o “arrego”, sobretudo, quando
sabem que o abordado tem envolvimento com os mercados ilegais de dro-
gas. Pagar o “arrego” é um jeito de evitar algo pior, pelo menos por um pe-
ríodo breve. Mesmo pagando o “arrego”, é preciso considerar que o pagan-
te se torna também testemunha de um crime cometido por policiais. Isto
traz uma série de problema para jovens que, efetivamente, não conseguem
sair de um circuito de cobranças que submetem sua vida a risco. “Às vezes
você não está nem querendo fazer nada, aí os cara de pega [policial] e tu tá
sem dinheiro. Ora, ali tu tem que fazer teu corre porque se não tu tá mor-
to”, afirmou um jovem que praticava assaltos pela cidade. Para quem está
dentro de esquemas que são compostos por outros que cometem crimes
e policiais que abordam em troca do “arrego”, grosso modo, sair é um pro-
blema quase intransponível. Para muitos envolvidos são poucas as chances
de sair da gangue, da “facção” ou escapar da extorsão policial. Por isso, é
comum que imaginem a morte como uma possibilidade real e única de

25 O trabalho de Misse (2014) demonstra como funcionam os processos de sujeição cri-


minal sob os considerados como potencialmente perigosos para a sociedade.
144 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

encerrar o seu envolvimento com pessoas e grupos também envolvidos na


prática de crimes.
A omissão dos policiais ante o que acontece e o que sabem que sucede é
outro elemento que ajuda a explicar os altos índices de mortes de jovens na
periferia de Fortaleza. “Aqui todo mundo sabe quem tá envolvido, quem vai
matar quem, quando e onde, inclusive a polícia”, afirmou liderança comuni-
tária do Pirambu. Existe uma sensação de que as forças policiais têm interesse
na reprodução de determinadas práticas criminosas. Inclusive, a reprodução
de mercados ilegais de drogas, em geral, só é possível em virtude da indiferen-
ça ou cooperação de policiais na ação. “Aqui nessa rua tem uma boca de fumo
que funciona há dez anos. Tá cansado de parar viatura aí em frente”, apontou
o morador vizinho de uma boca de fumo. São situações corriqueiras e relatos
que também aparecem na fala de operadores de segurança pública e justiça
criminal. Em conversa com policiais militares, eles relataram que “a gente sabe
que tem os corruptos que vão na boca pegar a propina”. Essa situação ajuda a
entender como é possível que determinados comerciantes se mantenham du-
rante anos praticando o comércio de drogas no bairro, sem uma interferência
direta da polícia. Quando entram em conflito com outros pelo poder, na re-
gião, observa-se que vários envolvidos irão morrer em sequência, durante um
bom tempo sem que qualquer interferência policial ocorra para impedir que
os crimes aconteçam. Algumas situações se tornaram inclusive emblemáticas,
como é o caso do Bairro Tancredo Neves.

Rivalidade
Três jovens executados em chacina no Tancredo Neves.
O som de fogos de artifícios ouvidos na noite de domingo no bairro
Tancredo Neves não era a celebração de nenhuma festa. O barulho
indicava o ´sucesso´ de uma chacina que tirou a vida de três jovens,
que estavam em uma residência, na Rua Maçaranduba. Minutos
após a morte dos irmãos Jackson Rodrigues, 21 e Júnior Rodrigues,
23, e de Francisco Claudenilson Bernardo Pita, 19, sumariamente
executados com tiros de pistola de calibre nove milímetros e de
380, uma queima de fogos foi iniciada no Conjunto Tasso Jereissati,
onde, supostamente, os acusados do crime moram. “Parecia que
Violência, Polícia, Justiça e Punição 145

o mundo ia acabar com tanto tiro, depois eles fazem isso (soltam
fogos)”, disse uma testemunha. (Diário do Nordeste [online], 2010)

A matéria retrata uma situação bem conhecida na cidade, no Bairro


Tancredo Neves, onde grupos rivais celebram com fogos de artifício a morte
de seus “inimigos”. Quando questionados sobre o motivo de a polícia não
conseguir intervir em situações amplamente conhecidas, os responsáveis
pelo comando das forças policiais alegam que a população não coopera, ne-
gando-se a oferecerem denúncias e informações. A explicação não conside-
ra, no entanto, que não existem programas de proteção a testemunhas ade-
quados no Ceará. Fazer uma denúncia na periferia é um “atestado de óbito”.
É uma prática classificada como desvio irreparável por aquelas pessoas que
praticam crimes e exigem o “proceder” de seus parceiros e da própria comu-
nidade. Por isso, jovens que integram os mercados ilegais de armas e drogas,
mesmo ocupando uma posição subalterna, “comem a bronca”, ou seja, assu-
mem como suas armas e drogas que eventualmente estejam transportando.
Testemunhar contra os que comandam os esquemas significa morrer, pois
dificilmente o Estado irá prover a testemunha das condições de continuida-
de protegida de sua vida. Assim, escutam-se os fogos, assiste-se às mortes e
testemunham-se prisões sem que ninguém “fale nada” ou ofereça à polícia
uma informação que, em tese, ela deveria conseguir por outros meios.
Ao não encontrar na população as informações necessárias, policiais e
moradores da cidade de Fortaleza se conformam às matanças que “impressio-
nam” pelos seus números, mas são comuns e continuam a acontecer ano após
ano, com dezenas de mortes como retrata a notícia a seguir do ano de 2008.

CONTROLE DO TRÁFICO
“Guerra” no São Miguel já provocou 17 mortes.
Ontem, mais um jovem foi eliminado na comunidade. No domin-
go passado, um adolescente também foi executado.
Subiu para 17 o número de mortos na ‘guerra’ de traficantes que se
desenrola, há meses, na comunidade do Conjunto São Miguel, em
Messejana. Na manhã de ontem, um rapaz morreu e outros dois
homens ficaram feridos, no terceiro tiroteio desde domingo. Foi
a segunda morte em 72 horas. O pano de fundo é a disputa entre
146 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

gangues pelo controle do tráfico de drogas na comunidade. Mora-


dores da área dizem que estão sitiados e temem pelo assassinato de
pessoas inocentes a cada novo confronto. (Brito, 2008)

As notícias sobre assassinatos, no Conjunto São Miguel, retratam um


cenário conhecido e ignorado ao mesmo tempo. A Chacina de Messejana,
em 2015, marcou mais um capítulo na vida de jovens “matáveis” que, ano
após ano, experimentam uma violência sistemática contra suas vidas. Entre
um acontecimento e outro se passaram sete anos sem que o cotidiano de
mortes no Conjunto São Miguel fosse transformado. Programas de gover-
no, projetos sociais e ações policiais de todos os tipos foram desenvolvidos
sem que o panorama de vitimização de jovens pobres e negros seja modifi-
cado. As mortes no São Miguel acontecem à luz do dia e como ocorrem já
foi retratado pela imprensa, em 2015, em vídeo que circulou na internet.26
No vídeo referido, três rapazes circulam pelas ruas do bairro com fogos de
artifício, tranquilamente e fazendo gozações. Aparentemente, uma mulher
filma a ação e em determinado momento diz: “é só fogos população”. Após
breve caminhada, eles encontram outros dois jovens sentados em frente a
uma residência. É possível ouvir quando a mulher que filma avisa que “é
ele” e depois começam a perguntar a um dos rapazes se ele trabalha para
uma determinada pessoa. Ele responde que não, mas os jovens respondem
que ele “trabalha sim”. Sem que nenhuma das duas pessoas sentadas esboce
qualquer reação, um dos rapazes que era filmado dispara 15 tiros contra a
vítima, sem que o outro seja atingido ou expresse qualquer sinal de reação.
Durante esse processo, a mulher que filma incentiva o agressor a descarre-
gar a arma e atirar na cara da vítima. Depois de 15 disparos, o atirador passa
a arma para outro rapaz que executa mais seis disparos. O vídeo encerra
com a mulher que filma dizendo: “aí, eu não vou dar o meu não, é?”.

26 Um vídeo de um jovem sendo assassinado no Conjunto São Miguel pode ser acessa-
do no Portal UOL Mais. Disponível em: <http://mais.uol.com.br/view/pj4p9vzv54s1/
video-mostra-execucao-de-jovem-no-ceara-e-alvo-de-investigacao-da-policia-
-04028D1B306AE0995326?types=A&>. Acesso em: 13 set. 2017.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 147

A disseminação e a naturalização das mortes na periferia de Fortaleza


já eram algo grave e anterior ao trabalho mais intenso de “facções” crimi-
nosas. A chegada delas, no entanto, não deixou de significar um fenômeno
importante. As ordens para que todos que ingressarem na favela entrem
de vidro baixo e retirem os capacetes retrata a nova dinâmica dos conflitos
entre grupos rivais. Baixar os vidros dos carros e retirar os capacetes de
motoqueiros se tornaram dispositivos de segurança importantes porque,
entre outras coisas, é preciso evitar a invasão do bairro pelos “inimigos”.
As disputas entre PCC-GDE e CV-FDN tomaram uma proporção maior
do que as disputas entre gangues locais, em parte pela luta para o domínio
territorial dos mercados ilegais de drogas e armas na cidade de Fortaleza.
Bairros inteiros foram unificados em torno de um “comando” e as disputas
tomaram uma proporção maior, com ataques e conflitos uma escala terri-
torial ampliada. “Antes matavam um ou dois, agora matam todo mundo
que estiver na rua junto com aquele ali que é o alvo”, relatou moradora que
presenciou a morte do sobrinho em uma ação do PCC-GDE. Segundo ela,
a vítima estava conversando com outro amigo e ambos foram assassinados
em uma ação cujo objetivo era a retaliação de outros assassinatos pratica-
dos por integrantes do CV-FDN. A moradora relatou que o acontecimento
decorreu desde que um carro entrou na rua em alta velocidade, com quatro
homens armados de fuzis atirando contra os três. “Poderiam ter matado
muito mais”, ela expressou. A intensificação das mortes, com armas de gros-
so calibre, é um fato que compõe as narrativas após o aumento das “facções”
nas periferias de Fortaleza.
Outro elemento importante é quanto a interferência dos grupos nas
comunidades locais. “Quando eles chegaram muito gente achou bom, mas
depois que viu o que eles são capazes de fazer com as pessoas, começamos
a nos assustar”, declarou um morador de uma área controlada pelo PCC-
-GDE. Existem falas de que essas “facções” punem jovens que assaltam na
comunidade com “crueldade”. Tiros nas pernas e mãos se tornaram práti-
cas sofridas por adolescentes que cometem assaltos na periferia. Também
existem associações entre traficantes ligados às “facções” com crimes de
linchamento. Pessoas capturadas furtando são as vítimas preferenciais e
148 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

morrem pelas mãos de pessoas envolvidas com o tráfico de armas e dro-


gas. Os “tribunais do crime” também se tornaram uma realidade dos lo-
cais de domínio das “facções” e sua estruturação se tornou conhecida em
matéria jornalística publicada pelo jornal O Povo.

Polícia acha pedaços de corpos em apartamento no Jangurussu


No local, havia muitas marcas de sangue, além de órgãos humanos.
O imóvel está localizado em conjunto habitacional ocupado.
Um apartamento com muitas marcas de sangue e pedaços de cor-
pos foi localizado, ontem, pela Polícia Militar na comunidade Babi-
lônia 2, no Barroso, em Fortaleza. Os agentes da segurança faziam
patrulhamento no local quando encontraram o imóvel que funcio-
naria como “tribunal do crime”. Lá, as pessoas seriam julgadas e
mortas e teriam os corpos esquartejados. (Talicy, 2017)

A matéria ressalta algo que também aparece nas falas e parece afetar a
sensibilidade local, a crueldade existente na ação das “facções”.27 Não houve
tempo, nas pesquisas que alimentam este trabalho, para aprofundar o papel
dos “tribunais” nas dinâmicas criminais que compõem o trabalho das “fac-
ções” na periferia. As interlocuções com moradores, no entanto, mostram
que a lógica de mortes cruéis passou a ser um componente importante desde
a chegada das “facções”. A produção social do medo, com atos de esquarte-
jamento, parece um elemento importante e a matéria ajuda a propagar algo
politicamente relevante para as “facções” em seu trabalho de impor o mando e
a obediência na periferia. O desaparecimento de jovens que praticam assaltos
ou são identificados como aliados de outro grupo faz parte das rotinas im-
plementadas pelas “facções”. O reaparecimento do corpo esquartejado, com
marcas de tortura em razão de passagem pelo tribunal do crime é outro fato
relevante com o qual as pessoas vão convivendo nas periferias de Fortaleza.
Como nas outras situações narradas, são os jovens as principais vítimas de
uma ação violenta protagonizada por quem deseja se impor pela força.

27 Barreira (2013) explorou os efeitos sociais da crueldade em práticas do que definiu


com violência difusa em virtude da carga de imponderável de algumas ações.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 149

Considerações finais
Assassinatos de jovens, nas periferias de Fortaleza, não são aconte-
cimentos isolados. Como é possível observar, este fenômeno retrata um
processo que precisa ser compreendido em sua extensão e complexidade
histórica. Nos últimos 20 anos, com a complexidade dos mercados ilegais
de drogas e armas, a letalidade relacionada ao crime se tornou mais eviden-
te, mas ela não passou a existir desde então. A cidade de Fortaleza atingiu
números expressivos e sua exposição ajuda a evidenciar o fenômeno. Não
parece demasiado, no entanto, acentuar que esse fenômeno tem raízes co-
loniais, com suporte nos assassinatos sistemáticos de indígenas, negros e
pobres. Como foi possível observar, os assassinatos de jovens pobres e ne-
gros nas periferias acontecem de maneira cruel e visível. Nenhuma ação do
poder público foi útil na diminuição da violência que atinge jovens, pobres
e negros nas periferias urbanas de Fortaleza, pelo menos, nos últimos dez
anos. Não são todos os jovens da periferia que irão morrer assassinados.
São, em sua maioria, do sexo masculino, negros, envolvidos ou “suspeitos”
de envolvimento com práticas de crimes. A suspeição recai sobre todos,
mas é mais comum encontrar corpos de negros alvejados e caídos no chão.
Mesmo sendo conhecidas, as condições sociais que estruturam as mortes
dessa parte da população permanecem intangíveis. Em outubro de 2017, as
matérias jornalísticas já apontavam para o fato de que o Estado do Ceará
continuava em seu caminho de crescimento dos números de homicídios,
com 3.696 registros de crimes violento letais intencionais.
As explicações do poder público insistem no fato de a “droga” ser a mo-
tivação de “guerras” entre bandidos, que se matam sem que as forças poli-
ciais possam impedir. Apesar dos mercados ilegais de drogas e armas terem
um papel importante, não explicam a totalidade das mortes. Elas ocorrem
também porque policiais interferem nos territórios, como no caso da Chaci-
na de Messejana. Como foi possível observar nas falas de autoridades após a
Chacina, pouco importa o evento em si, pois primeiro é preciso saber quem
são os mortos. Ao perguntar primeiro quem são os mortos, os governos
deixam claro que não têm interesse em impedir a morte de determinadas
pessoas, supostamente classificadas como “bandidos”. Existe uma autoriza-
150 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ção para que “bandidos” sejam assassinados. Não se trata de algo implícito;
é explícito. As cenas do crime são marcadas pela identificação do morto.
Quando é estabelecida a relação dele com práticas de crimes, é produzida
uma explicação baseada na ideia de que o crime foi um “acerto de contas”
entre “bandidos”. Então, não há motivos para comoção social ou providên-
cias mais do que as necessárias para que o corpo do morto seja enterrado e
os processos arquivados.
Ao trabalharem em Fortaleza, as “facções” implementaram novas con-
cepções de como fazer o crime, se relacionar com o grupo e a comunidade.
Criaram rotinas, com novas armas e práticas entre o que se deve e não se
deve fazer. Sem nenhuma dúvida, ainda é necessário avançar na compreen-
são desse fenômeno, buscando compreender as mudanças sociais no crime
na periferia de Fortaleza, com a intensificação da ação de “facções” crimi-
nosas. Não obstante, é preciso registrar o fato de que as condições sociais
que possibilitaram o trabalho das “facções” existiam há muito tempo. Os
mercados ilegais de drogas e armas, articulados ao trabalho de grupos que
atuam em escala nacional e internacional, já existiam e foram incorporados
a uma engrenagem maior. As conflitualidades internas tiveram que se rea-
comodar no panorama de conflito estabelecido com PCC-GDE de um lado
e CV-FDN do outro. Observa-se que grupos que antes guerreavam entre si,
no interior de determinado bairro, promoveram alianças e estabeleceram
outros grupos de outros territórios ou ainda dos seus territórios como ini-
migos. Ainda é preciso mapear as novas dinâmicas territoriais e sua confi-
guração no âmbito da cidade de Fortaleza.
Em suma, é difícil imaginar que jovens pobres e negros estejam produ-
zindo armas e sejam os responsáveis pela comercialização, em larga escala,
de drogas como a cocaína. Estão, no máximo, participando como traba-
lhadores de grupos que movimentam mercados internacionais economica-
mente rentáveis e capazes de produzir adesão pelos efeitos econômicos que
produzem na vida de comunidades pobres. Não é possível menosprezar o
fator econômico na reprodução do crime, embora não se possa ficar preso
ou reduzir o fenômeno a ele. Jovens participam desse mercado em uma po-
sição subalterna, colocando suas vidas em jogo para movimentar um seg-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 151

mento econômico que precisa ser compreendido em sua dinâmica gerativa


da vida e da morte de jovens na periferia. Possivelmente, outro olhar para
o problema do envolvimento de jovens da periferia com o crime geraria, ao
menos, a possibilidade de novas práticas para impedir a continuidade das
centenas de mortes anuais em cidades como Fortaleza. Em tempo, não pa-
rece que evitar a morte de jovens pobres e negros da periferia esteja na agen-
da como prioridade dos governos brasileiros, arrebatados por uma onda
conservadora que defende o armamento e a morte como modalidades de
resolução da violência. Prosseguem as mortes!

Referências bibliográficas
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PARTE II
POLÍCIA E SEGURANÇA PÚBLICA
A atividade policial entre práticas
e representações sociais

Maria Stela Grossi Porto1

Identidades profissionais e práticas policiais


A pesquisa que deu origem a essas reflexões, no âmbito Violência, De-
mocracia e Segurança Cidadã do INCT, colocou como prioridade refletir
sobre as relações entre identidade profissional e práticas policiais, visando,
sobretudo, à compreensão das relações do policial com a sociedade. Tare-
fa que aponta para a relevância de compreender as corporações policiais
enquanto agentes do Estado, responsáveis pela garantia de lei e ordem na
vigência do Estado democrático de direito. Desafio permanentemente co-
locado para a democracia e abordado por meio do melhor entendimento

1 O trabalho de pesquisa é um trabalho coletivo; e este não foi diferente. Muito do re-
sultado final não teria sido possível sem o esforço de todo o grupo. Uma equipe séria
e dedicada esteve sempre presente. Várias foram as etapas e momentos em que cada
participação se revelou mais presente, mas a contribuição conjunta foi fundamental
para o resultado final do trabalho. Muito obrigada pela seriedade, dedicação e qua-
lidade do trabalho empreendido, a quem desde o momento inicial compartilhou e
acreditou neste trabalho coletivo: a professora Ana Maria V. Nogales e os pesquisa-
dores: Welliton Caixeta Maciel; Kamila Figueira; Thais Gwryszewski; Cláudio Dantas;
Rodrigo Suassuna; Gabriela Landim; Nelson Gomes; Marcelle Fiqueira; Gabriela Dias;
Tatiana Maranhão; Walter Menon. Agradeço também à professora Haydée Caruzo,
pelo tempo em que participou da equipe.
160 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

das corporações policiais, civil e militar. São analisadas possíveis relações


de causalidade entre práticas policiais violentas e os complexos e por vezes
contraditórios processos de construção identitária.
Partiu-se do pressuposto de que a forma como as práticas policiais são
representadas e atualizadas por estas corporações no dia a dia do trabalho
contribui, positiva ou negativamente, para a preservação de lei e ordem, nos
limites da observância dos direitos humanos. E de que tais práticas decorrem,
em larga medida, do universo cognitivo e simbólico a partir do qual os po-
liciais se concebem em termos de marcas, pertenças e registros identitários.
Este universo, por sua vez, não é resultado de um pensar ou de um
fazer solitários, mas apoia-se em pertencimentos sociais, dentre os quais
ressaltam, em termos valorativos, aqueles decorrentes da prática profis-
sional. Daí a relevância acordada à questão identitária e à noção de al-
teridade. Tal noção revelou-se um instrumento relevante no sentido de
viabilizar reflexões acerca das relações internas ao mundo policial bem
como daquelas que a polícia estabelece com a sociedade. A análise cen-
trada na perspectiva identitária apontou a relevância de uma questão que
foi se revelando central, qual seja, a da distinção entre identidade/grupo e
identidade no grupo, como forma de melhor avaliar o peso da instituição
na construção identitária do policial.
Na análise buscou-se o aprofundamento da distinção policial militar/
policial civil, assim como daquela entre policial/ não-policial (paisano).
Estas categorias foram apreendidas e analisadas na condição de categorias
nativas do universo conceitual /cognitivo do policial. A partir delas a cor-
poração se concebe (em termos de marcas, pertenças e, talvez, registros de
identidade) compreendidos através da noção de diferença, articulada, como
contraponto, à categoria da identidade e de seus possíveis desdobramentos
para o tratamento da questão da violência policial.
Essas considerações apontaram indagações que alimentaram a reflexão
e sugeriram o caminho teórico que subsidiou a análise e a delimitação empí-
rica do objeto pesquisado. Dentre tais indagações, uma ateve-se ao conceito
de identidade, tomado aqui não do ponto de vista psicanalítico, do eu indi-
vidual, mas na condição de processo coletivo de pertencimento a um dado
Violência, Polícia, Justiça e Punição 161

grupo. Outra dedicou-se ao aprofundamento das relações entre identida-


de profissional e práticas, pensadas, estas últimas, em termos de possíveis
desdobramentos em práticas com componentes de violência. O desenvol-
vimento da reflexão deteve-se em conteúdos de cunho mais teórico acerca
do conceito de identidade, mas a principal referência a guiar a pesquisa foi
a análise do contexto empírico da prática policial, capturado por meio da
análise das representações sociais.
Buscou-se a diversidade das representações sobre o fazer policial (in-
cluindo ainda que de modo secundário e via entrevistas suas reflexões sobre
formação e gestão policiais).
Trabalhou-se também com o pressuposto de que um déficit identitá-
rio do policial (sem se definir como identidade para si, estaria à mercê da
identidade para o outro) poderia ter como efeito (ou desdobramento) os
já referidos componentes de violência (como atendimento a expectativas
da população, ou de certos segmentos desta). A questão, aprofundada no
desenvolvimento da pesquisa indagava se o déficit identitário atravessava
as corporações como um todo, afetando igualmente policiais civis e milita-
res ou se atingiria diferentemente os membros da corporação. Ensejaria tal
déficit a elaboração de identidades deterioradas, submissas, compostas por
conteúdos negativos (dentre os quais o abuso da força física e a violência
seriam os atributos mais evidentes), utilizados como forma usual de ação e
reação (policial) ao que consideraria transgressão da ordem?
Nessa direção e a depender das circunstâncias, cumpriria a violência
policial, o “roteiro típico” (Becker, 1985) que a sociedade espera deste seg-
mento, no sentido de assegurar a ordem, mesmo que ao preço de infringir a
lei, até mesmo a que prescreve a preservação da vida?
Tenderia o policial a definir-se a partir do que supõe a sociedade es-
perar dele, configurando uma construção identitária forjada a partir de
um alter que cobra eficiência, rapidez e punição, como condição para o
restabelecimento da ordem, mesmo que em detrimento da lei? Entre lei e
ordem, estaria o policial disposto a deixar que a primeira fosse suplantada
pela segunda?
162 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Contexto teórico: identidade, autorreconhecimento


identitário e nota metodológica
A reflexão de cunho mais teórico teve como pano de fundo o debate
acerca da relação indivíduo/sociedade, ponto de controvérsia sobre o objeto
mesmo da análise sociológica e referência para construções teóricas sobre
identidade. Tomou-se de empréstimo um conceito caro a Elias (1994): o
da balança “eu/nós” e de como os polos da relação convivem em situações
de equilíbrio/desequilíbrio. A preponderância de um ou outro destes polos,
caracterizando mais ou menos individualização, pode ser entendida como
função de desenvolvimentos de longo prazo e também do habitus social pre-
ponderante nestes processos.
Uma reflexão, instigante desde o início, girou em torno da questão so-
bre onde situar o “eu e o nós” dos segmentos policiais ou, dito de outro
modo, quem é quem, e em relação a que outros segmentos, internos e/ou
externos à segurança pública? Quem seria o outsider do policial militar e
vice-versa? Como se definiriam suas marcas identitárias, pelo contraste com
o não policial, o paisano, ou com o policial da outra corporação?
A noção de alteridade ganhou assim centralidade na compreensão do
processo de construção identitária e no entendimento de como as corpora-
ções policiais se concebem (em termos de marcas, pertenças e registros iden-
titários) bem como dos possíveis desdobramentos daí decorrentes para a aná-
lise da questão da violência policial. O caminho metodológico foi a análise
de representações sociais dos agentes policiais, sobretudo aquelas referidas a
ocupação, modelos de referência, ethos e identidade como policial. Orientou
a pesquisa a hipótese segundo a qual o auto–reconhecimento identitário, se
definido de modo negativo, poderia acarretar desdobramentos nas práticas e
na atuação policial, sobretudo no que concerne ao emprego de violência.
Da perspectiva metodológica o conhecimento via representações so-
ciais é um tipo de conhecimento que poderia ser considerado de segundo
grau, ou de “segunda mão”, não por ser menos relevante do que aquele ob-
tido de “primeira mão”, mas na medida em que se chega a ele interrogando
a realidade através do que se pensa sobre ela; interrogam-se, assim, o (s)
imaginário (s) construído (s) sobre a realidade em questão. É um enfoque
Violência, Polícia, Justiça e Punição 163

que privilegia, pois, a linguagem em sua condição de dispositivo analítico,


indagando-se sobre que discursos e narrativas são aí produzidos. Sobre a
realidade a ser compreendida os indivíduos, inseridos em distintos segmen-
tos socioeconômicos e culturais, elaboram “teorias do senso comum”, ou
seja, representações sociais, que são, assim, uma estratégia metodológica
de abordagem da realidade permitindo, desde que bem conduzida, avançar
o conhecimento sobre esta. Quando a realidade é capturada pelo viés das
representações sociais, o que se coloca como conteúdo para a análise so-
ciológica são os sentidos empíricos, formulados pelo senso comum, perme-
ados por julgamentos de valor e efeitos de hierarquização, que esta categoria
carrega, levando o(a) pesquisador(a) a se interrogar sobre que valores são
esses e sobre como tais valores e crenças estruturam e presidem a vida so-
cial. Quando consideramos representações sociais como categoria analítica,
lidamos com conteúdos valorativos por excelência, os quais são apreendidos
em sua condição de máximas orientadoras de conduta.
Pesquisar a realidade utilizando-se da Teoria das Representações So-
ciais (TRS) (interrogando-se, pois, a realidade a partir do que se diz sobre
ela, implica aceitar que tais representações: a) embora resultantes de experi-
ência individual, são condicionadas pelo tipo de inserção social dos indiví-
duos que as produzem; b) expressam visões de mundo objetivando explicar
e dar sentido aos fenômenos dos quais se ocupam, ao mesmo tempo em
que, c) por sua condição de representação social, participam da constituição
desses mesmos fenômenos; d) apresentam-se, em sua função prática, como
máximas orientadoras de conduta; e) admitem a existência de uma conexão
de sentido (solidariedade) entre elas e os fenômenos aos quais se referem,
não sendo, portanto, nem falsas nem verdadeiras, mas a matéria-prima do
fazer sociológico (Porto, 2009).

Contexto empírico
O Distrito Federal foi o espaço selecionado para a análise. O interesse
em focalizar Brasília como locus empírico para pesquisar a violência decor-
reu do fato de as demais capitais serem, seguidamente, objeto de pesquisas
sobre a temática e Brasília pouco priorizada, em virtude de, muitas vezes,
164 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ser representada como espaço atípico. Para alguns, a característica de atipi-


cidade se justifica pelo caráter relativamente calmo e pouco violento com o
qual a cidade é (ou vinha sendo) identificada, quando comparada a outros
contextos urbanos. Para outros, seria pela própria especificidade da cidade e
de sua condição de sede do poder, que as violências aqui existentes, tendem
a ser representadas de modo a exacerbá-las ou minimizá-las, dificultando,
em ambos os casos, que se atinja o significado de suas dimensões. A am-
biguidade de tais representações justifica o aprofundamento do olhar so-
ciológico sobre essa dimensão regional (o que no caso significaria também
incluir o entorno, mas que, infelizmente, por restrições de várias ordens não
foi possível contemplar nesta pesquisa).
Assim, o tema da violência urbana na capital e, sobretudo, a questão de
seu crescimento – existente e/ou representado – tem sido recorrente, não só
no âmbito do senso comum e da mídia; também especialistas e estudiosos
vêm tratando a questão.2
Talvez seja possível supor que as representações elaboradas sobre a ca-
pital vivenciem, nas duas últimas décadas, mas sobretudo a partir do final
dos últimos anos do século passado, um momento próximo ao que se po-
deria chamar fase de transição: por um lado, ainda pesa sobre Brasília sua
representação social como “ilha da fantasia”. Aí se incluiria a pouca signifi-
cação de atos de violência ou o fato de que transgressões e violências seriam
representadas como impunes, sobretudo, quando tivessem como protago-
nistas (mas também vítimas, e aí o contexto muda de figura) os “filhos” do
poder. Por outro lado, convive-se cada vez mais com a ideia de que a cidade
estaria sendo invadida pela violência do “outro”. Esse outro, temível e terrí-
vel seria o entorno cuja população está exposta a toda sorte de violências e
fragilidades, decorrentes da ausência de infraestrutura e equipamentos ur-
banos para o conjunto da região.3 Vale lembrar que se trata de um espaço
que juridicamente (de direito) pertence a Goiás – estado vizinho e de onde
foi retirada a área que hoje compõe o Distrito Federal – mas (de fato) se

2 Nunes, 2004; Vasconcelos e Costa, 2005; Porto, 2014.


3 Para maiores detalhes sobre a configuração socioespacial e econômica da região, cf.
Porto, 2009; 2014.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 165

insere no Distrito Federal, já que composto por cidades cuja população de-
pende em sua maioria do emprego e dos equipamentos urbanos mínimos
-segurança, saúde, lazer, educação- existentes, ou não, no DF (mesmo que
de forma não tão exclusiva como quando dos momentos iniciais de existên-
cia da capital federal). Muito frequentemente, os governos das duas áreas
se disputam quando se trata de atribuir deveres e responsabilidades ou de
apontar falhas e culpados pelo vazio político administrativo no qual a região
se tornou. Na prática, as disputas administrativas impedem ou dificultam
que os governos das duas regiões, Goiás e DF, trabalhem em parceria. A re-
presentação do entorno é então a de algo próximo a uma “terra de ninguém”
a assustar cada vez mais a “terra do poder, incapaz de reagir” e se sentindo
“contaminada” pela precariedade da região, e dos efeitos dessa, diretamente
ressentidos na capital federal. Ou seja, vista por esse prisma, Brasília com-
partilha características das grandes metrópoles, e isso vale para a questão da
violência. É uma cidade que comporta as benesses e delícias, mas também,
as mazelas e sofrimentos das grandes cidades. Em termos dessa grande arti-
culação urbana e do que isso significa enquanto representações sociais for-
muladas pelos mais distintos segmentos sociais, poder-se-ia, então, dizer, o
entorno é aqui. Mesmo concordando que em Brasília a violência seja difusa,
e que o sistema público de segurança detenha (ainda?) razoável controle so-
bre a região do plano piloto, (em que pese o fato de que algumas áreas serem
cada vez mais conhecidas por seus elevados índices de violência), não seria
exagero dizer que a cidade estaria rapidamente perdendo as barreiras ca-
pazes de, nos termos de Misse (2008), impedir a acumulação social da vio-
lência. Acrescentaria, em adendo ao argumento de Misse, que o potencial
para construir/desconstruir tais barreiras dependerá também da eficácia e
do conteúdo dessas representações mencionadas. Esse o motivo pelo qual,
mesmo não sendo o tema dessa exposição, o entorno mereceu essa contex-
tualização relativamente longa.
Assim, e concluindo estas notas metodológicas, a reflexão recorreu à
análise das representações sociais que a categoria (policial) elabora de si mes-
mo e das que constrói sobre o outro (ou os outros) com quem se relaciona ou
se confronta em sua prática cotidiana, dentro e fora das fronteiras da própria
166 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

profissão, enquanto contraponto para pensar e definir o “eu”. Esse outro que
pode ser o policial da própria corporação ou ainda da outra oposta à sua, ato-
res e segmentos da população civil, na figura do paisano como quer a lingua-
gem nativa, ou ainda toda uma região, como se viu com relação ao entorno.

Coleta de dados e plano amostral


A coleta dos dados foi efetuada ao longo dos anos 2011 e 2012, tendo
sido viabilizada por meio de distintos instrumentos de pesquisa: a) ques-
tionários, respondidos por 399 policiais civis e 1.181 policiais militares, de
ambos os sexos, o que originou dois bancos de dados distintos e compará-
veis. Para a realização dos questionários, foi gerada uma amostra com poli-
ciais civis de 32 delegacias circunscricionais e especializadas, e com policiais
militares de 23 batalhões, companhias independentes e unidades especiali-
zadas, b) 11 entrevistas com os níveis hierárquicos superiores das polícias
civis e militares, c) 6 grupos focais, sendo 4 com a PM (sargentos, tenentes,
soldados, capitães) e 2 com a PC (delegados e escrivães). Os roteiros tanto
das entrevistas quanto dos GF foram construídos com os mesmos temas
abordados pelo questionário, para permitir a comparação.
O plano amostral contemplou as variáveis espacial, hierárquica e de
gênero, em ambas as polícias. Ainda que a ênfase não fosse a questão do
gênero, a composição por sexo também foi levada em consideração, pois
era uma oportunidade preciosa para se avançar no conhecimento acerca
da forma como as corporações representam a entrada e a participação da
mulher na profissão policial.4
A população alvo da pesquisa foram policiais, civis e militares, com
atuação na formação ou em atividades junto à comunidade do Distrito Fe-
deral. Foram excluídos todos os policiais civis e militares cujas unidades

4 O desenho amostral e todo o processo de discussão e reflexão, para se definir a amos-


tra considerada representativa para os objetivos a que a pesquisa se propôs, estiveram
sob a responsabilidade da professora Ana Maria Nogales Vasconcelos, responsável
igualmente pela redação dos parágrafos que se encontram entre aspas nestas duas pá-
ginas que tratam da questão amostral. Aproveitamos a oportunidade para registrar
nosso agradecimento à profa. Ana Maria pelo excelente trabalho realizado.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 167

de lotação se caracterizassem pelo trabalho exclusivamente administrativo


ou especializado, sem envolvimento com a comunidade. Entre os policiais
militares, foram considerados apenas os enquadrados como combatentes,
excluindo-se todos os especialistas.
“Para a seleção da amostra, consideraram-se os cadastros das unidades
de lotação de policiais civis e militares, com dados sobre a composição do
contingente em cada unidade de lotação, segundo nível hierárquico e sexo,
no caso da polícia militar, e segundo cargo, no caso da polícia civil. Duas
características importantes relativas à composição da corporação da polí-
cia militar foram determinantes para a escolha do plano amostral: 1- mais
de 50% dos policiais tinham patentes inferiores, com proporção elevada de
soldados; e 2- menos de 5% dos policiais eram do sexo feminino. Diferen-
temente do observado na polícia militar, no caso dos policiais civis a infor-
mação sobre sexo do policial civil era a de que os percentuais de policias
femininos e masculinos eram mais próximos.
Considerando a diferença na composição dos contingentes, estratégias
também diferentes foram adotadas para a seleção da amostra na polícia mi-
litar e na polícia civil.
No caso da polícia civil, o cálculo do tamanho da amostra foi realizado
considerando-se o interesse em estimar proporções de algumas caracterís-
ticas a serem levantadas, admitindo-se um erro amostral máximo de 5%,
variância máxima e confiança de 95%. A amostra foi alocada proporcional-
mente segundo estratos de tipo de cargo e unidades de lotação.
No caso da polícia militar, considerou-se um plano amostral estratifi-
cado, com uma sobre-representação feminina e de patentes superiores. As-
sim, para a seleção da amostra, foram construídos, inicialmente, estratos
por sexo e quatro grupos de nível hierárquico, para garantir na amostra um
número mínimo de policiais militares femininos dos diversos níveis hierár-
quicos de interesse para análises comparativas Optou-se por calcular o ta-
manho da amostra para cada estrato, considerando-se também a estimação
de proporções de características a serem levantadas, admitindo-se um erro
amostral máximo de 5%, variância máxima e confiança de 95%.
168 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Apesar de ter-se admitido, para o cálculo do tamanho da amostra, um


esquema de seleção aleatório simples em cada um dos estratos nas duas cor-
porações, para a facilidade da coleta de dados, optou-se por um esquema
de amostragem em dois estágios. No primeiro estágio, foram selecionadas
as unidades de lotação, agrupadas segundo tipo de atividade, e, no segundo
estágio, procedeu-se à seleção dos policiais lotados naquela unidade. O nú-
mero de policiais militares e civis selecionados em cada unidade de lotação
foi proporcional ao número de policiais segundo nível hierárquico e sexo,
no caso da polícia militar, ou cargo, no caso da polícia civil, lotados nessas
unidades segundo os cadastros disponibilizados.
Um número entre 1 e 30 foi previamente selecionado e atribuído a cada
unidade de lotação. A seleção de policiais civis e militares para a realização
da entrevista baseou-se na proximidade do dia do aniversário a esse número
em cada unidade de lotação. Essa estratégia foi utilizada para assegurar ale-
atoriedade no processo de seleção das unidades amostrais.
Como o processo de seleção amostral entre os policiais civis foi estra-
tificado proporcional, considera-se que essa amostra seja auto ponderada,
não tendo sido necessário, para a análise de dados, a utilização de pesos
amostrais, mesmo que a distribuição de cargos na amostra tenha sido um
pouco diferente daquela observada no cadastro.
No caso dos policiais militares, como a amostra considerou uma sobre
representação de policiais femininos e de patentes superiores, cada obser-
vação foi ponderada por peso atribuído ao estrato de seleção, de modo a
representar corretamente o contingente de policiais.
Os pesos amostrais, no caso da polícia militar, foram calculados consi-
derando a distribuição dos policiais militares segundo sexo e patente dada
pelo cadastro disponibilizado em 2009. A sub-representação de soldados na
amostra realizada foi corrigida pelo maior peso amostral, e a sobre repre-
sentação de policiais femininos e de patentes mais elevadas, por um menor
peso amostral. Assim, a amostra ponderada representa adequadamente a
população de referência”.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 169

Análise dos resultados: PM e PC


Das 78 questões que compuseram o questionário as reflexões aqui ela-
boradas referem-se àquelas centradas na avaliação e valorização da ativida-
de profissional, enquanto subsídio para o tratamento do tema da identidade.
Para fins da análise, as questões abertas foram categorizadas e reagrupadas
em função da proximidade de conteúdo das citações encontradas.5
O ponto de partida são questões sobre como o policial define a polícia
e, na sequência, sobre como ele avalia que a sociedade a define. Os gráficos
abaixo sugerem um caráter mais negativo nas representações que o policial
militar supõe que a sociedade (enquanto seu alter) elabora a seu respeito, se
comparadas às suas próprias e às da PC.

Gráfico 1. Como você vê a polícia? Marque uma única alternativa

Fonte: Todos os gráficos deste texto são resultado desta pesquisa, conforme ex-
plicitado no item dedicado à Coleta de Dados. As porcentagens foram calculadas
a partir das respostas válidas. Na PM 9% da amostra não respondeu, no caso da
PC, 11% da amostra não respondeu.

5 Para o trabalho de elaboração dos gráficos, atribuição dos pesos (segundo as orien-
tações amostrais da professora Nogales), cruzamentos e leitura das tabelas e dados
contou-se com o trabalho dedicado de Thais Gawryszewski e Kamila Figueira cujos
agradecimentos ficam aqui registrados.
170 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Na PM, 56% dos respondentes representa a polícia como garantia de ma-


nutenção da ordem, mas apenas 19 % acredita que a sociedade os veja dessa
forma; 5% entende que a polícia seja um mal necessário, mas 26% acredita
que a sociedade a veja desta forma; nenhum dos respondentes vê na polícia
uma ameaça, no entanto 3% avalia que a sociedade os enxergue como tal. O
que aponta para um autorreconhecimento problemático,6 mas também su-
gere ambiguidades, contradições e paradoxos: Assim, 27% dos respondentes
acredita que a sociedade os represente como proteção, ao passo que apenas
20% assim se represente. Aprofundando a análise e agrupando apenas os re-
sultados que incontestavelmente registram uma representação positiva que
os respondentes fazem sobre si mesmos, teremos que 87% dos respondentes
acredita que a polícia desempenhe algum papel de tutela, no sentido de garan-
tias, proteções e serviços para a sociedade. No entanto, dentre esses respon-
dentes, apenas 6o%, acredita que a sociedade veja a polícia desempenhando
tal papel. Ou seja, nessa avaliação, o policial militar conviveria com um alter, a
sociedade, que em sua representação não reconhece de forma positiva a atua-
ção policial. Poderia tal sensação contribuir, em alguma medida, para a cons-
tituição de um déficit em seu processo de reconhecimento social e construção
identitária, levando, eventualmente a desencadear práticas violentas? Em tese
o argumento é simples: a melhor forma de encontrar valorização e reconhe-
cimento ainda é tratar com energia, dureza e mesmo violência o transgressor.
Além do que, agindo dentro ou fora da lei, a sociedade acaba por identificá-
-lo ao bandido. Essa leitura não está explicitada mais poderia ser deduzida
de representações nas quais, para o policial, a sociedade vê a polícia como
ameaça, mal necessário ou representante armado do Estado, como mostram
os gráficos abaixo. Da mesma forma, poder-se-ia ver aí, novamente, de modo
mais implícito do que explicitado a metáfora da guerra a partir da qual ata-
car poderia ser uma forma para se defender. Tais formas de representação
poderiam, eventualmente, ser parte dos ingredientes que Misse (2008) tem
definido como a “acumulação social da violência”. Na condição de RS, tais

6 Aqui se poderia falar em auto reconhecimento negativo, conceito elaborado por


Reis, 2001.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 171

afirmações não podem ser assumidas como falsas ou verdadeiras mas como
subsídios relevantes para a análise, pois a forma como o policial supõe ser
representado pela sociedade pode condicionar a forma como ele se relaciona
com ela, dado que RS se constituem em máximas orientadoras de conduta.
Representações com as características como as mostradas nos gráficos 1 e 2
poderiam, no limite, contribuir para uma atitude defensiva, ou até mesmo
agressiva do policial face a essa sociedade que, segundo ele, o representaria
como violento, ameaça ou um mal necessário. O eu da balança eu/nós ten-
deria a perder espaço para um nós que se avoluma, quase se agigantando em
termos de orientar a conduta policial.

Gráfico 2. Em sua avaliação, como a sociedade vê a polícia?


Marque uma única alternativa

As porcentagens foram calculadas a partir das respostas válidas. Na PM 9% da


amostra não respondeu, no caso da PC, 10% da amostra não respondeu.

É interessante perceber como este autorreconhecimento não se colo-


ca da mesma forma quando está em questão a polícia civil. Em primeiro
lugar, definir-se- como o faz esta corporação- como uma polícia judiciária
faz toda a diferença: leva a uma representação da sociedade sobre ela de um
lugar que nada tem a ver com o viés militarizado identificado à PM. Por
exemplo, garantia de manutenção da ordem e proteção para a comunidade
172 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

estariam muito mais associadas ao caráter jurídico-legal da função (uma


delegacia é um espaço de garantia de ordem na medida em que assegura o
cumprimentos das leis), à preservação da lei, e muito menos à prevenção,
repressão ou à questão da prestação de serviços estrito senso; ainda que esse
último seja o único quesito no qual as representações de ambas as corpora-
ções se igualam, em termos percentuais. Entretanto, quando o policial civil
busca avaliar como a sociedade o vê, é possível identificar que, para ele, a
sociedade não o representa precipuamente como um prestador de serviços.
De novo, aqui se apresenta uma coincidência com sua própria representa-
ção social, por ele identificada às funções investigativas (esta sim uma carac-
terística no qual a PC tende a se reconhecer) e até mais distantes do contato
direto com a sociedade. Diferentemente do que ocorre com a PM. Daí que,
por exemplo, se representar ou ser representado pela sociedade como ame-
aça sequer aparece para esta categoria. Ou ainda, uma função como a do
policial enquanto mal necessário, tão difundida nas representações da PM,
na PC aparece com pálidas tintas. E ganham espaço as representações que
os PC se fazem de si mesmos, segundo as quais eles se colocam como uma
garantia de manutenção da ordem e proteção para a comunidade: 47% e 38%,
respectivamente e, igualmente, aquelas que vislumbram que a sociedade faz
sobre eles, nestes mesmos quesitos, 26% e 36%, respectivamente. Caracte-
rísticas que articuladas a um conjunto de outras ligadas à função policial,
parecem conduzir a um auto reconhecimento mais positivo, quando com-
parado ao da PM. Com implicações no nível das práticas: representações
mais positivas poderiam gerar práticas, cujo sinal, positivo como é o caso,
poderia propiciar que a sociedade confiasse mais na polícia.
Confiança neste caso torna-se um conteúdo fundamental nas relações
polícia/sociedade. Eficiência, eficácia, agilidade e outros atributos positivos
que poderiam ser identificados como parte da função policial teriam pouco
sentido se a eles não pudesse ser adicionada uma característica que os dados
aqui indicam faltar – a confiança da sociedade no trabalho policial. Falta
que, no entanto, pelo indicado pelas representações de ambas as corpora-
ções, parece se revelar em proporções bem mais significativas na corporação
Violência, Polícia, Justiça e Punição 173

militar do que na civil7 (Suassuna 2013). Os cruzamentos destas questões


encaminham reflexões sugestivas.

Tabela 1: Como o policial vê a polícia e como ele supõe


que a sociedade a veja: PM

Pro- Garantia Repre-


Presta-
Policial Socie- teção Mal de ma- sentante Uma
dor de
(abai- dade (à para a neces- nutenção armado amea- Total
servi-
xo) direita) comu- sário da or- do Esta- ça
ço
nidade dem do

Garantia de
manutenção da 29% 24% 26% 11% 9% 1% 100%
ordem

Proteção para a
36% 23% 14% 16% 10% 2% 100%
comunidade

Prestador de
22% 19% 8% 31% 18% 1% 100%
serviços

Representante ar-
13% 35% 4% 18% 20% 10% 100%
mado do Estado

Mal necessário 8% 66% 5% 5% 1% 15% 100%

Uma ameaça 0% 0% 0% 0% 0% 100% 100%

Total 27% 26% 19% 14% 11% 3% 100%

Fonte: Pesquisa Identidades Profissionais e Práticas Policiais, origem deste texto.

Pensando inicialmente nos dados da tabela da PM: Dos policiais que


responderam que veem a polícia como garantia de manutenção da ordem,

7 Para uma análise mais profunda sobre o sentido da confiança na PM do DF, cf.
Suassuna, 2013.
174 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

29% responderam que a sociedade vê a polícia como proteção para a comu-


nidade, 24% como um mal necessário, 26% como garantia da manutenção
da ordem. Por outro lado, dos que responderam que se veem como proteção
para a comunidade 36% respondeu que a sociedade também os vê desta
forma; 23% como mal necessário; 14% como garantia de manutenção da
ordem. É relevante ressaltar, por exemplo, que nas RS dos que se veem como
mal necessário, 8% apenas indicam que a sociedade os vê como proteção;
no entanto, para 66% destes policiais eles são representados pela socieda-
de como mal necessário. Os números são indicativos de representações nas
quais o auto reconhecimento fica de alguma forma “contaminado” pelo que
eles avaliam seja o reconhecimento social.

Tabela 2. Como o policial vê a polícia e como


ele supõe que a sociedade a veja: PC
Repre-
Poli- Proteção Garantia
Socie- Mal Presta- sentante
cial para a de manu- Ame-
dade (à neces- dor de armado Total
(abai- comuni- tenção da aça
direita) sário serviço do Esta-
xo) dade ordem
do
Garantia de
manutenção da 39% 30% 17% 9% 5% 0% 100%
ordem
Proteção para a
43% 22% 20% 8% 6% 1% 100%
comunidade
Prestador de
3% 22% 35% 22% 19% 0% 100%
serviços
Representante
armado do 27% 18% 18% 9% 27% 0% 100%
Estado
Mal necessário 33% 0% 0% 67% 0% 0% 100%
Ameaça 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0%
Total 36% 26% 20% 10% 8% 0% 100%

Fonte: Pesquisa Identidades Profissionais e Práticas Policiais


Violência, Polícia, Justiça e Punição 175

Na PC este gap entre como a polícia se vê e como ela acha que é vista
pela sociedade, aparece bem mais nuançado: alguns dados mais significati-
vos bastam como ilustração: Dos policiais da PC que se veem como garantia
de manutenção da ordem, 30% acredita que a sociedade os veja da mesma
forma; 39% que a sociedade os veja como proteção e para 17% a sociedade
os representaria como mal necessário. Os policiais civis não se veem e nem
parecem representar que a sociedade os veja como ameaça ou mal necessá-
rio, o que definitivamente os distingue das representações da PM.
Na condição de RS, tais afirmações não podem ser assumidas nem
como falsas nem como verdadeiras: são subsídios relevante para a análise,
pois a forma como o policial supõe ser representado pela sociedade pode
chegar a condicionar a forma como ele se relaciona com ela, dado que repre-
sentações sociais se constituem em máximas orientadoras de conduta. Uma
representação com tais ou quais características poderá contribuir para ati-
tudes mais ou menos defensivas, mais ou menos agressivas do policial face
a essa sociedade se esta, a seus olhos, o avalia negativamente. Dito de outro
modo, com relação, por exemplo, à PM, isso pode estar querendo dizer, en-
tre outras coisas, que, a seus olhos, a sociedade a representa como violenta,
ameaça e mal necessário.
A questão que originou o gráfico 03, abaixo, é, igualmente, porta de
entrada importante para a busca identitária que moveu esta pesquisa e
que procurou captar o que é, para as corporações, a natureza da função
policial. Embora as questões não fossem excludentes a demanda por uma
única alternativa visava a captar o que, para o respondente, era o mais
significativo como definidor da função policial. Esta questão atinge, em
cheio, a prática do policial.
176 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Gráfico 3. Para você, o que significa o exercício como policial?


Marque uma única alternativa

As porcentagens foram calculadas a partir das respostas válidas. Na PM, tanto


quanto na PC, 8% da amostra não respondeu

A identidade mais afirmativa que parece ser a do PC, quando confron-


tada à do PM, se revela também nas representações de alguém que lê sua
prática diária como apta a auxiliar a comunidade a viver melhor (39%), a
participar de uma atividade de pacificação social (25%) e a participar de uma
atividade de limpeza social (04%) em porcentagens que, ainda que não mui-
to discrepantes se revelam sempre mais pronunciadas. Da perspectiva do
simbólico, a prestação de serviços continuaria a se mostrar uma atividade
que, de fato, não contribui para a construção identitária da profissão poli-
cial. E neste aspecto não há diferenças: as corporações ainda não incorpo-
ram a prestação de serviço como componente ou conteúdo de sua prática.
Policiais entrevistados muito raramente definem a atuação policial como
serviço. Ainda que no dia a dia parte considerável das tarefas possa ser as-
sim definida. No entanto, vários são os autores (Bayley, 2001; Monjardet,
2003; Goldstein, 2003; Monteiro, 2013) que têm chamado a atenção para o
fato de que parte importante da função policial não se encontra diretamente
vinculada à repressão à criminalidade ou à manutenção da ordem estrito
senso. A grande questão, no entanto, é que tais atividades não são práticas
valorizadas pelo policial, não são concebidas como “coisas de polícia” e, por-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 177

tanto, não são valores ou credenciais que o policial ponha em sua conta, ou
currículo, “como saldo positivo”. Questão que abre um espaço vazio, se não
se quiser falar em um déficit no que se refere à construção identitária, com
marcas e pertenças que façam sentido individual e, sobretudo, que apontem
para a condição da identidade social ou coletiva; da identidade profissional.
Com ligeiras nuances é algo que pode ser dito de ambas as corporações.
Ainda no âmbito da função policial, mesmo que o modelo disciplinar do
exército venha perdendo espaço, suas bases permanecem sólidas no âmbito
do simbólico e participar de uma guerra diária ocupa espaço importante nas
representações sociais dos respondentes da PM (21%) quando comparadas ao
encontrado para a PC (10%). Dados que condizem com suas representações
no que concerne a se representarem como o braço armado do Estado, as quais
são, proporcionalmente, dois terços maiores do que os números encontrados
para as representações da PC.Essa questão sobre função ou exercício policial
é provavelmente uma das que melhor expressa as ambiguidades, incertezas e
paradoxos sobre como se veem os policiais, e aqui chamam a atenção sobre-
tudo as representações dos policiais militares: divididos entre as representa-
ções que poderíamos chamar guerreiras – participar de uma guerra diária,
participar de uma atividade de limpeza social e participar de uma atividade
de pacificação social e as que apontam para uma dimensão mais “pacífica” de
polícia como prestação de serviços ( aí incluída igualmente a resposta sobre
ajudar a sociedade a viver melhor) os respondentes não chegam a partilhar
um conteúdo comum agregador de sentido daquilo que a corporação repre-
sentaria como o exercício da função policial.
O conceito de habitus presente na perspectiva analítica proposta por
Elias e também por Bourdieu (1972, 1980, 1984) poderia ajudar a discernir os
componentes identitários e os espaços sociais e simbólicos a partir dos quais
o eu e o nós se definem, objetivando distâncias sociais e simbólicas, relevantes
para a compreensão das práticas. Nessa perspectiva o que parece possível de
se depreender das representações é que o habitus, se existe, revela-se relativa-
mente frágil como potencial agregador da atuação policial a partir da ideia
de profissão, não permitindo falar de uma identidade no grupo. Mesmo as
respostas em termos de “auxiliar a comunidade a viver melhor” (a questão foi
178 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

propositadamente formulada dessa forma vaga no questionário) agregaram


pouco mais de um terço das representações sobre o significado do exercício
como policial militar e esbarram nos 40% para o policial civil.

Gráfico 4. A entrada para a polícia mudou o seu modo de ser?

As porcentagens foram calculadas a partir das respostas válidas. Na PM 4,5% da


amostra não respondeu, no caso da PC, 2% da amostra não respondeu

Buscando atingir seus objetivos, a pesquisa averiguou, igualmente, o


que a entrada para a polícia tinha feito destes atores no sentido de propiciar-
-lhes uma mudança de vida.8
Algo que vem permeando boa parte dos resultados, e que também trans-
parece em informações presentes neste gráfico é, mais uma vez, o caráter am-
bíguo que permeia as representações destes atores. Os paradoxos e as ambigui-
dades surgem de um conjunto a outro de respostas apontando as dificuldades
inerentes à construção de marcas ou sinais de pertencimento que permitam
aos próprios atores se auto reconhecerem e serem reconhecidos externamen-
te enquanto praticantes de uma profissão, com normas, regras de conduta e

8 Também vale a pena mencionar que um volume recém publicado com resultados da
mesma pesquisa (Porto e Orga, 2017) avançou algumas análises deste capítulo por
meio do cruzamento de dados aqui tratados com as variáveis relativas a posições hie-
rárquicas (Polícia Militar) e cargos (Polícia Civil) e sexo. Cf., sobretudo, capítulos 3 e 5.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 179

práticas próprias. Por exemplo, neste quesito acima, a se julgar pelos dados,
a mudança pareceria incontestável: a entrada para a polícia fez do indivíduo
“outro homem”. Vejamos, então, o que é possível depreender da análise, com o
cuidado que as fragilidades que dados desta natureza podem significar.
A pergunta, comportando múltiplas respostas, visava a captar em que
medida a nova condição foi representada negativa ou positivamente e se o
pertencimento à instituição policial conduzia a um processo de re- sociali-
zação, mudando o modo de ser dos que a ela aderiram. A ideia era captar re-
presentações de mudanças nos valores, crenças e estilo de vida, decorrentes
de uma nova socialização. Algumas respostas podem ser esclarecedoras. Ao
admitirem de modo majoritário que a vida mudou, alguns policiais deixam
transparecer a existência de algo próximo a tal ressocialização, acompanha-
do de um habitus identificado e identificável à nova condição mas, a se acei-
tar que isto de fato ocorre, é preciso cautela para se dimensionar sua direção.
Ao que tudo indica, dentre os que admitem que mudanças aconteceram,
mesclam-se duas ordens de transformação: um conjunto de respostas é in-
dicativo de que, contrariamente ao que foi dito acima, um habitus poderia
estar sim se formando e constituindo indivíduos mais conscientes, mais res-
ponsáveis, disciplinados, organizados, observadores e desconfiados, carac-
terísticas decorrentes todas elas dos requerimentos profissionais, ligados à
prática profissional e também ao dia a dia nas ruas. Exemplo, representações
como: Traz mais desconfiança, maior atenção e sensação de perda da liber-
dade; Possibilita conscientização em relação ao modo de ver a sociedade e
a polícia; Modifica a postura diante da sociedade; Acarreta insensibilidade,
agressividade e estresse; Modifica a forma de agir como um todo; Promove
mais responsabilidade e disciplina; Traz melhoria de vida; Permite estabi-
lidade financeira e profissional. Já o outro conjunto de razões chamaria a
atenção para a perda de sensibilidade, o endurecimento e até mesmo o stress,
apontando os aspectos nada gratificantes da mudança. Essas características
estão presentes nas respostas da PM mas, igualmente, naquelas da PC, cujo
contato com a sociedade se faz muito mais no espaço das delegacias do que
nas ruas. Ou seja, o “sim” da mudança é permeado por ambiguidades: con-
templa aspectos positivos e negativos.
180 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Gráfico 5. Você se sente melhor agora do que antes?

As porcentagens foram calculadas a partir das respostas válidas. Na PM 6% da


amostra não respondeu, no caso da PC, 4% da amostra não respondeu

Nesse mesmo diapasão foi perguntado se os respondentes se sentem me-


lhor agora do que antes. As respostas não apresentam praticamente diferença
quanto aos motivos em relação à questão anterior: os mesmos motivos que
levam o policial a responder que entrar para a polícia mudou o modo de ser
justificam sua resposta de que se sente melhor agora do que antes (da entrada
para a polícia) e são praticamente as mesmas que atestam o orgulho policial.
Indo mais a fundo e tentando esmiuçar o que mudou, vem à tona motivos que
poderíamos considerar de âmbito pessoal, no máximo que decorreriam do
contexto familiar: para a PC, contariam, inicialmente, razões de ordem ma-
terial: tenho segurança e estabilidade como funcionário público (34%); para a
PM a razão de número 1(um) seria se sentir mais preparado para a vida e para
o trabalho (37%), ficando estabilidade financeira e profissional em segundo
lugar (33%) Essa ênfase no aspecto material decorre certamente do elevado
nível de remuneração da polícia do DF, quando comparada ao resto do país,
a PC remunerando melhor ainda do que a PM, o que explica, em parte esta
pequena diferença entre ambas. As respostas positivas ainda são vagas, com
poucos conteúdos definidores de prática policial: Os policiais civis afirmam,
por exemplo, mudanças do tipo: serviço útil em favor da sociedade; maturida-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 181

de, experiência e conhecimento; agir de modo novo, gostar do que faz; enquanto
que a PM alega gostar do que faz; ter mais responsabilidade e disciplina; ter
oportunidade de escolhas. Chama, por outro lado, a atenção a representação
da entrada para a polícia como algo que não alterou a vida do policial. Ao
responderem pela negação: sou a mesma pessoa (51 % na PC) e nada mudou
(38% na PM) estão afirmando que a vida na polícia não teve interferência em
seu modo de ser e de pensar. Ao que tudo indica, para esse grupo de policiais,
sua atividade seria um emprego como outro qualquer, nem melhor nem pior,
sem maiores especificidades. As demais afirmações atestam uma mudança
com sinal negativo, que contradiz blocos anteriores nos quais afirmavam o or-
gulho em ser policial, ou a tendência em incentivar os filhos a serem policiais,
como mostrado na próxima tabela, abaixo. São representações que apontam,
na PC, situações de aumento de stress e pressão; falta de reconhecimento; falta
de estrutura na corporação; falta de sensibilidade na corporação. Na PM, falta
de segurança e diminuição de liberdade; transformação em alguém mais duro;
aumento de estresse; falta de reconhecimento; surgimento de problemas de saú-
de e falta de gosto pela profissão. Em outras palavras, aqui o sentido se revela
bem mais entre o dito e o não dito, fala mais alto a linguagem do interdito,
indicativa de uma deterioração no modo de ser que é decorrente, esta sim,
de características que, ainda que não sejam exclusivas são bem particulares à
profissão policial.
Talvez não seja então o caso de se falar em um défict identitário, como
era a hipótese inicial desta pesquisa. De fato surgiram muitos conteúdos de
uma ausência de pertencimento, capturados pelo silenciado mais do que
pelo explicitado mas capturados igualmente por sinais negativos. Identida-
des conflitivas, deterioradas talvez? Com altos e baixos, com espaços vazios
demandando conteúdos de reconhecimento social que poderiam ser positi-
vamente preenchidos pela confiança que esperam venham a merecer da so-
ciedade. Tudo junto e misturado os mesmos conteúdos que aqui assumem
sinal positivo, querendo apontar uma especificidade da prática profissional
podem surgir a seguir, com sinal trocado com significação distinta, indi-
cando, ali, motivos de orgulho pela profissão e mais adiante desprestigio,
ausência de reconhecimento ou reconhecimento negativo. O que, como
182 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

mencionado acima, pode trazer conflitos quando se trata de pensar o futuro


profissional dos filhos.
Gráfico 6. Você incentivaria seu filho a ser policial?

As porcentagens foram calculadas a partir das respostas válidas. Na PM 4,5% da


amostra não respondeu, no caso da PC, 4% da amostra não respondeu

Apesar de certas ressalvas, alguns policiais pesquisados sentem-se pro-


pensos a apoiar os filhos e até mesmo a incentivá-los a seguir a carreira
policial. Não é a maioria: pouco mais da metade da amostra com a qual
trabalhamos. Não deixa de ser curioso que PM e PC atinjam porcentagens
semelhantes ao responderem à questão. Quando adentramos os motivos
que levam a este incentivo percebemos que as coisas mudam um pouco de
figura: dos que justificaram suas respostas positivas, a PM atribui 54% de
suas razões à realização pessoal, a ser esta uma profissão digna enquanto que
a PC, dilui um pouco mais este motivo atribuindo-lhe apenas 46% de suas
preferências mas acrescentando também o reconhecimento da profissão,
pequeno detalhe que faz toda a diferença para os propósitos explicativos
que buscamos. No quesito seguinte, nada que qualifique a profissão: É uma
boa profissão, algo tão vago que impossível de ser destrinchado em termos
de um significado substantivo- material ou simbólico- é um conteúdo que
nivela ambas as representações, 20% e 23%, respectivamente para a PM e
a PC, apontando para a dificuldade de dar sentido às práticas. Mesmo em
Violência, Polícia, Justiça e Punição 183

proporções diminutas, as duas corporações estariam dispostas a incentivar


os filhos a serem policiais apenas se for policial civil ou federal (1%) e (2%),
PC e PM, respectivamente. Embora em porcentagens irrisórias, vale comen-
tar pois fica explicitado que a PM não aparece como horizonte promissor
nem mesmo para os próprios PMs e parece claro que esta, se foi uma car-
reira promissora no passado, atualmente parece ter deixado lugar a outras
alternativas. Mesmo considerando que sua remuneração é ainda bastante
competitiva quando se considera o conjunto do mercado de trabalho. Da-
queles que apresentaram alguma justificativa para incentivar os filhos a que
ingressassem na polícia, 14% dentre os policiais da PM mencionaram Pro-
mover valores e valores militares o que aponta para a valorização da tradição,
mesmo com as mudanças etárias que trazem, por certo, deslocamentos em
termos do sentido e da filosofia que permearia uma suposta cultura policial.
Na PC este número é de 6%. A estabilidade e a boa remuneração contam
mais como incentivo para a PM (18%) do que para a PC (13% ), embora
se saiba que os índices de remuneração na primeira sejam inferiores aos da
segunda. Duas representações que apenas surgem no âmbito da PC tocam,
mesmo que de forma não muito acentuada (uma delas aliás de forma redu-
zidíssima), algo que poderia ser seu traço distintivo face à PM, em termos
de marcas identitárias: a PC representa altruísmo e garantia de justiça (17%)
e Traz mais crescimento pessoal e reforça o conhecimento das normas (1%)
como razões para incentivo ao filho para ser policial.
Das razões elencadas para o não incentivo, os policiais nomeiam os al-
tos riscos da profissão; o não reconhecimento; a não valorização e o caráter
desgastante da profissão. Insistem, pois, na mesma tecla; é um ir e vir de
razões que se deslocam e se repetem a propósito de questões que são dis-
tintas mas que acabam por produzir o efeito de bola de neve: recaem quase
sempre em representações que apontam para identidades que tem dificul-
dades para se construírem afirmativamente e o fazem no mais das vezes às
avessas, assumindo o que não são ou como não gostariam de serem defini-
dos. Ressaltam assim, as ambiguidades, os paradoxos e os conflitos com que
se defrontam ambas as corporações (a PM com intensidade sempre maior)
para se atribuírem uma identidade profissional.
184 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Outra indagação voltada a buscar subsídios à compreensão dos proces-


sos da construção profissional e identitária dos atores pesquisados e, inclusi-
ve, desvenda um viés talvez mais subjetivo do que a anterior, diz respeito ao
quanto a profissão policial é ou não motivo de orgulho para seus praticantes.
Em contraposição à construção de que a sociedade os representa de modo
mais negativo do que positivo, os respondentes afirmam seu orgulho pela
profissão, em uma proporção de 93% e 95% respectivamente de respostas
positivas para policiais militares e civis.

Gráfico 7. Você tem orgulho de ser policial?

As porcentagens foram calculadas a partir das respostas válidas. Na PM 4% da


amostra não respondeu; no caso da PC 3% da amostra não respondeu

Os resultados convidam a reflexões interessantes: em um primeiro mo-


mento, talvez fosse viável deduzir a existência de uma possível identidade pro-
fissional entre as corporações, até mais congruente do que no interior de cada
uma delas: nesta questão PC e PM se reconhecem pelo orgulho de ser policial
em pelo menos quatro respostas, que permitiriam arriscar algo próximo a um
viés identitário. Uma identidade grupo, mais forte, talvez, do que uma iden-
tidade no grupo. No entanto, esta possibilidade/hipótese vai se esmaecendo
quando as razões para este orgulho são analisadas mais detalhadamente. Três
dentre elas (Acredita e gosta do que faz, Ajuda e serve aos outros, É uma profis-
são digna e relevante), no contexto da PM, e duas no contexto da PC (Acredita
Violência, Polícia, Justiça e Punição 185

e gosta do que faz, É uma profissão digna e relevante) nada têm de particular
à atividade policial; ao contrário, são características de diferentes outras pro-
fissões e remetem ao senso comum da maioria das “qualidades reverenciadas”
por várias profissões. No interior de cada uma das corporações estes conteú-
dos tornam-se ainda mais problemáticos: a ideia de que o orgulho expressado
pudesse significar homogeneidade no conteúdo das respostas, sinônimo de
uma identidade compartilhada, fica, de fato, comprometida. Da perspectiva
explicativa, em ambos os contextos, PM e PC, com poucas e irrelevantes nu-
ances, as razões explicitadas para o citado orgulho, além de uma dispersão
de motivos, não remetem, ou o fazem apenas indiretamente, a características
que de fato distinguem ou particularizam a função policial. Por vezes a res-
posta beira a tautologia ou o círculo vicioso: tem orgulho porque acredita e
gosta da profissão (49% PM e 38% PC). Por outras, a resposta é vaga como
nesta representação da PM: ajuda e serve aos outros (39%). Há conteúdos,
pouco representativos, como mencionado acima, nos quais as representações
se aproximam: é uma profissão digna e relevante (30%, PM e 33% PC) mas
que pouco avançam como perfil profissional ou marca identitária. Finalmen-
te, conteúdos que poderiam dizer respeito mais diretamente à função policial
tais como garantia de segurança e paz (20% PM e 29% PC), e promoção de
democracia e justiça (17% PM e 13%), ficaram em segundo plano, quando
analisados comparativamente.9
Em contraposição e considerando apenas a PM, já que os dados da
PC não foram em proporções significativas (apenas 10 policiais justifica-
ram seus motivos), as razões para a inexistência de orgulho em exercer a
atividade explicitam, prioritariamente, conteúdos diretamente vinculados
às condições materiais e simbólicas do trabalho policial: 81% justifica pela
ausência do reconhecimento, o que tem tudo a ver com a representação ne-
gativa trazida em uma questão anterior sobre como o policial avalia que a
sociedade o vê, seguidos da representação vinculada à falta de apoio dos
superiores (22%) à relativa ao caráter arriscado e precário da profissão (20%),

9 A porcentagem foi calculada a partir das respostas válidas; na PM 16% das respostas
positivas não apresentaram as razões e no caso da PC esse número foi de 21 %.
186 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

e a que diz respeito à falta de perspectiva profissional (18%) e da ausência de


eficácia do trabalho (18%).10 Os paradoxos surgem quando as mesmas cate-
gorias trazidas para justificar o orgulho são acessadas para representarem a
ausência de orgulho e/ou os motivos para, como vimos, não incentivarem
os filhos a ingressarem na carreira, apenas com o sinal trocado; ou para
manifestarem o desejo de mudar de profissão, também com sinal trocado.
Solicitados a se manifestarem sobre se mudariam ou não de profissão
é significativo constatar que, na PM, 69% dos respondentes não mudaria
de profissão e na PC 72% também não. Ainda assim, não é pequena a pro-
porção dos que mudaria, e neste caso pesa o alto risco inerente à profissão,
com o consequente stress que isto ocasiona. As entrevistas e os grupos focais
também enfocaram essa questão vinculando-a a uma prática vivenciada e
reportada enquanto medo, insegurança, stress.

Gráfico 8. Se você pudesse escolher:

As porcentagens foram calculadas a partir das respostas válidas. Na PM 6% da


amostra não respondeu; no caso da PC 4% da amostra não respondeu

10 A porcentagem foi calculada a partir das respostas válidas; 16 % das respostas negati-
vas não apresentaram as razões.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 187

Tabela 3. Orgulho Policial x Mudança de Profissão: Polícia Civil

Mudança (à Continuaria Mudaria de


Orgulho (abaixo) Total
direita) policial profissão

Sim 76% 24% 100%


Não 15% 85% 100%
Total 73% 27% 100%
Fonte: pesquisa de dados da pesquisa INCT

Essa porcentagens dão ainda mais margem a reflexões e indagações, a


partir de simples cruzamentos. Assim, cruzando as variáveis Orgulho de ser
policial e Mudança ou não da profissão vemos que dos que sentem orgulho
da profissão, 76% continuaria policial mas 24% mudaria de profissão. Já dos
que responderam que não tem orgulho da profissão, 15% respondeu que
continuaria policial e 85% que mudaria de profissão.

Tabela 4. Orgulho Policial x Mudança de Profissão: Polícia Militar

Orgulho Mudança Continuaria Mudaria de


Total
(abaixo) (à direita) policial profissão

Sim 73% 26% 100%


Não 13% 86% 100%
Total 67% 30% 100%
Fonte: pesquisa de dados primários da pesquisa INCT

Estes números são extremamente semelhantes para a polícia militar


como indicado pelos dados de ambas as tabelas: com relação à PM, dos que
sentem orgulho da profissão, 73% continuaria policial, mas 26% mudaria
de profissão. Já os que responderam que não tem orgulho da profissão, 13%
respondeu que continuaria policial e 86% que mudaria de profissão. Ou
seja, não parece irrelevante a tendência a não representar a polícia como o
lugar definitivo, uma escolha para a vida. Convém refletir que ao lado destes
dados há aqueles que apontam que, para pouco menos de 30% dos respon-
dentes, a entrada para a polícia em nada mudou seu modo de ser; ou seja,
nenhuma marca, nenhum traço significativo em termos de um algo mais
188 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

que tivesse feito a escolha valer a pena. Outro dado importante, a acrescen-
tar, o incentivo aos filhos é algo que não figura como horizonte das preferên-
cias de quase 50% dos respondentes, prontos a vislumbrar ocupações (não
estamos propositalmente falando em profissão) mais promissoras, menos
estressantes, mais gratificantes, aspectos recorrentes nas respostas aos ques-
tionários e, igualmente, nos GF e nas entrevistas.

Representações sociais, medo, insegurança e stress


Nas entrevistas e grupos focais, o stress resultante de situações de inse-
gurança e medo e presente na resposta aos questionários, reaparece, suge-
rindo que a condição policial faz do indivíduo alguém desconfiado, cons-
tantemente atento, que desacredita de tudo e de todos e vive sob pressão,
seja pelo risco real inerente à função seja por sua representação. Resultados
também encontrados por Minayo, et al 2008.11 Risco, insegurança, perigo e
medo que são parte das reflexões de Giddens (1991) às quais ele articula a
ideia da “confiança” atribuídas às chamadas “fichas simbólicas” e aos “sis-
temas peritos”, implicando que as interações não mais levam em conta as
relações pessoais, ou de parentesco, mas sejam função de uma confiança
atribuída a sistemas anônimos e impessoais. Toda ênfase é dada ao “conhe-
cimento técnico” disponível. Essas fichas simbólicas e sistemas peritos se-
riam responsáveis por mecanismos de “desencaixe” e “reencaixe”, inerentes
à modernidade. Considerando que o perigo e o risco são parte dessa moder-
nidade, a confiança é condição e fonte para relações sociais “reencaixadas”.
A ausência de confiança poderia corresponder a situações de pessimismo,
pânico, pavor, comprometendo rotinas e “o caráter habitual e assente da
maior parte das atividades da vida social cotidiana” (Giddens, 2003, p. 444).
Nos termos da análise aqui desenvolvida, é viável supor-se que os policiais,
submetidos à imprevisibilidade das ruas, conviveriam diariamente com o
risco, o medo e o perigo, dificultando a “rotinização” das atividades diárias

11 Ao analisarem “percepção do risco” e “risco real”, vividos pelos policiais como uma
característica da profissão, as autoras situam a temática como permitindo a mediação
entre condições de trabalho e condições de vida.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 189

(Giddens, 2003). Ou um mínimo de estruturação da arbitrariedade (Gol-


dstein, 2003). O contraponto seria a confiança que poderia se manifestar
seja através do maior domínio sobre os “sistemas peritos” que permeiam
sua atuação seja no apoio institucional, seja através das “fichas simbólicas”
que garantiriam a competência profissional e saberes específicos sustenta-
dos, ainda segundo Giddens (2003), por um senso de segurança ontológica.
Segurança que não parece corresponder ao dia a dia da atuação policial.
A possibilidade do caos, do imprevisível e da ausência de apoio institucional
figura como representação persistente enquanto fonte de medo, cujo efeito
mais palpável é o stress, podendo chegar à ansiedade ou ao “pavor existen-
cial” (Giddens,1994), dificultando a continuidade das rotinas.
Como se desdobra das narrativas abaixo, que sugerem uma desconfian-
ça nas estruturas tecnológicas mais elementares das quais dependem para o
cumprimento de suas rotinas, indo da viatura em uso ao sistema de infor-
mação e ao preparo/treinamento para o uso da arma.
a) Depende da gravidade da situação, assim, (...) o que o sistema interno
de comunicação fala nunca é verdade, ele fala que tem um gato na árvore
e você tem que tirar, mas quando você chega lá tem um cara com a arma
na cabeça da mulher, ...então, você nunca pode confiar totalmente (Gru-
po Focal – Sargento nº 1).
b) Acho que o stress é essa situação de caos, do inesperado (Grupo Focal
– Sargento nº 2).
c) Situação de risco eu acho que você não tem medo nem de morrer, você
tem medo de deixar alguém morrer; não é errar com você, é prejudicar
aquele que você queria ajudar (Grupo Focal – Sargento nº 3).
d) Portar a arma é normal; então o que mais me dá medo é ter que dis-
parar a arma, por mais que ela seja um elemento perigosíssimo eu sei que
é prá minha defesa, mas eu tenho receio de usar (Entrevista, coronel).
e) Olha, aí podem ser várias linhas, porque eu posso estar numa troca
de tiros, como eu posso estar num sequestro. São medos diferentes, são
situações diferentes. Numa troca de tiros, num cerco policial, o que dá
medo? Primeiro é a morte. Então, o medo é também o de ser ferido; do
190 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

seu companheiro do lado, você não sabe se ele foi treinado, se ele tem a
devida habilidade pra te dar cobertura necessária no momento da atu-
ação. Isso dá insegurança. Num caso de sequestro, medo de falhar ali na
negociação, e isso é possível, e o elemento venha a matar a vítima... E aí
você é responsabilizado, você vai responder por isso. Isso dá medo, causa
stress (Entrevista, coronel).
Em outras palavras, matar ou morrer são fontes de “pavor existencial”.
Além do que, como alegam os policiais, o apoio institucional deixa a desejar.
f) Não tem o devido suporte na própria instituição (Grupo Focal – Sar-
gento nº 4).
g) O apoio, ele é incipiente...o nosso número de psicólogos é baixo; de psi-
quiatra é muito pequeno para a população policial que temos hoje... Ele
vai se refugiar, e a gente só vai descobrir isso, quando ele já está no álcool,
às vezes, ele vai pra droga, tá certo? (Entrevista, coronel).
A ausência de confiança seria substituída por situações de pessimismo,
pânico, bloqueios no processo de constituição da identidade. Ao policial da
rua, submetido à imprevisibilidade, convivendo diariamente com o medo e
o perigo sem o contraponto da confiança, restaria o pior dos mundos: a vio-
lência, como reação impensada, não prevista nem desejada e a deterioração
das condições de existência do policial. O autorreconhecimento negativo,
produtor e produto desse contexto, levando à constituição de identidades
submissas, subalternas, deterioradas mesmo, em resposta ao que o policial
supõe que os comandos e a sociedade esperam dele.

Relativizando hipóteses, a título de conclusões


Ao tratar a questão identitária sob a ótica da socialização, Dubar (2005)
oferece sugestões interessantes para refletir sobre os resultados encontrados.
Uma delas convida a relativizar a ênfase na relação identidade profissional
versus identidade individual em prol do que ele chama identidade social.
Acompanhemos seu argumento: com ênfase para as identidades sociais e
recusando-se a distinguir entre identidade individual e identidade coleti-
va, o autor insiste na ideia de uma identidade social, enquanto “articulação
Violência, Polícia, Justiça e Punição 191

entre duas transações: uma transação ‘interna’ ao indivíduo e uma transa-


ção ‘externa’ entre o indivíduo e as instituições com as quais ele interage”
(Dubar, 2005, p. 133). Recorrendo à psicanálise (de que não se vai tratar
aqui), o autor insiste na ideia da dualidade do eu (a qual, poder-se-ia acres-
centar, também relembra a duplicidade do indivíduo durkheimiano, entre o
ser individual-egoísta e o ser social-altruísta, leia-se socializado): “A divisão
interna à identidade deve enfim e sobretudo ser esclarecida pela dualidade
de sua própria definição: identidade para si e identidade para o outro são ao
mesmo tempo inseparáveis e ligadas de maneira problemática. Inseparáveis,
uma vez que a identidade para si é correlata ao Outro e ao seu reconheci-
mento: nunca sei quem sou a não ser no olhar do Outro”. Problemáticas,
dado que “a experiência do outro nunca é vivida diretamente pelo eu... de
modo que contamos com nossas comunicações para nos informarmos so-
bre a identidade que o outro nos atribui... e, portanto, para nos forjarmos
uma identidade para nós mesmos”. “A identidade nunca é dada, ela sempre
é construída e deverá ser (re)construída em uma incerteza maior ou menor
e mais ou menos duradoura”. (Dubar, 2005, p. 135). As duplas aspas são de
Laing, 1961, p. 29, apud Dubar.
É nessa condição de problemática que parece se enquadrar essa articu-
lação que fazem os respondentes entre o que ele pensa ser e o que ele supõe
que a sociedade pensa que ele seja. O “noves fora” dessa equação comporta
negociação, uma negociação que o indivíduo leva adiante se questionando,
se debatendo. Voltando a Dubar, ressalta ainda o autor que nossas comu-
nicações podem conter doses de incerteza, não nos permitindo ter a exata
dimensão do que o outro pensa de mim ou do que ele supõe que penso dele.
Assim, não se sabe se a identidade para si coincide com a identidade para o
outro. Fechada nos parâmetros psicanalíticos ou fenomenológicos da inte-
ração Eu-Outro, tal abordagem não teria, na perspectiva de Dubar, interesse
sociológico; no entanto, passa a tê-lo “se restituirmos esta relação identi-
dade para si/identidade para o outro ao interior do processo comum que
a torna possível e que constitui o processo de socialização” (Dubar, 2005,
p. 136). No caso do policial essa identidade é plural pois é para si e para os
outros: “outros” policiais que são de sua corporação, da corporação oposta
192 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

à sua, (seja em sua própria hierarquia, seja junto a seus superiores) e “outro”
significando a sociedade civil, em suas várias distinções, socioeconômicas,
culturais e políticas. Desse modo, conjugando individual e coletivo; objetivo
e subjetivo; biografia e estrutura, a noção, afirma o autor, “tenta introduzir a
dimensão subjetiva, vivida e psíquica no cerne da análise sociológica” (Du-
bar, 2005, p. 136). A divisão interna da identidade, a que se refere Dubar, se
expressa na forma de ambiguidade e tensão, e está presente em muitas das
representações registradas nos questionários. Alguns depoimentos ressalta-
ram a inter-relação, problemática e conflituosa entre a identidade para si e
a identidade para o outro; entre identidade grupo e identidade no grupo e
entre policial civil e policial militar.
Voltamos a essa ideia da incerteza entre o que o policial pensa que
a sociedade pensa e o que o policial constrói como sua identificação para
ressaltar que ela permeia vários depoimentos. Poder-se-ia admitir que pre-
valece uma negociação identitária (Dubar), entre sua identidade para si e
para o outro, pendendo ora para um reconhecimento positivo ora, negativo,
que aciona “estratégias identitárias destinadas a reduzir a distância entre as
duas identidades” (Dubar, 2005, p. 140). Essa forma de refletir sobre identi-
dade parece ser assim menos reducionista. A existência de um espaço social
entre o eu e a instituição parece transparecer dos depoimentos dos policiais
pesquisados. Isto posto, talvez seja mais fértil ao invés de se insistir na fra-
gilidade do habitus, profissional pensar que esses indivíduos se constroem
no cruzamento do eu e do outro cujas referências são não apenas os “pares”
mas o contexto social mais amplo. Sob esse ângulo, os paradoxos, as incer-
tezas e as contradições ganham um novo olhar: nessa perspectiva, o outro a
orientar as representações e as práticas policiais não seria nem apenas nem
prioritariamente seu colega de corporação ou da corporação contrária (re-
lação policial civil versus policial militar) nem apenas nem prioritariamente
o paisano (delinquente ou cidadão de bem) mas, igualmente, a família, os
vizinhos os amigos, referências tão ou mais importantes do que o chefe ou
o colega de trabalho, nesse intrincado, problemático e quase sempre confli-
tuoso processo de construção de identidade. Relativiza-se aqui a perspecti-
va de uma identidade profissional unívoca para se pensar numa identidade
Violência, Polícia, Justiça e Punição 193

social negociada, na interação entre o eu e os outros, agora no plural para


permitir falar de contextos mais amplos nos quais interagem várias esferas e
dimensões do cotidiano. Uma identidade assim construída levaria em conta
os valores e o ethos do grupo sem, no entanto, eliminar do sujeito a possibi-
lidade de efetuar escolhas, de participar subjetivamente e não apenas como
suporte de conteúdos estrutural e objetivamente prescritos.
Tais conteúdos estão também presentes nas reflexões que faz Stuart
Hall (2000). Para ele, a identidade se configura como processo, algo não
acabado, não naturalizado ou permanente; “o conceito de identidade aqui
considerado, não é, assim, essencialista mas de natureza estratégica, apon-
tando para a noção de posição”. Ou seja, realça a ideia de identidades frag-
mentadas e fraturadas, plurais e construídas através das diferenças e da rela-
ção ao outro e àquilo que este outro não é. Hall reforça, ainda, a relatividade
histórica como componente das construções identitárias. Com Hall a noção
de identidade ganha fluidez, maleabilidade e o essencialismo se dissipa em
conteúdos mais voláteis, para dar espaço ao caráter histórico e contrastivo,
no qual o eu (individual ou social) não se define a não ser através do outro
e nesse processo a construção da identidade social é por ele percebida como
um ato de poder (Hall, 2000, p. 18).
É por este prisma que parece caminhar a abordagem de Bauman, igual-
mente avessa à perspectiva do essencialismo ao admitir que “as ‘identida-
des’ flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e
lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante
para defender as primeiras em relação às últimas” (Bauman, 2005, p. 19)
pois, “quando a identidade perde as âncoras sociais que as faziam parecer
‘natural’, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se torna cada vez
mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um ‘nós’
a que possam pedir acesso” (Bauman, 2005, p. 30; grifos do autor). O senti-
do de identidade como noção agonística e um grito de guerra, que o autor
atribui à identidade nacional, parece pertinente para se refletir sobre outras
formas de identidade coletiva. Basta lembrar que a noção se constrói na e
pela diferença e quase sempre através de processos reivindicativos de co-
nhecimento e pertencimento e de conhecimento e reconhecimento social e
194 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

coletivo. Pensando na natureza da identidade policial, faz sentido supor que


os processos de construção da relação polícia civil/polícia militar e polícia/
cidadão poderiam ser objeto de disputa, de reivindicação e no limite, de
guerra. Nos termos de Bauman, “a “identidade” parece um grito de guerra
usado numa luta defensiva: um indivíduo contra o ataque de um grupo,
um grupo menor e mais fraco (e por isso ameaçado) contra uma totalidade
maior e dotada de mais recursos (e por isso ameaçadora)”. (Bauman, 2995,
p. 83). Para este autor o conceito de identidade é algo sempre contestado e
que convive com a realidade da batalha. “O campo de batalha é o lar natural
da identidade... a identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e
a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa
resoluta a ser devorado” (Bauman, 2005, p. 84).
Como dissemos no início, este capítulo se limitou a questões vinculadas
a pensar identidade e suas relações com a violência policial. Muitas outras
questões não foram aqui tratadas. Ainda assim, creio ser necessário relativi-
zar as hipóteses iniciais que vinculavam de modo unívoco lacuna identitária
e violência policial. Tendo como suporte os autores acima que pensam a
construção identitária como luta, negociação, pluralidade, retirando-se dela
o essencialismo e dando -lhe fluidez e historicidade, seria atribuir-lhe uma
carga grande demais responsabilizá-la isoladamente pelas práticas de vio-
lência quando se sabe que há um conjunto bem maior de determinantes
em jogo, desde o âmbito institucional, conjuntural, ao material e simbólico.
Todos em conflito e negociação. Não esquecendo Monjardet (2003, p. 162),
para quem “a análise da cultura profissional dos policiais é o calcanhar-de-
-aquiles de toda a pesquisa sobre a polícia”. Portanto, muito mais está em
jogo: a cultura organizacional, o ethos que informa seu modus operandi e
os aspectos condicionantes da prática policial interferem na forma de lidar
com a delinquência, de encarar os direitos humanos, as normas e o controle
social e, mais que tudo, as formas como tudo isto produz nos termos de
Bourdieu, o efeito de campo, atingindo, fraturando ou até mesmo inviabi-
lizando uma lógica identitária linear. Nessas conclusões faz-se necessário,
portanto, relativizar-se, assim, a ideia de uma identidade pronta, acabada e,
sobretudo, unívoca e linear. Ela é um processo em construção, com conteú-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 195

dos negociados entre o que os atores representariam como sua atividade por
excelência- coisa de polícia (que também não fica definido com clareza) e o
que eles supõem seja a atividade que a sociedade demanda deles. Além dis-
to, e como desdobramento da análise dos dados, aparece o quanto o stress
pode ser componente de parte significativa de contextos de manifestação
da violência policial. Stress que é resultante de situações de insegurança e
até mesmo de medo, que é uma leitura possível de inúmeros testemunhos
atestando que a condição de policial fez do indivíduo alguém desconfiado,
que constantemente atento desacredita de tudo e de todos, o que leva a uma
atuação sob pressão. A imagem bem poderia ser a de uma faca de dois gu-
mes a se tornar cada dia mais afiada: a sociedade não confia na polícia, esta
falta de confiança gera sensação de insegurança, que provoca tensões e uma
busca por auto- proteção, na forma de mais armamento, segurança privada
e demanda por uma polícia reativa, ágil, que transmita esta confiança. Da
parte da polícia, responder a tais anseios da sociedade acaba por ser uma
possibilidade ( mais inconsciente do que consciente) e mais do que isto uma
necessidade de construir para si uma imagem afirmativa: na medida em
que o auto- reconhecimento é condição para o reconhecimento social, esta
construção pode, eventualmente, fazer uso de múltiplos recursos, inclusive
(e de novo, muito provavelmente de modo inconsciente) de práticas de vio-
lência para encurtar o longo caminho até o reconhecimento social.

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As expectativas de reciprocidade
dos policiais do Distrito Federal

Rodrigo Figueiredo Suassuna

Introdução
O presente capítulo trata das expectativas de reciprocidade trazidas por
policiais militares e civis do Distrito Federal (DF). Entendendo-se que reci-
procidade, como conteúdo de expectativas, encontra-se estreitamente ligada
às ideias modernas de complementaridade e igualdade, buscou-se mensurar
a intensidade das expectativas de reciprocidade manifestadas por policiais
militares e civis que atuam no DF, utilizando informações provenientes
de questionários autoaplicáveis. Com base na mensuração da intensidade
das expectativas de reciprocidade obtida com os questionários aplicados a
unidades da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) e da Polícia Civil
do Distrito Federal (PCDF), descreve-se a distribuição dessas intensidades
dentro de cada organização, medidas como uma escala de reciprocidade.
A partir dessa escala, é verificada a hipótese de que a maior intensidade de
manifestação dessas expectativas associa-se à maior confiança na relação
entre policiais e cidadãos. A hipótese pressupõe que ambas as variáveis –
grau de expectativa de reciprocidade e intensidade da confiança na relação
com a população civil – sejam explicadas pela reciprocidade e pela con-
fiança presentes nos encontros cotidianos entre policiais e cidadãos. Além
dos testes de hipótese, buscou-se um conhecimento mais aprofundado do
200 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

conteúdo das expectativas dos policiais pesquisados, recorrendo-se a entre-


vistas semiestruturadas com ocupantes de posições chave dentro da PMDF
e da PCDF. Em resumo, este capítulo busca fundamentalmente responder a
três questões: como a intensidade das expectativas de reciprocidade se dis-
tribui no interior das organizações policiais pesquisadas? É possível afirmar
que a intensidade das expectativas de reciprocidade correlaciona-se ao grau
de confiança na relação policial-cidadão? Quais são os conteúdos mais sig-
nificativos das expectativas de reciprocidade manifestadas por policiais que
atuam na gestão da PMDF e da PCDF?

Polícia, reciprocidade e democracia


As expectativas que se referem à atividade de policiamento podem ser
elucidadas por recurso à própria definição do que é polícia. Bittner (1972)
concebe a polícia moderna como “um mecanismo para a distribuição de força
coercitiva, não negociável, empregada de acordo com os ditames de uma com-
preensão intuitiva de exigências situacionais” (p. 46). Ao contrário de defini-
ções que focam a missão das organizações policiais,1 a definição funcionalista
proposta por Bittner enfatiza as expectativas que pautam os encontros entre
policiais e cidadãos nas modernas sociedades democráticas. Tal definição de
polícia implica que, no encontro típico-ideal entre policial e cidadão, as práti-
cas dos participantes são orientadas por expectativas de que o policial exerça o
papel simultaneamente especializado e não negociável de distribuidor da for-
ça coercitiva e que suas ações sejam situacionalmente adequadas. Essas expec-
tativas, trazidas por policiais e pela população civil, contribuem para delinear
o mandato policial como sendo baseado em uma forma de aceitação social
que, na cultura policial, tende a ser traduzida como uma constante “cobrança”
por parte da sociedade (Poncioni, 2014; Porto, 2010; 2017).
Relações como as que se estabelecem entre policiais e cidadãos em
contextos modernos são idealmente contratuais: a forma contratual de so-

1 Uma dessas definições, com base nos objetivos organizacionais da polícia, é a de Bayley
(2001), que vê os policiais como as “pessoas autorizadas por um grupo para regular as
relações interpessoais dentro deste grupo através da aplicação da força física” (p. 20).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 201

ciação, segundo Durkheim (2008), é caracterizada pela “reciprocidade de


direitos e deveres” entre as partes (p. 193). O presente capítulo parte de uma
acepção moderna de reciprocidade, ligada a uma forma contratual de asso-
ciação entre participantes diferentes que se complementam. Nesse sentido,
baseando-se na teoria da modernidade de Émile Durkheim, o oposto de
reciprocidade seria unilateralidade: a forma caracteristicamente moderna
de solidariedade, em que a reciprocidade é um traço definidor, contrapõe-se
a formas pré-modernas de sociação, em que as relações são assimétricas e as
prerrogativas, unilaterais. Segundo a concepção de Dukheim, a forma de in-
tegração nas sociedades pré-modernas é baseada nas semelhanças sob uma
divisão do trabalho ainda rudimentar (solidariedade mecânica), ao passo
que a transição para a sociedade industrial traz uma forma de solidariedade
que se estabelece por meio da interdependência entre diferentes profissões,
no contexto de uma complexa divisão do trabalho (solidariedade orgânica).
Durkheim (2008) aponta que uma das primeiras diferenciações ocor-
ridas no tecido social das sociedades pré-industriais é a formação de um
órgão central, de governo,2 em contraposição a uma massa ainda pouco di-
ferenciada de governados. Nesse “estágio” da divisão do trabalho político,
as relações de poder são unilaterais e o governante possui um caráter sobre-
-humano, atuando em um contexto de inferioridade dos súditos.

As relações do déspota bárbaro com seus súditos, assim como a


do senhor com seus escravos, do pai de família romano com seus
descendentes, não se distinguem da do proprietário com os obje-
tos que possui. Elas nada têm dessa reciprocidade que a divisão do
trabalho produz. Disse-se com razão que elas são unilaterais. A
solidariedade que elas exprimem permanece mecânica, portanto.
(Durkheim, 2008, p. 163, grifo nosso)

Ou seja, a reciprocidade das relações contratuais modernas contrapõe-


-se à unilateralidade presente nas sociedades em que a única divisão do tra-

2 Durkheim (2002) considera que Estado e governo são organizações funcionalmente


equivalentes, cabendo ao Estado a função “cerebral”, de governo da sociedade.
202 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

balho significativa existente é aquela entre governantes e governados. Con-


comitante à transição para a solidariedade orgânica, mudam as funções dos
órgãos governamentais, que se diferem dos da sociedade civil apenas “pela
natureza das funções” desempenhadas (Durkheim, 2008, p. 165), não ha-
vendo desigualdade entre os direitos e deveres que os vinculam. Nas moder-
nas sociedades industriais, “o lugar do indivíduo se torna maior e o poder
governamental menos absoluto” (p. 208, grifo do autor).
A redução na desigualdade de direitos entre Estado e população civil
é uma característica da democratização, vista como processo histórico. Es-
tudos de sociologia histórica indicam que a direção da mudança social de
longo prazo é um progressivo aumento do poder absoluto do Estado e au-
mento do poder relativo dos cidadãos face à organização estatal. Autores
como Elias (1993), Tilly (1996) e Giddens (2008) apontam que o processo
histórico de formação dos modernos Estados-nação caracterizou-se por
tendências centralizadoras, que respondem pela formação das organizações
estatais-nacionais, com a respectiva concentração de capital, meios de coer-
ção e poder administrativo nessas organizações. Concomitantemente, esse
processo histórico foi marcado também por tendências descentralizadoras,
ou seja, uma maior dispersão do poder, que veio a caracterizar a formação
de parlamentos representativos, a ascensão de movimentos sociais e a con-
solidação de direitos de cidadania, em contraposição ao poder do Estado-
-nação. Em resumo, é possível afirmar que a forma das democracias liberais
modernas é resultado de tendências centralizadoras e descentralizadoras.
Tratando da coexistência entre formas unilaterais e recíprocas de soli-
dariedade, Durkheim (2008, livro III) ressalta que a solidariedade orgânica
só teria condições de se realizar plenamente caso houvesse um “requisito de
justiça”, em que as entidades sociais (indivíduos ou grupos) pudessem en-
trar em contato apenas em função da interdependência recíproca. Caso este
requisito não se efetive, passa a existir uma desigualdade externa à divisão
do trabalho social, e que existe na forma de coerção. Se a cidadania pode
também ser entendida como uma relação contratual, então a modernidade
vem a ser caracterizada tanto pela reciprocidade contratual entre cidadãos
e órgãos estatais, quanto pela coerção contingente que coloca cidadãos e
Violência, Polícia, Justiça e Punição 203

agentes estatais em posição desigual, tanto em favor dos primeiros quanto


em favor dos segundos.
A abordagem de Durkheim, que enfatiza a reciprocidade com um traço
especificamente moderno,3 tem sido retrabalhada por autores contemporâ-
neos, que defendem que as expectativas de reciprocidade são um dos “requi-
sitos de justiça” apontados por Durkheim como constitutivos das relações
de formato contratual, embora esses autores tragam essas reflexões para o
nível das interações face a face (Rawls, 2010; 2012; Rawls e David, 2006). De
acordo com Rawls (2012), em uma sociedade individualizada como as da
modernidade atual, esse requisito de justiça teorizado por Durkheim pode
ser interpretado como a necessidade de reciprocidade nas interações face a
face, em que existem expectativas de direitos vinculadas a obrigações dos
outros participantes no âmbito interno aos encontros. Para a autora, apenas
a reciprocidade nos contatos face a face daria conta de incorporar a diver-
sidade individual da fase atual da modernidade, representando o vigor da
solidariedade por diferenças.
O agir sob expectativas de reciprocidade equivale à confiança, elemen-
to chave para a integração de estranhos nos sistemas de interação típicos
da solidariedade orgânica (Rawls e David, 2006; Torche e Valenzuela, 2011;
Weigert, 2011). Confiança é concebida como “a conformidade de uma pes-
soa em relação às expectativas da atitude da vida cotidiana como uma mo-
ralidade” (Garfinkel, 1984, p. 50). Entre essas expectativas, encontra-se a
reciprocidade de perspectivas, em que os participantes se enxergam mutua-
mente como competentes para a interação (Garfinkel, 1963; Rawls e David,
2006). Nesse sentido, reciprocidade e confiança, fundamentais à autorre-
gulação das interações, entrariam em conflito com os elementos externos
às situações de interação e impositivos de uma situação de desigualdade,

3 Nesse ponto, o uso do termo reciprocidade por Durkheim difere da concepção de


Mauss (2003), para quem a reciprocidade, além de ser uma particularidade da vida
social não moderna, é um atributo da relação entre grupos, nunca ligada a direitos
individuais. Além disso, para Mauss, os contextos sociais que requerem reciprocidade,
os chamados “sistemas de prestações totais”, envolvem as relações entre líderes tribais,
pressupondo a unilateralidade destes em relação a seus súditos.
204 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

como por exemplo, os direitos e prerrogativas unilaterais. No que se refere


à relação polícia-sociedade, essa unilateralidade pode ser encontrada tanto
do lado dos cidadãos, em certas configurações do direito à segurança que
instrumentalizam o policial, assim como, do lado dos policiais, existem os
direitos de prender e abordar pessoas de forma unilateral.
Considerando-se, nesse sentido, que a reciprocidade é uma propriedade
observável dos intercâmbios sociais, ela pode ser entendida resumidamente
segundo dois aspectos: (a) a complementaridade, como interdependência nas
interações entre participantes que têm características diferentes entre si; e (b)
a igualdade destes perante as normas que regem as interações. Ou seja, tem-se
que, no âmbito das expectativas de reciprocidade, as diferenças são ressaltadas
não como desigualdade, mas como complementaridade em um vínculo orgâ-
nico. Por essas características, pode-se supor que as expectativas de reciproci-
dade entre policiais e cidadãos encontram-se difundidas nos contextos demo-
cráticos da modernidade, lado a lado com as expectativas de unilateralidade.
O processo brasileiro de redemocratização, após mais de duas décadas
regime militar, é tido como uma variável importante para explicar a violên-
cia policial, vista como problema social prioritário no Brasil contemporâneo
(Costa, 2011; Peralva, 2000; Porto, 2010). Nesse cenário, as polícias, como
qualquer organização moderna ligada ao Estado-nação, possuem potencial-
mente uma dupla inserção. Por um lado, existem as prerrogativas reivindi-
cadas pelos policiais e ligadas à sua posição de representantes da autoridade
estatal, como os direitos de prender, andar armado e abordar pessoas, con-
cedidos unilateralmente a esses agentes estatais nas suas relações com os
cidadãos (Costa, 2011; Hathazy, 2013; Muniz; Proença Júnior, 2013). Por
outro lado, no bojo da solidariedade orgânica, surgem uma série de direitos
de cidadania, que empoderam o cidadão nas relações com o Estado-nação,
concedendo-lhe status de reciprocidade diante do policial. Neste contexto,
os policiais, tanto quanto os usuários de seus serviços, possuem uma série
de direitos e deveres que são estabelecidos em função da interdependência
que caracteriza sua relação (Manning, 2010).
A polícia democrática é o objeto deste capítulo, seguindo uma con-
cepção de democracia focada na reciprocidade. O objetivo é, por meio de
Violência, Polícia, Justiça e Punição 205

questionários e entrevistas semiestruturadas aplicados a policiais militares


e civis do Distrito Federal, analisar as expectativas desses agentes de segu-
rança pública conforme uma tendência à reciprocidade ou à unilateralida-
de. Descreve-se então a distribuição dessas expectativas nas organizações
estudadas – PMDF e PCDF, verificando também como esse grau de reci-
procidade se relaciona à representação confiança na relação entre policiais
e cidadãos. Diferentemente da proposta durkheimiana, essa reciprocidade
não é entendida de forma processual, mas apenas como uma figuração local
e transitória de um movimento mais amplo.

Metodologia
Este capítulo conta com dados produzidos na pesquisa “Identidade
profissional e práticas policiais”, pesquisa institucional ligada ao Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia – Violência, Democracia e Segurança Pú-
blica. Tal pesquisa foi desenvolvida pelos pesquisadores do Núcleo de Estu-
dos sobre Violência e Segurança (NEVIS), da Universidade de Brasília, sob
a coordenação da professora Maria Stela Grossi Porto. A investigação teve
como objetivo principal interpretar as representações sociais que compõem
as identidades profissionais de policiais militares e civis do Distrito Federal,
como subsídio para compreender a função policial em sociedades demo-
cráticas. O estudo da identidade profissional policial fundamentou-se no
conceito de representações sociais, assim definido.

Falando de modo sucinto e bastante simplificado, são noções,


teorias práticas que os indivíduos constroem para se situar no
mundo que os rodeia, explicá-lo e apreender sua maneira de ser.
(Porto, 2014, p. 62)

Se as representações sociais são teorias interpretativas do mundo, as re-


presentações identitárias, foco da pesquisa, buscam explicar e apreender as
particularidades da profissão policial no contexto do Distrito Federal. Entre
as várias operações metodológicas dessa pesquisa, duas foram consideradas
para o presente capítulo: surveys e entrevistas semiestruturadas.
206 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

As expetativas de reciprocidade foram medidas por meio de dois surveys:


(a) um questionário aplicado a uma amostra de 1.181 policiais militares do
universo de 11.898 profissionais contabilizados como em atividades-fim na
Polícia Militar do Distrito Federal, no ano de 2010. Além disso, este capítulo se
fundamenta em (b) survey realizado na Polícia Civil do Distrito Federal, que
contou com 396 respondentes entre 4.026 agentes, delegados e escrivães envol-
vidos nas atividades-fim dessa corporação. Foram escolhidas aleatoriamente as
unidades policiais que foram sujeitas à pesquisa e, dentro de cada unidade, os
entrevistados foram escolhidos por conveniência até ser atingida determinada
contribuição da unidade ao tamanho amostral adequado. Os questionários fo-
ram distribuídos para autoaplicação entre os anos de 2010 e 2011.
Foi construída uma escala de expectativa de reciprocidade (ER), com
base nas respostas à pergunta: “Em sua avaliação, o que mais distingue o
policial militar [ou civil] do outro cidadão não policial (paisano)?”. Como
resposta, o questionário oferecia sete subitens, nos quais os respondentes
marcavam se concordavam ou não com cada elemento de distinção. Destes
sete subitens, três podem ser tidos como expectativas de autoridade: eles
dizem respeito a prerrogativas ou direitos ligados à posição privilegiada do
policial na economia do uso da força. Ou seja, em resposta à pergunta sobre
o que distinguiria o policial do cidadão não policial, as expectativas de auto-
ridade eram indicadas pelas respostas “direito de prender”, “direito de usar
arma” e “direito de abordar pessoas”. Por outro lado, três outros subitens
podem ser considerados expectativas de reciprocidade, ou seja, as distinções
entre policial e não policial são entendidas como complementaridade que
caracterizaria a relação entre polícia e sociedade. Os itens que podem ser
enquadrados nessa categoria são: “preparo físico (força e resistência)”,4 for-
mação técnica/ profissional”, e “natureza da sua atividade”.5

4 Entende-se o preparo físico como parte de uma formação profissional específica. A


despeito das considerações técnicas sobre se as tarefas propriamente policiais da atu-
alidade exigem ou não uma aptidão física específica, importa considerar a relação de
complementaridade entre aquele que não tem preparo físico e aquele que o tem e que
pode oferecer essa habilidade como um serviço.
5 Além dos subitens ligados a expectativas de autoridade e aqueles que indicam expec-
tativas de reciprocidade, há ainda um subitem que não pôde ser enquadrado em ne-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 207

Com base nas respostas a essa questão sobre os elementos definidores da


distinção entre policial e cidadão, criou-se a escala de expectativa de recipro-
cidade (ER), com a contraposição, proposta por Émile Durkheim, entre reci-
procidade e unilateralidade como elementos de solidariedade social. A escala
foi aferida, para cada respondente, atribuindo-se um ponto negativo (-1) para
cada resposta positiva referente às expectativas de autoridade; por outro lado,
para cada resposta indicativa de expectativas de reciprocidade foi atribuído
um ponto positivo (+1).6 Com isso, cada questionário respondido correspon-
deu a uma ER variando entre – 3 e 3, em que 3 indica a alta relevância da
reciprocidade nas expectativas do respondente, ao passo que -3 indica que a
reciprocidade não é pressuposta de maneira significativa. Na construção desta
escala, há o pressuposto de que cada resposta no sentido da autoridade anula
uma resposta de expectativa de reciprocidade. Isso implica, por exemplo, que
a escala de reciprocidade igual a zero engloba tanto as respostas ambíguas,
que afirmam ambos os tipos de expectativa, como as não-respostas, estas últi-
mas tendo aparecido em número reduzido nas amostras.7
A mensuração da ER por meio dos surveys foi utilizada para descrever
a intensidade das expectativas de reciprocidade no interior da PMDF e da
PCDF e para testar a hipótese de que a intensidade da expectativa de reci-
procidade se correlaciona com a representação da confiança nas interações
polícia-cidadão. Já a descrição dos conteúdos das expectativas de autorida-
de e reciprocidade baseou-se nos dados de 13 entrevistas semiestruturadas,
realizadas em 2011 e 2012, com oficiais superiores da PMDF (major, tenen-
te-coronel e coronel) e delegados da PCDF, ocupantes de posição-chave na
gestão das duas corporações. O objetivo da interpretação das entrevistas foi

nhum dos dois conjuntos: o item “sua personalidade (postura, valores)”.


6 Não foram atribuídos pontos às respostas negativas, às não-respostas e às respostas ao
subitem “Sua personalidade (postura, valores)”.
7 Os questionários que não continham resposta alguma para os subitens da referida
questão foram também considerados na análise, admitindo-se a possibilidade de o
respondente julgar que nenhum dos subitens apresentados indica uma distinção rele-
vante entre policiais e cidadãos. Na PMDF, houve 17 não-respostas e na PCDF foram
quatro não-respostas.
208 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

entender as expectativas por meio de categorias construídas não pelos pes-


quisadores, mas pelos próprios policiais pesquisados.
Buscou-se interpretar o conteúdo dessas entrevistas, consideradas,
cada uma, em sua totalidade, de modo entender a coerência da reflexão do
entrevistado na situação social criada pela pesquisa. A interpretação enfa-
tizou a “sociologia espontânea” produzida pelos indivíduos policiais para
interpretar problemas práticos de seu cotidiano (Bourdieu, Chamboredon
e Passeron, 2004; Porto, 2014). Para o presente trabalho, foram sorteadas
três das 13 entrevistas analisadas, sendo duas da PMDF e uma da PCDF,
entendendo-se que as análises escolhidas são representativas das expectati-
vas policiais que emergem na pesquisa como um todo.

Escala de reciprocidade: descrição dos dados


O resultado geral da mensuração da ER pelo survey aplicado aos poli-
ciais militares do Distrito Federal pode ser observado no gráfico 1. As esca-
las de reciprocidade, variando entre -3 e +3, medidas na polícia militar apa-
recem em uma distribuição normal, ou seja, uma curva de distribuição em
forma de sino. Já a mensuração do ER na Polícia Civil do Distrito Federal
resulta em uma configuração semelhante à da PMDF, conforme é mostrado
no gráfico 2. Em ambas as distribuições, o valor mais frequente de ER é zero.
Nota-se ainda que as curvas são levemente deslocadas para a direita, indi-
cando que, de maneira geral, há uma tendência à complementaridade como
conteúdo das expectativas trazidas pelos policiais respondentes.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 209

Gráfico 1. PMDF – Amostra distribuída por escala de


expectativa de reciprocidade (%)

Fonte: pesquisa Identidade profissional e práticas policiais – INCT

Gráfico 2. PCDF – Amostra distribuída por escala


de expectativa de reciprocidade (%)

Fonte: pesquisa Identidade profissional e práticas policiais – INCT

A questão 37 dos questionários solicitava a marcação das principais


tarefas realizadas pelo respondente no período de uma semana: “Marque as
principais tarefas que você realiza na semana de trabalho (Você pode mar-
210 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

car mais de uma alternativa)”. Como resposta, era apresentado um conjunto


de opções, que diferia conforme o questionário fosse destinado a policiais
militares ou a policiais civis. Na PMDF, a correlação, indicada por regressão
logística, entre tarefas mais realizadas semanalmente e escala de expectativa
de reciprocidade é mostrada na tabela 1.8

Tabela 1. PMDF – razão de chances não ajustadas entre escalas de expectativa


de reciprocidade e principais tarefas realizadas pelo policial na semana

Fonte: pesquisa “Identidade profissional e práticas policiais” – INCT

Os dados apontam que a escala das expectativas de reciprocidade, em-


bora se encontre distribuída normalmente na PMDF, distribui-se desigual-
mente por entre as diversas atividades do cotidiano da organização. A sigla
PCS designa os Postos Comunitários de Segurança, que foram construídos
a partir de um programa de policiamento comunitário implementado no
Distrito Federal desde 2010 (Governo do Distrito Federal, 2010). Tanto os
PCS como os demais postos policiais enquadram-se na mesma modalidade
de policiamento, centrada em “bases fixas” (Guedes, 2012, p. 17-18). Os da-
dos do survey apontam uma associação negativa entre escala de expectativa
de reciprocidade e a chance de o policial atuar nos postos, sejam eles PCS
ou postos tradicionais – redução de 19% e 26%, respectivamente, para cada
acréscimo na ER. Assim, os policiais militares que atuam nos postos de-
monstram baixo grau de expectativa de reciprocidade, o que pode estar liga-
do à baixa frequência de interações com a população civil nessas atividades.

8 Para o processamento de tais informações, foi utilizado o software PSPP.


Violência, Polícia, Justiça e Punição 211

Por outro lado, o policiamento ostensivo a pé, que favorece os contatos


face a face do policial com os cidadãos, apresenta uma ligeira associação po-
sitiva com a escala de expectativa de reciprocidade – considerando ER como
uma variável contínua, cada acréscimo na escala corresponde a um aumento
de 12% na chance de resposta positiva à realização do policiamento a pé. No
entanto, a atividade que abriga mais intensamente as expectativas de recipro-
cidade, conforme medida pela ER, é a supervisão. Cada aumento na ER favo-
rece um aumento de 27% nas chances de o policial respondente ter a atividade
de supervisão como uma das mais recorrentes em seu cotidiano. Isso indica
que os postos intermediários e superiores da hierarquia organizacional da
PMDF tendem a ter também as expectativas de reciprocidade em grau maior.
Por outro lado, a análise da associação entre ER e atividades cotidianas
na PCDF não encontrou nenhuma associação estatisticamente significativa
(p>0,05, para todos os itens), como mostra a tabela 2. Contudo, as variações
intraorganizacionais da escala de expectativa de reciprocidade apontam seu
potencial interpretativo para o estudo da relação polícia-sociedade.

Tabela 2. PCDF – razão de chances não ajustadas entre escalas de expectativa


de reciprocidade e principais tarefas realizadas pelo policial na semana

Fonte: pesquisa “Identidade profissional e práticas policiais” – INCT

Reciprocidade e confiança entre policiais e cidadãos


De modo a proporcionar um melhor entendimento das expectativas
trazidas por policiais em interações com cidadãos, busca-se aqui analisar a
correlação entre tais expectativas e a representação da confiança. Adotando
uma perspectiva relacional, emprestada da etnometodologia, ressalta-se que
confiança é “a conformidade de uma pessoa em relação às expectativas da
212 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

atitude da vida cotidiana como uma moralidade” (Garfinkel, 1984, p. 50). A


confiança equivale, segundo essa definição, à “segurança de procedimentos”
(Moisés, 2005, p. 82) conferida pela adequação à atitude da vida cotidiana,
aproximando o conceito de sua acepção presente no senso comum.
Se intensidade das expectativas de reciprocidade pode ser considerada
uma variável, é possível supor que os indivíduos que mais significativamen-
te têm as expectativas de reciprocidade como orientação de suas ações são
aqueles com maior potencial para se engajarem em interações de confiança.
Entende-se que tanto as expectativas de reciprocidade dos policiais quanto
a confiança entre policiais e cidadãos são variáveis endógenas, originadas
nas interações que ocorrem no cotidiano do policiamento e estruturadas
pela reciprocidade entre policiais e cidadãos. Justifica-se assim a hipótese de
correlação entre confiança e expectativa de reciprocidade: os policiais par-
ticipantes da pesquisa que se situam no topo da escala de reciprocidade serão
aqueles que menos provavelmente interpretam a falta de confiança entre poli-
ciais e população civil como uma dificuldade relevante.
No questionário aplicado, pergunta-se: “Quais são as maiores dificul-
dades para o trabalho policial? (Você pode marcar várias alternativas)”.
Como resposta, são listados nove subitens, dos quais os respondentes são
facultados a marcar quantos quiserem. Dois desses subitens tratam da con-
fiança entre policiais e cidadãos: “A população não confia na polícia” e “A
polícia não confia na população”. Ambos os subitens indicam que a falta de
“segurança procedimental” dos participantes nas interações polícia-cidadão
é uma dificuldade considerada relevante para a realização do policiamento.
Os demais subitens que podem ser assinalados como dificuldades relevantes
do trabalho policial são: “Baixos salários”; “Formação profissional deficien-
te”; “Falta de infraestrutura para o trabalho (colete, arma, munição, viatu-
ra)”; “Estresse decorrente da tensão do trabalho”; “A polícia não confia na
polícia”; “Falta de autonomia”; e “A influência da política na polícia”.
A tabela 3 mostra que, no caso dos policiais militares pesquisados, exis-
te uma associação negativa entre escala de expectativa de reciprocidade e a
resposta positiva à questão “a população não confia na polícia” como uma
dificuldade relevante do trabalho policial, sendo esta associação foi estatisti-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 213

camente significante (p <0,05). Indica-se que a chance de resposta positiva a


“a população não confia na polícia” é 12% menor a cada acréscimo na escala
de expectativa de reciprocidade.

Tabela 3. PMDF – razão de chances não ajustadas entre escalas de expectativa


de reciprocidade e maiores dificuldades do trabalho policial

Fonte: pesquisa “Identidade profissional e práticas policiais” – INCT

A análise da razão de chances envolvendo a dinâmica dessas duas va-


riáveis na amostra da PMDF comprova parcialmente a hipótese de estudo:
o aumento da ER associa-se negativamente e de forma significativa com a
visão de que a população não confia na polícia. Isso indica que à medida
que as expectativas trazidas pelos policiais militares caminham no sentido
da complementaridade de sua profissão na divisão do trabalho social, me-
nos significante é a ideia de que a falta de confiança da população seja um
obstáculo relevante.
Entretanto, considerando-se o subitem “a polícia não confia na popu-
lação”, tal associação entre variáveis não se comprova, pois, como é possível
observar na tabela 4, a razão de chances está muito próxima na neutralidade
(0,97) e não é significante (p>0,05). Por isso, no que concerne ao subitem “a
polícia não confia na população”, aplicado à amostra da PMDF, a hipótese
de estudo não se confirma.
Além da resposta “a população não confia na polícia”, o único subitem
que apresenta uma associação significativa entre suas respostas e a escala de
reciprocidade, na amostra da PMDF, é o que indica a “falta de autonomia”
214 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

como dificuldade relacionada ao trabalho policial. Cada aumento na ER cor-


responde a um decréscimo médio de 16% de chances de resposta positiva à
questão “falta de autonomia” como dificuldade relevante do trabalho policial.
Existe uma probabilidade muito baixa (menor que 1%) de a ER não estar de
forma alguma associada às respostas que enfatizam a falta de autonomia.
Tal resultado pode ser interpretado segundo a observação de Muniz
(2008) de que muitos dos direitos de cidadania garantidos ao cidadão de
maneira geral não valem para os policiais militares, em especial os de bai-
xa patente. Para estes policiais, de maneira geral, a rígida tutela exercida
pelas normas organizacionais militares impõe-se de maneira mais signifi-
cativa do que os direitos de cidadania. É provável que estes policiais depa-
rem-se com a falta de autonomia no exercício de suas tarefas cotidianas,
ao mesmo tempo em que experimentem uma condição de inferioridade
em seus encontros com o cidadão.
Assim, aqueles policiais que afirmam ser a falta de autonomia uma
dificuldade significativa seriam os mesmos que alimentam pouca expec-
tativa de reciprocidade em relação ao não policial, estando na base da ER.
Por outro lado, os policiais que não experimentam esse tipo de obstáculo
institucional são aqueles que manifestam mais intensamente as expectati-
vas de reciprocidade.
No caso da polícia civil, a verificação da hipótese de associação negativa
entre ER e representação da não confiança entre polícia e cidadãos pode
ser feita com referência às razões de chance que figuram na tabela 4. Nela,
observa-se que o aumento de uma unidade na ER associa-se ao decréscimo
médio de 26% das chances de entender que a não confiança da população
na polícia é uma dificuldade relevante. Associação ainda mais forte é verifi-
cada entre a escala de expectativa de reciprocidade e a representação de que
“a polícia não confia na população”: o acréscimo na ER corresponde a uma
redução de 54% das chances de resposta positiva a esta questão.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 215

Tabela 4. PCDF – razão de chances não ajustadas entre escalas de expectativa


de reciprocidade e maiores dificuldades do trabalho policial

Fonte: pesquisa “Identidade profissional e práticas policiais” – INCT

Por meio da análise das razões de chance no survey aplicado à PCDF,


tem-se a indicação de que as associações mais fortes são as que se estabele-
cem entre escala de reciprocidade e as dificuldades relacionadas à confiança.
As razões de chance entre ER e respostas positivas aos três itens que tratam
na falta de confiança – “a população não confia na polícia”, “a polícia não
confia na população” e “a polícia não confia na polícia” – são as menores
da tabela 4, todas abaixo de 0,8. O aumento na ER corresponde a uma re-
dução de 51% nas chances de o policial civil responder que “a polícia não
confia na polícia” é uma das maiores dificuldades de seu trabalho cotidiano.
Acrescenta-se que as associações entre ER e respostas positivas aos itens
envolvendo confiança são todas significativas (p<0,05).
As informações da amostra da PCDF confirmam enfaticamente a hi-
pótese de associação negativa entre expectativa de reciprocidade e repre-
sentação da não-confiança. Os policiais no topo da escala de reciprocidade
veem menos a falta de confiança como uma dificuldade em suas rotinas de
trabalho. A indicação é de que a identidade dos policiais como profissionais
que desempenham uma função complementar e interdependente de outras
na ordem da divisão do trabalho indica uma disposição à reciprocidade e,
portanto, às interações de confiança. Tal interpretação é favorecida pelas
indicações de que o aumento na escala de reciprocidade implica, no caso
da amostra da PCDF, em uma redução nas chances de o policial representar
a não confiança de maneira geral, tanto na relação com a população civil,
216 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

como nas interações com seus pares. Já na PMDF, a associação negativa


existe apenas entre escala de reciprocidade e a afirmação de que os cidadãos
não confiam na polícia, o que também favorece a compreensão de que os
policiais com intensas expectativas de reciprocidade têm menos chance de
encontrar problemas no estabelecimento da confiança.

Conteúdo das expectativas policiais de reciprocidade


Após analisar correlações envolvendo a intensidade das expectativas de
reciprocidade por meio da ER, faz-se necessário compreender os significa-
dos presentes tanto nas expectativas de unilateralidade quanto nas expec-
tativas de reciprocidade trazidas pelos policiais das organizações pesquisa-
das. Esse conteúdo das expectativas é parcialmente indicado pelas falas de
policiais gestores nas entrevistas semiestruturadas realizadas na PMDF e
na PCDF. A seguir, busca-se interpretar o conteúdo integral de três dessas
entrevistas, no que elas se referem a expectativas de unilateralidade ou reci-
procidade dos policiais entrevistados.
A entrevista n. 1 foi realizada com um oficial superior que, na ocasião
da entrevista, possuía 20 anos de atuação na PMDF.9 A fala do policial nessa
entrevista expressa de forma bastante aguda as expectativas de autoridade
na relação com o não policial. Para o oficial, a autoridade policial existe
por duas razões: (a) ela está na essência da função social da polícia, consi-
derando que uma das principais orientações de seu trabalho cotidiano é “a
autoridade que já impõe o meu uniforme”; e (b) o fato de o policial ter um
conhecimento mais abrangente acerca do contexto social em que atua, em
comparação com o cidadão não policial: “o policial é aquele que tem uma
visão maior da sociedade” e uma “visão mais crítica”. Por oposição, o cida-
dão não policial seria aquele que deve respeito à autoridade policial. Além
disso, o “paisano” em geral desconhece ou afirma desconhecer sua realidade
local. O trecho abaixo mostra essa expectativa de unilateralidade, além de

9 De modo a preservar o anonimato dos entrevistados, foram atribuídos números ale-


atórios, de 1 a 13, às entrevistas, números que serviram também para o sorteio das
análises a serem trazidas para o presente capítulo.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 217

uma narrativa que ilustra bem essa distinção em favor do policial, na com-
paração com o cidadão comum.

P.: Na sua avaliação, o que distingue? Você acha que há alguma dis-
tinção entre o policial e o cidadão comum? [...]
R.: Bem, aí novamente falando como policial, o policial é aquele
que tem uma visão maior da sociedade. É aquele que vai ter uma
visão da sua... do lugar onde ele mora diferente, uma visão mais
crítica, tipo quando eu converso com um colega e o colega vai per-
guntar pra mim “E aí, tem uma boca de fumo perto da sua casa?”.
Enquanto que tem gente que passa na frente de uma, de um cida-
dão, de um “paisano” ele “Não, eu não sei. Tem?” Seja mentindo,
ou seja, por desconhecer, seja por desconhecer. Numa resolução
de conflito, a tendência é o policial militar agir intervindo no con-
flito, mesmo que esteja à paisana. Temos muitos casos de policiais
militares mortos na folga porque se esquecem que estão à paisana
e tentam agir. Tivemos um caso de um policial militar reformado
que foi tentar falar com um motorista de ônibus, e ele estava à pai-
sana, o motorista de ônibus estressado com o trânsito “Olha, tem
um problema ali atrás com o seu carro”. Aí o cara não entende e
fala “Vai para aquele lugar”. Aí o cara acha... sentiu-se como policial
militar, fez o cara parar, sacou da arma, fez o cara parar “Como
é que você trata assim autoridade?”. Aí o motorista dizia pra ele
assim “Mas quem é você?”. Aí que o cara acorda e vê que ele tá à
paisana. É preciso um outro policial chegar pra acalmar o cara e
explicar pra ele “Você tá na Reserva” ele se apresentou “Você não
tá fardado, o cara não sabia quem era você”. Então, acontece muito
isso. (Entrevista nº 1)

Observa-se que, para o policial da entrevista n. 1, a autoridade policial


militar tanto é dada por uma visão superior acerca da sociedade, quanto ime-
diatamente por estar fardado. A narrativa do trecho acima aponta ainda que
o uniforme é apenas um meio de comunicação da autoridade policial ao ci-
dadão: a autoridade é própria do indivíduo policial independente de ele estar
exercendo ou não a função policial e de ele estar identificado ou não como
agente da segurança pública. No exemplo narrado acima, o entrevistado atri-
218 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

bui autoridade a um policial aposentado e “à paisana”, situando o problema


na comunicação da autoridade, mais do que no exercício da autoridade em
si – “Você não tá fardado, o cara não sabia quem era você” (grifo nosso).
Nessa entrevista, a expectativa de unilateralidade não está sempre na
afirmação da autoridade policial diante do cidadão comum. A frequente
frustração dessa expectativa de autoridade está ligada a uma sensação de
inferioridade diante das cobranças da “sociedade”, tidas como injustas. Ao
contrário dos policiais, que dispõem de um conhecimento maior, as avalia-
ções pela sociedade envolvem um conhecimento parcial acerca da atividade
de policiamento, acabando por inferiorizar injustamente a polícia, como in-
dica o trecho abaixo.

Como eu falei, a mídia, ela é consequência da sociedade, então, eu


vou exprimir isso em outra palavra: “bode expiatório”. Precisamos
pôr a culpa em alguém “Ah vamos pôr na Polícia Militar, na ação
da Polícia Militar”. Ali no Rio de Janeiro, põe a culpa... a gente já
fez alguns trabalhos de pesquisa no Rio de Janeiro e põe-se a cul-
pa na Polícia Militar quando morre por bala perdida uma criança
no morro, de sete anos “Morreu com uma bala perdida da Polícia
Militar”. Ali a reportagem não mostra que houve ali um conflito na
madrugada inteira e que os policiais militares não ficaram de folga,
tiveram que ficar ali até aquele momento. É uma situação de guerra
urbana que é uma coisa que, a princípio, o policial não estaria pre-
parado porque isso é uma coisa de Exército, mas não é de Exército
porque acontece dentro do próprio país - mais um problema pra
gente lidar. Aí nessa ação o policial atira, erra o tiro e pega numa
criança. Então fala só do policial militar que atirou na criança, não
fala do problema social que tá acontecendo no Rio; problema esse
que começou a se resolver por causa da Copa de 2014 e não por
causa do problema em si. (Entrevista nº 1)

Considerando a mídia de massas como “consequência da sociedade”,


o policial entrevistado entende que a cobertura midiática coloca a polícia
como “bode expiatório”. Ou seja, a “sociedade” não tem o conhecimento
justo ou completo de determinadas situações e, portanto, não estaria em po-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 219

sição de reciprocidade para cobrar determinada ação policial, ao menos não


da mesma forma que a polícia pode cobrar determinado tipo de ação do ci-
dadão não policial. Portanto, o constante desrespeito à autoridade policial é
motivo de ressentimento, de modo que existe uma expectativa de inferiori-
dade, manifestada na ideia de que “a sociedade brasileira não valoriza quem
exerce autoridade ou quem exerce disciplina”, conforme o trecho abaixo.

P: Pensando um pouco da sua vida, na corporação, em que região


do Distrito Federal você mais se sentiu realizado como policial e
por quê? [...]
R: [...] Agora como policial militar assim “Ah, como é bom ser po-
licial militar” não teve nenhum lugar. Por quê? Porque é da cultura
brasileira não aprovar ou não gostar de quem exerce autoridade. En-
tão, eu tive mais uma satisfação pessoal, como eu tenho desde que
sai como aspirante e hoje como Tenente-Coronel, satisfação pessoal
de que eu estou fazendo a minha parte. Agora eu tive, inclusive, que
tratar isso, essa questão de saber que a sociedade brasileira não valo-
riza quem exerce autoridade ou quem exerce disciplina porque senão
eu ia ficar muito frustrado. Aí quando eu trabalhei com a questão de
outros países e trabalhei no 5º Batalhão [que tem por jurisdição os
locais de Embaixadas em Brasília] que eu tive contato com outras
culturas que eu vi que, por exemplo, a cultura japonesa, a cultura
asiática quando vê um policial, mesmo brasileiro, eles tratam como
se fosse um rei porque sabem que um policial, um professor, são
aqueles que gerenciam, que dominam, que orientam, que fazem e
que formam a sociedade. E no Brasil a gente vê justamente o contrá-
rio, né? O professor e o policial é uma classe, assim, que tem o seu
valor porque tem que ter valor, mas como eu tive contato com outras
culturas, especialmente a asiática, eu vi que o nosso país não valoriza
quem exerce autoridade. (Entrevista nº 1)

A passagem acima aponta para, pelo menos, uma expectativa de autori-


dade: a que associa o policial a “um rei”, “um professor”, ou, como colocado
em outro momento da entrevista, “um líder natural”, tal qual ocorre em ou-
tros países. O policial teria a prerrogativa unilateral de “gerenciar, dominar
e orientar”, mas a frustração desse tipo de expectativa pela “sociedade bra-
220 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

sileira” acarretaria um senso de inferioridade, que também pode ser consi-


derado uma expectativa unilateral. Isso ajuda a compreender a recorrência,
em outros trechos da entrevista, do ressentimento com relação à imagem
social da polícia, que, para o entrevistado, tem como consequência imediata
a imagem deteriorada da polícia na mídia. A expectativa de inferioridade é
indicada pelas falas de que a visão da sociedade é “imediatista” e “enfatiza
apenas as ações negativas da polícia”.
A entrevista n. 2 foi realizada com um oficial superior que atua na ges-
tão da PMDF, contando 23 anos de carreira policial no momento da entre-
vista. Nessa entrevista, as expectativas de unilateralidade que mais chama-
ram a atenção foram as representações de inferioridade da polícia, ligadas
ao não reconhecimento da autoridade policial por parte da sociedade, o que
é sintetizado no trecho abaixo.

A causa de estresse maior do policial, eu vejo, é o dia a dia da rua,


é a falta de reconhecimento da sociedade. Quando a mídia bate
nele numa operação que ele fez, que ele julga estar certo, e que nós
temos que abrir, muitas vezes, um processo apuratório, seja sindi-
cância, seja inquérito, isso... quando o policial é submetido a um
inquérito, a uma sindicância, para responder por atos seus na rua,
seja por excesso, seja por omissão, porque o policial, ele está numa
linha muito fina, muito tênue entre o excesso, o crime e a omis-
são. E ele responde pelos dois. Isso é um dos causadores também
de stress, quando ele vai responder, quando ele vê o nome dele na
mídia, pela atuação dele, isso causa um stress muito grande. E não
só causa para um soldado, causa pra gente mesmo da alta adminis-
tração da Polícia. (Entrevista nº 2).

Na entrevista n. 2, as expectativas de inferioridade correlacionam-se a


três propriedades da relação da PMDF com a população civil: (a) a impunida-
de, que instrumentalizaria os policiais para o “retrabalho”, que significa pren-
der reiterada e desnecessariamente o mesmo indivíduo; (b) a irrealidade das
demandas da população civil, que esperaria “onipresença” do policial e “cri-
minalidade zero”; e (c) o fato de a função policial ser tão específica a ponto de
não poder ser compreendida pelos cidadãos não policiais, que assim, fariam
Violência, Polícia, Justiça e Punição 221

cobranças desmedidas à polícia. O trecho abaixo sintetiza as duas primeiras


ênfases: a desvalorização do trabalho policial decorrente tanto da cultura da
impunidade como da demanda inalcançável pela “segurança absoluta”.

Então, com 1/6 da pena... ninguém cumpre 30 anos de prisão. Nin-


guém cumpre... eu rio quando falam assim “Fulano vai ser con-
denado a 200 anos de prisão” Eu digo: “Aonde?”. Porque daqui a
pouco, se ele tiver bom comportamento, ele tá na rua de novo. E ele
está praticando. Olha eu fiz, na época, um levantamento na minha
unidade do retrabalho. Eu chamei de retrabalho e falei isso na im-
prensa uma vez, falei [no veículo de comunicação]. Que nós faze-
mos mais retrabalho do que trabalho. Por que eu chamava retraba-
lho? Porque praticamente eu estava prendendo as mesmas pessoas
que eu já tinha prendido algum tempo atrás e já estavam na rua de
novo. Praticando os mesmos crimes, matando, estuprando, ferindo
alguém, tá certo? Vendendo drogas. Essas pessoas estavam na rua.
E eu fiz uma média pro batalhão... não posso dizer que isso pode
ser uma boa estatística, mas no pouco tempo que eu fiz a inferên-
cia estava dando em torno de 60%, 70% de retrabalho, ou seja, de
prender as mesmas pessoas que eu já tinha levado. Isso eu estou
falando de adulto. Criança e adolescente, então, pra mim... esse foi
a pior coisa que fizeram na minha vida, foi Estatuto [da Criança e
do Adolescente]. Ele é maravilhoso se eu tivesse uma, vamos dizer,
uma sociedade em condições de educar bem suas crianças, seus
jovens, tá certo? Uma sociedade mais cumpridora de ordens, de
leis. Porque o Estatuto, eu vejo o seguinte, quando ele foi feito, foi
feito pra proteger o menor indefeso, abandonado, que está na rua
aí, tá certo? E a gente não pode... por que a Polícia, antigamente, re-
almente, se pegasse um menor na rua prendia, levava pra delegacia
só porque estava abandonado na rua não, esse não tinha proteção.
Mas aquele menor que tá praticando crimes, e olha, tem menores
maiores do que eu, com 17 anos, e que te afronta, e que sabe que vai
ser posto em liberdade em pouco tempo [...]. E aí a sociedade não
vê, vê que a Polícia é ineficiente e não tá conseguindo combater a
criminalidade como devia, tá certo? Por mais que ela use, e eu vou
lhe dizer, vai ser difícil um dia Brasil atingir... nós termos a segu-
rança ideal. Segurança absoluta não tem. Criminalidade zero não
222 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

existe em lugar nenhum no mundo; mas o ideal, com menor índice


criminal e de crimes violentos se a gente continuar com esse tipo
de lei, diminuindo as penas de crimes hediondos “Ah porque os
presídios não recuperam”. Invista, invista mais em educação e em
presídios que possam recuperar. É caro. Segurança Pública talvez
seja mais caro que Educação e Saúde. Não se faz Segurança Pública
só com Polícia. Se a gente ficar só no mundo policial a gente nunca
vai ter uma Segurança Pública ideal e nós vamos continuar, permi-
ta-me falar, enxugando gelo, chovendo no molhado. Vai continuar
sempre isso. (Entrevista nº 2)

De acordo com o que é expresso na passagem, a inferioridade está na


sujeição do policial ao que o entrevistado chama de “retrabalho”, que sig-
nifica “prender as mesmas pessoas” recorrentemente. Para o policial pes-
quisado, o retrabalho é um efeito colateral da impunidade, da ineficiência
dos demais mecanismos da justiça penal (tribunais, lei penal e outros), mas
cujo ônus recai exclusivamente sobre a polícia militar. Trata-se, portanto,
da associação do policiamento a um tipo de “trabalho sujo” (Mattos, 2012),
ou à autoidentificação do policial como o “lixeiro da sociedade” (Muniz,
1999), com toda a carga de inferioridade que essas analogias implicam. As
expectativas de inferioridade manifestadas pelo policial da entrevista n. 2
baseiam-se nessa combinação entre instrumentalização da polícia para o
retrabalho e a rotulação da polícia como ineficiente.
O que deve ser notado nessas passagens é a relação entre essas expectati-
vas de inferioridade e a prerrogativa unilateral do direito de prender pessoas:
no caso da impunidade, as atenções da sociedade voltam-se para a polícia
justamente em função da autoridade policial para a efetivar prisões. Pode-
-se afirmar que o policial entrevistado mostra a frustração de sua expectativa
quanto ao direito unilateral de prender, desapontamento decorrente do ques-
tionamento social e da rotulação do trabalho policial como ineficiente.
O senso de inferioridade associa-se também à noção que o trabalho
policial é tão específico que não pode ser compreendido pela população ci-
vil. Embora a especialização das funções possa ser enquadrada como traço
de reciprocidade, favorecendo a complementaridade em um todo orgânico,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 223

o excesso de especialização pode prejudicar o vínculo social, como mostra


Durkheim (2008) em sua reflexão sobre a divisão do trabalho anômica. A
anomia designa a ausência de vínculo social pela falta de contato entre os
indivíduos, ainda que a diferenciação entre as trajetórias individuais trans-
mita a impressão de solidariedade orgânica. A passagem abaixo, extraída da
entrevista n. 2, indica a representação de que a relação polícia-sociedade tem
características próximas à anomia, considerando que as técnicas policiais não
são comunicadas ou não fazem sentido na comunicação entre policiais e não
policiais; na passagem, o entrevistado relata sua experiência na contenção de
grandes manifestações que comumente ocorrem na região central de Brasília.

Mas, é quase, vamos dizer, impossível, em grandes manifestações


você não ter embate. Você tem embate primeiro porque, às vezes,
não são nem as lideranças, alguns grupos isolados que querem
te afrontar, querem romper o teu cordão, querem quebrar alguns
acordos que nem sabem que existem, porque aquelas lideranças
não têm controle de toda a manifestação, aí eles partem contra o
policial. Se você reagir, toda aquela massa vem contra você, aí você
vai ter que usar a força necessária e, às vezes, você vai ser violento,
porque existem técnicas de você atuar com um bastão policial, de
você prender, bater. Porque se bate com o bastão policial. O bastão
foi feito pra bater. E por incrível que pareça, mas tem técnica. Aí o
policial bate de cima pra baixo, na cabeça, bate não sei onde, então,
ele é visto como violento. E, às vezes, você precisa usar desse tipo
de energia pra conter grandes manifestações, pra conter avanços de
movimentos radicais, de Sem-Terra, porque os Sem-Terra ele fala
que busca esse fato muitas vezes, pra ele chamar atenção da mídia,
das autoridades, pra vir atendê-lo nas suas demandas; mas muitas
vezes, o policial é que vai responder por aquele embate, por aquela
atitude ali provocada por eles. Mas nunca, é difícil a gente ver a
mídia ficar na nossa... Porque, geralmente, quem tá armado? Nós.
Quem tá com o cassetete? Nós. Quem tá com bala de borracha?
Nós. Quem tá com gás lacrimogénio? Nós. Então, você tem todo o
Estado com aparato contra, teoricamente, homens indefesos, ho-
mem que está ali reivindicando alguma coisa dele, né? Então, por
isso que eu acho que é quase impossível, nesses momentos, quando
224 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

tem embate, a sociedade achar que a polícia não foi violenta. Quan-
do, às vezes, é necessário. (Entrevista nº 2)

A passagem acima aponta que, ainda que o policial faça uso de técnicas
bastante especializadas, como as de uso do bastão policial, essas técnicas
não encontram complementaridade com as demandas sociais. A ação poli-
cial é rotulada como violenta, mesmo quando faz uso de técnicas especiali-
zadas de contenção, segundo o entrevistado. Nessa configuração, é signifi-
cativo o desconhecimento das técnicas policiais por parte da população; as
práticas policiais não fazem sentido aos olhos do cidadão comum. Ou seja,
inexiste o vínculo social que poderia caracterizar a complementaridade em
uma relação orgânica.
É notório que as expectativas que caracterizam essa fala não são as de
reciprocidade, mas estão ligadas às prerrogativas unilaterais para o uso de
armas: “quem tá armado? Nós. Quem tá com o cassetete? Nós. Quem tá
com bala de borracha? Nós. Quem tá com gás lacrimogénio? Nós.” Indica-
-se assim que o senso de inferioridade manifestado nessa como em outras
entrevistas analisadas está relacionado a expectativas de autoridade. Tais
expectativas são frequentemente ambíguas quanto ao sentido de superiori-
dade ou de inferioridade a que estão ligadas.
A terceira entrevista submetida a escrutínio neste capítulo é a de nú-
mero 6, realizada com um delegado da alta administração da PCDF, com
14 anos de carreira no momento da entrevista. Essa entrevista, assim como
outras realizadas com policiais militares e civis, indicou a presença significa-
tiva de expectativas de reciprocidade. Os conteúdos ligados às expectativas
de reciprocidade nessas entrevistas podem ser agrupados em três tipos: (a) a
ideia de que a função policial é complementar às expectativas da população
civil, de modo que a avaliação pelos cidadãos passa a ter importância crucial
na orientação da atividade policial cotidiana; (b) a representação de que a
formação policial é específica a ponto de constituir uma profissão diferen-
ciada na divisão do trabalho contemporânea; e (c) a ideia de que o uso da
força legal origina-se menos de uma prerrogativa unilateral e mais de uma
demanda da sociedade por solução coercitiva.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 225

O delegado participante da entrevista n. 6 relata que uma das razões de


sua realização profissional adveio tanto da experiência em delegacias cir-
cunscricionais, em que há significativa “identidade com a população”, como
da experiência em unidades especializadas, em que era mais plausível “dar
um retorno” às demandas dos cidadãos.

Eu já trabalhei em delegacias que tinham atribuições em todo Dis-


trito Federal, que é o comum no caso das delegacias especializadas.
Então cada período desse ele traz uma satisfação em relação à ques-
tão de identidade com a população, porém, quando nós exerce-
mos nossas funções em delegacias de área, que são essas chamadas
circunscricionais, há uma identidade maior porque você passa a
fazer parte do contexto diário daquelas pessoas que residem no lo-
cal, né? Por exemplo, é uma obrigação do delegado-chefe de cada
área participar dos conselhos comunitários, de todas as reuniões, e
ali a gente ouve reclamações e a gente recebe elogios em relação a
atuações e esse laço ele é mais estreitado quando você trabalha em
delegacia de área, delegacia circunscricional. Eu tive oportunidade
de trabalhar em algumas circunscricionais [...] Então, quando você
trabalha em delegacia de área o contato é permanente e você recebe
mais feedback da população. A atuação nas delegacias [especiali-
zadas] é bastante gratificante, especialmente pela liberdade maior
de se trabalhar, a gente tem atribuição no DF todo e tínhamos a
possibilidade de avocar determinada linha investigativa, e sempre
houve em relação à população a questão também do retorno de
quando você soluciona um caso de uma petição; quando você con-
segue recuperar objetos que foram roubados, se for o caso de uma
repressão a roubos, a antiga delegacia de Tóxicos e Entorpecentes,
quando você consegue realizar uma expressiva apreensão. Então
em todas as áreas da Polícia a gente tem um certo benefício nesse
contato com a população que é poder ser remunerado pra fazer o
bem para os outros. (Entrevista nº 6)

Tanto o “receber feedback da população”, quanto o “dar um retorno”


apontam para o conteúdo de reciprocidade nas expectativas do entrevista-
do. Ambos indicam a forma contratual da relação polícia-sociedade, relação
226 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

essa com potencial de autorregulação por meio das “reclamações”, “elogios”,


“feedbacks”, “retornos” e interações de “solução de problemas”. Em outro
momento da entrevista, o policial pesquisado reafirma essa expectativa de
reciprocidade quando diz que o que orienta seu trabalho é a meta de uma
“população bem atendida”.
Além disso, a formação profissional específica enfatizada pelo policial na
entrevista n. 6 é outro indício de que suas expectativas estão orientadas para
uma divisão do trabalho baseada na reciprocidade com a população civil.

P.: Levando isso em consideração no que exatamente essa entrada


pra polícia mudou... Se mudou, o seu modo de ser e em que sentido?
R.: [...] Profissionalmente acho que foi um salto muito grande por-
que eu aprendi todas as técnicas que nos eram passadas, né, às ve-
zes de empírica e às vezes de maneira bastante didática em relação
a todos os procedimentos. [...] Eu considerei todos os cursos que
eu fiz na Polícia válidos né? Cursos de atividade de Inteligência...
eu me formei também na questão operacional; virei instrutor da
Academia de Polícia, tive oportunidade de ser treinado pra isso;
ministrar aulas; formar novos policiais... tudo isso eu pude fazer
em função dessa preparação que a Polícia me deu, por essa oferta
de treinamento. (Entrevista nº 6).

O policial entrevistado completa afirmando: “A Polícia me formou como


homem e culturalmente”, o que contém uma ideia de reciprocidade se con-
siderarmos a formação dentro de uma cultura profissional especializada. De
acordo com o conceito utilizado aqui, a reciprocidade está na valorização das
especificidades profissionais na relação com a população civil, em detrimento
das ideias de autoridade e superioridade. Tal valorização inclui a expectativa
de que a função policial se define por uma formação profissional específica.
Finalmente, tem-se, na entrevista n. 6, um indicativo de reciprocidade
na expectativa de que o uso da força legal pela polícia é “apenas reativo”, res-
pondendo a demandas circunstanciais. Tal ideia, centrada na necessidade
de soluções coercitivas (Bittner, 1972), difere da expectativa de que o uso
da força se origine do direito unilateral de usar armas, prender e abordar
Violência, Polícia, Justiça e Punição 227

pessoas. Essa ideia de reciprocidade ligada ao uso da força está presente na


passagem a seguir.

P.: Na sua opinião pra fazer o seu trabalho o policial precisa ser
violento? Ou, continuando a pergunta, agindo ou não dentro da lei
o policial vai ser sempre visto como violento? [...]
A Polícia sempre aparece sempre e está sempre em discussão o pa-
pel etc. Então o policial jamais tem que ser violento, na verdade,
ele tem que agir pra reprimir a violência, não é, e se necessário for
ele tem que usar da força compatível com aquela eventual reação
de alguém, que não vai deixar de ser um ato violento, mas é um ato
de contenção. Jamais. Até porque se ele for violento certamente ele
vai estar sendo submetido a um procedimento que vai colocar em
risco a carreira dele. (Entrevista nº 6).

Na passagem, o entrevistado enfatiza que o uso da força é “um ato de


contenção” e que deve ser utilizado apenas para reprimir outro ato violento,
tendo uma intensidade compatível com o ato a ser reprimido. Ou seja, o uso
da força pela polícia origina-se fora da esfera de ação do policial, não ten-
do relação imediata com a prerrogativa unilateral para o uso da força. Isso
diminui o espaço para a discricionariedade policial em favor da demanda
social por solução coercitiva, na forma discutida por Bittner (1972).

Considerações finais
A reciprocidade, entendida como complementaridade e igualdade, é
um elemento essencial do vínculo social na modernidade, na medida em
que agrupa atores sociais diferentes e complementares em relações cuja for-
ma é o contrato. Entende-se que o trabalho policial nas democracias mo-
dernas ocorre sob expectativas de reciprocidade, que se referem à relação
policial-cidadão como um contrato de direitos e deveres mútuos. Na relação
entre polícia e sociedade, as expectativas de reciprocidade convivem com as
expectativas de autoridade ligadas ao trabalho policial, que atribuem prer-
rogativas unilaterais aos policiais, tais como o direito de andar armado ou o
direito de prender pessoas.
228 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Neste capítulo, mensurou-se, por meio de uma escala, a intensidade das


expectativas de reciprocidade de policiais militares e civis do Distrito Fede-
ral. Verificou-se que, no caso da polícia militar, as atividades de maior auto-
nomia e maior contato face a face com o público são as com maior escala de
expectativas de reciprocidade. Foi também possível comprovar a hipótese
de que, em ambas as organizações, maiores intensidades na expectativa de
reciprocidade correspondem à maior confiança na relação das polícias com
a população civil.
As expectativas mais significativas de unilateralidade relacionam a au-
toridade policial simplesmente ao ser policial ou à superioridade do conhe-
cimento policial. Há também expectativas de inferioridade dos policiais na
relação com a população civil, mas estas se encontram ligadas à recorrente
frustração das expectativas de autoridade. Já as expectativas de reciprocida-
de propriamente se referem à valorização da comunicação com a população
civil, a uma formação profissional especializada e à visão do uso da força
como mera contenção, coerção que seria extrínseca à iniciativa policial.

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Ambivalências do Ensino Policial:
educar ou treinar? Um estudo
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José Vicente Tavares Dos Santos

Introdução: a questão da educação policial


Na Era da Mundialização de Conflitualidade, multiplicaram-se os pro-
jetos para prevenir as violências e reduzir a criminalidade violenta, na pers-
pectiva de novas alternativos de políticas públicas de segurança que possam
garantir o direito de segurança dos cidadãos e cidadãs nas sociedades do
século XXI (Ianni, 1992, 1996; Hobsbawm, 1994, 2000).
São efeitos múltiplos da mundialização da questão dos Direitos Huma-
nos, desde a II Conferência Internacional de Direitos Humanos, reunida em
Viena, em 1993, e a Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, em 1995,
a partir da qual foram organizadas pelo menos 46 reuniões internacionais
sobre a questão (Santos, 2004a; 2004b).
Entretanto, há uma crise do ofício de policial, seja pelas dificuldades
em garantir a ordem pública, por ela estar internacionalizada e privatizada,
seja pelas limitações em contribuir à construção do consenso, pois as bases
da comunidade não mais existem em sociedades complexas e com o mun-
do do trabalho desestruturado (Goldstein, 2003; Reiner, 2004; Monjardet,
2002; Brodeur, 2002). Restaria uma opção pelo crescimento das funções de
controle social repressivo da polícia, mediante o apelo sistemático ao uso
da violência ilegal e ilegítima, configurando um “estado de controle social
232 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

penal”. Porém, o “programa de tolerância zero”, da Polícia de Nova York,


somente foi importado, por setores conservadores, em seu aspecto de refor-
ço do policiamento ostensivo, sendo desprezada toda a rede de serviços de
associações que, naquela cidade, faz parte do programa (Costa, 2004). Na
década de 1990, a violência, nas cidades e nos campos passa a constar da
agenda pública na sociedade brasileira (Zaluar, 1999, 2004; Velho e Alvito,
1996; Velho, 1996; Grynszpan, 1999; Santos, 2006) e o controle social “pare-
ce ter esgotado suas funções no interior de modelos tradicionais”, indicando
um deslocamento para “a reflexão sobre as formas de interação e sociabili-
dade em emergência, quer entre as classes populares quer entre as demais
classes sociais, bem como as modalidades de socialização [...]. [...] Por fim,
não se pode “ignorar o papel do Estado no controle social, em particular no
controle da ordem pública” (Adorno, 1999, p. 100-101; cf. também Wievio-
rka, 2004, passim).
No início do século XXI, pode-se perceber, em relação à questão da
segurança pública – uma das tecnologias políticas que foram desenvolvidas
no quadro da Razão de Estado, identificando a segurança e as forças públi-
cas com a reprodução da ordem social – que a crise do Estado-nação, em
virtude do processo de formação da sociedade global, e as vicissitudes do
Estado de bem-estar social, face às políticas neoliberais, trouxeram dificul-
dades crescentes para o exercício do ofício de policial.
O objeto deste texto é o ensino policial desenvolvido na sociedade
contemporânea: pretendemos analisar a educação policial em um conjunto
selecionado de países, destacando os aspectos atuais das experiências edu-
cativas, principalmente como uma forma de superar a crise institucional e a
resistência à inovação nas instituições de ensino policial.
A pesquisa de campo foi realizada entre 2010 e 2015. Visitamos no Bra-
sil cerca de 22 instituições de ensino policial: a) Academia Nacional de Po-
lícia – Polícia Federal, Brasília; b) Academias da Policia Militar – Formação
de Oficiais: Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Mato Grosso, Brasília, Espírito Santo, Bahia, Pará, Amazonas. E as
Academias extintas: Pernambuco e Ceará; c) Escolas de Polícia Civil – Rio
Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Pará, Amazonas; Experi-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 233

ências de integração: Rio Grande do Sul, Pará, Ceará e a nova ESP do Ceará.
A pesquisa de campo internacional implicou na visita a 15 países: Ar-
gentina; Uruguai; El Salvador; Venezuela; Colômbia; Estados Unidos; Ca-
nadá; Reino Unido: Inglaterra e Irlanda do Norte; França; Espanha: Cata-
lunha; Portugal; Alemanha; Suécia; e China. Nos limites deste texto, não
conseguimos analisar toda a documentação, a ser alvo de futuros estudos.
Procuramos, na medida das possibilidades da documentação, classifi-
car os currículos dos cursos de formação segundo as seguintes categorias:
ciências sociais; valorização profissional; estudos Jurídicos; gestão; estágios
profissionais; e atividades complementares.
Tais categorias foram aplicadas, inicialmente, ao estudo feito na década
passada por Milan Pagon et al, o qual forneceu os dados sobre os currículos
em várias escolas de polícia da Europa:

Gráfico 1. Temas do Sistema Europeu de Educação


e Treinamento Policial, 1996

Fonte:Elaborado pelo Autor, baseado em Milan Pagon et al, European systems of


police education and training, Eslovênia, College of Police and Security Studies,
1996. Disponível em: <https://www.ncjrs.gov/policing/eur551.htm>.
Acesso em: 22 abr. 2018
234 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

O que se percebe é uma correlação inversa entre disciplinas de ciências


sociais e de tecnologias policiais e os Estados de Bem Social: quanto menos
o Estado tinha características de bem estar social, mais disciplinas na área
jurídica eram oferecidas nos cursos de formação.
Nos países da União Europeia, há cerca de 70 escolas e academias de
polícia que oferecem formação policial básica (CEPOL Survey on European
Police Education November 2006). Dos professores, 60% são policiais e 40%
são civis. Registra-se um crescente interesse na diversidade social e cultural
dos alunos selecionados; a duração dos programas varia de 4 a 48 meses,
pois a duração varia conforme o nível de estudo: quanto mais inicial o nível,
mais a duração é menor; a semana é de 44 horas de estudo.
Nos currículos, os tópicos de Direitos Humanos, Tráfico de Drogas,
Ética e Corrupção estão muito presentes. Por outro lado, os tópicos sobre
Cooperação Internacional, Refugiados e Integração, Terrorismo, Meio Am-
biente, Diversidade Social e Cultural, Tráfico de Seres Humanos e Lavagem
de Dinheiro ainda estão pouco presentes. Quase todas as escolas têm pro-
gramas de educação avançadas para seus quadros. Porém, não há progra-
mas comuns de educação e treinamento policial básico na União Europeia,
embora, em todas, as mulheres estudantes são uma minoria. A maioria
oferece especialização em Investigação Criminal, Liderança e Gestão e, em
algumas, sobre Controle do Tráfico de Veículos. Para realizar este objetivo,
normalmente há cooperação com outras academias dentro do mesmo país,
e outros convênios existem, por exemplo, com institutos de perícia, com au-
toridades locais e com Universidades. A cooperação internacional adquire
um papel proeminente na maioria das escolas.

Experiências internacionais do Ensino Policial

O caso da França
A Polícia Nacional (Police Nationale) é uma corporação policial civil da
França. Está ligada ao Ministério do Interior. Os policiais da Polícia Nacional
são servidores do Estado. A criação desta corporação decorre da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que tem força de dispositivo
Violência, Polícia, Justiça e Punição 235

constitucional (artigo 12): “A garantia dos direitos do homem e do cidadão


necessita de uma força pública: esta força é ora instituída em benefício de to-
dos e não para uso particular daqueles aos quais ela está subordinada.”
A definição das atribuições da Polícia Nacional está prevista no artigo
1º do Código de Deontologia da Polícia Nacional: “A Polícia Nacional con-
corre sobre a totalidade do território para a garantia das liberdades, defesa
das instituições da República, para a manutenção da paz e da ordem pública
e a proteção das pessoas e bens.”
Em consequência, as missões da Polícia Nacional foram reguladas pela
Lei de 21 de janeiro de 1995, que no artigo 4º as enumera: o combate à vio-
lência urbana, a pequena delinquência e a insegurança das ruas; o controle
da imigração irregular e o combate ao emprego clandestino; a repressão às
drogas, ao crime organizado e à grande delinquência econômica e financei-
ra; a proteção do país contra o terrorismo e as agressões aos direitos funda-
mentais da nação; a manutenção da ordem pública.
A lei determina que essas atribuições devem ser desempenhadas com
respeito ao código de ética da Polícia Nacional. A Polícia Nacional está su-
bordinada ao Ministério do Interior, do qual se constitui numa de suas di-
retorias, a DGNP - Direção Geral da Polícia Nacional. A Ecole Nationale
Supérieure de la Police foi fundada em 1945. Ela abrange três tipos de ativi-
dades: a formação inicial de comissários de policia; a formação permanente;
e cursos breves para autoridades municipais.
O Decreto número 2005-939 de 2 de outubro de 2005 sobre o estatuto
especial do corpo da Policia Nacional diz que a formação inicial dos chefes
de policia se daá na escola nacional de policia (ENSP), um estabelecimento
público nacional administrativo sob a supervisão do Ministério do Interior.
Os estudantes para comissários de polícia, selecionados por 4 canais de
recrutamento desde 2006, possuem perfis diferentes em termos de idade,
níveis de qualificação, de duração e da natureza de experiências profissio-
nais. Ou seja, há uma individualização dos percursos de formação.
O objetivo atribuído à formação profissional inicial dos comissários de
polícia é criar as condições para o desenvolvimento de capacidades exigidas
para uma primeira prática profissional. A Política de formação se apoia em
236 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

três princípios: desenvolver um espírito de “polícia nacional”; promover um


trabalho em parceria com outros atores de Segurança Interna; difundir uma
cultura e uma prática gerencial adaptada para as missões da polícia nacional
A estrutura da Formação profissional inicial para comissários de polí-
cia prevê um curso com duração de 24 meses, tendo início em setembro do
primeiro ano e terminando em agosto do segundo ano. A primeira fase tem
a duração de 18 meses, sendo 8 meses de estágio. Após doze meses, os alu-
nos são nomeados Comissários de Polícia estagiários. A segunda fase tem
duração de 6 meses, consistindo em um estágio em um trabalho semelhante
ao da posição escolhida.
Em seguida, um período final de 6 semanas, preparando in situ, ou
seja, no cargo para o qual será designado: estabelecimento dos primeiros
contatos profissionais, análise organizacional e funcional do serviço de polí-
cia, o conhecimento regional disponível, e o uso de referências topográficas,
institucionais, socioeconômicas e culturais. Após este estágio, eles recebem
o titulo de Comissário de Polícia, 1ª classe.
A alternância de fases de escolaridade e de estágio coloca em sinergia
os aprendizados realizados na ENSP e nos lugares de estágio. A imersão nes-
ses lugares permite aos alunos confrontar os conteúdos da formação escolar
com as realidades concretas das situações professionais. Está previsto, tam-
bém, um módulo denominado “Organização de conferências professionais”,
para o qual são chamados especialistas, profissionais ou pesquisadores, a
fim de atualizar as temáticas da segurança interior.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 237

Quadro 1. Módulos de formação

As atividades pedagógicas semanais começam segunda-feira de manhã


às 9h30 e terminam na sexta-feira às 15h20. Os períodos de ensino (escola-
rização) ocorrem principalmente na ENSP. Depois, um centro de estágio é
administrativamente atribuído, onde serão efetuados os dois primeiros está-
gios. A ENSP oferece 18 salas para cursos (salas de aula) e 3 anfiteatros que
possuem de 50 a 170 lugares, incluindo dois equipamentos de cabine de tra-
dução. As salas estão equipadas com vídeo projetores. Possui salas de esporte,
de musculação e salas para treinamentos individuais de técnicas de defesa. O
ENSP também oferece alojamento para os comissários e estes dão uma con-
tribuição financeira para os custos de manutenção definido pelo conselho.
Está prevista a apresentação de uma Monografia profissional. Os alunos
podem, também, participar de um ciclo de formação universitária, nível de
Mestrado Profissional, submetendo-se às exigências universitárias. Atual-
238 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

mente, com esta finalidade, há um convênio com a Universidade de Lyon.


A análise da grade curricular nos possibilita compreender melhor a ENSP:

Gráfico 2. Escola Nacional Superior de Polícia da França –


horas de aula em 2008

Está evidente o peso das atividades complementares, aqui entendida


como estágios profissionais, bem como a presença da área das tecnologias po-
liciais e aqueles referidas à gestão pública. Em seguida, aparecem as ciências
sociais, os estudos jurídicos e a valorização profissional. A parte da Formação
permanente tem como objetivo garantir uma competência em quatro itens:
adaptação a novas funções; acesso a um nível superior; adaptação à evolução
previsível do ofício; o desenvolvimento e aquisição de novas qualificações.

O caso da Alemanha
A Alemanha tem uma polícia unificada, com escolas em cada um dos
Estados. Nos anos entre 1967 e 1972, verificou-se na Alemanha uma mu-
dança radical em relação ao serviço de Polícia (Gross, Frevel e Dams, 2008).1
Não foi apenas em decorrência da pressão social de fora, mas em especial

1 Nas páginas 11 a 16, que tratam da formação da polícia de Baden-Württemberg, há


conteúdo extraído do site <http://www.polizei-bw.de>. Acesso em: 5 abr. 2011.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 239

pelo surgimento de uma nova geração de comando dentro da Polícia, levan-


do à uma nova regulamentação jurídica da atividade, como, por exemplo, a
mudança do direito de reunião e as modernas concepções de ações policiais.
Neste sentido, a própria imagem dos policiais modificou-se, de modo que
em alguns Estados estes eram vistos como “engenheiros sociais”. A Polícia
foi enquadrada, definitivamente, ao mundo civil, deixando de ser vista uni-
camente como uma instituição militar.
Com a reunificação da Alemanha, em 1990, foram postas em prática
profundas reformas no sistema de Polícia da antiga DDR. O modelo da Polí-
cia da Alemanha ocidental foi integralmente transposto para os cinco novos
Estados da Federação. Neste sentido, pode-se citar a criação dos departa-
mentos de polícia estaduais, dos comandos de ações especiais, assim como
da instituição de Escolas especializadas na formação de policiais. Nada obs-
tante, ainda existem algumas diferenciações, como a cor do uniforme e dos
automóveis, além de operarem a partir de diferentes terminologias e por
motivo de leis policiais distintas: em alguns Estados o conceito de ordem,
de forma simbólica, foi excluído da Lei de Polícia, enquanto que em outros
tal conceito é constantemente reafirmado.
Enquanto órgão de cúpula, a Polícia se ocupa do serviço de adminis-
tração policial quase que exclusivamente por meio da formação de funcio-
nários públicos. Para estes, ainda vale, de forma idêntica, o regime geral da
carreira dos funcionários públicos alemães, a qual se divide entre os serviços
básicos, intermediários, superiores e supremos. Até os anos de 1990, após
a formação intermediária no serviço de formação policial, era possível a
comprovação de progresso na Escola de Polícia, a fim de que o policial, após
os estudos na Escola Superior de Polícia, pudesse assumir funções de dire-
ção. Policiais especialmente capacitados poderiam participar do curso do
Conselho na Academia de Direção da Polícia, e, após o término, pertencer
ao serviço supremo.
A Escola Alemã de Polícia (antiga Academia de direção de Polícia), em
Münster, garante na Alemanha um ano de estudos na Graduação, enquanto
que um segundo ano é realizado nos respectivos Estados da federação de
origem, cujo currículo é precedido de uma unificação federal.
240 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

A nova geração de policiais será formada, assim, apenas nas Escolas


Superiores de Polícia, a qual ingressará, após o exame estatal, na carreira de
delegado. Aqui a carreira compõe-se de duas partes. Outros Estados, como,
por exemplo, Bayern, Baden-Württemberg e a maioria dos Estados do Leste
da Alemanha, se decidiram contra esta variação e mantiveram a divisão em
três níveis da carreira policial, sob uma duplo fundamento, de um lado pelo
modo da atuação policial; de outro, por razões de financiamento, pois a mu-
dança de foco na atividade intermediária para os serviços superiores eleva
significativamente os custos de pessoal.
Em toda a legislação policial, emerge a “segurança pública” como tarefa
para a Polícia. Isto abrange a proteção da ordem jurídica e dos bens jurídicos
dos indivíduos, assim como a proteção das instituições do Estado. A prote-
ção da “ordem pública”, como a soma de normas não-escritas para uma vida
conjunta na sociedade, não representa mais, em alguns Estados (como em
Bremen ou Niedersachsen) uma tarefa da Polícia, perdendo em significado
frente a uma sociedade pluralista.
A Escola de Polícia de Hamburgo foi refundada em 1967, tendo como
objetivos: responder aos novos desafios, e “fortalecer o desenvolvimento
pessoal dos policiais”. Os valores básicos são: formação de qualidade, domí-
nio das técnicas policiais, conhecimento das bases jurídicas da ação policial
e respeito aos valores democráticos. Ou seja, a conduta democrática, de di-
reito e impregnada de tolerância. Proporcionam um Diploma internacional
de bacharelado (3 anos).
Houve quatro fases de desenvolvimento na Polícia de Berlim ocidental.
A primeira, conhecida como a fase da “Restauração”, é compreendida entre
o período do início da separação das Polícias de Berlim até o final da década
de 1960, onde foram restabelecidos os elementos centrais da organização
policial, desenvolvidos ainda à época da República de Weimar, especial-
mente no que diz com a organização pessoal e com o direito de Polícia. Em
outubro de 1951 foi incorporado ao artigo 131 da Lei Fundamental alemã a
Lei de implementação berlinense, que possibilitava juridicamente a recon-
dução dos antigos servidores públicos aos mesmos cargos. Através desta re-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 241

gulamentação, milhares de antigos membros do NSDAP2 foram novamente


acolhidos na Polícia de Berlim. Por outro lado, os policias que estavam sob
suspeita de manterem contato com o setor oriental foram dispensados do
serviço. Nas décadas de 1950 e 1960, a Polícia de Berlim esteve sob influên-
cia direta da Guerra Fria. Sua matriz ideológica, assim como sua organiza-
ção, esteve vinculada à defesa do inimigo externo.
Na segunda fase, tentou-se equalizar os déficits da Reforma. Iniciada
com o impulso do movimento estudantil, a Policia de Berlim foi profunda-
mente reformada entre os anos de 1969 e 1975. Neste sentido, e com os es-
forços em nível federal, foram postos em novos fundamentos a organização,
os equipamentos e armamentos, a formação e o Direito da Polícia.
Em meados da década de 1970, na chamada terceira fase, cujo período
se estendeu até a queda do muro e a consequente reunificação da Alemanha,
a Polícia de Berlim se via, cada vez mais, diante de novas exigências de atu-
ação: atentados terroristas nos anos de 1970 e ocupações habitacionais e ou-
tras formas de protestos na cidade nos anos de 1980 influenciaram o desen-
volvimento da atuação policial. Neste período, foram desenvolvidos novos
aparelhos e estratégias operacionais para combater o terrorismo e delimitar
os atos de protestos em sua forma pacífica. A mais nova fase de desenvolvi-
mento da Polícia berlinense começa com a Reunificação, e se estende até os
dias atuais. É caracterizada pela expansão de sua presença para o lado orien-
tal, incluindo a incorporação do contingente de policiais que atuavam sob o
comando das forças soviéticas. Por isso, na fase atual predomina a política
de racionalização econômico-administrativa e de serviços estratégicos.
A Polícia do Estado de Baden-Württemberg, no que diz respeito ao
efetivo, no orçamento do Estado em 2004 foram contabilizados, no geral,
26.699 servidores da Polícia, dentre os quais 20.059 alocados nos serviços de
polícia de proteção, 4.540 na polícia criminal e 2.100 no setor de formação
profissional. No ano de 1987, o Estado de Baden-Württemberg foi o primei-
ro a contratar mulheres para os quadros da Polícia de proteção. Desde então,

2 Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische


Deutsche Arbeiterpartei).
242 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

a cota de policiais femininas cresce continuamente. Atualmente, são 13% do


aparato de servidores formados por mulheres.
O conceito de filosofia policial compreende, hoje em dia, princípios de
uma estratégia comum de empreendimento “einheitliche Unternehmenstra-
tegie”, caracterizada internacionalmente como Corporate Identity. Os prin-
cípios da atuação policial devem ser a expressão do “auto-entendimento”, do
papel e do valor da Polícia na sociedade, da identidade interna da Polícia,
assim como do sentido e dos objetivos das tarefas sob a responsabilidade
policial. As ações policiais, que têm seus pressupostos condicionados pelo
nível das perturbações e pelo número de perturbadores, podem ser orienta-
das por diversos tipos de critérios.
No que se refere à formação dos policiais, na época do pós-guerra, ve-
rificavam-se elementos militares inseridos nas polícias de choque. Os poli-
ciais em formação não podiam ser casados, assim como deveriam participar
nos serviços da comunidade. Uma grande parte da formação realizava-se a
partir do exercício de ação em unidades fechadas. Através da introdução de
ações práticas, os formandos tiveram a possibilidade de aplicar seus conhe-
cimentos. Tratava-se de um sistema dual de formação, estabelecendo uma
ligação entre teoria e prática.
Desde 1993, é possível a admissão direta de policiais nos serviços es-
pecializados, encurtando, destarte, a formação nas polícias de choque. Os
candidatos para a polícia criminal e de proteção são formados conjunta-
mente. Nos últimos anos a formação dos policiais tem se adequado à neces-
sidade de novas tarefas, assim como à mudança na realidade das vagas de
trabalho, de policiais “executivos” para “encarregados”. No Estado de Baden-
-Württemberg, a Escola Superior de Polícia em Villingen-Schwenningen foi
objeto de uma avaliação, e, da conclusão do parecer, foram determinadas
algumas diretrizes para o ensino, dentre as quais, exemplificativamente, a
realização das aulas em grupos de estudos.
A ilustração abaixo representa o atual organograma do Curso para
Policiais do Departamento de Polícia de Baden-Württemberg. O Curso é
composto no seu total por cinco áreas transdisciplinares, a saber: Formação
geral, Doutrina da sociedade, Direito, Estatística Policial e Criminalística
Violência, Polícia, Justiça e Punição 243

e Exercícios de Ação. A formação no Curso se divide em aulas práticas e


teóricas numa construção de habilidades e conhecimentos dos mais básicos
aos mais complexos.

Quadro 2. Organograma do Curso para Policiais do


Departamento de Polícia de Baden-Württemberg

Fonte: Elaborado pelo Autor, com base nas informações de texto.


Disponível em: <http://www.polizei-bw.de>. Acesso em: 5 abr. 2011

O Departamento Criminal Federal alemão completou, em 22 de mar-


ço de 2001, 50 anos de existência, podendo ser caracterizado como o Ser-
viço Central de Polícia da República, e, no contexto do trabalho conjunto
internacional, de Serviço de averiguação nos casos de crimes organizados,
espionagem e terrorismo. O ponto principal está nas vantagens jurídico-
-constitucionais da função de órgão centralizado. A estrutura federal des-
centralizada da Polícia não daria bons resultados, especialmente frente à
mobilidade, entre Estados e trans-fronteiriças, de criminosos e terroristas.
Nos últimos tempos, o BKA, em trabalhos conjuntos com outros órgãos de
segurança da União, assim como em nível internacional, desenvolveu uma
forte rede de troca de informações, indispensável para o trabalho preventivo
e repressivo ao terrorismo.
No âmbito do combate ao crime organizado, desde 1986 existem dois
departamentos permanentes de atuação, um destinado à repressão do nar-
244 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

cotráfico, chamado de RG,3 e outro com competência na investigação e ava-


liação dos demais campos da criminalidade, representada pela sigla EA.4
Desde 1993, os dois departamentos fazem parte de uma estrutura geral
denominada Criminalidade Geral e Organizada, sob a sigla AO.5 A Orga-
nização, desde então, é orientada por quatro princípios norteadores, quais
sejam: a) desenvolvimento de relatórios sistemáticos para o domínio de ta-
refas estratégicas e táticas; b) separação entre investigação e avaliação para
uma intensiva observação das tarefas individuais; c) profissionalização da
avaliação através de um ativo fornecimento de informações; projetos deta-
lhados de avaliações e desenvolvimento de modernos métodos de avaliação;
e d) orientação pela escolha das investigações conforme os critérios da in-
ternacionalidade, excepcionalidade, organização e dano social.
A nova lei de regulação da Proteção de Fronteiras da Federação, de 19
de outubro de 1994, significou um novo marco em direção a uma Polícia
moderna. Em 2005, devido à variedade de tarefas desempenhadas pela en-
tidade, esta foi renomeada como Polícia Federal. As tarefas da Polícia fede-
ral estão estabelecidas nos §§ 2 a 13 do Código da Polícia Federal (BPolG).
São elas: a) proteção das fronteiras (§ 2º); b) polícia ferroviária (§ 3º); c)
segurança aérea (§§ 4º, 4a); d) proteção dos órgãos da Federação (§ 5º); e)
tarefas no mar (§ 6º); f) tarefas em casos de defesa ou necessidade (§ 7º); g)
intervenção no exterior (§ 8º); h) intervenção para apoio de outros Servi-
ços da Federação (§ 9º); i) intervenção para o apoio a Órgãos da Federação
para a proteção constitucional no campo da técnica de rádio transmissor
(§ 10º); j) intervenção para a proteção de um Estado da Federação; k) per-
seguição a criminosos (§ 12); perseguição e punição por infrações (§ 13).
Este catálogo de funções deixa-se complementar com a Lei de combate ao
terrorismo de 9 de janeiro de 2002, onde, através da complementação pro-
vinda do § 4ºa da Lei da Polícia Federal, autorizou esta a realizar ações no
espaço aéreo, inclusive nos voos.

3 Rauschgiftkriminalität.
4 Ermittlungen und Auswertungen.
5 Organisierte und Allgemeine Kriminalität.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 245

As competências da União no âmbito operativo da Polícia são legal-


mente limitadas, mas, de modo algum, taxativas. Muito pelo contrário, exis-
te, na Secretaria Criminal da União, uma Polícia que atua no trabalho in-
vestigativo, o qual é composto por crimes trans-fronteiriços, especialmente
no que tange à criminalidade organizada, assim como atos de terrorismo.
Enquanto um órgão com relações internacionais com a Interpol e a Europol,
são compartilhadas e exigidas informações sobre condutas criminosas, cri-
minosos e modalidades de crimes entre a Secretaria Criminal da união e tais
órgãos internacionais. Frente ao aumento da internacionalização dos cri-
mes, também se eleva aqui a importância da Secretaria Criminal da União.
No âmbito da reforma federativa, os Estados da federação conquista-
ram amplas competências para regulamentações no que se relaciona ao es-
tatuto jurídico dos policiais, podendo, com isso, se distanciar das tendências
de unificação das leis sobre os servidores da Polícia. Hoje já existem distin-
ções sobre o regime temporário de serviço policial entre os Estados, que
podem, no futuro, se estenderem a distinções salariais e a diferentes níveis
na carreira. Tentativas de governança da Polícia e de produção de segurança
interna com a ajuda de instrumentos de economia empresarial já ultrapas-
saram seu apogeu e são, agora, tendo em vista sua utilidade, avaliadas mais
realisticamente a partir do Bem “segurança pública”.
Mudanças decisivas para as polícias alemãs são aquelas que dizem
respeito à “europeização” e a “internacionalização” do trabalho policial.
Ademais, ações policias no exterior constituem novas tarefas policiais que
entram agora em cena. Os limites entre segurança interna e externa, princi-
palmente em tempos de criminalidade organizada e terrorismo, não estão
tão claramente estruturadas como ainda estavam há poucos anos atrás. Com
isso, avulta a necessidade de uma relação mais intensa em termos de coo-
peração com outros atores internacionais da política de segurança, como o
Exército, os serviços secretos ou serviços privados de segurança.
A Polícia Federal foi renomeada, em 2005, de Polícia Federal de Proteção
de Fronteiras para Polícia Federal. Os diversos acordos de cooperação com
quase todas as polícias estaduais deixam ainda mais evidente o efetivo traba-
lho conjunto desempenhado pela Polícia Federal. De modo especial, as ações
246 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

policiais no exterior caracterizam o perfil de sua atividade profissional. Tanto


no que diz com as tarefas nacionais, quanto internacionais, a Lei que regu-
lamenta a Polícia Federal representa, ao mesmo tempo, um instrumentário
efetivo e adequado a um Estado de Direito para as ações da Polícia Federal.

Gráfico 3. Alemanha – Escola Superior de Polícia – horas de aula em 2005

O caso da Inglaterra
A National Police Improvement Agency (NPIA), ou Agência Nacional
de Melhoria da Polícia, foi criada em 2007, com os seguintes objetivos: “O
governo vê a necessidade de uma Escola Central de Polícia para agir com
o foco de desenvolvimento e promoção da excelência profissional através
do serviço policial. Seria também para treinamento de lideranças em nome
das forças policiais da Inglaterra e do País de Gales, assim como gostaria de
incentivar e desenvolver a compreensão internacional das questões de po-
liciamento” (NPIA, 2007, disponível em https://www.gov.uk/government/
organisations/national-policing-improvement-agency . Acesso em 15 de ja-
neiro de 2017, tradução do Autor).
Estas propostas representam uma oportunidade para elevar os padrões
na formação da polícia e equipar todo o pessoal com as habilidades que
precisam para seu trabalho e, assim, proporcionar um melhor policiamento:
Violência, Polícia, Justiça e Punição 247

“Esta formação é parte de uma concepção estratégica de recursos humanos:


a formação não é um fim em si mesmo, pois o principal desafio é conseguir
a melhor formação possível para a polícia reduzir o crime, aplicar a justi-
ça, proteger o público e contribuir à construção de uma sociedade segura”
(Formação da Polícia, Londres: UK Home office [Escritório do Governo do
Estado], novembro de 1999, p. 3, tradução do Autor).
O College of Policing começou a funcionar em 2012, assumindo fun-
ções da NPIA, com o objetivo de servir o interesse público, incrementando
o modelo britânico de policiamento por consentimento.
O objetivo é proteger o interesse público mediante: promoção dos va-
lores do policiamento eficaz; aprendizagem e apoio de melhoria no policia-
mento; ética e valores. Especificamente, a missão é: 1. Proteger o interesse
público, pela promoção dos valores do policiamento efetivo, incrementando
o policiamento e mantendo a ética e os valores; 2. Promover padrões nacio-
nais de policiamento de excelência; 3. Identificar o que funciona em poli-
ciamento e compartir as melhores práticas; 4. Apoiar a educação e o desen-
volvimento profissional dos policiais, organizando um currículo nacional.
Trata-se de definir e melhorar normas nacionais de profissionalismo
para garantir a excelência no policiamento operacional a fim de: desenvol-
ver um conjunto de normas acordadas a nível nacional para os oficiais e
funcionários; fornecimento de estruturas para os padrões a serem testados;
identificar evidências das ações que funcionam em policiamento e partilhar
as melhores práticas; proporcionar o acesso a um corpo de conhecimento
formado pela pesquisa baseada em evidências e nas melhores práticas; con-
tinuar a desenvolver uma compreensão das ameaças crescentes à segurança
pública; apoiar o desenvolvimento da educação profissional dos policiais;
manutenção do currículo de policiamento nacional; formação de lideran-
ças e formação especializada; desenvolvimento de futuros líderes e conhe-
cimentos através da gestão de talentos eficaz; e habilitar e motivar funcio-
nários a trabalhar em conjunto para alcançar os objetivos compartilhados.
Para atingir estes objetivos, o corpo pretende fortalecer os vínculos en-
tre o serviço de polícia e outras organizações: trabalhar com universidades
para compartilhar e desenvolver a base para o policiamento. Também, obje-
248 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

tiva trabalhar com outras organizações, inclusive com o setor privado para
assegurar que o serviço policial seja capaz de acessar a melhor formação. E
vai trabalhar em estreita colaboração com parceiros internacionais.
Na Irlanda do Norte, durante o processo de Paz, o Relatório da Comis-
são Independente sobre Policiamento, de 1999, afirmava que a educação,
a formação e o desenvolvimento estratégico devem prever um serviço de
polícia dedicada à proteção dos direitos humanos e ao respeito da digni-
dade humana, nos seguintes termos: um serviço policial responsável, ágil,
comunicativo e transparente; um novo estilo de policiamento baseado em
parcerias com a comunidade; um serviço policial descentralizado, com res-
ponsabilidades de decisão descentralizadas em equipes e comandos distri-
tais; e uma gestão mais flexível.
No caso da relação com as Universidades, recomenda que o Diretor do
centro de formação deve ter os títulos acadêmicos e a experiência de gestão,
e que os instrutores civis devem ser empregados para realizar todos os pro-
gramas de treinamento possíveis. Recomenda, ainda, que alguns módulos
de treinamento devem ser contratados com as Universidades e oferecidos
nas instalações da Universidade, de preferência em conjunto com estudan-
tes não policiais: assuntos constitucionais, direitos humanos, aspectos do
sistema de justiça criminal, entre outros temas.
Afirma também o Relatório a prioridade na formação em Direitos Hu-
manos orientados a comunidades complexas: todos os membros do serviço
de polícia deverão ser instruídos sobre as implicações para o policiamento
dos Direitos Humanos, no contexto da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Para continuar
com a sua formação, o foco de atenção será a comunidade que servem; assim,
é fundamental para o trabalho da polícia a capacidade de interagir com outras
pessoas, pois a maioria dos trabalhos da polícia envolve lidar com pessoas.
Acontece que a sociedade está se tornando cada vez mais complexa,
muitos grupos, cada um com seus próprios interesses, padrões e pontos de
vista. Ou seja, a proposta ora em vigência na Irlanda do Norte é um serviço
policial orientado para trabalhar em comunidades complexas, para o que
realizam convênios com as Universidades.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 249

O caso dos Estados Unidos


Nos Estados Unidos, de 2002 a 2006, houve um incremento dos con-
teúdos referentes ao Policiamento Comunitário. Entretanto, a maioria das
Academias era mais orientada para um modelo “militar estressante” do que
para um modelo “acadêmico não estressante” (State and Local Law Enfor-
cement Training Academies, p. 10). O problema da formação policial nos
Estados Unidos pode ser visto em termos de seleção, de educação, de treina-
mento e da permanência dos candidatos na carreira policial. O período de
formação varia de quatro a 12 meses, com uma média de 10 meses. A análise
dos currículos de 648 escolas de polícia, fruto do Censo realizado em 2006
pelo Departamento de Justiça, indica o seguinte:

Gráfico 4. Tópicos dos currículos das Academias de Polícia nos Estados Unidos
– Total de 648 – Média de horas aula, 2006

Fonte dos dados brutos: Brian A. Reaves. State and Local Law Enforcement Trai-
ning Academies, 2006. USA Department of Justice.
Bureau of Justice Statistics, fev. 2009

Fica evidenciado que houve a predominância das tecnologias policiais,


seguidas pela valorização profissional, vindo depois as ciências sociais e os es-
tudos jurídicos. Comparando os dois Censos realizados, nos Estados Unidos,
250 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

de 2002 e de 2006, houve um incremento dos conteúdos referentes ao Policia-


mento Comunitário. Entretanto, a maioria das Academias era mais orientada
para um modelo “militar estressante” do que para um modelo “acadêmico
não estressante” (State and Local Law Enforcement Training Academies, p. 10).
Os desafios que se colocam atualmente são: necessidade de uma maior
escolarização, indicando para a realização pelos policiais de estudos de nível
superior (o caso de Chicago, Boston e das Policias Federais); a necessidade
da multidisciplinaridade; e uma maior diversidade entre os alunos, a fim de
que entrem mais mulheres e representantes de minorias étnicas. Na Acade-
mia de Polícia de Nova Iorque (NYPD Academy), o Treinamento físico e tá-
tico baseia-se em habilidades ensinadas no treinamento regular, as quais são
reforçadas mediante simulações interativas que preparam os aspirantes para
as situações do trabalho policial na vida real. Os principais temas são: ciclo
de qualificação em Armas de Tiro; contraterrorismo; cursos de armas espe-
ciais; uso de armas não letais; veículos: treinamento em direção, qualificação
em vários tipos de veículos, direção defensiva e situações de emergência.
Em Chicago, no Programa de Policiamento Comunitário, em 1993, os
policiais foram treinados no modelo orientado à solução de problemas. A
melhoria do acesso aos serviços públicos da cidade forneceu aos policiais
apoio de recursos extras e a disponibilidade dos serviços ajudou os policiais
a responder às preocupações do público. O curso tem sido avaliado pela
Northwestern University. Avaliando seus resultados, pode-se afirmar que
foi moderadamente bem sucedido no envolvimento com a Comunidade,
principalmente pela utilização dos seguintes procedimentos: Beat Meetings
– a sociedade civil manifesta suas preocupações de forma a ser levada em
conta no agendamento das prioridades policiais; DACs (District Advisory
Committees) – tem por objetivo promover a cooperação entre moradores
e policiais através de várias atividades (marchas, vigílias, oração, petições e
manifestações em toda a cidade). O desafio atual é que ainda não pode be-
neficiar a toda a diversidade étnica e social da população de Chicago, sendo
a maior dificuldade a integração dos latinos no programa.
Em Boston, mediante o estabelecimento de relações entre a polícia e a
comunidade, a Academia de Polícia emprega abordagens de policiamento
Violência, Polícia, Justiça e Punição 251

que reduzem o crime e minimizam a tensão racial. O envolvimento da co-


munidade como elemento chave, mas restam dificuldades com os imigran-
tes ilegais, principalmente brasileiros, africanos, e cabo-verdianos.
Na cidade de San Francisco, o Police Department Training Division
estabelece como missão desenvolver o Profissionalismo, mediante uma edu-
cação com qualidade, treinamento e apoio. O objetivo é propiciar um pro-
grama de treinamento que siga os padrões e necessidades dos membros do
San Francisco Police Department (SFPD) e da Comunidade a quem servem.
Foi estabelecido na Califórnia, desde 1959, a Commission on Peace
Officer Standards and Training (POST), envolvendo vários departamentos
locais de Polícia. O POST funciona por adesão voluntária, baseado no in-
centivo. A participação das agências (mais de 300) as credencia a seguir os
padrões do POST e de seus serviços, ou seja: instrumentos padronizados
de trabalho; pesquisas para melhorar os padrões de seleção dos candidatos;
serviços de assessoria de Gestão; desenvolvimento de novos cursos de trei-
namento; remuneração pelo treinamento; e programa de treinamento de
lideranças com qualidade. O POST atribui certificados de reconhecimento
da proficiência e de titulação dos professionais.
Existe uma forte relação entre os Departamentos de Polícia e as Uni-
versidades, públicas e privadas. Várias modalidades de auxílio a policiais-
-estudantes para realizar um complemento universitário em sua formação:
há cerca de 120 programas acadêmicos de Criminologia, Justiça Criminal,
Law Enforcement (Aplicação da Lei) e Estudos Policiais.
Na Graduação, o New York City Police Department oferece bolsas
na NYU – New York University, na CUNY – City University of New York,
principalmente no John Jay College, na University of Albany e na Harvard
University. Ao mesmo tempo, vários Colleges oferecem redução de taxa de
matrícula aos policiais. O Chicago Police Department paga as taxas de ma-
trícula e tem um acordo com a Northeastern University.  Para Cursos de
Pós-graduação, o NYCPD oferece bolsas de estudo e vários Colleges ofe-
recem programas de redução das matrículas. Também houve um M.B.A.
em Gestão Policial em acordo com a Columbia University; e há convênios
com o John Jay College of Criminal Justice da CUNY, originário do NYPD,
inclusive um amplo trabalho de consultoria.
252 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

O caso do Canadá, Província do Quebec


A Escola Nacional de Polícia do Quebec foi modificada em 2000, com o
seguinte Código de Valores: respeito, ou seja, agir sempre em relação a cada
ser humano, não importando suas diferenças, a fim de que sua dignidade,
seus direitos e liberdades sejam respeitados; integridade: ser justo, honesto,
imparcial e leal em relação às pessoas e as instituições democráticas, o que
implica os princípios de probidade, correção e éticos; disciplina: agir com
profissionalismo, demonstrando competência e adotando uma conduta
exemplar; engajamento: oferecer um serviço de qualidade para o desenvol-
vimento do trabalho em equipe, buscando a excelência; senso de responsa-
bilidade: ser responsável e critico de suas ações. Utilizar judiciosamente a
informação e os recursos disponíveis.
Na École Nationale de Police du Quebec, os programas de formação
profissional abrangem três modalidades: o patrulhamento; a investigação
policial e a gestão policial. Baseiam-se no conceito de competência:
“A competência é um poder de agir, de ter sucesso e de progredir que
permite realizar adequadamente tarefas e atividades do trabalho e que se
baseia em um conjunto organizado de saberes (conhecimentos, habilidades
em diversos domínios, percepções, atitudes, etc.)” (Canada, Ministère de
l’Éducation, 1999).
A Escola tem como missão, “enquanto lugar privilegiado de reflexão
e de integração de atividades relativas à formação policial, de garantir aa
pertinência, a qualidade e a coerência desta formação”. A abordagem por
competência baseia-se em seis princípios:

1. A formação é baseada na execução de tarefas ligadas à função do


trabalho e não sobre o ensino de conteúdos disciplinares;
2. A formação é estruturada de maneira que o estudante possa exe-
cutar cada uma das tarefas várias vezes e em diferentes contextos;
3. As tarefas são acompanhadas por critérios e indicadores permi-
tindo observar e mediar sua realização;
4. A formação é estruturada de maneira que o estudante se apro-
prie, no início da formação, dos padrões de trabalho e da grade de
avaliação, seus critérios e indicadores;
Violência, Polícia, Justiça e Punição 253

5. A avaliação formativa é integrada ao procedimento de aprendi-


zagem (auto avaliação, co-avaliação e monitoramento);
Na prova final, o estudante é colocado em situação de exercer as ta-
refas com os mesmos padrões de trabalho e com base nos mesmos
critérios e indicadores utilizados ao longo da formação.

Gráfico 5. Currículo da Escola Nacional de


Polícia do Quebec, Canadá, em 2007

Verifica-se, em um total de 446 horas de formação do Gendarme-patru-


lheiro, ou seja, em 12 semanas, a concentração nas tecnologias policiais, divi-
didas em dois grupos: emprego da arma de fogo e atividades de patrulhamen-
to. Seguem-se as disciplinas de Ciências Sociais, as de Valorização Profissional
e as Atividades Complementares, vindo em pouca carga horária as disciplinas
jurídicas, unicamente centrada na preparação do procedimento judicial. Há
dois outros cursos de formação inicial. Primeiro, o Curso de Investigação Po-
licial, formado pelas seguintes disciplinas: direito Penal aplicado à investiga-
ção policial; processo de investigação; e elementos de Ética aplicada; análise
criminológica; e atividades de integração na investigação. O segundo é o Cur-
so de Gestão Policial, composto pelas seguintes disciplinas: desenvolvimento
de habilidades de Direção; elementos de Ética aplicada; avaliação contínua de
resultados; gestão de organizações; e supervisor de Patrulhas.
254 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Existe um continuum da formação policial mediante uma parceria entre


a ENPQ e as Universidades. O objetivo é utilizar a expertise particular de
cada estabelecimento e de oferecer formação em todo o território do Quebec.
O bacharelado em Segurança Pública é um programa de aperfeiçoamento
dirigido a todos os policiais do Quebec, compreendendo 90 créditos, assim
divididos: Formação geral em intervenção policial - 30 créditos; Formação es-
pecífica em Gestão – 54 créditos; Atividades complementares – 6 créditos. As
12 Universidades Públicas do Quebec que participam são: Université Laval;
Université de Montréal; Université de Sherbrooke; Université du Quebec en
Abitibi-Témiscamingue; Université du Quebec à Chicoutimi; Université du
Quebec en Outaouais; Université du Quebec à Montréal; Université du Que-
bec à Rimouski; Université du Quebec Télé-Université; Université du Quebec
à Trois-Rivières; HEC Montréal; e Ecole Polytechnique de Montréal.

O caso da Argentina
A Polícia Federal Argentina criou uma Universidade, na qual oferece-
rem diversos cursos abertos a todos. Nela, há uma Escola de Cadetes, cujo
Curso para Policial apresenta a seguinte distribuição de disciplinas:

Gráfico 6. Argentina – Policía Federal –


Oficial de Policía – Escuela de Cadetes (2007)
Violência, Polícia, Justiça e Punição 255

Observa-se uma concentração na área de Tecnologias Policiais e Habi-


lidades Policiais, havendo uma forte presença dos estudos jurídicos. Segue a
parte de Gestão, com reduzida presença de temas das Ciências Sociais. Ade-
mais, oferecem um Mestrado em Segurança Pública, com o seguinte perfil:

Gráfico 7. Universidad de la Policia Federal Argentina –


Mestrado em Segurança Pública – horas de aula, 2007

Neste caso, há uma nítida presença das ciências sociais, seguidas pelo
estudo das tecnologias policiais, dos estudos jurídicos e das disciplinas re-
ferentes à Gestão.
Porém, a Província de Buenos Aires criou uma Polícia de orientação
comunitária, pedindo à Universidade de Lannus para garantir a educação,
como o seguinte panorama:
256 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Gráfico 8. Argentina – Univ. Lannus – Prov. de Buenos Aires –


Graduação em Segurança Pública – Temas em horas (2005)

Verifica-se a predominância das disciplinas de ciências sociais, seguida


pelos estudos jurídicos e pelas de Gestão Pública. Já a Universidad Nacional
de Villa Maria, em Córdoba, oferece um curso para a Polícia da Província,
apresentando o seguinte perfil:

Gráfico 9. Argentina – Univ. Nacional Villa Maria - Córdoba -


Graduação em Segurança Pública - Temas em horas
Violência, Polícia, Justiça e Punição 257

Nota-se a predominância de duas grandes áreas: Ciências Sociais e Va-


lorização Profissional. Segue-se a área de Gestão Pública, e com reduzida
presença, as Tecnologias Policiais e os Estudos Jurídicos. No caso argentino,
a presença de Universidades na educação policial leva a uma maior valori-
zação das ciências sociais na educação policial.

A internacionalização do ensino policial


Os Estados Unidos da América criaram a International Law Enforce-
ment Academy, em 1995, dirigida pelo Federal Law Enforcement Training
Center, uma organização para o treinamento na aplicação da lei, formado
por 87 agencias federais do Governo Norte-americano, desde 1970. Porém,
em 2003, passou ao Department of Homeland Security. Eles estabeleceram
seis academias no mundo: Budapest, Hungary (1995); Bangkok, Thailand
(1999); Gaborone, Botswana (2001); San Salvador, El Salvador (2005); e em
Lima, Peru (2005).
A missão das academias é: “Treinar aqueles que protegem nosso ter-
ritório, mediante treinamento rápido, flexível e focado a fim de proteger
e manter segura a América”. Adotam como Métodos o Problem Oriented
Approach to Crime Reduction (London Met Police) e o SARA (Scanning,
Analysis, Response, and Assessment), um modelo de solução de problemas.
Seus objetivos são: “Apoiar as democracias emergentes, ajudar a prote-
ger os interesses dos USA mediante a cooperação internacional e promover
a estabilidade social, politica e econômica pelo combate ao crime”.
A União Europeia criou o CEPOL – Collège Européen de Police, em
2005, sediado em Bramshill, no Reino Unido, tendo sido transferido re-
centemente para a Hungria. O CEPOL orienta um Programa de Coman-
do Internacional, o qual supõe o desenvolvimento de habilidades e de ca-
pacidades, com vistas a resultados em três níveis: local, nacional e global.
As principais modalidades de delitos que são abordados em seu programa
constam da Figura 3.
258 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Figura 3. Collège Européen de Police (CEPOL) – Colégio Europeu de Polícia

Fonte: https://www.cepol.europa.eu/sites/default/files/exchange-program-
me-2015.pdf (tradução do Autor)

A Associação Internacional de Chefes de Polícia oferece cursos de trei-


namento, com o seguinte perfil:

Gráfico 10. Cursos de Treinamento: International Association


of Police Chief (IACP)

Os cursos de educação permanente oferecidos pela IACP concentram-


-se na área de Gestão Pública, seguidas pelas tecnologias policiais. Em ter-
ceiro lugar, aparecem as disciplinas referentes às ciências sociais.
Também está em curso no MERCOSUL o estabelecimento de um Cen-
tro de Coordenação de Capacitação Policial do MERCOSUL (CCCP), apro-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 259

vado em reunião de Ministros do MERCOSUL, no Rio de Janeiro, em 10


de outubro de 2008. Este Centro prevê uma “rede de especialização para a
segurança pública”.
O Centro de Coordenação e Capacitação Policial do Mercosul foi defi-
nido, em Brasília, em outubro de 2009: um órgão de trabalho formado pelas
áreas educativas dependentes das forças de segurança e policiais dos países
que integram o Mercosul. Seu objetivo é a coordenação da capacitação e
atualização das forças de segurança e policiais, com a finalidade de neutra-
lizar as novas e sofisticadas formas da ação delitiva que tem adquirido uma
crescente dimensão transnacional e requer a adoção de processos educati-
vos dinâmicos para a capacitação dos recursos humanos que garantam a
segurança pública, baseando-se na difusão de novos conhecimentos cientí-
ficos e tecnológicos.

A pesquisa de campo comparativa no Brasil


Na História recente, o ciclo de greves que houve em diversas polícias no
país – em 1997, 1999, 2000, 2001, 2004 e que perdura, ocasionalmente, até
nossos dias – representa um sentimento de injustiça vivenciado pelos pro-
fissionais. Por um lado, foram expressivas a recorrência e a dramaticidade
dos acontecimentos. Houve tiroteios entre policiais em Belo Horizonte, Ala-
goas e Ceará. Alguns comandantes foram baleados nas ruas, houve ocupa-
ções de quartéis por policiais e suas famílias e, na Bahia, os líderes das greves
foram enviados para o manicômio judiciário. Por outro, a persistência dos
problemas – desde os baixos salários, as péssimas condições de trabalho, os
regulamentos autoritários e militarizados e a escassez de meios de traba-
lho – acentua esta identidade inconclusa. Ao que parece, as greves tiveram
como efeito revelar à sociedade as dificuldades vivenciadas por seus guar-
diões, mas estimulou o associativismo, levando os policiais à arena política.
Existem, 95 Academias e Centros de Formação, Aperfeiçoamento e Espe-
cialização, das Polícias Militares, em todas as Unidades da Federação, em 2012.6

6 Fonte dos dados: Pesquisa Perfil das Instituições de Segurança Pública 2013 (Ano-base
2012). Ministério da Justiça, Brasilia, 2014.
260 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

A questão da segurança e dos profissionais de segurança pública emer-


ge, muito lentamente, na transição do regime militar para o regime civil. Se
observarmos as funções do Estado democrático de direito, temos a impres-
são de que os avanços científicos e tecnológicos, incluídas as tecnologias
sociais, foram incorporadas à área da educação, da saúde, da habitação e da
alimentação. Entretanto, neste que seria um dos direitos fundamentais da
pessoa humana, a segurança da vida – como o escrevem os contratualistas
desde o século XVII, parece haver um enorme atraso em relação às tecnolo-
gias sociais e às próprias tecnologias periciais e policiais.
Entre as 24 Academias de Polícia Militar e Corpos de Bombeiros, no
ano de 2006, os equipamentos coletivos que possuem são: 11 auditórios, 5
ginásios, 15 refeitórios, 10 salas de estudo, 14 quadras de esporte e 7 pisci-
nas. Sobre as 12 academias que registraram ter laboratórios de informática,
4 declararam que os laboratórios precisam de reformas e 8 que os laborató-
rios estão em boa condição de conservação. Contudo, não há informações
sobre a existência de bibliotecas.
Há como um véu, uma invisibilidade pela qual tivemos uma enorme
dificuldade em conseguir informações sobre as propostas pedagógicas, os
mapas curriculares, a distribuição das disciplinas por créditos (horas-aula),
os sistemas de avaliação, as ementas e bibliografia adotadas, a formação e
titulação dos docentes.
Um novo período de transformações na sociedade brasileira foi aber-
to desde a Constituição de 1988. Porém, foi pouco discutida a questão da
reforma das polícias e das mudanças na educação policial: há um déficit na
agenda política e educacional no Brasil, de todas as instituições – dos par-
tidos políticos, das organizações policiais, das Universidades – que não le-
varam em conta a necessidade de refletirmos sobre a formação das polícias.
Anos depois da promulgação da Constituição de 1988, mesmo havendo
formas inovadoras na administração da Justiça Criminal (Azevedo, 2000).
A questão policial, a partir da experiência brasileira recente, compõe-se
de várias dimensões: crise institucional, cultura organizacional, violência
policial, educação policial e as alternativas sociais para os dilemas do ofício
de policial. A análise de Kant de Lima assinala: “As atividades policiais orga-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 261

nizam-se conforme os princípios da ética policial, um conjunto extraoficial


de regras produzidas e reproduzidas pelo processo tradicional de transmis-
são do conhecimento” (Lima, 1995, p. 9).7
Partimos da identificação da presença da violência, exercida ou vivida,
no ofício de policial, ao lado das funções de uso legal da coerção física e de
agentes da integração social, a fim de salientar as possibilidades de um tra-
balho policial sem risco de vida para o agente público e sem colocar vidas
em risco entre a população.
A partir das denúncias de graves violações de direitos humanos por
parte de membros das polícias civis e militares, uma das dificuldades é como
garantir o respeito aos direitos humanos em todos os momentos da ativi-
dade policial (Mingardi, 1992; Lima, 1999; Lemgruber, Musumeci e Cano,
2003; Zaverucha, 2003). A violência exercida por membros das polícias civis
e militares têm como origem uma cultura do ofício de policial marcada pela
dominação masculina, pelo machismo, mas também pela cultura de “ho-
mem de fronteira” e, mais recentemente, do policial-herói. Já no processo
de socialização do policial, no caso de várias Academias de Polícia Militar,
ao lado do currículo oficial, vigora um currículo oculto (Linhares, 1999;
Albuquerque e Machado, 2001).
No processo de transição para a democracia, no Brasil, a partir de
1985, houve uma larga mobilização de diferentes setores da sociedade e do
Estado para propor alterações durante o de debate e de votação da nova
Constituição. Como resultado, a Carta Constitucional de 1988 apresentou
a incorporação de propostas bastante democráticas, em relação a direitos
civis, políticos e sociais. Na esfera da segurança pública, paradoxalmente,
configuram-se problemas tanto para a sociedade civil – pois se organizam
mobilizações e lutas sociais contra a violência – quanto para as instituições
políticas, o Estado e os Poderes Legislativo e Judiciário, no sentido de apro-
fundar as regras democráticas – sejam aquelas da democracia representati-
va, sejam as da democracia participativas (Bobbio, 1986).

7 Ver também: Roberto Kant de Lima, “Tradição inquisitorial no Brasil, da Colônia à


República: da devassa ao inquérito policial”. Religião e Sociedade, 1992, p. 94-113.
262 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

As mobilizações das Polícias Civis e Militares em 10 Estados Brasilei-


ros - nos meses de junho a agosto de 1997, de 1999 e de 2001 – colocaram,
de forma aguda, os dilemas do processo de democratização das instituições
públicas no Brasil. A reivindicação salarial teve o mérito de desnudar a con-
flitualidade existente dentro das organizações policiais, na relação entre Es-
tado e Polícia e na interação Polícia – Sociedade (Oliveira, 2001).
As medidas propostas pelo Governo Federal, em 1997, as quais tiveram
resultados poucos efetivos no Congresso Nacional, abordaram várias face-
tas do problema, podendo ser resumidas em quatro classes: modernização e
transparência institucional; formação dos Policiais; condições de trabalho e
de vida; e controle político. No que se refere à segunda ordem de problemas,
a Formação dos Policiais, foram sugeridas as seguintes inovações: inclusão
das disciplinas de Direitos Humanos em todos os cursos de formação de
policiais; treinamento para só utilizar armas de fogo em casos extremos;
financiamento da capacitação para os policiais.
De modo geral, tais medidas inicialmente propostas pela Secretaria Na-
cional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, todas relacionadas a
uma proposta de modernização das polícias, não tiveram grande acolhida
tanto pelas Policias Militares quanto pelos Governadores, temerosos de per-
der uma substancial força pública estadual, dupla recusa que fez não pro-
gredirem os projetos no Congresso Nacional. Deve-se ressaltar, ainda, que
o Executivo não se empenhou em priorizá-las na agenda política. Enfim,
a perda da legitimidade das polícias foi percebida pelo próprio Governo
Federal: “A população tem pouca confiança em algumas organizações poli-
ciais e em organizações do sistema de justiça criminal – identificadas como
parciais, que protegem os direitos e interesses dos grupos de alta renda em
detrimento dos grupos de baixa renda” (Ministério da Justiça, 1999).
A crise das polícias brasileiras expressa o paradoxo de um processo de
democratização que não consegue equacionar, de modo coerente, a ques-
tão policial, cujos sintomas são expressivos: denúncias de violência policial,
caráter militarizado das Polícias Militares Estaduais, corrupção, dualidades
de condutas operacionais, foro privilegiado nas Justiças Militares Estaduais
(Lima, Misse e Miranda, 2000; Mesquita Neto, 2002).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 263

Debilidades do Ensino Policial


As modalidades atuais de formação policial ressentem-se de problemas
estruturais das organizações policiais brasileiras, em especial da fragmen-
tação dos serviços operacionais, da supervalorização da cultura jurídica de
orientação do direito positivo, de uma metodologia baseada na enumeração
desproporcional de conteúdos, com uma metodologia de avaliação basica-
mente memorialista (Sá, 2002; Baliero, 2003; Nummer, 2004; Silva, 2011;
Rondon Filho, 2011; Glaucíria, Almeida e Freitas, 2011). A fragmentação
dos serviços expressa uma disputa de competências entre as polícias – Po-
lícia Federal, Policia Civil, Policia Militar, Guardas Municipais – bem como
os problemas relativos à regulação das empresas privadas de segurança. Tal
dispersão reflete-se na formação policial, pois ora existe uma duplicação de
instituições de ensino policial – quase todos os Estados brasileiros têm duas
escolas, as Academias da Polícia Militar e a Escola de Polícia da Polícia Civil
– ora inexistem centros de formação sistemática. Este é o caso da descen-
tralização pela via da “municipalização” de algumas funções policiais, pois
a maioria das Guardas Municipais (com exceção de grandes cidades), não
tem centros de formação sistemática.
A transição do regime militar para o atual regime civil implicou um
conjunto de confrontos sociais e políticos em torno do destino das insti-
tuições públicas e de seus papéis construídos em um socialmente almejado
processo de democratização. A ideia de democracia passou a atuar como
importante catalisador das lutas sociais pelo poder na sociedade brasileira.
Nesse contexto de luta, houve intenso debate entre diversos setores da so-
ciedade sobre os lugares que deveriam ocupar a Justiça e os organismos res-
ponsáveis pela segurança pública na reconstrução do Estado democrático.
Nessa perspectiva, há inúmeros dilemas. Em primeiro lugar, a dualida-
des das carreiras: seleção e a formação do profissional policial, tanto militar
quanto civil, é dupla, uma carreira para praças e outra para oficiais; uma
carreira uma para escrivães e investigadores, outra para delegados. Em se-
gundo lugar, no processo de socialização do policial, no caso de várias Aca-
demias de Policia Militar, ao lado do currículo oficial, vigora um currículo
oculto. A cultura institucional das Academias tem sido orientada pela do-
264 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

minação masculina, pelo machismo, mas também pela cultura de “homem


de fronteira” e, mais recentemente, do policial – herói (Nummer, 2004). Em
terceiro lugar, não é de se estranhar, portanto, a ausência de conteúdos re-
ferentes a sistemas de informação, desde a informatização dos boletins de
ocorrência, em redes on line, tais como o georeferenciamento das ocorrên-
cias, importante para o policiamento ostensivo, porque ele permite planejar
o posicionamento de patrulhas e de policiais na rua, e para a investigação.

As academias de Polícia Militar


Uma pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública
do Ministério da Justiça (SENASP/MJ) obteve, em 2005, informações a res-
peito de 24 academias de Polícia Militar e de Corpos de Bombeiros Militares,
distribuídas entre 17 estados. No ano seguinte, foram obtidas informações a
respeito de 20 academias distribuídas entre 14 estados (BRASIL, 2008). Em
termos de instalações, cerca de 10 Academias de Polícia Militar e Corpos de
Bombeiros Militares responderam sobre as condições de laboratórios de in-
formática: este conjunto reúne 19 laboratórios de informática com capacidade
total para 273 profissionais. Em termos de acesso à Internet, o número de
Academias de Polícia Militar e de Corpos de Bombeiros Militares integrados
com redes de informática diminuiu de 2005 para 2006, passando de 83% para
70%. Já o número de Academias de Polícia Militar e de Corpos de Bombeiros
Militares com acesso à TV a cabo diminuiu de 2005 para 2006, passando de
29% para 20%. No que se refere a Bibliotecas, o número de Academias de Po-
lícia Militar e de Corpos de Bombeiros Militares com biblioteca era de 18 em
2006. Avaliando a quantidade de livros existentes nos acervos das bibliotecas
segundo áreas de interesse, verificamos que o número de livros por biblioteca
diminuiu, de 2005 para 2006, passando de 4.926 para 4.083. O total do acervo
era de 83.747, em 2006, dos quais 73.458 foram classificados como “outras
áreas”. Reordenando esses temas, podemos afirmar que as três grandes áreas
são: Ciências Jurídicas, Tecnologias Policiais e Emergências.
As informações sobre o Corpo Profissional existente nas Academias
de Polícia Militar e de Corpos de Bombeiros Militares segundo o grau de
instrução indicam em 2006, em um universo de 2.266 profissionais, que
Violência, Polícia, Justiça e Punição 265

22% concluíram o Ensino Superior Completo e Cursos de Pós-Graduação.


A promoção de cursos integrados com outras instituições de segurança pú-
blica passou a ser feita em 75% das academias. As instituições com as quais
é mais frequente esse tipo de integração são a Polícia Civil, os Corpos de
Bombeiros Militares, as universidades públicas (15 Academias em 2006) e
a Secretaria Nacional de Segurança Pública. Menos registradas são articula-
ções com organizações da sociedade civil e da defesa civil nacional.
Recente pesquisa da SENASP/MJ sobre as Escolas e Academias de Po-
lícia no Brasil, publicada no ano de 2013, identificou algumas caraterísticas
estruturais das Unidades de Ensino Policial. Em sua maioria, elas funcionam
em prédios independentes e em local de fácil acesso a sistemas de transpor-
tes públicos. Estes são elementos que influenciam o processo de formação e
aprendizagem nas academias e que contribuem seja com o acesso dos alu-
nos às unidades de ensino seja quanto à motivação para participação nos
cursos em unidades com estrutura independente de outros espaços.
Os dados indicam que a grande maioria dos Diretores ou Comandantes
das Unidades de Ensino ocupa esta posição pela primeira vez, o que evi-
dencia uma rotatividade de cargos que não tendem a se ou manter por lon-
go período. Por outro lado, percebe-se que há uma representação feminina
ainda reduzida nesses cargos. Com relação à cor, os Diretores declararam
ser, na sua maioria, de cor negra. A formação acadêmica é concentrada nas
áreas de Direito e no Curso de Formação de Oficiais: a maioria realizou Pós-
-graduação antes de ser Diretor da Unidade de Ensino.
O tempo que o aluno deve permanecer na Unidade de Ensino para
integralizar o total de horas (44 casos informados) em sua maioria é de 6
meses (20 casos), variando para um ano a um ano e seis meses (12 casos),
havendo currículo previamente determinado pelo menos, na metade dos
casos. O currículo que orienta a formação do recém-aprovado em concurso
público foi formulado majoritariamente depois de 2001, sendo que a maior
parte segue a Matriz Curricular da SENASP. Foi possível observar que há
uma tentativa de manter um equilíbrio entre as disciplinas de cunho “teóri-
co” e disciplinas de cunho “prático”, sendo que a formação prática é estrutu-
rada a partir da combinação de estágios e simulações.
266 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

A existência de um procedimento que procure verificar a adequabi-


lidade do currículo do curso de acesso está previsto na metade dos ca-
sos. Porém, a discussão acerca dos currículos foi majoritariamente feita
por grupos das próprias corporações, bem como, não houve comparação
com outros estados e tampouco com outros países. Na maioria dos casos a
avaliação das disciplinas foi feita a partir de um Questionário preenchido
pelos alunos ao final do curso.
A maioria dos professores são policiais, selecionados mediante um pro-
cesso de convite das direções, sendo que menos da metade é por expertise
na área ou carreira de origem do professor. Apenas 30% das unidades men-
cionaram a existência de cursos de formação continuada, embora quase to-
dos sigam a Matriz curricular da SENASP.
Na maioria das academias, não há previsão de cursos de reciclagem
para os casos de desvio de conduta ou operação inadequada, embora haja,
em metade dos casos, algum tipo de acompanhamento psicológico. Foi ob-
servado um percentual importante de Unidades de Ensino que ainda não
foram certificadas pelo Ministério da Educação ou por Conselho Estadu-
al de Educação. Entrementes, para a metade das unidades não há nenhum
projeto de criação de curso de graduação tecnólogo.
Houve mudanças nos cursos de formação de policiais militares, pois
iniciou a exigência do Ensino Médio na seleção, e atualmente algumas Polí-
cias começam a prever a necessidade do Ensino Superior para ingresso nos
níveis iniciais da carreira. Evidenciaram-se a importância do relacionamen-
to com as universidades e a necessidade de superar estigmas recíprocos.
Há experiências de inovação curricular, de processos de ensino-apren-
dizagem, de metodologias didáticas e de integração institucional. No Rio
Grande do Sul, em 1997, foi aprovada uma nova lei para a Brigada Militar,
pela qual as pessoas entram para as academias de curso superior e lá perma-
necem por dois anos (RUDNICKI, 2007). Em Minas Gerais, foi aprovada
lei nos mesmos termos em 2010. Em São Paulo, já há um debate sobre a
questão, ainda inconcluso.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 267

As escolas da Polícia Civil


No caso das Escolas de Polícia Civil, vale insistir, a formação dos poli-
ciais é orientada pelo direito positivo e formalista, restando pouco espaço
para disciplinas propriamente referentes ao exercício do ofício de polícia,
tais como investigação criminal, mediação de conflitos, gestão do desempe-
nho policial e análise de informações criminais.
Poucas horas estão dedicadas à investigação criminal ou à construção,
monitoramento e análise de sistemas de informação. Em contrapartida, a
incorporação das Ciências Humanas começa a ocorrer em vários cursos de
formação de policiais.
Também fazem parte desta cultura que orienta a formação prática dos
policiais, inserida em um curriculum oculto das academias de polícia, os
efeitos dos meios de comunicação de massa que provocam a transformação
dos atos de violência extraordinária em violência ordinária, com a exaltação
do policial repressivo ou do policial-herói, o que despreza toda a relevância
social do ofício de policial e, principalmente, as funções de prevenção da
criminalidade, de investigação policial de ocorrências e de responsabilidade
social dos policiais.
O fenômeno mais relevante deste diálogo com as Universidades foi a
implementação da RENAESP – Rede Nacional de Especialização em Segu-
rança Pública, pela SENASP do Ministério da Justiça, em 2006. O objetivo
da RENAESP era o credenciamento de Instituições de Ensino Superior para
a promoção de cursos de especialização em Segurança Pública para difundir
entre os profissionais de segurança pública e, deste modo, entre as institui-
ções em que trabalham, o conhecimento e capacidade crítica, necessários à
construção de um novo modo de fazer segurança pública, compromissado
com a cidadania, os Direitos Humanos e a construção da paz social e articu-
lado com os avanços científicos e o saber acumulado”.8

8 Site do Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública: <http://www.


mj.gov.br/senasp>. Acesso em: 22 abr. 2018.
268 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Segundo o Ministério da Justiça, em 2012, os objetivos da RENAESP são:

I - democratização do acesso ao conhecimento técnico-científico


aos profissionais de segurança pública, independentemente do car-
go, hierarquia, patente, categoria profissional ou classe;
II - aprimoramento dos profissionais de segurança pública, por
meio de uma formação acadêmica multidisciplinar, orientada para
o fortalecimento da cidadania e dos direitos humanos; e
III - valorização da participação dos profissionais de segurança pú-
blica no ambiente acadêmico.
Art. 2º - São objetivos da Renaesp:
I - propiciar o acesso gratuito dos profissionais de segurança públi-
ca aos processos de aprendizagem e de aperfeiçoamento profissio-
nal, especialmente em cursos de pós-graduação lato sensu;
II - fomentar o aperfeiçoamento das atividades e dos instrumentos
de gestão em segurança pública;
III - incentivar as instituições de ensino superior - IES a promove-
rem cursos e implantarem núcleos e centros de estudos e pesquisas
dedicados ao tema segurança pública;
IV - promover a capacitação dos profissionais de segurança públi-
ca, em consonância com a Matriz Curricular Nacional para Ações
Formativas dos Profissionais de Segurança Pública, aprovada pela
Senasp; e
V - promover a produção de artigos científicos e monografias so-
bre segurança pública e temas correlatos (Fonte: MINISTÉRIO DA
JUSTIÇA GABINETE DO MINISTRO. PORTARIA Nº 1.148, DE
12 DE JUNHO DE 2012. DOU de 13/06/2012 (nº 113, Seção 1,
pág. 60). Institui a Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança
Pública – Renaesp.

Os objetivos da RENAESP são: articular o conhecimento prático dos


policiais, adquiridos no seu dia-a-dia profissional, com os conhecimentos
produzidos no ambiente acadêmico; difundir e reforçar a construção de
uma cultura de segurança pública fundada nos paradigmas da modernida-
de, da inteligência, da informação e do exercício de competências estratégi-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 269

cas, técnicas e científicas; incentivar a elaboração de estudos, diagnósticos e


pesquisas aplicadas em Segurança Pública que contribuam para o processo
de institucionalização do SUSP – Sistema Unificado de Segurança Pública
(disponível em: <http://portal.mj.gov.br>. Acesso em: 22 abr. 2018).
No ano de 2010, funcionavam 85 Cursos de Especialização em Segu-
rança Pública, Direitos Humanos e Cidadania, em 63 Instituições de Ensino
Superior, tendo como alunos profissionais da segurança pública e do públi-
co em geral. Há alguns conteúdos obrigatórios (dentro das 360 horas regula-
res): Sociologia da Violência, Direitos Humanos, Violência contra a mulher
e a criança, Análise da violência homofóbica e Administração pública.
Os conteúdos restantes são organizados pelas universidades, porém há
uma ênfase em Ciências Sociais e na mediação de conflitos. Este programa
aproximou os setores de segurança pública dos Estados e as universidades no
Brasil: de um lado, a tradicional formação técnica e operacional e o estudo
das leis; do outro, incorpora a enraizada formação acadêmica, com a com-
preensão científica dos fenômenos sociais, históricos, econômicos e culturais.
Assim, construiu-se um processo de diálogo entre universidades e órgãos de
segurança pública, configurando um debate sobre novos rumos aos modelos
de policiar, orientados no sentido de democratização das relações sociais.
Foram realizadas duas pesquisas de avaliação da RENAESP. A primeira,
realizada por Renato Lima e seus colaborares, concluiu que a “Renaesp con-
siste em uma política pública inovadora para a qualificação dos profissionais
de segurança pública de todo o país, para a aproximação dos diversos atores
que trabalham nessa área, bem como para a promoção deste tema como
uma área de ensino e pesquisa. (...). Portanto, não apenas atestamos a rele-
vância e inovação da Renaesp, como também sua capacidade de reinventar-
-se e potencializar ainda mais seus efeitos”. (LIMA et alii, 2014, p. 222).
A segunda pesquisa concluiu também de modo positivo: “ Tomando
como base as contribuições dos coordenadores, todos destacaram a impor-
tância do investimento da Senasp com a criação da Renaesp. (...) . Se, por
um lado, a Rede potencializou o trabalho daqueles que já tinham inserção
no campo da Segurança Pública, por outro, fez com que interessados no
tema, mas sem inserção anterior, pudessem “conhecer esse campo”. (...).
270 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Vale destacar que os cursos aparecem para os coordenadores como uma


importante oportunidade do público policial ter acesso à universidade/fa-
culdade como também a possibilidade de professores aprenderem com es-
ses alunos. A relação dialógica que essa experiência estabeleceu permitiu,
segundo os coordenadores, aprendizados em múltiplas direções. Os efeitos,
portanto, desta experiência se traduziram numa ordem subjetiva, tanto para
os discentes, que puderam apreender novas visões de mundo, como para
os docentes, que também precisaram fazer um exercício “relativizador” que
os permitiu compreender e valorizar os profissionais de polícia” (PINTO et
alii, 2014, p. 254-255).

As experiências de integração
Salientamos que o objetivo deste item é realizar uma avaliação das ex-
periências de integração institucional das Academias de Polícia Militar e
das Escolas da Polícia Civil, em particular nos Estados do Rio Grande do
Sul, Ceará e Pará. Pretende-se conhecer as opiniões e avaliações de todos os
atores sociais envolvidos em tais experiências – gestores, administradores,
professores e alunos – bem como os objetivos pedagógicos formulados, os
mapas curriculares, as disciplinas (ementas, conteúdos, bibliografia e siste-
ma de avaliação) e a metodologia de ensino-aprendizagem.
O período escolhido para a análise começa no ano de 1993, no Rio
Grande do Sul, com ênfase no convênio entre a Academia da Brigada Militar
e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mediante o qual professores
universitários ministraram disciplinas nos Cursos de Aperfeiçoamento de
Oficiais. Durante o Governo Olívio Dutra (1999-2002), com a realização
do Curso de Formação Unificada de novos policiais civis, militares e agen-
tes penitenciários, cerca de 90 professores e estudantes de pós-graduação
envolveram-se nas atividades de ensino.
No Estado do Ceará, em meados da década de 90, durante o governo
Jereissati, houve acordos semelhantes tanto com a Universidade Federal do
Ceará quanto com a Universidade Estadual do Ceará (Barreira, 2004; Bra-
sil, 2000). Houve a efetivação de um convênio da Secretaria de Segurança
Pública do Ceará com a Universidade Estadual do Ceará (UECE), através
Violência, Polícia, Justiça e Punição 271

do Instituto de Estudos e Pesquisas e Projetos (IEPRO) com objetivo de


melhoria técnico-profissional e cultural dos profissionais de segurança pú-
blica, em 2000. Também houve o envolvimento sistemático de professores e
estudantes de pós-graduação da Universidade Federal do Ceará.
No Pará, houve a formação de um sistema de ensino policial integrado,
tendo como órgãos principais o Instituto de ensino de segurança do Pará
(IESP) e o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP). A
política de integração do sistema de Segurança Pública e Defesa Social, ado-
tado no Estado do Pará, é a diretriz da formação dos agentes de segurança
tanto no nível dos oficiais como das praças uma grande importância.
Desencadearam-se processos de colaboração entre as academias de
vários Estados, como Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Ceará, Pará, etc.
Consequentemente, discute-se a constituição de uma academia unificada,
embora as resistências sejam flagrantes. Algumas experiências de formação
unificada começaram no Pará e no Rio Grande do Sul, durante o Governo
Olívio Dutra (Abreu, 2005; Adorno, 1993).
O eixo fundamental da Academia integrada de segurança pública como
no caso do Rio Grande do Sul entre 1999 e 2001, foi transformar as práticas
policiais, contendo a valorização dos recursos humanos: a formação dos no-
vos servidores. Ou seja, recém ingressados na carreira de Soldados da Bri-
gada Militar, portadores de diploma de 2º grau; na carreira de investigador e
escrevente da Polícia Civil, portadores de diploma de 2º grau com muitos já
cursando o ensino superior; e ingressantes nos Serviços Penitenciários, por-
tadores de diploma de 2º grau, alguns já tendo cursado o Ensino Superior ou
ainda cursando. Outro objetivo foi a atualização profissional dos servidores
dentro da nova concepção pedagógica, assim como a estruturação de um
centro avançado de treinamento em segurança pública.
A proposta foi no sentido de que, metodologicamente, os cursos desen-
volvidos fossem espaço de construção de consciência social dos diferentes
atores envolvidos na concretização de um processo pedagógico.
A experiência de relacionamento entre alunos e professores foi, de
modo geral, bastante satisfatória, com interações derivadas, por um lado, da
experiência didática dos professores vindos das Universidades e, por outro
272 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

lado, pela novidade que os conteúdos ofereciam aos alunos, muitos deles
recém chegados do 2º grau. No caso do RGS, havia uma forte disparidade
na escolaridade dos alunos, pois as turmas eram tinham três componentes:
alunos novos da Brigada Militar, recém-saídos do 2º grau; da Polícia Civil,
alguns já tinham até cursos superiores, o mesmo se passando com os ingres-
santes nos Serviços Penitenciários.
Uma das principais mudanças ocorridas com a participação dos pro-
fessores da Universidade nos Cursos da Secretaria da Justiça e da Segurança
do RS foram práticas em sala de aula. Incentivou-se outra forma de ensinar
com novos pressupostos; novas disciplinas foram introduzidas, com outro
enfoque; novas leituras foram estimuladas e muitos debates refletiram sobre
um novo modelo de polícia.
A análise comparativa dos Cursos integrados com os Cursos especí-
ficos em funcionamento na Secretaria indicava um avanço no sentido de
redução das horas aula da área jurídica; as disciplinas administrativas e as
chamadas científicas e operacionais, no entanto, não acompanham esta re-
dução. A análise também ressaltava a ausência de um corpo docente per-
manente, bem remunerado, para fazer face à experiência percebida como
positiva, bem como salientaram a necessidade de mais recursos para que as
instituições pudessem dar cabo da tarefa.
Outro elemento trazido pelos convênios foi uma reflexão teórica sobre
as práticas sociais e existenciais, levando aos alunos um exercício de ativi-
dade teórica que certamente foi uma novidade no ensino policial. Todavia,
as dificuldades de leitura por parte dos alunos foram marcantes, acentuadas
pela carência de biblioteca e de acesso a livros (Koch, 2005). Em outras pa-
lavras, a presença de várias instituições com poder pedagógico dentro do
Curso Unificado, no caso do RGS, acarretou obstáculos, embora a experi-
ência de convênios entre as Universidades e as organizações policiais tenha
sido percebida como de alta relevância.
No caso do Pará, durante os debates sobre a nova formação profissio-
nal dos quadros da PMPA, os críticos ao modelo de formação tradicional se
destacaram ao afirmar que o sucesso da integração resultaria, fundamental-
mente, do alinhamento de três dimensões: (1) a forma de se pensar democra-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 273

ticamente a segurança pública; (2) o discurso coerente com os princípios da


integração; e (3) o exercício de ações efetivas de transformação da realidade,
sintonizadas com a retórica do processo. Em síntese, justificavam que se deve-
ria pensar, falar e agir de forma integrada (Barp, Brito e Oliveira Neto, 2005).
A construção do conhecimento profissional integrativo era, portanto,
entendido pelos defensores do novo modelo de formação como o início do
processo e não o fim, pois a questão não se resume apenas em deter co-
nhecimento técnico-profissional, mas sim exercer uma conduta integrativa.
Daí, a necessidade apontada de se voltar à atenção, sobretudo, para uma
formação mais reflexiva e humanística que procure reorientar as condutas
individuais dos atores da segurança pública no Pará.
Porém, os críticos observam que decorridos anos da criação do institu-
to, suas unidades acadêmicas, isto é, as academias de formação das polícias
civil e militar e do corpo de bombeiros do Estado continuam trabalhando
de forma autônoma como antes, ou seja, planejam e coordenam isolada-
mente seus cursos profissionais. A diferença é que, agora, se encontram ins-
taladas no mesmo espaço físico.
No mesmo espaço físico, através da observação direta, identificamos que
os alunos das três instituições integradas no IESP são tratados de maneiras di-
ferentes, segundo a cultura institucional na qual está inserido. Partindo dessa
observação empírica, supomos que o modelo implementado no IESP não está
de fato integrando, mas sim, preservando o distanciamento entre as instituições.
Desde 2001, são realizadas duas importantes experiências pedagógicas
que integram alunos de diferentes instituições do sistema de segurança pú-
blica do Estado e os quadros docentes das universidades públicas, no pro-
cesso de construção de um novo saber profissional. Tratam-se dos cursos de
especialização lato sensu em: (1) Segurança Pública e Defesa Social; (2) Ges-
tão Estratégica em Segurança Pública e Defesa Social; (3) Gestão Estratégica
em Defesa Social e Cidadania, realizados em parceria com a Universidade
Federal do Pará e a Universidade do Estado do Pará.
No caso do Ceará, as parcerias diretamente relacionadas com a forma-
ção e consequentemente com a qualificação das polícias estaduais podem
ser compreendidas e descritas a partir de três iniciativas (Brasil, 2005). A
274 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

primeira diz respeito às parcerias para realização de atividades que envolve-


ram projetos voltados para suprir necessidades de curto prazo como o Cur-
so Especial de Inteligência, ministrado para profissionais da inteligência, em
2000, para a Polícia Militar, Civil e Corpo de Bombeiros. Outro curso foi o
Curso de Especialização em Gestão de Segurança Pública, destinado a ofi-
ciais da PM, CBM e a delegados e profissionais de nível superior da Polícia
Civil, realizado no período de 2001-2002.
A segunda iniciativa compreende a consolidação de uma parceria que
celebra novos convênios para a realização da Seleção de Soldados para a
Polícia Militar com a UECE. Esse concurso Público realizado no Ceará, em
2000, com cerca de 5 mil candidatos, pela primeira vez, com exigência de 2º
grau completo. Foi realizado também o Curso de Instrutores da Capacitação
Inicial para os Soldados Selecionados. Este treinamento didático-pedagógi-
co e de relacionamento, ministrado aos instrutores do Curso de Formação
de Soldados de Fileiras da PM-CE, em 2000. Também houve outros cursos:
o Curso de Formação de Soldados de Fileiras da PM-CE; o Curso de Forma-
ção de Inspetor da Polícia Civil e Auxiliar de Perícia, ambos em 2001.
A terceira iniciativa é responsável pela articulação de uma parceria de
continuidade, a longo prazo, entre a SSPDC e a UECE/IEPRO que tinha
como pano de fundo a discussão e elaboração de projetos como o Cam-
pus Virtual da Segurança Pública e a Educação Continuada para o Sistema
de Segurança Pública. O desenho do processo de integração compreende a
participação de instrutores das academias de policia militar e civil no ensi-
no de disciplinas consideradas mais operacionais, ou seja, diretamente re-
lacionadas ao fazer policial, como prática de tiro, investigação e inquérito
policial, defesa pessoal e a questão da disciplina e da hierarquia, aos ritos
e rituais da profissão (na PM, a disciplina é denominada ordem unida, re-
manescente do antigo currículo). As disciplinas de fundamentação teórica,
do domínio das Ciências Humanas e Sociais as diretamente relacionadas às
questões da cidadania e dos direitos humanos ficam a cargo dos professores
da Universidade que participam do convênio.
Tal movimento de reforma do trabalho policial tem sido marcado pela co-
laboração, entre Universidades e Academias e Escolas de Polícia, em vários Es-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 275

tados brasileiros, nos últimos anos, indicando um lento movimento de trans-


formação de currículos, de conteúdos e de concepção do ofício de policial.
Assistimos, no Brasil, a algumas experiências de formação em técni-
cas penais orientadas pelo respeito à vida humana. No tocante às matérias
de técnicas policiais, o Curso que a Cruz Vermelha Internacional ofereceu
acerca do uso da força e do uso de armas de fogo, orientado pelo respeito aos
direitos humanos, de policiais e de cidadãos foi uma significativa experiên-
cia. Participaram policiais de vários Estados (Bahia, São Paulo, Minas Ge-
rais, Rio Grande do Sul, etc.), no período 1998-2002 (Cordeiro, 2003). Esta
interessante experiência desenvolveu o treinamento em técnicas policiais
que reduzem o risco de vida, questão ainda maior ao tratarmos dos Policiais
Militares que estão em serviço e carecem de uma formação permanente. A
orientação do uso de armas de fogo é um elemento central do “risco de vida”
da profissão, tanto para o policial quanto para os cidadãos.
No bojo de tais experiências, houve a melhoria da formação dos policiais,
pois a presença de vários profissionais que vieram dar aulas nas academias de
polícia, de algum modo trouxe outras visões de sociedade. Partiu-se de um
legado da tutela militar sobre o ensino, passando pela realização de convênios
com Universidades Públicas, federais e estaduais, e os processos de reestru-
turação dos currículos. Houve, então, a incorporação das ciências humanas.
No início do Governo de Luiz Ignácio Lula da Silva (2003-2006), foi
implementado o Plano Nacional de Segurança Pública, o qual propõs uma
nova visão acerca do direito à segurança. Tem início, ao que parece, uma
trajetória de um policial voltado para a segurança do cidadão. Emergem for-
ças sociais de resistência, novos movimentos sociais, a crítica aos processos
sociais de construção da violência simbólica e das “representações sociais
da insegurança”, e as concepções de uma Polícia Cidadã orientada para a
mediação de conflitos, a prevenção e erradicação das formas de violência
social; enfim, a elaboração de outro modelo trabalho policial (Porto, 1994).
Outra abordagem começa a ser formulada para a formação dos poli-
ciais. Os efeitos foram vários: inicialmente, o problema da seleção dos poli-
ciais; em segundo lugar, a clareza quanto às situações de risco psicológico na
qual podem se envolver os policiais no dia a dia, sugerindo a necessidade de
276 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

se desenvolver a formação permanente. Em terceiro lugar, ainda pouco sa-


lientada, está a questão da saúde mental dos policiais, serviço ainda inexis-
tente tanto nas academias quanto ao longo de seu trabalho. A reivindicação
por um corpo permanente de professores é reiterada, uma condição para
poder formular e aplicar uma filosofia de ensino, assim como a necessidade
da reformulação dos currículos.
Emerge a busca por uma especificidade da formação do policial, entre
as matérias de ciências sociais e ciências sociais aplicadas, como o Direi-
to, e as matérias técnicas da profissão de polícia. Esta incorporação exige
uma formação de professores de ciências humanas que compreendam o
trabalho das policiais
Um Sistema de Segurança Pública democrático passa, antes de tudo,
por qualificação humana e capacitação técnica dos operadores diretos do
sistema, os policiais civis e militares e os bombeiros militares. Não há qua-
lificação e capacitação sem educação. Não há educação que possa depender
exclusivamente de elementos adquiridos antes e fora das instituições.

Processos não-lineares na Educação Policial


Segurança cidadã e democracia tornaram-se o foco de variadas ações
educacionais, com cursos e programas para atualizar as concepções e práticas
de formação na área da segurança pública e cidadã. Entre seus objetivos bus-
cou-se a criação de novos princípios, métodos e técnicas que pudessem orien-
tar acompanhar e avaliar as práticas institucionais e seus impasses sociais.
A incorporação da disciplina de Direitos Humanos foi mais problemá-
tica, embora um dos efeitos dos anos 90 tenha sido uma nova percepção
do tema dos direitos humanos. A perspectiva reside na formação de um
policial, de um profissional de segurança pública: o exercício da coerção
legal passa a ser orientada pelos princípios do Estado de Direito (Balestreri,
2003a; 2033b; 2000). Houve mudanças também nos cursos de formação de
policiais militares, pois iniciou a exigência do Ensino Médio para a entrada,
o que provoca alterações nos cursos para jovens policiais. Neste contexto, o
aprendizado de técnicas que respeitem a dignidade humana passa a ter um
papel central na definição do ofício de polícia.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 277

Esta realidade aproximou os órgãos de segurança pública dos estados


e as universidades no Brasil. De um lado, junto aos primeiros, a tradicional
formação técnica e operacional e o estudo das leis, onde o objetivo era pre-
parar o profissional para proteger a sociedade contra o chamado mal. E do
outro lado, junto às universidades, teve-se a enraizada formação acadêmica,
com a compreensão científica e dos fenômenos sociais, históricos, econô-
micos e culturais.
Desenvolve-se, portanto, desde a década de 1990, um intercâmbio en-
tre universidades e organizações de segurança pública a fim de visualizar
novos rumos para os modelos de polícia. O processo de educação policial
possibilitará a construção de um saber teórico-prático processual e refle-
xivo, fundado no princípio da complexidade, o qual reconhece a multidi-
mensionalidade do social, a incorporação do indeterminismo, da incerteza
e do risco nas ações coletivas e a ruptura epistemológica no processo de co-
nhecimento das situações sociais. Esta modalidade de saber teórico-prático
poderá contribuir para a renovação das práticas policiais no Brasil.
A questão da formação funda-se em uma dificuldade de redução da
criminalidade e da violência (Zaverucha 2008; 2000). A reforma do ensino
mexeu muito mais com o nível do conhecimento, o nível das habilidades, o
nível das habilidades específicas do policial, do que com os valores, do que
com as atitudes da polícia e dos policiais.
A visão da segurança cidadã, consubstanciada numa polícia voltada aos
fundamentos e princípios constitucionais atuais, cujas bases eram a digni-
dade da pessoa humana e da construção da cidadania, recolocava o conceito
de segurança pública como um direito constitucional de todos os cidadãos.
Para isso, é preciso que todos os órgãos estejam sintonizados e sintam-se
como integrantes de um mesmo sistema e seus objetivos corporativos vol-
tados para o mesmo fim. Integração firmada nos laços de solidariedade, co-
operação, complementaridade e corresponsabilidade (Silva, 2003; Lima e
Paula, 2006; UFF, Instituto de Segurança Pública, 2003).
Como criar uma alternativa, principalmente quando governos popula-
res assumem o comando do controle social, das forças policiais? Como criar
uma alternativa no qual possamos ter um processo civilizador de superação
278 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

das formas de violência e de criação da cidadania. Para que os mais pobres,


mais jovens, os mais discriminados deixem de ser as grandes vítimas, e nós
possamos construindo essa agenda pública sobre o direito à segurança, nós
possamos ir além desses tempos de insegurança. Seguindo as indagações de
Adorno (1998, p. 243):

Como pensar uma nova filosofia de controle da ordem pública, ba-


seado em quatro princípios fundamentais – universalidade na apli-
cação das leis penais, imparcialidade, agilidade e custos reduzidos
– que suponha a distribuição da justiça não como um problema de
repressão, de crimes, mas, sobretudo, como prevenção da violência
e oferta efetiva de segurança pública à população?

Emergem forças sociais de resistência, novos movimentos sociais, a


crítica aos processos sociais de construção da violência simbólica e das re-
presentações sociais da insegurança e as concepções de uma Polícia Cidadã
orientada para a mediação de conflitos, a prevenção e erradicação da formas
de violência social; enfim, a elaboração de outro modelo trabalho policial
(Soares, 2000; Pinheiro, 2000).
Estamos diante da necessidade de uma construção institucional, de in-
dução de projetos, de crítica teórica e de avaliação de experiências, para que
se configurem as inúmeras possibilidades de um Sistema de Educação Poli-
cial nos moldes da sociedade brasileira contemporânea e segundo os valo-
res do Estado Democrático de Direito. As dificuldades, as experiências e as
possibilidades da reforma da educação policial exigem a análise sociológica
da construção social de uma organização policial democrática, não violenta
e transcultural, retomando o objetivo do policial como ofício de uma gover-
nabilidade emancipatória dos cidadãos e cidadãs. Este caminho de marchas,
regressos e contrapassos revela a tarefa democrática radical no sentido de
avançar nas mudanças teórico-metodológicas da educação policial no Brasil.
A sociedade da modernidade tardia vivencia tal mundo labiríntico. En-
contramos esta forma institucional nas escolas e academias de polícia: por um
lado, é um lugar fundamental, como toda escola, no qual se produz a sociali-
zação; por outro, observamos uma desvalorização do espaço escolar. Vigora
Violência, Polícia, Justiça e Punição 279

o chamado currículo oculto, ou seja, as pessoas dizem: “Não, vocês podem


estudar, tudo isso é muito bonito, mas vão aprender a profissão é na prática”.
Também estão ausentes no processo de ensino-aprendizado o estudo e
a reflexão sobre as experiências virtuosas de trabalho policial. Sabemos que
70% das ocorrências que uma polícia ostensiva atende no mundo inteiro
são conflitos ainda não criminais. Porém, dependendo do modo pelo qual
esse agente policial intervém, o conflito pode derivar para um delito. Verifi-
camos a ausência ou pouquíssimas horas dedicadas à mediação de conflito.
Por outro lado, parece que a Sociologia da violência, desde meados da
década passada, entrou nos currículos, mas, ainda há muito pouco sobre
psicologia da segurança pública, sobre a saúde mental dos profissionais.
Do ponto de vista pedagógico, há um arcaísmo: enorme volume de
créditos, aulas somente presenciais, falta de bibliotecas, ausência de um
corpo docente permanente, inclusão de professores civis, procedimentos
de avaliação baseados no memorialismo, relações não-dialógicas entre
professores e alunos.
Nos casos das polícias militares, há uma enorme quantidade de horas-
-aulas, com atividades de paradas, marchas, combate à guerrilha, pouco a
ver com o que a sociedade espera desse profissional. Um caso que é grave é
a inexistência, salvo exceção, do corpo permanente de professores: ou são
externos, ou são policiais aposentados. Novamente, é a cultura do passado
que vem ensinar para o futuro.
Houve várias tentativas corporativas de equiparação de carreiras das
polícias civis e militares com o judiciário, ou no caso da lei que veio depois
das greves de policiais, em 1997 e 2001, definindo as polícias militares
como militares estaduais. Por trás dessas iniciativas, há uma efervescên-
cia no sentido de que pessoas dessas corporações quererem construir um
ofício de polícia.
As experiências de formação integrada que houve no Brasil foram mui-
to importantes, como também foram fundamentais as experiências de con-
vênios com universidades, que começaram com o saudoso professor Paixão
em Minas Gerais, nos novos anos 80, um convênio da polícia militar e a
UFMG. Na mesma época, o professor Theotonio dos Santos, no primeiro
280 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Governo Brizola, organizou cursos de direitos humanos nas escolas de po-


lícias do Rio de Janeiro.
Talvez o melhor legado dos anos 90 tenha sido esse relacionamento ins-
titucional, tanto que já houve cinco fóruns sobre Educação das Polícias em
parceria com Universidades. Tal essa integração possibilitou, por exemplo,
que a SENASP inaugure convênios com Universidades para colaboração so-
bre Laboratórios Periciais, de genética forense, biologia forense e medicina
legal, tentando a incorporação da ciência e da tecnologia ao trabalho policial.
A mais recente experiência foi a ESPC – Escola de Segurança Pública
do Ceará, montada na Gestão do Prof. Dr. César Barreira, entre maio 2011 a
agosto 2012, que propiciou uma abordagem humanista da educação policial,
vindo a fracassar devido à resistência corporativa à inovação pedagógica.

A crise da Educação Policial


A questão fundamental é: como mudar a educação policial composta
por um paradigma tradicional – guiados pelo direito penal e pela crimino-
logia positivista ortodoxa e por doutrinas militares – para uma orientação
que incorpore o conhecimento crítico em Direito, Ciências Sociais e da Po-
lícia tecnologias?
Para estimular essas mudanças, a contribuição entre a universidade e a
Polícia, Academias e Escolas, deve ser estimulada, assim como a avaliação
do sistema de ensino. Os acordos entre escolas de polícia e Universidades
existem para os cursos de graduação, o caso da Argentina e Estados Unidos;
para os cursos de pós-graduação, o caso da Argentina, Brasil (RENAESP),
Estados Unidos e França. Como consequência, em muitas instituições, ob-
servou-se um aumento em sistemas de informação, seguindo a Era da In-
formação (Castel, 2009).
No Ensino Policial, existe uma tensão teórico-epistemológica entre
Treinamento ou Educação. O objetivo do treinamento é ensinar um método
específico de desempenhar uma tarefa ou responder a uma dada situação,
com uma delimitada abrangência. O Treinamento é focado em como levar
a cabo uma tarefa em uma situação particular, orientado a objetivos pre-
cisos. Treinamento policial é um processo de aquisição de conhecimentos
Violência, Polícia, Justiça e Punição 281

particulares ou habilidades necessárias ao trabalho policial, em períodos


delimitados: o objetivo do treinamento é ensinar um método específico de
desempenhar uma tarefa ou responder a uma dada situação, com uma deli-
mitada abrangência.
A Educação envolve o aprendizado de conceitos gerais, termos, polí-
ticas, práticas e teorias. A Educação policial é um processo de transmitir e
adquirir conhecimentos gerais ou específicos relacionadas com a polícia,
que leva à obtenção de um determinado grau. Normalmente, programas
educacionais policiais se estendem ao longo de vários anos.
Portanto, estão em desenvolvimento processos não lineares de trans-
formações na Educação Policial. Vários são os exemplos. Em New York, o
NYPD adota três lemas: profissionalismo, cortesia e respeito. Na Inglater-
ra, adotam a categoria de diversidade, de raça, gênero, habilidades físicas,
orientação sexual, idade, religião e de crenças (International Academy Bra-
mshill, no Reino Unido). Na Irlanda do Norte, a PSNI propõe um Serviço
Policial a uma Comunidade Complexa.
Na esfera conceitual da “sociologia do policiar”, há uma tensão entre os
conceitos de “treinamento e formação” dos policiais e o conceito de “educa-
ção policial”, tensão que perpassa o ensino policial.
A expansão da cidadania mundial, a formação de uma sociedade civil
transnacional, exemplificada nos dez Fóruns Sociais Mundiais, têm estimu-
lado uma Educação Policial orientada para a prevenção do crime, para a
redução das formas de violência social e pelas experiências de construção
de outro modo de policiar, a Polícia Cidadã.
Podemos sintetizar o exposto nas análises anteriores em termos de cin-
co tipos de Educação Policial, os quais evidentemente aparecem mesclados
nas realidades empíricas, com predomínio de um ou outro:

Poderíamos afirmar que os três primeiros tipos revelam uma crise


da educação policial, pois não mais respondem às realidades do sé-
culo XXI. Os três tipos seguintes – Profissional, Polícia Comunitá-
ria e Segurança Cidadã – aparecem em distintas combinações, mas
revelam as novas orientações da Educação Policial na Era da Mun-
dialização das Conflitualidades. Após o atentado às Torres Gêmeas
282 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

de Nova York, em 11/09/2001, a agenda das polícias para o século


XXI foi muito alterada. A presença do terrorismo internacional e
do crime organizado transnacional estimulou a repressão militari-
zada nos modelos de policiamento. Por outro lado, fortalece-se o
consenso sobre a ética do trabalho policial como um agente social
promotor dos direitos humanos, fonte da legitimação do processo
das organizações de polícia na Sociedade Civil

Ensino Policial – a tensão conceitual: treinamento ou educação?


A investigação empírica nos levou à seguinte interpretação: no cam-
po da “sociologia dos estudos policiais”, existe uma tensão teórica entre os
conceitos de “treinamento” dos policiais e o conceito de “educação policial”.
Refere-se à educação dos profissionais de segurança, pois estamos
em face de um saber teórico-prático que precisa orientar-se pelo processo
educativo, o qual se fundamenta em profissionais educados, e não apenas
treinados, formados ou, in absurdum, adestrados. Pode-se estabelecer uma
distinção entre “treinamento policial” e “educação policial”, distinção que
salienta as relações entre a educação policial e a pesquisa sobre o policiar. O
objetivo do treinamento é:

[...] ensinar um método específico de desempenhar uma tarefa ou


de responder a uma dada situação. O conteúdo ensinado tem usu-
almente uma delimitada abrangência. Treinamento é focado em
como levar a cabo uma tarefa em uma situação particular, orienta-
do a objetivos precisos. (Haberfeld, 2002, p. 33).

Pagon também define o treinamento nos mesmos moldes: “treinamen-


to policial é um processo de aquisição de conhecimentos particulares ou ha-
bilidades necessárias ao trabalho policial, em períodos delimitados” (Pagon,
1966, p. 45). Ou seja, trata-se de um processo paraa desenvolver conheci-
mentos e habilidades, através da experiência compartida, a fim de alcançar
um desempenhi eficaz em uma atividade ou em um conjunto de atividades.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 283

O ex-Diretor da New York Police Academy acentua que “treinamento,


por definição, é ensinar uma matéria em nível da percepção. Treinamento
é frequentemente associado com instrução prática, repetição, e preparação
para uma habilidade” (O’Keefe, 2004, p. 48).
Por consequência, há uma distinção entre treinamento e educação, afir-
ma Haberfeld (2002, p. 32): “O objetivo do treinamento é ensinar um método
específico de execução de uma tarefa ou responder a uma determinada situa-
ção. O assunto ensinado é geralmente estreito no escopo. Educação envolve a
aprendizagem de conceitos gerais, termos, políticas, práticas e teorias.”
Ou seja, a “educação, por outro lado, situa-se mais no nível conceitu-
al e é tradicionalmente associada com a preparação para uma profissão”
(O’Keefe, 2004, p. 48). A educação policial é definida por Pagon como um
processo de transmissão de conhecimentos gerais ou específicos relaciona-
dos com a Polícia, o qual conduz à obtenção de um grau. Tipicamente, os
programas educacionais de polícia duram vários anos (Pagon, 1966, p. 60).
Na mesma linha, a Academia inglesa define a educação policial como:

[...] atividades destinadas a desenvolver o conhecimento, habilidades,


valores morais e a compreensão necessária em todos os aspectos da
vida, em vez de um conhecimento e habilidades relativas a somente
um campo limitado de atividade. (International Academy Bramshill,
disponível em: <http://www.college.police.uk/en/16278.htm>).

Evocando Paulo Freire, escreve Frigotto (2010, p. 156):

[...] o centro da compreensão de educação por Freire é de que ela


não é adestramento, mas sim um processo de formação mediante
o qual as pessoas se tornam capazes de ler a realidade, ler o mun-
do. Trata-se de formar sujeitos que construam sua autonomia e em
relação com outros sujeitos atuem conscientemente na sociedade.

Enfim, a compreensão dos processos sociais é fundamental, uma vez


que “[...] criar uma sensibilidade no policial – criando uma imaginação so-
ciológica – não é simplesmente um meio de fornecer informações aos po-
284 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

liciais; ao contrário, é um modo de criar uma perspectiva necessária para


que eles compreendam amplamente a informação” (O’Keefe, 2004, p. 118).

Conclusões
Seguindo as demonstrações trazidas nos itens anteriores, pode-se
concluir, em geral, que na formação não houve a ruptura com um modelo
de formação policial orientado pela perspectiva da formação do Exército,
orientada pela doutrina da segurança nacional, segundo a qual a polícia de-
veria ter como função a defesa do Estado. Partiu-se de um legado da tutela
militar sobre o ensino, passando pela realização de convênios com Univer-
sidades Públicas, federais e estaduais, e os processos de reestruturação dos
currículos. Houve a incorporação das ciências humanas, a relativização da
formação militar, a redução do enfoque positivista no ensino do Direito e
a absorção dos conteúdos de Direitos Humanos. Evidenciou-se a impor-
tância do relacionamento com as Universidades, a necessidade de superar
estigmas recíprocos. Por conseguinte, as tentativas de mudança no sistema
de ensino da polícia um ensino fragmentado no qual as propostas curricu-
lares, democráticas e críticas, coexistem com práticas pedagógicas arcaicas e
a continuidade do modo tradicional de ensino policial.
Há experiências de inovação curricular, de processos de ensino-apren-
dizagem, de metodologias didáticas e de integração institucional. A década
de 90 foi pródiga em experiências de ensino policial inovadoras, no interior
das instituições policiais de ensino e nos convênios realizados com Uni-
versidades, em vários Estados brasileiros, indicando uma discussão sobre
currículos, conteúdos e concepções do oficio de policial. No bojo de tais
experiências, partiu-se de um legado da tutela militar sobre o ensino, pas-
sando pela realização de convênios com Universidades Públicas, federais e
estaduais, e os processos de reestruturação dos currículos.
Diante da crise mundial das polícias, identificada nos anos de 1990,
houve uma série de reuniões mundiais nas quais as várias dimensões desta
crise foram discutidas, envolvendo acadêmicos e profissionais de segurança
pública. Nos Estados Unidos, a maior reação à crise apresentou duas faces:
a polícia comunitária, desde o Departamento de Polícia de Chicago, Boston
Violência, Polícia, Justiça e Punição 285

e São Francisco; e o modelo de gestão policial de New York, denominado


de “tolerância zero”. A exportação do modelo de “tolerância zero” ocorreu
mediante algumas empresas privadas de consultoria em segurança pública,
disseminando o complexo “industrial policial”, muitas vezes pela IPCA –
International Police Chief Association, em Porto Alegre e Curitiba; este foi
exportado apenas em sua face de “repressão e criminalização aos pequenos
delitos”, produzindo uma nova figura do “anormal”, mas desprezando a rede
de capital social e as inovações gerenciais.
Podemos sintetizar o exposto em termos de cinco tipos de Educação
Policial, os quais evidentemente aparecem mesclados nas realidades empíri-
cas, com predomínio de um ou outro: autoritário; dogmático-jurídico; mili-
tarizado; professional; policia comunitária; e segurança cidadã. Poderíamos
afirmar que os três primeiros tipos revelam uma crise da educação policial,
pois não mais respondem às realidades do século XXI. Os três tipos seguin-
tes – Profissional, Polícia Comunitária e Segurança Cidadã – aparecem em
distintas combinações, mas revelam as novas orientações da Educação Poli-
cial na Era da Mundialização das Conflitualidades.
Houve mudanças no Ensino Policial: em alguns países europeus – como
Inglaterra, França e Alemanha e na Califórnia (USA) – houve a formação de
Escolas Superiores de Polícia (ou Agências), nos anos 2000, com um perfil
profissional, com orientação gerencial e com alguns conteúdos de ciências
sociais, a fim de construir uma nova educação policial. Houve a expansão de
Programas de Educação à Distância.
A educação permanente tem sido largamente utilizada (como na Fran-
ça e no Canadá) para policiais que, envolvidos em atividades operacionais,
podem ser reintegrados às atividades educativas, proporcionando uma nova
reflexão sobre as práticas do trabalho policial em sociedades complexas,
marcadas pela diversidade e pelas transformações de nosso temo. Os cursos
contribuem para a passagem de um posto a outro na carreira, mais o méri-
to. Porém, para passar para cargos gerenciais, faz-se necessário o curso de
especialização.
A transnacionalização da Educação Policial na Era da Mundialização
de Conflitualidades, como pode ser observado em vários blocos regionais:
286 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

desde os Estados Unidos, o ILEA, para seis países; na União Europeia, pelo
CEPOL, sediado em Brumshill, Inglaterra; no MERCOSUL, por iniciativa
de uma rede de especialização de ensino policial (MERCOPOL).
A necessidade de Acordos entre Escolas de Polícia e Universidades: a
colaboração entre Universidades e Academias e Escolas de Polícia deveria
ser estimulada, bem como a avaliação do ensino. Os países que favorecem
os policiais no início da formação a realizarem Cursos de Graduação são a
Argentina, os Estados Unidos e a Irlanda do Norte; os Cursos de pós-gra-
duação, tanto o denominado Mestrado Profissional (M.B.A. ou Master) são
a Argentina, os Estados Unidos e a França. Há incentivo ao ensino superior
em Universidades conveniadas com as Escolas de Polícia (o caso dos Esta-
dos Unidos, da França, da Argentina e da Irlanda do Norte). A Universida-
de desempenha um papel de contribuir à titulação acadêmica dos policiais,
pessoalmente ou mediante ajuda de bolsas de estudo.
A categoria diversidade começou a ser incorporada, pois se observa a
ocorrência de um processo não linear de transformações na educação poli-
cial, pleno de ambivalências, mas com amplas possibilidades civilizatórias.
Parece, portanto, que está se delineando, em vários países, outra orientação
na Educação Policial: seja o Profissionalismo, seja a ênfase na Polícia Comu-
nitária ou na proposta de uma Segurança Cidadã. Todas afirmam o respeito
à dignidade humana para um novo padrão civilizatório. A expansão de uma
cidadania mundializada e a formação de uma sociedade civil transnacional
estimulam uma Educação policial preocupada com a prevenção do crime
e o controle das violências, garantindo a Segurança Cidadã enquanto um
direito fundamental.
A situação do treinamento e da progressão na carreira pode ser visua-
lizada, em todos os casos analisados, pelo fato de que há uma carreira única
nas polícias, sendo a formação de ensino médio um requisito de seleção, à
exceção do Canadá, onde os candidatos provêm de cursos graduação em
segurança pública oferecidos em universidades públicas, com duração de
três anos. O treinamento inicial tem a duração de 6 a 12 meses. Os conteú-
dos e seus enquadramentos constam no relatório, havendo a predominância
de tecnologias policiais. A maioria das disciplinas combinam aulas teóricas
Violência, Polícia, Justiça e Punição 287

e práticas devendo ser destacada a experiência francesa, na qual os alunos


vão para um primeiro estágio, supervisionado, voltam à escola, e depois vão
para um segundo estágio, também supervisionado, desta vez no próprio lo-
cal de atuação a ser assumido pelo aluno depois de formado.
O requisito de escolaridade para a entrada nas polícias dos países abor-
dados é a formação em ensino médio, com exceção do Canadá, onde há
graduação de três anos em doze Universidades Públicas para então os can-
didatos prestarem concurso para a Escola de Polícia. A progressão faz-se
por cursos de educação permanente, sendo que para os cargos de gestão
há normalmente Cursos de Gestão Policial de curta duração. O treinamen-
to inicial é realizado nas instalações das próprias Academias ou Escolas de
Polícia; os cursos de educação permanente, de curta duração, também o
são. Já os cursos de especialização sempre foram realizados em convênios
com Universidades, as quais certificam os títulos (Bacharelado e Mestrado).
A Universidade desempenha um papel de contribuir à titulação acadêmica
dos policiais, diretamente ou mediante ajuda de bolsas de estudo. Porém, no
caso da Especialização e no Mestrado, sempre são feitos em convênios com
as Universidades, ou exclusivamente nestas com reconhecimento dos títulos
pelas organizações policiais.
Há cursos de educação permanente, anuais, com duração média de
uma a quatro semanas. Os cursos de especialização são para os níveis supe-
riores das carreiras, com ênfase em Gestão Pública. Os cursos contribuem
para a passagem de um posto a outro na carreira, mais o mérito. Porém,
para passar para cargos gerenciais, faz-se necessário o curso de especiali-
zação. A formação para os níveis gerenciais é feita de duplo modo: seja no
interior das academias de polícia (o caso de Buenos Aires, da França, do
Canadá e da Inglaterra), seja em convênios com Universidades (o caso da
França, dos Estados Unidos e da Irlanda do Norte), nas formas de educação
continuada, de Mestrado Profissional ou de M.B.A.).
No que diz respeito ao uso de armas de fogo, há sempre uma discussão
teórica sobre a deontologia do uso da arma de fogo, e quando o policial a
utiliza tem que fazer um relatório circunstanciado. Nos cursos de educação
permanente esta questão também é eventualmente incluída. A educação
288 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

permanente tem sido largamente utilizada (como na França e no Canadá)


para policiais que, envolvidos em atividades operacionais, podem ser rein-
tegrados às atividades educativas, proporcionando uma nova reflexão sobre
as práticas do trabalho policial em sociedades complexas, marcadas pela
diversidade e pelas transformações de nosso tempo.
O tipo de formação mais valorizado é a interna, uma formação na Aca-
demia de Polícia, principalmente para o nível inicial na carreira, a qual em
todos os países pesquisados, é uma carreira única. Há incentivo ao ensino
superior em Universidades conveniadas com as Escolas de Polícia (o caso
dos Estados Unidos, da França, da Argentina e da Irlanda do Norte); os Cur-
sos de pós-graduação, tanto o denominado Mestrado Profissional (M.B.A.
ou Master), são apoiados em países como o Brasil, a Argentina, os Estados
Unidos e a França.
A atividade policial não é qualificada como uma área de ensino supe-
rior específica, mas se insere em programas universitários, de graduação (o
caso da Argentina e de modo complementar nos Estados Unidos), ou de
pós-graduação (os programas de Criminologia, Segurança Pública, Segu-
rança Interior ou de law enforcement).
A literatura especializada e a pesquisa de campo revelaram que há um
reconhecimento de que o policial que tem o melhor nível de escolaridade
pode ser considerado o melhor policial, desde que a estrutura curricular
incorpore a inovação em ciência e tecnologia aplicadas ao ofício de policia.
Emergem algumas questões centrais para o ensino policial:
Como mudar a educação policial de um paradigma composto pelo
Direito Penal Positivista e por doutrinas militaristas para uma orientação
que incorpore o conhecimento crítico em Direito, em Ciências Sociais e em
Gestão Pública? Seria também necessário desenvolver o treinamento de po-
liciais em tecnologias policiais que incorporem os avanços da Ciência e da
Tecnologia. E que reduzam o risco de vida, com a orientação de usar armas
de fogo só em casos extremos.
Como respeitar os princípios de responsabilidade social da educação
policial: garantir uma formação com respeito à dignidade humana em toda
a atividade policial; eliminar a discriminação de gênero, orientação sexu-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 289

al, religiosa ou étnica, induzindo uma formação orientada pelo respeito à


dignidade humana e às diferenças; propiciar uma educação orientada por
uma ética da responsabilidade social do serviço público, de modo a con-
trolar a corrupção no interior das organizações policiais, civis e militares;
desenvolver uma formação orientada pela transparência e responsabiliza-
ção interinstitucional e frente à sociedade civil; organizar uma formação
que reconheça a legitimidade do controle externo das Polícias, previsto na
Constituição de 1988, pelo Ministério Público, (Art. 129, VII).
Em síntese, deve-se buscar: superar um saber fragmentado e apenas
instrumental; possibilitar a vivência pelos alunos de experiências sociais
que favoreçam a formação de conteúdos adequados às práticas policiais;
enfatizar metodologias de ensino e aprendizagem de conceitos como ins-
trumentos de problematização, compreensão e transformação da realida-
de; privilegiar a compreensão das questões sociais e avaliar alternativas de
soluções possíveis numa perspectiva sistêmica; elaborar reflexões sobre as
áreas temáticas em estudo, no contexto da interdisciplinaridade, aplican-
do o aprendizado às novas situações no campo específico de atuação dos
profissionais de segurança pública; e desenvolver metodologias de ensino
e aprendizagem pela busca do entendimento entre docentes e educandos
através do diálogo e da mediação de conflitos.
As análises realizadas permitiram observar a ocorrência de um proces-
so não linear de transformações na educação policial, pleno de ambivalên-
cias, mas com amplas possibilidades civilizatórias. O respeito à dignidade
humana está presente, por diferentes modos, nas experiências internacio-
nais de Ensino Policial. Neste passo, a colaboração entre Universidades e
Academias e Escolas de Polícia tem sido práticas relevantes no sentido do
aprofundamento da democracia.

Proposições para a Reforma do Ensino Policial no Brasil


Considerando as seguintes questões:

1. Como a formação integrada poderá ajudar a superar as disputas


de competências entre os operadores de segurança pública existentes
290 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

– Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícias Civis, Polícias


Militares, Guardas Municipais – propiciando um patamar inovador
acerca do significado e das funções das organizações policiais?
2. Como resolver o problema da formação policial neste cenário de
“municipalização”, o qual envolve gestores de segurança municipal
e guardas municipais?
3. Como um sistema de formação policial poderia contribuir à re-
gulação e controle público das empresas privadas de segurança?
4. Em que medida a educação policial poderá ajudar a superar uma
cultura organizacional militarista nas Polícias Militares, marcada
pela presença da arbitrariedade e da exaltação de um tipo de disci-
plina e de hierarquia militar reprodutora de privilégios?
5. Em que medida a educação policial poderá ajudar a superar a
ênfase em uma cultura burocrática e juridiscista existente na Po-
lícia Civil, marcada pela presença da arbitrariedade e reprodutora
de privilégios?
6. Na mesma linha, como alterar a qualidade, a forma e o conteúdo
da ordenação interna das corporações no sentido de um relaciona-
mento institucional de tipo democrático, isto é, uma hierarquia e
disciplina orientadas por regras transparentes e critérios universais?
7. Qual a contribuição da educação policial no sentido de aumentar a
eficiência do desempenho policial e da gestão da segurança pública?
8. De que modo pode ser desenvolvido o treinamento em técnicas
policiais que reduzam o risco de vida dos policiais e da população,
seguindo a orientação de só utilizar armas de fogo em casos extremos,
de acordo com a filosofia do recente Estatuto do Desarmamento?
9. Como desenvolver estratégias descentralizadas de atuação que
possibilitem lidar localmente com problemas e soluções, de forma
a resgatar a função de integração social e de mediação de conflitos
interpessoais inerentes ao ofício de polícia?
10. Quais as medidas necessárias para assegurar a formação ade-
quada de educadores bem como a produção de materiais didáticos
pertinentes aos objetivos de uma nova educação policial?
11. Como a educação policial pode explicitar os efeitos da mun-
dialização no campo da violência, do crime e do controle social, e
Violência, Polícia, Justiça e Punição 291

discutir a internacionalização dos modelos de polícia e os desafios


da integração regional, na busca de um relacionamento soberano
e democrático entre as polícias dos países da América do Sul e de
outros continentes?
12. De que maneira a educação policial deve assegurar o respeito
aos direitos humanos em todas as atividades policiais?
13. Como assegurar que os conceitos desenvolvidos no processo de
ensino-aprendizagem sejam congruentes com as práticas policiais?
Desenvolver a discussãoo sobre a cultura da paz nas instituições de
ensino policial.

A partir de tais postulados, pode-se propor as seguintes medidas:

1. Ratificar a Matriz Curricular da SENASP (Secretaria Nacional


de Segurança Pública) como a diretriz maior da reforma do ensino
policial no Brasil;
2. Integrar todas as escolas de polícia (Polícia Civil, Militar, Servi-
ços Penitenciários e Perícias) em Centros de Educação em Segu-
rança Cidadã, em um período máximo de três anos;
3. Criar a Escola Nacional de Altos Estudos em Segurança Cidadã,
a fim de construir um projeto pedagógico concernente a uma defi-
nição democrática do ofício de polícia;
4. Construir um trajeto pedagógico que contemple o diálogo re-
flexivo entre as dimensões teóricas e práticas do ofício de polícia
materializado pela combinação de conteúdos teóricos, com estra-
tégias, táticas e estágios orientados;
5. Construir um projeto pedagógico que contemple homogene-
amente a Educação Policial em Ciências Sociais, em Tecnologias
Policiais, Perícia e em Gestão Pública de modo a capacitar o profis-
sional para a sociedade complexa;
6. Incorporar nos projetos pedagógicos o progresso da ciência ex-
presso contemporaneamente pelas categorias da complexidade, da
diversidade e do rigor científico;
7. Incluir no sistema de educação policial as seguintes medidas con-
tra a discriminação e o racismo: formação contra a discriminação
292 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

racial; afirmação da diversidade social e cultural; desconstrução dos


estigmas internos e/ou externos às organizações policiais; e discus-
são sobre as cotas raciais no ingresso nas organizações policiais;
8. Constituir corpo docente das unidades de ensino policial sele-
cionando-o mediante concurso público, com exigência mínima
de Mestre;
9. Desenvolver o treinamento de policiais em tecnologias policiais
que incorporem os avanços da Ciência e da Tecnologia. E que re-
duzam o risco de vida, com a orientação de usar armas de fogo só
em casos extremos;
10. Avaliar as unidades de ensino policial segundo os procedimen-
tos do Ministério da Educação e Cultura (MEC);
11. Criar Centros de Educação das Guardas Municipais, mediante
consórcios intermunicipais;
12. Certificar todas as unidades de ensino policial, em graduação
e pós-graduação, pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC);
13. Fomentar acordos entre Academias, Escolas de Polícia e Univer-
sidades em colaboração para a promoção e a avaliação do ensino;
14. Exigir o Ensino Médio para os níveis iniciais das carreiras e o
nível superior para os níveis superiores;
15. Conceder a possibilidade que os cursos iniciais das carreiras
possam vir a ser, mediante complementação de créditos em uni-
versidades públicas, equivalentes ao de tecnólogo; que os cursos de
nível superior possam ser equivalentes aos de graduação – no caso
de serem admitidos alunos que já possuam título de graduação,
dever-se-ia incorporá-los ao sistema de pós-graduação, ou seja,
em nível de especialização. Em se propondo níveis avançados para
cargos de gestão, caberia que fossem estruturados em Mestrados
Profissionais, sempre em convênios com Universidades Públicas;
16. Exigir a duração de 12 meses para o treinamento inicial;
17. Realizar cursos anuais de educação continuada, com duração
de 1 a 4 semanas para todos os efetivos;
18. Desenvolver cursos de Mestrados Profissionais em acordos com
Universidades Federais;
19. Fortalecer a RENAESP (Rede Nacional de Altos Estudos em
Segurança Pública) pela incorporação de seus cursos às carreiras;
Violência, Polícia, Justiça e Punição 293

20. Construir um campo científico “Segurança Cidadã e Socieda-


de”, de natureza multidisciplinar, de modo a orientar teórica e pe-
dagogicamente o sistema nacional de ensino policial;
21. Desenvolver redes mundiais de ensino policial alternativo con-
cernente ao papel do Brasil na construção de alternativas democrá-
ticas mundiais;

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A Redemocratização e o campo
da Segurança Pública Brasileiro

Arthur Trindade M. Costa e Renato Sérgio de Lima1

Dentre as várias mudanças pelas quais a América Latina tem passa-


do nas últimas décadas, destaca-se o crescimento dramático da violência,
do medo e da criminalidade, que fez com que cerca de 1/3 dos homicídios
no planeta estivessem, em 2015, concentrados na Região. Estão na Améri-
ca Latina 14 dos 20 países com as maiores taxas médias de homicídios do
mundo, sendo que o Brasil, sozinho, responde por 12% do volume global de
assassinatos.2 Frente a tais números, compreende-se que a insegurança seja
vista como um dos principais problemas enfrentados pelos regimes políti-
cos latino-americanos na atualidade. E, diante deste fato, há uma enorme
pressão por respostas públicas mais eficientes e capazes na área. A questão
é que, como o crescimento da criminalidade violenta é simultâneo ao mo-
vimento de retomada democrática que deu fim às ditaduras militares que
marcaram a região nos anos 60 e 70 do século passado, alguns analistas
colocam em questão a legitimidade e a capacidade dos regimes democrá-

1 Arthur Trindade M. Costa é pesquisador 2 do CNPq e professor de Sociologia da


Universidade de Brasília. Renato Sérgio de Lima é pesquisador 2 do CNPq, diretor-
-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do Departamento
de Gestão Pública da FGV-EAESP.
2 Instituto Igarapé, disponível em: <http://homicide.igarape.org.br> e UNODC, dispo-
nível em: <http://unodc.org>.
304 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ticos para lidarem com o problema e buscam qualificar estas democracias


como iliberais, disjuntivas, delegativas ou disruptivas (Carreras, 2013). Há,
no limite, tentativas de se testar e compreender a eventual existência de uma
incômoda associação entre crescimento da violência e o movimento de re-
tomada democrática.
Em função disso, surgiram estudos tentando analisar o problema da
insegurança nas suas mais variadas facetas. Tais estudos se concentram em
três grandes temas. Alguns se concentraram em analisar as questões rela-
cionadas à violência, criminalidade e insegurança, tentando entender suas
dinâmicas e causas (Pearlman, 2004; Bergman e Whitehead, 2009; Peres et
al., 2011). Outros estudos, partindo de abordagens institucionais, focaram
na violência das polícias (Stanley, 2005; Ahnen, 2008; Willis, 2014; Bueno,
2014). E finalmente alguns trabalhos se concentraram em analisar o funcio-
namento do Judiciário e Ministério Público, destacando suas mazelas e obs-
táculos à reforma institucional (Peruzzotti e Smulovitz, 2006; Brinks, 2008;
Ungar, 2010; CESEC, 2016).
Dada a magnitude dos problemas de violência, criminalidade e insegu-
rança, não é surpresa que os estudiosos tenham adotado múltiplos ângulos
para analisar este pluralismo violento (Goldstein e Arias, 2010). Assim sur-
giram trabalhos analisando as dinâmicas das gangues (Bruneau, Dammert
e Skinner, 2011), da violência contra mulher (Pasinato, 2012), narcotráfi-
co (Schulte-Bockholt, 2006) e do vigilantismo (Sinhoretto, 2002; Martins,
2015). Além disso, também surgiram trabalhos analisando os efeitos desta
violência no cotidiano dos cidadãos e a reconfiguração das redes de soli-
dariedades locais (Arias e Rodrigues, 2006; Arias, 2004 e 2014; Adorno e
Cardia, 2002). Outro aspecto que passou a ser analisado mais recentemente
é a percepção de insegurança. Os trabalhos mostram que o medo do crime
guarda muito menos relação com as taxas de violência e criminalidade do
que supõe o senso comum (Dammert e Malone, 2006; Dammert, 2012).
Os estudos que focaram no funcionamento das instituições (polícias
e judiciário) têm destacado a existência de legados autoritários e seus im-
pactos sobre a qualidade dos regimes políticos latino-americanos (Hite e
Cesarini, 2004; Pinheiro et al., 1999, Adorno e Dias, 2014). De fato, passadas
Violência, Polícia, Justiça e Punição 305

mais de três décadas das transições políticas, muitos países da região con-
tinuam a conviver com práticas violentas, autoritárias e ilegais por parte de
agentes do Estado. É bem verdade que algumas destas práticas não foram
inventadas pelos antigos regimes autoritários. Elas sempre fizeram parte do
cotidiano dos grupos desprivilegiados. Nestes casos, os regimes autoritários
aumentaram seu escopo e alcance (Costa, 2011; Lima e Bueno, no prelo).
Diante deste movimento, David Pion-Berlin (2005) sugere que há dois
modos de analisar os efeitos destes legados autoritários. O primeiro, mais
comum, concentra-se em verificar como algumas práticas do passado se
institucionalizaram na forma de organizações, prerrogativas, acordos, e di-
visão de poderes. Nesse sentido, os legados autoritários, exercem uma gran-
de influência conservadora sobre as novas democracias. Já uma segunda
forma de analisar os legados autoritários é enfocar as tensões produzidas
pela introdução de novas agendas democráticas e os obstáculos deixados
pelo passado. Não há dúvida de que a redemocratização produziu polari-
zações e tensões. Apesar disso, são raros os estudos sobre os efeitos da re-
democratização na área de segurança pública, muitas vezes subssumida em
um tema tabu e associado à segurança nacional (Lima e Brito, 2011).
No caso brasileiro, alguns estudos mais recentes defenderão que a pre-
venção e o enfrentamento da violência são operados, no plano político e
institucional, a partir de um simulacro simbólico que faz com que as várias
iniciativas incrementais levadas a cabo nas últimas décadas não atinjam a
arquitetura das instituições encarregadas em prover justiça criminal e se-
gurança pública que, por sua vez, continuam a atuar a partir de um centro
de política criminal que independe das pressões democráticas por direitos.
Um simulacro que “espelha e reflete de volta qualquer tentativa de moder-
nização democrática efetiva da segurança pública. Na aparência e/ou no
plano do discurso, as organizações buscam se adaptar às demandas, mas,
na essência, simulam novos padrões de atuação sem, contudo, implicar em
novas práticas ou culturais organizacionais” (Lima e Bueno, no prelo; Lima,
Almeida e Sinhoretto, 2010 ).
Diante desta questão, faz-se necessário, portanto, discutir como as or-
ganizações encarregadas pela segurança pública foram impactadas pelos
306 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

processos de mudança política. E esta é a proposta deste capítulo, que ana-


lisa os efeitos da redemocratização brasileira sobre o campo organizacional
da segurança pública e os constrangimentos institucionais que põem em
dúvida a qualidade do regime democrático. Constransgimento esses que es-
tão por trás, por exemplo, do fato de que, segundo pesquisa do Instituto La-
tinobarômetro, em 2016, apenas 32% da população brasileira concorda que
a democracia é sempre a melhor forma de governo. Todos os demais países
latino-americanos pesquisados têm índices bem mais elevados.

O Campo da Segurança Pública no Brasil


Em texto anterior (Costa e Lima, 2014), identificamos que segurança
pública é um conceito que todos no Brasil, em geral, imaginam saber o seu
significado, mas que, ao se buscar defini-lo, frequentemente surgem dificul-
dades analíticas à compreensão das suas dimensões e desdobramentos. Isso
porque, ainda segundo nossa análise citada, diferentes posições políticas e
institucionais interagem para que a segurança pública não esteja circuns-
crita em torno de uma única definição conceitual e esteja imersa em dispu-
tas sobre as noções de ordem, garantias legais, cidadania e controle social.
Trata-se menos de um conceito teórico e mais de um campo organizacional
que estrutura as relações institucionais e profissionais relacionados à manu-
tenção da ordem e ao controle da criminalidade.
Um campo organizacional corresponde a um grupo de organizações
que, no agregado, constituem uma área reconhecida da vida social, políti-
ca ou econômica (Powell e DiMaggio, 1991). São campos organizacionais
o sistema financeiro, o sistema partidário e as universidades. A segurança
pública constitui, assim, um campo formado por diversas organizações que
atuam direta ou indiretamente na busca de soluções para problemas relacio-
nados à manutenção da ordem pública, controle da criminalidade e preven-
ção de violências. Portanto, não se confunde com o Sistema de Justiça Cri-
minal e nem se resume às organizações policiais, por mais que essas tenham
papel importante no debate público acerca do tema (Costa e Lima, 2014).
O campo da segurança pública é, portanto, um espaço social de disputas
entre diversos atores sobre as melhores soluções e as práticas mais legítimas de
Violência, Polícia, Justiça e Punição 307

manutenção da ordem, controle da criminalidade e prevenção de violências.


Assim, para entender as dinâmicas próprias de um campo organizacional é
necessário compreender como determinadas práticas foram instituciona-
lizadas, como as identidades profissionais foram formadas, como os novos
conceitos e atores são incorporados e como os conflitos internos estão estru-
turados. Isso porque, ao mesmo tempo em que as relações sociais existen-
tes num determinado campo condicionam as estratégias e práticas adotadas
pelos atores políticos, tais relações são moldadas pelos diferentes processos
de socialização a que foram submetidos esses atores. Ao passo que são estru-
turadas por práticas passadas e estruturam as ações do presente, as relações
sociais entre os atores de um determinado campo também são afetadas por
mudanças ocorridas noutros campos da vida social (Bourdieu, 1990).

Os limites legais da reestruturação das polícias


A estrutura do campo da segurança pública no Brasil é caracterizada
por uma forte concentração de recursos e competências no plano estadual,
pela impossibilidade das instituições policiais exercerem o ciclo completo
de policiamento (ciclo que vai do policiamento ostensivo à investigação cri-
minal) e pela existência de limites constitucionais à reforma das polícias.
Até porque a estrutura construída ao longo do século XX, e fortalecida no
período autoritário, foi consagrada pela Constituição Federal de 1988. No
Brasil, as principais agências encarregadas do trabalho de policiamento são
organizadas e, legalmente, controladas pelas 27 unidades da federação. Em-
bora existam algumas agências de polícia sob controle do governo federal
e alguns municípios mantenham guardas municipais, dada as limitações de
competências e de recursos, a maior parte (aquelas afeitas à manutenção da
ordem pública, sobretudo) das tarefas de polícia são desempenhadas pelas
Polícias Militares e pelas Polícias Civis dos estados e do Distrito Federal.
As Polícias Militares (PM) são responsáveis pelas tarefas relacionadas
ao policiamento das ruas. A despeito de reproduzirem alguns símbolos,
normas militares, estas polícias não pertentem a estrutura das Forças Arma-
das. Já as Polícias Civis (PC) são encarregadas da investigação policial e da
instrução do processo criminal. Por este motivo, são também chamadas de
308 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

polícias judiciárias, apesar de não pertencerem à estrutura do poder judici-


ário. E, disso, uma característica importante do campo da segurança pública
brasileiro é o fato de nenhuma das agências estaduais de polícia realiza o
chamado “ciclo completo de policiamento”. Isto é, suas atividades são limi-
tadas por funções: as polícias civis exercem as funções de polícia judiciária
e as polícias militares são encarregadas do policiamento ostensivo, além da
preservação da ordem pública.
Outro aspecto importante a ser considerado é que, apesar das polícias
militar e civil serem organizadas e controladas pelos estados, sua organi-
zação e funções são definidas pela Constituição Federal. Portanto, os esta-
dos não podem, isoladamente, transformar ou extinguir essas instituições.
Além dos limites constitucionais, os obstáculos à reforma das polícias tam-
bém resultam dos arranjos locais de poder, uma vez que, no plano adminis-
trativo e funcional, os governadores teriam autonomia para definir cargos e
planos de carreiras. Como forma de aumentar o controle sobre as polícias,
a maior parte dos estados e do Distrito Federal vinculam estas instituições
a secretarias de segurança pública e/ou de defesa social, na ideia que inte-
grar recursos e estabelecer mecanismos de governança e cooperação. No
entanto, tais secretarias têm baixa capacidade institucional para gerenciar e
supervisionar a atividade policial das duas instituições, até em razão de elas
serem, majoritariamente, compostas por policiais cedidos das corporações
que, em tese, serão controladas por elas.
Estas características acima descritas resultam, em resumo, em um bai-
xo nível de governança do campo da segurança pública. Os vários projetos
de modernização levados a cabo no país desde a década de 1990 são absor-
vidos pela burocracia pública e não conseguem força política e institucional
para mudarem práticas institucionais e culturais organizacionais. Assim,
nos últimos anos, várias propostas foram apresentadas no Congresso Nacio-
nal visando mudar esta estrutura legal e institucional, entretanto nenhuma
logrou êxito em chegar até o final do processo legislativo.3 Enquanto isso, as

3 Em maio de 2014, existiam 530 propostas de mudanças legislativas do campo da segu-


rança pública em tramitação no Senado Federal e na Câmara dos Deputados.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 309

normas que regem o funcionamento das instituições encarregadas em pro-


ver segurança são anteriores à Constituição e influenciadas por concepções
de política criminal e de manutenção da ordem social do regime autoritário.
Até hoje, as normas que regem o campo estão fortemente marcadas
pelo conceito de “segurança interna”, deslocando a ideia de “segurança pú-
blica” do centro das ações institucionais e opondo prerrogativas das forças
policiais. A Constituição de 1988 alterou os princípios norteadores da segu-
rança pública, mas 28 depois anos de sua promulgação ainda existem vários
de seus capítulos e artigos sem a devida regulamentação, que permitem a
manutenção de práticas autoritárias. Ou seja, a atual constituição Brasileira
não define o que vem a ser segurança pública, apenas formaliza as organi-
zações então existentes como as responsáveis pelo campo. Ao fazer isso, a
Constituição de 1988 vai reforçou, indiretamente, o modelo que ela mesma
buscou romper (Lima, 2011) em outras de suas seções, como aquelas dos ar-
tigos 5º (dos direitos civis) e 6º (dos direitos sociais), num indicativo de que
o processo constituinte foi estanque e diferentes forças políticas atuaram
para que a Carta de 1988 acabasse por ser dúbia no que tange aos comandos
constitucionais inovadores e fortalecesse o modus operandi marcado pela
opacidade e pela resiliência em relação à adoção de requisitos básicos da
democracia, como controle e transparência (Lima, 2011).
Em suma, a estrutura do campo da segurança pública não foi alterada
pela Constituição Federal de 1988. Tampouco tratou de reduzir os antago-
nismos que marcam o nosso sistema de justiça criminal, nele incluídas as
polícias, o Ministério Público e o Judiciário. Além disso, novos conflitos
foram criados com a previsão constitucional para que os municípios par-
ticipassem da formulação e execução de políticas de prevenção e combate
à violência. No plano simbólico, avanços são inegáveis, em especial com a
adoção de princípios de garantia de direitos humanos em currículos poli-
ciais, entre outros. Porém, no plano prático, sem tais mudanças estruturais,
as instituições não avançaram em uma mudança mais efetiva de procedi-
mentos e culturas organizacionais.
310 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Os novos padrões de relações intergovernamentais


As polícias, embora praticamente ausentes das discussões sobre o fede-
ralismo brasileiro, sempre foram instituições centrais para pensar as autono-
mias estaduais ou a concentração de poderes no governo federal. Ao longo
da história republicana brasileira, o sistema policial brasileiro acompanhou
as oscilações da federação. Ora estavam submetidas ao poder central, ora
significavam a garantia da liberdade das elites políticas estaduais.
Durante os períodos autoritários (1937-1945 e 1964-1985) as polícias
estaduais foram submetidas ao controle federal. Portanto, não se pode falar
em cooperação, mas sim em submissão dos estados às diretrizes dos gover-
nos federais (Cancelli, 1993). Nos outros períodos republicanos (1889-1930 e
1946-1964), os estados gozaram de grande autonomia para organizar e con-
trolar suas polícias (Fernandes, 1973; Bretas, 1997). É interessante notar que,
durante o regime autoritário, uma forte centralização de decisões no governo
federal foi acompanhada por uma ampliação da capilaridade da “microfísica”
de poder, ou seja, pela dispersão de procedimentos operacionais (há hoje um
hiato sobre de quem é a responsabilidade federativa por definir padrões de
uso da força, ensino policial, produção de estatísticas públicas, entre outros
requisitos operacionais. Mas cabe à União, por sua vez, por intermédio do
Exército e da Polícia Federal, controlar e autorizar o uso e a aquisição de ar-
mamento civil e das polícias; o controle de materiais explosivos; e a controlar
a compra de coletes balísticos e outros equipamentos para as polícias estadu-
ais). E, diante desta dispersão, regras de governança vão sendo adaptadas e
operadas de modo a dificultar a accountability das instituições da área. Como
consequência, raros foram os casos de cooperação intergovernamental na
área de segurança pública, dada a relutância dos governos federais ema criar
mecanismos institucionais de incentivo à cooperação entre as polícias e que
pudessem mudar esse cenário organizacional difuso.
Este padrão de relações intergovernamentais começou a mudar a partir
dos anos 1990. Diante do aumento alarmante aumento dos índices de cri-
minalidade no país, o governo federal viu-se forçado a mudar esta postura,
buscando exercer um maior protagonismo na coordenação das ações e po-
lícias de segurança pública (Sá e Silva, 2012). Para isso, foi criada, em 1995,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 311

a Secretaria de Planejamento de Ações Nacionais de Segurança Pública (SE-


PLANSEG), do Ministério da Justiça, transformada em setembro de 1997 na
atual Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). A criação desta
secretaria destinou-se a articular iniciativas relacionadas à área de Seguran-
ça Pública, possibilitando o incremento da cooperação intergovernamental.
Diferente dos períodos anteriores, a atuação da SENASP tem se pauta-
do pelo respeito às autonomias federativas. Assim, seu principal papel tem
sido a indução de políticas públicas e de cooperação intergovernamental.
O principal instrumento utilizado para buscar seus objetivos tem sido o fo-
mento de ações estaduais e municipais através da transferência de recursos
federais. O fomento destas ações tem ocorrido principalmente através do
Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e, durante um período mais
pontual, entre 2007 e 2009, do Programa Nacional de Segurança com Cida-
dania (Pronasci). De fato, a criação destas duas fontes de fomento significou
um considerável aumento nos gastos federais com Segurança Pública. Os
gastos federais na área saltaram de pouco mais de R$ 1,5 bilhões, em 1992,
para cerca de R$ 9 bilhões em 2015, o que significou um aumento de 500%,
conforme as várias edições do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.4
Todavia, olhado no tempo, esse crescimento teve seu ápice durante a vi-
gência do Pronasci, sendo que desde 2010 há uma retração no volume de
recursos federais para a área.
Quanto à qualidade dos gastos em segurança pública, observou-se que,
no geral, os investimentos cresceram menos que os gastos de pessoal e cus-
teio. Isto se deveu ao aumento dos efetivos e a melhoria dos salários dos
profissionais de segurança pública, um lado, mas também pela forte concen-
tração dos recursos federais na subvenção dos gastos do próprio Ministério
da Justiça e das polícias Federal e Rodoviária Federal. Menos de 7% desse
total de gastos federais foi efetivamente alocado para repasses aos governos
subnacionais. E, desse percentual, observou-se que 86% do total de recursos
repassados pela união aos estados e municípios destinaram-se à compra de
equipamentos, viaturas, armamentos, material de comunicações, bem como

4 Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/atividades/anuario/>.


312 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

construção de prédios. Somente 3% dos recursos foram utilizados no treina-


mento e formação dos policiais. Finalmente, apenas 7% foram aplicados na
implantação de projetos inovadores, tais como policiamento comunitário,
centros integrados de segurança e cidadania, ouvidorias de polícia, sistemas
de informações criminais (Costa e Grossi, 2007; Fórum..., 2016).
No nível municipal também podemos verificar importantes mudanças
no campo da segurança pública. Os municípios tiveram sua participação
ampliada nas receitas orçamentárias do país, uma vez que a nova Constitui-
ção Federal os reconheceu como entes federados. No que se refere à segu-
rança pública, essa mudança pode ser percebida com a criação das Guardas
Municipais e no aumento de mais de 225% em suas despesas com segurança
entre 2002 e 2015 (Fórum..., 2016), muito além do volume repassado pela
União e em um cenário de mudança de abordagem em relação ao tema.
Como apontamos na seção anterior, tradicionalmente as atividades de
policiamento (ordem pública) são, de modo geral, responsabilidade dos es-
tados. A partir de 1988 esta situação começou a mudar. Uma vez que a cons-
tituição permitia e o governo federal financiava, alguns municípios criaram
suas próprias guardas municipais (Misse e Bretas, 2009). O número de guar-
das municipais cresceu significativamente na década de 1990. Saltou de 100
guardas em 1992 para 1500 em 2000 (em 2012 esse número havia sido re-
duzido e pouco mais de 1000 municípios contavam com estruturas de guar-
das e órgãos de segurança). Em alguns municípios estas guardas limitam-se
às atividades de vigilância de prédios públicos e de manutenção da ordem
pública. Noutros municípios, no entanto, as guardas executam tarefas de
policiamento ostensivo, tradicionalmente exercidas pelas polícias militares.
Há municípios como Foz do Iguaçu no estado do Paraná e de Osasco em
São Paulo onde os efetivos da guarda municipal são superiores aos efetivos
da Polícia Militar. Algumas destas novas tarefas atribuídas às guardas mu-
nicipais não estão devidamente regulados pela legislação brasileira, o que
tem causado inúmeros conflitos no interior do campo da segurança pública
(Miranda, Freire e Paes, 2008; Khan e Zanetic, 2006).
Apesar do aumento dos gastos federais e da maior participação dos mu-
nicípios na segurança pública, o financiamento das atividades de seguran-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 313

ça pública continua muito concentrado nos governos estaduais. Em 2015,


83,28% dos gastos em segurança pública foram realizados pelos estados,
11,13% pela União e 5,59% pelos munícipios. Diferente das áreas de saúde
e educação, na área de segurança pública não foram criados mecanismos
de co-financiamento que permitam uma distribuição mais equilibrada das
despesas. Esta concentração de gastos tem sido um dos maiores empecilhos
à reforma na estrutura das polícias e nas carreiras policiais. Não há plane-
jamento ou previsibilidade de recursos para programação orçamentária e
financeira adequada e o dinheiro disponível está em muito concentrado,
como dito, em custeio. Há pouco espaço para investimento e inovação, ain-
da mais após a aguda crise fiscal enfrentada pelo Brasil desde 2015.

A redefinição das identidades profissionais


Os processos de formação de identidade são fundamentais para a (re)
definição do campo organizacional, uma vez que o pertencimento de uma
organização a um campo específico depende da identificação de seus mem-
bros com outras organizações vistas como semelhantes. A importância do
campo com o qual os membros de uma organização se identificam é per-
cebida nos processos de mudança e adaptação organizacional. Para adapta-
rem-se às mudanças no ambiente externo (social, político e econômico), as
organizações incorporam práticas e estratégias aceitas como corretas e ade-
quadas por outras organizações do mesmo campo. A adoção de tais práticas
e estratégias (soluções) é muito mais o resultado de pressões sociais do que
uma resposta racional aos desafios enfrentados por estas organizações. Ou
seja, a institucionalização de determinadas práticas diz muito mais respeito
à exigência de responder de maneira adequada às crenças e valores estabele-
cidos num determinado campo organizacional (Powell e DiMaggio, 1991).
Naturalmente uma organização pode pertencer a diferentes campos
organizacionais, uma vez que seus membros podem constituir múltiplas
identidades. Entretanto, o campo organizacional é redefinido à medida que
os membros de uma organização reconstroem suas identidades, passando
a se identificar com diferentes organizações. Ao longo do século XX, as
identidades profissionais dos policiais brasileiros não foram desenvolvidas
314 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

autonomamente. Tradicionalmente, os policiais militares se identificaram


com o campo militar. Desta forma, as polícias militares adotaram manuais e
regimentos das Forças Armadas – FFAA, bem como copiaram as estruturas
das carreiras militares. As escolas de formação policial reproduzem currí-
culos das academias militares. Já os policiais civis se identificaram com o
campo jurídico. Nos últimos 30 anos, os policiais civis têm demandado por
planos de carreiras idênticos aos do judiciário e Ministério Público (Pon-
cioni, 2004). Ao contrário de outros países, nem os policiais militares nem
os policiais civis buscaram construir um campo profissional específico, com
saberes e lógicas próprias. Da mesma forma que os saberes práticos não
foram transformados em deontologia policial.
Entretanto, a partir de 1988, a identidade militar e os modelos milita-
rizados de organização e emprego das políticas passaram a ser amplamente
criticados por setores da sociedade. A identificação com o campo militar
deixou de legitimar da atividade policial. Ao contrário, muitas das práticas
violentas, ilegais e arbitrárias das políticas passaram a ser atribuídas ao le-
gado autoritário (Costa, 2011). O que acabou por gerar certa crise de iden-
tidade entre os policiais militares. Esta situação começou a mudar, embora
de forma incipiente, a partir da década de 1990. Em alguns estados, as novas
gerações de policiais militares passaram a se identificar mais como policiais
e menos como militares. Essas mudanças identitárias tiveram reflexo nas
soluções organizacionais adotadas pelas polícias para lidar com problemas
relacionados à violência policial, às relações polícia e sociedade e à gestão
da segurança pública.
Visando reduzir a violência policial e aumentar o controle sobre a ati-
vidade policial, algumas Polícias Militares brasileiras passaram a criar pro-
cedimentos operacionais inspirados nas normas de condutas adotadas por
polícias nos EUA, Canadá e Europa (Costa e Porto, 2011). Além de soluções
para os problemas relacionados à violência policial, algumas polícias bus-
caram também aumentar o envolvimento da comunidade na discussão dos
temas de segurança pública. Para isso, passaram a implantar unidades volta-
das para o policiamento comunitário, a exemplo do que ocorreu nos EUA,
Canadá e Japão (Skolnick e Bayley, 2002).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 315

Outro desafio enfrentado pelas polícias diz respeito à melhoria no pla-


nejamento e coordenação das ações. Para isso, novas formas de gestão tam-
bém têm sido adotadas. Uma delas é o que ficou conhecido como Compstat,
uma abreviação do termo computer comparison statistics. O Compstat im-
plica na produção de estatísticas criminais precisas e detalhadas, no estabe-
lecimento de metas de desempenho e no planejamento conjunto das ações.
Essa ferramenta de planejamento tornou-se popular, nos EUA a partir da
década 1990 (Moore, 2003). Mais recentemente passou a ser adotada por al-
gumas polícias brasileiras na tentativa de aumentar a eficiência no controle
da criminalidade. Se no passado, as soluções para os problemas enfrentados
pelas polícias eram copiadas das Forças Armadas, atualmente, muitas das
soluções adotadas têm origem em outras polícias. Essa mudança é resultado
da reconstrução da identidade policial. Sendo, portanto, um sinal do forta-
lecimento do campo da policial vis-à-vis o campo militar. A grande questão
destacada neste artigo e por vários outros autores, que questiona a capaci-
dade destas ações em mudar de fato as práticas vigentes (Bueno, 2014; Lima
e Bueno, no prelo), é então ainda mais pertinente. Muito se trabalha para
alterar o cenário de crime, violência mas pouco se avança na consolidação
de uma agenda de direitos e de prevenção da violência.

As tensões entre as diferentes carreiras policiais


Nas últimas décadas, observou-se o acirramento dos conflitos entre os
policiais que ocupam a alta e a baixa hierarquia das polícias brasileiras. É
bem verdade que tais conflitos não são novidade no campo da segurança
pública, uma vez que quase todas as polícias brasileiras possuem carreiras
com processos seletivos distintos, além de plano de cargos e salários diferen-
tes. Entretanto, durante os 21 anos do regime autoritário (1964-1985), estas
tensões eram ocultadas pelas estruturas hierárquicas e disciplinares das po-
lícias, pelo sufocamento dos canais de participação política e pela incapaci-
dade do sistema jurídico de garantir os direitos civis, sociais e políticos dos
cidadãos, incluindo os policiais.
A redemocratização do país acentuou estas tensões. Nas Polícias Mili-
tares estaduais, o conflito entre oficiais e praças tem levado a greves, que fre-
316 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

quentemente resultam em crises institucionais, uma vez que a Constituição


Federal de 1988 não permite que os militares se associem em sindicatos. Nas
policiais civis, a situação não é muito diferente. São frequentes os conflitos
entre agentes e delegados. Neste caso, a existência de sindicatos de policiais
civis, de certa forma, tem evitado que tais conflitos terminem em crises ins-
titucionais. Portanto, a origem dos conflitos repousa na existência de carrei-
ras diferentes, justificativas pela exigência ou não de curso superior. A partir
da década de 1990, esses conflitos foram canalizados pelas discussões sobre
a necessidade de mudanças de dois mitos institucionais: o militarismo nas
Polícias Militares e o Inquérito Policial nas Polícias Civis.
No que se refere ao militarismo, pode-se perguntar o que significa des-
militarizar (ou militarizar) uma força policial? Comparando a literatura
sobre as polícias da América Latina e dos Estados Unidos, por exemplo,
percebemos que o conceito tem sido aplicado de duas maneiras diferentes.
No contexto de um regime não democrático, sem controle civil sobre as
polícias, desmilitarizar significa estabelecer o controle civil, separando as
polícias e as forças armadas em termos estruturais e disciplinares (Bayley,
1993). Já no contexto democrático, a crítica ao modelo de organização mili-
tar repousa na ideia de que a disciplina militar impede a polícia de aprender
com seus próprios erros; endurece a supervisão sobre os policiais de bai-
xa patente, enquanto a atenua sobre os oficiais; dificulta a comunicação, ao
sobrevalorizar a importância da cadeia de comando; aumenta custos sem
melhorar resultados. Ou seja, o sistema do “comando-e-controle” é, acima
de tudo, incongruente com a natureza da atividade policial, pois busca re-
gular de maneira minuciosa o comportamento de indivíduos que são, pela
natureza de seu trabalho, obrigados a tomar decisões complexas e imediatas
em circunstâncias imprevisíveis (Bayley, 1994).
A existência de duas carreiras dentro das Polícias Militares agrava os
problemas associados à disciplina militar. Algumas polícias ainda mantêm
os antigos códigos disciplinares elaborados durante o regime militar que
conferem tratamento desigual aos integrantes das diferentes carreiras. Da
mesma forma que a existência de diferentes planos de cargos faz com que
as posições de planejamento e comando sejam vetadas aos policiais de bai-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 317

xa hierarquia, a despeito de alguns possuírem qualificação adequada para


exercerem essas funções. No que se refere aos salários, em alguns estados, a
remuneração dos coronéis chega a ser até 15 vezes superior aos vencimen-
tos recebidos pelos cabos e soldados. Este quadro tem sido denunciado por
associações e lideranças que representam os policiais de baixa hierárquica
exigem o fim deste modelo disciplinar-hierárquico.
As polícias civis contam com quatro carreiras: delegados, agentes, pe-
ritos e escrivães. Da mesma forma que nas Polícias Militares, as diferentes
carreiras implicam em diferentes planos de cargos e salários. Há conflitos
entre todas as carreiras, mas as maiores tensões ocorrem entre as carreiras
de delegados e agentes. Este conflito se materializa nos debates sobre o In-
quérito Policial. O inquérito policial, previsto no Código de Processo Penal
Brasileiro é o principal procedimento investigativo das polícias judiciárias
brasileiras. Ele destina-se a investigar a existência e autoria dos crimes e a
instruir a ação penal. É procedimento administrativo, circunscrito ao traba-
lho da polícia. O Inquérito Policial, portanto, é resultado de duas atividades:
investigação criminal e instrução processual. As atividades de investigação
são, geralmente, conduzidas pelos agentes. Compete aos delegados presidir
(coordenar) as atividades e relatar o inquérito para que ele possa instruir
adequadamente o processo penal. Assim, cabe ao delegado traduzir a inves-
tigação policial para a linguagem dos tribunais. Tal competência justifica a
exigência de os delegados serem bacharéis em direito, bem como legitima o
poder dos delegados na hierarquia das Polícias Civis brasileiras.
No entanto, a instauração de um inquérito policial implicada na realiza-
ção de inúmeras tarefas administrativas que, frequentemente, se sobrepõem às
atividades de investigação. Uma vez que número de ocorrências numa delega-
cia de polícia normalmente é muito grande, apenas nos casos de flagrante ou
de homicídios dolosos os inquéritos são obrigatoriamente instaurados. Nos
demais casos, os policiais priorizam os boletins de ocorrência que já trazem
elementos de prova necessários para a conclusão de um inquérito. Ou seja, se
existem informações sobre a autoria do crime (i.e., filmagens, depoimentos,
testemunhas). Nessas situações, não se realiza de fato uma investigação crimi-
nal para identificar suspeitos e produzir evidências, pois estas informações já
318 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

foram fornecidas pela vítima. O trabalho da polícia nesses casos é reprodu-


zir essas informações no inquérito que irá instruir o processo criminal. Em
função dos problemas que gera e da divisão de tarefas e poder que acarre-
ta, o inquérito policial tem sido objeto de crítica por parte dos Sindicatos de
Agentes da Polícia. Aqui, a burocracia assume um protagonismo redobrado
na administração dos conflitos e afasta-se a ideia de eficiência democrática no
esclarecimento e punição como fim a ser perseguido.

O surgimento de novos atores


Nas últimas décadas surgiram novos atores no campo da segurança pú-
blica brasileira, qualificando e tensionando o debate sobre as melhores res-
postas aos problemas de violência e criminalidade. Dois novos atores se des-
tacam: a universidade e para a sociedade civil organizada. No primeiro caso,
a via deste fato foi que surgiram vários estudos sobre violência, criminalida-
de e segurança pública no Brasil. O debate sobre o tema, aos poucos, deixou
o campo jurídico da criminologia tradicional e passou a incorporar outras
abordagens teóricas e metodológicas (Adorno e Barreira, 2010). Passadas
mais de duas décadas de estudos, pode-se constatar que estes trabalhos se
constituíram em uma área específica das Ciências Sociais Brasileiras. Um
dos traços marcantes desta subárea de estudos é a formação de redes. São
frequentes as pesquisas realizadas em conjunto por diferentes universidades
e centros de estudos. Também é bastante comum o intercâmbio de estudan-
tes e professores com programas nacionais e internacionais. Não há dúvida
que a formação destas redes tem possibilitado o avanço dos conhecimentos
sobre o tema. Como consequência, assistimos a um impressionante salto de
qualidade e quantidade de publicações, teses e dissertações abordando seus
mais variados aspectos.
A produção de teses e dissertações sobre o tema cresceu muito e também
foram criados diversos centros de pesquisa sobre violência e criminalidade
vinculados às universidades. Também surgiram organizações não governa-
mentais com atuação marcante no campo da segurança como o Fórum Bra-
sileiro de Segurança Pública, que se caracteriza por ser a mais plural e rede de
pesquisa e informação da área e composta por pesquisadores acadêmicos, po-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 319

liciais e ativistas da sociedade civil. No entanto, apesar do aumento da produ-


ção de conhecimento sobre o tema, ainda há grande dificuldade em transfor-
mar as práticas governamentais, uma vez que os novos discursos enfrentam
resistências consideráveis nas organizações policiais (Lima, 2011; 2014), que,
em grande medida, continuam a valorizar a ideia de que segurança pública
é tema privativo das polícias e dos demais profissionais do sistema de justiça
criminal (juízes, promotores de justiça, advogados etc).
Também observamos a emergência de novas instâncias participativas,
fora das tradicionais instituições representativas, e destinadas a promover
a democratização e a transparência da gestão da segurança pública. Como
consequência, a sociedade civil ganhou maior protagonismo no campo da
segurança, especialmente a partir dos anos 2000. Historicamente os primei-
ros ímpetos de participação social na área da segurança concentraram-se
na criação dos conselhos comunitários de segurança, que surgiram no final
dos anos 1980. A partir da década de 2000, observamos o aumento das ini-
ciativas participativas no campo da segurança, com a elaboração do I Plano
Nacional de Segurança Pública. O Plano propunha um maior envolvimento
da sociedade civil organizada e o fortalecimento daquilo que chamou de
“estratégias e programas comunitários” enquanto estratégias de redução da
criminalidade (Lima, Souza e Santos, 2012).
Esta tendência de aumento da participação da sociedade civil se acen-
tua em 2007 com lançado o Programa Nacional de Segurança Pública com
Cidadania (Pronasci) que previa a realização da 1ª Conferência Nacional de
Segurança Pública (CONSEG) em 2009. Houve também uma reforma no
Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP), que passou a incor-
porar atores da sociedade civil, desvinculados das polícias e do judiciário.
A criação destes espaços de ampla participação social permitiu um maior
engajamento político de diversos atores da sociedade civil ligados aos mo-
vimentos de Direitos Humanos, Feministas, Negros e LGBTs. Porém, no
contexto subnacional, as instituições participativas do sistema de justiça
criminal e segurança parecem cooptadas pela disputa existente no campo e
elas serão, em menor ou maior grau, acionadas de acordo com os interesses
em jogo. De acordo com Lima (2016):
320 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

[...] a participação, enquanto parâmetro democrático, é um ideal


discursivo que, na prática, serve para reforçar posições e, por con-
seguinte, é operada de modo a compor acordos tácitos sobre quem
deve ou não ser ouvido pelas polícias. [...] A maior evidência empí-
rica desta constante ressignificação é o exemplo do Manual de Poli-
ciamento Comunitário da Polícia Militar de São Paulo que textual-
mente afirma que esse modelo é voltado aos “cidadãos de bem”, no
reconhecimento formal de que a instituição opera a partir de uma
taxionomia própria sobre para quem ela deve prestar contas. [...]
As instituições participativas, sejam os Conselhos Comunitários de
Segurança sejam outros espaços, parecem funcionar mais para que
as polícias explicitem suas práticas e valores e, com isso, reponham
continuamente a legitimidade de suas ações [...].

Considerações finais
Em suma, vivemos um período de grandes mudanças no campo da segu-
rança pública, com velhos e novos atores institucionais atuando na busca de
protagonismo em torno dos sentidos das políticas públicas de segurança no
país. Este artigo buscou descrever estas mudanças e avaliar suas repercussões
políticas e sociais. É necessário tratar a segurança pública como um campo de
disputas sobre as respostas mais legitimas e eficazes para os problemas de vio-
lência e criminalidade. E, nessa perspectiva, a discussão sobre a formação de
uma nova agenda democrática das políticas de segurança pública passa pela
reflexão acerca das tensões entre os legados autoritários e a ampliação da par-
ticipação social de novos atores políticos. As demandas por reformas exigidas
pelos grupos organizados da sociedade civil só poderão ser respondidas com
reformas estruturais que enfrentem alguns temas sensíveis, tais como: a distri-
buição e a articulação de competências entre União, Estados e Municípios e a
criação de mecanismos efetivos de cooperação entre eles e demais Poderes; a
reforma do modelo policial estabelecido pela Constituição; e o estabelecimen-
to de requisitos mínimos nacionais para as instituições de segurança pública
no que diz respeito à formação dos profissionais, transparência e prestação de
contas, uso da força e controle interno e externo.
Em termos práticos, concordando com Lima e Bueno (no prelo), artigo
dialoga com o fato de legislação e a jurisprudência dos tribunais brasileiros
Violência, Polícia, Justiça e Punição 321

não definirem o que vem a ser segurança e ordem pública, dizendo apenas
que instituições por elas são responsáveis. Nessa brecha, caberá à doutrina
jurídica e à prática cotidiana das polícias e demais instituições do sistema de
justiça criminal definirem quem será objeto de sua atenção e vigilância. E,
na medida em que instrumentos de governança democrática dos mandatos
das polícias não tenham sido estruturados (mecanismos de controle, trans-
parência e prestação de contas), mesmo após quase trinta anos da Consti-
tuição Federal, a tendência é que, diante da trajetória de dependência das
organizações de justiça criminal e segurança pública, dirigentes políticos
demandem ações pontuais e descontínuas deixando para a polícia a tarefa
de gerenciar a vida e a ordem da população.
Em uma era que aumenta os riscos de “desconsolidação” das demo-
cracias mais avançadas, como a dos EUA e de vários países europeus (Foa e
Mounk, 2016), nota-se o crescimento das dificuldades em torno da tarefa de
modernização da segurança pública brasileira. Ao que tudo indica, vivemos
um movimento que, infelizmente, afasta o Brasil (e vários outros países da
América Latina) do modelo de polícia cidadã e garantidora de direitos, re-
forçando antagonismos e a violência como resposta legítima frente ao crime
e à violência urbana. O artigo reconhece avanços e que há resistência a esse
novo movimento, mas assume um certo ceticismo em relação ao poder des-
tes em evitar retrocessos democráticos no controle do crime e da violência
no Brasil. A vida vale pouco e a violência continua sendo uma característica
das relações sociais brasileiras.

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Segurança pública, polícia e agenda
governamental no Rio de Janeiro:
entre discursos e práticas

Paula Poncioni1

Introdução
O trabalho, ora apresentado, é resultado da pesquisa realizada no âmbito
do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU),
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no quadro do Programa
“Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia – INCT/ Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq” 2 no período compreen-
dido entre 2011 e 2014. É, portanto, um texto bastante datado em relação ao
quadro da política de segurança pública no Rio de Janeiro, reportando-se tão
somente aos resultados da pesquisa realizada no período mencionado.
O objetivo principal da pesquisa em questão foi analisar os significados
atribuídos por gestores vinculados à área da segurança pública sobre a chama-

1 Professora Associada do Departamento de Política Social da Escola de Serviço Social


da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2 Trata-se do Instituto Nacional de Estudos sobre Violência, Democracia e Segurança
Pública NEV/USP e dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia – CNPq
(Processo nº 573599/2001- 4). A realização da pesquisa não teria sido possível sem o
apoio do CNPq.
330 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

da “política de pacificação” 3 implementada no Rio de Janeiro, por intermédio


do Programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Procura-se, ainda,
examinar as práticas concretas organizadas por esse segmento para a forma-
ção profissional de policiais, com vistas ao alcance das diretrizes e metas pro-
postas para o desempenho do trabalho policial nesse Programa.
Para atingir os objetivos propostos, o estudo envolveu pesquisa biblio-
gráfica e de campo. A pesquisa bibliográfica incluiu a análise da literatura
nacional e internacional, sobre os temas correlatos à problemática em foco
– polícia, cidade, segurança pública, políticas públicas (agenda), educação
policial, dentre os mais importantes. O trabalho de campo compreendeu
basicamente entrevistas semiestruturadas com gestores do alto e do médio
escalão da administração da área de segurança pública do estado do Rio de
Janeiro. Foram realizadas, no período de julho de 2013 a fevereiro de 2014,
onze entrevistas: quatro com o alto escalão, sendo dois da Secretaria de Es-
tado de Segurança do Rio de Janeiro (SESEG – RJ) – Secretário Estadual
de Segurança e Subsecretária de Valorização e Formação Policial, e dois da
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) – Comandante geral4 e

3 O programa de pacificação obedece quatro etapas: I. Intervenção tática – realizada “pre-


ferencialmente” pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e pelo Batalhão de Polícia
de Choque (BP Choque) e por policiais militares deslocados para “recuperarem o con-
trole estatal sobre áreas ilegalmente subjugadas por grupos criminosos ostensivamente
armados”; II. Estabilização – momento que antecede a implantação da UPP propriamen-
te dita, com ações intercaladas de “intervenção tática” e de “cerco da área delimitada”; III.
Implantação da UPP – fase em que policiais militares “especialmente capacitados para o
exercício da polícia de proximidade chegam definitivamente à comunidade contempla-
da pelo programa de pacificação, preparando-a para a chegada de outros serviços públi-
cos e privados que possibilitem sua reintegração à sociedade democrática”; IV. Avaliação
e monitoramento – nessa etapa, as ações, seja de polícia pacificadora, seja de outros
atores que prestam serviços públicos e privados nas localidades contempladas com UPP,
“passam a ser avaliadas sistematicamente com foco nos objetivos, sempre no intuito do
aprimoramento do programa”. Consultar, a respeito, Decreto nº 42.787 de 6 de janeiro
de 2011, o qual dispõe sobre a Implantação, Estrutura, Atuação e Funcionamento das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Estado do Rio de Janeiro.
4 Lamentavelmente, não foi realizada a entrevista pretendida com a chefia da Polícia
Civil (autoridade do alto escalão da organização policial civil), que deixou o cargo, em
janeiro de 2014, para concorrer a um cargo eletivo no estado.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 331

Chefe do Estado-Maior Administrativo;5 e sete do médio escalão, sendo três


da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) – Subsecretário Ad-
ministrativo, Subsecretário Operacional e diretora da Academia de Polícia
Civil Sylvio Terra, e quatro da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
(PMERJ) – coordenador da Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP),
diretor da Diretoria Geral de Ensino e Instrução (DGEI), comandante da
Academia da Polícia Militar (APM) D. João VI, e comandante do Centro
Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP).6 A partir da análise de con-
teúdo dos discursos apreendidos nas entrevistas, foram definidas categorias
chave, tais como “pacificação”, “proximidade”, “formação [profissional] poli-
cial” e “fazer policial”, a fim de subsidiar a compreensão sobre as concepções
que os gestores da área de segurança pública têm sobre a política de segu-
rança pública em curso Rio de Janeiro. Buscou-se, igualmente, examinar as
práticas organizadas por esse segmento para a formação profissional dos
policiais no contexto da política de pacificação em curso. Além disso, foi
realizado o exame da documentação referente ao Programa das Unidades
de Polícia Pacificadora e da documentação relativa à formação e treinamen-
to profissional de policiais (diretrizes, manuais, regulamentos e currículos)
para atuarem no Programa.7
Ressalta-se que o universo considerado para efeito dos procedimentos
exigidos por este estudo foi constituído por um grupo específico, que traduz
uma determinada “visão” sobre o assunto, não podendo ser tomada, portanto,
como “a” visão representante do conjunto daqueles que trabalham na gestão

5 Na ocasião em que a entrevista foi realizada, esse policial havia se afastado do cargo cita-
do. Entretanto, o trabalho desenvolvido por ele em sua carreira profissional na organiza-
ção policial militar justificou sua permanência no universo de entrevistados da pesquisa.
6 Neste trabalho, o tratamento aos entrevistados se dará por intermédio da denomina-
ção “gestor de médio escalão” e “gestor de alto escalão”, e não pela identificação do car-
go ocupado no quadro de funcionários da Secretaria de Estado de Segurança Pública
do Rio de Janeiro (SESEG-RJ). Aproveito para agradecer a todos os entrevistados por
terem gentilmente cedido seu tempo para contribuir com essa pesquisa.
7 Foi também utilizado material relativo aos discursos de integrantes desse segmento que
tiveram a participação em diferentes fóruns, como em palestras, seminários e mesas re-
dondas (essencialmente, gravações e anotações de campo), nos quais estive presente.
332 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

da segurança pública no estado e, tampouco, da totalidade dos policiais, civis


e militares, e dos técnicos do setor. Além disso, não representa a “realidade” do
programa, constituindo-se um “olhar”, que não é homogêneo ou permanente,
circunscrevendo-se, sobretudo, ao período em que foi realizado o estudo.
O surgimento do Programa das UPPs se dá em um contexto de com-
plexas mudanças sociais, econômicas, políticas e urbanísticas que foram es-
tabelecidas para o Rio de Janeiro, com a candidatura oficial da cidade, em
2008, para sediar os megaeventos. Nesta perspectiva, observa-se a impulsão
de um projeto de conversão da cidade em um potencial centro de consumo
e entretenimento, gerando em decorrência disso, novos sentidos a gestão
do espaço urbano – com propostas não apenas de mudanças do espaço fí-
sico (espaço físico concreto), como também dos modos de vida urbano –,
resultando assim em um conjunto de políticas cuja finalidade principal é
preparação da cidade para atrair novos investimentos e diferentes interesses
para seus moradores e consumidores – os eventos desportivos e culturais, o
turismo e as inovações no setor do comércio –, ajustando-a assim aos novos
tempos (Jayme; Neves, 2013).
Sugere-se aqui que a criação do Programa expressa a tentativa de cer-
to enquadramento da área da segurança pública a essas novas políticas, com
vistas a produzir um reordenamento dos espaços físicos e morais da cidade,
que se encontram em dissonância e/ou colocam em risco o projeto em curso.
Ao longo das últimas décadas, havia se configurado no Rio de Janei-
ro um cenário caótico na área de segurança, caracterizado pela crescente
expansão dos crimes violentos – os crimes contra o patrimônio, os homicí-
dios, o crime organizado, particularmente, do narcotráfico8 –, pelo padrão
arbitrário e violento da polícia e pelo perverso binômio corrupção/impuni-

8 A partir de 2000, pode-se observar também a presença e crescente expansão de outro


grupo, denominado “milícia”, que passa a concorrer com o tráfico de drogas pelo o
controle de territórios, usualmente favelas e bairros pobres da cidade, para fornecer,
sob coação, “segurança” e serviços diversos – distribuição de gás em botijão, de água,
de serviços clandestinos de internet, o “gatonet”, de transporte e de moradia –, cobran-
do taxas e impostos da população moradora da localidade. Uma característica peculiar
desse grupo é a participação maciça de funcionários do Estado, aposentados e/ou na
ativa, como policiais civis e militares, agentes penitenciários e bombeiros. Consultar,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 333

dade nas questões relativas à segurança pública.


Esse “quadro” pouco alentador é agravado mais recentemente, sob
a égide da chamada política do “confronto” e/ou do “enfrentamento ao
crime”,9 quando a polícia passa a atuar intensivamente com o uso de táticas e
procedimentos de “guerra” para o “combate ao crime”, incrementando o ín-
dice de letalidade policial – exposta, sobretudo, nos reiterados “confrontos”
entre policiais e traficantes ocorridos, em particular, nas favelas da cidade –,
aumentando a sensação de medo, insegurança e risco da população de um
modo geral. A chamada “política de enfrentamento”, desenvolvida principal-
mente no primeiro governo Sergio Cabral, caracterizou-se pelas operações
policiais – as chamadas “megaoperações” –, que frequentemente utilizavam
um veículo blindado, conhecido como “caveirão”, para transporte das tropas
para o “combate” ao crime organizado, particularmente relacionado ao trá-
fico de drogas, nas denominadas áreas “de risco” e/ou “conflagradas” (pela
“guerra”) – favelas e bairros pobres da cidade. No auge dessas operações de
“guerra”, assistiu-se ao incremento das violações de direitos humanos e das
execuções sumárias praticadas pela polícia, especialmente pela polícia mili-
tar do estado, sob a denominação de “autos de resistência”, acarretando vee-
mentes críticas, no âmbito nacional e internacional, por parte de diferentes
segmentos – acadêmicos, políticos, mídia, movimentos sociais, ONGs etc.
–, em face da ineficácia do estado para produzir mudanças efetivas no grave
quadro na área da segurança pública.
Deste modo, pode-se argumentar que o contexto que possibilitou a
implementação das Unidades de Polícia Pacificadora10 sugere a presença
de, pelo menos, dois processos principais no Rio de Janeiro, mas que a eles
não se limitam: 1- o advento do Rio de Janeiro como sede dos chamados

a respeito, Santos (2007); Zaluar e Conceição (2008); Cano e Loot (2008); Cano e
Duarte (2012).
9 Ver, a propósito, Ribeiro, Dias e Carvalho (2008).
10 Para maiores informações quanto proposta das Unidades de Polícia Pacificadora, a
cronologia seguida na instalação e o número de unidades implantadas, a extensão de
área compreendida, bem como o contingente de policiais militares alocados no pro-
grama, consultar: <http://www.upprj.com/>.
334 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

“megaeventos” – Copa do Mundo, em 2014, e Olimpíadas, em 2016 –, que


impulsiona a ressignificação dos modos de entendimento e percepção, das
ações, das interações e das sociabilidades que ocorrem no espaço urbano;
e 2- o esgotamento de um paradigma na área da segurança pública, que
opera com discursos e práticas de “guerra” contra o crime, em forte oposi-
ção as modalidades de policiamento que buscam atuar em sintonia com um
conjunto de garantias constitucionais e jurídicas propugnadas pelo Estado
Democrático de Direito.
Nessa direção, o Programa das UPPs é apresentado no discurso oficial
como a busca de alternativas para o estabelecimento de uma nova concep-
ção e estratégias para a segurança pública, que apregoam a substituição de
um modelo de policiamento pautado fundamentalmente na reatividade –
com o uso privilegiado da força para reprimir o crime e reduzir a violên-
cia – para outro baseado na prevenção – com ênfase na proximidade entre
polícia e população,11 na prestação de serviços e na mediação dos conflitos
nas chamadas áreas de “risco” e/ou “conflagradas”.
Estudos realizados no período (Machado da Silva, 2010; Fórum Bra-
sileiro de Segurança Pública, 2012) revelam que a política de pacificação
implementada em algumas favelas cariocas alterou, em tempo relativamente
curto, o quadro caótico de (in)segurança mencionado anteriormente, com
bons resultados no que diz respeito a significativa redução da violência por
intermédio da repressão do poder armado do narcotráfico, a expressiva que-
da das taxas de homicídio nas localidades onde estão instaladas e no entor-
no, a entrada de bens e serviços – públicos e privados – e ao incremento das
iniciativas/projetos sociais e culturais desenvolvidos com maior intensidade
e amplitude, dentre os aspectos mais importantes.12
Isso não significa que não haja problemas no programa. Ao contrário,

11 Sobre os modelos profissionais de polícia, consultar Poncioni (2005).


12 Outros fatores são também atribuídos para a queda da violência letal no Rio de
Janeiro, como a implantação do Sistema de Metas e Acompanhamento de Resultados,
desenvolvido pela SESEG. Esse sistema se dirige fundamentalmente a redução dos
índices de letalidade no estado, estimulando policiais lotados em delegacias de polícia
e em batalhões da polícia militar para que cumpram as metas estabelecidas, tendo,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 335

como se verá a seguir, entre os discursos e as práticas sobre o programa das


UPPs, há múltiplos problemas, com imensos desafios a serem superados
para sua consolidação na área da segurança pública.
Para a exposição do trabalho, o texto foi organizado do seguinte modo:
além desta introdução, é exposto um panorama da agenda governamental do
período estudado, dos gestores e da gestão da segurança pública no Rio de
Janeiro, bem como os discursos dominantes nos segmentos do médio e do
alto escalão do quadro de funcionários da Secretaria de Estado de Segurança
do Rio de Janeiro (SESEG – RJ) e das organizações policiais sobre a “política
de pacificação” desenvolvida por intermédio das Unidades de Polícia Pacifi-
cadora (UPPs). Na segunda seção, é enfocado as iniciativas propostas para a
formação profissional de policiais – civis e militares –, destacando-se princi-
palmente o “cenário” da formação e treinamento de soldados para a “molda-
gem” de um “policial pacificador”. Por fim, são apresentadas as considerações
finais do trabalho, privilegiando a análise entre os discursos, as proposições
e as práticas desenvolvidas para a formação profissional, com vistas a conse-
cução dos objetivos propostos pela política de “pacificação”. Ao final do texto,
encontram-se as referências bibliográficas e documentais examinadas.

Segurança pública, agenda governamental, gestores e os


discursos sobre a “pacificação” e “proximidade” –
o Programa das UPPs em pauta
O Rio de Janeiro, nas três últimas décadas, tem sido apontado como
um dos estados mais violentos do Brasil, diante do crescimento contínuo da
criminalidade e da violência, protagonizados principalmente por grupos ar-
mados ilegais, em particular o narcotráfico, ao lado da constante referência
a um padrão de atuação de baixa efetividade, arbítrio e violência da polícia
para lidar com a questão.
Ao longo desse período, foram realizadas diversas experiências, prove-
nientes muitas vezes de agendas díspares entre si, com ênfases variadas, para
a área de segurança pública, de acordo com a primazia da agenda gover-

em contrapartida, a oferta de premiação em dinheiro a todos que as alcançarem. Ver,


especialmente a respeito, Misse (2013).
336 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

namental para o setor – ora pautada em propostas conservadoras, ora em


democráticas –, com vistas a reformular as organizações policiais e judiciais
e alterar o quadro de (in)segurança no estado.13
Desde então, encontram-se em disputa diferentes definições e pro-
posições para a segurança pública, e em especial para o trabalho policial,
influenciadas por vários atores e agências, dentro e fora do governo. Sob
essa ótica, concorrem lado a lado concepções e práticas para o controle da
criminalidade: aquela que em favor da “lei e ordem” advoga pelo recrudes-
cimento das práticas penais, por meio principalmente das ações “enérgicas”
da polícia no “combate” ao crime, com reiterado prejuízo do respeito aos di-
reitos humanos14 e a que, em defesa da prevenção, articula as práticas legais
e/ou penais a ações sociais, com o compromisso de proteção e garantia dos
direitos dos cidadãos.
É preciso salientar que, nos últimos anos, particularmente a partir da
década de 90, adquire importância crescente no Brasil a ideia de reforma da
área de segurança pública baseada no chamado paradigma de “segurança
cidadã”, padrão de segurança pública difundido na América Latina, notada-
mente nos países cujo passado recente testemunhou períodos de exceção e
arbítrio instaurados por regimes autoritários, tendo a polícia como um ator
auxiliar e subsidiário na repressão a chamada “dissidência política”.
Nesta direção, algumas experiências contemporâneas se inscrevem em
um contexto de afirmação da concepção de segurança cidadã e, ao longo
dos planos nacionais de segurança pública,15 diversas iniciativas foram re-
alizadas para a reforma dos órgãos do setor, tanto do ponto de vista dos
recursos materiais – modernização e reaparelhamento, no que diz respeito
a melhor equipamento operacional – sistema moderno de armas, veículos,

13 Para um exame sobre as diferentes agendas para o setor no Rio de Janeiro, ver, espe-
cialmente a respeito, Carneiro (2010).
14 Sobre o recrudescimento dos discursos e das práticas penais no Brasil, ver, a propósito,
Pinto (2008).
15 Trata-se do I Plano Nacional de Segurança Pública (2000), do Plano de Segurança
Pública para o Brasil (2003) e do Programa Nacional de Segurança Pública com
Cidadania (2007).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 337

sistema de telefonia, informática etc. –, como do ponto de vista dos recursos


humanos – aumento do número de policiais no quadro de pessoal, bem
como sua capacitação e valorização.16
A chamada “segurança cidadã” se caracteriza basicamente por priorizar
princípios ajustados às exigências da democracia – accountability, partici-
pação social, profissionalismo, compromisso com a legalidade e respeito aos
direitos humanos, para citar os mais importantes –, para fundamentar as
ações dos órgãos estatais encarregados da efetivação da segurança pública.
Particularmente para o trabalho policial, o paradigma da “segurança cida-
dã” apregoa a passagem de um modelo de policiamento pautado essencial-
mente na repressão ao crime com a perspectiva do combate; para outro, ba-
seado no controle do crime, contando com a prestação do serviço policial,
fundamentada no compromisso de defesa e garantia da cidadania, de gestão
do conhecimento e informações criminais, de programas de prevenção, de
formação e valorização profissional dos policiais e de participação social
para o desempenho do trabalho policial. Além disso, para que se promova
a segurança cidadã é necessário o estabelecimento de um conjunto de ativi-
dades e medidas articulado e integrado entre a polícia, os diferentes setores
do poder público e os próprios cidadãos, com vistas a garantir os direitos de
cidadania e o convívio seguro e pacífico na sociedade.
Nesse contexto, a adoção do modelo de policiamento comunitário é
assumida no discurso oficial como condição fundamental para responder
de maneira adequada às exigências democráticas para redução do crime e
da violência, com o respeito aos direitos humanos. A educação policial é
considerada um recurso indispensável para produzir as mudanças necessá-
rias para a afirmação do novo modelo de trabalho policial, com práticas e
rotinas adequadas às exigências democráticas.
A literatura especializada, particularmente a internacional, conceitua o
policiamento comunitário como uma filosofia e estratégia de policiamento
que prevê a aproximação entre polícia e população, a fim de que possam tra-

16 Para a análise sobre as políticas de segurança pública propostas, no nível federal, no


período compreendido entre 2000 e 2012, consultar Soares (2007); Adorno (2009);
Tavares dos Santos (2009); Poncioni (2012); Silva (2012).
338 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

balhar conjuntamente na identificação, priorização e resolução de proble-


mas relacionados à criminalidade, a desordem, e a qualidade geral de vida
na comunidade. Nesta perspectiva, a polícia recebe um mandato abrangen-
te, para além dos assuntos de cunho legal e penal, cabendo-lhe desempe-
nhar um amplo leque de atividades. Neste modelo é desejável, portanto, que
o tipo de gerenciamento e a organização do policiamento estejam pautados
na descentralização de comando com vistas a propiciar a aproximação da
polícia com a comunidade em que atua (Skolnick e Bayley, 2002).
No Brasil, a partir de meados da década de 1990, verifica-se que múl-
tiplas experiências foram criadas e desenvolvidas em diferentes estados
do país, principalmente pela polícia militar, sob o rótulo de “policiamento
comunitário” – e/ou modelos afins, como Polícia Interativa, Polícia Cida-
dã e outros. Em sua grande maioria, essas experiências buscaram intro-
duzir diferentes atividades no trabalho policial para, baseadas na ideia de
prevenção – ronda à pé, adoção de técnicas de mediação de conflitos e de
participação social, dentre outras práticas –, conduzir e legitimar o traba-
lho policial junto à sociedade. Evidentemente, o Rio de Janeiro não ficou
alheio a esse movimento.
Grosso modo, é a partir do governo Brizola (1983-87 e 1991-94), primeiro
governador eleito democraticamente após vinte e um anos de ditadura militar,
que se definem, não sem ambiguidades,17 algumas agendas progressistas para
a área da segurança pública no estado, na tentativa de alterar e consolidar re-
formas pautadas em uma perspectiva democrática da segurança pública, em

17 Essa ambiguidade pode ser observada na justaposição de doutrinas e práticas para a


gestão da segurança pública. Com relação a atuação policial, chama a atenção a combi-
nação de distintos modelos profissionais de polícia – tradicional (burocrático-militar)
e novo (policiamento comunitário, policiamento orientado para a solução de proble-
mas etc.) – que, em uma espécie de bricolage, vem obstaculizando possíveis avanços
para a efetivação de um trabalho policial mais eficiente e responsável no controle do
crime dentro dos marcos do ideário democrático (Poncioni, 2013). Ver também, a
propósito, Soares (2000); Costa (2004); Carneiro (2010).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 339

particular com relação à organização e estrutura do serviço policial – civil18 e


militar – no estado do Rio de Janeiro.
Nesta perspectiva, algumas experiências de policiamento foram realiza-
das, baseadas na aproximação entre polícia e sociedade – o Policiamento Co-
munitário19 e o Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE)20 –,
que, entretanto, não passaram de iniciativas isoladas de diferentes governos
estaduais para a segurança pública, não se consubstanciando como parte de
uma ampla proposta nos moldes de uma política pública na área.
Depois de aproximadamente três décadas de experiências pouco exitosas
para alterar e consolidar reformas na estrutura, organização e funcionamento
do serviço policial – civil e militar – para o provimento de segurança pública,
o Programa das UPPs aparece no centro da agenda governamental, anuncia-
do com a promessa de estabelecer uma nova maneira de conceber o controle
social, a prevenção da violência e a redução do crime violento, representado
principalmente pela presença de grupos de narcotraficantes ostensivamente

18 Na Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) essas mudanças foram realizadas
principalmente no governo Garotinho, com a criação do Programa Delegacia Legal,
por intermédio da Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de Segurança
do estado, cujo titular era um cientista social.
19 A implementação da filosofia do policiamento comunitário na Polícia Militar no Brasil
foi uma iniciativa do Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que comandou a
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, entre 1991 e 1994. Uma avaliação cuidado-
sa sobre a implementação desse programa em um bairro carioca pode ser consultada
em Muniz; Musumeci e Larvie (1997).
20 O GPAE foi criado em 2000, pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio
de Janeiro, baseando-se na filosofia e modalidade de policiamento comunitário, com
emprego em favelas. Concebido como uma unidade especial da Polícia Militar do
Rio de Janeiro (PMERJ) foi implantado, inicialmente, nas favelas Pavão-Pavãozinho
e Cantagalo, em Copacabana, bairro da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. A gran-
de novidade do programa foi a prestação do serviço policial nessas localidades, com
regularidade e interação com a população, a partir de uma perspectiva preventiva.
Antes desse programa, existiu o Grupamento de Aplicação Prático Escolar (GAPE),
com fundamentos e atribuições similares às do GPAE, igualmente idealizado pelo ex-
-coronel da PM, Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Ver a respeito, Albernaz; Caruso
e Patricio (2007); Dreyfus (2009).
340 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

armados nas favelas do Rio de Janeiro. Desde então, constata-se que as UPPs
são retratadas por amplos setores da sociedade – a mídia, impressa e televi-
siva, as autoridades de governos, os formuladores e gestores de políticas pú-
blicas de segurança e uma parte significativa de acadêmicos e dos próprios
policiais –, como um programa auspicioso para a área de segurança pública.21
Ressalta-se que, neste trabalho, se parte do pressuposto que uma “agen-
da” para o setor foi constituída, nos termos propostos por Kingdon (1985).
Ou seja, assume-se aqui que uma lista de problemas que vinham se acu-
mulando na área de segurança do Rio de Janeiro, sem solução exitosa, ob-
teve, em um determinado momento, a atenção das autoridades do governo
(e mesmo de pessoas fora dele), envolvendo um processo de especificação
de alternativas para lidar com os múltiplos desafios colocados para o se-
tor (Kingdon, op. cit., p. 3). Para Kingdon, as agendas governamentais22 são
estabelecidas por três distintos, mas complementares, processos ou fluxos,

21 O “modelo UPP” foi divulgado por diferentes meios – imprensa, escrita e televisiva,
seminários, mesas redondas etc. –, nacional e internacionalmente, como uma bem-
-sucedida experiência na área da segurança pública. O modelo chegou a ser reprodu-
zido em Curitiba, Paraná, com o nome de “Unidade Paraná Seguro” (UPS). De acordo
com a matéria publicada em jornal de grande circulação no Rio de Janeiro, sob o título
“Paraná se inspira no Rio e cria versão de UPP- Bairro violento em Curitiba é ocupado
para sediar a primeira Unidade Paraná Seguro”, “A medida [a “importação” do “mode-
lo UPP” para Curitiba] tem como objetivo inicial mapear pontos de venda de drogas.
(…) Além de cumprir mandados de prisão, os policiais ouvirão moradores para saber
seus problemas. Em seguida, entrarão políticas públicas, para prover as áreas com cre-
ches, escolas, postos de saúde etc.” (Jornal O Globo – RJ, em 05/03/2012).
22 De acordo com Kingdon deve-se, ainda, distinguir entre a agenda governamental e a
agenda de decisões, que compreende a lista de problemas e assuntos dentro da agenda
governamental que serão decididos (op. cit., p. 4).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 341

– problemas (problems),23 políticas públicas (policies)24 e atividade política


(politics)25 –, que se movem independentemente através do sistema político.
Para ele, é a conexão dos três fluxos que abre uma “janela de oportunidade”
(policy window) para que, em um dado contexto, um problema específico
seja transformado em uma política, ou seja, para que uma questão vá para
a agenda de decisão. Ele salienta, porém, que essa abertura se dá, principal-
mente, pelo fluxo de problemas (reconhecimento do problema) e pelo fluxo
político, cuja principal característica consiste na defesa de uma ideia (pro-
cesso político), haja vista que as propostas e alternativas elaboradas pelos
especialistas (fluxo de soluções) chegam à agenda de decisão somente quan-
do um problema é reconhecido como tal, ou existem demanda e “clima” ou
“humor” nacional (national mood)”26 que favorecem essas ideias.

23 Esse fluxo é constituído essencialmente pelas informações acerca uma multiplicida-


de de assuntos vistos como problemáticos por atores dentro e fora do governo que
propõem soluções aos distintos problemas. O raciocínio subjacente a ele é que uma
determinada situação tem de ser identificada e explicitamente formulada como um
problema para que possa ter a chance de ser transformada em uma política.
24 O fluxo das policies compreende aqueles que indicam alternativas e propostas para
os problemas – pesquisadores, assessores parlamentares, acadêmicos, funcionários
públicos, analistas pertencentes ao grupo de interesses, dentre outros. É usado para
explicar como uma questão ascende ou cai em uma agenda, considerando-se o papel
das ideias, das interpretações e da argumentação na escolha de uma alternativa. Neste
sentido, o autor dá uma especial ênfase ao “mundo das ideias” que, independentemen-
te do estatuto científico, pode funcionar como força capaz de conduzir a agenda, na
medida em que a persuasão e a difusão de ideias, boas ou más, afetam a atenção sobre
os temas (Kingdon, op. cit., p. 17).
25 O fluxo da politics envolve fundamentalmente três elementos que podem ter efeitos
importantes sobre uma ideia a ser impulsionada pela política: o clima nacional (na-
tional mood); a opinião pública, os resultados de eleições, as mudanças na adminis-
tração; e as mudanças no Congresso (p. 17). Embora este fluxo ocorra independente-
mente dos outros dois, os acontecimentos políticos, como uma eleição iminente ou
uma mudança de governo, podem levar a um determinado tópico e política (policy) a
serem incluídas ou excluídas da ordem do dia. Com efeito, a dinâmica e necessidades
especiais criadas por um evento político poderão movimentar a agenda.
26 O national mood é caracterizado por uma situação na qual um grande número de
pessoas compartilha certas questões comuns, durante um determinado período de
342 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Na verdade, para o autor, uma situação que não é definida como um


problema, e para a qual alternativas não são previstas ou propostas, nunca
será convertida em uma questão política. Ele coloca três mecanismos bási-
cos por meio dos quais a atenção dos formuladores de políticas é provocada:
os eventos dramáticos, crises e símbolos; os indicadores; e o feedback das
ações governamentais (informações e experiências de especialistas). A for-
ma como essas situações são definidas como problemas é decisiva para que
sejam reconhecidas e consequentemente para o estabelecimento de agendas.
Kingdon argumenta ainda que para a conexão dos fluxos, há outro
componente fundamental, a saber: a atuação dos “empreendedores políti-
cos” (policy entrepreneurs). Os empreendedores políticos são indivíduos
dispostos a investir seus recursos – tempo, energia, reputação, dinheiro –
em uma ideia ou projeto visando a sua concretização futura. Esses indivídu-
os podem estar dentro dos governos (dirigentes, burocratas, servidores de
carreira, parlamentares ou assessores) e fora dele, na sociedade civil (gru-
pos de interesse, acadêmicos, jornalistas). Os empreendedores devem ser
especialistas em uma determinada questão, hábeis negociadores, capazes de
representar ideias de outros indivíduos e grupos; devem ser persistentes na
defesa de suas ideias, levando suas concepções de problemas e propostas a
diferentes fóruns. Entretanto, é necessário mais do que isso, pois os empre-
endedores devem também ser capazes de conectar problemas a soluções e
de encontrar políticos receptivos às suas ideias (Zahariadis, 2007, p. 74).
Parece ser possível afirmar que na ocasião da preparação da cidade para
recepcionar os chamados “megaeventos”, há uma combinação dos três flu-
xos – reconhecimento do problema (problem), o da formulação de soluções
(policy), e o da política (politics) – que abre uma “janela de oportunidade”
(policy window), no sentido que Kingdon lhe dá, para que a questão da
segurança pública vá para a agenda de decisão. Sugere-se, então, que existe
a abertura de uma “janela de oportunidade”, pois se forma um “clima” fa-
vorável para o reconhecimento e a incorporação da segurança pública na

tempo, o que possibilitaria algo análogo a um “solo fértil” para o desenvolvimento de


algumas ideias, ajudando assim a explicar por que algumas questões chegam à agenda
e outras são rejeitadas (Capella, 2005, p. 8).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 343

agenda governamental do Rio de Janeiro – a segurança pública se torna ob-


jeto de atenção pública e governamental, com soluções viáveis – a partir do
conjunto de alternativas possíveis para a área da segurança pública, optou-
-se na agenda de decisão pelo deslocamento da política “de enfrentamento”,
ritualizada pelo “combate” e “guerra” para a “política de pacificação”, em que
diálogo e mediação, parcerias e proximidade do Estado com a população se
conjugam para a gestão da segurança pública – e plausíveis – apoio ao pro-
grama por parte significativa de atores da sociedade civil, incluindo-se aca-
dêmicos, empresários, mídia, policiais etc., bem como da sociedade política.
Como argumenta Piquet Carneiro (2010), baseado em Kingdon,
“agendas são, portanto, correntes que fluem em uma determinada direção
e janelas de oportunidade se abrem para os seus agentes promotores, sem-
pre que o enquadramento do problema e o apoio político fluírem nessa
mesma direção” (p. 56).
Deste modo, uma questão que emerge neste estudo diz respeito aos
significados e sentidos atribuídos por esses atores a denominada “política
de pacificação”, como também os meios e estratégias utilizados para trans-
missão e sedimentação de conhecimentos, valores e comportamentos com
vistas a nortear uma extensa e profunda reforma no padrão de atuação po-
licial para o alinhamento à política em questão.
Sob o ponto de vista da gestão, para o alcance das metas propostas no
Programa, pode-se admitir a capacidade da equipe de gestores que ocupa o
alto e médio escalão do quadro de funcionários da Secretaria de Estado de
Segurança Pública, liderada pelo secretário de segurança pública Jose Ma-
riano B. Beltrame, para encontrar soluções para os problemas apresentados
na área, com certo sucesso na busca por apoio político às suas ideias.
Observa-se que essa equipe de gestores tem colocado em pauta, de ma-
neira enfática, a (re)orientação e (re)condução da agenda política na área no
Brasil, estabelecendo as prioridades para implementação das UPPs e mobili-
zando os investimentos necessários, que têm sido redirecionados e recombi-
nados27 para enfrentar os problemas enfocados, contando com parcerias entre

27 Nesse sentido, vale a pena observar a atenção dispensada ao efetivo de policiais lotados
nas UPPs, não só no que se refere a relação do número de policiais por habitantes (que
344 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

o Estado e agências privadas – empresariado e ONGs28 – em sintonia com um


movimento mais amplo de reforma da área de segurança pública no país, em
particular das polícias, baseado no paradigma de segurança cidadã.
De acordo com um administrador de alto escalão da Secretaria de Es-
tado de Segurança do Rio de Janeiro (SESEG-RJ):

“Eu uso uma expressão de que a UPP foi da intenção ao gesto. Por-
que se eu for escrever a UPP, fazer um projeto como vocês fazem
na universidade, não sai nenhuma, porque no serviço público as
coisas não andam, não sai. É verba que não veio, TCU que não sei o
quê, MP que não sei o quê e as pessoas a mercê do déspota dentro
de um lugar desses. Instalar uma política de segurança pública em
um local baseado na política da tirania e passar isso para a conver-
sa, para o diálogo, para o processo, não é uma solução fácil, não
existe manual para isso. Tem lugares, como o Dona Marta, onde há
a conversa, outros tem uma visão ruim da polícia, eles se afastaram
da polícia, não foi em vão, a polícia sempre os tratou mal. Agora,
começar uma relação nova, quebrar as desconfianças, quebrar a
história das arbitrariedades, quebrar toda essa problemática, não é
algo de fácil solução. Porque os policiais cometiam muitos excessos
lá dentro. Em contrapartida, as pessoas escondiam armas, vinham
queimar ônibus a mando. Então, eu não acho que seja algo de fácil
solução. Uma coisa que demorou 40 anos, não vai ser da noite para
o dia, talvez serão em 8, 10 anos, talvez percamos uma geração para
arrumar isso”. (Gestor de alto escalão, SESEG-RJ)

No plano da condução da política de segurança pública, o desempenho


dessa equipe sugere um importante papel político na articulação de alterna-
tivas que consideram não apenas o nível da ação do Estado, mas também a

é bem maior com relação ao que é previsto e aplicado no policiamento ordinário),


como também na questão do tempo de serviço na organização policial militar, pela
alocação preferencial dos policiais recém-formados nas UPPs, o que exige um grande
investimento financeiro para a realização frequente de concurso público para a seleção
de soldados e posterior formação profissional dos mesmos.
28 Ver a respeito dos parceiros das UPPs: <http://www.upprj.com/index.php/parceiro>.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 345

incorporação da participação da sociedade em uma política pública, pressu-


pondo a gestão das demandas públicas.
Segundo esse mesmo gestor:

“Esses são dois pilares básicos nossos, que são: para as áreas con-
flagradas, onde se tem guerra, implantar as UPP’s e no asfalto, ex-
pressão que eu não gosto, se ter uma cobrança de metas. Paralela-
mente, nós instituímos a subsecretaria de educação e capacitação,
algo nunca pensado antes, e partimos para um contato direto com
as próprias comunidades, com ONG’s, estudiosos, inclusive no
manual, a gente está escrevendo a UPP. Nos meus primeiros dias
de secretaria, eu trouxe todos aqui, porque eu sou filho do banco
universitário, então eu tenho que acreditar na universidade. Agora
tomamos uma atitude muito significativa, que eu acho que só tem
três no Brasil, o nosso é o quarto, que é o Conselho Estadual de
Segurança, um mecanismo de diálogo com as pessoas. A ideia é
dialogar com as comunidades, ver o que a população quer, o que
ela entende que deve ser feito”. (Gestor de alto escalão, SESEG-RJ)

Além disso, destaca-se o perfil dos policiais incorporados em posições


estratégicas na formulação e na gestão da segurança pública, que pertencem,
de modo geral, aos setores progressistas de ambas as organizações policiais.
Trata-se de um grupo de policiais cuja trajetória profissional foi sendo
construída ao longo do processo de consolidação da democracia do país.
Parte significativa dos policiais militares entrevistados afirmou ter sido
beneficiada em sua socialização profissional pelo pensamento do Coronel
Carlos Magno Nazareth Cerqueira, um policial militar reconhecidamente
progressista na área. Na polícia civil, alguns delegados de polícia tiveram
sua socialização profissional – formação e/ou atualização – marcada pela
gestão do Delegado de Polícia Hélio Luz, outro policial que se distinguiu
na ocasião por suas ideias progressistas. Além disso, muitos deles tiveram
oportunidade de participar de cursos de aperfeiçoamento/especialização
multidisciplinares, em universidades como a Universidade Federal Flumi-
nense – UFF. Alguns deles, inclusive, possuem mais de uma graduação e
outros têm mestrado em diferentes disciplinas acadêmicas.
346 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

De acordo com um entrevistado:

“Bom, as UPPs naturalmente elas não nascem do zero absoluto,


quer dizer, é possível afirmar que alguns projetos anteriores foram
fundamentais para que a gente tenha o que é hoje o processo de pa-
cificação. Se a gente voltar a trinta anos atrás e perceber, por exem-
plo, as experiências exitosas que houve em termo de policiamento
comunitário, Copacabana, Andaraí, na Tijuca. Então, assim, foram
experiências muito positivas e muito importantes. E elas foram im-
portantes nem tanto pelos resultados em si, mas especialmente por
trazer para nossa instituição, essa lógica de integração comunitária.
Ali, a gente começou a construir provavelmente as gerações que
estão hoje no comando”. (Gestor de médio escalão, PMERJ)

Nesse grupo encontra-se, ainda, pelo menos ao nível dos discursos, a


apropriação de uma concepção de segurança pública, na qual o papel, as
funções e o lugar da polícia são enfatizados como serviço público, o que se
pode constatar no argumento abaixo:

“Hoje, nós ainda sofremos alguns reflexos de um modelo que foi


denominado no passado de paradigma militarista. O que é isso? É
quando se subordina a ideia do serviço policial a um conceito supe-
rior de força, como se a força fosse prevalente em relação ao serviço.
Qual o nosso grande desafio? É fazer com que a força seja única e
exclusivamente um instrumento que o policial poderá fazer uso em
situações extremas, ou seja, o último do último recurso. O desafio é
fazer justamente o contrário, é fazer com que a força seja uma ideia,
um conceito necessariamente subordinado a uma ideia, a um concei-
to superior de serviço”. (Gestor de alto escalão, PMERJ, grifo nosso)

É possível conjeturar, ainda, que nessa gestão a escolha para os cargos


ocupados por esses policiais – na SESEG e/ou no comando e direção em
ambas as organizações policias – obedeceu mais a uma questão meritocráti-
ca do que política. De acordo com uma gestora:
Violência, Polícia, Justiça e Punição 347

“Houve conquistas para a área de segurança, principalmente um


problema de ingerência política no aparelho de segurança. A es-
colha do comandante passa por critérios objetivos, não é algo mais
só de política. As coisas estão caminhando bem, para se conquis-
tar uma autonomia. Então, esse ano é muito perigoso, de muitas
oportunidades, mas de muitos riscos. Com os grandes eventos, os
holofotes todos se voltam para a segurança pública, que costuma
ser usada para fins políticos. Então, esse ano marca uma tomada de
posição da polícia. Se ela disser que não serve para alguns propó-
sitos como anteriormente fazia, ela vai estar dizendo que ela serve
qualquer governo, que somos uma política de Estado. Isso depende
da chefia, do comando, de cada policial na rua. Depende que as
pessoas abram mãos de projetos pessoais, em nome de um objetivo
maior. A polícia está mais articulada, mais consciente. É a hora de
se colocar como uma instituição de Estado, largando mão desses
projetos pessoais”. (Gestora de médio escalão, PCERJ)

Nesta direção, destaca-se, igualmente, o protagonismo desse núcleo de


gestores, altamente qualificado e fortemente identificado com a mudança
do padrão de qualidade da segurança pública que, se baseando no conhe-
cimento científico, tem procurado ultrapassar o empiricismo, característico
da atuação policial no Brasil.
Como coloca um administrador do alto escalão da Secretaria de Estado
de Segurança, referindo-se ao sistema de metas29 implementado por sua equi-
pe para o incremento da qualidade da segurança pública no Rio de Janeiro:

“Tudo o que se faz tem que se medir, tem que se ter um controle
(…) e medir a produtividade nas ruas: inquéritos relatados, auto-

29 O Sistema de Metas e Acompanhamento de Resultados (SIM) foi criado em 2009,


constituindo-se um modelo de gestão por desempenho, desenvolvido pela SESEG,
por meio da Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional (SSPIO). De
acordo com a informação contida na página oficial da Secretaria, esse sistema “tem
como principal objetivo desencadear ações integradas de prevenção e controle quali-
ficado do crime e estabelecer as metas para a redução da incidência dos Indicadores
Estratégicos de Criminalidade”. Consultar a respeito em: <http://www.rj.gov.br/web/
seseg/exibeconteudo?article-id=1349686>.
348 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ria, pessoas presas, condenação, produtividade, diminuição dos


índices criminais, como nós temos todo um sistema de metas que
controla os índices. Então, a consolidação de um método, porque
eu acho que não se tinha um método, hoje se tem um método. Hoje
se forma policiais por intermédio de um banco de talentos, que
vocês sabem, que paga mais do que a faculdade de vocês por hora-
-aula. Então, eu acho que isso tem que ser consolidado. (Adminis-
trador de alto escalão – SESEG-RJ)

Chama a atenção, também, o empenho de muitos desses gestores, tanto


da PMERJ quanto da Secretaria de Segurança, para atrair não apenas o apoio
organizacional interno, mas também, o apoio externo, da sociedade e do go-
verno, utilizando os meios de comunicação disponíveis para desenvolver um
clima favorável de opinião. Destaca-se que, desde a implementação das pri-
meiras UPPs, pode-se observar a presença de diferentes gestores vinculados
ao quadro de funcionários da SESEG-RJ, em diversos fóruns – congressos
científicos, seminários, mesas redondas etc. – apresentando o Programa.
Mas, o que pensam esses gestores que estão à frente da SESEG-RJ e
de postos-chave de direção e comando nas organizações policiais sobre a
“política de pacificação” e de sua estratégia principal a “proximidade” entre
polícia e população?
Como declara um gestor:

“O foco do processo de pacificação é extremamente a preservação da


organização da vida. Logo a gente muda o foco do crime, do crimi-
noso, para ter o foco no cidadão. Quando eu falo que muda, não sig-
nifica que mudou, significa que está mudando. Porque há toda uma
necessidade de uma ressignificação do papel do policial, porque,
historicamente, a instituição sempre esteve voltada para o crime e o
criminoso. A lógica de se voltar para a comunidade e proteção das
pessoas é algo muito recente, que data exatamente dos mesmos trinta
anos que a gente está falando”. (Gestor de Médio escalão, PMERJ)

Outro aspecto diferenciador, igualmente destacado nos discursos, in-


clusive em documentos internos da própria PMERJ com relação a política
Violência, Polícia, Justiça e Punição 349

de pacificação, diz respeito a diferenciação entre “policiamento comunitá-


rio” e a modalidade de policiamento realizada pelas UPPs, o “policiamento
de proximidade”. Ressalta-se que, embora do ponto de vista doutrinário e
mesmo das estratégias, não se encontrem diferenças significativas com rela-
ção aos dois modelos de policiamento, essa distinção emerge nos discursos
como uma suposta ampliação, ou mesmo uma evolução posterior que se
operou do sentido da atuação policial para a aproximação entre polícia e
população, com vistas a melhoria das condições de vida dos moradores dos
locais onde as UPPs estão instaladas.
Vários entrevistados ao se referirem ao modelo de policiamento de
“proximidade” utilizado no trabalho desenvolvido no Programa das UPPs
indicaram outros elementos distintivos, quando comparados ao modelo de
policiamento comunitário utilizado em experiências passadas. Parte signi-
ficativa dos entrevistados argumenta que devido a presença constante dos
policiais nas localidades onde estão instaladas as UPPs, eles passam a ser
“conhecidos pelos moradores”, criando-se “laços de confiança entre polícia
e população”, que possibilitam a gestão das ocorrências que emergem no co-
tidiano da localidade, a articulação com diferentes esferas de governo, com
diversos órgãos, agências – públicas e privadas-, instituições e organizações
locais para que a polícia possa “ajudar” a população a administrar suas ne-
cessidades, tanto relacionadas à segurança como referentes aos serviços.
Como sinalizam alguns entrevistados:

“O objetivo mais importante, do ponto de vista estratégico, é a re-


tomada do território. É indiscutível que o Rio de Janeiro passou
por um processo bastante acentuado de conflagração dessas áreas,
especialmente dessas favelas. Quer dizer, que acabaram se transfor-
mando em verdadeiros quartéis generais do crime e que, de alguma
maneira, a presença da polícia era esporádica e, invariavelmente,
em operações que entrava e saía e causava inúmeros danos, mortes
de pessoas inocentes, morte de policiais, morte de marginais. En-
tão, nos últimos trinta anos o Rio de Janeiro se notabilizou muito
por isso. (Gestor de médio escalão, PMERJ)
350 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

[Polícia de proximidade é] “Sinônimo de integração, de parceria,


uma cumplicidade do bem, uma troca especialmente em uma lógi-
ca de protagonismo. Eu não quero usar uma linguagem de marke-
ting, não é isso, mas quando a gente ouve nessas lojas que o foco
é no cliente, essa baboseira do marketing, isso faz muito sentido.
(…). Então…, assim…, a polícia da proximidade é isso. É construir
junto um processo de prestação de serviços, quer dizer, é dizer vem
cá, o que você precisa”. (Gestor de médio escalão, PMERJ)

Acrescente-se ainda que, sob os auspícios da política de pacificação, a


materialização da aproximação entre polícia e sociedade é indicada como
um progresso, quando comparado as experiências anteriores. Nesta pers-
pectiva, é observado que o Programa das UPPs tem tido apoio político e
social para firmar o funcionamento da polícia como instituição prestadora
de serviços aos cidadãos, o que outras iniciativas passadas não lograram ter.
De acordo com um entrevistado:

“O batalhão escola de policiamento comunitário estava em um es-


tágio anterior ao estágio do se desenvolver metodologias de resolu-
ção com participação social, era mais uma metodologia de resolu-
ção e as interações eram pontuais. Então, como era feito o trabalho?
Você tinha um espaço geográfico, nesse espaço um problema sério,
grave, e os policiais interagindo diretamente com as pessoas, dan-
do dicas de segurança etc. (...) No GPAE, tentamos estabelecer um
conceito que pudesse estar linkando a realidade da favela com a
realidade do asfalto. Houve muita resistência, sobretudo do pessoal
do asfalto”. (Gestor de médio escalão, PMERJ, grifos meus)

Nesta perspectiva, gestores salientam o apoio ao programa, como nas


declarações seguintes:

“Tenho tido total [apoio], ontem eu troquei três e-mails com o go-
vernador. O secretário SMS direto, o tempo todo, comando da PM
também é assim. Se há uma coisa que eu não posso reclamar é de
apoio, porque nas minhas dificuldades e nas ideias que passam a
Violência, Polícia, Justiça e Punição 351

ser do grupo, porque não faço nada sozinho, há uma confiança e


um relacionamento muito legal entre meus oficiais, meus policiais.
Então, eu vou tendo as ideias e eles compram. E eu tô conseguin-
do vender para cima também. [o que é “vender para cima”] É essa
ideia de viabilizar, levo os projetos para o secretário e ele aprova.
Estou tendo muito apoio, isso é legal e fico muito entusiasmado por
isso. O governador, a mesma coisa, na questão dos recursos. Então,
assim, por parte de apoio, eu não posso reclamar mesmo. Dificul-
dades são muitas, estresse e problemas são muitos, milhares, mas
muito apoio também”. (Gestor de médio escalão, PMERJ)

“A Polícia Civil ficou fora no início desse projeto por uma opção da
Secretaria de Segurança ou por uma indisposição da Chefia de Po-
lícia, na época, com o projeto. Não sei, mas que há necessidade dela
participar, não há a menor dúvida, não há a menor dúvida. Seja com
projeção, seja com delegacia, né? Eu acho que há necessidade. (...)
está aí o Alemão, Rocinha, que são os dois grandes problemas, né? O
Alemão e Rocinha são muito complexos, são muito complexos; por
isso que a chefe [de Polícia Civil] propôs, o secretário aceitou, o go-
vernador abraçou imediatamente. Numa velocidade impressionante,
arrumou a área, está mandando fazer adaptação etc., para botar essas
duas delegacias”. (Gestor de Médio Escalão, PCERJ)

Além disso, outro diferencial indicado em relação a política de paci-


ficação, quando comparada com as políticas anteriores, é a perspectiva de
complementação de ações sociais às ações de policiamento. Objetiva-se por
intermédio da implantação das UPPs levar outros bens e serviços, públicos
e privados, bem como o desenvolvimento social e econômico às localidades
onde estão instaladas. Além disso, ambiciona-se “devolver à população local
a paz e a tranquilidade públicas necessárias ao exercício da cidadania plena”
(Diretriz Geral de Polícia de Proximidade, Boletim nº 106, de 04 de agosto
de 2014, do EMG-PM/3, da PMERJ, grifo meu). Esse é um discurso recor-
rente nas entrevistas realizadas, como os apresentados abaixo:

“Iniciado o processo de pacificação, há uma demanda muito gran-


de pela questão dos serviços públicos, limpeza, iluminação, esgoto,
352 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

educação, saúde, enfim, trabalho. O foco sai um pouco da seguran-


ça e passa por todo um conjunto de direitos mesmos, direitos de
qualquer cidadão. E outras questões também que, de modo geral,
acabam sendo demandadas, por exemplo, que era uma coisa im-
pensável em algumas comunidades, os moradores pedindo para
que os policiais intervenham na questão do trânsito, para que haja
uma organização do trânsito. No processo de pacificação, dentre
tantas coisas que acontecem, há um forte incremento do comércio,
turismo, imobiliárias, essa coisa toda. Na questão do comércio, na-
turalmente há uma questão de fluxo de entregas e na maioria das
comunidades não tem uma lógica, não cresceram com uma lógica
de trânsito urbano. Com uma via só, na qual é praticamente im-
possível passarem dois carros juntos, hoje é um problema enorme
que as pessoas têm. Por exemplo, em favela as pessoas não têm ga-
ragem e os carros ficam na rua, e é o único lugar que eles têm que
deixar o carro. Se não deixarem na rua vão deixar aonde? Então,
essa também é uma outra demanda e isso é uma coisa nova, porque
até então as pessoas se viravam, mas, agora, o poder público está
presente e isso acaba se tornando uma demanda. (Gestor do médio
escalão, PMERJ)

“Acho que se a gente olhar para trás, o que era o Rio de Janeiro há
sete anos atrás? Uma cidade onde a cultura de segurança pública
era de enfrentamento, onde nós tínhamos a insegurança como um
sentimento muito forte na população, as empresas estavam saindo
do Rio de Janeiro… então, não tem emprego, diminui a arreca-
dação de impostos e a geração de empregos. Com isso, você tem
a possibilidade de aumento do risco da criminalidade, você tem
um número menor de oportunidades para os jovens que estão en-
trando no mercado de trabalho”. Quando você pacifica, você cria a
sensação de paz, é uma nova realidade. Tanto é que hoje o Rio de
Janeiro é um grande polo de atração e de divertimento, nacional e
estrangeiro. Você vê empresas voltando, você vê grandes eventos
sendo realizados no Rio de Janeiro. Tivemos a Copa das Confe-
derações, Jornada Mundial da Juventude, evento maravilhoso re-
alizado ano passado, nós teremos a Copa e depois as Olimpíadas.
Então eu acho que estamos numa nova realidade. É um processo
sem volta. Se algum governante resolver não pagar mais essa conta,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 353

se a conta é alta, o Rio de Janeiro vai ter um retrocesso. E pode fa-


zer com que esses governantes tenham o seu poder político futuro
encerrados”. (Gestor de alto escalão, PMERJ)

“Eu acho que a segurança está permitindo que os cidadãos se


aproximem da cidadania, as instituições estão se aproximando das
pessoas, neste sentido. (…) É dar liberdade as pessoas, garantir li-
berdades, de ir e vir, é fazer com que a água chegue a esses lugares,
é um processo de construção de cidadania, e a cidadania não é só
segurança”. (Gestor do alto escalão, SESEG-RJ)

No discurso desses gestores, a pacificação oferece, portanto, um reper-


tório de possibilidades para a segurança pública que, por intermédio de um
“modelo doutrinário virtuoso” (Machado da Silva, 2014) – o da polícia de
proximidade –, ultrapassa os limites da ação policial nas favelas, produzindo
efeitos positivos concretos no estado como um todo.
Verifica-se que no discurso dominante no conjunto de entrevistados
encontra-se a ideia de que está em curso uma mudança de paradigma,
no qual não caberia mais ao policial exercer o papel do “guerreiro” para o
“combate” ao crime, mas sim o do “pacificador”, para controlar o crime e
reduzir a violência com o compromisso de defesa e garantia da cidadania.
Esse é o papel que, muito embora ainda não esteja consolidado no trabalho
policial, é indicado como desejável por esse segmento para o êxito de seu
trabalho à frente do setor.
A análise dos discursos sobre “pacificação” revela que os significados pre-
dominantemente atribuídos ao termo correlacionam o termo à “cidadania”,
“paz”, “prevenção”, “comunidade”, “apoio”, “confiança” e “proximidade”.30 Em

30 Outras categorias presentes no discurso dos gestores para qualificar seu campo de ação
podem ser destacadas: “comunidade”, “asfalto”, “funk”, “tráfico de drogas”, “favelado”,
“autonomia política”, dentre outras. Entretanto, para fins dos objetivos propostos neste
artigo priorizou-se aquelas que pudessem contribuir mais diretamente para o exame
dos significados conferidos pelos gestores da área no estado à “política de pacificação”
implementada por intermédio do “policiamento de proximidade”, bem como às práticas
articuladas para a formação profissional desenvolvida para a “modelagem” de policiais
alinhada às metas e diretrizes propostos pelo Programa das UPPs no Rio de Janeiro.
354 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

decorrência, o sentido prático conferido as funções, o papel e o lugar da polí-


cia é o de um importante ator do serviço público, um “prestador de serviço”,
capaz de “levar cidadania” à população residente dos territórios “conflagra-
dos” ou de “risco” e “comunidades”, antes “abandonados pelo poder público”.
Neste cenário, a polícia aparece com um amplo mandato, no qual para
além da atuação nos assuntos de cunho legal, cabe-lhe desempenhar múlti-
plas atividades, como atuar em programas de prevenção, com a incorpora-
ção do conhecimento especializado, estabelecendo um conjunto de ativida-
des e medidas articulado e integrado entre a polícia, os diferentes setores do
poder público e privado e os próprios cidadãos.
No entanto, o amplo leque de atividades desempenhado por policiais
militares alocados nas UPPs, sem a presença efetiva de outros atores pú-
blicos do setor da segurança pública e do bem-estar social, faz o trabalho
policial se assemelhar a uma “cruzada moral”, na qual são levados não só os
serviços, mas sobretudo as regras da moralidade e da cidadania do “asfalto”
para a favela, na expectativa que possam “pacificar” territórios e indivíduos,
com vistas a integração do que Zuenir Ventura denominou, “cidade partida”.
Mais recentemente, as UPPS tem sido questionadas com maior fre-
quência e vigor, especialmente por parte de acadêmicos e da mídia, que
atribuem uma “crise” ao programa, em face de frequentes denúncias rela-
cionadas ao comportamento abusivo de policiais junto aos moradores das
favelas onde se encontram as UPPs – abordagens com revistas vexatórias de
pessoas, muitas vezes desnecessárias, pois não há indicação de delito; busca
e apreensão em residências sem mandado judicial; determinação de “to-
que de recolher”; proibição de bailes funks; corrupção de policiais; e mesmo
morte e desaparecimento de pessoas.31

31 Especialmente a partir de 2013, a conduta de policiais pertencentes ao programa é


colocada no centro das atenções com o desaparecimento do morador da Favela da
Rocinha, Amarildo de Souza, que desapareceu em 14 de julho de 2013, após ser con-
duzido por policiais para a sede da UPP no local, no episódio que ficou conhecido
como o “caso Amarildo”. Em 2014, outro acontecimento envolvendo policiais da UPP
ganha notoriedade, com a morte do dançarino Douglas Rafael da Silva (DG), em 22 de
abril de 2014, no Morro do Pavão-Pavãozinho, em um suposto tiroteio entre policiais
e narcotraficantes no local.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 355

A “política de pacificação”, por intermédio das UPPs, estaria estimulando


a materialização de alguns aspectos “indesejáveis”, como: o reforço da imagem
da favela como lócus privilegiado da desordem, da violência e da crimina-
lidade, bem como o deslocamento do controle autoritário do antigo “dono
do morro” – o narcotraficante – para o “novo dono do morro” – a polícia
(Cano, 2012); o incremento da presença ostensiva da polícia, diga-se “milita-
rizada”, como meio, supostamente, necessário para controlar e disciplinar as
potenciais condutas “desviantes” do morador de favela e também a crescen-
te policialização da “atividade político-administrativa” nas favelas, quando a
polícia assume o papel de intermediador entre as demandas das populações
moradoras dos territórios da pobreza e o “mundo público” (Machado, 2010),
dentre outras que indicam uma exacerbação de regulação da vida cotidiana
dos moradores das favelas onde se encontram UPPs, por parte da polícia.
No discurso oficial daqueles que estão à frente da gestão da política de
segurança pública no Rio de Janeiro evidencia-se uma agenda para o setor,
na qual busca-se estabelecer estratégias e mecanismos que favoreçam a res-
significação e requalificação do papel, do lugar e das funções da polícia para
lidar com os problemas da (in)segurança pública no contexto atual.
Neste enquadramento, a formação profissional do policial aparece
como assunto relevante para transmissão e sedimentação de conhecimen-
tos, valores e comportamentos, com vistas a nortear um padrão de compor-
tamento alinhado com a ideia de uma polícia democrática voltada para a
prestação de serviços aos cidadãos.
Como argumenta um gestor do alto escalão da SESEG:

“Hoje se forma policiais por intermédio de um banco de talentos,


que vocês sabem, que paga mais do que a faculdade de vocês por
hora-aula. Então, eu acho que isso tem que ser consolidado, eu não
vejo a mudança sem passar pelas academias [de polícia]”.

Nesta direção, pode se indagar como se dá a “moldagem” do futuro


policial de acordo com o “novo paradigma” da política de segurança pública
em curso. Quais conteúdos e práticas estão presentes para a constituição do
policial “pacificador”?
356 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

As práticas para a formação profissional do futuro policial:


do policial “guerreiro” ao “pacificador”?
Para a moldagem do “fazer” policial de acordo com o “novo paradig-
ma”, um conjunto de reformulações é sugerido, no qual está presente a ideia
de proximidade entre polícia e população, a valorização do trabalho de pre-
venção e a ênfase na prestação de serviço.
Neste sentido, salienta-se a realização de algumas iniciativas que esta-
vam sendo desenvolvidas na ocasião em que a pesquisa foi realizada.
Destaca-se a criação do “Banco de Talentos”, em 2011, uma importan-
te ação da SESEG, com o propósito de cadastrar e selecionar profissionais,
com diferentes formações profissionais e titulações universitárias, para atu-
arem nas instituições de ensino das polícias, civil e militar, com vistas ao
desenvolvimento de atividades educacionais diversas nos cursos de forma-
ção profissional de policiais.32 Além de buscar assegurar maior qualificação
de pessoal para o processo educativo, a iniciativa contribui para favorecer
um ensino interdisciplinar e plural nas academias de polícia no processo de
socialização profissional.
Como argumenta uma gestora da Secretaria de Segurança Pública:

“Então, hoje aqui, na área da educação, a gente fez algumas políticas,


no sentido da revisão curricular; e por que é que a gente busca a
revisão curricular? Para ter um alinhamento político, os currículos
eram muito desalinhados com a política vigente. (...) Então, assim, a
revisão curricular, justamente, buscava isso, essa questão do alinha-
mento político dos currículos; uma inovação na gestão escolar, e a
gente tem conseguido assim, a gente fez uma parceria com a UERJ, a
gente está investindo no pessoal que está nas escolas [academias de
polícia], num sentido assim: Ah, no currículo, no papel, cabe tudo,
mas como é que isso se dá na prática, qual a estrutura, o que é que
a escola dá como suporte pra que isso aconteça, de fato? Então, a
gente está preocupado com a gestão escolar; a gente teve toda uma
reformulação da prática de docência nas escolas [por intermédio do
Banco de Talentos]”. (Gestora de alto escalão, SESEG – RJ)

32 Para mais informações, consultar <http://www.bancodetalentos.seseg.rj.gov.br>.


Violência, Polícia, Justiça e Punição 357

No plano das organizações policiais também vinha se realizando um


processo de mudanças importantes para alteração dos currículos dos cursos
de formação profissional dos futuros policiais. Nesta perspectiva, pode-se
destacar o trabalho desenvolvido por intermédio da “Comissão de Revisão
de Currículos 2012/2013 – CFO (Curso de Formação de Oficiais) e CFAP
(Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças)”, instaurada pelo Esta-
do Maior Administrativo,33 na qual foram examinados, discutidos e refor-
mulados os currículos dos cursos de formação de oficiais e de soldados a fim
de se tornarem congruentes com a política de segurança pública em vigor.
Some-se a esse trabalho, a discussão e elaboração da proposta do “Curso
Superior de Tecnologia (CST) em Segurança Pública”, com ênfase em polí-
cia de proximidade, proposto para ser desenvolvido através de um convênio
entre a PMERJ e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Na Academia de Polícia Militar D. João VI (APM D. João VI) da PMERJ
havia uma proposta do seu dirigente de efetuar mudanças na formação pro-
fissional de oficiais, que incluíam não apenas o conteúdo dos currículos,
mas também o regime de estudos dos cadetes – de internato para semi-
-internato. Segundo esse comandante, a experiência do regime de externato
para o 3o ano do Curso de Formação de Oficiais (CFO) já estava sendo im-
plementado desde o começo do ano letivo, pretendendo-se fazer o mesmo
com os alunos do 2o ano, a partir do segundo semestre. De acordo com sua
proposição, o mesmo seria feito em breve com os alunos do 1o ano.

“Porque uma crítica que eu sempre tive era que esse isolamento, que
esse grande quadrilátero aqui que acaba né... essa coisa da intuição
total, afaste, desligue esse jovem dos seus afetos (...) e depois de três
anos a gente devolve esse jovem [a sociedade]. E, muitas vezes…,

33 Essa comissão era formada por policiais vinculados ao setor de ensino da corporação –
comandante, subcomandante e pedagogas das escolas [academias da polícia militar] –,
como também por uma consultora externa, contratada pela SESEG-RJ. Acompanhei,
por aproximadamente quatro meses, como observadora, os trabalhos desenvolvidos
pela mesma. Agradeço, particularmente, ao Coronel Antônio Carlos Carballo Blanco,
então diretor da Escola Superior de Polícia Militar (ESPM), pela oportunidade de par-
ticipar dessa comissão de trabalho.
358 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

eu conversei com muitas mães de alunos que já estão formados e


havia uma reclamação que o aluno mudava, se embrutecia... Não
pode ser isso! Não pode ser isso! Não pode! (...). Essa questão do
internato divide muito as opiniões. Eu, particularmente, não vejo o
internato com bons olhos nos três anos. Eu entendo que nós deve-
mos ter um momento de internato, que não precisa necessariamen-
te dos três anos. (...) Eu estou apostando muito nessa proximidade
[entre a academia e as famílias], como uma maneira de impedir
que todo esse ambiente brutalize, faça com que esse jovem perca o
vínculo com as suas famílias”. (Gestor de médio escalão, PMERJ)

Na Academia de Polícia Civil Sylvio Terra – ACADEPOL esse processo


pôde ser igualmente observado. Uma gestora de médio escalão coloca:

“Aí o policial vinha com essa expectativa pra ACADEPOL, queria


ser um policial operacional, quando na verdade o que a gente que-
ria era que ele saísse um policial que se misturasse, discreto, capaz
de se investigar. Um policial capaz de entender que a polícia é uma
agência de serviço que está 24h de porta aberta, que fosse uma polí-
cia de corpo comunitária sim, porque a estratégia de atuação dele é
de polícia comunitária sim, pois a maior interação que pode haver
entre polícia e a sociedade é no balcão de uma delegacia. Ali, o cara
abre a vida dele. A gente queria que eles entendessem tudo isso,
as diferenças e as intolerâncias como agenda pública e como ser-
vidor público ele tem que cumprir essa agenda independente das
questões pessoais, das convicções religiosas de cada um. (…) Eles
realmente entenderam que o papel deles é muito mais do que subir
e descer morro e que a maior parte da atuação deles não é aquela.
É estar na delegacia, é fazer o registro, produzir provas, então eles
entenderem isso e gostaram. Porque entender eles até entendiam,
mas ficavam frustrados, não gostavam”. (Gestora de médio escalão,
PCERJ)

A mesma gestora indicou as mudanças que efetuou nos currículos dos


cursos de formação profissional para autoridade policial (Delegado de Po-
lícia) e agentes (Agentes de Polícia Estadual de Apoio Técnico-Científico e
Violência, Polícia, Justiça e Punição 359

Agentes de Polícia Estadual de Investigação e Prevenção Criminais) para


gerar aprendizagens em consonância com as novas exigências da política de
segurança pública em vigor” (Gestora de Médio Escalão).
De acordo, ainda, com ela:

“A gente tem que tomar algumas atitudes um pouco radicais. Por


exemplo, tiramos todas as disciplinas de direito do curso de forma-
ção de delegado, todas. Por que o delegado é um bacharel em Direi-
to, ele faz um concurso jurídico, então ele não vem para a academia
para estudar direito. Ele vem para estudar Direito aplicado, então a
gente tem o penal aplicado, ou seja, é o Direito aplicado à atividade
de polícia. Colocamos um módulo de gestão para o delegado. Para
o inspetor de polícia, reduzimos sensivelmente porque os concur-
sos exigem noções de direito, o concurso exige conhecimento de
direito, mas não é totalmente jurídico, então não tirei totalmente.
(…) Tiramos o curso de perito, então o curso de formação de pe-
ritos não acontece na academia mais, quer dizer módulo básico e
instrumental só, o módulo profissionalizante é todo dentro do ins-
tituto. Porque eu vou ensinar o perito primeiro o que é ser servidor
público, o que é ser policial, isso ainda é na academia, isso é o que
é comum a todo policial, é o que todo policial deve saber (…) São
coisas que nem foram tão difíceis de fazer, mas que deram uma
mexida”. (Gestora de Médio Escalão)

No que se refere diretamente à formação profissional dos futuros po-


liciais para serem alocados nas UPPs, havia ainda uma proposta da SESEG
para mudança do currículo do curso de formação profissional de praças
(soldado, cabo e sargento), apresentada em janeiro de 2012, por intermédio
do documento Desdobramentos da Oficina de Alinhamento das UPPs “For-
mação e treinamento: relação polícia e comunidade”.
Neste documento encontra-se a seguinte informação:

A Malha Curricular do CFAP está sendo revisada a partir das com-


petências da PM e trabalhará com conteúdos conceituais, procedi-
mentais e atitudinais, com o objetivo de garantir a unidade de pen-
360 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

samento/ação. Essas temáticas comporão o novo currículo, como


disciplina ou tópico de disciplina, como o caso de gestão de pessoas.

Na ocasião da pesquisa, a formação profissional básica de Soldados


era realizada por intermédio do Curso de Formação de Soldados (CFSD),
desenvolvido no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças 31 de
Voluntários (CFAP), em SULACAP. O curso compreendia o módulo básico,
o módulo profissional, o módulo jurídico e o módulo complementar, onde
estava localizado Estágio de Polícia de Proximidade (EPP),34 bem como o
Curso de Aprimoramento da Prática Policial Cidadã (CAPPC), eram, desde
2002, ministrados pela ONG Viva Rio.35
A despeito da proposta da “malha curricular” acima referida, o currí-
culo desenvolvido até aproximadamente o final de 2012 não apresentava,
em relação aos currículos anteriores, mudanças substanciais com relação as
disciplinas e suas respectivas cargas horárias ofertadas.36 Além disso, nesse
material não estavam disponíveis as ementas das disciplinas, os procedi-

34 O EPP inicialmente ocorria após a conclusão do CFSD se constituindo a última etapa


do curso. Isso foi alterado, ainda em 2012, quando foi englobado no módulo comple-
mentar do CFSD.
35 O Curso de Aprimoramento da Prática Policial Cidadã (CAPPC) é um projeto da
ONG Viva Rio, constituindo-se parte da formação e da qualificação continuada di-
rigida especialmente para as praças (soldado, cabo ou sargento) da Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), desde 2002. Segundo informações divulgadas na
página da organização, suas principais diretrizes são “a humanização e a elevação da
qualidade do serviço policial militar, com prioridade na prevenção do crime e da vio-
lência, valorizando o papel comunitário da atividade policial, o profissional de polí-
cia, a ética profissional e o respeito à lei”. Consultar a respeito, <http://vivario.org.br/
seguranca-humana/pratica-policial-cidada/>.
36 Trata-se do documento Malha curricular – CFSD 2012 (atualizada em 6 de junho de
2012), disponibilizada pela Comissão de Revisão de Currículos 2012/2013 – CFO e
CFAP. Nesse documento, havia a previsão de carga horária total de 1.308 horas, distri-
buída em aproximadamente 27 semanas, no regime de externato. Segundo informa-
ções da Divisão de Ensino do CFAP, os currículos de 2009, 2010 e 2011 são idênticos.
Vale lembrar que, como foi mencionado anteriormente, os currículos dos cursos de
formação profissional da PMERJ – tanto de oficiais como de praças – se constituíram,
no ano de 2013, em objeto de atenção dessa Comissão.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 361

mentos didáticos, o sistema de avaliação e tampouco a bibliografia que as


norteavam,37 o que dificulta o acompanhamento dos conteúdos programa-
dos e ministrados, bem a avaliação dos resultados alcançados.
O exame dos currículos do curso de formação profissional de soldados,
como também das entrevistas realizadas com o então comandante do CFAP
revelam que não houve efetivamente mudanças substanciais no currículo
do curso de formação de soldados. Apesar das alterações na distribuição da
carga horária de algumas disciplinas, o material apresenta certa deficiência
de disciplinas e de metodologias de ensino mais afinadas com a proposta de
policiamento de proximidade em pauta.
De maneira geral, o curso de formação profissional de soldados ainda
mantem um perfil voltado para o policiamento geral ostensivo, com maior
relevo na preparação física do policial, insinuando certa visão da atividade
policial preventiva que, até esse momento, valoriza a virilidade e a força
física como requisitos básicos para a manutenção da ordem e o controle do
crime, em uma perspectiva reativa e em detrimento de uma noção da ativi-
dade preventiva policial, que demanda a aplicação de conhecimentos e ha-
bilidades relacionados ao conhecimento propiciado pelas ciências humanas
para o manejo adequado de conflitos diversos nas relações interpessoais. Há
igualmente fragilidades no que diz respeito a conteúdos relevantes para a
compreensão da formação social e econômica do Brasil, do sistema de segu-
rança pública e de justiça criminal nacional (e internacional), dos diferentes
modelos profissionais de polícia, dentre outros.
Constata-se, ainda, no processo de ensino/aprendizagem, a preponde-
rância de relações bastante hierarquizadas, pautadas na obediência a disci-
plina e hierarquia militar, o que dificulta a incorporação de um princípio
fundamental para o pleno desenvolvimento do trabalho do policiamento
comunitário ou de proximidade – o da descentralização operacional –, com
vistas a materializar a aproximação entre polícia e sociedade e firmar a con-
cepção da polícia como instituição prestadora de serviços aos cidadãos.

37 No Curso de Formação de Soldados (CFSD) são utilizadas apostilas elaboradas na


própria PMERJ como material auxiliar.
362 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Neste processo, chama a atenção também o tipo de instrução ofereci-


da, até então, no Estágio de Polícia de Proximidade (EPP). Na ocasião em
que a pesquisa foi realizada, a instrução no EPP era reservada a Coman-
dantes, Subcomandantes, Sargentos e Soldados que atuavam nas UPPs. Se
por um lado, essa exclusividade do corpo docente insinua uma articulação
mais imediata entre ensino/treinamento e “campo de atuação” do policial, a
observação de algumas instruções no EPP revela a reprodução de um tipo
de instrução improvisada, com o predomínio da apresentação do conteúdo
baseada na experiência do policial, a partir da sua trajetória profissional na
corporação, sem que se problematize, do ponto de vista científico, as dinâ-
micas sociais da realidade em que atuam. A falta de ancoragem científica
na formação profissional do policial possibilita a emergência do chamado
“currículo oculto”, repleto de crenças, valores e preconceitos que fazem parte
da trajetória pessoal e profissional de cada indivíduo.
Além disso, observou-se que nem todas as atividades programadas em
sala de aula foram de fato realizadas, fundamentalmente, pela falta de ins-
trutores para ministrar aulas nos horários previstos nos diferentes pelotões,
devido principalmente ao acúmulo de atividades que eles já têm, haja vista
que além da atividade em sala necessitam estar primordialmente na UPP
sob a sua responsabilidade.38
Também foi possível notar a falta de sistematicidade de programas de
educação permanente por parte das academias para o conjunto dos poli-
ciais militares, em especial para as praças, no que diz respeito a instruções
periódicas nos bancos escolares para aplicação no campo de trabalho. Esses
cursos obedecem muito mais a exigência para mobilidade e ascensão profis-
sional do que a ideia de problematizar o lugar, o papel e as funções concer-
nentes as atividades profissionais cotidianas dos policiais.
Igualmente, evidenciou-se dificuldades não apenas do ponto de vista da
gestão pedagógica, mas também de estrutura física do CFAP, que apresenta-
va um conjunto de problemas, tanto relativos a falta material de apoio para

38 Houve comentários em off, que indicavam que essa falta de instrutores era regular,
haja vista que a presença dos mesmos no EPP dependia da disponibilidade e até mes-
mo da “boa-vontade” deles para ali estarem.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 363

uso em sala de aula – data show, computadores, pilots etc. –, como também
referentes a salas de aula, que estavam superlotadas de alunos, sem ar con-
dicionado por problemas de queda de fase na região, dentre outros aspectos
importantes para o favorecimento de boas condições para o funcionamento
e aproveitamento do curso de formação e treinamento profissional.
Como argumenta uma gestora de primeiro escalão:

“A gente até tem feito algumas aquisições para modernizar, colocar


todas as salas de aula com Datashow, essas coisas, mas assim, tem
academia que precisa de uma... não é só vitrine, entendeu, tem que
ter uma reforma estrutural mesmo, física; o CFAP está caindo aos
pedaços. Então, isso eu me ressinto, que a gente não conseguiu,
porque não tem orçamento, a gente não conseguiu ainda o orça-
mento para isso, mas isso está nos planos”. (SESEG-RJ)

Constata-se, portanto, que no repertório de possibilidades sugerido na


agenda política de segurança pública do Rio de Janeiro, algumas proposições
mantiveram-se até o momento em destaque, como a contínua expansão das
UPPs, com a seleção e a incorporação de um contingente maior de soldados
para ocupar postos criados nos locais onde essas unidades vêm sendo im-
plantadas. Outras, entretanto, apesar de fazerem parte da pauta dessa agen-
da, não foram operacionalizadas, ou se o foram, se deram de maneira bas-
tante frágil, como a questão a formação profissional policial dirigida para a
política de pacificação em pauta. Ao mesmo tempo em que se pode verificar
múltiplas ações para o estabelecimento de uma maior qualidade do ensino
e capacitação profissional de policiais, se revelam fragilidades nas condi-
ções reais para o desenvolvimento do ensino e do treinamento profissional
que possam efetivamente promover e sedimentar conhecimentos, valores
e comportamentos com vistas a uma mudança paradigmática da atuação
policial da cultura da “guerra” para a da “paz”.
364 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Entre discursos e práticas: algumas considerações sobre a gestão da


segurança pública no Rio de Janeiro
Neste trabalho buscou-se apresentar um panorama da recente agenda
governamental, dos gestores e da gestão da segurança pública no Rio de
Janeiro, considerando-se os discursos dominantes entre os gestores do setor
sobre a segurança pública no estado, com especial ênfase na política de paci-
ficação desenvolvido por intermédio do Programa das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs).
A partir do discurso desse segmento buscou-se analisar os significados
atribuídos a política de “pacificação” no Rio de Janeiro, bem como as prá-
ticas concretas organizadas para o sucesso dessa iniciativa, especialmente
aquelas relacionadas com a formação e treinamento profissional para a for-
mação do policial “pacificador”.
No discurso oficial daqueles que estão à frente da gestão da política
de segurança pública no Rio de Janeiro evidencia-se uma agenda para o
setor, na qual está em pauta o estabelecimento de estratégias e mecanismos
que possibilitem a ressignificação e requalificação do papel, do lugar e das
funções da polícia para lidar com os problemas da (in)segurança pública no
contexto atual.
No entanto, sublinha-se que essa agenda não tem, até o momento, al-
cance para todo o estado, pois a implantação das UPPs está circunscrita a
um policiamento especial em áreas onde se evidencia o controle de grupos
armados ilegais, que se encontram no perímetro da cidade do Rio de Ja-
neiro. Tampouco engloba todas as agências de segurança do estado, haja
vista que a consecução dessa agenda está a cargo quase exclusivamente da
organização policial militar, com débil incorporação da polícia civil e de
outros órgãos que compõem a segurança pública, como a defesa civil e de
bem-estar social. Vale a pena destacar também, que a formação e treina-
mento “especializado” em policiamento comunitário e/ou de proximidade
não atinge toda corporação da polícia militar.
Chama a atenção, ainda, que apesar de a política de pacificação estar
em andamento desde 2008, não tenham sido instituídas alterações mais
significativas nos cursos de formação profissional policial, em particular
Violência, Polícia, Justiça e Punição 365

de soldados, que é o grande contingente de policiais militares alocado nas


UPPs, de forma a articular mais estreitamente a dinâmica educacional (con-
teúdos teóricos, treinamento etc.) ao trabalho desenvolvido pelos policiais
que atuam nas UPPs.
Certamente as reformulações em andamento, no que tange a formação
profissional das polícias constituem um cenário promissor para a mudança
do padrão de atuação reativo, violento e arbitrário das polícias, mas não
bastam para estabelecer e consolidar uma filosofia de trabalho adequada a
proposta de segurança em foco, particularmente com relação ao Curso de
Formação de Soldados.
Pode-se argumentar que embora se verifique importantes mudanças
nos últimos anos no que diz respeito as orientações e práticas policiais de-
senvolvidas nessa experiência, evidencia-se um baixo grau de instituciona-
lização do “novo” modelo de policiamento revelado fundamentalmente pelo
nível de continuidade de práticas pautadas em uma cultura de “combate ao
crime”, que repetidamente se justapõem as práticas baseadas no modelo de
policiamento comunitário e seus congêneres.
Neste contexto, evidencia-se a reprodução dos “velhos princípios” do
“fazer policial”, em que prevalece sobretudo a interação arbitrária e violenta
entre polícia e sociedade, em especial com o segmento pertencente a popu-
lação pobre da população.
Diante das dificuldades indicadas, há sempre o risco de negar as ino-
vações e os avanços alcançados por experiências que ainda estão em anda-
mento, como os colocados em prática pelo programa das UPPs.
A pesquisa realizada indica, porém, que o grupo a frente da SESEG e
em postos-chave de direção e comando nas organizações policiais tem a sua
atenção voltada para a consolidação de uma agenda de reformas da polícia,
colocando em pauta as prioridades e mobilizando recursos – materiais, or-
ganizacionais e simbólicos – necessários para sua realização.
No entanto, como argumenta Gomide (2008), não basta que exista uma
solução para que um problema seja colocado na agenda, transformando-se
numa política, pois é preciso um contexto favorável no qual o problema seja
reconhecido. Igualmente, não é somente um o contexto favorável que resul-
366 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ta na decisão de uma política, haja vista que é preciso que o problema seja
reconhecido e que existam soluções viáveis e aceitáveis. “É a conjunção dos
três fluxos (problems, policies, politics) que abre uma ‘janela de oportunida-
de’ (policy window) para que uma questão vá para a agenda de decisão – do
mesmo modo, uma ‘janela’ se fecha quando um dos fluxos se desconjunta
dos demais” (p. 9, grifo meu).
Desse modo, uma questão crucial para que o programa das UPPs não fi-
que como uma experiência “alternativa” ou “personalista” no Rio de Janeiro,
mais um experimento fragmentado e episódico, constituindo de fato uma
política pública de segurança exitosa e com amplo e duradouro escopo, diz
respeito a superação dos fatores internos e externos ao programa, indicados
anteriormente, que afetam a estrutura, a organização e o funcionamento do
programa, tais como: apoio político e governamental, adesão dos policiais,
civis e militares, à filosofia e estratégias estabelecidas pelo programa para a
atuação policial – com a substituição do paradigma da “cultura da guerra”
baseado na força, na qual “o policial não se enxerga se ele não estiver com
um fuzil na mão, se ele não estiver com uma lógica de apreensão de drogas
e de prisão” por outro padrão da “cultura da paz”, na qual o policial é essen-
cialmente um “prestador de serviço” – articulação/cooperação entre todos
os órgãos de segurança e integração/colaboração entre esses e as de organi-
zações de “bem-estar” social, aceitação e confiança da população na polícia,
dentre outros. É preciso, ainda, que tenha capacitação continuada e acom-
panhamento sobre o desempenho das atividades realizadas pelos policiais.
No que diz respeito ao treinamento profissional, é imperativo que con-
teúdos e metodologias para a educação policial promovam o incremento e
a consolidação dos valores, das normas, das competências e das habilidades
para atuação nesse modelo. Para isso, comunicação, diversidade, resolução
de problemas, envolvimento da comunidade e prevenção da criminalidade,
dentre os mais importantes, são conteúdos imprescindíveis. Outro aspec-
to relevante, relaciona-se com a capacitação dos próprios instrutores, que
precisam ser capazes de fornecer o conhecimento especializado em policia-
mento comunitário e não apenas a experiência no campo. Também é indis-
pensável que hajam instalações e equipamentos apropriados nos centros de
Violência, Polícia, Justiça e Punição 367

ensino e treinamento para que sejam possibilitadas experiências de aprendi-


zagem satisfatórias no modelo do policiamento de proximidade. A parceria
com universidades é outro fator relevante, no sentido de complementar o
ensino fornecido pelas academias de polícia, ministrando alguns conheci-
mentos específicos para o desenvolvimento do trabalho policial baseado no
modelo de policiamento em foco. Por fim, recomenda-se a realização de
uma avaliação dos cursos por órgão independente, a fim de garantir as bases
necessárias para uma análise criteriosa e objetiva, com vistas a recomendar
as reformulações necessárias, isentas de interesses corporativos. 
Assumindo-se que o tema da segurança pública alcançou a agenda pú-
blica e governamental no Rio de Janeiro, a partir da análise apresentada sur-
ge outra questão relacionada a manutenção do assunto na agenda.
Com relação a esse último aspecto, não haveria condições de analisar
aqui os inúmeros fatores que devem ser considerados para a manutenção
contínua do interesse e a atenção sobre o assunto. Entretanto, acredita-se
que uma pista para se pensar a sustentação do programa, como um todo,
relaciona-se à prática do acompanhamento e avaliação constante de progra-
mas e projetos sociais, com canais de participação para a população, como
instrumentos indispensáveis para conhecer as potencialidades e limites dos
mesmos – seus resultados e impactos –, e ajustar seus objetivos, ou até mes-
mo para a reformular suas propostas e atividades, caso se faça necessário.
Nesta perspectiva, monitoramento e avaliação de programas e projetos so-
ciais expressam, de um lado, a responsabilidade do Estado por sua eficácia,
de outro a participação da sociedade no desenvolvimento dos mesmos, in-
terpelando e pressionando para a defesa dos seus direitos, bem como pela
permanência do interesse e da atenção sobre o assunto na agenda, com a
prioridade que ele merece (Barreto, s. d.).
Portanto, pode-se afirmar que um desafio colocado para a continuação
do programa em questão – o Programa das UPPs – e sua ascensão ao status de
política pública de segurança reside na materialização da prática da avaliação,
que além de estimar seus resultados, impactos e efeitos, poderá indicar a con-
servação, as mudanças e os desdobramentos necessários para que se confirme
(ou não) sua eficiência, eficácia e efetividade no provimento da segurança pú-
368 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

blica implicada com a prestação do serviço policial, com o compromisso de


defesa e garantia da cidadania para todos, em uma cultura de paz.

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CURRÍCULO DO CURSO DE FORMAÇÃO E ORIENTAÇÃO PRO-
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CLASSE, CORRESPONDENTE À CATEGORIA FUNCIONAL DE
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CURRÍCULO DO CURSO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL PARA O
CARGO DE INSPETOR DE POLÍCIA DE 6ª CLASSE, CORRESPON-
372 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

DENTE À CATEGORIA FUNCIONAL DE “AGENTES DE POLÍCIA


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do do Rio de Janeiro.
DECRETO Nº 42.787 DE 6 DE JANEIRO DE 2011. Dispõe sobre a implanta-
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Oficial do Estado do Rio de Janeiro, Ano XXXXVIII, nº 5, Parte I.
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FORMAÇÃO E TREINAMENTO – RELAÇÃO POLÍCIA E COMUNI-
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4 de agosto de 2014, EMG-PM/3, Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro.
PARTE III
JUSTIÇA: PERCEPÇÕES E IMPUNIDADE
Percepções sobre a Justiça
entre moradores da cidade
de São Paulo: 2001-20131

Nancy Cardia, Frederico Castelo Branco,Viviane de Oliveira Cubas,


Renato Alves e Gustavo Higa2

O judiciário é uma das instituições centrais na promoção e garantia do


primado da lei ou Estado de Direito (Rule of Law). Esse papel do judiciário
tem recebido atenção de vários teóricos que se dedicaram ao estudo das novas
democracias e seus processos de consolidação, por exemplo, Diamond e Mor-
lino (2005). Esses autores propõem que, além do Estado de Direito, os regimes
democráticos de caracterizam por processo que exigem um judiciário presente
e atuante, se não em todas, em diversas dimensões3 que são por eles considera-

1 Texto originalmente publicado no Dossiê Justiça Brasileira in Cardia, Nancy; Castelo


Branco, Frederico; Cubas, Viviane; Alves, Renato; Higa, Gustavo. “Percepções sobre
a Justiça em meio a moradores da cidade de São Paulo (2001-2013)”. Revista USP,
101 (2014): 161-172.
2 Pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
(NEV-USP). A pesquisa foi realizada com recursos do programa CEPID/FAPESP.
3 O Estado de Direito é a base da qualidade da democracia. Na visão destes autores,
quando essa dimensão é fraca, a participação dos pobres e marginalizados é supri-
mida; as liberdades individuais se tornam tênues e fugazes; os grupos civis podem
ser incapazes de se organizar e reivindicar seus direitos; os indivíduos perspicazes e
bem conectados têm maior acesso a justiça e poder; quando agências de accountability
horizontal são incapazes de funcionar propriamente a corrupção e abuso de poder
campeiam; a competição política é distorcida e injusta; os eleitores têm dificuldades
em fazer com que os governantes prestem contas.
376 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

das fundamentais: participação, competição, accountability vertical e horizon-


tal, igualdade perante a lei, liberdade e responsividade4 (responsiveness).
No cotidiano, a ação do judiciário que tem maior visibilidade é a ga-
rantia da igualdade. Igualdade significa que todos têm os mesmos direitos e
proteções legais. O judiciário garante o princípio da igualdade, quando apli-
ca a lei igualmente a todos (igualdade de aplicação) e julga a todos de forma
equânime (igualdade de submissão à lei). Deste modo, o judiciário que in-
dica e assegura que todos estão submetidos à lei e que ninguém está acima.
Para O’Donnell (2005), a importância do judiciário para salvaguardar
lei é evidente, pois, em um Estado de Direito, deve se assegurar que: 1- as
leis sejam igualmente aplicadas a todos, inclusive aos agentes do Estado;
2- o Estado legal esteja presente em todo o território, não havendo áreas
dominadas pelo crime organizado, oligarquias locais ou chefes políticos que
se oponham ao direito; 3- a corrupção seja coibida e, quando ocorrer, de-
tectada e punida, que ocorra na política, na administração pública ou no
judiciário; 4- a burocracia aplique as leis de modo competente, eficiente e
universal, assumindo a responsabilidade em casos de erros; 5- as forças po-
liciais sejam profissionais, eficientes e respeitadoras dos direitos individuais
e liberdades, incluindo o devido processo legal; 6- todos os cidadãos tenham
acesso igual e sem obstáculos à justiça para defender seus direitos; 7- casos
criminais, civis e ações administrativas sejam apurados e resolvidos de for-
ma rápida e eficiente; 8- o judiciário em todos os níveis, atue de modo neu-
tro e independente de influência política; 10- as decisões da justiça sejam
respeitadas e garantidas por outras agências do Estado; e 11- a constituição
seja suprema, interpretada e defendida por um tribunal constitucional.
Apesar deste papel fundamental para a democracia, o judiciário, como
tantas outras instituições, não é isento de problemas ou imune à desconfian-
ça, processo este que vem se espraiando ao redor do mundo entre as institui-
ções, especialmente em relação aos partidos políticos, governos e institui-
ções encarregadas de aplicar as leis (Norris, 1999), tendência que também se
observa no Brasil (Moisés, 2010; 2013).

4 O modo como estes agentes do Estado respondem as demandas da população.


Violência, Polícia, Justiça e Punição 377

Acompanhar como a população percebe as instituições é uma forma de


se obter instrumentos para aprimorar o funcionamento e ampliar o apoio
social dado a elas. No caso do judiciário, tendo em vista a grande importân-
cia que possui e o papel chave que desempenha para a democracia, é im-
portante examinar como a população percebe esta instituição. De maneira
geral, tais percepções derivam tanto da experiência concreta que as pessoas
possuem com o sistema de justiça, como de suas experiências indiretas, isto
é, aquelas relatadas por pessoas cuja opinião é por elas valorizada.
Os estudos sobre imagens da justiça buscam ainda identificar o que de-
terminam estas representações. A justiça americana é, a este respeito, a que
mais intensamente tem sido estudada.5 Segundo estes estudos, as imagens
e percepções que os cidadãos têm da justiça derivam, em grande parte, do
tratamento que dela recebem (Olson e Huth, 1998; Rottman, 1998). Esta
descoberta deu origem a uma abordagem teórica denominada justiça pro-
cedimental (procedural justice), que trata de examinar como as interações
entre os cidadãos e o judiciário moldam a confiança na justiça. Em particu-
lar, estes estudos focam como um tratamento justo, educado e que considera
as demandas da população afetam a avaliação que o público faz desta insti-
tuição. Tendo, inclusive, maior influência que os resultados efetivos obtidos
em eventuais julgamentos (Olson e Huth, 1998; Kaukinen e Colavecchia;
1999; Tyler e Huo, 2002).
A literatura também destaca o papel das variáveis sociodemográficas
no apoio ao judiciário: a) em pesquisa conduzida na cidade de Milwaukee
(EUA) nos anos 1970, Jacob (1971) identificou que a imagem de policiais
e de juízes variava por bairro (condições socioeconômicas) e por raça; b)
Kaukinen e Colavecchia (1999) em estudo no Canadá, identificaram um
efeito da classe social sobre atitudes em relação aos tribunais de justiça, po-
rém apenas quanto a capacidade de o tribunal prover ajuda às vítimas de
crimes e da percepção da capacidade do tribunal de proteger os direitos

5 O mesmo ocorre com os estudos sobre imagem da polícia em menor grau, pois o
número de pesquisas sobre policias ao redor do mundo vem crescendo, enquanto o
de estudos sobre a justiça continuar a predominar na cultura anglo-saxã (Jacob, 1971;
Tyler e Huo, 2002).
378 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

das pessoas acusadas; c) Benesh (2005) com base no survey conduzido pelo
National Center for State Courts nos Estados Unidos, identificou as seguin-
tes variáveis como afetando a imagem da justiça :escolaridade; experiência
de ter participado de júri; informação sobre o sistema de justiça; taxas de
criminalidade; confiança nas instituições de governo em geral e no processo
de indicação de juízes, em particular. Estes fatores mostraram-se determi-
nantes para que houvesse alta confiança nos tribunais estaduais. Por outro
lado, baixa escolaridade, ter sido acusado por um delito, baixa informação
sobre o sistema, altas taxas de criminalidade e juízes eleitos pelos moradores
explicavam uma baixa confiança na justiça. Os resultados de Benesh (2005)
mostram que outras variáveis podem influenciar tanto na percepção de
equidade do processo judicial como na avaliação que fazem do tratamento
dispensado ao cidadão, mas os tribunais não teriam influência sobre vários
fatores que influenciam a confiança como, por exemplo, as taxas criminais e
o processo de indicação dos juízes.
Alguns autores destacam ainda a influência que casos de grande reper-
cussão e exposição na mídia têm na imagem da justiça (Rottman, 1998).
Segundo Rottman, estes casos podem ter impacto sobre as avaliações ao
mobilizarem grande atenção e com isso estimularem determinadas expec-
tativas e opiniões sobre a eficiência desta instituição. Olson e Huth (1998)
destacam que há evidencias de que o apoio à justiça também esteja ligado
ao ambiente sociopolítico, ou seja, o quão ativo e visível é o judiciário em
ações controversas, que envolvem questões partidárias, ideológicas e visões
sobre políticas públicas. Passadas quase três décadas desde que retorno à
democracia, como as pessoas percebem o judiciário no Brasil?
Há pouca tradição de pesquisa sobre a imagem e confiança na instituição
judiciário no Brasil. A maioria das pesquisas realizadas é bastante recente:
1- O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) realizou, em
2011, o estudo “Sistema de Indicadores de Percepções Sociais do Serviço
Público” (SIPS). Nesse estudo, o sistema de justiça (promotores, juízes, po-
liciais federais, policiais civis, defensores públicos e advogados) foi um dos
serviços públicos considerados, sendo de modo geral, mal avaliado pelos
respondentes. O mesmo padrão de baixa avaliação se manteve quando as-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 379

pectos específicos foram avaliados: rapidez, acesso, custo, justeza das de-
cisões, honestidade e imparcialidade. A média das avaliações se manteve
baixa em todas as regiões e grupos pesquisados.
2- Analisando os dados da pesquisa “A Desconfiança dos Cidadãos das
Instituições Democráticas” coletados em 2006, Del Porto (2013) traçou um
quadro não mais animador. Esta autora corroborou dados coletados em traba-
lhos anteriores que demonstraram que a população tem pouco conhecimento
de seus direitos civis e que a baixa procura pela justiça para a resolução de con-
flitos decorre da percepção de que falta aos tribunais condições para atender
as demandas dos cidadãos (responsividade), da desconfiança quanto a impar-
cialidade e igualdade de tratamento por parte do judiciário, e da percepção de
baixa eficiência do mesmo. Surpreendente é outro resultado deste estudo que
a percepção de desigualdade tanto perante a lei quanto no acesso à justiça não
teriam efeito sobre a confiança dos cidadãos no judiciário no Brasil.
3- Por fim, outro estudo relevante para esse tem é o “Índice de Con-
fiança na Justiça no Brasil” da Fundação Getúlio Vargas (ICJ Brasil). Esta
pesquisa traça um amplo panorama reunindo as percepções dos cidadãos
sobre o judiciário no Brasil. Os resultados deste estudo mostram que, em
2013, 29% das 3.325 pessoas entrevistadas no país afirmaram confiar no
judiciário, valor esse menor do que os obtidos em pesquisas anteriores. Em
um “ranking” de 11 instituições o judiciário ficou em oitavo lugar, à frente
somente do governo federal, congresso nacional e partidos políticos.6
O ICJ (FGV, 2013) revelou ainda que há uma percepção negativa da
forma como os serviços do judiciário são prestados. Contudo, apesar desta
percepção, a procurar o judiciário para resolver conflitos é um comporta-
mento valorizado pela população. Os jovens (de 18 a 34 anos), pessoas com
maior renda (mais que oito salários mínimos) e com maior escolaridade
foram os mais positivos em sua avaliação do judiciário.
Outro dado importante é que participar de processo judicial foi impor-
tante diferencial para uma maior confiança assim como uma melhor per-

6 As instituições mais bem avaliadas foram: Forças Armadas, Igreja Católica, Ministério
Público, Imprensa escrita, Grandes Empresas, Polícia e Emissoras de TV nesta ordem.
380 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

cepção em relação ao judiciário. De maneira geral, aponta ainda a pesquisa


do ICJBrasil (FGV, 2013), a avaliação negativa do judiciário pode estar rela-
cionada a morosidade, aos altos custos e o difícil acesso à justiça, bem como
a falta de esclarecimentos convincentes em relação às decisões tomadas. No
entanto, esse resultado parece não impactar na disposição das pessoas em
buscar a justiça para resolver uma demanda. Diante de situações hipotéticas
como a compra de produtos com defeito, relações com o poder público e
relações trabalhistas, por exemplo, a grande maioria das pessoas declarou
que buscaria o judiciário para resolver tais tipos de conflitos.
Os estudos relatados acima destacam que a imagem do judiciário é de-
corrente tanto das experiências diretas que as pessoas têm com os tribunais,
quanto de suas experiências indiretas. Nesse sentido, as pesquisas de opinião,
permitem identificar a imagem que a população possui desta instituição.

Imagem da Justiça
Desde 2001 o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo (NEV/USP) vem realizando a “Pesquisa domiciliar sobre atitudes, nor-
mas culturais e valores em relação à violência e violação de direitos humanos”,7
cujo objetivo principal é monitorar o impacto que a contínua exposição à vio-
lência tem sobre a percepção, as atitudes e valores em relação à justiça, direi-
tos humanos e instituições encarregadas de aplicar a lei.8 Foram entrevistadas
pessoas com 16 anos ou mais. Apresentamos aqui os resultados relativos a
duas questões: avaliação do judiciário ao longo dos anos e expectativas de
tratamento por parte de um juiz se tivessem um caso correndo na justiça.

7 A pesquisa compreende sete coletas de dados sendo que destas, duas (1999 e 2010)
ocorreram em 10 capitais (1999) e em 11 capitais (2010) e cinco coletas de dados
foram realizadas só em São Paulo em 2001, 2003, 2006, 2008, e 2013. Em 1999, foram
10 capitais (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife,
Belém, Manaus, Porto Velho e Goiânia). Em 2011, Fortaleza foi incluída entre as capi-
tais anteriormente pesquisadas.
8 Foram aplicados 1000 questionários em 2001 e 2003, e 1300 em 2006, 2008, e 2013.
Em 2010 foram 1200 questionários. A aplicação dos questionários, elaborados pelo
NEV foi feita pelo IBOPE.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 381

Avaliação da Justiça ao longo dos anos


A avaliação dos entrevistados sobre o judiciário apresenta um padrão
de volatilidade ao longo do período estudado. Deve-se lembrar que ao longo
dessa década as estatísticas de alguns crimes violentos como o homicídio
apresentaram uma melhora substancial enquanto outros se mantiveram es-
táveis. Assim, surpreende que, ao longo dessa década, as melhoras na per-
cepção da atuação do judiciário não tenham se mantido estável ou progre-
dido. A pergunta feita aos entrevistados foi:
“Baseando-se em suas experiências de vida e no que você tem ouvido
sobre a eficiência das instituições que servem a comunidade em assuntos de
direitos do cidadão, gostaria de saber como você avalia cada uma das insti-
tuições que eu citar ‘Justiça’”. O entrevistado podia selecionar como resposta
as seguintes categorias: Muito boa, Boa, Regular, Ruim, Muito Ruim e Não
conhece/ não sabe/ não opinou.9

Gráfico 1. Avaliação da Justiça, São Paulo: 2001-2013

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência

9 Para fins de apresentação as categorias “muito boa” e “boa” foram agrupadas tendo o
mesmo ocorrido com “muito ruim” e “ruim”.
382 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Ao longo do período estudado a maior frequência de avaliação foi “re-


gular” (mínimo de 36% em 2001 e um máximo de 45% em 2003), seguida de
“ruim/muito ruim” (mínimo de 26% em 2010 e máximo de 39% em 2013)
e por fim “boa/muito boa” (mínimo de 17% em 2013 e máximo de 31%
em 2008). Esta variação na avaliação da eficiência da justiça sugere uma
volatilidade nos julgamentos, cujas causas ainda não podemos identificar. A
melhora constante no período ocorreu em relação a queda no percentual de
pessoas que não conseguiam ou não se dispunham a responder esta ques-
tão. Esta queda é substancial, em particular, quando comparada com o que
ocorreu com outras instituições como o Ministério Público e a Defensoria
Pública. Em 2013, ambas instituições continuam a ter um alto percentual
de desconhecimento pelo público, com 11% dos entrevistados não conse-
guindo avaliar a atuação delas, ainda que este percentual represente uma
melhora frente aos números do início da década.
Há pouca variação nas respostas dos entrevistados, quando se conside-
ra o perfil sociodemográfico: sexo, idade e escolaridade são as variáveis que
apresentaram diferenças estatisticamente significantes ao longo do período
estudado. As avaliações feitas pelas mulheres tenderam a ser ligeiramente
mais positivas que aquelas dos homens, o mesmo ocorrendo com as pes-
soas de mais idade (acima de 60 anos) e com maior escolaridade. A piora
na avaliação da eficiência da justiça ocorreu em todos os grupos, porém foi
mais pronunciada entre os adultos jovens (entre 20 e 40 anos) e entre os com
escolaridade média ou fundamental. Cabe salientar que, em 2013, a imagem
de todas as instituições avaliadas piorou (polícias: Civil, Militar e Federal,
Guarda Civil Metropolitana, Bombeiros, Exército, Ministério Público e De-
fensoria Pública).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 383

Gráfico 2. Como esperariam ser tratados por um juiz, São Paulo: 2001-2013

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência

Expectativas de tratamento: o juiz


As expectativas em relação ao tratamento que receberiam de um juiz
foram medidas através de uma pergunta sobre o que esperam que ocorra
caso tenham que recorrer ao judiciário em termos da interação com um
hipotético juiz. A pergunta feita foi:
Caso o (a) sr(a) tivesse uma ação correndo na justiça e fosse chamado
pelo juiz para dar a sua versão, como imagina que o juiz reagiria:

a) O juiz respeitaria os seus direitos como cidadão? Sim, Não, Não


sabe/ Não opinou.

b) O juiz daria oportunidade para você contar sua versão? Sim,


Não, Não sabe/ Não opinou.

c) O juiz seria influenciado por seus argumentos? Sim, Não, Não


sabe/ Não opinou.

d) O juiz ouviria todos os lados para tomar uma boa decisão? Sim,
Não, Não sabe/ Não opinou.
384 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

A pergunta considera quatro dimensões desta interação: respeito aos


direitos, oportunidade para relatar a versão, percepção da eficácia em argu-
mentar, e equidade ao ouvir as versões para decidir. A dimensão “percepção
da eficácia em argumentar” apesar de voltada para o próprio entrevistado
também trata da questão relacional, pois aborda a capacidade que o entre-
vistado sente possuir mas também a percepção que ele tem a abertura dos
juízes para ouvirem os argumentos.
Paradoxalmente ao ocorrido com a imagem da eficiência da justiça ao
longo do período, a expectativa de uma interação positiva com um juiz não
só se manteve alta como até cresceu em alguns momentos. Mesmo a percep-
ção da eficácia em argumentar e influenciar uma decisão judicial, dimensão
que mais gerava dúvidas nos entrevistados, melhorou ao longo do período.
Se a percepção da eficiência da justiça declinou, as expectativas de trata-
mento justo, equânime e de obter bons resultados ao recorrer ao judiciário
melhoraram. Como explicar tal paradoxo?

Variações nas expectativas e o perfil dos entrevistados


Quando se observa como as respostas para as quatro dimensões de ex-
pectativa se distribuem em relação ao gênero, idade, escolaridade, renda e
raça percebe-se que não há diferenças estatisticamente significantes siste-
máticas ao longo do período: a medida que cresce a escolaridade, a tendên-
cia é de se aumentar entre os entrevistados a expectativa positiva em relação
a todas as dimensões: ter direitos respeitados, ter oportunidade para contar
a própria versão; influenciar o juiz com argumentos; o juiz ouvir todos os
lados para tomar uma boa decisão. Porém as diferenças não são significan-
tes em todos os anos. Algo semelhante se observa com a variável idade: nas
últimas quatro coletas de dados, a expectativa de ter os direitos respeitados
aumenta sistematicamente e de modo significante com a idade dos entre-
vistados, porém esse padrão não se repete em relação as outras dimensões.
As diferenças por gênero e renda também não são significantes, porém os
dados revelam uma tendência de melhora nas expectativas dos negros em
relação as quatro dimensões avaliadas. Enquanto no começo dos anos 2000
havia uma menor expectativa entre os negros que entre os brancos de ter
Violência, Polícia, Justiça e Punição 385

seus direitos respeitados, oportunidades para contar sua versão ao juiz, de


influenciá-lo com seus argumentos e de que o juiz ouvisse todos os lados
para tomar uma boa decisão, ao final daquela década não houve, em relação
a estas expectativas, praticamente diferença entre estes dois grupos.
386 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Tabela 1. Avaliação da Justiça, entre homens e mulheres, por idade, raça, esco-
laridade e renda familiar, em 2001

2001 2003 2006

Regular Ruim Regular Ruim Regular Ruim

Total 36 33,7 45,3 30,3 41,6 31

Masculino 37 37,7 42,8 31,2 42,9 32,8


Sexo
Feminino 35,3 30,2 47,5 29,5 40,4 29,5

< = 19 anos 33,6 36,5 48,5 32,1 41,1 40,5

20 a 29 anos 39,1 41 45,4 33,4 41,4 37,8

30 a 39 anos 35,6 33,4 40,2 38,2 41,3 33,2


Idade
40 a 49 anos 36,4 32,3 43,9 26,2 49,2 21,6

50 a 59 anos 40,4 27,9 49,7 24,1 33,7 30

60 ou mais 28,1 27,9 49,4 19,9 39,1 20,1

Analfabeto 54 13,5 41,8 8,4 20,1 24,4

0a4 37,7 24,9 43,9 28 42,1 25,3


Anos de
5a8 28,7 42,3 52,4 29,5 39,6 32,5
estudo
9 a 12 37,2 41,5 42,4 37,9 44 37,1

12 ou mais 37,2 41,5 42,4 38,3 41,2 32,3


Branco/
35,9 32,9 45,9 30,5 40,7 31,3
amarelo
Raça
Negro/
36,9 35,4 44,3 30 41,9 31,2
pardo

<=1 40,6 27,4 48,1 27,9 34,6 27,7

>1e<=2 32,2 30 40,4 26,4 39,4 30,2


Renda
familiar >2e<=5 35,2 29,1 45,6 30,9 44,8 29,5
Avaliação da justiça

(em
> 5 e < = 10 36,1 40,7 50,2 31,9 46 32,3
salário
mínimo) > 10 e <
44,3 32,1 42,1 29,5 32,9 38,9
= 20

> 20 37,2 47,7 37,5 40,2 37,4 37,9

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência


Violência, Polícia, Justiça e Punição 387

2008 2010 2013

Regular Ruim Regular Ruim Regular Ruim


38,7 29,2 42,5 26,3 41,2 39,5

37,3 32,9 42,4 28,1 39,7 42,9

39,8 26,1 42,6 24,9 42,6 36,5

36,4 39,8 43,3 33 28 48,2

41,6 35,9 46,3 27,4 42,2 42,8

39,7 34,3 43,9 27,4 41,7 43,3

39 25,3 41,2 29,7 43,3 35,6

32,3 24,2 43,4 18,9 46,2 34,1

37,2 18,4 36 23,8 39 32,6

18,9 8,11 33,3 18,5 41,3 30,8

37,8 22,7 35,6 26,1 44,6 36,9

34 33,5 44,3 27,5 35,7 41,4

43,6 35,7 43,8 26,9 41,5 43,5

43,5 37,5 52,7 24,7 44,1 30,1

39,1 27 42,4 25,4 42,5 37,1

38,1 31,9 43,2 27 39,8 42,3

36 18 50 25 31,7 51,6

35 30,4 46 24 40,4 27,4

40,6 28,7 45,5 25,2 38 41,2

37,3 36,1 42,3 27,7 43,5 38,9

46,5 32,6 44,8 25,7 36,9 43,6

36,4 27,3 38 29,9 47,6 32,4

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência


388 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Tabela 2. Expectativas em relação a ter os direitos respeitados – Respeitaria (%)

2013

Total 74,8
Masculino 74,3
Sexo
Feminino 75,3
< = 19 anos 62,6
20 a 29 anos 70,9
30 a 39 anos 74
Idade
40 a 49 anos 78
50 a 59 anos 77,6
60 ou mais 83,2
Analfabeto 75
0a4 76,5
Anos de estudo 5a8 71,2
9 a 12 74,5
O juiz respeitaria seus direitos como cidadão

12 ou mais 79,6
Branco/amarelo 75,4
Raça
Negro/pardo 73,9
<=1 66,8

>1e<=2 88,4

Renda familiar (em >2e<=5 76,1


salário mínimo) > 5 e < = 10 77,9

> 10 e < = 20 70,7

> 20 74,3

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência


Violência, Polícia, Justiça e Punição 389

Tabela 3. Expectativas em relação a ter oportunidade


para expor sua versão – Daria (%)
2013
Total 77,2
Masculino 38,4
Sexo
Feminino 42,9
< = 19 anos 70,7
20 a 29 anos 77,3
30 a 39 anos 73,9
Idade
40 a 49 anos 80
50 a 59 anos 77,5
O juiz daria oportunidade para o sr./sra. contar sua versão

60 ou mais 82,3
Analfabeto 73,3
0a4 77,7
Anos de estudo 5a8 75,1
9 a 12 77,1
12 ou mais 81,2
Branco/amarelo 75,6
Raça
Negro/pardo 78,9
<=1 82,6
>1e<=2 88,8
Renda familiar (em salá- >2e<=5 80,8
rio mínimo) > 5 e < = 10 81,2
> 10 e < = 20 74,1
> 20 71,5

Fonte: NEV-USP
390 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Tabela 4. Expectativas em relação a poder exercer influência – Daria (%)


2013
Total 52,5
Masculino 51,9
Sexo
Feminino 53,1
< = 19 anos 49,1
20 a 29 anos 54,1
30 a 39 anos 52,2
O juiz daria igual importância à sua versão/argumento e à dos outros

Idade
40 a 49 anos 55,1
50 a 59 anos 47,3
60 ou mais 53,8
Analfabeto 40,9
0a4 52,1
Anos de estudo 5a8 49
9 a 12 54,4
12 ou mais 56,3
Branco/amarelo 53
Raça
Negro/pardo 52,2
<=1 16,8
>1e<=2 54,3
Renda familiar (em >2e<=5 53,8
salário mínimo) > 5 e < = 10 56
> 10 e < = 20 49,2
> 20 46,8

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência


Violência, Polícia, Justiça e Punição 391

Tabela 5. Expectativas em relação às decisões do juiz – Ouviria (%)


2013
Total 76,5
Masculino 76,1
Sexo
Feminino 76,8
< = 19 anos 67,6
20 a 29 anos 77,8
30 a 39 anos 74,8
Idade
40 a 49 anos 77,5
50 a 59 anos 77,4
O juiz ouviria todos os lados para tomar uma boa decisão

60 ou mais 79,7
Analfabeto 79,4
0a4 76,7
Anos de estudo 5a8 77
9 a 12 75,8
12 ou mais 76,4
Branco/amarelo 76,4
Raça
Negro/pardo 76,6
<=1 50,9
>1e<=2 91,9
Renda familiar (em salário >2e<=5 77,1
mínimo) > 5 e < = 10 80,6
> 10 e < = 20 74,4
> 20 75,5

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência


392 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Tabela 6. Percepções acerca do Judiciário


Percepções acerca do judiciário

2001 2003 2006 2008 2010 2013

“É melhor deixar dez pessoas culpadas livres a condenar uma


inocente”

Concorda 51,1 42,5 36,5 46,4 40,5 40,7

“É correto o juiz permitir que pessoas que cometeram crimes


sérios continuem presas”

Concorda 72 79,1 70,7 84,8 67,4 69,2

“O Judiciário se preocupa demais com os direitos dos acusados”

Concorda 55,5 71,2 58,7 57,6 56,1 62,4

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência


Violência, Polícia, Justiça e Punição 393

Tabela 7. Percepções de Justiça

Percepções de Justiça

2001 2003 2006 2008 2010 2013

Respeitaria 79,9 72,7 69,9 78,5 83,3 74,8

“O juiz daria oportunidade para o sr./sra. dar sua versão?”

Daria 80,1 80,1 76,6 82,8 83,5 77,2

“O juiz daria oportunidade para o sr./sra. contar sua versão?”

Daria 43,6 54,8 42,6 46,7 51,7 77,1

“O juiz ouviria todos os lados para tomar uma boa decisão?”

Ouviria 79,9 77,2 74,9 80,5 82,6 76,5

Fonte: Núcleo de Estudos da Violência

Se por um lado estas questões permitem ter alguma ideia sobre a per-
cepção dos entrevistados em relação aos juízes, por outro, elas também re-
velam as expectativas que possuíam sobre o que consideram uma atuação
justa por parte destes agentes. Neste sentido, há da parte dos respondentes,
uma grande expectativa de, caso venham a ser acionados ou acessem a jus-
tiça, terem seus direitos respeitados, serem ouvidos e de terem a oportuni-
dade de contar sua versão dos fatos.

Considerações finais
A pesquisa do NEV revela duas percepções entre os entrevistados: uma
que se refere à instituição justiça e outra às expectativas que têm na intera-
394 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ção com um juiz. A imagem da justiça tornou-se mais negativa em 2013,


expressando uma maior insatisfação dos entrevistados quanto a eficiência
desta instituição. Porém, a piora na avaliação não é exclusividade da justiça,
mas ocorre em todas as instituições pesquisadas (inclusive os bombeiros).
Isto sugere que vem declinando a satisfação da população com várias insti-
tuições públicas, entre elas, a justiça. É possível supor que a avaliação nega-
tiva das instituições ocorra pelo fato dos entrevistados não perceberem que
elas estejam cumprindo o que delas se esperam. É importante destacar que
em todas as situações apresentadas, as variáveis socioeconômicas e demo-
gráficas não desempenham um papel homogêneo ao longo do período. De
modo distinto a percepção relativa ao judiciário, um de seus agentes, o juiz,
é avaliado de forma bastante positiva pelos entrevistados.
Se por um lado, estes dados revelam que há uma percepção bastan-
te afirmativa dos entrevistados a respeito dos seus direitos e garantias, por
outro confirmam resultados de outras pesquisas (Tyler, 2007) que apontam
que um processo justo se dá quando: a) as pessoas têm oportunidade de dar
sua versão do caso; b) o processo de decisão é neutro, baseado em princípios
legais aplicados de modo consistente e em fatos ao invés de opiniões e vieses
pessoais e com transparência; c) as pessoas são tratadas com dignidade e
polidez, e seus direitos são respeitados e; d) as partes são ouvidas pelos juí-
zes, e estes se dispõem a explicar quais procedimentos adotaram para chegar
a sua sentença/decisão.
Neste sentido, a maneira como as expectativas dos cidadãos são rece-
bidas, esclarecidas e encaminhadas contribuem para formatar os diferen-
tes níveis de confiança e a crença no judiciário. Como enfatizam diferentes
autores (Olson e Huth, 1998; Kaukinen e Colavecchia; 1999; Tyler e Huo,
2002), o que o que define a confiança e a crença nas instituições é muito
menos o resultado em si, mas, sobretudo, a percepção de justeza dos proce-
dimentos adotados pelos seus operadores. Os dados apresentados levantam
mais perguntas do que provem respostas, revelando que não há padrões
simples de atitudes e percepções, mas uma gama de padrões que mudam
ao longo do tempo. Isto representa uma oportunidade para aqueles preocu-
pados em melhorar o relacionamento entre a sociedade e o judiciário, pois
Violência, Polícia, Justiça e Punição 395

significa que os julgamentos que o público faz desta instituição são passíveis
de mudança.

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396 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

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Entre números e palavras: magnitude e
produção institucional da impunidade1

Sergio Adorno e Renan Theodoro de Oliveira

Globalização da violência e crise dos Estados nacionais


Clássicos estudos históricos e sociológicos têm sublinhado que, a
partir da segunda metade do século XIX, no mundo ocidental, tem início
um largo processo de domesticação da violência. Se guerras e toda sorte
de crueldades constituíam o cotidiano dos agrupamentos sociais dispersos
pelo território europeu desde o século XIII até fins do XVIII, alcançando as
formações medievais e pré-modernas, a era moderna teria sido caracteri-
zada pelo arrefecimento das paixões destrutivas, pela contenção moral das

1 Este capítulo baseia-se em pesquisa realizada no NEV-USP, com apoio da FAPESP


e do INCT-CNPq: Violência, Democracia e Segurança Cidadã, intitulada Estudo da
impunidade penal no município de São Paulo (1991-1997). Sua realização contou com
a ajuda de inúmeros assistentes de pesquisa e pesquisadores. Embora não se possa
nomeá-los a todos, neste espaço, gostaríamos, em nome de todos os que participa-
ram da equipe em distintas fases, de destacar a participação na execução do projeto
dos pesquisadores Wânia Pasinato, Igor Rolemberg, Larissa Lacerda, Maria Gorete
Marques de Jesus e Renan Theodoro de Oliveira. Em particular, nossos agradecimen-
tos a Wânia Pasinato, por ter estado na equipe desde à concepção original do projeto,
bem como das primeiras etapas de seu desenvolvimento. Este capítulo é coautoria de
Sergio Adorno e Renan Theodoro de Oliveira, que se responsabilizam pela interpreta-
ção dos resultados nele descritos.
398 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

formas intersubjetivas de violência, por períodos de paz prolongada e pela


criação de instituições públicas capazes de mediar e solucionar conflitos em
nome do bem comum.
Weber (1974) associou ao processo de desencantamento do mundo sua
famosa tese do monopólio estatal legítimo da violência. Elias (1990; 1991)
aprofundou a tese weberiana sustentando que a tendência de longo prazo
do processo civilizatório dependeu não apenas do monopólio das armas
nas mãos do estado soberano (sociogênese) mas sobretudo de uma nova
economia moral dos impulsos (psicogênese), fonte de autocontrole, que
tornou o emprego da violência nos conflitos sociais e interpessoais objeto
de repulsa, vergonha e pudor. Chesnais (1981), em seu detido estudo das
diferentes formas de violência, interpessoais e coletivas, traça a curva dos
crimes de morte entre início do século XIX e segunda metade do século XX
para demonstrar como a tendência dominante foi no sentido da pacificação
interna das sociedades. Foucault (1975), em seu hoje clássico Vigiar e Punir,
demonstrou que a funcionalidade da prisão no conjunto dos mecanismos
punitivos foi capaz de retrair o uso recorrente, no antigo regime, da tortura,
da violência e da crueldade contra os condenados.
Por sua vez, Muchembled (2012) entende que os modelos de educação
propostos por Elias e Foucault não são suficientes para explicar o que ele
chama de “domesticação” da violência. A interdição de matar não foi de
pronto acolhida por todos de modo homogêneo. Aristocratas reivindica-
vam o direito de matar como privilégio próprio de seu estamento. Jovens
adolescentes, procedentes dos estratos sociais populares, a empregavam
como forma de defesa em um ambiente social hostil. Para o historiador, foi
o concurso de agências de socialização que acabou por solidificar aquela
sorte de interdição, dentre as quais a justiça criminal desempenhou destaca-
do papel. Nas palavras de Muchembled (2012, p. 196)
bem além de sua ação repressiva e do restabelecimento da paz interna,
os tribunais modelam as novas gerações masculinas em função dos critérios
dominantes. Analisar seu papel permite inserir um elo que falta entre as te-
orias de Elias e as de Foucault, porque eles dirigem a todos os cidadãos uma
mensagem normativa repleta de sanções, em caso de ruptura dos códigos.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 399

Portanto, a transversalidade e convergência desses mecanismos de


contenção da conduta moral e de socialização normativa caminharam no
sentido da pacificação interna das sociedades a longo prazo. Embora essas
perspectivas teóricas não devam ser descartadas, elas não deixam de susci-
tar problemas. Em primeiro lugar, a despeito da funcionalidade das agências
de socialização normativa, nada indica que a heterogeneidade de interpre-
tações a respeito do direito de uso da força letal – direito de quem; em que
circunstâncias é aceitável seu emprego; quando e como é reconhecido como
legítimo e, por essa via, isento da aplicação de sanções – tenha efetivamente
desaparecido dos cenários sociais ao longo dos dois últimos séculos. No
mesmo sentido, como explicar a sobrevivência de períodos ou situações de
intenso apelo à violência?
Não é preciso repertoriar os diferentes usos da violência, de forma dire-
ta e indireta, nas duas grandes guerras mundiais do século XX (1914 a 1918
e 1939 a 1945) para denúncia a ruptura do ciclo de pacificação interna das
sociedades. Do mesmo modo, a violência nos golpes de Estado, a repressão
aos protestos sociais, a violência nas relações interpessoais e intersubjetivas,
sobretudo nos ambientes privados e domésticos, a violência institucional
nas escolas, nos hospitais psiquiátricos, nas instituições encarregadas de lei
e ordem, a violência da delinquência comum e das formas organizadas de
crime – tudo parece indicar que a tendência de longo prazo convive com
conjunturas de intenso emprego da violência, sobretudo de suas modalida-
des fatais. As sociedades contemporâneas globais experimentam de modo
imprevisível e cotidianamente atos terroristas, radicalismos de toda espécie,
ações do crime organizado cujas disputas internas e com a polícia não pou-
pam mortes, desordens extremas nas periferias urbanas, revoltas nas ruas
com a participação de black blocs, skinheads, além de fenômenos como o
hooliganismo; os ataques ou ameaças ambientais, os acidentes e catástrofes
intencionalmente provocados. A violência constitui uma inscrição inevitá-
vel da contemporaneidade global.
Sob essa perspectiva, o que dizer das teorias? Indagado a respeito das
razões pelas quais escreveu O processo civilizatório em plena ascensão dos
regimes totalitários, em especial do nazismo, na Europa, Elias refere-se, em
400 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Os alemães (1997), a coexistência de processos descivilizatórios que, em cir-


cunstâncias históricas singulares como foram as da Alemanha a partir da
Unificação em fins do século XIX, tendem a fermentar respostas autoritárias
e violentas para crises sociais, políticas e institucionais. Hobsbawn (2007)
também caminha nessa direção. Porém, ao lado do enfraquecimento das re-
gras e convenções que regulam as relações cordiais e pautadas pelo reconhe-
cimento da dignidade do outro, ele acrescenta a crise dos Estados nacionais,
cujas consequências residem no enfraquecimento do monopólio estatal da
lei, da justiça e do uso da força armada, como também no enfraquecimento
da lealdade dos cidadãos ao Estado como garantia de bem comum. Nas suas
próprias palavras, “quando a lei carece de legitimidade e o respeito a ela
depende sobretudo do medo de ser apanhado e punido, é muito mais difícil
mantê-la vigente, além de ser mais caro” (Hobsbawn, 2007, p. 144).
Ademais, o fenômeno da globalização intensificou a mobilidade de pesso-
as e mercadorias entre fronteiras nacionais e flexibilizou controles, o que resul-
tou no florescimento de comércios ilegais e sua conversão em grupos criminais
organizados. Como contrapartida à redução dos poderes governamentais, a
resposta encontrada em diferentes sociedades é a militarização da segurança
pública, o financiamento do mercado de armas cada vez mais sofisticadas, o
emprego de tecnologias na contenção da violência e dos crimes. Tudo se con-
verte em objeto de insegurança, alimentando a espiral do medo coletivo e sub-
jetivo que veio tomar conta de nossas sociedades contemporâneas.
Michel Wieviorka (1997) não se distancia desta perspectiva teórica,
embora se valha de outros argumentos. A tese weberiana do monopólio es-
tatal da violência estaria superada. Se, em passado recente, a violência era
aceita no debate público, político e mesmo acadêmico para recurso de po-
der nas lutas operárias contra a opressão burguesa e nas lutas pela libertação
e soberania nacional de povos colonizados, este cenário inverteu-se após
a segunda grande guerra. A expansão da democratização em sociedades
recém-saídas do jugo colonial ou que haviam transitado de regimes autori-
tários, sob vigência de ditaduras militares ou civil-militares, levou à perda
de legitimidade da violência no discurso político. A superação de conflitos,
em todos os âmbitos da vida associativa, deveria se apoiar em mecanismos
Violência, Polícia, Justiça e Punição 401

de resolução pacífica baseados no diálogo e na negociação política.


No entanto, nas duas últimas décadas, na esteira dos processos de
mundialização da economia e do neoliberalismo, do agravamento das de-
sigualdades sociais, do fim da bipolaridade Leste/Oeste, da miscigenação
de processos de fragmentação e globalização culturais, da intensificação
das migrações e da mobilidade internacionais, estamos testemunhando a
emergência e difusão de múltiplas formas de violência, como anteriormente
descritas. Os argumentos que faziam apelo à negociação e à mediação per-
dem força; novos esforços no sentido de conferir legitimidade à violência
comparecem ao debate e ao espaço público, estimulando radicalização ex-
trema à direita e à esquerda, e a construção de imagens díspares da violên-
cia: nem instrumentalidade, nem expressividade; fim em si mesmo, lúdica,
destruidora, autodestruidora; associada aos sentimentos de declínio, perda,
liquidação; sem mediações conflituais; presente em um universo sem atores
sociais; ora ameaçadora, ora dramática (Wieviorka, 1997).
Em decorrência, afirma Wieviorka, “será que a definição analítica que
propõe Max Weber aplica-se tão bem, quanto à sua época, aos Estados que
podemos observar hoje?” (idem, p. 18). Ele concorda com a tese do enfra-
quecimento dos Estados nacionais. Face à mundialização, os Estados apa-
recem cada vez menos habilitados para controlar a economia. Não mais
dispõem de quadros administrativos, econômicos e políticos para exercer
controle sobre o fluxo de pessoas, mercadorias, mercados, capitais, deci-
sões, informações e tecnologias. Não raro, são obrigados a recuar diante do
poder das atividades ilegais, do tráfico e escravização de pessoas, do tra-
balho clandestino, da lavagem de dinheiro, da impossibilidade de manter
políticas fiscais oficiais. Estão atravessados por solidariedades infra e tran-
sestatais. Assim, o processo de privatização da economia é acompanhado
da privatização da violência, de que a expansão das empresas privadas de
segurança constitui o seu mais flagrante exemplo. Por isso, conclui Wievio-
rka (1997, p. 19), “é cada vez mais difícil para os Estados assumirem suas
funções clássicas. O monopólio legítimo da violência física parece atomi-
zado e, na prática, a célebre forma weberiana parece cada vez menos adap-
tada às realidades contemporâneas”.
402 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Se esses cenários se desenham para as sociedades contemporâneas nas


quais, em algum momento de sua história, acreditaram deter o monopó-
lio estatal legítimo da violência, o que dizer de sociedades nas quais essa
pretensão jamais chegou a ser conquistada? Em que medida a não univer-
salização desse monopólio está associada a taxas elevadas de impunidade
penal para crimes comuns, em especial homicídios? Como responder a tais
questões em sociedades como a brasileira?

Monopólio estatal da violência e impunidade


penal na sociedade brasileira
São recorrentes, em clássicos estudos de sociologia e história política
(Faoro, 1979; Franco, 1997; Holanda, 1979; Leal, 1975; Queiroz, 1976), atri-
buições de singularidades à sociedade brasileira tradicional e pré-moderna,
porém integrada aos circuitos mundiais do capitalismo mercantil, entre as
quais o peso social e político do patrimonialismo ao qual se associam a in-
distinção entre interesses privados e negócios públicos, bem como a não
universalização do monopólio estatal da violência. Com base em sólido
acervo de fontes documentais consultadas, esses estudos contêm relatos que
vêm em apoio a essa caracterização, como a existência, em todo o territó-
rio nacional, de forças armadas privadas, sob controle de poderosos locais,
como instrumento de proteção da propriedade e de poder político. Outros
exemplos podem ser buscados nos julgamentos privados de conflitos intra-
familiares ou nas redes locais de vizinhança, na influência do poder local
no preenchimento de cargos públicos, na organização e funcionamento das
forças policiais oficiais e nos julgamentos de toda sorte. Tudo indica que,
no Brasil, não se tenha sequer logrado a pretensão ao monopólio estatal
legítimo da violência.
É certo que o monopólio estatal não se limita ao controle do aparelho
coercitivo. Especialmente Elias demonstra que o monopólio estatal envolve,
ao menos, três áreas de intervenção: monopólio do uso da força, monopólio
fiscal (isto é, do recolhimento dos impostos) e monopólio da lei e da justiça.
Este último, por sua vez, alcança o monopólio da produção legislativa e o
monopólio da aplicação e distribuição da justiça. Em síntese,
Violência, Polícia, Justiça e Punição 403

esse modelo de justiça oficial, própria dos estados modernos, requereu


dos profissionais encarregados de aplicar as leis coercitivas o habitus (Bour-
dieu) ideal de agir de conformidade com as leis, evitando apelos ao emprego
arbitrário (ou ameaça do emprego) de força física ou violência simbólica, à
conivência com os negócios criminais (corrupção de autoridades) ou à to-
lerância para com forças extralegais de resolução de conflitos à margem das
leis oficiais. (Adorno; Pasinato, 2010, p. 56)
Tais características da sociedade brasileira, herdeira das tradições ins-
titucionais das sociedades ocidentais modernas, sobretudo no campo das
instituições jurídicas, parecem ter-se exacerbado mais recentemente, justa-
mente quando a era dos monopólios entra em ebulição, conforme descrito
por Michel Wieviorka. De fato, a partir dos anos 70 do século passado, lado
a lado às profundas transformações pela qual passou a sociedade brasileira,
notadamente no curso do processo de transição do regime autoritário para
o democrático, assistimos ao crescimento de várias modalidades de crimes
e de violências: delinquência comum, crime organizado, explosão de confli-
tos nas relações interpessoais e intersubjetivas, graves violações de direitos
humanos cometidas tanto por civis quanto por autoridades encarregadas do
controle legal da ordem pública. Nesse cenário, a chegada do crime orga-
nizado em torno do comércio ilegal de drogas nos bairros que compõem a
chamada periferia urbana das metrópoles brasileiras instaurou uma guerra
entre quadrilhas e entre estas e as polícias – disputas com desfechos fatais
que refletirão no crescimento acentuado dos homicídios. Em direção con-
vergente, o modo de ocupação do território urbano para habitações popu-
lares, caracterizado pela ilegalidade e pela carência de infraestrutura urbana
e de instituições de distribuição de justiça social também se constituiu em
fonte de conflitos com desfechos fatais.2
A disseminação de imagens e representações, em especial através da
mídia impressa e eletrônica, veio traduzir a existência de cidades partidas

2 Adorno tratou, junto com outros pesquisadores, das tendências de evolução dos cri-
mes e da violência em ao menos três publicações (Adorno, 2013; Adorno; Dias; Néry,
2016; Adorno; Néry, 2019). Há inúmeros estudos sobre essas tendências em todo o
país, inclusive vários capítulos desta coletânea também as analisam.
404 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

entre classes, ordem e desordem, cidadãos e criminosos. Sentimentos de


medo e insegurança, cada vez mais exacerbados, passaram a compor cená-
rios de inquietações e perturbações cotidianas. Uma miríade de manifesta-
ções – do ódio à compreensão racional dos fatos – tenderam a responsabi-
lizar as autoridades, seja por não aplicarem as leis com rigor, seja pelo uso
abusivo da violência. Entre elas, desde o último quartel do século XX, per-
siste um argumento: impunidade penal. Os crimes cresceram, se tornaram
mais graves e violentos e não são punidos. Ora, como aponta a literatura
especializada, percepções de elevada impunidade penal podem conduzir a
descrenças e à deslegitimação das leis, das agências e das autoridades en-
carregadas de prevenir e reprimir crimes e violências. Dessa forma, pou-
co a pouco, tornaram-se incapazes de assegurar o funcionamento regular
da ordem pública. No limite, tais manifestações prestam-se, por um lado, a
justificar o apelo à segurança privada e, por outro, o apoio a medidas extre-
mas como violência policial, pena de morte e execução sumária de punição,
mesmo sem o preenchimento dos requisitos e garantias legais.
O objeto deste capítulo nasce justamente desse cenário de inquietações
sociais para com o futuro da violência nesta sociedade. Procura averiguar
quais fatores internos e externos a esse sistema respondem pela produção
da impunidade. Qual o peso das agências policiais e judiciais e dos opera-
dores técnicos e não técnicos do direito em suas tarefas de acusar, condenar
ou absolver? De que mecanismos e recursos se valem? Esses mecanismos
e recursos têm valor explicativo para os fatos observados? Enfim, qual o
peso da performance institucional? Grosso modo, foram essas as questões
que motivaram o estudo da impunidade penal em São Paulo, no período de
1991 a 1997, cujos procedimentos metodológicos estão descritos a seguir.
A consulta à bibliografia especializada, nacional e internacional, apon-
tou uma série de questões que foram incorporadas à investigação. Apesar
do interesse despertado pelo estudo da impunidade nas três últimas déca-
das, ainda há poucos estudos (Vargas, 1999a; 1999b). Em geral, valem-se de
diferentes metodologias, embora sejam convergentes em muitos aspectos,
sobretudo a respeito da magnitude da impunidade e da importância dos fa-
tores internos do processo penal e ao sistema de justiça criminal. A literatu-
Violência, Polícia, Justiça e Punição 405

ra internacional tem se ocupado desta questão há mais tempo e com resul-


tados cumulativos. De modo geral, essa literatura focaliza casos esclarecidos
pela polícia como indicador da impunidade. Altas taxas de esclarecimento
apontam baixam taxas de impunidade e vice-versa. Os eixos explicativos
repousam em dois argumentos, não necessariamente convergentes: papel
dos fatores socioeconômicos decorrentes da estratificação social dos acu-
sados; e fatores relacionados ao contexto do crime, sua natureza e modo de
realização, as armas utilizadas, os procedimentos de investigação adotados.3
Nesta pesquisa, com base nos resultados da literatura consultada, bus-
cou-se, inicialmente, estabelecer como conceito de impunidade penal “de-
sistência sistemática de punições liga o crime e o exercício da autoridade. Ela
nos informa sobre a legitimidade de uma ordem. Trata-se de um indicador
de decomposição, bem como de mudança e inovação. A incidência crescen-
te da impunidade leva-nos ao cerne do problema social moderno” (Dahren-
dorf, 1987, p. 28). Ao mesmo tempo, procurou-se estabelecer um tripé ex-
plicativo, cujos eixos são: contexto social; características socioeconômicas
e de estratificação social dos protagonistas (vítimas, agressores e testemu-
nhas); e performance institucional (das agências e dos agentes encarregados
de colocar em funcionamento o sistema de justiça criminal, desde o registro
de uma ocorrência criminal até a sentença judiciária). Empiricamente, a ob-
servação centrou-se na economia interna dos inquéritos e processos penais,
conforme tratamento metodológico adotado. Por isto entende-se o modo
pelo qual os recursos legais são manipulados pelos operadores técnicos e
não técnicos do direito (investigadores, peritos, delegados, promotores, juí-
zes e funcionários burocráticos), abrindo uma espécie de gap entre as leis e
sua interpretação discricionária.4 Inquéritos e processos penais constituem

3 Um tratamento mais detalhado da bibliografia especializada, nacional e internacional,


encontra-se em Relatório Anual de Atividades do NEV-CEPID-USP , cf. Adorno et al.
(2008-2012).
4 Discricionariedade é um conceito com sentido preciso. Rigorosamente, não se trata de
sinônimo de arbitrariedade nos julgamentos, embora seu exercício possa até conduzir
a esta espécie de desvio dos resultados esperados. Ver a respeito Adorno; Pasinato,
2010 e Casteluci, 2017.
406 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

um campo de disputas; a economia interna é o vetor que permite observá-


-las e analisar seu alcance e efeitos.

Métodos
A base de dados do estudo Violência, impunidade e confiança na demo-
cracia, São Paulo (1991-1997) são as ocorrências policiais registradas em 14
delegacias e duas delegacias especiais da mulher que compõem a 3ª Seccio-
nal de Polícia do município de São Paulo. Esses distritos policiais abrangem
24 distritos censitários ao noroeste da capital paulista. Congregam áreas com
elevada heterogeneidade econômica, social e demográfica, compreendendo
bairros com população de elevada renda e outros com populações de média e
baixa renda. Essa opção teve por propósito exercer alguma sorte de controle
sobre o desempenho das instituições encarregadas de aplicar lei e ordem.
Definiu-se que o universo amostral corresponderia às ocorrências re-
gistradas entre 1º de janeiro de 1991 a 31 de dezembro de 1997. Este in-
tervalo de tempo compreende o período em que crimes de roubo, tráfico
de drogas, extorsão mediante sequestro e homicídios acusaram as maiores
taxas de crescimento desde que as séries históricas começaram a ser produ-
zidas na década de 1980 (Caldeira, 2000).
A coleta de dados seguiu três etapas.5 No primeiro momento, foram
consultados os Livros de Registro de Boletins de Ocorrência e os Livros de
Registro de Inquéritos Policiais em cada uma das delegacias selecionadas
para o estudo. A seguir, foram localizados os inquéritos policiais para crime
de homicídio correspondentes a esses registros. Por último, com base nos
inquéritos encontrados foi definida amostra probabilística.
A pesquisa consistiu em realizar follow-up institucional, segundo o mé-
todo longitudinal. Através deste método, as ocorrências foram individual-
mente identificadas e acompanhadas no seu curso durante todas as etapas

5 Na primeira etapa da pesquisa, foram consultados cerca de 344 mil boletins de ocor-
rência, englobando crimes violentos (homicídios, tentativas, roubos, extorsão median-
te sequestro, tráfico de drogas, estupro) e não violentos (furtos, uso de drogas). Nas
etapas subsequentes, decidiu-se concentrar a investigação apenas nos casos de homi-
cídio que representavam à época e na região observada cerca de 4.500 registros.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 407

processuais. Foi possível destacar e selecionar os registros policiais que se


converteram em inquéritos policiais, os inquéritos que se converteram em
processos penais e os processos penais que mereceram, ao final do percurso,
sentença judicial, condenatória ou absolutória. Em decorrência, foi possível
também identificar aqueles procedimentos (inquéritos e processos penais)
que foram sendo excluídos, em quais etapas do percurso institucional e por
quais motivos. A análise do que permanece e do que é excluído aponta al-
gumas tendências presentes nesse processo seletivo que contribuem para a
produção da impunidade penal.
Foram localizados 3.415 inquéritos policiais e 999 boletins de ocor-
rência para crime de homicídio encaminhados ao Departamento de Homi-
cídios e Proteção à Pessoa (DHPP), totalizando um universo empírico de
4.414 ocorrências de homicídio. Foram considerados os casos de homicídio
consumado, assim como as tentativas de homicídio.
Após trabalho de análise estatística, foi definida amostra composta por
600 inquéritos policiais. Conforme demonstrado em estudos anteriores, a
natureza da autoria revelou-se variável importante na produção da impuni-
dade penal (Adorno; Pasinato, 2010). Assim, a amostra respeitou as propor-
ções de inquérito policial com autoria conhecida e desconhecida.
Contudo, a amostra teve de ser alterada em virtude de uma série de im-
pedimentos. Em 2003 houve proibição das atividades de campo determina-
da pela Secretaria de Segurança Pública.6 Retomadas as atividades, foi possí-
vel localizar 418 dos 600 inquéritos originais. Novamente, outra dificuldade
enfrentada pela equipe de pesquisa foi a não localização física de 245 inqué-
ritos policiais, principalmente porque casos haviam sido desclassificados,
redistribuídos pelo Tribunal de Justiça ou outras tratativas processuais. Por
fim, após novo ciclo de contratempo, em 2008 foi possível concluir a coleta

6 Na verdade, não houve tácita proibição, mas criação de dificuldades de acesso às


fontes. As equipes haviam concluído a coleta de dados da primeira fase da pesquisa.
Pretendíamos retornar a campo para controle de qualidade dos dados coletados quando
as portas acabaram fechadas. Em 2005, com apoio do Grupo de Atuação Especial de
Controle Externo de Atividade Policial (GECEP) do Ministério Público, as dificuldades
foram sanadas e foi possível retomar o curso regular das atividades de investigação.
408 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

de dados com 197 casos encontrados. Os casos encontrados foram foto-


copiados e informações selecionadas compuseram um banco de dados de
natureza quantitativa (Adorno; Pasinato, 2008).
Os homicídios consumados corresponderam a 68% dos 197 casos da
amostra, enquanto os homicídios tentados respondem por 25,9%. Os de-
mais casos somaram 4,6% de homicídios consumados combinados com ou-
tros crimes (inclusive com a tentativa de homicídio) e 1,5% de homicídio
tentado combinado com outros crimes. Visto que o julgamento do crime
de homicídio é individualizado, a amostra também pode ser compreendida
pelo número de infratores envolvidos, 243 no total. Da mesma maneira, um
único processo penal pode envolver mais de uma vítima. Nesta amostra,
foram 234 vítimas.

A economia interna do processo e a produção da impunidade penal


Os dados coletados foram tratados de forma a responder duas questões
principais. Primeiro, qual a magnitude da impunidade penal? Em segundo
lugar, quais fatores da economia interna dos processos criminais justificam a
produção da impunidade? Para respondê-las foram combinadas análises de
fluxo do sistema de justiça criminal, de morosidade processual e de sentencing.
O principal resultado da pesquisa foi a identificação de “gargalos” no
fluxo da justiça penal para os crimes de homicídio tentado e consumado.
Os gargalos ocorrem nas diferentes etapas que conformam a investigação e
processamento de crimes no interior do sistema de justiça criminal e dizem
respeito aos momentos em que as ações penais deixam de ter continuida-
de. Por conseguinte, pela descontinuidade das investigações ou do processo,
os crimes deixam de receber punição, produzindo-se a impunidade penal
(Adorno et al., 2008-2012).
A pesquisa identificou quatro momentos decisivos na produção da im-
punidade.7 O primeiro e principal gargalo corresponde à não conversão de
boletins de ocorrência (BOs) em inquéritos policiais. O segundo gargalo

7 Não estão sendo considerados os crimes que sequer chegam ao conhecimento da auto-
ridade policial. Compõem o que, na literatura criminológica, se convencionou nomear
de “cifras negras”, conceito presentemente em revisão.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 409

ocorre ao término do Inquérito Policial (IPs), quando não há o oferecimen-


to de denúncia por parte do Ministério Público. O terceiro momento de
produção da impunidade encontra-se na ausência de sentença de pronúncia
por parte do Juiz, o que acarreta ausência de julgamento pelo tribunal do
júri. Por fim, o último gargalo corresponde aos casos em que o réu pronun-
ciado deixa de receber julgamento pelo tribunal do júri. Convém destacar
que o processo completo de observação recomendaria ir até o cumprimento
da sentença condenatória,8 na grande maioria consistente de supressão da
liberdade mediante encarceramento. No entanto, sabemos que uma propor-
ção dessas sentenças sequer chega a ser cumprida.9
A análise do primeiro gargalo foi enfatizada na primeira etapa do Es-
tudo da Impunidade Penal. Conforme demonstrado em Adorno e Pasinato
(2010), na primeira etapa da pesquisa foram identificados 344.767 boletins
de ocorrência de crimes violentos e não violentos nas mesmas delegacias
de São Paulo e para o mesmo lapso temporal de análise. Desse total, 5,5%
foram convertidos em inquérito policial, sendo maior a proporção para
crimes violentos (8,1%). Ademais, as análises identificaram que 60% dos
boletins de ocorrência para crime de homicídio obtiveram conversão para
inquérito policial (Adorno; Pasinato, 2010). Portanto, no primeiro gargalo
do fluxo penal, quatro em cada dez crimes de homicídio sequer foram obje-
to de investigação policial.
A identificação de gargalos no fluxo de processos penais permitiu suge-
rir que o sistema criminal brasileiro é representado pela forma de funil.10 O
topo é largo, correspondendo ao elevado número de ocorrências criminais

8 Não foi feito porque essa sorte de observação requereria deslocar a observação para
os arquivos da Secretaria de Administração Penitenciária justamente em um período
de emergência do crime organizado nas prisões do Estado de São Paulo. Certamente,
esta seria uma terceira etapa e retardaria o cumprimento do cronograma de execução,
já atrasado em virtude das paralisações involuntárias.
9 Suspeita-se ser elevado o número de mandados de prisão por condenação que não che-
ga a ser cumprido. Ver a respeito Estado de São Paulo tem 137 mil mandados de prisão
a cumprir, disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/09/11/
estado-de-sao-paulo-tem-137-mil-mandados-de-prisao-a-cumprir.ghtml>.
10 Por certo, esta é uma representação gráfica universal. Em todos os sistemas de justiça
criminal, é maior o número de casos policiais registrados na entrada que na saída. O
410 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

registradas; a base é estreita, porque são poucos os réus efetivamente senten-


ciados. A figura reproduzida a seguir apresenta os três gargalos que foram
identificados pela segunda etapa do Estudo da Impunidade Penal.

Figura 1. Gargalos do fluxo do sistema de justiça

Na figura, a primeira faixa corresponde ao número de infratores com


inquérito policial para crime de homicídio. Na segunda faixa, o número de
réus que foram denunciados pelo Ministério Público. A seguir, tem-se o
número de réus que foram enviados a júri popular, seguindo decisão de pro-
núncia proferida pelo Juiz. Por último, o número de réus sentenciados após
o júri e as demais tratativas jurídicas que antecedem a execução da pena.
Observa-se que o número de réus é decrescente em cada uma dessas etapas.
Após a conversão de um boletim de ocorrência em inquérito policial,
dá-se início às investigações realizadas pela polícia civil. Cabe a essas autori-
dades realizar perícias técnicas no local dos fatos, nos instrumentos utilizados
na ação, nas vítimas e nos suspeitos, caso sejam encontrados. O trabalho de
investigação policial deve reunir, nas peças que compõem o inquérito policial,
indícios para autoria, circunstâncias e motivações do crime. Não se trata de
produção de provas, mas de apresentação de evidências que serão posterior-
mente retomadas para a produção de provas, sob o crivo do contraditório.
Uma vez que o delegado responsável pelo caso determina como encer-

problema é quando a base do funil é larga e o gargalo é estreito – sinal de que taxas de
impunidade são elevadas.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 411

radas as investigações policiais, ele deve encaminhar ao Ministério Público


o relato das diligências que foram realizadas para estabelecer materialidade
e autoria, bem como o seu parecer sobre o caso. Com base nos critérios de
materialidade, autoria, circunstâncias e motivações, os promotores devem
avaliar a documentação e requisitar ao juiz o arquivamento do inquérito ou
a denúncia do acusado nas penas previstas pelo artigo 121 do Código Penal.
Com a denúncia inaugura-se a instrução criminal, em que se dá início
à produção de provas com a possibilidade de defesa por parte dos acusados.
Ao final dessa fase, acusação e defesa preparam alegações com suas versões
dos fatos e os pedidos para os desfechos que julgam apropriados. Analisan-
do as peças do processo, cabe ao juiz decidir se o réu será ou não julgado
pelo tribunal do júri (decisão de pronúncia).
Para os crimes de homicídio, a decisão de sentença é definida pelos
membros do tribunal do júri que avaliam o caso e respondem a uma série de
questões interpostas pelo juiz da sessão. Em caso de condenação, o juiz rea-
liza o cálculo da pena, considerando as avaliações dos jurados sobre as cir-
cunstâncias em que ocorreu o crime. A execução da pena aguarda o trânsito
em julgado da sentença condenatória e, dessa maneira, há um período após
a decisão do tribunal do júri para apresentação de recursos pelas partes.
A segunda etapa do estudo da impunidade penal verificou os gargalos
produzidos a partir do não oferecimento de denúncia e arquivamento do
inquérito policial. Do total de 243 infratores, identificou-se que 159 indiví-
duos foram denunciados. Considerando-se a amostra de 197 casos, foram
71 inquéritos policiais arquivados e 126 com instauração de processo penal.
O não oferecimento de denúncia excluiu do fluxo do sistema de justiça cer-
ca de 35% do total de infratores, o equivalente a 30% do total de vítimas.
Considerando a amostra total, para 36% de casos de homicídio tentado ou
consumado o agressor não foi indiciado.
Os demais gargalos são característicos da fase judicial. A decisão de
pronúncia por parte do juiz configura outro momento em que se pode pro-
duzir o gargalo do fluxo. A pesquisa identificou que dos 159 infratores de-
nunciados, 115 receberam decisão de pronúncia, correspondendo a 72,3%
dos casos. Desse total, 12 réus morreram antes da realização da sessão do
412 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

tribunal do júri, enquanto que outros 8 tiveram o processo desmembran-


do11. Entre o número inicial de infratores e os 95 finalmente encaminhados
ao júri, mais de 50% foi excluído do fluxo do sistema de justiça.
O último gargalo é observado após a sentença do júri popular e o trân-
sito em julgado das sentenças. Dos sentenciados e transitados em julgado,
após a decisão final (sentença ou acórdão), 28 indivíduos foram absolvidos e
outros 65 sentenciados pelo crime de homicídio, o que corresponde a 26,7%
do total inicial de infratores e 56% do total de réus pronunciados.
Considerando o fluxo desde o inquérito policial às sentenças finais, mais
de 60% dos infratores deixaram de receber sentença pelo crime de homicídio.
Observando-se apenas o número de condenações, sobe para aproximada-
mente 73% a proporção de infratores que não recebeu punição. Considerando
como unidade de análise o número inicial de 197 inquéritos policiais, em 64
casos (32,4%) ao menos um réu recebeu condenação pelo tribunal do júri.
Os resultados evidenciam a necessidade de considerar separadamente
a produção da impunidade em dois momentos distintos do fluxo. Primeira-
mente, enfatizar as dinâmicas próprias ao trabalho de investigação policial
no processo de exclusão de casos e infratores do fluxo de justiça. O outro
momento diz respeito às tratativas judiciais. Nesse aspecto deve-se consi-
derar como a qualidade da investigação policial contribui para a produção
de provas na fase judicial. Todavia, demonstrou-se indispensável analisar
como a impunidade penal é produzida pela forma específica com que os
operadores técnicos do direito se valem dos recursos proporcionados pelas
leis em suas tarefas de defesa e acusação.
Estas constatações orientaram o trabalho de pesquisa de natureza qua-
litativa sobre as dinâmicas próprias destes dois momentos chave da produ-
ção da impunidade penal, conforme se expõe a seguir.

11 Em alguns pontos do texto optou-se por considerar o número do caso como unida-
de de análise. Isso porque para os processos penais desmembrados não foi possível
acompanhar os processos através do follow-up institucional. Processos desmembrados
podem ser redistribuídos entre varas criminais e, dessa maneira, tornou-se, à época,
impossível identificar e localizá-los no Arquivo de Justiça.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 413

A impunidade na fase policial


Como visto acima, na segunda etapa do Estudo da Impunidade Penal
identificou-se que o gargalo representado pela fase policial é gerado sobre-
tudo pelo pedido de arquivamento do inquérito policial. Os casos de homi-
cídio consumado perfazem a maior parcela de inquéritos arquivados, so-
mando 83%. Do total de infratores identificados na amostra, 30,8% tiveram
seus inquéritos arquivados.
A pesquisa observou algumas das circunstâncias que fundamentam o
arquivamento do inquérito policial. Em todas as etapas do fluxo uma investi-
gação de crime de homicídio pode ser interrompida pela morte do agente da
agressão homicida, o que acarretará tanto em arquivamento quanto extinção
de punibilidade. Considerado todo o fluxo, desde a instauração do inquérito
policial, 11,1% dos infratores morreram (N=27) antes da conclusão do pro-
cesso: quatro antes da conclusão do inquérito policial, 13 após a denúncia,
nove após a pronúncia e um após a apelação contra a sentença do júri.
Contudo, para a amostra em questão, a principal razão para o arqui-
vamento de inquéritos foi o não esclarecimento da autoria, explicação para
84,5% dos 71 casos arquivados. Considerando somente os inquéritos arqui-
vados para homicídio consumado, verificou-se que, em 81%, a autoria da
agressão era desconhecida desde o boletim de ocorrência. Isso significa que
os investigadores não encontraram no local dos fatos informações que indi-
cassem o nome de algum suspeito. Os demais 19% apresentaram inicialmente
um nome para autoria, o que não se sustentou ao longo do inquérito. Contra-
riamente, dois terços dos inquéritos arquivados para tentativa de homicídio
apresentaram autoria inicial que não foi confirmada pelas investigações.
Nessa fase do fluxo, o não esclarecimento da autoria está relacionado
principalmente à acentuada seletividade policial. A análise da performance
institucional a partir dos 197 casos identificou que os esforços investigativos
estão desigualmente distribuídos, a depender da natureza da autoria. Alguns
dos fatores institucionais que organizam essa seletividade serão destacados.
A leitura das peças permitiu notar que há preferência pela investigação
dos casos de autoria conhecida por comparação aos de autoria desconheci-
da. Os primeiros chegam “prontos” à delegacia, ou seja, com todas as infor-
414 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

mações sobre as circunstâncias, a autoria, os vínculos entre as partes. Esses


casos em que a autoria é conhecida desde o início demonstram o que pode
ser um trabalho de intensa investigação, tendo em vista a coleta exaustiva de
testemunhas e a busca de novas informações com indivíduos que, mesmo
ausentes no momento da ocorrência, conheciam as partes.
Por sua natureza, os casos de autoria desconhecida são os que deman-
dam mais trabalho, exigindo, além da oitiva de testemunhas, a elaboração
de diversas perícias. As autoridades também devem formular hipóteses que
guiem a investigação em diferentes frentes. Mas o que se notou para os casos
de autoria desconhecida foi o oposto. Se os policiais não lograrem encon-
trar testemunhas oculares, vão buscar ouvir moradores ou transeuntes nos
locais do fato. Na maior parte do tempo, esse tipo de testemunha forne-
ce poucas informações, seja porque respeitam a “lei do silêncio” temendo
represálias ou porque o pouco que sabem descobriram por “ouvir dizer”.
Nessas circunstâncias, os depoimentos lacônicos ou assentados em rumores
que circulam pelos bairros introduzem dúvidas nas investigações. Com a
ausência de testemunhas presenciais, e se a vítima for pouco conhecida no
local dos fatos, dificilmente as investigações avançam.
Diante de casos de autoria desconhecida, o mais comum é que a inves-
tigação seja guiada pela hipótese da morte causada por associação da vítima
com atividades criminais, em especial o tráfico de drogas12. Para comprovar
essa tese são ouvidos familiares, amigos ou vizinhos que são questionados
sobre o passado da vítima. Nesses casos, as perguntas são elaboradas de for-
ma a tentar captar características morais da vítima13 que justifiquem a hipó-

12 A princípio, a ausência de múltiplas hipóteses como alternativa de investigação pode-


ria indicar baixa capacidade de inovação dessas agências. Contudo, ao que tudo indica,
a opção dos investigadores de privilegiar hipóteses associando os fatos a possíveis dis-
putas próprias da criminalidade ligada ao tráfico de drogas, não parece de todo desar-
razoada. Como se pode concluir a partir de estudos como o de Dias (2011) e similares,
de fato, parcela não desprezível dos crimes de homicídio do período estiveram ligados
a disputas entre facções e indivíduos associados ao crime de drogas.
13 Clássico estudo de Mariza Corrêa (1983) demonstrou o quanto as características mo-
rais compõem os julgamentos de réus. Não poucos operadores do direito penal conce-
bem a ordem social cindida entre o bem e o mal, a virtude e o vício, o certo e o errado.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 415

tese investigativa. Além desses depoimentos, as peças dos autos analisados


pouco deixam entrever das outras tratativas que seriam tomadas para apro-
fundar a investigação e, em geral, essa hipótese não é confirmada.
Também chama atenção a insuficiência de provas técnicas nos casos
em geral, e entre os de autoria desconhecida em especial. Menos da metade
das armas utilizadas nessas mortes foi apreendida, o que pode ser resultado
em parte do empenho dos agressores em desaparecer com a prova, em parte
descuido de autoridades em sua recolha. Poucos dos exames realizados so-
bre as armas apreendidas demonstraram relações positivas com os crimes
investigados. Outros laudos, como de exame de corpo de delito ou lesão
corporal são pouco conclusivos e dependentes de exames complementares
raramente anexados. No geral, os laudos se limitam a descrever o objeto,
sem estabelecer a relação com um possível autor.
Convém destacar os casos de autoria desconhecida em que um policial
esteve envolvido como vítima, e os que receberam alguma repercussão na im-
prensa. As investigações desses casos contrastam com as demais, de forma a
reforçar as evidências da seletividade. É flagrante o maior esforço das auto-
ridades, evidenciado pelo número de testemunhas ouvidas e pelo indicativo
de que buscaram novas testemunhas além das que constavam no registro da
ocorrência. Também chama atenção a quantidade e qualidade das técnicas
periciais utilizadas, a pouca duração do inquérito e o curto espaço de tempo
entre as provas técnicas, além da evidente tentativa por parte dos investiga-
dores de estabelecer conexões com outras histórias que poderiam auxiliar na
elucidação do caso. Novamente, o que caracteriza um inquérito policial arqui-
vado por não esclarecimento de autoria é a ausência de todos esses elementos.
Em resumo, a principal razão identificada para a produção da impuni-
dade penal na fase policial foi o arquivamento do inquérito policial pelo não
esclarecimento da autoria. As investigações estão apoiadas sobretudo nas
redes de oralidade que se formam ao redor dos fatos, indicando o peso do

Sob essa perspectiva, a função de controle social à qual o direito penal está adstrito
compreende também operações que pretendem adentrar a “alma” dos acusados, iden-
tificar-lhes características que possam estar associadas ao desvio criminal que, assim
lhes parece, é a face visível do desvio da conduta moral.
416 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

que se convencionou chamar “prova oral”. O sucesso de uma investigação


para crime de homicídio depende sobretudo da existência de testemunhas
que possam indicar um nome como suspeito. Além disso, tudo indica que
no período em questão as técnicas disponíveis eram insuficientes para con-
dução eficiente das investigações dos fatos.
A próxima seção destacará como essas práticas institucionais e condi-
ções de trabalho se somam à produção de provas judiciais influenciando as
demais etapas do fluxo de sistema de justiça.

A impunidade na fase judicial


A tabela a seguir apresenta dados da amostra distribuídos pelos infra-
tores seguindo os desfechos nas três sentenças decisórias.

Tabela 1. Distribuição dos desfechos por infrator em três decisões judiciais


Segundo gargalo Terceiro gargalo Quarto gargalo
Denunciado 159 Pronunciado 115 Condenados 65
Arquivado 75 Absolvição sumária 8 Absolvidos 28
Excluído 9 Impronúncia 19 Desclassificado 2
Morte do agente 13 Desmembrado 8
Desmembrado 4 Morte do agente ou 12
prescrição
Total 243 159 115

Fonte: Inquéritos Policiais e Processos Penais dos 1º, 3º e 5º Tribunais do Júri de


São Paulo (1991-1997). Pesquisa Violência, Impunidade e Confiança na Demo-
cracia. CNPq, NEV-USP. Em destaque constam os infratores que escaparam ao
fluxo do sistema de justiça

Durante a instrução criminal, são poucos os novos laudos anexados


aos autos. As provas técnicas permanecem protocolares e nessa fase são
pouco utilizadas para fundamentar o convencimento dos operadores do
direito. A exceção que merece destaque são os casos em que o juiz absolve
sumariamente o réu ao final da instrução criminal. Como prevê o Código
de Processo Penal brasileiro, um acusado deve ser absolvido sumariamen-
te pelo juiz quando comprovada a inexistência do fato; comprovado não
Violência, Polícia, Justiça e Punição 417

ser o acusado o autor ou partícipe do fato; o fato não constituir infração


penal ou quando demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão
do crime. Conforme demonstrado na segunda coluna da tabela acima,
do total de denunciados, oito infratores foram excluídos do fluxo porque
receberam absolvição sumária por parte do juiz. Esses casos se justifica-
ram tanto pela “legítima defesa” quanto pelo reconhecimento da inim-
putabilidade do réu. Foi decisiva para o desfecho da absolvição sumária
a confissão do réu perante o juiz e os laudos técnicos, em especial os que
comprovam a insanidade mental do réu.
Nessa fase, a capacidade elucidativa das provas orais não difere subs-
tancialmente das evidências coletadas pela polícia. Para os processos ana-
lisados, o rol de testemunhas pouco se altera daquele inicialmente listado
pela investigação policial. Observou-se que as alterações que ocorrem pou-
co auxiliam ou mesmo prejudicam o desenvolvimento do processo.
Não raro, testemunhas cujas declarações sustentam a hipótese defendi-
da pela denúncia não são ouvidas na instrução criminal, ou porque não fo-
ram mais localizadas, ou porque deixaram de atender à intimação. Entre as
testemunhas que permanecem nas duas fases, não é incomum que mudem o
conteúdo de suas declarações e contradigam o que afirmaram na delegacia.
Testemunhas oculares, principalmente, tornam-se circunstanciais ao negar
terem presenciado os fatos, afirmando que souberam do ocorrido por “ouvir
dizer”. Muitas vezes, o novo depoimento atenua a culpabilidade do réu. Não
são poucos os casos em que a testemunha reconhece que mudou o depoi-
mento, ou que prefere manter-se calada, por conta de ameaças impostas
pelo réu. Observou-se também casos em que os depoentes negam o que
disseram na fase policial alegando que o primeiro depoimento foi realizado
sob pressão ou ameaças dos policiais.
A principal inovação investigativa demonstrada pela instrução crimi-
nal é a convocação de testemunhas que não foram ouvidas na fase policial.
Mas dificilmente aparecem na fase judicial testemunhas que presenciaram
os fatos. No geral, as novas testemunhas são pouco capazes de fornecer in-
formações que ajudem a elucidar ou confirmar as evidências. Via de regra,
são chamadas para prestar declarações dos antecedentes das partes envolvi-
418 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

das e são confrontadas com questões a respeito do histórico de violência do


réu e seus possíveis vínculos com atividades criminais.
Para a maioria dos processos denunciados, observou-se a persistência
de dúvidas referentes à autoria e às circunstâncias dos crimes de homicídio.
Destacam-se os 19 casos que foram impronunciados pelos juízes ao final da
instrução criminal por apresentarem características similares aos inquéritos
policiais arquivados. De acordo com Código de Processo Penal brasileiro o
acusado deve ser impronunciado quando o juiz não forma convencimento
da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria
ou de participação nas ações. Nos casos observados, o pedido de impro-
núncia seguiu a escassez de informações nos autos para autoria e ausência
de indícios para o animus necandi da ação, isto é, faltaram provas de que o
réu agiu com intenção de matar a vítima. Dessa maneira, excluídas as cir-
cunstâncias contingenciais como a morte do agente, a principal razão para
exclusão de um infrator naquela fase foram, respectivamente, a decisão de
impronúncia e a absolvição sumária.
As principais características do fluxo de justiça nessa fase processual
são a permanência de provas técnicas subtilizadas e deficientes e a depen-
dência da prova de origem oral. Contudo, como visto, as provas orais se
apresentam como conjunto igualmente precário. Para a formação deste qua-
dro, contribuem tanto o trabalho policial carente de padrões de investigação
quanto as práticas próprias da fase jurídica, uma vez que promotores públi-
cos e juízes demonstram esforços insuficientes para aprimorar as questões e
hipóteses elencadas pela fase anterior.
Em muitos casos, à instrução criminal reserva-se o dever de confirmar
ou negar as teses elaboradas na fase policial. Como hábito institucional, não
raro, operadores do direito formulam o convencimento de suas decisões uti-
lizando-se das evidências produzidas pela etapa policial do fluxo de justiça.
Essa tendência ocorreu principalmente com as intervenções processuais de
juízes. Enquanto a insuficiência de provas colhidas pela investigação policial
é determinante para a exclusão de infratores do fluxo, de maneira similar a
precariedade das evidências e do conjunto probatório marcam os casos que
permanecem no fluxo.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 419

A fragilidade de rigor processual introduz elementos de incerteza no


fluxo de justiça criminal e, dessa forma, a ausência de subsídios técnicos e
objetivos faz vigorar a discricionariedade dos operadores do direito. Nesse
cenário, abre-se a possibilidade de fatores extralegais influenciarem os des-
fechos penais na fase judicial.
Diversos estudos demonstram como a discriminação de raça e gênero
influenciam os operadores do sistema de justiça na condução e desfecho dos
processos penais (Corrêa, 1983; Adorno, 1995; Fausto, 2001; Pasinato, 2008;
Vargas, 1999a e 1999b). Os dados analisados na segunda etapa do Estudo da
Impunidade Penal revelam outros fatores extralegais que permeiam o fluxo
de sistema de justiça.
Entre eles, destaca-se a construção de retratos morais dos réus. Diante
da incerteza que caracteriza o conjunto probatório, principalmente no que
diz respeito à autoria, em diversos processos a disputa pelo desfecho proces-
sual desloca-se das ações investigadas para a personalidade do réu. Promo-
tores, juízes e defensores recorrem à construção de retratos morais dos réus
de forma a validar as acusações a partir da associação entre o ato homicida
e o caráter do infrator. Os debates em torno das categorias jurídicas que
qualificam o crime de homicídio revelam como os operadores do direito
estabelecem explicações para os comportamentos a partir de características
que julgam intrínsecas aos indivíduos julgados.
No ato da denúncia do crime, é dever do Ministério Público analisar
os indícios reunidos pelo inquérito policial e avaliar se circunstâncias espe-
cíficas qualificam o crime de homicídio. Um réu pode ser denunciado pelo
crime qualificado pelos motivos fúteis ou torpes14 que teriam orientado a

14 O motivo fútil e o motivo torpe estão previstos como qualificadores do crime de ho-
micídio, conforme redação do art. 121 do Código Penal de 1940. Se confirmadas pelo
tribunal do júri, os qualificadores do crime de homicídio induzem ao aumento da
pena. O Código Penal traz seção específica em que o motivo torpe é definido como “o
motivo que suscita a aversão ou repugnância geral, v. g.: a cupidez, a luxúria, o despeito
da imoralidade contrariada, o prazer do mal, etc.”; enquanto o fútil consiste no crime
que “pela sua mínima importância, não é causa suficiente para o crime” (BRASIL,
1999, p. 23). Certamente, este domínio está sujeito a interpretações subjetivas, inclusi-
ve arbitrárias. Atos considerados por muitos como torpes ou fúteis podem ser objetos
420 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ação homicida. O homicídio também pode ser qualificado se comprovada


a utilização de “meio insidioso” ou de recurso que tenha impossibilitado a
defesa da vítima, como emboscada ou traição. Outro qualificador do crime
de homicídio é a intenção do réu garantir impunidade ou vantagem indevi-
da. Vale lembrar que o homicídio qualificado acarreta aumento de pena na
sentença, prevendo de 12 a 30 anos de pena. De outro modo, o Ministério
Público pode avaliar se as circunstâncias são atenuantes, como a injusta pro-
vocação da vítima e a violenta emoção que acometeria o agressor. A esses
casos prevê-se diminuição de pena.
Em estudo realizado a partir do banco de dados do Estudo da Impuni-
dade Penal, Oliveira (2016) observou-se a atribuição de qualificadoras nas
três decisões judiciais do fluxo do sistema de justiça criminal: denúncia,
decisão de pronúncia e sentença pelo tribunal do júri. Para a decisão de
denúncia, identificou-se a elevada incidência de qualificadores de motivo
fútil e torpe pelo Ministério Público. De todos os denunciados, apenas 30
infratores foram denunciados pelo crime de homicídio “simples”, sem qual-
quer qualificador. A seguir, na decisão de pronúncia, foi mantida a maioria
dos qualificadores. Comparativamente, entre denúncia e pronúncia, os qua-
lificadores se mantiveram em proporções relativamente equivalentes. Mais
precisamente, na primeira decisão, 81% dos infratores foram denunciados
com ao menos um qualificador; na segunda decisão, 71% dos réus foram
pronunciados com ao menos um qualificador.
Em seguida, Oliveira (2016) observou que o tribunal do júri apresentou

de reinterpretações ou interpretações singulares em momentos de conflito nos quais


a intensidade emocional conduz a um desfecho fatal. Muitos dos protagonistas dos
fatos observados nos autos, seja na condição de vítima, seja na de agressor, perten-
cem a estratos socioeconômicos extremamente desprovidos de direitos. Para estes, em
momentos de crise e tensão a única “propriedade” de que dispõem é sua honra – a
de trabalhador, provedor do lar, cidadão honesto, solidário etc. Tais atributos morais
compõem a identidade pessoal de qualquer um, porém, para alguns, adquirem sentido
supervalorizado, como se fossem o que resta a proteger. Tal argumento são se trata,
por certo, de uma justificativa aos crimes, especialmente os graves, por parte de quem
os tenha cometido. Servem, todavia, à compreensão dos fatos, suas nuances e o modo
como constituem objeto de disputas entre operadores técnicos do direito.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 421

tendência oposta. No julgamento dos infratores, o júri usualmente ameniza a


punição. A tendência é que os qualificadores deem lugar a categorias jurídicas
que permitam a diminuição de pena no cálculo penal. Assim, um infrator
que, inicialmente, fora qualificado pelo motivo fútil, tende a ser sentenciado
considerando-se a “violenta emoção” como razão para sua conduta. O estudo
demonstrou como a atribuição de qualificadores faz parte da estratégia dos
operadores do direito nas disputas pelo desfecho das ações penais. Como assi-
nalou Corrêa (1983), considerando que o júri tende a atenuar a culpabilidade
do réu e, como contrapartida, orientar sua decisão com vistas a garantir a
confirmação da autoria do crime, os promotores estão inclinados a postular o
máximo de qualificadores possíveis no início do processo para, ao final, con-
seguir o mínimo, simbolizado pela condenação do réu.
Para fundamentar ou rejeitar os qualificadores do crime de homicídio,
os operadores do direito apresentam, nas suas peças dos autos, interpreta-
ções sobre o conjunto probatório. Utilizando-se principalmente das provas
orais, os operadores do direito selecionam partes dos depoimentos e narram
os acontecimentos associando os fatos aos retratos morais dos envolvidos
nos processos. Recorrem sobretudo aos depoimentos de antecedentes que
permitam caracterizar os infratores, sublinhando traços que revelariam sua
“índole”, sua inclinação ao trabalho ou aos vícios. Evocam, assim, preconcei-
tos e valores morais traduzidos em categorias jurídicas.
Nos discursos jurídicos, os envolvidos nos casos são retratados como
homens naturalmente perigosos. Os depoimentos constituem, per si, prova
de sua periculosidade e crueldade inerentes. Na visão dos operadores do di-
reito, os réus são homens vingativos, ciumentos, intolerantes e a todo tempo
se consideram injustiçados; incapazes de controlar seu destino e de calcular
racionalmente as consequências de seus atos, conhecem apenas o código da
justiça pelas próprias mãos. Os réus se distinguiriam do homo medius por agi-
rem orientados pela prepotência e arrogância que seriam fruto de suas origens
sociais ou do ambiente em que convivem: migrantes, pobres, “favelados”.
Ancorado na elaboração de retratos morais, o discurso da morte banal
desloca o julgamento dos atos para a personalidade do réu. Ao fazê-lo, em
lugar de analisar minuciosamente o conflito fatal, os operadores do direito en-
422 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

fatizam a pressuposta índole homicida dos infratores. É preciso frisar que está
previsto em lei que julgadores possam avaliar a “personalidade do réu”. Con-
tudo, na forma própria como os promotores, defensores e juízes a compreen-
dem e constroem, a “personalidade do réu” comporta múltiplos significados.
A invocação de retratos morais estabelece tensões entre objetividade e subje-
tividade na aplicação dos preceitos legais e introduz, no fluxo do sistema de
justiça, incertezas sobre os desfechos que se poderiam esperar dos processos.
A segunda etapa do estudo da impunidade penal identificou também
evidências de acordos informais promovidos na sessão do júri entre a acu-
sação e a defesa. São informais porque não estão previstos no Código de
Processo Penal para crimes de homicídio. E, nesse sentido, diferenciam-se
dos acordos judiciais estabelecidos em audiências de conciliação dos juiza-
dos especiais cíveis porque não são conduzidos por procedimentos legais
e não definem diretamente a decisão final do processo. Antes, os acordos
informais na sessão do júri são estratégias adotadas pelas partes para limi-
tar as hipóteses que serão apresentadas aos jurados. Com os acordos, bus-
cam influenciar o julgamento de maneira a restringir os desfechos possíveis
àqueles acordados entre as partes interessadas.
Em um único caso o acordo chegou a ser registrado em ata da sessão, o que
ocasionou, posteriormente, a anulação do júri pelo tribunal de segunda instân-
cia. Nos demais casos, as atas da sessão do júri fornecem indícios e evidências
dos acordos ao registrar os pedidos elaborados pelas partes durante os debates
da sessão do júri. Conforme constam das atas analisadas, dificilmente os pro-
motores e os defensores persistem na defesa de suas teses apresentadas ante-
riormente, na peça de denúncia ou nas defesas prévias. O mais recorrente é que
modifiquem seus pedidos diante dos jurados. Nesses casos, a defesa reconhece
a autoria, acompanhada da confissão do réu que assume a responsabilidade da
ação. Uma vez garantida a autoria pela confissão, o promotor tende a relaxar a
culpabilidade do réu, abrindo mão principalmente dos qualificadores do mo-
tivo torpe ou fútil, optando por homicídio simples ou reconhecendo circuns-
tâncias atenuantes em alguns casos. Ao final, a principal evidência dos acordos
encontra-se no fato de que promotor e defensor muitas vezes defendem a mes-
ma tese, contrariando o que havia sido documentado os autos.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 423

Por fim, a segunda etapa do estudo da impunidade penal observou,


ainda, as médias das sentenças e a morosidade processual como elementos
de produção de impunidade no fluxo do sistema de justiça. Para o conjunto
de casos que receberam sentença (40%), a pena foi fixada em 4 anos. Entre
os que foram considerados culpados pelo crime de homicídio consumado,
a sentença foi de 5 anos ou menos; para 13%, as sentenças foram calculadas
entre 6 e 10 anos; 21% com sentenças de 12 a 17 anos e apenas um caso foi
condenado a mais de 30 anos pelo crime de homicídio qualificado.
Deve-se destacar que a pesquisa identificou que não há diferenças sig-
nificativas para a duração da pena em relação à gravidade dos casos. Pro-
cessos de homicídio tentado e homicídio consumado receberam em média
sentenças de duração similar.
Para medir a morosidade processual, foram comparadas as datas de re-
gistro dos procedimentos principais, desde a do boletim de ocorrência até a
da decisão final proferida pelo juiz, após a sentença do júri, ou pelo tribunal
de justiça, em acórdão. Primeiro, para os inquéritos que foram arquivados,
notou-se que os casos se estenderam em média por 795 dias, o equivalente a
2,2 anos. Entre os casos que foram denunciados e chegaram à decisão final
(ou acórdão pelo Tribunal de Justiça), o tempo médio de duração foi de
1.846 dias (5 anos).
O estudo da morosidade destaca que quanto maior o tempo levado
para um inquérito policial ser investigado, menores são as chances de que
um infrator seja levado a julgamento. Comparando os casos arquivados
com denunciados, nota-se que o tempo despendido com as investigações
policiais é muito maior para casos que foram arquivados. A fase de inquéri-
to policial para os casos que obtiveram denúncia durou cerca de dois anos
a menos que os casos arquivados. Para os casos arquivados, os inquéritos
policiais levaram em média 775 dias, enquanto que, para os denunciados, a
fase policial foi concluída em 130 dias (ou 4,3 meses), em média.

Considerações finais
A análise desenvolvida focalizou a economia interna dos inquéritos e
processos penais, a partir do exame das diferentes estratégias empregadas
424 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

pelos operadores técnicos do sistema de justiça criminal em suas atribuições


legais de promover o controle da ordem pública, mediante a distribuição de
sanções penais para crimes cometidos, no caso, especificamente homicídios.
Os resultados obtidos indicaram elevada incidência de impunidade
para os crimes de homicídio e tentativa de homicídio. Para esses casos,
a produção da impunidade penal se materializa em duas fases distintas e
complementares do fluxo do sistema de justiça. Na fase policial, como vis-
to, a impunidade é identificada sobretudo pela não conversão de boletins
de ocorrência em inquéritos policiais. Passado esse gargalo, o segundo mo-
mento é o não oferecimento de denúncia, pelo Ministério Público, para in-
fratores indiciados em inquéritos policiais. Como observado, escaparam ao
fluxo do sistema de justiça 36% dos casos inicialmente registrados.
Poucos estudos avançaram as análises para os gargalos posteriores e
o estudo aqui relatado contribui com a literatura nesse sentido. A bem da
verdade, o cálculo da impunidade aqui proposto teve de considerar circuns-
tâncias imprevisíveis, como a morte do acusado, que acaba por excluí-lo do
fluxo. Em igual medida, não se pode deixar de observar que os processos
penais desmembrados e redistribuídos a outras varas escaparam à amostra
desse estudo. Nem por isso, os réus ficaram inevitavelmente impunes. De
todo modo, em apenas 32,4% dos casos inicialmente registrados ao menos
um réu recebeu sentença condenatória pelo tribunal do júri.
Esse resultado deve ser destacado não apenas pelo que indica sobre
a magnitude da impunidade produzida na fase propriamente judicial. A
análise qualitativa dos dados leva necessariamente a indagar a respeito do
conceito mesmo de impunidade penal. O que se está entendendo por im-
punidade? Aonde se pretende chegar? Se, a princípio, impunidade penal diz
respeito aos casos que escapam do fluxo do sistema de justiça criminal, a
análise desenvolvida neste capítulo indica que não menos impunes podem
assim ser classificados os crimes que sobreviveram à denúncia formulada
por um promotor de justiça, à sentença de pronúncia proferida por um juiz
ou à decisão tomada pelos membros que compõem o tribunal do júri.
Evidentemente há justiça na absolvição sumária, na absolvição pelo tri-
bunal de júri e na impronúncia, uma vez que o acusado tenha comprovado
Violência, Polícia, Justiça e Punição 425

inocência, ou porque o conjunto probatório seja insuficiente para sustentar


a acusação. Em outras palavras, a absolvição de um réu, por mais justa que
seja, pode não significar que o crime tenha sido resolvido. Não sem razão, a
tradição da literatura especializada anglo-saxã tem por foco o esclarecimen-
to do crime, conceito ao qual se vinculam objetivos como precisa descrição
da materialidade dos fatos e dos meios empregados no crime para objetiva
identificação da responsabilidade penal. Vê-se, por conseguinte, que o estu-
do da impunidade é mais complexo do que se possa à primeira vista supor.
Por certo, as conclusões alcançadas encontram-se limitadas pelo alcan-
ce dos números proporcionados pelo universo empírico de investigação.
Ainda que se tenha procurado perseguir a amostra estatisticamente repre-
sentativa, tal como planejada, os inúmeros percalços relatados no curso da
investigação impedem consistente generalização dos resultados para todo o
universo empírico observado. A propósito, o modelo de pesquisa longitu-
dinal adotado, cuja aplicação no sistema de justiça criminal revelou aqueles
percalços, sugere como contrapartida a necessidade de realizar uma espé-
cie de estudo da sociologia dos tribunais; vale dizer, trata-se não apenas de
compreender o funcionamento institucional do sistema de justiça criminal,
mas também de suas resistências à observação externa.
Seja o que for, os resultados indicam que a produção da impunidade
penal é produto do concurso convergente de vários fatores: o modo como
diferentes atores institucionais interpretam os estatutos legais, sobretudo o
Código Penal e o Código do Processo Penal nas suas atribuições de acusar
e defender, condenar e absolver; a participação de atores não institucionais,
na condição de vítimas, agressores e testemunhos cujo desempenho mos-
trou sua importância no desfecho processual; o modo como os próprios es-
tatutos legais abrem espaço para a incorporação nos julgamentos de valores
morais que competem, não raro, com as provas técnicas e materiais. Nes-
te domínio, destaques devem ser conferidos à rarefação das investigações
policiais, especialmente nos casos de autoria desconhecida, ao desequilí-
brio entre provas testemunhais e provas materiais (técnicas), às disputas na
composição do conjunto probatório entre motivações – por exemplo, entre
fúteis ou torpes –, ou entre circunstâncias atenuantes ou agravantes que re-
426 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

gulam o desfecho processual e a dosagem da pena no caso de condenações.


Por tudo isso, pode-se dizer que estamos diante de fenômenos sociais
complexos para os quais não se logra, com sustentação simples, a identifi-
cação das causas sociais e institucionais da impunidade. Para tanto, seria
necessário um estudo com um volume maior de dados que permitisse iden-
tificar padrões regulares de investigação, de instauração de processo penal e
de condenação ou absolvição. Um estudo dessa natureza teria, por sua vez,
que enfrentar de forma eficiente os percalços previstos na pesquisa socioló-
gica dos tribunais de justiça penal.
Há, porém, um aspecto que não pôde ser observado nesta investigação.
Falamos, no curso deste capítulo, da seletividade policial, representada pela
preferência em investigar crimes de autoria conhecida comparativamen-
te aos de autoria desconhecida. Suspeitamos que a seletividade policial se
agravava à medida que os crimes, sobretudo os homicídios, cresciam, e nas
ocasiões em que não havia correspondente provisão de recursos materiais e
humanos para responder à maior demanda por investigações. Possivelmen-
te, ao longo das décadas, esse procedimento institucional veio a compor,
como um de seus traços, a cultura organizacional da polícia. Todavia, para
verificar essa hipótese, é imperativo observar e examinar criticamente as
condições de trabalho dos operadores técnicos do direito.
Embora na primeira fase da pesquisa, concentrada no segmento regis-
tro da ocorrência-inquérito policial no fluxo do sistema de justiça criminal,
tenham sido elaborados cadernos de campo das visitas às delegacias de po-
lícia, as menções às condições de trabalho são esparsas, fragmentárias e,
não raro, indiretas. Na literatura especializada consultada, não havia foco
especial na influência de más condições de trabalho na produção da im-
punidade penal. Talvez, se tivéssemos, à época, consultado literatura sobre
organização das profissões e ocupações, teríamos sido alertados para essa
dimensão e conferido atenção a esse aspecto no trabalho de campo (Bonelli,
2003). Mais recentemente, estudos têm demonstrado a enorme precariza-
ção das condições de trabalho nas delegacias de polícia civil do Estado de
Violência, Polícia, Justiça e Punição 427

São Paulo.15 Diante de um número crescente de registros e da necessidade


de instaurar o competente inquérito policial, a seletividade não pode ser
observada apenas ou tão somente como uma escolha arbitrária do agente
institucional, motivada por interesses pessoais ou valores morais próprios
na implementação da ordem social que esse agente considera justa. Trata-se
de um processo social e institucional desencadeado por políticas governa-
mentais que não estão sob controle do profissional que se encontra próximo
ao balcão de atendimento e à frente das investigações policiais.
Do mesmo modo, não se teve – como em geral não se tem – acesso a
dados que nos permitissem avaliar as condições físicas de trabalho, a dis-
tribuição dos recursos humanos, a adequação ou não das rotinas e da orga-
nização do trabalho. Em alguns casos, a inacessibilidade é justificada sob o
argumento de que tais informações são de caráter sigiloso e que sua divulga-
ção poderia atrapalhar investigações ou perturbar o planejamento de ativi-
dades policiais. A ausência de tais informações impossibilitou, por exemplo,
explicar a inexistência de um padrão uniforme de conduta institucional no
tocante à investigação dos crimes. Foram identificados diferentes padrões
de eficiência institucional que combinam número de registros de ocorrência
criminal e número de inquéritos instaurados. Número elevado de registros
pode corresponder a um número baixo de inquéritos instaurados, mas o
inverso também pode acontecer.
Um tratamento satisfatório dessa questão deveria considerar a distri-
buição heterogênea dos homicídios no território do município (Nery et
al., 2012), cuja influência pode, ao menos em parte, explicar o desempe-
nho diferencial das delegacias na resolução dos casos registrados. Para os
mesmos fins, seria preciso considerar, ainda, a distribuição proporcional
dos recursos materiais e humanos cuja variabilidade também tem seu peso.
Igualmente, é possível avaliar a chamada hipótese do “capital social” (Bour-
dieu, 1989). Moradores de bairros ou distritos censitários onde as condi-
ções de vida e infraestrutura urbana sejam mais elevadas do que a média do

15 Rafael Alcadipani, professor e pesquisador da FGV-SP, tem realizado extensa e densa


observação empírica sobre as condições de trabalho e de organização do trabalho po-
licial no âmbito da Polícia Civil do Estado de São Paulo.
428 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

município, tendem a revelar maior escolaridade. Maior escolaridade vem


acompanhada de maior consciência pública de direitos e das responsabili-
dades institucionais dos agentes públicos. Nessas circunstâncias, é possível
que pressões para que os agentes policiais investiguem os casos registrados
sejam intensas e resultem em respostas que atendam às expectativas desses
moradores. Ao contrário, nos bairros com capital social rarefeito é provável
que pressões dos moradores sejam de menor intensidade, contribuindo para
que o número de inquéritos seja inferior à média para a região investigada.
Conquanto não se tenha avançado na mesma direção para a etapa sub-
sequente – a fase judicial em que inquéritos são convertidos em processos
penais ou arquivados –, é muito provável que tais condições de trabalho
também sejam precárias e perturbem o funcionamento regular e cotidiano
das operações judiciais. Algumas observações de trabalho em campo, con-
quanto não sistemáticas, sugerem que problemas daquela ordem também
são responsáveis pelo desequilíbrio entre volume de processos penais e seu
desfecho em tempo razoável. Exemplos: embora, à época em que a equipe
de pesquisadores estava coletando dados, o arquivamento de processos já
estava informatizado, vez ou outra foi possível constatar incompatibilidade
entre o registro eletrônico do arquivamento e o processo que se encontrava
depositado na caixa correspondente, tarefa a cargo exclusivamente dos fun-
cionários públicos. Sintomas semelhantes eram o volume de documentos
empilhados; ou a existência de funcionários exercendo múltiplas tarefas,
desde atender ao público, magistrados e promotores, até informar processos
penais e preparar despachos de sua competência.16
Por fim, convém lembrar, o quadro da impunidade penal extraído das
fontes documentais consultadas está baseado nas ocorrências criminais re-

16 É certo que todo esse cenário pode ter se modificado, nestas duas últimas dé-
cadas, sobretudo por força do emprego de controles administrativos baseados
nos recursos proporcionados pela informática. Ainda assim, dados referentes ao
acúmulo de processos penais nos tribunais, por todo o país, sugerem que o em-
prego desses recursos não foi suficiente para modificar o quadro administrati-
vo existente. Ver Conselho Nacional de Justiça – CNJ: <http://www.cnj.jus.br/
programas-e-acoes/politica-nacional-de-priorizacao-do-1-grau-de-jurisdicao/
dados-estatisticos-priorizacao>.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 429

gistradas, isto é, aquelas levadas ao conhecimento das autoridades policiais e


judiciais. Muitas ocorrências envolvendo crimes contra o patrimônio ou in-
frações de menor gravidade sequer são denunciadas às autoridades. No caso
dos homicídios, é de se esperar que, para cada morte, haja o correspondente
registro. Porém, não parece haver garantias de que esse preceito seja universal
e rigoroso. Entre as décadas de 1970 e 2000, intensificaram-se as chamadas
formas extraoficiais de resolução de conflitos, resultando em desfechos fatais
sob a forma de linchamentos, execuções sumárias praticadas por esquadrões
da morte e por disputas entre quadrilhas pelo controle de territórios nos pon-
tos de venda de drogas ilegais. Exceto nos casos de linchamento, nos demais
é frequente que os corpos sejam abandonados em locais ermos, desapareçam
ou sejam incinerados. Neste caso, é provável que sequer tenham sido feitos
registros oficiais. Portanto, parte dos conflitos com desfechos fatais acaba per-
manecendo fora do sistema oficial de justiça criminal.
Os estudos sobre impunidade penal, a partir do exame do fluxo de
ocorrências no sistema de justiça criminal cresceram nos últimos anos, a
despeito de diferentes metodologias empregadas. A metodologia longitudi-
nal, como adotada nesta investigação, tem sido preterida em virtude de seus
custos e do tempo a ser dispendido para completar todo o ciclo. Ela permite
observar o fenômeno da produção institucional da impunidade com uma
lente mais possante do que outras metodologias. No entanto, seus proble-
mas e percalços também são relevantes e devem ser considerados. O em-
prego de outras opções metodológicas, cujas limitações foram brevemente
referidas, tem igualmente confirmado elevadas taxas de impunidade penal,
em particular nos casos de homicídios consumados. Seguramente, no fu-
turo, mais atenção acadêmica e maiores investimentos devem ser voltados
a esse campo de estudos. Apurada a magnitude da impunidade penal para
crimes determinados, como os homicídios, resta saber que impactos essas
elevadas taxas exercem sobre a confiança dos cidadãos nas instituições de
aplicação e distribuição de justiça e sobre a legitimidade das modalidades
oficiais de resolução de conflitos fundamentadas nas leis e instituições. É
sob este aspecto que elevadas taxas de impunidade podem traduzir fissuras
no funcionamento regular e cotidiano da democracia.
430 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

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Intelectuais e política nos estudos
sobre a “questão criminal” no Brasil:
engajamentos, narrativas de fundação
e divisões disciplinares

Francisco Thiago Rocha Vasconcelos1

Apresentação
No Brasil, a violência urbana torna-se um problema nacional desde os anos
1970, em meio ao contexto de resistência à ditadura e de luta pela redemocra-
tização. Em diferentes contextos e momentos, o debate sobre o tema permitiu
passagens entre questões científicas e preocupações públicas, por meio da arti-
culação do ativismo na sociedade civil e no interior do Estado com centros de
pesquisa universitários. Uma série de reuniões, seminários e congressos mobi-
lizam parlamentares, juristas, cientistas sociais, agentes do Estado, meios de co-
municação e sociedade civil organizada no intuito de definir o problema e suas
estratégias de controle. Na medida em que ela foi incorporada às preocupações
da sociedade e do Estado, temas antes circunscritos às disciplinas do Direito e
da Medicina passam a envolver também outras disciplinas, como a Antropolo-
gia, a Sociologia, a Ciência Política, a Psicologia, a Educação e a Saúde Pública.

1 Professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira


(UNILAB), no Ceará. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Segurança Pública,
Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH-UNILAB). Doutor em Sociologia pela
Universidade de São Paulo (USP), com estágio sanduíche no Centre de Recherches
Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales (CESDIP), na França. Mestre em
Sociologia e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
434 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

É possível narrar a formação de uma área de estudos a partir de dois


eixos: 1- como uma evolução de debates que parte dos anos 1970 e 1980
[surgimento de estudos considerados precursores e a criação dos primei-
ros fóruns de debate], passando pelos anos 1990 [quando os principais gru-
pos e linhas de investigação se consolidam] e se expandindo nos anos 2000
[maior diversificação regional e expressivo aumento de teses e dissertações]
(Lima, 2011); e 2- através do modo como as redes de pesquisa se estrutu-
ram acompanhando a constituição ou alargamento de processos político-
-institucionais relativos à Política Nacional de Direitos Humanos, à Política
Nacional de Segurança Pública, à Política Penitenciária Nacional e às refor-
mas do Código Penal e de Processo Penal. Foi dessa maneira que a formação
de uma área de estudos e pesquisas sobre a “questão criminal”2 favoreceu
ensaios de paradigmas e modos de atuação alternativos ao saber tradicional
jurídico e policial nos sistemas de segurança pública e de justiça criminal,
sobretudo a partir de agendas políticas ligadas aos direitos humanos, cen-
trada na denúncia da violência estatal, na mudança da política prisional e
na reforma das polícias.
Esse fenômeno alimentou paulatinamente a ampliação dos debates so-
bre as práticas dos intelectuais nesta área. Já existe um conjunto de escritos
e reuniões que se voltam para o mapeamento e análise da produção aca-
dêmica e de seu entrelaçamento com o campo político. O nosso propósito
será analisar diferentes trabalhos de reconstituição do processo de formação
deste campo de estudos a partir do enquadramento construído em nosso
próprio trabalho (Vasconcelos, 2014).

2 A nomeação desta área, como veremos, é em si mesmo objeto de controvérsias. Suas


fronteiras são variadas, a depender das concepções sobre o seu objeto e seu estatuto
científico. Utilizei inicialmente a ideia de “Sociologia da violência”, posteriormente “área
de estudos e pesquisas sobre crime, violência e punição” e atualmente “questão criminal”
para delimitar um espectro de estudos que analisa desde o comportamento considera-
do violento, desviante e passível de criminalização, passando pelo funcionamento das
instituições de controle social e manutenção da ordem pública, às decisões sobre as leis
penais, conectado à problemática da construção da cidadania e da democracia no país.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 435

Esboço de uma sociologia política das ciências sociais


contemporâneas (1968-2010): a formação do campo da
segurança pública e o debate criminológico no Brasil
Tivemos como objetivo uma análise sobre a área de estudos e pesquisas
sobre a “questão criminal” nas ciências sociais brasileiras, produzida espe-
cialmente por uma fração hegemônica de cientistas sociais dedicados a pes-
quisas sobre criminalidade violenta, segurança pública e justiça criminal.
Consideramos suas relações com outras áreas de conhecimento, sobretudo
o Direito, e com a estruturação de domínios de políticas públicas e subcam-
pos políticos de reforma dos sistemas de justiça criminal e de segurança
pública. Nosso ponto fundamental foi a repercussão do embate político en-
tre agendas de reforma nas disputas internas aos grupos intelectuais para a
reivindicação do lugar legítimo do alternativo e do crítico, referente à supe-
ração das racionalidades governamentais vigentes. Estas disputas envolvem
a própria definição do campo científico, da área de pesquisa e de suas disci-
plinas, na forma de narrativas de fundação a partir das quais se impõem as
visões hegemônicas dos objetos e métodos e das competências necessárias
para atuação profissional. Para isso foi preciso conceber os grupos de pes-
quisadores não somente como correntes intelectuais, mas como comunida-
des epistêmicas3 (Haas, 1992), ou seja, acompanhar também suas reações
como grupo político-profissional, que compartilha valores e estão atentos
às possibilidades de intervenção e inserção de acordo com as variações nas
expectativas de transformação política.
Nosso trabalho tratou, em suma, das relações entre intelectuais como
atores voltados à conversão de contextos de politização em dois processos:
1- disciplinarização (Mucchielli, 1998; 2004), entendido como autonomiza-
ção institucional e cultural de diferentes temas de estudo e correntes teóri-
cas através da constituição de especialidades ou (sub)disciplinas (sociologia
e antropologia da violência; antropologia do direito; sociologia do campo

3 Redes de intelectuais que reivindicam autoridade política a partir de uma competência


reconhecida, e que compartilham noções, linguagens e padrões de atuação comuns
(Haas, 1992).
436 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

penal; criminologia aplicada; criminologia crítica, etc.), associadas a um


tipo específico de competência profissional; 2- estatização (Kaluszynski e
Wahnich, 1998), formação de redes de atores voltadas à legitimação política
dos princípios causais, normativos e instrumentais a que estão identificados.
Os estudos sobre ‘’processos de estatização’’ se desenvolveram espe-
cialmente a partir do aprofundamento da mundialização e seu impacto nas
relações internacionais, que teria originado uma série de pesquisas sobre os
processos políticos ligados à criação de instituições e princípios de gestão
internacional, de construção de problemas públicos, processos decisórios e
formulação de políticas. Em geral, a literatura que trabalha esse tema (Cobb
e Elder, 1971; Gusfield, 1981; Lenoir, 1996; Bourdieu, 1998) o entende como
um processo sincrônico envolvendo ao menos três aspectos: 1- reconheci-
mento pela sociedade ou identificação do problema e ordenação da agenda
pública, através da mobilização de grupos socialmente interessados em pro-
mover o reconhecimento público de uma questão, por meio de reuniões,
comissões, requerimentos, programas, projetos e pesquisas de opinião; 2- a
legitimação pela ciência, por meio da criação de disciplinas mais próximas
das demandas sociais e administrativas, que auxiliam na definição do con-
senso sobre as demandas e da “terapêutica” adotada; 3- a institucionalização
pelo Estado, com a formulação de uma política na agenda governamental – a
sua formalização e implementação, sob a forma de regulamentações gerais,
direitos, equipamentos e transferências econômicas.
Através desse referencial seria possível perceber a transformação de
um sistema de convicções em programas governamentais, argumento cen-
tral para a análise da autonomização de domínios de política pública em
direitos humanos, em segurança pública, justiça criminal e política penal
no Brasil. Vimos, então, que esse campo intelectual só se torna inteligível
levando em conta a construção de redes, unindo políticos, administrado-
res, cientistas, operadores do direito na construção de novos princípios
para a política criminal desenvolvida pelo Estado. Em outros termos, uma
análise que observe como o sistema científico converte-se em meio sim-
bólico generalizado de comunicação entre o sistema político e o sistema
jurídico-penal (Machado, 2012).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 437

Assim, abordamos a relação progressivamente mais estreita, embora per-


meada por tensões, entre intelectuais (produtores de conhecimento/verdade
sobre a violência e o crime) e o Estado, reconfigurado através das alianças en-
tre movimentos sociais locais e transnacionais originadas no processo de tran-
sição democrática. Na formação de centros, núcleos e laboratórios a partir do
fim dos anos 1980, repercutiriam as agendas políticas da transição democrá-
tica, concorrendo para a definição conjugada de padrões de trabalho coletivo/
profissional, de temas de pesquisa e de pautas políticas. A estruturação de re-
des de pesquisa, nesse sentido, não fugiria a polarizações político-intelectuais.
As teorias, linhas e projetos de pesquisa trazem consigo, explícita ou implici-
tamente, visões de sociedade subentendidas, princípios e recomendações para
a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados
de sua aplicação. Em consequência, constatamos em diversos momentos que
há uma relação de mútua influência entre as coalizões de reforma dos campos
políticos-burocráticos em direitos humanos e segurança pública e as agendas
de pesquisa sobre a “questão criminal” no Brasil. A seguir, esboçamos uma
periodização das principais conjunturas destas conexões.

A reemergência da “violência urbana” como


problema nacional (1975-1984)
Nosso ponto de partida foi a construção conjunta da crise penitenciária
e da criminalidade violenta como problemas nacionais a partir dos anos
1970.4 Nesse período há uma série de seminários que ensaiam uma nova
divisão de tarefas disciplinares na construção da “violência urbana” como
problema científico, através da atuação de juristas, médicos e cientistas so-
ciais (Benevides, 1983; Misse, 2006; Vasconcelos, 2014):5 a criação das CPIs

4 Não se afirma o ineditismo da “violência urbana” como preocupação, mas um novo


contexto de expressão.
5 O estudo desse contexto exigiu um retorno à história de algumas publicações, insti-
tuições e personalidades nacionais para reconstituir o processo no qual a criminologia
positivista/naturalista, ancorada na biologia ou no comportamentalismo psicológico,
vigente desde o fim do século XIX, perde parte de seu terreno para uma criminologia
subordinada ao Direito penal e aberta à Sociologia durante os anos 1980. Processo
438 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

do Menor Abandonado (1975), do Sistema Penitenciário (1976) e da Vio-


lência Urbana (1980); e a convocação de duas Comissões, compostas por
juristas e por cientistas sociais, pelo Ministério da Justiça para o estudo da
Criminalidade e da Violência pelo Ministério da Justiça (1979). Embora não
seja consensual, nos debates predomina a visão que enfatiza, de um lado, a
relação transformação urbana, pobreza e criminalidade, com a necessidade
de uma política de urbanização de favelas e, de outro, uma solução discipli-
nar de tratamento via sistema penitenciário a partir de uma reforma “huma-
nista” e qualificada cientificamente.
Mesmo que seja possível interpretar as iniciativas como uma estratégia
legitimadora do regime civil-militar, vários aspectos das propostas ensejam
um olhar mais atento para as fissuras no projeto, como as perspectivas críti-
cas da Lei de Segurança Nacional e do uso da pena de prisão como medida
universal. As propostas de reformulação das organizações policiais, as po-
líticas de desencarceramento, a recusa da redução da maioridade penal, o
discurso em torno dos direitos humanos e a inclusão de novas perspectivas
de análise do crime a partir das relações sociais de conflito e de poder, e não
mais da conformidade individual a um consenso, por exemplo, fazem crer
um sentido não desprezível de crítica interna aberta ao regime, antecipado-
ra de mudanças posteriores.
Este conjunto de seminários é evidência de um processo não-linear de
convivência de diferentes matrizes de pensamento, que corresponde ao “ca-
pítulo brasileiro” no interior da “miséria” da criminologia positivista/defen-
sivista (Pires, 1979; Sozzo, 2014).6 Embora nunca tenha se esgotado a sua
concepção como ciência de síntese interdisciplinar dos saberes auxiliares

discutido em pesquisa de pós-doutorado “A reemergência da criminalidade vio-


lenta como problema nacional: juristas e cientistas sociais brasileiros na década de
1970” (2015), que teve como objeto as CPIs do Sistema Penitenciário (1976) e so-
bre a Violência Urbana (1980) e a convocação de duas Comissões para o estudo da
Criminalidade e da Violência pelo Ministério da Justiça, compostas por juristas e por
cientistas sociais (1979).
6 Vale fazer referência à constituição de criminologias de sentido diversos: clínico-peni-
tenciárias, ancorada nas explicações de patologia médica, gradativamente substituídas
pelas de patologia social; e críticas, que afirmam a normalidade sociológica do crime
Violência, Polícia, Justiça e Punição 439

do sistema penal no Brasil, a criminologia não se constituiu como área de


estudos e pesquisas sobre o sistema de justiça criminal e segurança pública
até os anos 1970.7 Esta agenda será então assumida por juristas críticos e por
cientistas sociais, em momento de progressiva politização do meio intelec-
tual desde o início da distensão do regime militar.
É nesse contexto que ganha forma uma das principais polarizações en-
tre os estudiosos e debatedores do tema, que foi traduzida como dicotomia
entre os que apontavam a miséria, a perda do poder aquisitivo, a ausência
de investimentos em educação e saúde e a exploração de classe como causa
do aumento da violência e os que enfatizavam a formulação de novos parâ-
metros de atuação nas políticas de segurança pública (Soares, 2006). Estas
posições remeteriam a diferentes concepções sobre a relação entre violência
e crime, suas causas e terapias, buscando a afirmação de um novo padrão de
cientificidade como combate à “criminologia tradicional” e a perspectivas
consideradas ensaístas e ideológicas, que reproduziriam os “mitos” presen-
tes no debate público, relacionados à uma suposta “ligação direta” entre cri-
me e pobreza ou um sentido pré-político das violências, como reação à uma
violência estrutural da desigualdade socioeconômica (Carvalho, 1999).8

O problema da criminalidade violenta e da continuidade autoritária:


agenda de direitos humanos e transição democrática (1985-1996)
Nesse período se iniciam novos enunciados interpretativos, relaciona-
dos à questão do “paradoxo brasileiro” da continuidade da violência estatal
e do aumento da criminalidade violenta no progresso da transição demo-
crática (Adorno, 1996; Peralva, 2000). A pauta da crítica à violência pra-
ticada pelo Estado e de sua legitimidade na opinião popular conferiu um
grande peso às políticas de denúncia e controle das violências institucionais

e do desvio, a desigualdade de classe na seleção do comportamento criminalizado, e


criticam a prisão e suas finalidades (Misse, 2006).
7 Uma iniciativa nesse sentido foi tentada por Virgílio Donnici (1976).
8 Para uma abordagem crítica ao processo de ocultação e subjugação de saberes dissi-
dentes a essa narrativa hegemônica cf. Marques, 2017.
440 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

e ao papel da educação em direitos humanos como princípio de interven-


ção. Esta ênfase se coaduna com a formação de consensos em uma agenda
política de construção de uma legalidade democrática e enfrentamento às
resistências das instituições de segurança pública à mudança, que se tornou
cada vez mais enfática com a denúncia de atuação arbitrária da polícia, de
tortura de presos e do aumento dos índices de criminalidade violenta nos
anos 1980 e 1990 (Adorno, 1996; Barreira, 2004).
Foi nesse contexto que se constituíram caminhos de pesquisa a respeito
de temas como: o movimento da criminalidade; o senso comum a respeito
do perfil social dos autores de delitos; a organização social do crime sob
a perspectiva do delinquente; e políticas públicas penais (Adorno, 1993).
Caminhos que se relacionam a um diagnóstico dos problemas sociais do
momento: 1- crescimento da delinquência urbana, ou seja, crimes contra
o patrimônio e contra a pessoa, particularmente os homicídios; 2- emer-
gência da criminalidade organizada, sobretudo em torno do tráfico inter-
nacional de drogas, que modificaria os modelos e perfis convencionais da
delinquência urbana, propondo problemas novos para o direito penal e para
o funcionamento da justiça criminal; 3- continuidade de graves violações de
direitos humanos, que comprometeriam a consolidação da sociedade de-
mocrática no Brasil; e 4- explosão de conflitos nas relações interpessoais,
mais propriamente conflitos de vizinhança que convergiriam para desfechos
fatais (Adorno, 1996).
Observa-se, pelo tipo de recorte hegemônico, dirigido à reforma das
organizações estatais, uma conexão entre agendas políticas e de pesqui-
sa, em grande parte construída através da atuação de ONGs e centros de
pesquisa como think tanks9 no campo dos direitos humanos, originada de
novos mecanismos de intermediação entre sociedade civil e sociedade po-
lítica (Lavalle e Bülow, 2014). Reconstruímos estas conexões considerando
a relação entre centros de pesquisa e engajamentos políticos em diferentes
cenários de constituição (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro), tendo

9 A expressão se refere ao papel de organismos de pesquisa e consultoria estratégicas


como reserva de saber (ideias e competências técnicas) para governos e fundações
(Medvetz, 2009).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 441

como crucial os primeiros governos estaduais eleitos pela via democrática


em 1982 e, posteriormente, os cenários de crises penitenciárias e de segu-
rança pública nos anos 1990, que consideramos como “janelas de oportu-
nidade” para a construção de projetos políticos de reforma, a exemplo das
chacinas da Candelária e do Vigário Geral, no Rio de Janeiro, e do Massacre
do Carandiru e do caso de violência policial na Favela Naval (Diadema), em
São Paulo. Como reação a esses acontecimentos, uma série de mobilizações
ganham corpo, com a criação de organizações de sociedade civil concentra-
da inicialmente na articulação em torno de políticas de direitos humanos.
Podemos citar como exemplos a criação do Programa Nacional de Direi-
tos Humanos, em 1996, produto da ligação entre o Núcleo de Estudos da
Violência (NEV/USP), da Comissão Teotônio Vilela (CTV) e da Secretaria
Especial de Direitos Humanos (SEDH).
Mas já no final dos anos 1990 as mobilizações se concentrarão com
mais ênfase no setor da segurança pública, no sentido da aproximação entre
direitos humanos e a proposição de políticas. Demonstração exemplar desta
tendência é a trajetória dos atores ligados à ONG Viva Rio e ao Instituto Su-
perior de Estudos da Religião (ISER), que resultará no programa político de
“terceira via” entre a “truculência” dos governos de direita e o “denuncismo”
dos governos de esquerda (Soares, 2006). Paralelamente se dá a criação ou
fortalecimento de organizações como o Fórum Metropolitano de Segurança
Pública e do Instituto Sou da Paz em São Paulo; ou ainda centros de pes-
quisa universitários voltados às questões de diagnóstico de criminalidade
e articulação com organizações policiais e políticas públicas de segurança.
Assim, os discursos construídos em torno da agenda de direitos hu-
manos favorecerão a entrada em cena dos pressupostos democráticos de
transparência e controle público do poder no setor da segurança pública
(Lima, 2011). Deste processo se extrairiam importantes consequências para
o caráter distintivo da discussão brasileira em relação à literatura interna-
cional, em especial pelo papel desempenhado por pesquisadores como ato-
res políticos na redemocratização (Zaluar, 1999). Mas não seriam poucas as
ambiguidades e dificuldades enfrentadas pelos pesquisadores que se apro-
ximaram da discussão e formulação de projetos de controle público da vio-
442 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

lência. Em primeiro lugar, a continuidade dos conflitos entre “herdeiros” da


ditadura militar no interior do Estado e a militância em direitos humanos,
em grande parte, repercute como polarização entre pesquisadores e quadros
da segurança pública. Em segundo lugar, a pouca institucionalização dos ca-
nais entre pesquisa e universo político. Cria-se um consenso cada vez maior
em torno da constatação da necessidade de superar os limites dos processos
de institucionalização das coalizações entre atores políticos envolvidos com
o debate e decisão sobre o tema. Isso se expressará em trabalhos a respeito
das lutas sociais, universidades e educação policial (Santos, 2009), das rela-
ções entre pesquisas e ativismo (Ramos, 2007; 2013).
As experiências desse contexto resultam em reflexões de interesse para
uma etnografia dos processos de planejamento e decisão das burocracias
brasileiras e, ao mesmo tempo, expressaram um programa voltado à refor-
ma da segurança pública em âmbito nacional, que demarcará um ou nível
de articulações políticas.

Coalizões progressistas no “campo da segurança pública”


(1997-2010)
Nesse período observa-se uma forte interação entre o tempo da política
e o tempo da pesquisa, com a criação de vínculos entre temáticas, o reco-
nhecimento científico e a legitimação política de pesquisadores. A conver-
gência principal se realiza através de redes de intercâmbio acadêmico entre
associações nacionais de pesquisadores e sua permeabilidade às agendas
político-intelectuais de centros de pesquisa; e da conjugação de interesses en-
tre pesquisadores e a agenda de direitos humanos da Fundação Ford, que se
volta com mais ênfase à segurança pública e que teve como marco o Simpósio
Experiências inovadoras e políticas de segurança pública, em 1998. Nos anos
que sucederam o encontro, os temas violência, justiça e segurança pública es-
tiveram cada vez mais presentes na ANPOCS e na universidade brasileira.
Para a devida compreensão de como se deu a consolidação destas di-
versas redes, investimos na reconstituição da trajetória de suas principais
lideranças. Os Encontros e Congressos das Associações de Pesquisadores
em Ciências Sociais, que constituem um ponto de vista privilegiado para
Violência, Polícia, Justiça e Punição 443

análise da conversão de preocupações públicas em especialidades ou áreas


de pesquisa, espelhando a tendência geral das discussões e alguns sinaliza-
dores da relação entre política científica e campo político. Ensaiamos, nesse
sentido, a análise das posições nas reuniões onde se realizariam a agregação
de pesquisadores de diferentes origens e perspectivas, que constituirão a fra-
ção de elite das disciplinas das ciências sociais. Na construção de redes entre
os contextos regionais destacamos a influência central de agências como a
Fundação Ford, a legitimação política do protagonismo federal na seguran-
ça pública, com a criação da SENASP, que favoreceram a articulação nacio-
nal entre redes acadêmicas e políticas em organizações como a Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública e os Institutos Nacionais de Ciência
e Tecnologia (INCT).
Através dessa interseção chegamos à formação, nos anos 2000, de uma
convergência nacional entre espaços acadêmicos e arenas de políticas pú-
blicas no interior do “campo da segurança pública”. Cabe afirmar que o “campo
da segurança pública” não se confunde com o campo científico/intelectual.
Ele é o domínio de política pública, composto de arenas de reconhecimento,
disputa e negociação de repertórios e interesses, que foi produzido no cru-
zamento entre campo intelectual e científico das ciências sociais e do direito
e redes que envolvem operadores da segurança pública e da justiça criminal.
Nele, como pressão por um novo regime de verdade (Foucault, 2000), são
propostas mudanças na racionalidade governamental a partir da criação de
arranjos institucionais e elaboração de novos princípios e rotinas.10
Nesse sentido, o “campo da segurança pública” anunciaria uma rela-
ção de maior proximidade entre pesquisadores e o universo burocrático e
político.11 Os anos 2000 foram vistos como oportunidade de criação de pas-
sagens entre academia e gestão, de modo semelhante ao intercâmbio que

10 Na tese me utilizei também da noção de dispositivo estratégico-discursivo (Foucault), situ-


ando a formação do “campo da segurança pública” como um dos seus elementos. Contudo,
diante de críticas à utilização do conceito e sua adequação ao material e sua forma de aná-
lise, resolvi pôr em suspenso o conceito até maior discussão e aprofundamento.
11 Cf. Vasconcelos, 2015.
444 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ocorre na Saúde Pública, e na Economia, quando se tem em vista a expertise


necessária à superação de dilemas do desenvolvimento (Ramos, 2007; Sa-
pori, 2007). Seria o caso então de apontarmos um momento de “hegemonia
pragmática” nas ciências sociais que, embora nunca totalmente apartada de
agendas políticas, reforçou nos últimos anos um viés de institucionalização
mais vinculado à representação de profissional que da ideia de intelectual
público ou militante, embora esses dois posicionamentos estejam presentes
de forma constante [Será preciso pensar também no refluxo desta hegemo-
nia a depender do acesso a recursos e contextos políticos de crise, onde a
reivindicação de posicionamentos militantes retorna com mais força]. Para
tanto, diversificaram-se o acesso a fontes de sustentação, através do governo
federal e de outras agências privadas e multilaterais que direcionaram sua
atenção e recursos para programas de reforma na América Latina, dissemi-
nando o paradigma de “Segurança Cidadã”. Essas organizações divulgam
novas ideias e metodologias de gestão da política de segurança pública,
favorecendo a formação de quadros nacionais de decision makers (Sapori,
2007), apoiando estratégias para a superação das instabilidades dos tempos
da gestão e da política, sobretudo as pressões populares e corporativas em
torno da supressão dos direitos e do reforço ao rigor penal.
Desse modo, o diagnóstico de atraso das reformas em segurança pú-
blica frente a outros setores estatais serve de argumento para entrada de
um grupo de cientistas sociais em disputas e coalizões com grupos diri-
gentes já estabelecidos na segurança pública. Cada um a seu modo e em
seu contexto, mobilizaram-se na tentativa de encontrar novas formas de
compatibilizar os critérios de legitimidade acadêmica e os propósitos po-
líticos, que podemos resumir em três principais: 1- alianças setoriais com
grupos da sociedade civil e das polícias na implementação de novos conte-
údos no ensino policial e novas maneiras de implementar políticas públi-
cas; 2- adoção de pesquisas como instrumento de aggiornamento e agen-
da-setting; 3- reforço à formação do cientista social como policy maker ou
na criação de novas categorias profissionais capazes de cumprir esse papel
nos cursos de bacharelado em segurança pública.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 445

Contudo, com as instabilidades políticas que afetaram o país desde pelo


menos o governo Dilma Roussef (2011-2016), com corrosão da legitimida-
de de ações policiais e desmonte da política nacional de segurança pública,
as perspectivas mais otimistas quanto à aproximação entre agendas de pes-
quisa e arenas de políticas públicas sofreram um revés. Ao mesmo tempo,
esse processo veio a revelar disputas internas ao campo intelectual sobre o
significado das aproximações entre pesquisadores e o campo de políticas
públicas, reverberando antigas cisões entre grupos e redes. Abordaremos
esta questão a partir da discussão de diferentes estudos que se voltaram para
a análise deste campo intelectual.

Um balanço preliminar dos metaestudos sobre o campo intelectual


No interior do corpus considerado estão desde tomadas de posição na
forma de balanços bibliográficos gerais (Adorno, 1993; Zaluar, 1999; Misse,
Lima e Miranda, 2000; Lima, 2009; Adorno e Barreira, 2010; Nóbrega Jr.,
2015; Campos e Alvarez, 2017), balanços específicos (Souza, 2005; 2016;
Salla, 2013; Lima, Ratton e Azevedo, 2014; Lourenço, 2016), até revisões
críticas e polêmicas, difíceis de enumerar. Este conjunto de textos demons-
tra diferentes tomadas de posição dos autores em disputas pela direção do
campo intelectual – pela concepção de ciência, de repertório teórico-meto-
dológico e de questões e objetos a serem considerados prioritários. São es-
forços de construção de uma identidade cognitiva à área de estudos, relativa
à peculiaridade e coerência das orientações, paradigmas, formulações de
problemas e instrumentos de pesquisa em concorrência (Lepenies, 1981).
Os balanços bibliográficos gerais são os que mais interessam para a
compreensão das linhas estruturantes do debate. Contudo, não abordare-
mos em detalhe o seu conteúdo, tarefa para um trabalho mais específico.
Abordaremos principalmente os trabalhos que se orientaram por relacio-
nar as discussões conceituais com a identidade social da área de estudos,
entendida como análise dos processos de institucionalização, estabilidade
organizatória que garante a sobrevivência na luta pela reputação científica
(Lepenies, 1981), questão que envolve também a relação entre universida-
446 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

des, movimentos sociais e políticas públicas. Não se pretende um levanta-


mento exaustivo, mas o delineamento das linhas principais de interpretação
na interseção entre uma sociologia das obras científicas com uma sociologia
dos intelectuais como atores políticos.
Um primeiro grupo de trabalhos se alinha mais à narrativa hegemô-
nica das ciências sociais. O primeiro trabalho de referência é Abordagens
Teóricas da Violência Criminal: respostas das Ciências Sociais a um momen-
to político, de Glauber Carvalho (1999). Seu argumento inicial é o de que
as primeiras respostas acadêmicas não encaravam a violência pelo ângulo
da criminalidade, mas se desenvolviam em continuidade com as correntes
teóricas baseadas no marxismo e nas teorias do desenvolvimento e da mar-
ginalidade: o crime violento era visto como consequência de um modelo
político e de um sistema econômico. Ele seria um efeito ou um epifenôme-
no. A sua explicação e solução passaria antes por causas e fatores estruturais:
deficiência dos serviços (saúde, educação, lazer); desintegração familiar e
favelização; oferta e condições de trabalho e distribuição de renda. Estas
seriam relações explicativas frequentemente utilizadas neste contexto, em
trabalhos acadêmicos ou nos meios de comunicação. Era contra esse viés de
análise que, segundo Carvalho (1999), voltaram-se os estudos fundadores,
que fincaram as balizas para a uma “Sociologia da violência” no Brasil do
fim dos anos 1970 em diante.12
Para o autor, embora tenham se desenvolvido alguns estudos na So-
ciologia e na História que apontavam genericamente para uma violência
presente na sociedade brasileira ou alguns estudos esparsos e localizados
sobre delinquência juvenil e violência, o crime não configurava um “obje-
to autônomo de pesquisa”.13 Em um imaginário interessado em temas ma-

12 Carvalho se baseia principalmente nos trabalhos de Edmundo Campos Coelho,


Antonio Luiz Paixão, Alba Zaluar, Paulo Sérgio Pinheiro e Sérgio Adorno.
13 Note-se que o autor exclui de sua análise um conjunto de reflexões, mais próximas
ao Direito, ligado à constituição de criminologias críticas e radicais diversas, seja por
considerá-las fora do foco de análise (ciências sociais e estudos empíricos), seja por le-
gitimar o próprio movimento de afirmação do que chama de “Sociologia da violência”,
em oposição às perspectivas mais ligadas à reflexão estrutural ou marxista.
Violência, Polícia, Justiça e Punição 447

cropolíticos ou macroeconômicos, não fazia sentido inserir o latrocínio, o


roubo ou o homicídio como objetos de estudo. Esta autonomia refere-se à
uma forma de validação da pesquisa ligada à intenção de desfazer mitos pre-
sentes no debate público.14 Não se tratava de compreender a força de uma
representação no imaginário social, mas de demonstrar o erro, denunciar a
falácia e combatê-la por meio de um saber científico. Aos olhos desta nova
produção, os estudos e as respostas sociais à violência existente até o mo-
mento contribuíam para a reprodução do conceito de que pobres são poten-
cialmente criminosos, alimentando a violência policial sobre eles. A relação
crime/pobreza tornou-se o maior mito a ser combatido e a percepção sobre
o aumento da criminalidade violenta, hipótese a ser testada. Era necessário
desmitificar e questionar a validade destas relações, a partir de estudos que
levassem em consideração o crime como um fenômeno que merecesse uma
análise a partir dele mesmo, ou seja, dentro de uma abordagem mais próxi-
ma aos fenômenos e acontecimentos.
Essa autonomia parece sinalizar mais um horizonte, no sentido de
descolar a violência criminal dos determinantes comumente postos. Ao
mesmo tempo em que a violência é objeto para se pensar a formação so-
cial brasileira e alimentar teorizações sobre o exercício do monopólio da
violência física, analisar a criminalidade passou a ser considerar, antes de
tudo, o modo como as instituições de segurança pública e justiça criminal
selecionavam os comportamentos criminalizáveis ou favoreciam a própria
violência. Como hipótese subjacente estava a ideia de que todas as classes
sociais praticariam delitos, mas apenas os crimes dos pobres acabavam sen-
do contabilizados nas estatísticas oficiais. Os dados oficiais seriam expressão
do modus operandi de uma instituição e não parâmetro plenamente confiá-
vel, daí a necessidade da qualificação dos dados em segurança pública. Um
dos meios principais de acesso a esta realidade eram os dados criminais e
também a etnografia.

14 Segundo Carvalho, curiosamente, nos trabalhos fundantes da Sociologia da Violência, o


interlocutor que se combate, defensor da ideia de que para acabar com a criminalidade
seria preciso antes acabar com a pobreza, está menos localizado em uma bibliografia
consolidada e mais nas falas populares, no senso comum acadêmico e no debate público.
448 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Os estudos sobre criminalidade violenta e sobre movimentos sociais,


tema de maior ênfase no período, não fariam parte de um mesmo “imaginá-
rio teórico”. Para os estudiosos dos movimentos sociais, o ângulo de análise se
referia, sobretudo, às camadas populares como sujeitos políticos que sofriam
violência (intra-societária e da polícia) e que reagiam politicamente de for-
ma irruptiva a esta violência (na forma de “quebra-quebras”, por exemplo). A
violência traria consigo uma forma de consciência e protesto, embora turva,
de uma cidadania fragilizada e fragmentada. No entanto, a constatação da le-
gitimidade popular a soluções violentas para conflitos (linchamentos, grupos
de extermínio e violência policial) tornou-se uma problemática para pesqui-
sadores ligados à militância em direitos humanos e reforma das polícias e pri-
sões. Estas permanências do autoritarismo nas instituições e na cultura políti-
ca ajudaram a sedimentar também uma modificação da ênfase dos estudos: a
violência estrutural da sociedade capitalista para explicar as manifestações de
violência popular como formas de insurgência popular, passou a ser suplan-
tada por evidências de uma criminalidade urbana violenta em crescimento
e seus desafios para a conciliação entre extensão da cidadania (combate ao
autoritarismo) e a manutenção da lei e da ordem.
Com isso, há uma perda de centralidade de perspectivas amplas e po-
sitivadas da violência e ganha corpo o olhar sobre a criminalidade violenta
como problema ligado ao fortalecimento de contra-poderes para a criação
de leis e normas que fiscalizem e controlem a ação dos aparelhos coercitivos
do Estado. É a esta linha argumentativa que se filiam aqueles que serão con-
siderados pioneiros em um novo campo de estudos, que desenvolveriam de
modo mais sistemático estudos sobre dinâmicas criminais e sobre a ação do
Estado em suas políticas públicas, no sentido de promover a conciliação en-
tre princípios de direitos humanos e eficácia e da eficiência das instituições
de segurança pública.
Esta preocupação se tornará mais clara na produção de Renato Sérgio de
Lima (2009; 2011), que inicia uma pesquisa mais sistemática sobre a trajetória
dos estudos em segurança pública e justiça criminal a partir do mapeamen-
to da frequência de conteúdos nos papers, teses e dissertações, assim como
nas concepções de pesquisadores considerados pioneiros. Seu ponto inicial
Violência, Polícia, Justiça e Punição 449

é expresso no interesse de “reunir autores que sejam pesquisadores da área e


que tenham (em muitos casos) experiência na gestão pública da segurança no
Brasil” para tornar possível, assim, “uma aproximação do universo acadêmico
com o da administração pública brasileira” (Lima e Liana, 2006, p. 7). A dis-
tinção entre acadêmicos e gestores/operadores é, de certo modo, relativizada
diante da existência de cientistas sociais que participam da gestão pública.
A partir de entrevistas com cientistas sociais considerados pioneiros,
Lima (2011) aborda as representações sobre o papel da universidade fren-
te à produção de conhecimento e a relação com a arena das políticas públi-
cas. Haveria um consenso a respeito do papel da universidade em inovar
através da pesquisa, do ensino e da extensão e da necessidade de não con-
fundir o papel do intelectual com o da autoridade política. A partir desse
consenso, adviriam duas posições diferentes: a da “geração pioneira”, que
teria como meta primordial a construção científica do objeto de pesquisa
e que vê com maior distanciamento a participação do pesquisador na exe-
cução da política pública; e uma segunda geração, que assumiria um viés
mais normativo, na procura de respostas práticas aos problemas sociais,
“talvez premida pela limitação dos espaços acadêmicos, que foram ocupa-
dos pela primeira geração” (Lima, 2009, p. 41).
Em sua produção sobre a própria área de estudos, Lima concatena três
dimensões: 1- uma periodização da evolução dos estudos [que teriam como
marco inaugural as pesquisas sobre prisão nos anos 1970, seguidos das pes-
quisas sobre polícia, criminalidade e direitos humanos, que concentrarão os
principais esforços nos anos 1980 e 1990, e da política de segurança pública
nos anos 2000 (Lima, 2011)]; 2- um trabalho (coletivo) de eleição de pio-
neiros e fundadores, expresso no livro As Ciências Sociais e os pioneiros nos
estudos sobre crime, violência e direitos humanos no Brasil (Lima e Ratton,
2011);15 e 3- uma decorrente reunião das sínteses do que seriam as princi-

15 O volume reúne entrevistas com os seguintes pesquisadores: Alba Zaluar, Antônio


Luiz Paixão, César Barreira, Claudio Beato, Edmundo Campos Coelho, Gláucio
Soares, José Vicente Tavares dos Santos, Julita Lemgruber, Luciano de Oliveira, Luiz
Antonio Machado da Silva, Luiz Eduardo Soares, Maria Stela Grossi Porto, Michel
Misse, Paulo Sérgio Pinheiro, Roberto Kant de Lima e Sérgio Adorno.
450 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

pais contribuições da área, na forma do handbook Crime, polícia e justiça


no Brasil (Lima, Ratton e Azevedo, 2014). Dessa maneira, percebe-se um
investimento na identidade cognitiva e social da área de estudos e, ao mesmo
tempo, em sua identidade histórica – reconstrução do passado da disciplina,
que serve como referência a que todos os membros da comunidade científi-
ca da sociologia podem se remeter (Lepenies, 1981).16
Um outro trabalho relevante foi a pesquisa de Robson Sávio Reis Souza
Quem comanda a segurança pública no Brasil? Atores, crenças e coalizões que
dominam a política nacional de segurança pública (2015), que se dedicou
à análise das mudanças nas políticas nacionais de segurança pública nos
governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. O autor
teve como base o Referencial de Coalizões de Defesa (Advocacy Coalition
Framework), modelo teórico que “permite a identificação de coalizões que
se agrupam a partir de determinadas ideias, organizados em subsistemas
políticos, com o objetivo de alterar determinada política setorial” (p. 114).
Segundo esse modelo, para avaliar as alterações mais significativas em uma
política faz-se necessário a verificação e a análise dos (1) empreendedores
de políticas, indivíduos que procuram agir de forma que o governo faça ou
deixe de fazer algo numa determinada política, e (2) dos sistemas de cren-
ças que subsidiaram a formação de coalizões. Com isso ocorre a criação e
manutenção de um monopólio de política, para que o sistema político se
mantenha estável em torno de algumas questões.
As disputas entre os grupos de pressão interessados no comando da po-
lítica nacional de segurança pública são descritas a partir do governo FHC.
Mesmo que amplamente destacadas pela militância em direitos humanos, por
pesquisadores e por policiais reformadores desde os anos 1970, estas críticas
somente suscitaram maiores movimentos de proposição e reforma em 1995,
quando se iniciaram alterações na política nacional de segurança pública.
Novas noções e fenômenos começam a ganhar forma, como as políticas de

16 Em sentido aproximado, podemos elencar ainda as produções de Renan Springer de


Freitas e Ludmila Ribeiro – Balanço e perspectivas da sociologia no Brasil: uma aborda-
gem comparativa (2013) e Some Current Developments in Brazilian Sociology of Crime:
Towards a Criminology? (2014).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 451

prevenção à criminalidade, o policiamento comunitário, a ênfase na especiali-


zação técnica dos operadores da segurança, a entrada de novos atores (pesqui-
sadores e movimentos sociais) como interlocutores políticos, o uso de medi-
das alternativas à prisão e a participação dos municípios na segurança pública.
Esse conjunto de inovações ocorreu de modo gradual, na passagem de um
núcleo de crenças baseadas no binômio “lei e ordem” para um núcleo cen-
trado na promoção, garantia e efetividade dos direitos humanos como prin-
cípio da segurança pública. Essa passagem tem como marcos antecipatórios
o Primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, de 1996, e a criação da
Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), em 1997, mas é expressa
especialmente no Plano Nacional de Segurança Pública de 2000.
No governo Lula, por sua vez, estas crenças se consolidam em torno
dos esforços de empreendedores da política através da criação de um Sis-
tema Único de Segurança Pública (SUSP) e, posteriormente, do Programa
Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), pautados
nos princípios da integração interinstitucional, interagencial, intersetorial e
modelos de atuação territorial, preventivo e participativo. Embora não haja
uma ruptura entre os dois períodos, as coalizões do governo Lula enfatiza-
ram especialmente a importância da gestão federal da segurança pública e
na capacitação na formação e controle das atividades policiais, assim como
em produção de diagnósticos e avaliação de políticas. Em síntese, o autor
aponta para uma mudança discursiva de um modelo de segurança pública
militarizado para um modelo de “segurança cidadã”17 no governo FHC e
sobretudo no governo Lula.
Nesse sentido, o trabalho se dedicou a mapear as redes e coalizões que
interligam empreendedores políticos e atores da segurança pública em pro-
cessos políticos nas Conferências Nacionais de Segurança Pública e através de
Projetos de Emenda Constitucional (PECs). Ganham destaque na análise as
ligações entre instâncias profissionais internas às polícias (Associações, Fede-
rações, Conselhos, Ligas), grupos de pesquisa, movimentos sociais, agências

17 Conciliação entre o repertório dos direitos humanos com a operacionalidade da segu-


rança pública [políticas de accountability e de participação social, políticas preventivas
e repressivas].
452 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

governamentais (como a SENASP), e fóruns conectores entre esses universos,


a exemplo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As alianças e rivalidades
entre tais instâncias correspondem ao jogo definidor das mudanças e sinali-
zariam para uma arena ampliada de discussão e negociação entre coalizões.
É o mesmo argumento de estudo sobre as mudanças nas redes de ato-
res envolvidos com a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, em
2009, como evidência da formação de um domínio de política pública18 (Pa-
vez et al, 2011). Nesse sentido, a 1ª CONSEG revelaria, em primeiro lugar,
a mudança de composição dos atores envolvidos na discussão, assim como
a veiculação de novos “pacotes interpretativos” (Pavez et al, 2011; Pavez et
al, 2012). Com a Conferência, teria havido uma concentração nacional do
debate antes disperso em distintas arenas públicas e uma nova reorganiza-
ção das ações argumentativas e atores em disputa. Teria havido um aden-
samento das redes de conhecimento mútuo dos atores envolvidos com a
temática de segurança pública em uma nova estrutura que se caracteriza por
três fatores de impacto: 1- O surgimento de novos atores da sociedade civil,
principalmente ONGs e institutos acadêmicos que procuraram desfazer a
forte polarização entre os atores tradicionais da área por um lado, as Forças
Armadas e as altas patentes da polícia civil e militar e, por outro, organi-
zações de militância em direitos humanos. Entidades que ampliaram seus
recursos argumentativos a partir de atividades de pesquisa, mobilização
social e assessoramento à formulação de políticas públicas, ecoando ideias
e experiências internacionais de policiamento, em parceria com agências
internacionais; 2- A integração de atores representantes de entidades de bai-
xa patente do sistema de segurança pública e justiça criminal – polícia mi-
litar e civil, agentes penitenciários, peritos criminais, delegados, bombeiros

18 “A formação de um domínio de política pública se define numa sucessão de debates


públicos de manifestação de conflitos sociais em que a ação política ocorre continua-
mente na mobilização de recursos argumentativos e ideias por parte de atores políticos
em distintas arenas públicas. Essas disputas, segundo Fuks (2000), são os conflitos que
definirão a policy image, ou seja, o conjunto de ideias ou ‘pacotes interpretativos’ que
formam a cultura de um assunto público. A disputa definirá as ideias ‘vencedoras’ e
que passam a ser hegemônicas em um domínio de política” (Pavez et al, 2012, p. 308).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 453

e polícias científicas – no debate mais amplo sobre as políticas para o setor,


destacados como protagonistas da Conferência; 3- O fortalecimento do pa-
pel do Governo Federal, com a SENASP e do Fundo Nacional de Segurança
Pública (FNSP), que aumentam a sua centralidade em relação à Secretaria
Especial de Direitos Humanos (SEDH).
A organização da Conferência revelou as relações internas das corpora-
ções policiais, que conheceram nas últimas décadas um grande movimento
de politização. Novos discursos e modos de fazer se disseminaram através
das organizações informais e redes profissionais de informações e saberes
nas polícias. Se a política no interior da polícia pode neutralizar propostas
vindas de fora (Mingardi, 1992), é exatamente o mecanismo de disputa en-
tre redes de prestígio que, a longo prazo, permitiria pensar em mudanças.
Através dessa “descoberta”, redes entre pesquisadores e policiais foram cons-
truídas no sentido de favorecer a democratização da segurança pública por
meio da incorporação de agendas por parte de grupos profissionais dentro
das polícias, cuja adesão estaria atrelada a expectativas de ganho de prestí-
gio social e melhores condições de trabalho (Lima, 2011).
Em suma, se antes o debate sobre o controle da criminalidade e da vio-
lência manifestava-se difuso em arenas locais, ele ganha outra dimensão ao
congregar os atores envolvidos com a questão em uma arena pública nacio-
nal, em processo que se espelha nos moldes das reformas políticas da saúde
e educação. Outros “pacotes interpretativos” surgem nesse período, versan-
do sobre o papel das esferas da federação e modelos de políticas públicas. A
tensão entre direitos humanos e segurança pública, contudo, não se desfaz
totalmente, na medida em que há continuidade das polarizações entre en-
tidades representantes das altas patentes da polícia militar e as entidades de
direitos humanos, especialmente no debate a respeito da campanha do de-
sarmamento. Alguns passam a defender o tratamento separado das temáti-
cas, enquanto outros defendem os direitos humanos com tema fundamental
da área da segurança. A adesão a um “novo paradigma” por parte dos atores
que integram o “campo da segurança pública”, portanto, não é automática e
nem unívoca. São muitos os modelos de política que se sobrepõem, articu-
lam ou entram em conflito.
454 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Em sentido oposto, estão situados os trabalhos mais próximos à uma


linha contra-hegemônica nas ciências sociais e à Criminologia Crítica. O
trabalho de Edson Lopes, Política e segurança pública: uma vontade de su-
jeição (2009), é um primeiro exemplo. Ele analisa o processo de construção
político-institucional do SUSP e dos Planos Nacionais de Segurança Pública
(2000; 2003; 2007), através de uma análise do conteúdo das propostas e de
algumas das redes de articulação entre ONGs, centros de pesquisa e admi-
nistração pública. Apoiado nas ideias de Michel Foucault sobre a gestão da
vida por novos mecanismos de controle – biopolítica e governamentalização
e de Loïc Wacquant sobre as tendências americana e europeia de transfor-
mação do Estado Social em Estado Penal, o autor procura demonstrar que as
novas políticas de segurança pública se direcionam à expansão das práticas
punitivas e ao agravamento da criminalização da pobreza, principalmente
de sua juventude, reforçando o lugar da prisão e ao mesmo tempo transfor-
mando as favelas e periferias em verdadeiros campos de concentração.
A continuidade da expansão do controle social sistemático das “classes
perigosas” com o reforço das práticas de exceção implementadas pelo Esta-
do, cuja razão seria naturalizada por uma “sociologia normativa”, acabaria
por borrar as linhas que distinguem o regime democrático vigente no país.
O papel de cientistas sociais nesse processo é destacado como fator de sub-
missão da ciência à razão de Estado e pela adoção acrítica de ideias fomen-
tadas por consultorias internacionais. Esta “sociologia normativa” seria res-
ponsável pela conversão dos direitos humanos em discurso das instituições
de segurança pública, pelo reforço da ligação entre crime e pobreza nas polí-
ticas adotadas, pelo destaque dado à impunidade como problema central do
funcionamento do sistema de justiça criminal e as demandas por punição
no debate público incentivado por movimentos sociais, principalmente no
caso daqueles ligados à garantia do direito das vítimas, e pela imprensa.
Em consonância com esses argumentos, a dissertação de Fernanda
Pradal (2013) teve como objetivo “uma análise sobre a formação de uma
corrente intelectual especialista sobre segurança pública no Brasil que se
compreende ser de natureza liberal” (p. 11). Pretendendo uma articulação
entre as perspectivas de Bourdieu e Foucault para “compreender a estrutura
Violência, Polícia, Justiça e Punição 455

e a operação do campo intelectual e sua relação com a produção de regimes


de verdade” (p. 13), procurou demonstrar “a operação de silenciamento e
ocultação de relações de dominação e de poder, de múltiplas naturezas, que
atravessam o Estado pelo jurisdicismo liberal produzido por esses especia-
listas em segurança pública” (p. 13). Para isso, a autora ensaiou uma crítica
à formação histórica e “teórico-política” da “corrente liberal” através do es-
tudo do contexto de relações políticas nacional e locais e das pesquisas rea-
lizadas por meio de pistas oferecidas na “reflexão e reconstrução da história
do campo pelos especialistas” (p. 12).
Utilizando alguns dos critérios já encontrados nos estudos da área, a
autora propõe uma periodização para argumentar acerca do distanciamento
dessa “corrente liberal” em relação a determinadas abordagens, principal-
mente as de inspiração marxista, correlacionando esse argumento aos limi-
tes à crítica ao modelo hegemônico de segurança pública, por conta da “te-
oria sobre o Estado subjacente à produção desses intelectuais” (p. 11). Essa
teoria do Estado é sintetizada no conceito de “jurisdicismo liberal” (Gomez,
1984), caracterizado por uma perspectiva abstrata do Estado como expres-
são do “interesse geral” da sociedade, que naturalizaria o Direito enquanto
doutrina, e perderia de vista a ilegalidade como prática de instituições esta-
tais. Contudo, essa teoria é utilizada sem considerar adequadamente o con-
junto das reflexões dos mesmos pesquisadores da dita “corrente liberal”, que
apontam, justamente, para a crítica de uma visão naturalizada do Direito. Se
o uso de noções como “monopólio estatal da violência legítima” e “direitos
fundamentais” apoiam a construção do Estado, isso se dá ao mesmo tempo
em que se pontuam as características históricas e estruturais do Estado bra-
sileiro relacionadas à manutenção das relações de desigualdade e opressão.
Todos esses elementos, com exceção do uso do conceito de “jurisdicis-
mo liberal” como arma de luta, foram também trabalhados em nossa pro-
dução.19 Mas de uma forma que consideramos mais ampla e com base em

19 Venho desenvolvendo minha perspectiva de estudo desde a graduação, com estudo


sobre a implementação de um plano municipal de segurança e o modo como as ideias
produzidas nas ciências sociais se associam com planos de intervenção (Vasconcelos,
2007). No mestrado dirigi minha atenção à formação de centros, núcleos e laborató-
456 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

uma sociologia que parte de uma tomada de posição reflexiva (Bourdieu,


2001). Mesmo que não realizada plenamente, pois há vários graus de com-
prometimentos e censuras implícitas na posição ocupada, refletir sobre o
seu próprio lugar é uma condição prévia a qualquer abordagem do campo
intelectual ou corre-se o risco de não trabalhar os conceitos de forma ana-
lítica, mas como categorias de acusação que grupos intelectuais se lançam
em suas disputas. No caso do trabalho de Pradal, especialmente, percebe-
-se uma vinculação explícita a uma posição, ligada a grupos afinados com
a ideia de Criminologia Crítica. Uma relação nunca refletida. O resultado
disto, do início ao fim, é a defesa de um dos pontos de vista no interior do
campo intelectual; não propriamente uma análise do mesmo, mas um com-
bate à perspectiva oposta dentro do campo. O que se reflete, seja na seleção
das entrevistas consideradas (que retira da dita “corrente intelectual” justa-
mente autores que poderiam demonstrar uma maior pluralidade no interior
desta corrente), seja na incapacidade de análise das ambiguidades possíveis
na atuação e pensamento da corrente a que pertence. Este aliás é um dos
problemas principais das revisões bibliográficas que se segmentam de acor-
do com as disciplinas e acabam por não abordar todo o campo intelectual.
Essa questão se revela também nos dois trabalhos mais recentes so-
bre esse campo. O primeiro é um balanço, Políticas Públicas de Segurança,
Violência e Punição no Brasil (2000-2016) (Campos e Alvarez, 2017), feito
a partir da análise dos periódicos Qualis A1 da área de sociologia. Os auto-
res, repetindo outros estudos, reconstituem alguns dos processos de insti-
tucionalização e discutem os níveis de concentração regional expressos na
produção, mas o principal ponto é o da consolidação de três áreas temáticas
nesse período: (1) Políticas Públicas de Segurança (Justiça Criminal, Polícia,
Violência de Gênero, Adolescentes em Conflito com a Lei), (2) Violência e
Sociabilidades (Atividades criminais, Representações Sociais) e (3) “Socio-
logia da Punição”. O texto argumenta a respeito dos riscos da aproximação

rios de pesquisa e seu papel na institucionalização de perspectivas intelectuais e po-


líticas (Vasconcelos, 2009). No doutorado investiguei a formação da área de estudos
sobre crime, violência, punição e sua relação com domínios de políticas públicas de
direitos humanos e segurança pública (Vasconcelos, 2014).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 457

das ciências sociais com as políticas públicas para uma “gradativa perda de
autonomia dos pesquisadores da temática, no que diz respeito à formulação
de problemas de pesquisa, escolha de perspectivas teóricas e empregos de
técnicas de pesquisa” (p. 195).20 Questões caras às reflexões da teoria socio-
lógica se perderiam frente a perspectivas mais pragmáticas que, apesar de
terem tido mais espaço, não teriam se tornado relevantes na reversão dos
problemas mais crônicos e graves da segurança pública e justiça criminal.
Alguns pontos poderiam ser contestados, como: qual o critério para
afirmar o “desnível teórico” de uma produção, que não é discutida no nível
conceitual (não é discernível se é uma análise de parte dos artigos Qualis
A1 abordados, ou uma impressão geral sobre a produção disseminada em
outros periódicos)? Esse desnível se dá na comparação entre a “Sociologia
da Punição” e os estudos que se aproximaram de políticas públicas ou afeta
ambos, derivando da expansão do campo, e lógica de massificação e repro-
dução de referências? Mas não é o momento para uma análise mais detida
sobre o texto, que pontua questões relevantes. Cabe apenas considerar que
ele é expressão do esforço de consolidação de uma rede de pesquisadores
que não ocuparam posições de centralidade nas articulações políticas nos
últimos anos, mas que procura, no momento de crise destas articulações,
ganhar espaço através da legitimidade acadêmica, ao orientar a interpre-
tação das pesquisas sobre prisão e atividades criminais que estão ligadas a
uma perspectiva “societária” e não “estatizante” (Machado da Silva in Lima
e Ratton, 2011), para um espaço teórico de seu domínio a partir da consoli-
dação de uma “sociologia da unição”.
O outro trabalho é Humanizar e Expandir: uma genealogia da segu-
rança pública em São Paulo, de Adalton Marques (2017), que analisa a
conformação de uma “razão democrática e humanista no seio da seguran-
ça pública pensada e elaborada em São Paulo” durante o fim da Ditadura
Militar, baseada no que chama de “tríptico segurança pública – democra-
cia – direitos humanos”, que teria não apenas possibilitado, mas incitado a

20 O que contraria outras interpretações, que minimizam tais riscos frente ao grande
déficit ainda existente na construção de uma universidade engajada na solução de pro-
blemas públicos (Soares, 2006).
458 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

expansão do sistema penal. O seu ponto de partida é o da proveniência de


uma linha discursiva que visou destituir de cientificidade as perspectivas
de questionamento do problema da criminalidade a partir do problema da
marginalidade, para legitimar uma perspectiva institucional para as políti-
cas democráticas de segurança pública. Essa formação discursiva é conside-
rada a principal sustentação do governo de André Franco Montoro em São
Paulo e se relaciona com o abandono de transformações estruturais para a
segurança pública em nome de “pautas policiais”. Corte que irá se acentuar
nos anos seguintes, com as relações políticas criadas entre os partidários
desta “Sociologia da Violência” em nível estadual e federal. Um dos pon-
tos de apoio para a argumentação de Marques é o trabalho com autores
que tiveram seus “saberes sepultados” (combatidos como ideológicos e pré-
-científicos e por isso esquecidos) no processo de constituição da Sociologia
da Violência como uma “ciência de estado”: “Tomá-la, simplesmente, como
uma teoria sociológica, é perder de vista a agenda política que lhe era coex-
tensiva” (Marques, 2017, p. 174-175).
É interessante observar como as questões trabalhadas por Marques são
em parte coincidentes com as que foram discutidas em outras produções
aqui analisadas, mas em outra perspectiva. Com relação aos argumentos de
Carvalho (1999) em específico, trata-se do mesmo processo, mas com outra
avaliação sobre o seu significado: uma releitura crítica do processo de cons-
tituição da Sociologia da Violência através da convocação de aliados que
foram destituídos de seu estatuto de interpretação científica da realidade
social dos conflitos, do crime e da violência após os anos 1980. Com relação
aos nossos argumentos (Vasconcelos, 2014), seria possível confinar em uma
“ciência de Estado” relacionada à expansão securitária-punitiva toda uma
pluralidade de teses que em grande parte tiveram como pilar fundamental a
contraposição à expansão carcerária e punitiva? Não seria o caso de consi-
derar todo o campo de estudos atravessado por agendas políticas em disputa
não somente para se erigir em “ciência de Estado” mas para, a partir de coa-
lizões de forças sociais alternativas, criticar os fundamentos e as práticas que
se afirmam como científicos/verdadeiros a partir do Estado?
Violência, Polícia, Justiça e Punição 459

Disputas internas pela reconfiguração do campo:


narrativas de fundação e formações disciplinares
Como exposto, a interpretação sobre a formação do campo de estudos
se traduziu em diferentes olhares. Para efeito de síntese, dividimos em duas
grandes narrativas. A primeira, enfatiza as ligações entre as lutas políticas
e a abertura do campo do poder na segurança pública a ideias e quadros
de esquerda (Santos, 2009; Lima, 2011) e um cenário plural que se volta à
discussão dos problemas públicos, comparável ao contexto da Escola de
Chicago no início do século XX (Machado da Silva in Lima e Ratton, 2011)
ou ao contexto da criminologia como suporte de políticas públicas nos
anos 1960, também nos Estados Unidos (Beato in Lima e Ratton, 2011). A
segunda, critica a participação do saber científico em processos de gover-
namentalização e controle social (Karam, 1996; Batista, 2009; Lopes, 2009)
e acusa a cooptação e “policização da Academia” produzida por uma “so-
ciologia colaboracionista” (Batista, 2009), por uma “sociologia normativa”
ou por um “gerencialismo de esquerda” (Carvalho, 2014). Situamo-nos,
então, entre duas narrativas em confronto sobre a produção e recepção de
ideias a respeito do crime, da violência e da punição por parte do campo
intelectual brasileiro.
De um lado, temos a narrativa de cientistas sociais a partir dos estudos
empíricos, de variados matizes teóricas, sobre prisão, polícia e criminali-
dade organizada, que se consolida na eleição definitiva de fundadores e de
uma coerência a respeito das personagens, temas e trabalhos. O livro As
Ciências Sociais e os pioneiros no estudo do crime, da violência e dos direitos
humanos no Brasil (Lima e Ratton, 2011) expressa de modo exemplar a mar-
ca dessa narrativa. É concedido um destaque especial a Edmundo Campos
Coelho e a Antônio Luiz Paixão, que “introduziram o campo da crimino-
logia no Brasil”. A sua influência se faria perceber na adoção de novos re-
ferenciais de análise, na formação “[...] de uma nova geração de cientistas
sociais” e na tarefa precursora de quebra das barreiras entre universidade e
polícia” (Leeds, 2011, p. 8). O livro expressa o projeto de consolidação de
um “campo da segurança pública”, que guarda também um viés geracional
460 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

ligado às disputas em torno da incorporação do legado dos fundadores no


direcionamento dos novos projetos na área.21
Mesmo com diferentes ênfases, pode-se dizer que esses pesquisadores
compartilham razoavelmente do diagnóstico de que a “ciência da segurança
pública no Brasil ainda é bastante incipiente e desproporcional em relação
aos desafios existentes” (Beato, 2012, p. 251), cuja solução passaria pela au-
tonomização seja da criminologia como ciência social aplicada, seja de uma
área de saber inter ou transdisciplinar, para a formação de um novo perfil de
pesquisador e também de quadros administrativos. Um movimento duplo
de afirmação de autonomia disciplinar aliado à criação de um novo discurso
sobre a política, por meio do qual se constitui uma “comunidade epistêmi-
ca”, com “identidade, recursos próprios, hábitos institucionais e linguagens
próprias e compartilhadas e formas de expressão e presenças públicas” (Les-
sa, 2011 p. 29). Trata-se, ao mesmo tempo, de um momento de “transição
geracional [...] em que as clivagens entre gerações respondem a desacordos
que apontam para sentidos conflitantes acerca do grau de especialização e
de engajamento público do intelectual” (Keinert e Silva, 2010).
De outro, temos uma narrativa principalmente de intelectuais ligados
ao Direito, da “comunidade epistêmica” ligada à Criminologia Crítica (San-
tos, 2006; Batista, 2011). São eleitas personagens e teorias fundadoras de
uma discussão envolvendo o pensamento jurídico-crítico brasileiro, latino-
-americano e europeu, em diálogo com teorias sociológicas do desvio norte-
-americanas. Afirma-se a vinculação com uma série de juristas que, a partir
dos anos 1970, passam a atuar de modo crítico tanto às teses convencio-
nais sobre crime e pena como também ao quadro jurídico-político vigente
no período, agindo como advogados de presos políticos ou em espaços de
reformulação legislativa. É o caso de Heleno Fragoso, Augusto Thompson,
Juarez Cirino dos Santos, Roberto Lyra Filho e Nilo Batista. Nesse processo,
esses atores iniciam uma apropriação de novas concepções, informadas so-
bretudo por Marx, Rusche, Kirscheimer, Foucault e Baratta.

21 Cf. Freitas & Ribeiro, 2013;2014.


Violência, Polícia, Justiça e Punição 461

Para essa narrativa, em suas versões mais radicais, a questão do crime


e do controle do crime seria “uma questão exclusivamente política”: as suas
“raízes” não poderiam ser extirpadas enquanto o capitalismo, como relação
social essencialmente criminosa e criminógena, não fosse superado. Nesse
sentido, o crescimento da criminalidade violenta nos anos 1970 e 80 é visto
como fenômeno político (e midiático), expediente criado pelo Estado e gru-
pos interessados em “mascarar as reais causas da insatisfação social e culpabi-
lizar elementos advindos [...] das camadas sociais insatisfeitas” (Santos, 1984,
p. 14). A criminalidade, portanto, é interpretada como consequência de uma
ordem econômica e política, cujas soluções residem prioritariamente em re-
formas sociais e políticas amplas, e na contenção e redução do poder punitivo
do Estado. O propósito é questionar a naturalização do conceito de crimina-
lidade, em prol de um ponto de vista que enfatize os jogos de poder inerentes
aos processos de criminalização. Com isso, pretende-se uma reflexão sobre
uma teoria do poder não associada à “demanda por ordem de nossa formação
econômica e social” (ibidem, p. 74), pode informar uma nova política crimi-
nal, vista como orientação articuladora das políticas de segurança pública, da
política judiciária e da política penitenciária (Batista, 1990).
Enfatiza-se, então, o embate entre teorias legitimadoras ou críticas da
pena e seus promotores: de um lado, o direito penal mínimo e o abolicio-
nismo penal, promovidos por uma “esquerda jurídico-penal” e ancorada no
direito alternativo e no garantismo; de outro, uma política de lei e ordem,
baseada no tripé das ideologias da defesa social, da segurança nacional e
direito penal do inimigo. Nesse bloco, são alinhadas teorias que reagiram
às proposições da criminologia crítica nos Estados Unidos e na Inglaterra a
partir dos anos 1960 e fundamentaram políticas duras de encarceramento e
repressão. Essas correntes teriam se espraiado pelo mundo como “crimino-
logia de direita” ou como “realismo de esquerda” (ibidem, p. 104). Essa é a
matriz da crítica à cooptação da sociologia brasileira ao “paradigma da se-
gurança com suas consultorias neutras e técnicas” (Batista, 2009, p. 10), que
não incorporaria “a questão da conflitividade social, nem dos processos de
criminalização (Batista, 2011, p. 76). Em termos políticos ela seria represen-
tante de uma “esquerda punitiva” ou “esquerda real” que, apoiada na “lenda
462 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

fundacional do iluminismo, o estado democrático de direito” (idem, p. 105),


teria apostado em “modelos ideais” de segurança pública, sem refletir sobre
as políticas criminais que os produzem e, por essa razão, legitimaria o puni-
tivismo e o “extermínio cotidiano”.
Essas narrativas de fundação traduzem uma disputa pela participação
legítima em um mesmo debate e a busca por espaços de influência no sis-
tema de justiça criminal, nas universidades, em espaços de formulação de
leis penais, políticas criminais, políticas de direitos humanos e de segurança
pública. A formação de um “campo da segurança pública”, nesse sentido,
ao dar início à uma nova organização de um sistema institucional de inter-
câmbio entre pesquisa, formação de operadores do direito e construção de
políticas públicas, induziu a tensões que repercutiram nos enquadramen-
tos sobre a “questão criminal” enquanto campo de estudos, na adoção de
diferentes referenciais teóricos e em diferentes concepções sobre o papel a
desempenhar na concorrência pelo monopólio do saber. Sobre essa questão,
importa ressaltar alguns pontos.
Se a Criminologia Crítica buscou aumentar seu espaço nas Faculda-
des de Direito, contra versões teóricas que qualificamos como “criminologia
tradicional”, ela em grande parte recusou olhar para o problema do déficit
empírico da disciplina no âmbito do Direito (Anítua, 2008): incorpora, no
discurso, a necessidade de pesquisas, mas não adota um padrão sistemático
e consequente. Mais das vezes ocorre uma aceitação dos achados e refe-
renciais de pesquisa provenientes do âmbito internacional como doutrinas
ou escolas teóricas. A pesquisa empírica sistemática realizada pelas ciências
sociais brasileiras é taxada como investimento positivista (Batista, 2009;
2011), o que ocasiona uma disjunção e dificulta o reforço ao papel da Cri-
minologia Crítica como síntese das contribuições mais recentes do campo
de estudos e não uma “criminologia de marca” (Carlen, 2017), como título
ou brasão nominativo de um grupo, não sendo garantida a efetividade da
crítica apenas pelo nome.
Por sua vez, a adoção das ciências sociais como “criminologia” ou ci-
ência social aplicada, arrisca-se a contribuir para a exclusão de perspectivas
outras, por serem consideradas pouco produtivas no diálogo com atores da
Violência, Polícia, Justiça e Punição 463

segurança pública, deslocadas então para o âmbito de uma “criminologia


crítica”22 taxada de ideológica por se fundamentar na denúncia da violência
do Estado como dominação de classe (Beato, 2008; 2012). Com isso, deixa-
-se em segundo plano a indagação sobre a construção prévia da política pe-
nal e sobre um sentido mais amplo de violência, que busque sua significação
nas mutações da questão social e punitiva-prisional, e concentra-se apenas
nos “aspectos mais estritos de criminalidade e violência tal como definido
pela lei” (ibidem, p. 26). Em nome de uma abordagem que se concilie com
medidas de prevenção e mediação de conflitos, busca-se afirmar a eficácia
da repressão e da prisão como estratégias de controle do crime.
Em meio a esse contexto, uma série de esforços concorrentes ou com-
plementares de fundamentação de subdisciplinas se consolidam em para-
lelo: é o caso da Antropologia do Direito, com pretensões a erigir o método
etnográfico em ferramenta de mudança das práticas dos operadores do Di-
reito (Lima, 2013), ou de uma Sociologia da violência voltada à crítica das
tendências afins à uma criminologia administrativa em seus efeitos não de-
clarados ou não intencionais (Santos, 2010; Dieter, 2012). Essas subdiscipli-
nas se somam a propostas de nomeação da área de saber, como alinhamento
de filiações na disputa pela liderança no campo, como demonstra a última
revisão bibliográfica sobre o tema (Campos e Alvarez, 2017), que reivindica
o lugar da Sociologia da punição como premissa de crítica da produção da
área, na esteira da qual se busca alinhar estudos sobre políticas criminais e
penitenciárias, sobre relação entre prisão e dinâmicas criminais ou ainda
sobre uma remilitarização da segurança pública.

22 “Uma grande variedade de teorias, cujo denominador comum é o foco em processos


sociais de larga escala, sendo o conceito de ‘conflito social’ central para a compreensão
deles” (Beato, 2012, p. 35).
464 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

Nomeação da Área de Saber Subdisciplinas

Segurança Pública e Sociedade Criminologia Crítica

Campo da segurança pública Sociologia da Violência

Criminologia Sociologia da Conflitualidade

Campo de estudos sobre vio- Sociologia da Punição


lência, democracia e segurança
pública Sociologia da Força Pública

Estudos de Policiamento e Crime Antropologia da Violência

Ciências Criminais Antropologia do Crime

Ciências Penitenciárias Antropologia do Direito

Ciências Policiais Economia do Crime

O entrelaçamento e a hierarquia entre essas diferentes proposições apon-


tam para uma ampla área de estudos e pesquisas, teórica, empírica, histórica e
aplicada, que se subdivide ao menos em três direções: 1- esforços de reconfi-
guração crítica do modelo interdisciplinar de Ciências Criminais, traduzindo
questões de pesquisa das Ciências Sociais para um diálogo com o Direito;
2- um modelo de Criminologia independente, como formação profissional na
área de gestão da segurança pública e justiça criminal; 3- uma ciência social
“pública”, mais orientada para articulações no plano da sociedade civil. Três
configurações, de convivência não necessariamente contraditória, que en-
contram soluções de compromisso ou de ruptura na constituição de campos
políticos na interseção da atividade intelectual com processos políticos e de
profissionalização23 do sistema de justiça criminal, ligados aos direitos huma-
nos, à segurança pública e à política criminal e penitenciária.

Conclusões
Nosso propósito foi demonstrar como os estudos feitos sobre esse
campo intelectual têm refletido, em maior ou menor grau, as disputas aqui

23 No sentido weberiano, como especialização na qual atores se apropriam do controle de


um setor social e da alocação de seus bens e serviços (Enguéléguélé, 1998; 2010).
Violência, Polícia, Justiça e Punição 465

exemplificadas. Acreditamos, com isso, melhorar a nitidez de algumas li-


nhas de contraste e interpretação. Torna-se, então, compreensível o porquê
de havermos, inicialmente, e mesmo com reservas, nomeado essa área de es-
tudo e pesquisa como “Sociologia da violência” (Vasconcelos, 2009; 2011), e
nos trabalhos posteriores, havermos abordado outro enquadramento. Con-
sideramos a “Sociologia da violência” uma das disciplinas em concorrência
no campo científico, enquanto possível exemplo de tomada de posição e de
formação de discursos e linhagens, os quais disputam sobre a própria iden-
tidade no campo científico e nas escolas (objetos e métodos a serem privi-
legiados em seu interior), e que servem de referência para posicionamentos
em espaços de convergência entre pesquisa e política.24
Acreditamos que tal questão pode ser entendida ao situarmos as diver-
gências intelectuais a partir do quadro de suas relações de homologia como
polos hegemônicos ou contra-hegemônicos no campo intelectual e no campo
político segundo dois critérios: 1- a aproximação ou o distanciamento em
relação ao Estado e 2- a consagração acadêmica (Vasconcelos, 2014). As-

24 Neste ponto vale esclarecer alguns ruídos de interpretação entre outros esforços pa-
ralelos de discussão sobre o campo intelectual e o que desenvolvemos: Pradal afirma
que nosso trabalho “não se propõe a uma análise da relação política sobre o lugar do
intelectual” (Pradal, 2017, p. 122), quando esta é justamente uma de suas principais
questões; para Alvarez & Campos (2017), nossa pesquisa abordaria a “constituição
de um efetivo campo da segurança pública (1968-2010)”, fazendo crer que usamos a
expressão “campo da segurança pública” para delimitar todo o processo de discussão
mais amplo sobre violência, crime e punição no Brasil desde os anos 1960, quando
este é apenas uma das configurações assumida pela relação entre intelectuais e política;
Marques (2017), por sua vez, chega à uma interpretação inversa à proposta da pes-
quisa: “Ele define a Sociologia da Violência como um “campo da segurança pública”,
noção que indica a conformação de “um campo intelectual e não o campo dos agentes
e das políticas de segurança pública com o qual a área de estudos sobre violência, cri-
me e punição se relacionaria” (Vasconcelos, 2012, p. 572; nota de rodapé 2)” (p. 173).
Contraditória em si mesma, a citação é oriunda de uma interpretação equivocada do
sentido de uma nota de rodapé de uma resenha que fizemos sobre o livro As Ciências
Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos no Brasil
(Lima e Ratton, 2011), na qual se propõe seria possível indagar/questionar o uso nati-
vo de “campo da segurança pública” para abordar todo o campo intelectual.
466 Sérgio Adorno e Renato Sérgio de Lima (orgs.)

sim, seria possível indicar o estado atual do campo em cada momento. No


contexto de nosso estudo delineamos o seguinte quadro: o polo hegemônico
das redes de pesquisa adotou a linguagem da participação, dos direitos e da
cidadania herdados da redemocratização na reforma das instituições de se-
gurança pública, ao mesmo tempo em que, nesse processo, aproxima-se de
um ponto de vista mais restrito e negativo da violência, considerada a partir
da noção de “criminalidade urbana violenta” e vinculada ao diagnóstico da
impunidade; o polo contra-hegemônico, por sua vez, associa-se a um ponto
de vista mais positivado a respeito das violências, entendidas como mani-
festações de descontentamentos “proto-políticos” por parte da sociedade,
resistências à violência estatal, ilegalismos e conflitos criminalizados dentro
de um projeto de dominação vinculado à demanda por punição.
Essas duas matrizes de discurso não são opostas por natureza, ao
contrário, estão em maior parte combinadas. E este é um fator fundamental
ocultado por teses que buscam se definir como arma de luta em prol de uma
das redes ou narrativas de fundação. As inflexões críticas ou propositivas são
circunstancialmente operacionalizadas, de acordo com a mudança de con-
texto político e institucional, que abre possibilidades de releituras e novas
alianças, não havendo uma posição essencialmente “crítica” nem essencial-
mente “colaboracionista”. Atualmente, por exemplo, as articulações parecem
indicar uma fase de ambiguidade relacionada a contestações do processo de
construção dos protagonismos no “campo da segurança pública” e dos pa-
radigmas e resultados das políticas apresentadas sob o rótulo de “Segurança
Cidadã”, feitas por redes e grupos que tiveram “janelas de oportunidade”
fechadas em outros momentos. Contexto em que se questionam as mudan-
ças incrementais e se volta a apostar em pautas estruturais de mudança nas
instituições estatais. Isso impacta em um alinhamento em potencial entre
os que se situam na narrativa da Criminologia Crítica e os que, no âmbito
das Ciências Sociais, constituem uma fração contra-hegemônica, vinculada
à disputa pela direção das articulações no campo de política penal e peni-
tenciária e por uma ligação mais próxima com setores populares afetados
pelas novas dinâmicas da transformação social do crime e da violência. Ao
mesmo tempo, a “hegemonia pragmática e reformista” busca se recolocar
Violência, Polícia, Justiça e Punição 467

alinhando-se à um discurso crítico e ativista em momento de fechamento


corporativista no interior do campo da segurança pública.
Por fim, faz-se apelo por uma visão mais analítica do campo intelectu-
al, centrada no reconhecimento da inserção de todos os intelectuais em uma
mesma disputa pela legitimidade da fala pública capaz de influenciar a condu-
ção política da segurança pública e justiça criminal. Sem isso, as teses opostas
à atual relação entre intelectuais e a configuração do “campo da segurança
pública” [que podem conduzir a uma revisão de pressupostos da narrativa
hegemônica nas ciências sociais] esclarecem mais os vieses de interesse de
grupos do que propriamente um acréscimo teórico no campo intelectual. As
correntes intelectuais poderiam ser então compreendidas não simplesmente
como categorias de acusação de um grupo intelectual contra sua concorrência
no ativismo social e na expertise estatal. Com isso, talvez a própria reconstru-
ção da história do campo e as possibilidades de redes mais ampliadas de ati-
vismo e políticas públicas possam superar bloqueios e simplificações, mesmo
que, para retomar o argumento de Machado da Silva (apud Lima e Ratton,
2011), não pareça haver possibilidade de síntese entre as posições.

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Esta obra foi impressa em São Paulo no


inverno de 2019. No texto foi utilizada a
fonte Arno Pro em corpo 10,5 e entreli-
nha de 15,5 pontos.

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