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Instituto de Letras
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA
Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: pgletba@ufba.br
por
SALVADOR
2005
2
Inclui anexos.
Orientadora: Profª. Drª. Florentina da Silva Souza.
Co-Orientador: Prof. Dr. Luis Nicolau Parés.
Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, 2005.
CDU – 299.6(813.8)
CDD - 299.67098142
3
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................................1
1 O QUADRO EPISTEMOLÓGICO:
A TRANSMISSÃO DO SABER E O SEGREDO...........................................................................18
2 OS ENTRELUGARES DA ORALIDADE:
USOS ÊMICOS DA ESCRITA E DA FOTOGRAFIA...................................................................58
4 PERCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS:
LEITORES E ESCRITORES NOS TERREIROS...................................................................... 160
CONCLUSÃO................................................................................................................................................207
REFERÊNCIAS IBLIOGRÁFICAS...........................................................................................................212
APÊNDICES..................................................................................................................................................230
ANEXOS..........................................................................................................................................................234
INTRODUÇÃO À TESE 6
2 OS ENTRELUGARES DA ORALIDADE 23
USOS ÊMICOS DA ESCRITA E DA FOTOGRAFIA
3 MARTINIANO DO BOMFIM 27
E A ASCENSÃO ETNOGRÁFICA DO OPÔ AFONJÁ
4 PERCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS 30
LEITORES E ESCRITORES NOS TERREIROS
CONCLUSÃO 33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA S 38
6
INTRODUÇÃO
1
CERTEAU, Michel de. The writing of history. New York: Columbia University Press, 1988 [1975]Refiro-me
especificamente a dois ensaios: “The Formality of Practices: From Religious Systems to the Ethics of the
Enlightenment (the Seventeenth and Eighteenth Centuries” e “Ethno-Graphy: Speech or the Space of the Other in Jean de
Léry”.
7
2
CLIFFORD, James. Introduction: Partial Truths. In: CLIFFORD; MARCUS, George (orgs.). Writing culture:
the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986, p.6.
(1986, p. 7)
3
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabra Koogan, 1989, p. 26.
Para análises interessantes sobre o processo hermeneûtico do antropólogo, ver Rabinow (1977); Clifford e
Marcus (1986); Clifford (1988); Abu-Lughod (1993); e Behar (1993), entre outros.
4
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973 [1967].
5
Penso particularmente em As Palavras e as Coisas, publicado em francês em 1966, e Vigiar e Punir (1975).
6
Marxism and Literature (1977).
8
indagações levantadas por estudiosos como Beatriz Dantas 7sobre os pressupostos nos quais a
visão etnográfica sobre a religiosidade afro-brasileira se apoiava. Questionando o fato de as
práticas religiosas dos nagôs serem reificadas pelos estudiosos como mais fiéis à “pureza”
africana, Dantas argumentou que o privilégio antropológico para a religiosidade dos nagôs
tinha levado a um desprezo para as práticas das outras nações, as quais tinham sido
descartadas como “misturadas” e “deturpadas” 8.
7
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal,
1988.
8
Como analisarei no Capítulo 3, esta tendência está enraizada na perspectiva evolucionista de Nina Rodrigues,
segundo a qual as etnias da África ocidental seriam mais “avançadas” do que as da África central.
9
BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1983, p. 169.
10
LÜHNING, Ángela. Pierre Fatumbi Verger e sua obra. Afro-Ásia, no. 21-22, pp. 315-364, 1999b. “Com as
suas viagens constantes para a África, [Verger] realmente tornou-se o mensageiro – aproveitou este termo para
um dos seus últimos álbuns fotográficos, Le Messager (Paris, 1993) – entre os dois lados do Atlântico,
renovando e inovando, criando e recriando os contatos humanos, numa época em que... tinham se tornado menos
freqüentes e menos fundamentais do que nos séculos anteriores. Nem sempre esta sua atitude de unir foi vista
com bons olhos. Verger sempre contava, com um certo tom de amusement, de divertimento, que o seu colega
antropólogo norte-americano Melville Herskovits mostrou-se bastante contrariado com a ação ‘conciliadora’ de
Verger, dizendo que este tinha destruído a situação de ‘laboratório natural’ encontrado por ele, Herskovits, na
9
Nas entrelinhas dessas discussões sobre o efeito “poluidor” do antropólogo sobre seu
objeto de estudo está uma oposição conceitual entre a pureza e a deturpação. Por um lado,
acreditava-se que o “primitivo” caracterizava-se por um estado de suposta inocência humana,
ou natura. Por outro, as sociedades concebidas como culturas eram reificadas por serem
“civilizadas”, mas, simultaneamente, eram vistas como tendo perdido aquele estado de graça
original. Tais contrastes, centrais à visão antropológica sobre a diversidade humana, foram
eloqüentemente evocados na década de 50 por Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos, levando
este livro a ser um dos mais comentados por estudiosos pós-modernistas e pós-estruturalistas,
entre eles Clifford 14 e Derrida 15.
Foram justamente essas oposições entre pureza e contaminação que Beatriz Dantas
identificou no seu livro, Vovó Nagô e Papai Branco: Usos e Abusos da África no Brasil,
Bahia [em 1941-42]. Mas, poucos anos depois... Verger começou a realizar suas pesquisas nos dois lados do
Atlântico, refazendo os contatos, temporariamente adormecidos após a abolição, reaproximando famílias, rituais
e fatos” (LÜHNING, 1999b, p. 323-324).
11
LÉVI-STRAUSS, Claude, Structural Anthropology. New York: Basic Books, 1963.
12
ELBEIN DOS SANTOS, Juana. Os nagô e a morte: padé, asese e o culto egún na Bahia. Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 1975.
13
VERGER, 1982. Etnografia religiosa iorubá e probidade científica. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro,
ISER, no. 8, 1982, p. 5.
14
CLIFFORD, op. cit.; CLIFFORD,The predicament of culture: twentieth-century ethnography, literature and
art. Cambridge, Mass: Harvard university Press, 1988.
15
DERRIDA, Jacques, op. cit.
10
16
SILVA, Vagner Gonçalves da. Orixás da Metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995.
17
CAPONE, Stefania. CAPONE, Stefania. L’Afrique réinventée ou la construction de la tradition dans les
cultes afro-brésiliens. Archives Européennes de Sociologie, vol. 40, no. 1, pp.3-27, 1999a. CAPONE, Stefania,
La quête de l’Afrique dans le candomblé: pouvoir et tradition au Brésil. Paris: Éditions Karthala, 1999b.
18
SERRA, Ordep. Águas do rei. Petropolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 55, 59, 75.
11
De acordo com Dantas 21, este processo de legitimização social através da visibilidade
etnográfica implicava a exaltação de práticas “puras”, consideradas “religiosas”, a qual foi
acompanhada pela marginalização de práticas rotuladas como “impuras” e classificadas como
“feitiçaria” e “curandeirismo”. Na medida em que alguns terreiros tiveram mais sucesso em
navegar nesta transformação na estratégia de relações exteriores, houve uma re-estruturação
19
FOUCAULT, Michel. The subject and power. In: DREFUS, Hubert e RABINOW, Paul. Michel Foucault:
beyond structuralism and hermeneutics, 2a ed. Chicago: University of Chicago Press, pp.208-226, 1983.
_______. Power/knowledge: selected interviews and other writings, 1972-1977. GORDON, Colin (org.). New
York: Pantheon Books, 1980. _______. Discipline and punish. New York: Vintage Books, 1977 [1975].
20
Como Lühning (1995) e Braga (1995) mostram, durante a maior parte da primeira metade do século XX, os
jornais divulgaram e até incentivaram as invasões policiais dos terreiros. (LÜHNING, Ángela, 1995. Acabe com
este santo, Pedrito vem aí: mito e realidade da perseguição policial ao candomblé baiano entre 1920 e 1942.
Revista USP, no. 28, 1995. BRAGA, Júlio, 1995. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés
da Bahia. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 1995.)
12
paralela nas relações de poder entre os terreiros, pois tal oposição discursiva alimentou uma
visão hierárquica das diversas práticas religiosas, segundo a qual os valores epistemológicos
de uma pequena minoria dos terreiros seriam vistas como mais puras, constituindo uma
espécie de “cultura alta”. Ao mesmo tempo, a praxe ritual de outros sacerdotes foi
desvalorizada, levando seus terreiros a constituirem um tipo de periferia da religiosidade afro-
brasileira.
21
DANTAS, Beatriz, op. cit.
22
Agradeço os comentários esclarecedores de Luzia Gomes sobre este assunto. Ela ressalta que além de
privilegiar os terreiros baianos o discurso etnográfico também focaliza os terreiros da capital, sem analisar os do
Recôncavo ou outras regiões do interior.
13
Um dos objetivos principais através desta tese é mostrar que a hegemonia do Opô
Afonjá nos estudos sobre o candomblé representa, de certa forma, um paradoxo para o
pensamento etnográfico. Apesar de ser reificado pela etnografia como o terreiro mais “fiel” à
pureza nagô, pensado como uma cultura oral, as relações do Opô Afonjá com a escrita são
antigas e estreitas, sendo registradas praticamente desde a fundação do terreiro por meio de
cadernos contendo os “registros” dos barcos de iaôs iniciados no terreiro. O babalaô
Martiniano do Bomfim foi grande amigo da fundadora do Opô Afonjá, Mãe Aninha. Membro
da associação civil do terreiro, Martiniano era letrado em português e também dominava o
24
inglês e o iorubá, falado e escrito . Consultado por todos os estudiosos do candomblé
durante o período de consolidação do discurso etnográfico, desde a época de Nina Rodrigues
no final do século XIX, até a segunda geração de estudiosos na década de 30, Martiniano
exerceu um papel definitivo na aproximação do Opô Afonjá ao discurso etnográfico, a partir
dos anos 30.
Conta-se que Mãe Aninha dizia que queria ver seus netos de santo “com anel de
25
doutor nos dedos, aos pés de Xangô” . Com esta afirmação, a fundadora do terreiro mais
conhecido por sua fidelidade à tradição oral deu seu voto para a importância de se vincular
com a escrita. Ainda nos últimos anos de Mãe Aninha, quando o discurso etnográfico sobre o
candomblé estava se consolidando, o Opô Afonjá tomou a frente ao se envolver com a
etnografia, não simplesmente no fornecimento de informações para os pesquisadores, mas
também na produção de textos, posição que se mantém até hoje. Em contraste, apesar de o
Gantois e a Casa Branca também contarem, entre seus membros, com numerosos artistas e
intelectuais, os sacerdotes destes dois terreiros não publicam textos sobre o candomblé.
23
CARNEIRO, Édison. 1991a, Candomblés da Bahia. 8a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991a
[1948], p. 46.
24
CARNEIRO, Edison, op. cit., entre outros.
25
MARTINS, Cléo. LODY, Raul (orgs.) Faraimará: o caçador traz alegria: Mãe Stella: 60 anos de iniciação.
Rio de Janeiro: Pallas, 2000, p. 121
14
* * *
26
Ver dois artigos de Ángela Lühning, Os sons da Bahia: pesquisas etnomusicológicas (2004) para um resumo
da evolução histórica da etnomusicologia na Bahia, e O jogo de espelhos: reflexões sobre a questão da
reintegração de gravações históricas do candomblé baiano nas comunidades atuais (2004), que trata das
tentativas desta pesquisadora de resgatar gravações de cantigas de candomblé realizadas por Melville Herskovits
no início da década de 40, disponibilizando-as ao povo-de-santo, sobretudo aos terreiros onde foram gravadas.
15
sinais de respeito e de boa conduta dentro do candomblé, como por exemplo, pelo uso de
roupa considerada inadequada, ou por ficar em pé em cima dos bancos para assistir melhor o
ritual.
Desta forma, freqüentei muitas festas nas grandes casas de kêtu, sem conseguir
contatos com ninguém. Com o passar do tempo, entretanto, comecei a ser convidada, através
de amigos da universidade, dos meios artísticos e de movimentos sociais, que faziam parte da
comunidade de casas como a Casa Branca, o Opô Afonjá, o Gantois, o Oxumaré, o Opô
Aganju, a Casa do Cobre e o Pilão de Prata. Assim, eu comecei a me tornar uma parte, mesmo
periférica, deste circuito, o que mudou minha relação com as pessoas nos terreiros. Sendo
apresentada por pessoas com laços com a casa, sejam de sangue, de parentesco espiritual ou
de amizade, passei a ser cumprimentada quando chegava, chamada para comer depois da festa
e até a presenciar outros rituais, mais íntimos e freqüentados por menos pessoas. Com o
tempo, fui convidada para festas de aniversário, almoços familiares, e outros eventos não
especificamente religiosos, mas freqüentados por pessoas que compõem o círculo de amizade
ou parentesco dos terreiros. Considero o fato de ser convidada para tais eventos — e de poder
estender também convites para eventos do meu universo social — um grande privilégio, um
símbolo de um grau de confiança e de diálogo que sinalizou ter chegado num patamar
importante para mim como uma pesquisadora “de fora” em vários sentidos: de outro país, de
outra língua, de outro grupo étnico-racial, e sem iniciação no candomblé.
Minha técnica de esperar ser apresentada por meus amigos, embora efetiva para
conhecer as pessoas nas grandes casas de kêtu e seus descendentes, não funcionou tão bem
para casas de outras nações, como as de angola 27. O contraste aponta para diferenças sócio-
econômicas subjacentes às grandes casas de kêtu e às menos conhecidas. Com poucas
exceções, como a do Bate Folha, os terreiros de angola tendem a ser menores, menos
freqüentadas pelos intelectuais e pela classe média, tendo, na sua maioria, escassos recursos
financeiros. Além disso, as festas muitas vezes começam mais tarde, terminando de
madrugada, o que dificulta o transporte de volta para pessoas de outros bairros. Talvez isto
seja um motivo para o fato de a maioria do público ser moradores do bairro ou pessoas
especificamente convidadas por alguém da casa.
27
No caso do jeje, outro fator pode ser o fato de existirem muito poucos terreiros dessa nação em Salvador hoje
em dia.
17
Realizar um estudo etnográfico sobre uma cultura que não é a sua traz um paradoxo,
nascido do contraste entre as possibilidades maiores que a perspectiva “de fora” oferece ao
pesquisador, na percepção e interpretação de fenômenos que, às vezes, passam despercebidas
pelo nativo; e as limitações de compreensão que esta própria condição de estrangeiro também
28
impõe. Como James Clifford argumenta, a credibilidade da narrativa etnográfica depende
da sua habilidade de convencer o leitor que representa a cultura como ela “realmente é”.
Portanto, as narrativas etnográficas, construídas através do processo interpretativo do
pesquisador, acabam sendo marcadas pela sua subjetividade. Quando o pesquisador não
domina a língua da comunidade estudada, como foi meu caso no início da pesquisa, o
processo de analisar os depoimentos complica-se mais ainda, mas de certa forma, as sutilezas
dos usos da linguagem e do estilo de comunicação específicas ao contexto social do grupo
estudado constituem, muitas vezes, um desafio até para pesquisadores que são falantes nativos
da língua.
Neste sentido, um dos problemas metodologicas que surgiu nesta pesquisa foi o uso da
29
entrevista como técnica de colhir dados. Para o sociólogo Pierre Bourdieu , uma
compreensão do que pode ser chamado de “a cultura da entrevista” deveria ser uma
preocupação central na pesquisa etnográfica. Bourdieu observa que:
Em outras palavras, a pesquisa etnográfica, como a física nuclear, parece ser regida
pelo princípio de Heisenberg, segundo o qual os dados acabam sendo modificados pelo
próprio processo de coleta, deixando, assim, a objetividade sempre fora do alcance do
pesquisador. Nesse sentido, Pierre Verger se queixava muito da confiabilidade das
informações obtidas através de entrevistas, seguindo uma lógica parecida à de Bourdieu. Para
Verger, a entrevista, por ser um artifício, traz resultados que são suspeitos em duas maneiras:
28
CLIFFORD, James, op. cit.
29
BOURDIEU, Pierre. Afterword. In: RABINOW, Paul, Reflections on Fieldwork in Morocco. Berkeley:
University of California Press, pp. 163-67, 1977.
18
Naquele dia, Dona Zinha também me ensinou que, “[Quando a gente] passa a
sabedoria, precisa ser para uma pessoa... de confiança, você precisa estudar aquela pessoa,
para ver como ela é por dentro”. Em outra ocasião, ela ligou o problema da pergunta com o do
processo de se pesquisar sobre o candomblé, de uma forma muito explícita:
Sempre lembrei de suas palavras, mas só ao longo do tempo percebi que sua
importância real ultrapassava a relação entre o terreiro e o pesquisador, sendo esses conceitos
30
Tradução minha.
31
VERGER, entrevistado por Gautrand, 1993, p. 31, apud COHEN, Peter. Pierre Fatumbi Verger as social
scientist. Cahiers du Brésil Contemporain, 38-39, pp. 127-151, 1999.
32
Entrevista realizada em 06 de junho de 1998.
19
os fios condutores na transmissão do saber dentro do próprio candomblé. Com estas poucas
palavras, Dona Zinha tinha assinalado dois conceitos fundamentais para a compreensão das
percepções sobre o processo de pesquisa. Primeiro, uma grande parte do saber religioso é
guardada em segredo e transmitida pelos mais velhos para os mais novos aos poucos.
Segundo, há uma forte hierarquia religiosa, dentro da qual a posse do saber ritual se traduz em
poder. Por isso, perguntar é visto, muitas vezes, como uma falta de respeito para os limites do
segredo, evidenciando também pouca educação em termos da boa conduta perante os mais
velhos.
34
Na realização das entrevistas , eu partia de um roteiro de perguntas básicas mas
deixava que a pessoa levasse a conversa na direção que queria, para mostrar respeito para os
limites do segredo, e para que elas pudessem levantar assuntos importantes para elas. Assim,
evitei perguntas que comunicassem a resposta “correta”, ou seja, a que eu esperava ouvir. Por
outro lado, este tipo de entrevista aberta apresentava um novo desafio, pois freqüentemente
33
Entrevista realizada em 23 de maio de 1999.
34
Tabelas dos terreiros visitados, informações sobre as pessoas entrevistadas e um roteiro das entrevistas
encontram-se nos Apêndices. Cabe mencionar que algumas pessoas não queriam que usasse seu nome
verdadeiro, enquanto outros não se incomodavam que seu nome fosse usado, mas não queria que colocasse o
20
acabava focalizando questões que tinham pouco a ver com meu objeto de pesquisa. Quando a
pessoa entrevistada tinha pouca escolaridade a técnica da entrevista trouxe outro desafio. Seja
pela maneira que eu, com sotaque de estrangeira, construía minhas frases, ou pelo fato da
pessoa ser inexperiente na “cultura da entrevista”, as minhas perguntas frequentemente
resultavam numa falta de diálogo, a qual intensificou pelo fato de essas pessoas geralmente
terem pouco contato com a etnografia sobre o candomblé, pois estavam na posição de
responder a perguntas sobre um assunto que, apesar de ser relevante para minha pesquisa, de
fato não era para elas. Desta forma, a grande maioria das entrevistas que realizei formalmente,
ou seja, as conversas que foram gravadas e transcritas 35, foram com pessoas que tinham pelo
menos o primeiro grau completo, e desse grupo, mais que a metade tinha terminado também o
segundo grau. Um número significativo das pessoas entrevistadas tinham um nível superior
de estudos.
nome do seu terreiro. Dessa forma, alguns dos nomes citados no texto são fictícios, enquanto outros são
verdadeiros, segundo a preferência da pessoa.
35
Vale a pena observar que na transcrição das entrevistas, optei por preservar o estilo narrativo das pessoas,
acrescentando pontuação, mas editando apenas algumas repetições que surgem naturalmente em depoimentos
orais mas que são desnecessárias na escrita. De forma igual, na citação de fontes históricas, optei por não
atualizar a ortografia da época.
21
1
O QUADRO EPISTEMOLÓGICO:
A TRANSMISSÃO DO SABER E O SEGREDO
36
Ver, entre outros, Elbein dos Santos, op. cit.; OLIVEIRA, Maria Inés Cortes de, O liberto: seu mundo e os
outros. Salvador: Corrupio, 1988; VERGER, Pierre, Os libertos: sete caminhos na liberdade de escravos da
Bahia no século XIX. Salvador: Corrupio, 1992.
37
Seguindo a literatura antropológica brasileira, os termos ingleses disembodied, embodied e embodiment serão
mantidos, por não haver termos no português que comuniquem o sentido adequado. Uma possibilidade seria
desincorporado, incorporado e incorporação, mas, no contexto do candomblé, isto pode ser confundido com a
incorporação do orixá. Ao examinar a importância do conceito de embodiment para a antropologia, Csordas
(1990) analisa a ideía da percepção proposta pelo fenomenologista Maurice Merleau-Ponty, e a noção de
prática, elaborada pelo sociólogo Pierre Bourdieu.
38
SONTAG, Susan, Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Editora Arbor, 1983.
22
Outra preocupação com os discursos escrito e visual sobre o candomblé é a de que eles
transgridem os espaços discursivos de um corpo secreto de conhecimento, cuja circulação é
restrita em vários níveis e que é às vezes chamado de “fundamento”, às vezes de “segredo”. O
argumento usado aqui é que o controle sobre o acesso ao segredo está relacionado a três
fatores: a hierarquia interna formal, a concorrência interna pelo poder e o contexto social
externo. A última destas faces do segredo talvez seja mais intensa no caso da fotografia,
precisamente porque, sendo uma forma visual de discurso, ela pode ultrapassar o raciocínio
verbal/analítico, provocando reações negativas quando a foto é vista por um espectador alheio
ao culto. Isso aconteceu com as fotografias feitas por José Medeiros e publicadas pela revista
O Cruzeiro em 15 de setembro de 1951 na reportagem intitulada “As Noivas dos Deuses
Sanguinários”, com texto de Arlindo Silva, que descreve os rituais de iniciação. O texto veio
acompanhado por dezenas de fotos que focalizam o derramamento de sangue animal sobre o
corpo humano. Como veremos mais adiante neste capítulo, a publicação dessas imagens foi
percebida nos terreiros como incentivando o preconceito contra o candomblé.
O caso das fotos publicadas em O Cruzeiro ilustra que o segredo é prejudicado não
apenas pela mera existência de formas escritas ou visuais de per se, nem ainda pelo fato de
estas conterem, e contarem, conhecimento considerado secreto, mas pela maneira como este
discurso circula. Não é simplesmente o fato de certa informação ter sido escrita ou
fotografada, mas o fato de o terreiro perder o controle sobre quem tem acesso a ela. O
problema da perda de controle é intensificado quando a informação entra no âmbito público
através de publicação.
23
OS ENTRELUGARES DA ORALIDADE:
USOS ÊMICOS DA ESCRITA E DA FOTOGRAFIA
Talvez seja desnecessário dizer que o discurso etnográfico sobre o candomblé, tanto
escrito quanto visual, é uma forma narrativa específica, entre muitas outras que existem, nós
em uma rede, no dizer de Foucault. Menciono isto aqui, entretanto, para destacar um ponto
importante: as percepções dos textos etnográficos e da fotografia etnográfica, nos terreiros,
parecem estar relacionadas com, e informadas por, outras práticas discursivas, êmicas e mais
antigas, envolvendo a escrita e as imagens fotográficas. Tanto a escrita como a fotografia têm
usos no candomblé que são visíveis e publicamente reconhecidos pelos terreiros, porém pouco
estudados por pesquisadores. E ambos os gêneros discursivos têm seus usos privados, que são
velados em segredo.
Falar em usos antigos da escrita nos terreiros pode soar um pouco estranho, pois,
como vimos no capítulo anterior, o processo de adquirir saber religioso, no candomblé é
compreendido mais como um processo multissensorial do que analítico-verbal. Nos estudos
sobre o candomblé, a idéia segundo a qual o saber religioso é preservado na memória coletiva
dos terreiros e transmitida oralmente (ou através de aprendizagem experiencial), dos mais
velhos para os mais novos, tem sido paradigmática. Apesar de a maioria dos estudos mais
39
antigos fazer referência ao uso da escrita nos terreiros, este assunto não foi abordado em
detalhe. É curioso observar que a tradição oral tenha permanecido como um conceito
onisciente, mas raramente explicitado, até os anos 70, quando começa a ser abordado
diretamente. Num artigo sobre a aprendizagem do conhecimento do Ifá e das folhas entre os
iorubá na África, Verger (1972, p. 5, tradução minha) sustentou que “um ensinamento
39
RODRIGUES, Nina, Os africanos no Brasil. 7a ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982
[1906,1932]; _______. O animismo fetichista dos negros bahianos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
Bibliotheca de Divulgação Scientífica, vol II, 1935 [1900]; QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco – Editora Massangana. Série Abolição, 20, 1938[1917]; PIERSON, Donald,
Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato racial, São Paulo: Companhia Editora Nacional, Brasiliana vol.
241, 1971; LANDES, Ruth, A Cidade das Mulheres, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002; CARNEIRO, Edison,
Candombles da Bahia, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991a.
24
aprendido através de um livro... é sem valor na civilização oral, pois falta um elemento
essencial: a força da palavra pronunciada”, enquanto Juana Elbein (1975, p. 51), concordando,
apontava para isso como o motivo para a “inexistência de uma escrita de origem nagô” .
40
Ver Clifford e Marcus op. cit., para uma análise da relação da visão social da antropologia com o projeto da
colonização européia.
41
Ver Lévi-Strauss (1955 e 1963); Derrida, 1976; e Foucault, 1970, entre outros, para perspectivas interessantes
sobre o assunto.
42
FABIAN, Johannes. Time and the other: how anthropology makes its object. New York: Columbia
University Press, 1983.
43
LANDES, op. cit., p. 213)
25
filha na escrita, mostrando para a pesquisadora os cadernos nos quais a menina “tomara nota
de muitos cânticos de candomblé”.
Na narrativa de Landes, Sabina é quase a única pessoa dos terreiros a ser representada
como alguém que utiliza a escrita nos rituais. Sabina também é retratada como não-
tradicional, ocidentalizada, e com muita pouca credibilidade entre os grandes nomes do povo-
de-santo: Mãe Menininha a ridiculariza pelo fato de ela não ter sido “feita”, e Martiniano do
Bomfim a acusa de simular o transe. A própria Landes não esconde que considera Sabina uma
interesseira com afetações burguesas, criticando-a por andar nas ruas vestidas em roupas da
moda corrente, em vez de utilizar as saias tradicionais dos terreiros. De certa forma, Sabina
torna-se a vilã de Cidade das Mulheres, e a escrita, por ser associada exclusivamente a ela,
acaba sendo vinculada também a suas outras características duvidosas: a perda da
autenticidade africana e a degradação ritual, simbolizadas pelas práticas ligadas aos caboclos,
a ambição, e o charlatanismo.
44
Esta série de artigos, publicada em O Estado da Bahia em 1936, será analisada no Capítulo 3.
26
da escrita nos terreiros, diz ele, acaba apagando a importância da escrita, em prol de enfatizar
a oralidade como o único meio para a transmissão do saber religioso 45. O autor (2002, p. 88)
ainda sugere que tal perspectiva “parece vir de fora para dentro, no sentido de que, para o
povo-de-santo, qualquer recurso é válido para ampliar o conhecimento do universo mágico-
religioso, mesmo que se manifestem contrariamente a tais atitudes”. Contudo, é importante
distinguir entre, por um lado, os usos da escrita que são considerados públicos nos terreiros
por não transgredirem o espaço discursivo do segredo, e, por outro lado, outros usos que são
guardados em silêncio.
Neste capítulo, faço uma tentativa de catalogar e classificar as maneiras, às vezes quase
imperceptíveis, nas quais a escrita e a fotografia coexistem com a oralidade no candomblé
contemporâneo, examinando também o registro histórico para a menção destas formas
discursivas. Sugiro que os usos “êmicos” da escrita e da fotografia partem de uma visão de
sua utilização como invocações dos poderes das deidades e outras entidades espirituais, um
conceito que parece ter um paralelo na percepção da utilidade do discurso etnográfico como
um meio para catalisar a proteção de pessoas e entidades de poder na sociedade baiana.
45
BRAGA, op. cit., p. 130
27
realização de pesquisas, ou a ainda outras, que, apesar de serem de raiz kêtu, de linhagens
também antigas, pelo fato de não remeteram à casa de Iá Nassô, foram ignoradas, ou quase
isso, após a consolidação do discurso etnográfico sobre o candomblé.
Vale mencionar que na minha releitura dos textos das primeiras décadas de pesquisa
sobre o candomblé, em busca das relações pessoais entre pesquisador e pesquisado, o próprio
estilo narrativo deste discurso foi um grande desafio. No final do século XIX e o início do
século XX, as narrativas antropológicas, no Brasil como em outras partes do mundo,
empregavam um estilo positivista, baseado nos gêneros narrativos das ciências físicas, muitas
vezes não constando no texto a identidade das pessoas que forneceram as informações ao
46
pesquisador . Desde a época de Nina Rodrigues, as pessoas entrevistadas pelos
pesquisadores raramente apareciam no texto, e quando houve uma referência específica, o
“informante” freqüentemente não foi identificado por nome ou pelo seu terreiro, sendo,
29
portanto, tido como representativa de candomblé como um todo, como se fosse uma entidade
homogênea, com uma única perspectiva doutrinária, aceita como dogma 47. O resultado deste
tipo de abordagem é que as opiniões e reações quanto ao processo da pesquisa por parte das
pessoas cujos depoimentos fornecem informações para a mesma quase não eram registradas
de uma maneira reconhecível, por não serem consideradas importantes as vozes dos ditos
“sujeitos etnográficos”.
46
Ver Clifford e Marcus (1986), para perspectivas sobre as estratégias narrativas do discurso etnográfico.
47
James Clifford (1986, 1988), que analisou bastante esta época do discurso etnográfico, comenta que este estilo
procurou apagar os aspectos subjetivos da relação entre o pesquisador e o objeto da pesquisa, para fortalecer a
suposta objetividade do trabalho.
30
4
PERCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS
LEITORES E ESCRITORES NOS TERREIROS
Este capítulo final servirá como complemento para a perspectiva histórica sobre o
discurso etnográfico que comecei no capítulo anterior. Aqui, examinarei perspectivas
contemporâneas. Mostrarei que, apesar das objeções oficiais à circulação do discurso escrito
e fotográfico sobre o candomblé, enquanto fontes de fundamentos de saber religioso, existe
também uma ambivalência, pois são cada vez mais presentes e, simultaneamente, contestadas,
no cotidiano dos terreiros. Ao analisar essa dinâmica, retomarei também algumas questões
levantadas na discussão sobre a hierarquia religiosa e o segredo, mostrando que há uma
diversidade de idéias nos terreiros sobre o que é que constitui, especificamente, o corpo
secreto do saber religioso, e em que medida a escrita e a fotografia são adequadas para
registrar o saber religioso. Tal heterogeneidade remete a um conjunto complexo de fatores:
diferenças de “nação”, de senioridade, do prestígio da casa, e da trajetória do indivíduo de
envolvimento no universo sócio-cultural dos terreiros, entre outros.
48
A minha discussão será limitada a livros e revistas comercialmente disponíveis (principalmente os da editora
Pallas, do Rio e a Minuano, de São Paulo), abrangendo também, a em medida menor, sites da Internet. Esse
recorte é relacionado a questões de distribuição e acesso. Sem dúvida, há uma outra produção textual sobre o
candomblé que é extremamente significativa, em termos de volume, na forma de teses e dissertações que não
chegam a ser publicadas. Entretanto, a circulação desses textos nos terreiros é extremamente limitada. Apenas
uma das pessoas que entrevistei mencionou ter tido a oportunidade de ler uma tese não-publicada. Acesso a
livros e revistas comercialmente publicados é muito mais fácil; entretanto, o preço de livros ainda limita este
acesso para muitas pessoas de candomblé. Os textos escritos por estudiosos tendem a ser caros, o que serve para
definir seu público. Por exemplo, Orixás, de Pierre Verger, é vendido por R$ 120,00. As fotografias são difíceis
de xerocar em preto e branco, e xerocar a cores sai tão caro como comprar o livro original. Por outro lado, há
outros livros, como Os Nagô e a Morte, que são mais baratos (R$ 45,00) mas ainda caro para a maioria das
pessoas. Textos escritos por religiosos, por outro lado, raramente custam mais de R$ 25, e podem ser xerocados
32
perspectiva dos leitores desses textos, também prestarei atenção à produção de textos por
religiosos, já que a produção de textos sugere um nível de engajamento como leitor, e também
porque as características desses textos podem ser interpretadas como indicadores da visão dos
seus autores em relação ao discurso sobre o candomblé.
por muito menos. De fato, fotocópias encadernadas parecem circular nos terreiros tão freqüentemente como
livros originais. Em termos da Internet, a possibilidade de utilizá-la para obter saber religioso está aumentando
cada vez mais, de acordo com a explosão de lugares para acessar a Internet na cidade, um fenômeno que tornou-
se significativo apenas no último ano desta pesquisa, quando a maioria das entrevistas já tinham sido realizadas e
eu estava na fase de elaboração. Entretanto, acredito que, até a conclusão desta pesquisa, ainda tenha sido uma
pequena minoria do povo-de-santo que tem acesso regular à Internet.
33
CONCLUSÃO
49
Estudos sobre o candomblé em São Paulo e no Rio de Janeiro, como os de Silva e
50
Capone sugerem que os sacerdotes do Sudeste consideram que a etnografia fornece
informações importantes para o processo de re-africanização ritual, tendo, assim, uma
relevância imediata para a prática religiosa. Contudo, o presente estudo mostra que no
contexto de Salvador a etnografia exerce um papel diferente. Para as pessoas que entrevistei,
ser consciente do discurso etnográfico, percebê-lo como valioso, raramente decorria de uma
idéia de que ele fosse útil para a sua praxe ritual. Foi comum, entretanto, a percepção de que a
etnografia preenche uma função importante como formador de opinião pública, servindo de
ponte no estabelecimento e no fortalecimento de laços entre os terreiros e a sociedade.
49
SILVA, Vagner Gonçalves, da, op. cit.
34
Essa ruptura entre a invisibilidade e a visibilidade social dos terreiros coincide com a
sua aproximação ao discurso etnográfico. Nesse processo, a etnografia, como mecanismo para
a legitimização do candomblé através da visibilidade social, exerceu uma função semelhante a
outras formas de produção cultural, tais como os romances de Jorge Amado e a obra de
Carybé, também importantes na construção da imagem pública dos terreiros. Neste processo,
o Opô Afonjá, devido aos laços com intelectuais e artistas (entre eles, Amado e Carybé)
consolidados na época de Mãe Senhora, foi particularmente favorecido. Após a morte de
Senhora em meados da década de 60, o Gantois, liderado então por Mãe Menininha, começou
a se firmar também nessa área, através de vínculos com músicos como Dorival Caymmi,
Maria Bethânia e Caetano Veloso. Contudo, a relação do Opô Afonjá com o discurso
etnográfico continua a ser única, através da produção textual de Mestre Didi e Mãe Stella, e
da realização anual do congresso reunindo sacerdotes e estudiosos, o Alaiandê Xirê.
50
CAPONE, Stefania, 1999b.
51
A Casa Branca, o Gantois, o Opô Afonjá, o Alaketu e o Bate Folha foram tombados pelo IPAC e pelo IPHAN;
enquanto o Pilão de Prata , o Terreiro de São Jorge e o Oxumaré são tombados pelo IPAC. Em 2004, Mestre
Didi foi homeageado durante uma semana de atividades que incluiram solenidades na Universidade Federal da
35
Paralelamente ao aumento da visibilidade social dos terreiros, houve também uma re-
52
configuração do espaço discursivo do segredo. Johnson , cujo trabalho de campo foi
realizado no Rio de Janeiro, considera que a entrada do candomblé na esfera pública eliminou
o segredo, deixando no seu lugar apenas o “secretismo”: um discurso sobre segredos que na
realidade não existem mais. Contudo, os depoimentos das pessoas entrevistadas neste estudo
sugerem que o conceito do segredo ainda continua a ser importante nos terreiros. Em
primeiro lugar, há o conceito de que o saber ritual, a priori, deveria ser restrito a poucas
pessoas e não divulgado livremente para qualquer um. Entretanto, ao longo do século XX,
houve uma abertura nas atitudes sociais em relação ao candomblé, a qual reduziu a
necessidade de se utilizar o segredo como mecanismo de autoproteção contra as autoridades.
Não obstante, a importância do segredo, no que tange às exigências da distribuição
hierárquica do saber dentro do terreiro, e a concorrência para o prestígio entre os terreiros,
continua. Nessa “corrida” interna, na qual o saber é percebido como significante do poder, a
relevância do segredo também continua.
Outra questão importante que surgiu através deste estudo é a necessidade de re-avaliar
o pensamento acadêmico em relação à oralidade nos terreiros. Ao analisar as percepções de
pessoas iniciadas sobre a aquisição do saber religioso do candomblé, mostrei que a
transmissão do saber nos terreiros pode ser mais bem descrito como uma tradição
multissensorial e experiencial [embodied] do que oral. Levantei outro questionamento em
relação à “tradição oral”, demonstrando que há uma variedade de usos da escrita e da
fotografia nos terreiros. Apesar da escassez de registros dessas práticas na literatura
etnográfica, a pouca evidência que existe sugere que a escrita, de uma forma ou outra, tem
sido utilizada desde o século XIX. Dessa forma, considero importante a observação de Júlio
Braga, de que a coexistência da oralidade com práticas envolvendo a escrita deveria ser
compreendida não como uma deturpação da tradição afro-brasileira, mas sim como um
importante instrumento de suporte que constitui uma parte integral daquela tradição.53 Assim,
a análise da aproximação dos terreiros ao discurso etnográfico, como uma estratégia para a
autoproteção no aiyê, deveria levar em conta a função semelhante de certas práticas
discursivas nos terreiros, nas quais a escrita é utilizada para chamar a proteção de entidades
Bahia e na Câmara de Vereadores da Cidade do Salvador, e uma mãe-de-santo de Cachoeira, Gaiaku Luisa,
também foi homenageada. Em maio de 2005, Mãe Stella recebeu o título de Doutora Honoris Causa.
52
JOHNSON, Paul Christopher. Secrets, gossip, and gods: the transformation of Brazilian candomblé. New
York e London: Oxford University Press, 2002.
53
Júlio Braga, informação verbal, em 10 de maio de 2002.
36
do orun. Isto não é sugerir que a etnografia seja uma réplica contemporânea da invocação:
simplesmente quero observar que tal uso do discurso etnográfico não deveria ser pensado
como apenas uma intrusão ocidental na “pureza” oral das práticas discursivas africanas, e sim
como uma re-configuração de práticas já existentes.
54
SANTOS, Deoscóredes dos, História de um terreiro nagô. São Paulo: Cartago & Forte Editoras, 1994 [1962].
55
RODRIGUES, Nina, 1935; CARNEIRO, Edison, Religiões negras; negros bantos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991b [1936].
56
PRANDI, Reginaldo. Introdução: cadernos de oluô. In: Rocha, Agenor, 1998. Caminhos de odu. Rio de
Janeiro: Pallas, pp. 5-16, 1998; REBOUÇAS, Diógenes. Pai Agenor. Salvador: Corrupio, 1998.
57
DANTAS, Beatriz, op. cit.; SERRA, Ordep, op. cit.
58
PIERSON, Donald, op. cit.; LANDES, Ruth, op. cit.
37
59
evidências do século XIX, Serra (op. cit.) e Parés , a partir de perspectivas diferentes,
sugerem que o prestígio atribuído à “autenticidade africana” nos terreiros, longe de ter sido
uma idéia introduzida pelos estudiosos, parece ser uma categoria êmica também. Neste
contexto, a visão “nagocêntrica” dos estudiosos, com relação a essa autenticidade, deveria ter
sido aceita com braços abertos pelos terreiros nagôs, pois reforçava suas próprias
reivindicações de prestígio em relação aos terreiros de outras nações, também ajudando-os a
se legitimizarem perante a sociedade externa.
Contudo, a partir da década de 30, o Opô Afonjá começou a ocupar o lugar anterior do
Gantois, como o terreiro nagô mais freqüentado por estudiosos do candomblé. Tal
deslocamento foi estimulado por Martiniano e Aninha, que retrataram as práticas das outras
casas nagôs como menos autênticas. A ascensão preferencial do Opô Afonjá na etnografia
demonstra que a questão da concorrência interna no candomblé se estendia para além das
relações entre as nações diferentes, sendo influente também nas reivindicações sobre o
prestígio entre os próprios terreiros nagôs. Nesse processo, Martiniano do Bomfim, influente
entre os estudiosos dos anos 30 por sua antiga associação com Nina Rodrigues e Manuel
Querino, parece ter exercido um papel importante em deslocar a atenção etnográfica do
Gantois, re-direcionando-a para o Opô Afonjá.
Tais usos do discurso etnográfico pelos terreiros sugerem a relevância, para os estudos
de candomblé, da visão de Foucault da imbricação entre o saber e o poder, e da utilidade do
discurso como mecanismo para o exercício do poder. Hoje em dia, uma dinâmica semelhante
de concorrência entre os terreiros evidencia-se através da polêmica contemporânea sobre a
produção de textos “pára-etnográficos” por sacerdotes. A controvérsia concentra-se em várias
questões relacionadas ao segredo e à distribuição hierárquica do saber, mas, nas entrelinhas
das discussões, percebe-se também os traços do conflito entre os terreiros “tradicionais”, cujo
prestígio é respaldado pela literatura etnográfica, e os terreiros periféricos, que buscam
legitimizar a autoridade religiosa através da produção textual.
59
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baiano, no Engenho Velho de Brotas, hoje fechado.
www.oxeina.no.sapo.pt: de uma loja de objetos rituais localizado em Lisboa, vinculada ao Terreiro do Pilão de
Prata (Boca do Rio).
www.ritosdeangola.com.br: de uma entidade que promove o candomblé de angola, localizado no Sul do Brasil.
www.sobresites.com/candomblé: página de links para sites sobre o candomblé, organizada pela paulista Jurema
Oliveira (“Jurema d’Oxum”).
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www.sandraepega.com.br: criado pela ialorixá paulista Sandra Medeiros, proponente do uso de textos
etnográficos na reafricanização do candomblé, citada nas etnografias de Vagner Gonçalves da Silva.
www.orixás.com.br. Criado por dois babalorixás, localizados em Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
www.unig2001.com.br/~togun/altair.htm. Site do autor carioca Altair t’Ogun (Altair Bento de Oliveira) com
vários livros publicados pela Pallas.
www.axeloloroke.hpg.ig.com.br. Site do terreiro Axé Olorioké Oba Orun Oloxunta, da nação efon, localizado
em São Paulo.
www4.sul.com.br/orixá. “Candomblé: uma religião sem mistérios a serviço do povo,” criado pelo babalorixá
paranense (?) Fernando Oliveira Perna.
www.casadeoya.com.br. Site do babalorixá paulista Douglas de Oyá. Inclui opção para consultas online.
http://geocities.yahoo.com.br/matrizafro. Site da ONG gaúcho Egbe Orun Aiyé, composto por pessoas do
candomblé em Rio Grande do Sul.
http://aulobarretti.sites.uol.com.br. Site sobre a história dos terreiros de babá egun, criado por Aulo Barretti,
babalorixá carioca.
www.jornalafrodobrasil.com.br. Jornal com sede em São Paulo, que publica artigos sobre terreiros em várias
partes do Brasil.
(por data)
02/06/1936 “O culto de mãe-dagua Aganjú filho de Oha (sic) Talá e Oduduá—o syncretismo culto de
Zemanja (sic)”
07/10/1936 2 artigos: 1) “A estranha maneira de um “pae de santo” curar uma hysterica: a prisão do
“babalorixá” e do seu secretário” e 2) “Abafados os candomblés de Miuda e Julia.”
20/10/1936 “Noticia do 2o Congresso Afro-Brasileiro” (por Aydano de Coutos Ferraz, fala de Martiniano
do Bomfim)
06/11/1936 “O Africanismo vae-se tornando um novo romantismo no Brasil: entrevista com Mario de
Andrade”
01/12/1936 “2o Congresso Afro-Brasileiro virá a Bahia, tomar parte no Congresso o professor dr. Arthur
Ramos”
12/12/1936 “Uma noite africana na radio comercial: o pae-de-santo João da Pedra Preta, com a sua
orchestra de negros, executará músicas religiosas dos candomblés.”
17/12/1936 “A noite africana da Radio Comercial da Bahia: o sucesso inigualavel alcançado pelos canticos
religiosos do pae de santo João da Pedra Preta”
05/01/1938 “Era a mais popular ‘mãe de santo’da Bahia.” (sobre a morte de Aninha)
Jornal A Tarde:
20/05/1920 “O candomblé de Procópio”
22/05/1920 “No mundo do feitiço: o celleiro da bruxaria”
29/05/1920 “Ogunjá em juizo”
21/06/1940 “Varejada a igreja negra e presos os barbaros sacerdotes: Amoreiras, em Itaparica, era um reduto
de fetichismo.”
4/11/1943 Nota sobre a morte de Martiniano do Bomfim