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Frank Pavan de Souza

Bianca Gomes da Silva Muylaert Monteiro de Castro


Luiz Victor Monteiro Alves

Organizadores

Direito e justiça
perspectivas contemporâneas
sobre desigualdade no Brasil

MULTICULTURAL

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Desigualdade social e ineficácia da justiça criminal brasileira
Vivian Menezes Naked1
Bianca Gomes da Silva Muylaert Monteiro de Castro2

Considerações iniciais

A desigualdade social é um problema que afeta grande parte da população bra-


sileira. Um país desigual, onde, além dos elevados níveis de pobreza e desigualda-
de na distribuição de renda, observa-se também um sistema penal seletivo e ine-
ficaz, causando um problema sistêmico e urgente no Brasil. O presente trabalho
visa analisar como o conflito de classes se estendeu ao Estado e à aplicação do Di-
reito Penal de modo a determinar a reprodução de desigualdades. Assim, busca-se

1. Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes.


2. Advogada, Socióloga, Pós-graduada em Direito Público e Professora Universitária.

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identificar a relação entre os atributos raciais e sociais e a ineficácia do Sistema de
Justiça Criminal na aplicação da lei, bem como compreender o aumento da popu-
lação carcerária negra e pobre no Brasil como possível resultado da seletividade
da Justiça Criminal Brasileira. Objetiva-se, ainda, reconhecer o fenômeno jurídico
relacionado às questões sociais e filosóficas em torno do racismo e do principio da
igualdade como garantidor do amplo acesso à justiça.

Segundo Adorno (1996), a exclusão social é reforçada pelo preconceito e pela


estigmatização, pois, no senso comum, cidadãos negros e pobres são considera-
dos potenciais perturbadores da ordem social, apesar de já existirem estudos que
questionam a suposta participação desse público na criminalidade. Sendo assim,
é possível perceber que, se o crime não é privilégio da população negra e pobre, a
punição parece ser.

Para Batista (2007), o sistema penal, enquanto grupo de instituições – policial,


judiciária e penitenciária – que possui a incumbência de realizar o Direito Penal,
conforme as regras jurídicas vigentes, pretende ser um sistema garantidor de uma
ordem social justa, apresentando-se, assim, como igualitário, justo e comprometi-
do com a dignidade da pessoa humana.

Ocorre que o Estado Democrático de Direito, que está postulado em princípios


básicos, como a dignidade da pessoa humana, não cumpre com suas promessas.
Sob diversos aspectos, pode ser observada a negação da dignidade por questões
de classe econômica.

Para esta análise, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, adotando-se como


marco teórico do trabalho o estudo da criminologia crítica. Valeu-se também do
método hipotético-dedutivo, visto que o mesmo procura confirmar os problemas
existentes e através dele buscar uma solução.

Verifica-se que o aumento da população carcerária negra e pobre no Brasil é


resultado de um sistema seletivo, que exclui determinados indivíduos, os mais
vulneráveis aos olhos do Direito Penal, sendo estes perseguidos por um sistema
opressor, no qual são encarcerados e esquecidos pelo Estado. Nota-se, ainda, uma
necessidade maior de investimento do Estado nas áreas sociais e de políticas cri-
minais para, assim, alcançar uma sociedade mais igualitária e um sistema criminal
mais justo e eficiente.

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Direito e justiça: perspectivas contemporâneas sobre desigualdade no Brasil

O nascimento da criminologia

Molina (2002) conceitua a criminologia como uma ciência interdiscipli-


nar, social e humana, que estuda não só o crime, como também as circunstân-
cias que envolvem a prática delitiva, como o delinquente, a vítima e o controle
social, constituindo uma ciência empírica.

Smanio (1998) narra que, por volta do século XIX, ocorreu uma mudança
radical no objeto de estudo da criminologia, dedicando-se não mais à com-
preensão do sistema legal, mas sim a entender o infrator e as causas que ori-
ginavam o delito. O autor afirmava, ainda, que, no fim do século XIX, a ideia
sociológica de Engels e Marx também influenciou no estudo da criminologia,
ao entender que os problemas sociais surgem em decorrência da miséria, da
cobiça e da ambição.

Mesmo sendo respeitável, tal ideologia de Engels e Marx não veio a pros-
perar, pois estudos começaram a apontar que não só a classe social mais baixa
comete delitos. Nesse caso, entende o referido autor que a ideia de uma socie-
dade intimamente criminosa veio a reconstruir-se com a teoria do Colarinho
Branco, que aboliu a tradicional visão de que crime seria um ato exclusivo
das classes mais baixas, tornando, assim, evidente que para o progresso da
criminologia seria necessária à ampliação de variáveis visando verificar as
causas do crime. O autor ressalta, ainda, o fato de que não eram apenas os
desempregados, miseráveis e membros de famílias desfeitas os causadores de
crimes, uma vez que indivíduos de posição financeira e social elevada tam-
bém cometiam crimes de proporções danosas a toda a sociedade, devendo o
domínio sociológico ser ampliado para que fosse feita uma correta análise do
fenômeno criminológico.

A criminologia crítica surgiu no século XX para responder dúvidas que


não eram objetos de estudo da criminologia clássica, por exemplo, questiona-
mentos a respeito dos reais destinatários do controle punitivo e das normas
penais eram deixados de lado.

Smanio (1998) esclarece que, ao invés de questionar as causas do crime que


foi praticado, deveria ser indagado o porquê de determinadas pessoas serem
tratadas como criminosas e quais as consequências decorrentes desse tratamen-
to. Assim, buscou-se perguntar quais os mecanismos ou critérios de seleção das
autoridades de controle social em detrimento do questionamento acerca dos

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motivos do criminoso. Na ciência criminológica, as normas penais são vistas


como características de domínio de parte da sociedade com os demais.

Por fim, a teoria do labeling approach parte do princípio de que o com-


portamento criminoso é produto da reação da sociedade para com o agente
do crime (SMANIO, 1998). De acordo com essa teoria, o indivíduo apenas
reage à estigmatização sofrida. Nesse sentido, o labeling approach direciona
para o etiquetamento social dos indivíduos como a causa desencadeadora da
criminalidade.

Verifica-se, assim, que a criminologia consiste em uma ciência do “ser”,


empírica, direcionada à experiência e à observação, objetivando analisar o
crime, a vítima e o controle social, bem como a personalidade do indivíduo.

Objetos das criminologias

Para Schecaira (2012, p. 46), “a criminologia é o estudo do delito, delin-


quente, da vítima e do controle social do delito, lançando assim, mão de um
objeto empírico e interdisciplinar”. O autor entende que a criminologia aborda
temas que se relacionam à prevenção do delito e ações voltadas para a cons-
cientização do indivíduo, caminhando ao encontro de estratégias de ressocia-
lização, procurando instruir a sociedade para que receba o infrator novamente
em seu meio.

Segundo Pimentel (2007), o conceito de delito não é o mesmo para a Cri-


minologia e para o Direito Penal. Neste, o delito é uma ação ou omissão típica,
ilícita ou culpável. Assim, observa-se o delito centrado no comportamento do
indivíduo, sendo a manifestação da conduta por meio de uma ação ou omis-
são. Ocorre que, para a criminologia, o delito deve ser encarado como um
problema social. Dessa forma, verifica-se que, apesar de ambos terem como
objetivo o estudo do crime, diferenciam-se em relação ao fenômeno criminal.

Sobre delito, entende-se, então, que a ciência criminológica envolve toda


uma atividade investigativa, observando suas causas e condutas antissociais,
sendo o conceito de delito relativo para a criminologia, que o tem como um
problema social.

Após estudar o delito, é a figura do criminoso que ocupa importante lu-


gar na análise da criminologia. É importante dizer que, ao longo do avanço

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no estudo da criminologia, a ideia a respeito do infrator sofreu várias modi-


ficações, junto com a noção de crime.

Baratta (2002) explica que, para a Escola Clássica, o delinquente era o in-
divíduo que, no uso de seu livre-arbítrio, optava por delinquir, rompendo, as-
sim, com a sociedade da época. Porém, durante o século XX, quando começa
a surgir a criminologia crítica, ocorre uma mudança na concepção da figura
do criminoso, pois o seu objeto de estudo desprende-se do delinquente, rom-
pendo com o modelo etiológico positivista.

Não se pode esquecer que o marxismo entendia o criminoso como a pró-


pria vítima das estruturas econômicas, sendo a própria sociedade culpável por
tal estigmatização. Marx não tinha sua visão voltada para o jurídico e sim
para o modo de produção capitalista da época. Assim, entende o autor que, de
acordo com a criminologia crítica, a definição de criminoso seria um status
atribuído a alguém em razão do estigma socialmente desenvolvido para aque-
les que adentram a criminalidade (BARATTA, 2002).

Fato é que o criminoso, assim como qualquer outro indivíduo, tem vonta-
des e desejos próprios, como vontade de se superar, de ter sua própria opinião
e construir uma história. É uma pessoa como qualquer outra, contudo, sujeita
às influências do próprio meio em que vive.

Da mesma forma que ocorreram mudanças na definição de delito e de


criminoso, também houve mudanças na concepção de vítima ao longo da his-
tória. Molina (2002) explica que isso ocorreu porque o renascimento do poder
punitivo, centralizado entre a Igreja Católica e o Estado entre o século XVIII e
XIX, gerou a expropriação do conflito da vítima em favor do Estado.

O Direito Penal já nasceu com o objetivo de neutralizar a vítima, uma vez


que a vítima sempre representou um ideal de vingança, assim, para que a lei
fosse aplicada com imparcialidade e justiça fosse feita, a vítima não possuía
expressão no Direito Penal.

Assim, entende Molina (2002) que não é viável que a vítima participe de
forma direta na aplicação da lei ao criminoso, uma vez que a vítima tende a ter
uma natural concepção do delito, transformando a ideia de justiça em repre-
sália contra a pessoa do criminoso. Para o autor, a resposta ao delito deve ser
imparcial, desapaixonada e pública, para que assim ocorra a resolução institu-
cionalizada do conflito.

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Para Molina (2002), o controle social é entendido como um conjunto de


instituições, sanções sociais e estratégias, que pretendem promover e garantir
a submissão dos indivíduos às normas comunitárias. Entende o autor que,
cada vez mais, fala-se acerca da criminalidade e dos fatores que levam o indi-
víduo a cometer crimes, motivo pelo qual a criminologia crítica centralizou
suas atenções não só na figura do crime, do criminoso e da vítima, mas pas-
sou também a estudar os mecanismos utilizados pela sociedade com o fim de
controlar a criminalidade.

A ideia de controle social na criminologia é dividida em duas esferas, o


controle social informal e o controle social formal. O controle social informal
é entendido como aquele exercido no contexto familiar, profissional, educa-
cional e até mesmo religioso. A opinião pública também é parte dessa forma
de controle, uma vez que o indivíduo é fortemente influenciado pelos meios
de comunicação, como a mídia. É um controle sutil e não possui nenhuma
pena, ocorrendo, no entanto, a criação dos estereótipos e estigmas, acompa-
nhando o indivíduo desde a infância, tornando-se difícil se desvencilhar do
rótulo imputado (MOLINA, 2002).

Para Becker (2008), as regras sociais acabam por impor certos padrões de
conduta, dos quais alguns são considerados corretos e outros como desvian-
tes. Assim, o desprezo social ocupa um lugar de pena formal.

Já o controle formal entra em atuação a partir do momento em que o con-


trole informal falha. Essa forma de controle é atribuída às autoridades estatais,
como juízes, Ministério Público e a polícia, que atuam de modo coercitivo e
estigmatizante. Assim, uma vez que a escolha das condutas e dos indivíduos a
serem punidos é feita pelas autoridades estatais, depois da criação de rótulos
e estigmas, leva-se à seletividade operativa que envolve nosso sistema penal.

Assim, entende-se que, uma vez rotulado, o indivíduo passa a ser margi-
nalizado, culminando em sua posterior classificação como um ser potencial-
mente perigoso e em seu tratamento como tal.

Criminalização primária, secundária e terciária

Entende Zaffaroni (2011, p. 43) que “criminalização primária é o ato e o


efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição

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de certas pessoas. Trata-se de um ato formal fundamentalmente programá-


tico”, ou seja, refere-se à norma penal que deveria alcançar todas as pessoas
indistintamente, tendo em vista que seu objetivo é promover a segurança ju-
rídica de bens, interesses e valores socialmente relevantes, sem levar em conta
as características étnicas, geográficas e sociais do transgressor, acabando por
incorrer em uma seleção prévia dos indivíduos que serão alvos da atuação
estigmatizante e violenta do poder punitivo.

A legislação brasileira é rica em demonstrações da seletividade da norma


penal. Baratta (2002) cita como exemplo da criminalização primária o fato
do crime de roubo ser punido mais severamente do que o de sonegação fis-
cal, levando-nos à conclusão de que para a sociedade brasileira é mais grave
subtrair uma carteira com grave ameaça, mesmo que isso só cause danos ma-
teriais à pessoa, do que sonegar milhões de impostos, o que pode ceifar várias
vidas, tendo em vista tratar-se de subtração de recursos que seriam aplicados
em politicas públicas. Assim, o diferencial da mensuração da pena é definido
pela figura do agente transgressor da lei: pobre rouba; rico sonega.

Uma vez estabelecidas as condutas típicas e suas punições no processo de


criminalização primária, surge o processo secundário, que é aquele que ocor-
re no momento da aplicação da lei. Para Zaffaroni (2011), a criminalização
secundária se dá por meio das ações e reações no momento de aplicação da
norma dos agentes estatais relacionados ao crime (a Polícia, o Ministério Pú-
blico e o Judiciário).

Na criminalização secundária, ocorre a seleção dos indivíduos que se en-


caixam nos estereótipos criminais, sendo o etiquetamento prévio, o guia da
atuação policial e também judiciária. A criminalização secundária, tal como
a primária, pauta-se pelo foco da ação repressiva: os segmentos sociais mar-
ginalizados. Assim, grupos historicamente discriminados, por não serem de-
tentores de prestígio social, acabam sendo definidos como desviantes. Dessa
forma, atribui-se ao Estado o poder de moldar a personalidade do agente para
que este se adeque à conduta social dominante.

Na perspectiva de Araújo (2010), a criminalização terciária se inicia a partir


do momento em que o indivíduo é inserido no cárcere, que corresponde às con-
sequências negativas do contato do indivíduo com os agentes criminalizantes
(Ministério Público, Polícia e Judiciário), uma vez que se enfatizam as mudanças
que tal experiência pode provocar nele e em sua forma de encarar a sociedade.

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No processo terciário é que ocorre a introjeção definitiva do rótulo que foi


imputado ao indivíduo socialmente. Por meio da pena privativa de liberdade,
durante toda a execução penal, a “profecia” imposta pelos outros dois proces-
sos de criminalização é cumprida.

Assim, o sentido de ressocialização e a função educativa que deveria ter a


pena é excluída pela uniformização dos apenados, o que se assemelha a um
regime totalitário e não a um Estado Democrático de Direito.

Teorias da criminalidade e Labelling Aproach

A criminologia passou por muitas fases de pensamentos e estudos, para se


chegar à ideia que temos hoje de crime, criminoso, vítima e controle social.
Nesse sentido, fica nítido que ao decorrer da evolução social foram atribuí-
dos fatores exclusivamente relacionados ao indivíduo, tais quais raça, idade,
educação e posição social, como responsáveis pela tendência criminosa do
indivíduo.

Entre as várias teorias que foram desenvolvidas nesse período, destaca-se


a teoria do etiquetamento social (labelling approch) desenvolvida por Becker e
Goffman, por volta dos anos 1950 e 1960, buscando questionar o paradigma
funcional dominante no momento histórico, o etiológico.

A teoria do Labelling Aproach surgiu, primeiramente, nos Estados Unidos,


em decorrência das mudanças sofridas pelo Direito Penal. A maior figura do
Labelling Approach foi Becker, que entendeu a criminalidade como um fator
imposto pela sociedade, etiquetando previamente determinados indivíduos
como criminosos, e esses se viam obrigados a assumir tal papel. Em sua obra
“Outsiders”, lançada em 1963, reconhecida como obra principal da teoria do
etiquetamento, Becker define a teoria como um instrumento utilizado pelo
sistema penal para o exercício do controle social, estipulando o agente “des-
viante”. O autor percebeu, em sua pesquisa, que a ação coletiva é um fator
determinante para a apreciação do agente desviante.

Calhau (2009) usa como exemplo, a fim de explicar tal fenômeno, o persona-
gem Carlito Brigante, interpretado por Al Pacino em O Pagamento Final. Nesse
filme, Carlito é um traficante de drogas que consegue sua liberdade ao encontrar
uma falha na lei. Após sua saída, ele tenta dar um novo rumo à sua vida, porém,

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todos os seus ex-colegas de crime, a polícia e sua família continuam a rotular


Carlito de “criminoso”. Assim, uma linha tênue vai conduzindo Carlito até que o
mesmo resolve voltar para o crime. Esse exemplo descreve perfeitamente o que
ocorre com o indivíduo devido à teoria do etiquetamento social. Por mais que
essa não seja a vontade do indivíduo, a de seguir praticando delitos, em razão de
uma visão distorcida da sociedade, muitas vezes é inevitável.

Conforme visto anteriormente, a criminalização ocorre em diferentes eta-


pas, desde a criação da lei,até sua aplicação, com consequências na vida do
indivíduo. Assim, entende Calhau (2009) que o ser humano se transforma
naquilo que acham dele; se o indivíduo for pautado desde cedo como crimino-
so, será isso que ele irá se tornar. O próprio sistema penal, inclusive, trabalha
de forma a fazer com que o acusado, no fim, assuma o papel a ele imposto,
tornando-se o criminoso que a sociedade espera que ele seja em decorrência
a teoria do etiquetamento.

Com isso, pode-se concluir que o criminoso não é considerado como tal
pelo ato que pratica, mas sim pelo rótulo que lhe é colocado, sendo o indiví-
duo excluído da sociedade, estigmatizado e rejeitado.

A Criminalidade de Colarinho Branco e a Cifra Negra

Veras (2006) explica que a criminalidade de colarinho branco é uma teoria


advinda do sociólogo norte-americano Edwin Hardin Sutherland, por volta
de 1940, que, inconformado com a ideia de que somente a classe social mais
pobre cometia crimes, e que as políticas públicas eram aplicadas apenas a eles,
formulou a tese em questão. Esse pensamento caracteriza-se, então, por ser
uma modalidade de crimes praticados pelos indivíduos da alta sociedade.

Andrade (2003) afirma que, no primeiro momento de seu estudo, Su-


therland observou que a maioria das pesquisas criminológicas feitas naquela
época, nos Estados Unidos, seguia dados provindos da justiça criminal, que
eram as condenações impostas pelos próprios tribunais, as quais só poderiam
constatar que a criminalidade era ato da classe social mais baixa, uma vez que
a clientela dos órgãos estatais são os membros dessa classe financeira.

Para Sutherland (1999), com base nesses dados erroneamente introdu-


zidos à teoria dominante, o delito deve ser cominado à pobreza, sendo que

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muitas vezes pode estar ligado a outras condições pessoais e sociais, como,
por exemplo, o trabalho infantil, problemas no seio familiar, entre outros.

Veras (2010, p. 34) resume a caracterização do Crime de Colarinho Branco:


Para Sutherland, a escassa persecução penal a esses
crimes se devia principalmente a três fatores: 1) o sta-
tus de seus autores; 2) a tendência a apenas reprimir
tais condutas em outros ramos do direito; 3) a falta
de organização das vítimas contra o Crime de Cola-
rinho Branco.

Sutherland (1949) constata que os “White Colar Crimes” não possuem


muita diferença de outros crimes patrimoniais, como furto e roubo. No en-
tanto, o prejuízo do crime de colarinho branco é infinitamente maior, se com-
parado o furto de um bem a uma sonegação de milhões em tributos. Assim,
admira-se que os crimes patrimoniais como furto e roubo sejam perseguidos
com maior reprovação pelos órgãos estatais e pela sociedade.

A ideia de “Cifra Negra” surgiu também por meio dos estudos do soció-
logo Sutherland, associada à teoria de “White Color Crimes”. Segundo Veras
(2006), a cifra negra constitui a parcela de crimes que, apesar de ocorrerem
com frequência, não chegam ao conhecimento do Estado, caracterizando-se
por pequenos crimes corriqueiros praticados em rua, parques e favelas, o que
faz com cheguem ao conhecimento público. Da mesma forma são os crimes
de colarinho branco de grande relevância, que, devido aos prestígios dos in-
fratores, não chegam ao conhecimento da lei, uma vez que são cometidos den-
tro de grandes condomínios, onde a polícia não tem acesso, diferentemente
das comunidades carentes.

A existência da cifra negra e da criminalidade de colarinho branco deixa


visível que existe uma boa parcela da população que comete crimes, mas que
não é punida, pois não faz parte dos indivíduos perseguidos pelo sistema. As-
sim, reforça-se que o Direito Penal igualitário não passa de um mito.

A seletividade e a estigmatização do indivíduo

É de notório conhecimento que o ordenamento jurídico constitucional


brasileiro prevê, em seu artigo 5º, o princípio da igualdade, ao estabelecer que

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“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, garantin-
do aos brasileiros e aos estrangeiros os mesmos direitos e garantias.

Segundo as teorias que tentam legitimar o sistema penal, existem bens ju-
rídicos, tutelados pelo Direito, que devem ser universalmente protegidos; e
uma eventual conduta que viole esses bens, praticada por quem quer que seja,
deve ser igualmente punida.

Para Prado (2011), a Constituição Federal de 1988 busca assegurar os di-


reitos e garantias fundamentais inerentes aos indivíduos, sendo a responsável
por guiar a persecução penal, para que esta ocorra da melhor forma para que
se alcance a justiça. Já o Código Penal cuida de regular a boa relação entre os
indivíduos, impondo penalidades àqueles considerados desviantes.

Muito embora verificada a existência das garantias constitucionais, mais


precisamente, o princípio da igualdade de todos os indivíduos perante a apli-
cação da lei, verifica-se que, no Direito Penal, tal princípio não é observado
em sua totalidade, sendo seletivo desde a criação das leis até a sua aplicação,
rotulando determinadas condutas criminosas e expressando a perseguição es-
tatal a determinadas classes em detrimento de outras.

Assim, para que melhor se compreenda o referido instituto, é fundamental


analisar suas características, consequências, bem como a legitimidade da sele-
tividade de alguma forma pelo poder estatal.

Barroso (2009) afirma que, no sistema de hoje, é notório qual classe so-
cial vai realmente presa, aquela que sofre com o cárcere é o pobre, o negro, o
desempregado, dentre outras minorias esquecidas pela sociedade de alguma
forma, uma vez que é mais vantajoso economicamente para o órgão estatal
prender do que fazer qualquer política de reintegração social.

Corroborando com esse entendimento, Andrade (2003) afirma que o fato


da “clientela” do sistema penal ser constituída por pobres não significa que
esses tenham maior tendência a cometer crimes, mas, sim, que são os que têm
maiores chances de serem etiquetados como criminosos.

Para Batista (2007), a seletividade e a estigmatização do indivíduo são ca-


racterísticas definidas de sistemas penais como o brasileiro, sendo o sistema
penal um reflexo do sistema social, no qual a estigmatização e a marginaliza-
ção integram a função política em que o capital escraviza por meio da explo-
ração das pessoas mais humildes. Deve-se olhar com amplitude, para além da

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letra da lei, sem considerar a contradição que existe entre as linhas legais e o
real funcionamento das instituições que executam o sistema penal.

Dessa forma, pode-se perceber que o sistema penal brasileiro não tem a
estrutura necessária para seu pleno funcionamento, impossibilitando a atua-
ção síncrona de seus segmentos, evidenciando uma lacuna entre a legislação, o
discurso e a realidade, contribuindo para a prática de etiquetamento aplicada
às camadas mais vulneráveis da população, evidenciando a desigualdade so-
cial brasileira.

Considerações finais

O referido estudo buscou analisar a atuação do sistema criminal brasileiro,


demonstrando que, ao contrário do esperado, atua de forma seletiva, defi-
nindo previamente determinada classe social como mais propensa a cometer
crimes.

É importante ressaltar que a Constituição Federal de 1988 visa, essencial-


mente, à proteção dos direitos fundamentais e à limitação do poder de repri-
mir do Estado. Inclusive, em seu artigo 5º, encontra-se o princípio da isono-
mia, que assegura a igualdade de todos perante a lei.

Percebe-se, então, uma sociedade na qual a desigualdade social reina, além


de um sistema penal ineficaz, em que o Estado, que se diz defensor da so-
ciedade e dos direitos humanos, na verdade contribui para a propagação da
desigualdade.

O presente estudo dedicou-se a demonstrar a respeito do surgimento do


direito e os precedentes históricos do Direito Penal, que regula as relações
entre os indivíduos, pune os desvirtuados e assegura a paz. Sequencialmente,
abordou-se o instituto da criminologia crítica, área do Direito Penal que tem
como objetivos o estudo e a desmistificação das teorias do crime e da pena.
Foi possível verificar que o sistema penal é rotulador, pois atua etiquetando os
indivíduos e impactando em suas vidas.

Analisou-se a teoria do etiquetamento (Labelling Approch), que afirma que


o indivíduo vai agir de acordo com aquilo que lhe foi rotulado pela sociedade,
assumindo, assim, o papel que lhe é imposto, a fim de refletir sobre a seletivi-
dade do sistema penal brasileiro. Ainda objetivando cumprir tal finalidade, foi

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Direito e justiça: perspectivas contemporâneas sobre desigualdade no Brasil

feito um comparativo acerca dos crimes de colarinho branco e a dificuldade


do Estado em punir tais crimes, em razão do prestígio social da classe que
comete o referido crime. Foi realizada a análise, ainda, a respeito da cifra ne-
gra, que são crimes que ocorrem, porém ficam imunes e desconhecidos pelo
sistema repressivo penal.

Assim, compreendeu-se a existência de um mito do Direito Penal iguali-


tário, pois, na verdade, o sistema penal brasileiro é seletivo, o que faz com que
exista violação aos princípios do artigo 5° da Constituição Federal de 1988.
Por fim, buscou-se demonstrar como é realizada a criminalização, sendo ela
dividida em três etapas: a primária, que se constitui no ato de eleger o grupo
sobre o qual se aplica a lei; a secundária, que consiste em vigiar ainda mais esse
grupo de pessoas sendo perseguidas pelo Estado e pelo sistema criminal, por
exemplo, o policiamento ostensivo nas regiões mais pobres, como nas favelas;
na terceira etapa, verificamos como o indivíduo se comporta após receber o
rótulo de criminoso e como isso afeta a sua ressocialização, sendo certo que
existe grande influência psicológica em relação ao individuo criminalizado,
considerando que, ao assimilar essa cultura prisional, o indivíduo passa a acei-
tar o ambiente em que é inserido por se achar merecedor de tal castigo.

Assim, concluiu-se que o discurso de um Direito Penal pautado no princí-


pio da igualdade não passa de um mito, uma vez que o que se apresenta é um
sistema penal seletivo, que exclui determinados indivíduos mais vulneráveis
aos olhos do Direito Penal, em que apenas esses são perseguidos pelo sistema
opressor.

Dessa forma, chegou-se à conclusão de que modificar o sistema penal bra-


sileiro é uma condição para que não se reproduza mais um sistema punitivo
ineficaz e injusto, que promove a vingança aprendida nos tempos primórdios.
Não se pode negar que tal sistema, para atingir o objetivo desejado, deve ser
reformulado com urgência, devendo-se modificar o sistema penal para um
sistema mais justo e igualitário.

Referências
ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e Justiça penal: réus brancos e negros em
perspectiva comparativa. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 18, p. 283-300,
dez. 1996. ISSN 2178-1494. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/
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COMO CITAR ESSE ARTIGO:

NAKED, Vivian. Menezes; MONTEIRO DE CASTRO, Bianca Gomes da Silva


Muylaert. Desigualdade social e ineficácia da justiça criminal brasileira. In:
SOUZA, Frank Pavan de Souza; MONTEIRO DE CASTRO, Bianca Gomes da
S. Muylaert; ALVES, Luiz Victor Monteiro. (Org.). Direito e Justiça:
perspectivas contemporâneas sobre desigualdade no Brasil. 1ed.Campos
dos Goytacazes: Brasil Multicultural, 2020.

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