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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO
2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS SISTEMAS PUNITIVOS: PROCESSOS DE
CRIMINALIZAÇÃO FEMININA E SEUS DESDOBRAMENTOS
2.1 O ato de punir como precursor do surgimento das prisões no Brasil e
no mundo
2.2 A construção da imagem da mulher feiticeira na Europa
2.3 A mulher delinquente no contexto da criminologia positivista
2.4 Passagem do paradigma etiológico para o paradigma da reação social
2.5 A criminologia feminista em oposição à criminologia crítica
3 ENCARCERAMENTO FEMININO NO BRASIL, O TRÁFICO DE DROGAS E
A SELETIVIDADE PENAL
3.1 Feminização da pobreza: mão de obra barata para o tráfico
3.2 A guerra às drogas como política de repressão
3.3 Mulheres no cárcere: o cenário brasileiro
3.3.1 A Lei de Execuções Penais e a prisão em teoria
3.3.2 Estigma e abandono
3.3.3 O dia da visita
3.3.4 Perspectiva maranhense: o que dizem os dados
4 A UPR DAVINÓPOLIS E AS MULHERES ENCARCERADAS DA
COMARCA DE IMPERATRIZ-MA
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
APÊNDICES
ANEXOS
2.4 Passagem do paradigma etiológico para o paradigma da reação social

Em razão das muitas críticas destinadas à criminologia positivista, se


iniciaram os desenhos de um paradigma alternativo ao paradigma por ela
construído. Baratta (2002, p. 86) ensinou que “não se pode compreender a
criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage
contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias
oficiais”, de modo que já estariam ultrapassadas as concepções de
criminalidade etiológica, que pensava o crime enquanto característica da
pessoa sem considerar o quadro macrossociológico.
Foi seguindo esta direção que se desenvolveu a teoria da reação
social, mais conhecida como labelling approach, que como diz Andrade (1995,
p. 29), “desloca o interesse cognoscitivo e a investigação das “causas” do
crime e da pessoa do autor [...], para a reação social da conduta desviada, em
especial para o sistema penal”.
Baratta, (2002, p. 88), assevera que em oposição aos criminólogos
tradicionais, os estudiosos do labelling passaram a se perguntar “quem é
definido como desviante?”, “que efeito decorre desta definição sobre o
indivíduo?”, “em que condições um indivíduo pode se tornar objeto de uma
definição?”, “quem define quem?”. Assim, Andrade (1995) assume que o objeto
da investigação deixa de ser o controlado e passa a ser o controlador, bem
como para o poder de controlar, rompendo definitivamente com o determinismo
da criminologia positivista.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Castilho (2008, p. 107)
enfatiza que nessa teoria a criminologia não tem como tema central a
criminalidade como um fim em si mesmo, “mas o processo de criminalização
realizado pelo sistema penal” sobre os indivíduos. E ainda, que a teoria da
reação social trouxe à tona a seletividade dos sistemas punitivos, bem como o
“caráter mantenedor e reprodutor da estrutura socioeconômica” que a
criminologia positivista legitimava.
A esse respeito, Andrade (1995, p. 34) aduz que a teoria etiológica
colocava sua ciência “à serviço dos objetivos declarados do sistema”, de modo
a contribuir com os mecanismos de estigmatização e com a criação e
reprodução do estereótipo do “criminoso vinculado aos baixos estratos sociais”.
Para Baratta (2002, p. 87), a teoria do labelling approach se
construiu a partir de dois tipos de pensamentos sociológicos norte-americanos:
o interacionismo simbólico e a etnometodologia. O autor explica que para o
interacionismo, a sociedade se constitui de interações entre os indivíduos em
que “um processo de tipificação confere um significado que se afasta de
situações concretas” e se perpetua pela linguagem. A etnometodologia, por sua
vez, considera que a sociedade não é passiva de ser conhecida, mas que sua
realidade é produto de construção social.
Assim, a partir desses dois pilares, conforme enfatiza Andrade
(1995, p. 28), a teoria do labelling tem como tese central
a de que o desvio e a criminalidade não é uma qualidade intrínseca
da conduta ou uma entidade ontológica pré-constituída à reação
social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a
determinados sujeitos através de complexos processos de interação
social; isto é, de processos formais e informais de definição e
seleção.

Nesse sentido, a autora afirma que para essa teoria, a criminalidade


se revela como uma característica imposta a certos indivíduos mediante um
processo que define legalmente determinadas condutas como crime e da
estigmatização do autor como criminoso entre os que praticam as condutas
criminalizadas. Confirmando essa ideia, Becker (1971) apud Andrade (1995, p.
29) ensina que para que um ato se caracterize como desviante, é preciso que
se avalie a natureza do ato (no que se refere a estar em conformidade com as
regras legais), e que se compreenda o que as outras pessoas fazem a respeito
desse ato.
No entender de Andrade (1995, p. 32), o sistema penal não está
reduzido às normas penais, mas se constitui em um método dinâmico que
envolve todas as agências de controle formais e informais no seu processo de
criminalização. E além disso, se dirige mais a certos grupos de pessoas do que
contra certas condutas, uma vez que a seletividade penal demonstra que
“grupos poderosos na sociedade possuem a capacidade de impor ao sistema
uma quase que total impunidade das próprias condutas criminosas”.
Assim, a clientela penal é constituída majoritariamente por indivíduos
advindos dos mais baixos extratos sociais por estarem mais propensos a
serem etiquetados como criminosos, e não por terem maior tendência para
delinquir, como afirmava a perspectiva etiológica da criminologia positivista.
Como consequência disso, Campos (2017, p. 34) diz que os estudos
de Frank Tennenbaum em sua obra Crime and Community verificam que em
um primeiro momento a sociedade identifica as ações de um indivíduo como
más, mas que em certo ponto passa a defini-lo como mau, de modo que a
partir de então, tudo o que ele fizesse estaria sob suspeita. Dessa forma, a
própria autoimagem da pessoa seria modificada, uma vez que este inicialmente
não se enxerga como criminoso, mas que em razão da estigmatização, “o
indivíduo pode ser lançado em uma vida mais profunda de desvio”.
Seguindo esse mesmo pensamento, Baratta (2002, p. 89) faz uma
análise de que a intervenção do sistema punitivo, principalmente no que se
refere às penas privativas de liberdade, falham em sua tentativa de
ressocialização e acaba por muitas vezes determinando a “identidade
desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira
criminosa”. Isso porque a punição de primeiros comportamentos desviantes
somada à reação social tem
a função de um “commitment to deviance”, gerando, através de uma
mudança de identidade social do indivíduo assim estigmatizado, uma
tendência a permanecer no papel social no qual a estigmatização o
introduziu.

Ademais, Campos (2017, p. 41) expõe que o desviante só o é


quando o rótulo é corretamente atribuído a ele, sendo que o comportamento
desviante é todo aquele a qual a sociedade determina ser. Assim, “o desvio é
criado socialmente, por determinados grupos sociais ao fazerem regras cuja
infração constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares”, em
especial as mais pobres, demonstrando o caráter seletivo dos sistemas
punitivos e do poder de determinados grupos sociais sobre outros.
Por outro lado, ao mesmo tempo que a alguns recai o estigma de
criminoso em toda a sua extensão, Baratta (2002) afirma que a criminalidade
de colarinho branco pouco é perseguida por razões multifatoriais, como o
prestígio dos infratores ou o quase inexistente efeito estigmatizante das
sanções aplicadas a esses indivíduos. E foi em razão disso que as teorias da
criminalidade até então eram tão distorcidas, uma vez que a ausência de
indivíduos ligados a estratos sociais superiores trazia a falsa impressão de que
a criminalidade estaria diretamente relacionada com a pobreza.
Desse modo, o autor afirma, ainda, que o estereótipo da
criminalidade não influencia apenas os órgãos oficiais de controle, uma vez que
se observa também a seletividade que a definição da parcela da criminalidade
se desenha entre os indivíduos do senso comum, de modo tal que o estigma se
torna presente até entre os estigmatizados.
Por trás do estigma atribuído aos mais pobres, Baratta (2002, p.
106) afirma que ao observar de uma perspectiva macrossociológica a
população definida como criminosa, é possível compreender que os órgãos de
controle formal são “os mesmos mecanismos de poder que dão conta, em uma
dada estrutura social, da desigual distribuição de bens e de oportunidade entre
os indivíduos”.
Nesse sentido, o autor afirma que essa análise justifica o fato de que
nos países de maior avanço do capitalismo, a população carcerária se
constitua majoritariamente entre a classe operária e entre os mais prejudicados
economicamente. Portanto, para Baratta (2002), a teoria do labelling approach
é extremamente crítica à função declarada da pena de prisão e do sistema
penitenciário, qual seja: a ideologia de ressocialização do individuo.
Compreende-se que no princípio dos estudos sobre criminologia se
considerava que o crime e o desvio partiam de dentro para fora do criminoso e
de suas características pessoais. No entanto, com a teoria do labelling, admite-
se que o crime vem de fora para dentro, que a própria criminalidade é
construída e perpetuada pela justiça institucionalizada com o advento do
commitment to deviance.
Assim, conforme explica Castilho (2008, p. 107), após a teoria da
reação social surge a Criminologia Crítica, que radicaliza a primeira e “vai além
da análise do processo de criminalização, questionando as estruturas
socioculturais e econômicas que condicionam esse controle”, e que possibilita
de certo modo a análise do sistema penal na perspectiva de gênero, como será
aprofundado a seguir.

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