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A teoria do etiquetamento social ou 

labelling approach, surgiu na década de 60 nos Estados


Unidos, entre os principais representantes desta teoria cabe citar GARFINKEL, GOFFMAN,
ERIKSON, CICOUREL, BECKER, SCHUR e SACK. Em resumo, trata da criminalidade não só como
uma qualidade de uma determinada conduta, mas como o resultado de um determinado
processo de estigmatização da conduta e daquele que a praticou.
Segundo Alessandro Barata (2002), o etiquetamento consiste na sustentação de um processo
de interpretação, definição e tratamento, em que alguns indivíduos pertencentes à
determinada classe  interpretam uma conduta como desviante, definem as pessoas
praticantes dessa mesma conduta como desviantes e empregam um tratamento que
entendem apropriados em face dessas pessoas, onde acaba dessocializando, embrutecendo e
estigmatizando determinadas pessoas.
Ao abordar a teoria do labelling approach, faz-se necessário, em primeiro lugar, trazer à
discussão a cifra oculta, ou seja, as condutas praticadas contra as normas penais que estão
tipificadas como crime e que o sistema repressivo do Estado não consegue atingir através de
uma investigação e do consequente processo. Assim, muitas pessoas cometem crimes, porém
poucos são tratados como criminosos. Aqui é possível perceber que muitos são os criminosos e
poucos são os considerados criminosos e selecionados pelo sistema repressivo.
A classe selecionada é aquela estigmatizada como criminosa e encarcerada, ou seja, uma
população jovem, pobre e geralmente negra. Os selecionados pelo sistema, geralmente são
aqueles que cometem o microcrime, que são aqueles crimes previstos no código penal
vigente. Aqueles que cometem crimes e estão na classe social dominante, geralmente
praticam o macrocrime e esses crimes são muito difíceis de serem esclarecidos pelo sistema
repressivo do Estado.
Se analisarmos o código penal vigente veremos que trata apenas do microcrime, não havendo
dúvidas quanto à adequação típica e as penas previstas. Por outro lado, se analisarmos o
macrocrime, vamos perceber que a lei é confusa, com falta de técnica legislativa como, por
exemplo: a lei do crime organizado, que não diz o que é crime organizado. Como poderá ser
aplicada uma lei que não define o crime a qual ela foi elaborada para combater. Seria mera
coincidência?
Voltando à teoria do etiquetamento social, para H. Becker (1963), o desvio não está no ato
cometido, nem tampouco naquele que o comete, mas a consequência visível da reação social a
um dado comportamento. SELL (2007) traz um exemplo que retrata de forma cristalina a
teoria do etiquetamento: Imaginemos uma mulher que tenta sair de uma joalheria com um
caro e não pago bracelete quando é barrada pelos seguranças. Se essa aparente tentativa de
subtração à coisa alheia móvel (art. 155 do Código Penal) será tomada como crime, sintoma
compreensível de cleptomania ou mera distração vai depender menos dos detalhes da
conduta tentada do que do perfil da apontada infratora. A tese da distração cai bem, por
exemplo, se a suposta tentativa fosse realizada por uma cliente habitual da joalheria; assim
como a tese da cleptomania se adequaria perfeitamente se a acusada fosse uma famosa atriz
de novela. Já para uma empregada da loja, a única tese “compatível com a realidade das
coisas” é a de tentativa de furto puro e simples.
Percebe-se que a conduta é a mesma, a ausência de provas também, só o que variará, neste
caso, são as suposições socialmente consideradas adequadas ao caso.
Aqui é usado claramente à lógica do “como sou rico, não roubo” / “como sou pobre, roubo” e
essa lógica não guarda relação com os fatos, apenas com ideologias. Dessa ideologia que se
beneficiarão a socialite e a atriz para explicarem que um bracelete não pago, em seu poder, na
saída da loja, só pode indicar distração ou sintoma clínico; furto nunca. Mas essa mesma
ideologia selará o futuro da empregada, sobre a qual a tese da distração, ou doença, será vista
como uma afronta à inteligência dos personagens que conduzem seu indiciamento criminal.
Já na lição de Herrero, se fala de delito e delinquentes como consequência de um processo
incriminatório levado a cabo pelos poderes dominantes e projetado, quase que
exclusivamente, sobre as classes sociais desfavorecidas, a cujos membros se impõem, por
interesses, o rótulo de delinquentes por força de critérios criminalizantes impostos
unilateralmente pelos que exercem a capacidade de decisão. Isto tudo porque estes
marginalizados não se submetem ao poder estabelecido, à sua cultura e aos seus interesses.
Esses dois tipos de seleção não são casuais, mas atendem a determinados interesses concretos
de produção e reprodução do poder. A criminalidade constitui um bem negativo, distribuído
desigualmente, ainda que não de modo arbitrário. Ou seja, selecionam-se como delinquentes,
de forma prioritária, os indivíduos que pertencem às classes marginalizadas, seja porque o
direito penal está estabelecido para proteger, sobretudo os interesses das classes superiores,
seja em virtude da forma de funcionamento e da operacionalidade prática das instâncias de
controle social, como a escola, a segurança pública e os tribunais.
Concluindo, trago os ensinamentos de Baratta (1999), onde afirma que não se pode
compreender a criminalidade sem estudar a ação do sistema penal, que a define e reage
contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes,
instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delinquente
pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da
delinquência.
Assim, enquanto não se adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo
comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias, não sendo
considerado e tratado pela sociedade como “delinquente”, entrando na estatística da cifra
oculta e escapando do etiquetamento social do crime.

(http://www.radardacidade.com.br/2013/08/25/labelling-approach-a-teoria-do-
etiquetamento-social/)

Conceito geral com base doutrinária de Labeling Approach ou teoria do etiquetamento.


Por Josi Käfer
Para Hassemer (2005), o labeling approach significa enfoque do etiquetamento, e tem como
tese central a ideia de que a criminalidade é resultado de um processo de imputação, “a
criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela polícia, pelo ministério público e pelo
tribunal penal, pelas instâncias formais de controle social” (HASSEMER, 2005, p. 101-102, grifo
do autor). “[...] o labeling approach remete especialmente a dois resultados da reflexão sobre
a realização concreta do Direito: o papel do juiz como criador do Direito e o caráter invisível do
‘lado interior do ato’”. (HASSEMER, 2005, p. 102, grifo do autor).
Explica Hassemer (2005), que na tese do papel do juiz como criador do Direito tem-se que a lei
não pode garantir de modo inquestionável e integral a sua própria aplicação ao caso concreto,
ela depende da interpretação do juiz, a partir daí ela obtém de modo preciso seus contornos. É
o juiz que contempla, aperfeiçoa e corrige a lei.
O Ministério Público, a polícia e o tribunal, na visão do labeling approach, devem se ater à lei
nas suas operações sistêmicas, assim, “eles não retiram (nem podem retirar), de modo
independente, a etiqueta de ‘criminoso’ da lei, mas de suas próprias noções de limite entre o
comportamento criminoso e o não-criminoso” (HASSEMER, 2005, p. 103, grifo do autor).
Na tese da indivisibilidade do lado interior do ato chama-se a atenção para as dificuldades do
procedimento judicial e, principalmente, do processo penal. Ensina Hassemer (2005) que, em
todo processo penal, se parte do conhecimento e da vontade do homem, ou seja, se houve
dolo ou culpa na conduta do réu. “Não se pode observar o interior de um homem do mesmo
modo que a arma do ato ou o slogan estampado na parede da casa; sobre as condições
interiores só se pode deduzir” (HASSEMER, 2005, p. 103, grifo do autor).
Para o labeling approach isto significa que aos agentes do controle social formal, quando
partem do interior de um homem, não resta outra possibilidade que a atribuição de
características e propósitos determinados; eles não vêem nada: não se pode saber se alguém
que dirigia velozmente ao passar pelo policial rodoviário, sendo que este somente pode
escapar graças a um salto muito rápido, ‘aceitava com aprovação’ o resultado morte; porém,
os penalistas – imputando – teriam que decidir (HASSEMER, 2005, p. 103, grifo do autor).
Segundo Baratta (2002), o labeling approach parte da consideração de que para se
compreender a criminalidade deve-se estudar a ação do sistema penal, “que a define e reage
contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (política,
juízes, instituições penitenciárias que as aplicam)” (BARATTA, 2002, p. 86).
Conforme o mesmo autor, para os representantes do labeling approach o que distingue a
criminologia tradicional da nova sociologia criminal é a consciência crítica que a nova
concepção traz consigo, que consideram o criminoso e a criminalidade como uma realidade
social, que é construída mediante os processos de interação que a caracterizam.
Conforme elucida Larrauri (1992), a perspectiva certamente mais influente na década de
sessenta foi o labeling approach ou abordagem de rotulagem. Sendo classificados como
autores relevantes dessa teoria, Becker (1963), Cicourel (1967), Erikson (1966), Kitsuse (1968)
e Lemert (1967). As críticas que haviam sido dirigidas anteriormente às teorias criminológicas,
por constituírem modelos funcionalistas da sociedade ou acusadas de continuar presas às
premissas do positivismo, importaram na necessidade de um novo marco sociológico. Os
representantes do labeling approach buscaram apoio em outra corrente sociológica que na
década de sessenta estava (re)emergendo com força, o interacionismo simbólico.
Segundo a mesma autora, o interacionismo simbólico é uma corrente sociológica desenvolvida
por Mead (1934) e que influenciou nos estudos da sociologia do desvio, desenvolvida por
Blumer (1969). Segundo Blumer existem duas diferenças entre as correntes tradicionais
estruturais e o interacionismo simbólico. A primeira consiste em estudar o indivíduo como um
mero objeto, sobre o qual convergem vários fatores sociais e psicológicos que o levaram a agir
de determinada maneira, ou o estudo do indivíduo como um ser que age de acordo com a
interpretação dada aos objetos, situações e ações dos outros.
Larrauri (1992), afirma ser necessário esclarecer um pouco onde reside a diferença. Segundo
Wilson (apud Larrauri, 1992) uma característica do paradigma normativo é que vê toda a
interação social como regida por regras. Estas normas são aprendidas, internalizadas, etc ..
mas, em qualquer caso, o fato de que elas determinam o comportamento é o que dá origem a
expectativas. De acordo com este paradigma, pode-se entender como (inter)agir em uma
determinada situação (S) porque sempre existe uma regra que nos diz como devemos agir (A).
Como afirma Wilson, o que está implícito nessa compreensão da interação social é um
consenso cognitivo. Na verdade, para que se possa esperar que uma certa regra regule o
comportamento em uma dada situação, é necessário, em primeiro lugar, que todos os
participantes identifiquem a situação da mesma maneira. Isso acontece, segundo os
defensores do paradigma normativo, porque todos nós somos socializados em um mesmo
sistema de símbolos e significados; em especial compartilhamos uma mesma linguagem
comum.
A mesma autora, baseada em Blumer, fazendo referência ao que poderia ser identificado
como o paradigma interpretativo, argumenta que o que rege o comportamento não é a norma
em si, mas a interpretação que o ator realiza de determinadas situações e ações de outro. Com
base nesta percepção do que o outro pretende, o ator planeja o seu próprio curso de ação,
explica Wilson (apud Larrauri, 1992). Assim, o que nos permite compreender nossas interações
sociais não é o estudo das regras, mas a interpretação que fazemos da atuação do outro, sobre
o qual vamos determinar nosso próximo curso de ação. Isto implica também que as interações
estão sempre sujeitas a mudanças, ao invés de fixas por certas regras. Em suma, para Blumer
(apud Larrauri, 1992), a interação social é um processo interpretativo e de negociação das
intenções dos outros com base na qual nós determinamos o nosso curso de ação subsequente.
Segundo Blumer (apud Larrauri, 1992), a segunda distinção reside em que as ações dos
indivíduos não se concebem sujeitas às necessidades do sistema, suas funções ou a
determinados valores culturais; mas sim respondem à necessidade de gerir as situações que as
pessoas enfrentam na vida diariamente.
Larrauri (1992) explica que, isso não significa que não é conhecida a existência de estruturas
ou organizações sociais, mas entende-se que estes são quadros em que as ações ocorrem, e
não que determinam elas. A importância das estruturas não deve ser exagerada, uma vez que,
as sociedades modernas se caracterizam por grandes situações de mobilidade de situações e
de símbolos, sendo que a variável fundamental que afeta as unidades de ação – os indivíduos –
são os outros indivíduos.
Em conclusão, para compreender a ação social, deve ser examinado as condições em que se
atua. A primeira condição é que agimos em atenção à situação que nos encontramos, o que
sugere uma segunda condição, ou seja, que age de acordo com a forma como se interpreta a
situação. Para interpretar a situação partimos do conhecimento comum, mas, muitas vezes ele
está ausente, ou porque a situação é nova ou porque esta situação se interpreta de diversas
formas pelos participantes. Em seguida, o que deve ser estudado é como construir uma
interpretação de uma situação com base no qual se atuará. Para isso, o sociólogo deve assumir
o papel do indivíduo atuante. Em suma, também nas teorias estruturais o que determina a
ação são as estruturas, os valores e as normas culturais, para o interacionismo simbólico o que
determina a ação é a interpretação que o indivíduo faz da situação em que se encontra e da
ação dos outros, ensina Larrauri (1992).
De acordo com a mesma autora, o labeling approach foi aclamada por produzir uma mudança
de paradigma no estudo do desvio. O próprio Lemert argumentou que
[o labeling approach] representa uma mudança para a sociologia antiga a qual assumiu que o
controle social era uma resposta ao desvio. Venho a pensar na ideia oposta, isto é, que o
desvio é uma resposta ao controle social, é igualmente viável e uma premissa potencialmente
mais rica para o estudo do desvio nas sociedades modernas (LEMER apud LARRAURI, 1992, p.
28, tradução nossa).
Ensina Larrauri (1992) que, com a expressão mudança de paradigma se descreve, assim, uma
mudança no objeto de estudo: deixa-se de estudar o delinquente e as causas do seu
comportamento (paradigma causal), vindo a se estudar os órgãos de controle social, que tem
por função controlar e reprimir o desvio (paradigma da reação social). Estas agências de
controle social que vão desde trabalhadores sociais, até policiais, juízes, psiquiatras, etc ..
A mesma autora diz que a resposta convencial ao questionamento quando se aplica um rótulo
é quando alguém comete um crime. Porém, essa resposta pode tropeçar em algumas dúvidas
quando se pensa que nem todo mundo que perpetrou um crime é preso. Portanto, nem todos
que cometem crimes, são rotulados como criminosos. No entanto, mesmo deixando de lado
esta consideração, digamos que crime é aquele definido como tal, o que sempre foi aceito
entre os juristas. Argumenta-se que ante a impossibilidade de encontrar uma definição natural
de que atos constituem crimes, já que estes variam com o tempo, com os contextos sociais, etc
.. não resta mais remédio para se qualificar uma definição normativa.
Mas os teóricos do etiquetamento se sentiram tentados a dar um passo adiante. Se o crime só
é aquele comportamento definido como tal, talvez o comportamento, por si só, não apresenta
qualquer característica diferente de outros tipos de comportamento. A diferença é que alguns
comportamentos são definidos como criminosos e outros não.
A partir deste ponto de vista, desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa realiza, mas
uma consequência da aplicação de regras e sanções que os outros aplicam ao infrator. “O
desviante é aquele a quem é aplicada com sucesso a etiqueta; o comportamento desviante é
aquele que as pessoas definem como desviante” (BECKER apud LARRAURI, 1992, p. 29,
tradução nossa).
Daqui resulta que o desvio não tem uma natureza ontológica, não existe independentemente,
fora de um processo de reação social, elucida Larrauri (1992). Esta reação social é o que define
um determinado ato desviante. Em consequência, o delito não é um fato, mas uma construção
social, que requer uma ação e uma reação social. E o delinquente não é aquele que transgride
a lei, mas sim aquele ao qual tenha sido atribuído o rótulo de criminoso.
Mas ainda o que os teóricos da rotulagem estavam dizendo era: não é que o ato seja desviado,
mas o significado que é atribuído ao ato. A partir desta perspectiva, não se pode afirmar,
portanto, que nenhuma ação seja desviada, sem antes observar que reação social suscita.
Assim, mesmo tendo um limite, como o ato de matar, ele não pode ser definido como
desviante antes de observar que reação social ele causa. Essa reação social variará obviamente
com o contexto em que o ato ocorre, matar para roubar pode ser definido como um ato
desviante porque cria uma reação social negativa, mas não se origina uma reação social
negativa o que mata em legítima defesa ou quem mata em uma guerra, explica Larrauri
(1992).
O ato em si não indica sua natureza de desviante ou normal, este adjetivo lhe será afetado não
em função do ato, mas em função do significado atribuído pelos outros, que por sua vez
provoca uma ou outra reação social.
O que é desviado para um grupo pode não ser para outro, assim por exemplo, fumar maconha,
pode causar uma reaçao social negativa em um grupo social e ser, consequentemente,
classificado como desviante, enquanto em outros grupos sociais este mesmo ato será
considerado completamente normal. Isto é o que é designado pelo nome do relativismo
cultural. Larrauri (1992), questiona-se: se não há diferença qualitativa entre os diversos atos, o
que permite que alguns sejam tipificados nos códigos penais, enquanto outros são apenas
considerados lícitos ou ilícitos? Por que alguns são etiquetados e outros não? E assevera que a
resposta mais óbvia seria afirmar que são punidos os atos mais graves que colocavam em risco
a subsistência do sistema social, mas como pode-se concluir que criminalizavam os atos mais
perigosos?
Ao punir uma violação reafirma-se que os valores foram altamente apreciados pela sociedade.
Segundo Larrauri (1992), a punição de certas atividades foi o trabalho de empreendedores
morais, ou seja, de grupos de pressão que conseguem impor sua visão particular do mundo e
seus próprios valores, punindo todos que estão contra eles. Junto com estes empresários
morais, que poderiam ser de associações destinadas a controlar a moralidade para grupos de
interesse comercial, se constumava destacar policiais e assistentes sociais comos os mais
ativos rotuladores.

Referências:
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia
do direito penal. Tradução de Juarez Girino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.
LARRAURI, Elena. La herencia de a criminología crítica. Madrd: Siglo Veintiuno de España
Editores, 1992.

(http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/6204/Labeling-Approach-ou-etiquetamento

Receita indigesta
Os criminosos são, em grande medida, uma invenção do sistema de repressão penal; ao
contrário do que pensa o senso comum, eles não são simples seres malvados, que andavam
livres sobre a terra até que o Direito os descobriu e que, desde então, tenta, por meio das
penas, neutralizá-los. Não, os criminosos não são produtos de descobertas, mas sim entes
inventados pela lógica distorcida do sistema penal vigente. Para quem foi embalado pelo
modelo etiológico – aquele do criminoso enquanto ser anormal - as afirmações acima podem
parecer tão estranhas quanto acusar o sistema de saúde pública de ter criado os doentes, e é
por isso que a primeira impressão que se costuma ter diante da abordagem criminológica que
as subscreve, o labelling approach, é a de estarmos diante de uma das muitas teorias da
conspiração, aquelas paranóicas construções teóricas destinadas a apontar conluios
maquiavélicos que dirigiriam, sub-repticiamente, as instituições centrais de nossa sociedade,
como o Direito e o Estado. O sistema penal inventar criminosos, onde já se viu...

Mas antes de desenvolver uma antipatia irreversível pelo labelling approach, municie-se de


algumas informações que dão o que pensar. A primeira é a cifra oculta, ou seja, a constatação
de que há muito mais condutas praticadas contra o direito criminal do que o sistema penal tem
condições de investigar e processar. Isso significa que muitos cometem crimes, mas apenas
alguns serão ditos criminosos (ninguém é criminoso até o trânsito em julgado da sentença
penal condenatória, lembra?). A segunda: há, mesmo proporcionalmente, muito mais pobres
nas cadeias do que membros de outras classes. Da primeira afirmação podemos concluir que
muito mais gente mereceria ser chamada de criminosa em relação àquelas que efetivamente
são. Da segunda, inferimos que, não podendo perseguir a todos, o sistema penal persegue
prioritariamente os mais pobres. Somem-se a isso contradições como a seguinte: se há tantas
críticas ao sistema penal brasileiro, de que há excesso de recursos e procedimentos que
inviabilizam, por exemplo, a prisão do político desonesto, por que os estratos mais
marginalizados da população caem tão facilmente atrás das grades? Por que essas
dificuldades que o jurista conformado diz ser "inerente ao processo" somem no andar debaixo?
Mistério...

Cifra oculta, dificuldade em criminalizar os ricos, excesso de pobres nas cadeias, esses são os
ingredientes básicos da receita de como produzir criminosos. Reserve essas informações. E
vamos em frente.

São seus olhos

Surgida nos EUA da década de 1960, a teoria do labelling approach, ou teoria do


etiquetamento, sofreu uma forte influência do interacionismo simbólico, corrente sociológica
que sustenta que a realidade humana não é tanto feita de fatos, mas da interpretação que as
pessoas coletivamente atribuem a esses fatos. Isso significa, entre outras coisas, que uma
conduta só será tida como criminosa se os mecanismos de controle social estiverem dispostos
a assim classificá-la. O que é um crime, então? Crime, pelos menos em seus efeitos sociais,
não serão, como ensinava o dogmático penalista, todas as transgressões injustificadas à lei
penal. Não, crimes são apenas as condutas que a sociedade e seus órgãos punitivos decidem
perseguir como tal. Sem certo consenso de que determinada conduta suspeita deve ser
averiguada, que determinados fatos e indícios devem ser convertidos em um processo penal,
não haverá, em seus efeitos práticos, crime.

Era isso que H. Becker, um dos principais expoentes da abordagem do etiquetamento, queria
dizer quando sustentava que o desvio não está no ato cometido, nem tampouco naquele que o
comete, mas que o desvio é a conseqüência visível da reação social a um dado
comportamento. Ser desviante, ou criminoso, é, assim, o resultado de um etiquetamento social,
e não o corolário lógico de uma conduta praticada. É possível, como bem sabemos, infringir as
normas penais sem que se seja criminalizado. Pense-se, sobretudo, nas milhares de condutas
presumivelmente delituosas das elites brasileiras, não investigadas por falta de "vontade" das
autoridades competentes. Também não é incomum haver processos de criminalização sem
que haja certeza acerca da autoria da conduta típica – pense nas investigações apressadas,
nas exposições abusivas da imprensa, e nos processos judiciais mal conduzidos contra
suspeitos miseráveis. Não, o crime não é algo que se faz, mas uma determinada resposta
social a um algo supostamente feito.

O crime, portanto, não emerge naturalmente a partir de uma conduta proibida praticada por um
agente imputável (modelo dogmático), nem resulta diretamente de uma conduta proibida
praticada por um ser anti-social (modelo etiológico), mas é o resultado de uma interpretação
sobre que aquela conduta, vinda daquela pessoa, merece ser classificada como crime.
Exemplifica-se. Imaginemos uma mulher que tenta sair de uma joalheria com um caro e não
pago bracelete quando é barrada pelos seguranças. Se essa aparente tentativa de subtração à
coisa alheia móvel (art. 155 do Código Penal) será tomada como crime, sintoma compreensível
de cleptomania ou mera distração, vai depender menos dos detalhes da conduta tentada do
que do perfil da apontada infratora. A tese da distração cai bem, por exemplo, se a suposta
tentativa fosse realizada por uma cliente habitual da joalheria; assim como a tese da
cleptomania se adequaria perfeitamente se a acusada fosse uma famosa atriz de novela. Já
para uma empregada da loja, a única tese "compatível com a realidade das coisas" é a de
tentativa de furto puro e simples. A conduta é a mesma, a ausência de provas também, só o
que variará, neste caso, são as suposições socialmente consideradas adequadas ao caso.

Crenças presumidamente lógicas, mas claramente ideológicas na proteção dos mais


poderosos é que resolverão a questão. "Acreditamos ser um sintoma de cleptomania" – diz em
nota o dono da loja – "pois é ilógico crer que uma pessoa de elevada posição social iria se
rebaixar a ponto de furtar uma jóia". Eis aí uma declaração coerente com o imaginário popular
de que o furto é delito exclusivo de pessoas pobres. Ora, se a cleptomania é um transtorno
psíquico, sua manifestação não se ligará ao fato de se poder pagar ou não pelo bracelete, mas
à compulsão de tê-lo sem pagar. Assim, a condição de ser pobre ou rico, clinicamente, não
deveria importar. Ou esse transtorno é exclusivo de quem ganha acima de tantos milhões por
ano? Mesmo o DSM IV (o manual de psiquiatria norte-americano) parece induzir a essa crença,
ao colocar que o furto na cleptomania costuma ser de um bem de pouco valor monetário,
relativamente às posses de seu praticante. Mas isso se deve à orientação corrente, a bem da
sociedade, de que o diagnóstico para a cleptomania deve ser residual, só devendo prevalecer
se não for mais bem explicado por outro transtorno de conduta. Rasteiramente: se a pessoa
não precisava do que furtou, ganha força a tese da cleptomania; se precisava, deve ser furto
mesmo.

Políticos e corruptos de elite defendem-se da mesma forma: "Não preciso roubar." Se, ao longo
do mundo e, particularmente neste país, só se apropriasse dos bens alheios quem precisasse,
o universo das finanças públicas seria esplendidamente superavitário. Ao contrário, se todos os
necessitados passassem a roubar, a vida num país de tantos miseráveis como o Brasil seria
insuportável. Para o mal ou para o bem, a lógica do "como sou rico, não roubo"/ "como sou
pobre, roubo" não guarda relação com os fatos: apenas com ideologias. E é dessa ideologia
que se beneficiarão a socialite e a atriz para explicarem que um bracelete não pago, em seu
poder, na saída da loja, só pode indicar distração ou sintoma clínico; furto nunca. Mas essa
mesma ideologia selará o futuro da empregada, sobre a qual a tese da distração, ou doença,
será vista como uma afronta à inteligência dos personagens que conduzem seu indiciamento
criminal. Logo o delegado a lembrará que "não nasceu ontem!".

Então o que é um criminoso? Criminoso é aquele a quem, por sua conduta e algo mais, a
sociedade conseguiu atribuir com sucesso o rótulo de criminoso. Pode ter havido a conduta
contrária ao Direito penal, mas é apenas com esse "algo mais" que seu praticante se tornará
efetivamente criminoso. Em geral, esse algo mais é composto por uma espécie de índice de
marginalização do sujeito: quanto maior o índice de marginalização, maior a probabilidade de
ele ser dito criminoso. Tal índice cresce proporcionalmente ao número de posições
estigmatizadas que o sujeito acumula. Assim, se ele é negro, pobre, desempregado,
homossexual, de aspecto lombrosiano e imigrante paraguaio, seu índice de marginalização
será altíssimo e, qualquer deslize, fará com que seja rotulado de marginal. Em compensação,
se o indivíduo é rico, turista norte-americano em férias, casado e branco, seu índice de
marginalização será tendente à zero. O rótulo de vítima lhe cairá fácil, mas o de marginal só
com um espetáculo investigativo sem precedentes.

Não é o que se faz, mas o que se é


Contrariando os manuais acadêmicos, o labelling approach sustenta que é mais fácil ser tido
como criminoso pelo que se é do que pelo que se faz. Essa afirmação ganha força quando nos
lembramos da cifra oculta, nomenclatura que destaca que as condutas delituosas que chegam
a virar processos judiciais constituem apenas a ponta do iceberg do total de condutas ilícitas
efetivamente existentes em uma sociedade. Se nem tudo que, pela leitura da lei, deveria ser
tido como crime assim é reconhecido pela prática dos operadores do sistema penal, deve haver
um critério de seleção para decidir entre tantas condutas ilícitas praticadas quais serão, de fato,
tratadas como crime. O labelling approach sustenta que tal critério é o índice de marginalização
do sujeito, o número de estigmas que ele carrega, ainda que nenhum deles precise ser de
natureza criminal. Nesse sentido, o sistema penal não teria a função de combater o crime, mas
a de atribuir rótulos de criminosos aos já marginalizados.

Pensemos em duas pessoas viajando num ônibus. Escondida entre as poltronas das duas
encontra-se um pacote contendo droga ilícita. Não se sabendo a qual delas pertence,
investigam-se ambas. As duas se dizem inocentes e os indícios colhidos não são
esclarecedores. Investiga-se quem são elas. O da direita é contabilista, empregado da mesma
empresa há 10 anos, pai de família, de paletó e gravata. Já o da esquerda é um surfista,
sustentado pelos pais, com um piercing na sobrancelha. Basta saber em qual dos dois seria
mais fácil acrescentar o rótulo de criminoso para saber quem será mais enfaticamente
investigado. Um rótulo predispõe ao outro. Surfista desocupado e traficante combinam muito
mais facilmente do que contabilista empregado e traficante (pelo tirocínio de alguns policiais,
quem tem menos dinheiro para viver tem mais dinheiro para comprar drogas). Na prática, em
situações como essas, sabe-se que o Estado se lembrará, de fato e de direito, que é seu dever
provar a eventual culpa do contabilista antes de sair alardeando que achou o culpado. É o que
manda a lei. No entanto, com uma freqüência assustadora, diante do surfista desocupado o
ônus se inverterá, cabendo ao este demonstrar sua inocência, trocando-se a presunção de
inocência determinada pela lei pelas regras da pragmática repressiva.

O rótulo de marginal parece não ter aderência direta à pele dos indivíduos. Para aderir,
necessário é que tais indivíduos primeiro tenham sido selados com outros rótulos
estigmatizantes, é preciso que seu índice de marginalização seja alto. É assim que o processo
contra o político desonesto quase nunca concluirá nada. As recorrentes alegações de ausência
de provas, de cerceamento de defesa e a demora na ação, que levará à prescrição "sem
julgamento de mérito", o favorecerão antes que o rótulo de criminoso possa-lhe ser impingido.
Já para investigar, processar e encarcerar um indivíduo pobre, o sistema repressivo é rápido e
quase infalivelmente condenatório. É que a base onde fixar o rótulo de marginal já existia: a
própria pobreza. Todos esperavam a condenação e ela veio. Nenhuma surpresa.

Ladeira escorregadia

Um estigma predispõe ao outro. É como uma ladeira escorregadia: uma vez tendo descido o
primeiro degrau da exclusão (ser pobre, desempregado, bicha, preto ou prostituta) é preciso ter
muito cuidado para não descer mais outro e outro, até chegar ao final do processo excludente,
sintetizado no rótulo de criminoso. É assim que comentários aparentemente causais-
explicativos são dados na mídia quando se descobre, por exemplo, que o assassino era
homossexual. Na leitura popular há um continuum do tipo: homossexual, pervertido, criminoso.
Já se esperava. Da mesma forma, tudo parece estar esclarecido quando se descobre na casa
do acusado de assassinato uma coleção de filmes pornográficos – que a autoridade exibirá
como se fosse de relevância crucial à prova que lhe cabe buscar. A mente cozida em folhetins
policiais, amiúde, segue uma nefasta lógica do tipo: gosto por pornografia = perversão = a
predisposição assassina. Esse é um expediente que encanta a platéia, ávida por curiosidades
e aberrações, e permite disfarçar a ausência de competência probatória do espetáculo.

Mas, é bem verdade, que um estigma não leva a outro apenas por efeito de um etiquetamento
desonesto. Não, um estigma efetivamente pode levar a outro, porque quanto mais estigmas
alguém carrega menos custoso lhe será assumir outros. Basta lembrar que todo estigma é uma
depreciação no valor social de alguém. Assim, quanto mais estigmas esse alguém tiver menos
socialmente ele valerá, tendo pouco a perder ao se dispor a assumir mais um rótulo
depreciativo. Um sujeito marginalizado é mais facilmente recrutado para os modos de vida
ilícitos. Depois de ter perdido o lar e a escola, é relativamente pouco custoso ao adolescente
embrenhar-se no mundo das infrações, quer seja assumindo a culpa de outrem, quer seja
efetivamente tomando parte na ação criminosa. A partir do momento em que desse
adolescente já "não se esperava grande coisa", abriu-se o convite para que dele se
esperassem as piores coisas. Cada estigma aumenta a vulnerabilidade do sujeito às demandas
do mundo do crime.

A quem já está no inferno – infere a lógica popular – custa pouco dar um abraço no diabo. Se já
não se tem muito a perder, pode-se, com poucos receios, arriscar perder tudo, pois, em se
tratando de dignidade, o valor de cada um de seus componentes decresce à medida que
decresce seu todo. É preciso ter a honra geral intacta para que se possa ser desonrado em
aspectos específicos. Mesmo o Direito civil segue essa crença. Assim, tradicionalmente será
maior o valor da indenização estética de um dano produzido contra um rosto intacto, bonito,
sem cicatrizes, do que se o mesmo dano fosse produzido contra um rosto já marcado e
deformado. A lógica da reparação civil, neste caso, é bíblica: muito será dado a quem muito já
tem (ou teve). Em forma de exemplo, quem não possui os dentes incisivos não deverá sofrer
tanto com a perda de um dos caninos – sofrimento considerado terrível para aquele que tem
uma dentição perfeita. Para as questões de estigma, esse critério de reparação civil parece
aplicável: quanto menos respeito social se possui menos custoso é perder esse resíduo de
dignidade.

A sociedade cria o marginalizado de forma a deixá-lo a apenas um passo da marginalidade. É


assim que o dito crime organizado – comandado por pessoas nem um pouco excluídas – pode
recrutar tão facilmente pobres, negros e miseráveis para fazer a parte suja e arriscada do
tráfico. Recrutam-se pessoas cuja dinâmica da sobrevivência desceu ao nível do "se for preso,
azar" ou "se morrer, morreu". Pessoas que já não têm o que perder. Tire de uma pessoa uma
boa parte de sua dignidade social e ela facilmente se encarregará de acabar com o resto, pois
quanto mais baixa é a sua posição na sociedade, menor são suas alternativas de vida honrosa
e menores são também os custos simbólicos de sua entrada no mundo do crime. Uma
exclusão abre caminho para a outra e assim sucessivamente.

Embora um estigma possa facilitar a entrada em outro, isso não autoriza os acusadores
públicos a fazerem uma dedução simplista de que quem já tem pouco a perder foi o
responsável pelo crime de autoria incerta. Seria inverter causa e conseqüência. Ora a
prostituta, por exemplo, tem pouco a perder acrescentando ao seu métier ações criminosas
(como o pequeno tráfico de entorpecentes) justamente porque, mesmo antes de entrar no
crime, já era tratada como se fosse criminosa. Se uma pessoa não perdesse a dignidade por
ser prostituta, não lhe cairia facilmente o rótulo de criminosa diante de uma acusação mal
fundamentada. É justamente porque a sociedade faz com que um estigma leve a outro que
eles efetivamente seguem essa lógica. Num exemplo inverso, o médico viciado em morfina,
que tendo acesso fácil à droga, e horários de plantão para disfarçar seu vício, será capaz de
conservar sua dignidade de pessoa honesta e produtiva, não sofrendo os efeitos da
marginalização. É viciado apenas, sendo razoável supor que repudiaria propostas criminosas –
como traficar, furtar, matar – como qualquer outra pessoa. A lógica não é, portanto, a de que
uma conduta ilícita leve a outra, mas a de que uma situação de marginalização seja um efetivo
convite a que se abrace outra.

O que serve como explicação sociológica da entrada facilitada dos marginalizados no mundo
crime, não serve como recurso simplificador dos procedimentos de investigação criminal. A
conclusão de uma investigação criminal não pode se apoiar em máximas do tipo: "Dentre os
acusados, é criminoso aquele que possuir o maior índice de marginalização." Assim, é um
absurdo que certos delegados diante de uma morte violenta e incerta numa favela, sem saber
quem é a vítima e seu autor, sem nada saber daquele crime especificamente, digam com
estúpida convicção ao repórter da TV: "provável envolvimento com o tráfico de drogas", como
se a morte dos que vivem em favelas não pudesse decorrer de motivos passionais, vingança
pessoal, motivos fúteis, crimes patrimoniais, familiares etc. para acontecer; ali se morre apenas
por ação do tráfico. A platéia social novamente gosta e o espetáculo pode ser conduzido de
qualquer forma, pois quem se importa com tão desqualificado morto? Agora, diante da morte
do político que ia depor num processo criminal no dia seguinte, alardeando que entregaria
muitos nomes de pessoas importantes, o mesmo delegado seria pateticamente cauteloso:
"Todas as hipóteses, inclusive de crime por motivações políticas, estão sendo averiguadas". É
que, particularmente no Brasil, ricos podem morrer de muitas formas; pobres apenas da forma
que menos trabalho der à investigação.

Só não paga quem pode

Nos desdobramentos teóricos do labelling approach, o que chamamos de imputação criminosa


seria, na verdade, o resultado de duas distorções, sintetizadas sob o sugestivo nome de
"processo de criminalização". Na primeira distorção, há a chamada criminalização primária,
feita, sobretudo, pelo legislador penal, que consiste na eleição de condutas a serem
consideradas criminosas não pelo critério do dano social que provocam, mas pela origem
habitual dos que praticam tais condutas. Um exemplo paradigmático neste sentido é expresso
pelo artigo 176 do Código Penal brasileiro que incrimina aquele que, dentre outras condutas,
toma refeição em restaurante "sem dispor de recursos para efetuar o pagamento". Sim, você
leu certo, só há crime se quem tomou a refeição no restaurante não tinha dinheiro para pagá-la,
mas se ele dispunha de recursos para tal e simplesmente preferiu não efetuar o pagamento
não poderá ser incriminado. O objetivo dessa lei não é, como então fica óbvio, evitar danos ao
patrimônio alheio, nem convencer as pessoas a que paguem a refeição tomada, mas evitar que
os mais pobres possam se "aproveitar" de sua pobreza. A jurisprudência confirma: "Para
configurar-se o crime, é necessário que o agente faça a refeição sem ter dinheiro para pagá-la;
se tem recursos, mas não paga, como acontece nos ‘pinduras’ estudantis, o ilícito é só civil e
não penal" (TACrSP, Julgados 90/83).

Ao criar leis, portanto, há um processo de criminalização primária, resultante da intolerância


legislativa com a conduta dos mais pobres. Quando falamos de criminalização primária,
falamos, em síntese, de duas coisas:

a)O crime não é uma realidade natural, descoberta e declarada pelo Direito, mas uma invenção
do legislador, algo é crime não necessariamente porque represente uma conduta socialmente
intolerável, mas porque os legisladores desejaram que assim fosse;
b)E essa invenção segue critérios de preferência legislativa, cujos balizamentos não costumam
respeitar princípios de razoabilidade ou proporcionalidade, gerando leis penais duríssimas
contra as condutas dos mais pobres e rarefeitas em se tratando de crimes típicos dos estratos
sociais elevados.
Na segunda distorção, chamada de criminalização secundária, entram em ação os órgãos de
controle social (polícia, judiciário, imprensa etc.) que, ao investigarem prioritariamente os
portadores de maior índice de marginalização, acharão – por óbvio – um maior número de
condutas criminosas entre eles. Se mais vezes os pobres são tidos como suspeitos, se
condições como possuir emprego e residência fixa influenciam nos rumos do processo penal,
se muitos dos advogados que defendem os mais pobres chegam tarde às audiências e
demonstram pouco interesse nessas causas, se não ter um modelo familiar idêntico ao das
classes de onde provêm os juízes e seus auxiliares facilita, sobremaneira, o rótulo de
"proveniente de família desestruturada", se ter um passado tortuoso é capaz de suprir a
ausência de provas na presente acusação, então, não há outra saída: os marginalizados serão
facilmente convertidos em marginais. A etiqueta penal lhes aderirá à pele, e dela jamais sairá.

Em síntese, o labelling approach atuou como um despertador inconveniente no sono do


penalista dogmático, que jurava que o Direito penal nada mais fazia do que nos proteger de
pessoas essencialmente más. Ao contrário, o labelling veio para mostrar que nosso tipo
habitual de criminoso – pobre e encarcerado – revela muito pouco sobre a estrutura do mal em
si, e muito, mas muito mesmo, sobre a ideologia desigualitária de nossa sociedade.

Bibliografia:

ANDRADE, V. R. P. (2003). Sistema penal máximo vs. Cidadania mínima. Porto Alegre: Do


Advogado.

BECKER, H. (1978). Los estraños. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo.

BERGER, P. L. e LUCKMANN, T.(2000). A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes.

Farrington, D. (1991). Psychological contributions to the explanation of offending. Issues in


Criminological and Legal Psychology. Vol. 1, n.º 17, 7-19.

GOFFMAN, E. (1988). Estigma. Rio de Janeiro: Guanabara.

LOMBROSO, C. (1969). L’uomo delinqüente. Roma, s.ed.

SELL, S. C. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Ijuris, 2006.

ZAFFARONI, E. R. & BATISTA, N. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

XIBERRAS, M. (1996). As teorias da exclusão. Lisboa: Instituto Piaget.

Leia mais: http://jus.com.br/artigos/10290/a-etiqueta-do-crime#ixzz2zYM2Gfi6

Leia mais: http://jus.com.br/artigos/10290/a-etiqueta-do-crime#ixzz2zYLe7SaJ

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