Você está na página 1de 17

Tradicionalmente o crime era encarado como uma realidade em si mesmo, ou seja, ontologicamente

considerado. O  criminoso como um indivíduo diferente, anormal ou até mesmo patoló gico. Desse modo
todos os esforços eram alocados para as pesquisas em torno dos fatores  produtores da delinqü ência e os
mecanismos capazes de prevenir, reprimir e corrigir as condutas desviantes. Crime e criminoso vistos como
entes naturais, embora deletérios.
A Criminologia Crítica abandona definitivamente tais concepçõ es e desmistifica a crença no crime como
realidade ontoló gica e natural, bem como a ideologia da figura do criminoso como um anormal. “A
consideração do crime como um comportamento definido pelo direito, e o repú dio do determinismo e da
consideração do delinqü ente como um indivíduo diferente, são aspectos essenciais da nova criminologia.”[4]
Essa mudança de enfoque possibilita a conclusão crucial para um estudo mais realista, de que “o delito não é
um ente de fato, mas um ente jurídico”. “O delito é um ente jurídico porque sua essência deve consistir,
indeclinavelmente, na violação de um direito.”[5]
Durkheim assinala que o crime é um fato rotineiramente tomado como patoló gico pela maioria dos
criminologistas, devido a uma atitude precipitada e irrefletida. Afinal de contas o crime não é encontrável
somente em certas sociedades com estes ou aqueles caracteres. Trata-se de algo presente em toda e qualquer
sociedade; um elemento constante. Nem mesmo a evolução social conduz, juntamente com o seu maior nível
organizativo, a um  decréscimo nos índices de criminalidade. Na verdade, opera-se justamente o oposto: nas
sociedades mais complexas ocorre um avanço da criminalidade. “Não há, portanto, fenô meno  que apresente
de maneira mais irrefutável todos os sintomas de normalidade, dado que aparece como estreitamente ligado
às condiçõ es  de qualquer vida coletiva. Transformar o crime numa doença social seria admitir que a doença
não é uma coisa acidental mas que, pelo contrário, deriva, em certos casos, da constituição fundamental do
ser vivo; seria eliminar qualquer distinção entre o fisioló gico e o patoló gico”[6]
Tendo em vista essa alteração do enfoque epistemoló gico, observar-se-á uma grande diferença entre os
conceitos tradicionais de criminologia e aquele hoje preconizados pelos autores críticos.
Em um primeiro plano pode-se destacar alguns conceitos que bem ilustram a concepção tradicional:
Edwin H. Sutherland define a criminologia como “um conjunto de conhecimentos que estudam o fenô meno e
as causas da criminalidade, a personalidade do delinqü ente, sua conduta delituosa e a maneira de
ressocializá-lo.”[7]
Em sintonia com esse modelo também pode-se arrolar a definição de Newton Fernandes e Valter Fernandes:
“Criminologia é a ciência que estuda o fenô meno criminal, a vítima, as determinantes endó genas e exó genas,
que isolada ou cumulativamente atuam sobre a pessoa e a conduta do delinqü ente, e os meios labor –
terapêuticos  ou pedagó gicos de reintegra-lo ao agrupamento social”.[8]
Ainda nesta mesma linha de pensamento apresenta-se a conceituação de Frederico Marques, para quem “a
criminologia é a ciência que cuida das leis e fatores da criminalidade, consagrando-se ao estudo do crime e do
delinqü ente, do ponto de vista causal – explicativo”.[9]
Estes são apenas alguns exemplos de conceituação fulcradas na aceitação do crime como entidade natural e
do criminoso como sujeito anormal. Verifica-se claramente um intento de obter uma determinação daquilo
que causaria o fenô meno da criminalidade, seja como fator intrínseco no ser – humano, seja como algo
proporcionado pelo ambiente. De qualquer forma, opera-se um corte epistemoló gico artificial entre o crime
(pretensamente tomado como realidade ontoló gica) e as normas jurídicas produzidas pela vida social, afora
a total ausência de preocupação com a atuação do sistema penal. Enfim, desconsidera-se a característica
fundamental do fenô meno criminal, ou seja, sua realidade essencialmente normativa.
Considerando essa concepção tradicional, o objeto de estudo da criminologia cinge-se basicamente à
etiologia e profilaxia do crime.
Por seu turno, a “Nova Criminologia”  apresenta conceituaçõ es bastante diferenciadas, ensejando uma
ingente reformulação na condução dos estudos do fenô meno criminal.
Zaffaroni e Pierangeli conceituam a criminologia como “a disciplina que estuda a questão criminal do ponto
de vista biopsicossocial, ou seja, integra-se com as ciências da conduta aplicadas às condutas criminais”.[10]
Para os criminologistas radicais ou críticos a criminologia é a ciência que estuda a geração do fenô meno
delinqü encial  pela ordem social, buscando uma prática social transformadora, com profundas e radicais
alteraçõ es nas estruturas sociais como meio para o equacionamento do problema do crime e da
criminalidade.[11]
Dessa forma, não só o conceito, mas também o objeto de estudo alteram-se significativamente. O enfoque
principal desloca-se do ato e do agente criminosos para o Sistema Penal e os processos de criminalização,
ensejando a revelação de uma função velada da antiga criminologia como uma “ideologia de justificação do
sistema penal e do controle social de que este forma parte.”[12]
Este é o parecer de Baratta ao afirmar que “de fato, as teorias criminoló gicas da reação social e as
compreendidas no movimento da ‘criminologia crítica’, deslocaram o foco de análise do fenô meno criminal,
do sujeito criminalizado para o sistema penal e os processos de criminalização que dele fazem parte e, mais
em geral, para todo o sistema da reação social ao desvio.”[13]
Ao invés de justificar, legitimar e perpetuar todo o aparato repressivo organizado em torno do fenô meno
criminal, a nova criminologia presta-se a levar a efeito uma rigorosa crítica ao Sistema Penal e aos processos
criminalizadores, abrindo os horizontes inclusive para maiores preocupaçõ es com campos importantes de
proliferação do crime, normalmente relegados a um segundo plano, como os casos da criminalidade
econô mica, ambiental etc., afeitas às classes socialmente melhor posicionadas.
Como se vê, com a “Criminologia Crítica” emerge uma radical mudança de paradigma no trato da questão
criminal. Este fenô meno, segundo o pensamento de Thomas Kuhn, constitui a natureza mesma de qualquer
ciência, pois que esta encontra-se atrelada a determinados modelos ou paradigmas que mudam com o tempo
e as revoluçõ es científicas. Para o autor enfocado, a chamada “Ciência Normal”  “é baseada no pressuposto de
que a comunidade científica sabe como é o mundo. Grande parte do sucesso do empreendimento deriva da
disposição da comunidade para defender esse pressuposto – com custos consideráveis se necessário. Por
exemplo, a ciência normal freqü entemente suprime novidades fundamentais, porque estas subvertem
necessariamente seus compromissos básicos.”[14]
As revoluçõ es científicas desintegram a tradição ligada à chamada “Ciência Normal”, através do embate entre
segmentos da comunidade científica. Este “é o ú nico processo histó rico que realmente resulta na rejeição de
uma teoria ou na adoção de outra”.[15]
A crise da criminologia tradicional exsurge exatamente desse conflito entre um velho paradigma que não
mais se sustenta em confronto com o novo modelo criminoló gico que desvela  os seus pressupostos
equivocados e a sua natureza ideoló gica no sentido de  encobrir fatores deslegitimantes do Sistema Penal.
Bastante incisiva é a exposição de Baratta quanto a essa questão, razão pela qual torna-se imperativo
proceder à sua transcrição em arremate:
“Sobre a base do paradigma etioló gico a criminologia se converteu em sinô nimo de ciência das causas da
criminalidade. Este paradigma, com o qual nasce a criminologia positivista perto do final do século passado,
constitui a base de toda a criminologia ‘tradicional’, mesmo de suas correntes mais modernas, as quais, à
pergunta sobre as causas da criminalidade, dão respostas diferentes daquelas de orem antropoló gica ou
patoló gica do primeiro positivismo, e que nasceram, em parte, da polêmica com este (teorias funcionalistas,
teorias ecoló gicas, teorias multifatoriais etc.).
O paradigma etioló gico supõ e uma noção ontoló gica da criminalidade, entendida como uma premissa
preconstituída às definiçõ es e, portanto, também à reação social, institucional ou não institucional, que põ e
em marcha essas definiçõ es. Desta maneira, ficam fora do objeto de reflexão criminoló gica as normas
jurídicas ou sociais, a ação das instâncias oficiais, a reação social respectiva e, mais em geral, os mecanismos
institucionais e sociais através dos quais se realiza a definição de certos comportamentos qualificados como
‘criminosos’.
A pretensão da criminologia tradicional, de produzir uma teoria das condiçõ es (ou causas) da criminalidade,
não é justificada do ponto de vista epistemoló gico. Uma investigação das causas não é procedente em relação
a objetos definidos por normas, convençõ es ou valoraçõ es sociais e institucionais. Aplicar a objetos deste tipo
um conhecimento causal – naturalista, produz uma ‘reificação’  dos resultados dessas definiçõ es normativas,
considerando-os como ‘coisas’ existentes independentemente destas. A ‘criminalidade’, os ‘criminosos’ são,
sem dú vida alguma, objetos deste tipo:  resultam impensáveis sem intervenção de processos institucionais e
sociais de definição, sem a aplicação da lei penal por parte das instâncias oficiais e, por ú ltimo, sem as
definiçõ es e as reaçõ es não institucionais.”[16]
3 – A EVOLUÇÃ O DO PENSAMENTO CRIMINOLÓ GICO
3.1 – PRELIMINARES
Neste item pretende-se apresentar um breve esboço das diversas correntes do pensamento criminoló gico,
desde seu surgimento e desenvolvimento “tradicional” até os dias atuais, com as suas formulaçõ es críticas ou
radicais.
Duas observaçõ es devem ser feitas antes da exposição das diversas concepçõ es: as linhas de pensamento
criminoló gico não têm, em sua seqü ência, uma divisão estanque, de maneira que convivem em algumas
épocas orientaçõ es distintas e às vezes complementares. Por outro lado, a diversidade de orientaçõ es no
estudo do fenô meno criminal, inclusive passando pelos métodos e instrumentos de diversas ciências, revela
uma tendência de isolamento de cada linha de pesquisa, cada qual arrogando-se  a descoberta da melhor
explicação para o fenô meno criminal. É notável que isso ocorra num campo nitidamente complexo como o da
criminologia, cujo caminho natural seria o de integração ou interdisciplinaridade, conforme bem destacam
Newton e Valter Fernandes.[17]
3.2 – A ESCOLA LIBERAL CLÁ SSICA DO DIREITO PENAL
A figura do crime, da violência, acompanham a sociedade humana desde os primó rdios. A infração às normas
de conduta social e sua punição são temas constantes na histó ria da humanidade. Desde a Antigü idade,
passando pela Idade Média, o fenô meno criminal tem sido objeto de curiosidade. Entretanto, a abordagem
inicial do tema detinha-se basicamente em concepçõ es místicas no Direito Antigo[18] ou de afirmação dos
poderes dos soberanos, na era absolutista.[19]Todo desvio somente apresentava duas explicaçõ es: uma
ofensa a Deus ou ao Príncipe, não havendo qualquer preocupação explicativa do seu germe ou a
consideração de fatores externos a essas relaçõ es (legitimidade da punição, utilidade da pena, legalidade
etc.).
Com o advento do Iluminismo no século XVIII, inicia-se uma fase de estudos e preocupaçõ es com a face
jurídica do crime e das penas. Surge o Princípio da Humanização das sançõ es e a busca de uma utilidade ou
função para estas, sem a qual qualquer punição é tomada como simples crueldade gratuita e injustificável.
[20]
A Escola Clássica Liberal desenvolve-se nesse contexto na Europa no século XVIII e primeira metade do
século XIX. Entretanto, sua preocupação não se dirige ao estudo do fenô meno criminal ou ao criminoso. Seus
postulados referem-se ao conteú do jurídico – penal, procurando desenvolver uma formulação teó rica do
Direito Penal.
É apenas com o Positivismo e o surgimento da Antropologia Criminal que se opera um voltar de olhos ao
crime para o criminoso e a atenção ao estudo do fenô meno criminal em si.
O interessante é notar que embora na Escola Clássica não se possa falar especificamente de uma
criminologia, a qual nascerá com o Positivismo, como se verá posteriormente, existem alguns pontos de
contato entre a visão clássica de delito e a teorização da Criminologia Crítica em oposição à tradicional.
Efetivamente a Escola Liberal Clássica não considera o delinqü ente como um ser diferenciado dos demais,
detendo-se basicamente sobre o crime entendido como um conceito jurídico. Para os clássicos a conduta
criminosa deriva simplesmente do “livre arbítrio” do criminoso e não de causas patoló gicas ou influências
ambientais. Desse modo a pena não visa intervir sobre o delinqü ente para reforma-lo, mas apenas subsiste
como uma “contramotivação em face do crime”. Essa concepção do crime como ente jurídico – normativo e
não natural, bem como do criminoso como um ser – humano não diferenciado, é resgatada pela Criminologia
Crítica ao rebater os pressupostos da Criminologia Tradicional.
Além disso, ao destacar que o poder punitivo do Estado deveria ser assinalado pela “necessidade e utilidade”
da pena e pelo “Princípio da Legalidade”, a Escola Liberal Clássica funcionava como uma “instância crítica em
face da prática penal e penitenciária do antigo regime”.  Aqui também apresenta um ponto de contato com a
Criminologia Moderna que, “contestando o modelo da criminologia positivista, desloca sua atenção da
criminalidade para o direito penal, fazendo de ambos o objeto de uma crítica radical do ponto de vista
socioló gico e político”.[21]
3.3 – O POSITIVISMO E O NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA: CRIMINOLOGIA CLÍNICA E CRIMINOLOGIA
SOCIOLÓ GICA
3.3.1 – O POSITIVISMO
A doutrina filosó fica do positivismo floresceu no século XIX, generalizando na Filosó fica Ocidental um
espírito antimetafísico e antiteoló gico. Ou seja, pretende-se transplantar até mesmo para a Filosofia o rigor
do método científico,[22] reduzindo o conhecimento humano àquele “claro e distinto”, obtido pela análise de
fatos e coisas concretas no melhor estilo cartesiano.[23]
O principal expoente desse período foi Augusto Comte (1798 – 1857), cuja doutrina, divulgada a partir de
1826, costuma, em um sentido mais restrito e histó rico, ser designada como o pró prio positivismo. A
doutrina de Comte abrange “uma teoria da ciência, uma reorganização da sociedade e uma religião”.[24]
Segundo Comte, “o caráter essencial do novo espírito filosó fico consiste na sua tendência necessária a
substituir por toda parte o absoluto pelo relativo”.[25] Assim sendo, o significado emprestado ao termo
“positivo” é aquilo que “vigora de fato ou tem realidade efetiva”.[26] Neste sentido afirma Comte que “a
palavra positivo designa o real em oposição ao quimérico”.[27]
Dessa maneira, o positivismo procura estender a todas as áreas o método científico (até mesmo à filosofia e à
religião), destacando a importância do conhecimento puro e simples dos fatos e de suas relaçõ es.
Zilles expõ e sumariamente as teses fundamentais do positivismo:[28]
a) O ú nico conhecimento verdadeiro possível é o científico e seu método é o ú nico válido. Afastam-se
quaisquer ingerências metafísicas, devido ao fato de que esta é incessível ao método da ciência.
b) O método científico é exclusivamente descritivo, investigando somente os fatos e a relação entre eles.
c) Sendo o método da ciência o ú nico válido, deve ser estendido a todos os campos da pesquisa e da atividade
humana.
Para Comte, “tudo obedece às leis imutáveis da natureza”, cabendo “ao homem descobrir essas leis e reduzi-
las a uma unidade, restringindo-se aos fatos”.[29] O autor sob comento apresenta a chamada “Doutrina dos
Três Estados” ou “Lei da Evolução Intelectual da Humanidade”. Por esta doutrina, todas as investigaçõ es
humanas estão inevitavelmente  sujeitas à passagem por “três estados teó ricos diferentes e sucessivos”,
denominados de “teoló gico, metafísico e positivo”. [30]Sobre o tema transcreve-se a narrativa do pró prio
Comte, bastante elucidativa:
“No estado teoló gico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigaçõ es para a natureza íntima
dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam numa palavra, para os conhecimentos
absolutos, apresenta os fenô menos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais
mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.
No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do primeiro, os agentes
sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstraçõ es personificadas)
inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas pró prias todos os
fenô menos observado, cuja explicação consiste, então em determinar para cada um uma entidade
correspondente.
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noçõ es absolutas,
renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenô menos, para
preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas
leis efetivas, a saber, suas relaçõ es invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, reduzida então
a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenô menos
particulares e alguns fatos gerais, cujo nú mero o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.”[31]
Todo esse clima de efervescência da supervalorização do método das ciências, teve seus reflexos no âmbito
do Direito e, conseqü entemente, nas Ciências Criminais.
No âmbito do Direito o Positivismo Jurídico vem para contrapor-se ao Jusnaturalismo. O Positivismo Jurídico
procura aproximar o Direito, ao máximo possível, do método das ciências naturais, reduzindo-o àquilo que
possui de palpável, observável, passível de medida e descrição, ou seja, as normas legais.
Também nesta área faz-se presente a oposição entre o método cientifico como ú nico norte válido e as
concepçõ es supostamente equivocadas, tomadas como elementos a serem alijados do conhecimento
humano (misticismo, metafísica etc.).
Bobbio retrata sumariamente o antagonismo reinante entre as concepçõ es Jusnaturalistas e Positivistas a
respeito do conceito de “Justiça”:
“Enquanto para um jusnaturalista clássico  tem, ou melhor dizendo, deveria ter, valor de comando só o que é
justo, para a doutrina oposta é justo só o que é comandado e pelo fato de ser comandado. Para um
jusnaturalista uma norma não é válida se não é justa; para a teoria oposta uma norma é justa somente se for
válida. Para uns, a justiça é a confirmação da validade, para outros, a validade é a confirmação da justiça.”[32]
O objeto da ciência jurídica passa necessariamente a ser as normas jurídicas. Segundo Kelsen, “na afirmação
evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação – menos evidente -  de que
são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é
determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou conseqü ência, ou – por outras palavras – na media
em que constitui o conteú do de normas jurídicas”.[33]
Por seu turno, a questão de uma conceituação abstrata de justiça é posta em xeque, como um objetivo
quimérico, inalcançável através de um rigoroso procedimento científico, de modo que as definiçõ es obtidas
pela cultura humana até então não passariam de fó rmulas vazias, maleáveis e servíveis a quaisquer
interpretaçõ es.[34]
Para Kelsen, “nenhuma outra questão foi tão passionalmente discutida; por nenhuma outra foram
derramadas tantas lágrimas amargas, tanto sangue precioso; obre nenhuma outra, ainda, as mentes mais
ilustres – de Platão a Kant – meditaram tão profundamente. E, no entanto, ela continua até hoje sem resposta.
Talvez por se tratar de uma dessas questõ es para as quais vale o resignado saber de que o homem nunca
encontrará uma resposta definitiva; deverá apenas tentar perguntar melhor”.[35]
Esse abandono das questõ es não submetíveis ao método experimental, conduziu, em sede de Ciências
Criminais, ao surgimento de uma preocupação com a  descoberta de relaçõ es e regras constantes capazes de
explicar o fenô meno da criminalidade. Surge então a Criminologia, proporcionando, pela primeira vez, uma
mudança de enfoque no âmbito criminal, dando maior relevância ao estudo da figura do criminoso, que era
praticamente deixada de lado no Direito Penal Clássico, afeito tão somente à teoria jurídica do crime.
3.3.2 – CRIMINOLOGIA CLÍNICA E CRIMINOLOGIA SOCIOLÓ GICA
Tendo em vista a concepção positivista quanto a um suposto “progresso histó rico” do pensamento humano,
que direciona-se de forma ascendente de explicaçõ es místicas, passando por uma fase metafísica, até chegar
ao entendimento estritamente científico dos fenô menos; passa-se a tentar reduzir todo conhecimento à
experimentação, considerando-se primitivas quaisquer outras especulaçõ es.
Neste clima, o fenô meno criminal somente poderia ser pesquisado com base em dados empíricos fornecidos
pela realidade de leis naturais imutáveis e experimentáveis.
A primeira conseqü ência seria necessariamente a individualização do criminoso como objeto de estudo. Isso
operou-se através do afastamento absoluto do “livre arbítrio” pugnado pela Escola Clássica como elemento
de legitimação da responsabilidade criminal. O resultado disso foi a consideração do delinqü ente como um
“anormal”. Segundo Ferri, “o homem que comente um delito, ou por seu preponderante impulso
fisiopsíquico (causa endó gena) ou  por predomínio de condiçõ es de ambiente (causa exó gena), pelo menos
no momento em que realiza o fato, está em condiçõ es anormais”.[36]
Seria necessário dotar o pesquisador de instrumentos hábeis a selecionar, cientificamente, os criminosos
(anormais), dentre a população humana aparentemente homogênea ou normal.
O primeiro esforço neste sentido parte da doutrina de Cesare Lombroso, especialmente com a publicação da
famosa obra “O Homem Delinqü ente”, no ano de 1876.[37]
Lombroso pensou haver detectado no criminoso uma espécie diferenciada de “homo sapiens”, que
apresentaria certos sinais (“stigmata”) físicos e psíquicos. Esses estigmas físicos caracterizariam o “criminoso
nato” (forma da calota craniana e da face, dimensõ es do crânio, maxilar inferior procidente, sobrancelhas
fartas, molares muito salientes, orelhas grandes e deformadas, corpo assimétrico, grande envergadura dos
braços, mãos e pés etc.), além daqueles psíquicos (pouca sensibilidade à dor, crueldade, leviandade, aversão
ao trabalho, instabilidade, vaidade, tendência à superstição, precocidade sexual etc.). Todos esses sinais
seriam conseqü ência de um “regresso atávico”, dadas suas semelhanças com as formas primitivas dos seres
humanos.[38]
Além disso Lombroso julgou encontrar uma relação entre a epilepsia e a “insanidade moral”. Entretanto,
tendo em vista que durante suas pró prias investigaçõ es constatou que nem todos os criminosos apresentam
as características preconizadas[39], elaborou uma distinção entre “criminosos verdadeiros (natos)” e
“pseudo – criminosos”, sendo estes ú ltimos os “ocasionais” e os “passionais”. Portanto, Lombroso “nunca
disse que todo criminoso é nato e, sim, que o verdadeiro criminoso é nato”.[40]
O determinismo lombrosiano levaria a conclusõ es e conseqü ências relevantes na seara da Política Criminal.
Por exemplo, sendo portador não deliberado do impulso criminoso praticamente irresistível,o infrator não
poderia ser exposto a  “expiaçõ es morais e puniçõ es infamantes”. A sociedade poderia, porém, defender-se
aplicando-lhe desde a prisão perpétua até a pena de morte.[41]
Essa doutrina, contudo foi amplamente criticada e desmentida por pesquisas posteriores a indicarem não
existir qualquer indício seguro a demonstrar alguma diferença fisioló gica, física ou psíquica entre os homens
encarcerados e aqueles que jamais foram submetidos a uma condenação criminal.[42]
Malgrado as características deterministas e até mesmo ensejadoras de atitudes preconceituosas, propiciadas
por uma absoluta precipitação conclusiva de Lombroso; tem de ser a ele reconhecido o mérito de haver dado
o primeiro impulso à Criminologia, sob a forma da “Antropologia Criminal”. A Lombroso cabem os louros
pela inauguração do estudo do homem delinqü ente, sendo considerado o “Pai da Criminologia”.[43]
Também foi a partir de Lombroso que se iniciaram os diversos estudos acerca da pesquisa de elementos
endó genos capazes de eclodirem a face criminosa de um ser humano.
Diversas pesquisas em campos variados das ciências naturais e bioló gicas formaram um conjunto de teorias
explicativas do fenô meno criminal, ao qual costuma-se denominar de “Criminologia Clínica”. Como já exposto
anteriormente, essas teorias apresentam uma grave falha porque pretendem explicar isoladamente, dada
uma com seus instrumentos, o crime e o criminoso.
Apenas a título exemplificativo e sumário, passa-se a mencionar alguns campos de pesquisa desta
orientação:
a) Biologia Criminal – São estudos voltados à caracteriologia e morfologia dos criminosos, visando sua
classificação. São expoentes dessa linha de pesquisa Nicola Pende, Ernst Kretschmer e William Sheldon.[44]
b) Criminologia Genética – Neste campo destacam-se os estudos acerca do cromossomo XYY, tomado como
portador dos caracteres ensejadores da conduta violenta no ser humano. Entretanto, nenhum estudo
conseguiu comprovar uma relação entre anomalias cromossô micas, como por exemplo a “Síndrome do Y
extra”, e a tendência para o crime.[45]
A relação entre genética e criminologia torna-se, hoje, bastante atual, em face da grande potencialidade de
manipulaçõ es genéticas propiciadas pelo avanço científico dessa área.
Embora seja inadequado no atual estágio da criminologia pensar-se em uma origem genética ou numa
“Herança Patoló gica” da criminalidade, não é impossível que a descoberta de certos genes responsáveis por
alguma característica considerada arbitrariamente negativa, torne-se fator de tentação para a indevida
ingerência na individualidade humana. A questão neste tema é, além de científica e jurídica, de índole ética,
pois representa uma perigosa possibilidade de desrespeito à personalidade e à liberdade humanas. Neste
sentido é a manifestação de Stella Maris Martinez:
“A tentação de modificar, conforme um plano preconcebido, o patrimô nio genético de significativos grupos
sociais, apresenta-se como um dos principais riscos derivados das novas técnicas de engenharia genética. Em
tal sentido, Rothley salientava:  ‘O benefício da análise do genoma coniste em seu uso na prevenção de
enfermidades. Frente a este benefício se encontram graves riscos que as análises genéticas podem ocasionar.
Os referidos perigos residem especialmente na possibilidade de que surjam imperativos eugênicos e
preventivos de isolamento social de extratos inteiros da população’.”[46]
c) Psiquiatria e Psicologia Criminais- Trata-se dos estudos do crime como conseqü ência de distú rbios
psíquicos, procurando neste campo indicar a anormalidade do criminoso em relação ao restante da
população humana.
São estudos acerca da formação da personalidade (caracteriologia), do narcisismo, das personalidades,
moléstias mentais (neuroses, psicoses e oligofrenias), desvios sexuais, parafilias etc.[47]
Especial destaque merece neste campo a “Teoria Freudiana do Delito por Sentimento de Culpa”. Ela tem
origem na doutrina freudiana da neurose e em sua aplicação no intuito de explicar o comportamento
criminoso.
No que se refere ao crime e ao indivíduo que o perpetra, “a psicanálise cuida de demonstrar que o crime não
é mera resultante de fatores exó genos; que o mundo externo não atua somente sobre a consciência, mas,
também, sobre os extratos mais profundos da personalidade; que esta tem seu comportamento determinado
por seus componentes psíquicos, sendo a conduta anti – social a forma de externalização de um conflito
interno. Essas são as idéias centrais da psicanálise, das quais parte a criminologia psicanalítica”.[48]
Especificamente no caso da “Teoria do Delinqü ente por sentimento de culpa”, cujo escrito data de 1916 e
teve enorme importância, sendo texto fundamental como ponto de partida para todos os estudos
criminoló gicos que se seguiram[49], é relevante salientar que representou “uma radical negação do
tradicional conceito de culpabilidade e, portanto, também de todo o direito penal baseado no princípio de
culpabilidade”.[50]
Segundo Freud, os instintos delituosos são reprimidos, mas não destruídos pelo superego, permanecendo
sedimentados no inconsciente. Tais instintos são acompanhados, no inconsciente, por um sentimento de
culpa e uma tendência a confessar. Então mediante o comportamento criminoso, o sujeito supera o
sentimento de culpa e realiza sua tendência à confissão.[51]
Em seu trabalho (“I delinquenti per senso di colpa”) ele relata que várias pessoas respeitáveis, ao falarem
sobre sua puberdade, narravam a perpetração de atos ilícitos (pequenos furtos, estelionatos, incêndios etc.).
Inicialmente Freud apenas creditava tais ocorrências à debilidade moral natural nessa fase da vida humana.
Entretanto, sentiu a necessidade de aprofundar-se porque alguns pacientes narravam fatos que tais
praticados na idade adulta.
A constatação de Freud foi a de que a prática dessas açõ es estava associada ao fato de serem proibidas e sua
execução propiciava um alívio psíquico àqueles que as cometiam. Observou ainda que tais pacientes sofriam
de um “oprimente sentimento de culpa” de origem desconhecida e que, depois da prática delituosa, a
opressão da culpa era abrandada, tendo em vista que tal sentimento podia ser creditado a algo real.
Havia, no caso, uma inversão, na qual o sentimento de culpa preexistia à ação ilegal, ao invés de surgir depois
de seu cometimento. O crime “era a resultante do sentimento de culpa”, mais que isso, era a sua
racionalização.[52]
Não somente pelo prestígio do autor, como também pela proposta etioló gica aplicável a determinados casos
de fatos criminosos, é interessante o destaque dessa teoria freudiana. Entretanto, agora tomando a
Criminologia Psicanalítica em geral, pode-se dizer que seu maior destaque está na pioneira inclusão (já por
volta dos anos 20 e 30) da sociedade, “sob um ângulo inteiramente diferente” na explicação do fenô meno
criminal. Antecedendo a reflexão propriamente socioló gica proporciona em Freud e seus seguidores uma
meditação acerca da validade do Princípio da Culpabilidade, constituindo-se em elemento crítico frente ao
Direito Penal tradicional.
Por outro lado, outro filão da Criminologia Psicanalítica, constituído pelas “Teorias Psicanalíticas da
Sociedade Punitiva” (Theodor Reik, Franz Alexander, Hugo Staub, Paul Reiwald, Helmut Ostermeyer e
Edward Naegeli), coloca “em dú vida também o princípio de legitimidade e, com isto, a legitimação mesma do
direito penal. A função psicossocial que atribuem à reação punitiva permite interpretar como mistificação
racionalizante as pretensas funçõ es preventivas, defensivas e éticas sobre as quais se baseia a ideologia da
defesa social (Princípio da Legitimidade) e em geral toda ideologia penal. Segundo as teorias psicanalíticas da
sociedade punitiva, a reação penal ao comportamento delituoso não tem a função de eliminar ou
circunscrever a criminalidade, mas corresponde a mecanismos psicoló gicos em face dos quais o desvio
criminalizado aparece  como necessário e ineliminável da sociedade”.[53]
Embasado na teoria freudiana do “delinqü ente por sentimento de culpa”,  Theodor Reik apresenta uma
teoria psicanalítica do Direito Penal. Defende a existência de uma dupla função da pena:
a) para o indivíduo desviante, a pena dirige-se à satisfação da necessidade inconsciente de punição que o
impulsiona a uma ação proibida;
b) para a sociedade, a pena satisfaz uma necessidade de punição, por meio de uma inconsciente identificação
com o infrator.
Desse modo, as concepçõ es retributiva e preventiva da  pena, tradicionalmente defendidas nos meios
jurídicos, não passam de “racionalizaçõ es de fenô menos que fundam suas raízes no inconsciente da psique
humana.”[54]
Toda essa identificação da sociedade punitiva com o infrator, apresentada por Reik, Alexander e Staub,
baseada ainda no mecanismo de “projeção” freudiano, levou Paul Reiwald a desenvolver sua teoria do
criminoso como um “bode expiató rio” da sociedade. Alguém sobre quem recai a descarga de culpas
inconscientes numa tentativa de purificação.[55]
Efetivamente em Freud desde logo encontra-se a definição do tabu como sendo algo desejável mas proibido.
“A base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte inclinação do inconsciente”.[56] Assim
sendo, as açõ es consideradas desviantes têm um característico de serem atrativas aos integrantes da
sociedade em geral (afinal não seria necessário proibir algo que não fosse de modo algum desejado), gerando
a conclusão de que a punição dos infratores das regras sociais proibitivas se dá por um mecanismo
inconsciente de identificação de desejos reprimidos. Essa é a conclusão do pró prio Freud ao asseverar que “é
igualmente claro por que é que a violação de certas proibiçõ es tabus constitui um perigo social que deve ser
punido ou expiado por todos os membros da comunidade se é que não desejam sofrer danos. Se
substituirmos os desejos inconscientes por impulsos conscientes, veremos que o perigo é real. Reside no
risco da imitação, que rapidamente levaria à dissolução da comunidade. Se a violação não fosse vingada pelos
outros membros, eles se dariam conta de desejar agir da mesma maneira que o transgressor.”[57]
Verifica-se que a Criminologia Psicanalítica, muito embora não apartada da explicação etioló gica para o
crime, tem a qualidade de introduzir o elemento crítico do Sistema Penal na pauta de discussõ es, seja de um
ponto de vista microssocioló gico (“Teoria do Delinqü ente por sentimento de culpa”), seja de um ângulo
macrossocioló gico (“Teorias Psicanalíticas da Sociedade Punitiva”).
d) Endocrinologia – Estuda a atuação de secreçõ es endó crinas (glandulares) para a produção do evento
criminoso. Tratam-se de pesquisas voltadas para a “psicofisiologia criminal”.
Segundo Quintilhano Saldañ a, as secreçõ es internas ou endó crinas são de influência reconhecida nas funçõ es
psíquicas e sobre fenô menos psicofisioló gicos complexos. As glândulas endó crinas lançam produtos
diretamente no sangue, que é o elemento bioló gico mais determinante das funçõ es cerebrais. De acordo com
essas pesquisas, “as secreçõ es endó crinas influenciariam os estados emocionais, podendo produzir
modificaçõ es de condutas normais ou patoló gicas.” Podendo também  “produzir psicoses e influenciar o
cometimento de crime”.[58]
e) Estudo das Toxicomanias -  Trata da pesquisa da relação entre as toxicodependências ou mesmo do
simples consumo de drogas (legais e ilegais) como elemento criminogenético. Estes estudos, diferentemente
dos demais casos até agora expostos, não têm a pretensão de apresentarem uma explicação de caráter geral
para o evento criminoso, mas somente procuram a eventual relação com a utilização de tó xicos em casos
concretos e específicos. A conclusão a que se chega nesses casos é a de que as toxicomanias são “um razoável
fator de criminalidade e fenô meno de patologia social que, dia apó s dia, perigosamente, ganha proporçõ es
alarmantes e dificilmente controláveis.”[59]
Apresentado um esboço dos principais aspectos da chamada “Criminologia Clínica”, passa-se agora a expor
os fundamentos da “Criminologia Socioló gica”.
A “Criminologia Socioló gica” surge como um elemento crítico da “Criminologia Clínica”, expondo que sua
insistência nas causas endó genas da criminalidade deixava a descoberto as influências ambientais ou
exó genas presentes na gênese delitiva, estas, segundo seus defensores, amplamente preponderantes.
Seu principal precursor no Positivismo foi Enrico Ferri, o qual no prefácio de sua obra “Princípios de Direito
Criminal”, assim se manifesta:
“Esta ciência, a que eu chamo ‘sociologia criminal’ e que estuda a gênese natural do crime, como fato
individual e social, e dele indica os meios de defesa preventiva e repressiva, compreende necessariamente
também a organização jurídica da repressão, contida no Có digo Penal e no Processo Penal”.[60]
A “Criminologia Socioló gica” continua na senda da pesquisa da etiologia do delito. Apenas altera a natureza
dessa etiologia, transplantando-a para a influência do ambiente.
No Brasil Tobias Barreto lapidou a afirmação de que “a sociedade é co – ré na maioria dos crimes julgados
pelos tribunais”.[61]
Os estudos sobre a influência do ambiente na criminalidade são bastante abundantes e variados. Podem ser
mencionados exemplificativamente estudos de influências de diversas espécies:[62]
a) Geografia Criminal e Meio Natural – Estudos referentes à repercussão do meio ambiente (em sentido
amplo) na gênese criminal.
b) Metereologia Criminal – Refere-se a estudos relativos à influência do clima na incidência criminal.
c) Higiene e Nutrição – Destaca a atuação criminogênica da promiscuidade e da falta de meios básicos de
subsistência, sublinhando  também a pobreza e a miséria como fatores importantes, embora não
necessariamente vinculados ao crime.
Ao tratar do problema do relacionamento eventual entre o crime e a condição social das pessoas é
interessante lembrar uma questão que muitas vezes passa despercebida como uma face oculta dos discursos
que pregam atuaçõ es assistenciais preventivas em bairros ou localidades pobres. Percebe-se, através de uma
análise mais acurada, que os benefícios levados ou projetados para essas localidades não estão focando em
um primeiro plano a satisfação dos direitos básicos dessas pessoas que vinham sendo desprezados, mas, na
verdade, atuam como uma instância preventiva no âmbito criminal, visando atingir e neutralizar uma
população considerada potencialmente perigosa no aspecto delitivo.
Essa constatação é que leva Theodomiro Dias Neto a questionar  onde ficariam as fronteiras entre a atuação
política e social, visando garantia de direitos às pessoas e a mentalidade meramente preventiva e até mesmo
preconceituosa de uma prevenção voltada para os meios sociais menos favorecidos, rotulados como
potenciais geradores de criminosos. Questiona o autor: “açõ es voltadas ao aprimoramento do ensino ou à
criação de espaços de lazer para jovens em uma área de baixa renda e de alto risco criminal devem ser
classificadas como medidas de prevenção criminal? Como seriam as mesmas medidas classificadas se
dirigidas a um pú blico de maior poder aquisitivo?”[63]
Baratta também alerta para o risco de confusão entre políticas pú blicas ou sociais e políticas criminais,
mencionando o perigo da “criminalização das políticas sociais”. Passa a haver uma indevida promiscuidade
entre a satisfação estatal de direitos fundamentais com o fim de prevenção social do crime. Essa mentalidade
acaba dividindo a sociedade infratores potenciais e potenciais vítimas ou entre vigiados e protegidos. A
assistência social não é trabalhada como um dever do Estado para com cidadãos marginalizados e solapados
em seus direitos fundamentais, mas sim como um dever de proteção contra criminosos potenciais.[64]
Essa é uma visão crítica necessária para que a proposta de uma pesquisa etioló gica entre criminalidade e
condição social seja sempre recebida com certa cautela, em face de seu conteú do muitas vezes
estigmatizante, produtor de estereó tipos indevidos, em suma, geradora de preconceitos que, inclusive,
ocultam-se até mesmo no bojo de discursos de caráter assistencial.
d) Sistema Econô mico – Põ e em evidência a capacidade do Sistema Econô mico em criar conflitos sociais, em
especial devido à desigualdade e ao consumismo alimentados pelo Capitalismo. O modelo econô mico pode
ser a origem de outros fatores considerados criminogenéticos, tais como a pobreza, a miséria, a fone, a
desnutrição, o analfabetismo, a educação precária, desemprego, subemprego, êxodo rural e industrialização,
urbanização e densidade demográfica, dentre outros. Ainda ligada umbilicalmente  ao Sistema Econô mico,
especialmente na realidade atual, está a Política, cuja atuação perpetuante das injustiças sociais somente faz
fomentar o arcabouço criminogenético existente.
e) Mal vivência – Trata-se da constatação do potencial criminó geno da adoção deliberada ou desafortunada
de um modo de vida marginal. São os casos dos andantes, vagabundos, mendigos, prostitutas etc.
f) Ambiente Familiar – A desestruturação do lar e da família apresentada como uma das causas
determinantes da criminalidade precoce ou mesmo adulta. Seriam fatores exemplificativos: a violência
doméstica, abusos sexuais no lar, alcoolismo e toxicomanias dos pais, carências afetivas etc.
g) Profissão – Indica-se, através de observaçõ es do dia a dia, a relação entre determinadas profissõ es e a
espécie de crime favorecido por elas. Muitas vezes a atividade profissional do indivíduo pode incliná-lo à
prática de certas infraçõ es penais. Por exemplo: médicos e crimes culposos por imperícia ou abortos;
funcionários pú blicos e atos de corrupção; advogados e contadores e crimes de fraudes processuais ou
fiscais; investidores e crimes financeiros; engenheiros e crimes culposos (desabamentos) etc.
Newton Fernandes e Valter Fernandes fazem menção nesses casos aos chamados “Criminosos Situacionais”,
afirmando que “é induvidoso que certas posiçõ es, ocupaçõ es ou profissõ es, ensejam ao indivíduo facilidades
e benefícios, que confrontados com a situação em que vivem os demais, conferem-lhe privilégios, que a
maioria das pessoas não consegue alcançar”.[65]
h) Guerra – Constituem estudos sobre a influência do ambiente criado durante e apó s uma guerra como fator
gerador de condutas criminosas.
i) Migração e Imigração – Em especial autores norte – americanos apresentam trabalhos dedicados a este
tema (v.g. Edwin Sutherland, Breckinridge, Abbot, Gillin, Healy, Â ngelo Vacaro, Zorbaugh, Clayton etc.),
certamente devido à grande incidência de imigrantes ilegais naquele país e seu relevante papel nas
estatísticas criminais. Deixando de lado, por ora, a questão da “seletividade do Sistema Penal”, que será
analisada no estudo da “Criminologia Radical”, constata-se como elemento criminogenético nos casos de
migração e imigração, a heterogeneidade cultural que passa a avultar no ambiente social e as dificuldades de
adaptação dos agregados, bem como seus sentimentos de frustração ante as expectativas alimentadas
quando de sua partida e a realidade encontrada no destino escolhido. Na realidade brasileira isso pode ser
muito bem retratado com os migrantes de Estados Nordestinos que se instalam em precárias condiçõ es nas
favelas de São Paulo.
j) Prisão e Contágio Moral – A influência deletéria da prisão sobre os encarcerados e sua atuação contrária
aos objetivos comumente preconizados é tema já bastante comentado pela literatura criminoló gica. O
fenô meno do contágio moral pode ocorrer nas prisõ es ou mesmo na vida em sociedade, devido à convivência
com pessoas enfronhadas na marginalidade, no submundo do crime. Ocorre que nas prisõ es tal fenô meno
encontra todo o ambiente especialmente propício para o seu desenvolvimento.
O que se opera no ambiente carcerário, ao contrário da recuperação do delinqü ente, é a sua adequação
completa a um submundo criminoso, fenô meno conhecido como “prisionização”. Por isso, vige na doutrina a
assertiva consensual de que “a realidade, (…), revela que a ressocialização é impossível de ser alcançada, seja
porque ela, em si mesma, é paradoxal,   seja porque os meios oferecidos para a sua execução são
imprestáveis. Por isso, hoje, não passa de um mito”.[66]
Na verdade o tradicional discurso da recuperação ou ressocialização vai perdendo terreno na nova realidade
econô mica mundial em que as populaçõ es marginalizadas tornam-se um entrave, um descarte necessário do
sistema, inexistindo qualquer preocupação com sua inserção ou reinserção social. Ao contrário, o objetivo
maior tende para a sua exclusão definitiva.[67] Não é outra a conclusão de Minhoto:
“Hoje, o enfraquecimento da ideologia de reabilitação e a guinada rumo à valorização da função meramente
incapacitadora do cárcere, para além do debate estritamente acadêmico, parece ter mais a ver com a
transformação da prisão em fábrica de exclusão social, na medida em que o confinamento tende a se
configurar como uma alternativa ao emprego, uma estratégia de neutralização dos setores da população que
se tornam descartáveis ao olhos do sistema produtivo, para os quais não há trabalho ao qual se
reintegrarem.”[68]
Sobre este tema muito haveria a expor. Contudo, seu desenvolvimento excederia os objetivos do presente
trabalho, razão pela qual remete-se o leitor à farta literatura disponível a respeito.[69]
k) Meios de Comunicação – Os meios de comunicação podem ter uma atuação importante na prevenção
criminal, cumprindo sua função educativa e cultural. Entretanto, o que se verifica é a incontrolada busca por
índices de audiência, mediante a exploração de casos criminais reais, divulgando e banalizando a violência,
bem como “ensinando” modalidades de atuação criminosa. Afora isso, os meios de comunicação atuam de
maneira relevante para inculcarem  nas mentes o furor consumista, consistindo em importante fator de
frustração para as camadas mais baixas da sociedade.
Zaffaroni constata essa atuação deletéria dos “mass midia” e propõ e um controle equilibrado a fim de
minimizar seus efeitos:
“(…), as notícias podem ser submetidas a um controle técnico que evite sua difusão através da televisão de
maneira a provocar ou implicar metamensagens reprodutoras ou instigadoras pú blicas de violência, de
delito, de uso de armas, de condutas suicidas ou consumo de tó xicos.
Sem dú vida, este controle técnico seria atacado como lesivo à liberdade de expressão. No entanto, apesar de
a liberdade de expressão consistir na  livre circulação e no amplo direito à informação, as idéias podem
circular com liberdade sem que isso seja incompatível com a proteção da produção nacional, a criação de
fontes de trabalho e a economia de divisas. O amplo direito à informação não é limitado quando não se
impede a circulação das notícias, mas quando se proíbe inventar fatos violentos não ocorridos, mostrar pela
televisão cadáveres despedaçados, explorar a dor alheia surpreendendo declaraçõ es de vítimas desoladas e
desconcertadas, violar a privacidade de vítimas humildes e outros recursos semelhantes, como a incitação de
brigas entre vizinhos de bairros populares, invenção de pseudo – especialistas em matérias que
desconhecem totalmente, apresentação de profissionais desconhecidos como catedráticos etc; isto é, a
propagação de mensagens irresponsáveis que constituem uma deslealdade comercial com o simples objetivo
de obter audiência, numa competição viciada (…).”[70]
Efetivamente é fato notó rio a capacidade reprodutora da violência pelos meios de comunicação com sua
atuação gananciosa e irresponsável. Um exemplo histó rico foram os casos de “vitriolagem”  ocorridos em
França em determinado período. Paul Aubry atribuiu a disseminação da prática (jogar ácido sulfú rico no
rosto das pessoas), a um fenô meno de “mimetismo” ou “contágio moral” propiciado pela divulgação dos
casos de forma irresponsável pela imprensa.[71] Imagine-se, hoje, o quanto esse problema se agigantou,
considerando o grau de desenvolvimento das comunicaçõ es e o fenô meno da globalização.
Findo este quadro sumário das pesquisas da “Criminologia Socioló gica” e das diversas etiologias sociais
indicadas para a origem do crime, no pró ximo tó pico apresentar-se-á as chamadas “Teorias Estrutural –
Funcionalistas”, também de matiz socioló gico, mas que merecem ser estudadas separadamente, tendo em
conta suas peculiaridades.
 
3.3.3 – TEORIAS ESTRUTURAL – FUNCIONALISTAS
As Teorias Estrutural – Funcionalistas têm por ponto de partida a constatação de que o crime é produzido
pela pró pria estrutura social, tendo a sua função dentro do sistema, razão pela qual não deve ser tomado
como uma anomalia ou  moléstia social.
O fundamento teó rico básico e original é ofertado por É mile Durkheim ao apontar para a normalidade do
crime em todas as sociedades. É dele a afirmação de que “o crime é normal porque uma sociedade isenta dele
é completamente impossível”.[72] Mais que isso, para Durkheim, o crime é “necessário” para  a coesão social
e uma sociedade sem crimes é que daria indícios de deterioração. Para o autor o fenô meno criminal provoca
uma reafirmação da ordem social e uma legitimação para a sua existência. Portanto, toda vez que ocorre um
crime, a reação contra ele reafirma os laços sociais e confirma a vigência e validade das normas
regulamentadoras do convívio. É isto que afirma textualmente: “O crime é necessário; está ligado às
condiçõ es fundamentais de qualquer vida social mas, precisamente por isso, é ú til; porque estas condiçõ es de
que é solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e do direito”.[73]
O desvio, sendo funcional, conforme demonstrado, somente será perigoso para a existência e o
desenvolvimento da sociedade quando exceder certos limites. Nestes casos pode advir uma situação de
absoluta desorganização e anarquia, em que todo o sistema normativo de conduta perde seu valor. Ao
mesmo tempo, outro sistema não se firma em substituição, gerando um estado de absoluta falta de regras ou
normas, uma ausência de qualquer orientação sobre a conduta humana. A este estado de coisas, Durkheim
denomina “anomia” e esta sim pode ser um fator extremamente deteriorante da sociedade.[74]
Um exemplo sempre atual de uma situação de “anomia” é a  sensação de impunidade e de ausência ou
negligência dos ó rgãos oficiais, gerando um amplo descrédito no sistema normativo vigente, mas inoperante.
Aliás essa constatação não é nova, encontrando-se intuída  desde antanho na afirmação de Beccaria de que
“não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza do castigo (…)”.[75]
A noção de “anomia” e da funcionalidade do crime na sociedade conduz a uma revolução inclusive no que
tange à finalidade e fundamento da pena, pois que não mais devem ser buscados na profilaxia de um mal.
“Com efeito, se o crime é uma doença, a pena é o remédio e não pode ser concebida de modo diferente; assim
todas as discussõ es que suscita incidem sobre a questão de saber em que deve consistir para desempenhar o
seu papel de remédio. Mas se o crime não tem nada de mó rbido, a pena não pode ter como objetivo cura-lo, e
a sua verdadeira função deve ser procurada noutro lugar”.[76] Confirma-se assim a assertiva  antecedente a
este item, onde afirma-se que as teorias ora em exposição, embora de matiz socioló gico e buscando as
origens do crime, apresentam peculiaridades que as diferenciam das demais pesquisas socioló gico –
criminais praticamente acríticas quanto à visão maniqueísta do crime, do criminoso e das funçõ es do Direito
Penal.
Ainda sob a orientação estrutural – funcionalista há que mencionar a doutrina de Robert Merton. O autor sob
comento se utiliza da noção de “anomia”  para indicar como o desvio é um produto da pró pria estrutura
social, absolutamente normal, na medida em que esta pró pria estrutura acaba compelindo o indivíduo à
conduta desviante, apresentando-lhe metas, mas não lhe disponibilizando os meios necessários para a sua
consecução, de maneira a “tirar-lhe o chão”, abandonando-o sem possibilidades “normais” de obter seus
objetivos. Ausentes os meios legais, mas presente a pressão para a conquista dos objetivos impostos
socialmente, esse vácuo (“anomia”) necessitará ser preenchido de alguma forma. Essa forma é a perseguição
dos fins por meios ilegais, desviantes, já que os legítimos não estão disponíveis.
Segundo Merton, “a desproporção entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios
legítimos à disposição do indivíduo para alcança-los, está na origem dos comportamentos desviantes”.[77] E
mais:  “a cultura coloca, pois, aos membros dos estratos inferiores, exigências inconciliáveis entre si. Por um
lado, aqueles são solicitados a orientar a sua conduta para a perspectiva de um alto bem estar; por outro, as
possibilidades de faze-lo, com meios institucionais legítimos, lhes são, em ampla medida, negadas”.[78]
A maior crítica que se faz à doutrina de Merton é a de que ela somente explica a criminalidade das classes
sociais mais baixas. Ela não serviria para desvelar a criminalidade de “Colarinho Branco” (v.g. econô mica,
fiscal, ambiental etc.). Isso porque tais sujeitos ativos ocupariam um “status” social elevado e teriam à sua
disposição os meios legítimos para o alcance dos fins culturalmente impostos. Mesmo assim incidiriam na
senda do crime. A essa questão a orientação mertoniana não apresentaria uma resposta satisfató ria.
Na visão de Merton essa objeção não seria crucial. Para ele os “criminosos de colarinho branco” seriam
exatamente a personificação do contraste entre os fins culturais socialmente impostos e os meios legítimos
para o seu alcance. Os chamados “homens de negó cios” que incidem em práticas criminosas seriam, então,
aqueles que absorveram amplamente os fins culturais (sucesso econô mico), mas, por outro lado, não
interiorizaram as normas institucionais que determinam os meios legais para a consecução daqueles fins.
Não obstante, Baratta afirma que “a criminalidade de colarinho branco permanece, substancialmente, um
corpo estranho na construção original de Merton. Esta é adequada somente para explicar, naquele nível
superficial de análise ao qual chega, a criminalidade das camadas mais baixas”.[79] Aduz o autor que Merton,
ao tentar adequar sua explicação à criminalidade de “colarinho branco”, se vê “constrangido a acentuar a
consideração de um elemento subjetivo – individual (a falta de interiorização das normas institucionais) em
relação a de um elementos estrutural – objetivo (a limitada possibilidade de acesso aos meios legítimos para
a obtenção do fim cultural, o sucesso econô mico).”[80]
Razão parcial assiste a essa crítica. Efetivamente a adaptação feita por Merton privilegia um aspecto
subjetivo em detrimento de um elemento objetivo original, de maneira a desvirtuar a teoria enquanto
fó rmula explicativa geral.
No entanto, não parece inadaptável de forma absoluta a criminalidade de “colarinho branco” à teoria
mertoniana de desequilíbrio entre fins culturais e meios institucionais, em sua formulação original.
Essa correlação conturbada entre fins e meios, na realidade da sociedade capitalista, atinge a todos
indistintamente. Dependendo da posição ocupada socialmente pelo indivíduo, variará o grau de sofisticação
dos fins almejados. No entanto, a pressão exercida para a conquista destes ou daqueles fins, mais ou menos
sofisticados, necessários ou supérfluos, acaba não diferindo qualitativamente em face da interiorização  pelo
indivíduos em geral das concepçõ es de obtenção sempre maior de bem estar e acú mulo de riquezas. Para
uns, o fim cultural em face à sua condição social, pode ser somente um carro novo, uma casa ou até mesmo
um simples tênis. Para outros, milhõ es em dinheiro, jatos particulares, jó ias etc. Na sociedade capitalista não
existem limites para o acú mulo e o consumo, estando invariavelmente submetidos a um afã de progresso
econô mico infinito, todos aqueles que são submetidos e dominados por tal pressão cultural.
Nesse quadro, em qualquer caso, os fins culturais nunca estarão suficientemente equilibrados com os meios
legais disponíveis ao seu alcance. Se um empresário já tem altos lucros e muitos bens materiais, estará
sempre impelido a aumentar esse lucros e adquirir mais bens. Nem sempre essa operação é viável pelos
meios institucionais, o que o levaria, igualmente àquele indivíduo das classes mais baixas, à senda da
ilegalidade para a consecução de seus objetivos, os quais só diferem dos deste pelo grau de sofisticação. A
“necessidade” de alcance de certos fins na sociedade capitalista é muito mais psicoló gica do que material e
então não há diferença substancial entre as expectativas de progresso econô mico das classes baixas ou altas,
a não ser, como já frisado, pelo grau de sofisticação.
Na verdade se os fins culturais preconizados por Merton fossem aqueles básicos, que constituem uma
necessidade material mínima dos seres humanos, sua teoria  não somente seria inválida para as classes
superiores, mas também para qualquer uma que estivesse acima da linha da miséria. Como já destacado,
esses fins culturais exercem uma atuação muito mais psicoló gica nos indivíduos, do que constituem
verdadeiras necessidades básicas (v.g. roupas da moda, jó ias, carros, bebidas, mobiliário luxuoso etc.).
Mesmo estando em uma situação econô mica privilegiada podem haver certos objetivos inalcançáveis pelos
meios institucionais, mas almejados pelo indivíduo dominado pelo modelo capitalista.
Hobsbawn retrata essa realidade atual: “(…), é evidente que se as pessoas vivem em um nível de subsistência,
isto é, sem garantia dos elementos básicos de vida, como alimento, roupa, abrigo, então é muito importante
sair dessa situação. Elas ficam felizes simplesmente por viver em uma situação na qual não mais precisam
temer a fome. (…). Mas, quando se vive acima do nível da miséria, as coisas são muito diferentes. Mesmo um
aumento na renda ou uma ampliação da gama de divertimentos não assegura, de modo necessário ou
automático, um sentimento de realização ou satisfação. Num mundo em que as pessoas podem viver de bolo,
em vez de pão, não se pode evitar o estresse da inveja e da competição social. Para um indivíduo rico em uma
sociedade dinâmica, é difícil não fazer comparaçõ es com a riqueza acumulada por outros membros do
mesmo grupo social, mesmo tendo obtido já todo êxito que esperava. (…). E isto, obviamente, reduz a
felicidade e aumenta a insegurança.”[81]
Do exposto conclui-se que, na verdade, o equívoco de Merton foi no sentido de pretender desvirtuar sua
teoria original, inserindo um elemento subjetivo desnecessário no caso dos crimes de “colarinho branco”, ao
invés de atentar para a natureza homogênea da pressão psicioló gica dos fins culturais na sociedade
capitalista.
Por outro lado, Baratta também critica a teoria mertoniana em virtude de sua negligência quanto à “relação
funcional objetiva” entre a criminalidade de “colarinho branco” e a “estrutura do processo de produção e do
processo de circulação do capital” legais. Segundo o autor, é fato evidente que “uma parte do sistema
produtivo legal se alimenta de lucros de atividades delituosas em grande estilo”.[82]
Sem dú vida, essa é uma lacuna nos estudos de Merton, a qual, porém, não tem o condão de invalidar suas
conclusõ es nos limites a que se propô s.
Uma teoria que surgiu como uma “alternativa à teoria funcionalista” foi aquela apregoada por Edwin H.
Sutherland, denominada de “Teoria da Associação Diferencial”. Segundo ela,  a criminalidade, à semelhança
de qualquer modelo de comportamento, é aprendida, de acordo com os convívios específicos aos quais se
submete o sujeito, em seu ambiente social e profissional.[83]
Tal pensamento serviu de base para a formulação da chamada “Teoria das Subculturas Criminais”. O
indivíduo aprenderia o crime (técnicas e fins) de acordo com o seu convívio em determinados meios e
assumiria as feiçõ es de certos grupos aos quais estaria ligado por aproximação voluntária (convívio opcional
com certos grupos sociais); ocasional (classe social) ou coercitiva (prisão).[84]
Sutherland afirma que pelo processo de “associação diferencial” o indivíduo, de acordo com seu convívio,
aprende e apreende as condutas desviantes. Por isso, tal teoria poderia explicar tanto a criminalidade das
classes baixas como das altas. Os criminosos menos abastados cometeriam sempre os mesmos crimes,
porque estariam ligados ao convívio de pessoas de seu nível social e somente poderiam aprender essas
espécies de condutas delitivas, não tendo acesso a informaçõ es que os tornassem hábeis a outras práticas
mais sofisticadas. Por seu turno, aqueles mais privilegiados aprenderiam outras modalidades de crimes
afetos a seus meios e, por isso, também raramente incidiriam nas condutas das classes mais baixas.
Aqui  residiria um ponto de contato ou síntese entre a teoria de Merton (fins culturais e meios institucionais)
e a da “associação diferencial”. Isso porque a modalidade de conduta seria distribuída de acordo com os
meios dispostos aos indivíduos para desenvolverem seus impulsos.
Segundo Baratta, coube a Cloward, em um artigo publicado em 1959, proceder à síntese entre as concepçõ es
de Merton e Sutherland, nos seguintes termos:
“Entre os diversos critérios que determinam o acesso aos meios ilegítimos, as diferenças de nível social são,
certamente, as mais importantes (…). Também no caso em que membros de estratos intermediários e
superiores estivessem interessados em empreender as carreiras criminosas do estrato social inferior,
encontrariam dificuldades para realizar essa ambição, por causa de sua preparação insuficiente, enquanto os
membros da classe inferior podem adquirir, mais facilmente, a atitude e a destreza necessárias. A maior
parte dos pertencentes às classes média e superior não são capazes de abandonar facilmente sua cultura de
classe, para adaptar-se a uma nova cultura. Por outro lado, e pela mesma razão,  os membros da classe
inferior são excluídos do acesso aos papéis criminosos característicos do colarinho branco”.[85]
Mas, a concepção de Sutherland pretende ser mais abrangente e geral do que a de Merton, dispondo-se a
fornecer uma fó rmula geral capaz de explicar a criminalidade das classes inferiores e também aquela de
“colarinho branco”. Referida fó rmula residiria na afirmação de que qualquer conduta desviante é “aprendida
em associação direta ou indireta com os que já praticaram um comportamento criminoso e aqueles que
aprendem esse comportamento criminoso não têm contatos freqü entes ou estreitos com o comportamento
conforme a lei”. Para Sutherland, uma pessoa torna-se ou não criminosa de acorco com o “grau relativo de
freqü ência e intensidade de suas relaçõ es com os dois tipos de comportamento” (legal e ilegal), ao que chama
propriamente de “associação diferencial”.[86]
A “Teoria das Subculturas Criminais” demonstra uma coincidência entre os mecanismos de aprendizagem e
interiorização das normas e paradigmas comportamentais ligados à delinqü ência e aqueles mesmos
mecanismos da socialização  normal. Deixa clara a relatividade do livre arbítrio pessoal frente a esses
mecanismos de socialização. Desse modo, “constitui não só uma negação de toda teoria normativa e ética da
culpabilidade, mas uma negação do pró prio princípio de culpabilidade ou responsabilidade ética individual,
como base do sistema penal”.[87]
Finalmente releva tratar da chamada “Teoria das Técnicas de Neutralização”, trazida a lume por Gresham M.
Sykes e David Matza, como uma “importante correção da teoria das subculturas criminais”. “A correção foi
obtida pela análise das ‘técnicas de neutralização’, ou seja, daquelas formas de racionalização do
comportamento desviante que são apreendidas e utilizadas ao lado dos modelos de comportamento e
valores alternativos, de modo a neutralizar a eficácia dos valores e das normas sociais aos quais, apesar de
tudo, em realidade, o delinqü ente geralmente adere”.[88]
É verificável que o indivíduo, mesmo que submergido numa subcultura criminal, sempre tem algum contato
com a cultura oficial e, de algum modo, influencia-se e reconhece algumas de suas regras. Se assim não fosse,
sequer poderia ter consciência do caráter desviante de sua conduta. A partir dessa constatação Sykes e Matza
procuram expor os mecanismos utilizados pelos indivíduos para justificarem para si mesmos e os outros,  a
prática da conduta desviante em detrimento daquela normalizada. Dessa forma, demonstram como as regras
oficiais atuam perante a consciência dos desviantes, fato este não analisado pela “Teoria das Subculturas”.
Os autores descrevem alguns tipos fundamentais de “técnicas de neutralização”: [89]
a) Exclusão da pró pria responsabilidade – o delinqü ente se identifica como vítima das circunstâncias, muito
mais passivamente do que ativamente encaminhado para a atuação criminosa. Por exemplo:  “Pratico roubos
porque estou desempregado e preciso cuidar da minha família”.
b) Negação da ilicitude – o infrator interpreta suas açõ es somente como proibidas, mas não criminosas,
imorais ou danosas e procura redefini-las  eufemisticamente. Por exemplo: “um ato de vandalismo é definido
como simples ‘perturbação da ordem’; um furto de automó vel como ‘tomar por empréstimo’ etc “. Em nossa
realidade é emblemática a frase reducionista em que a pessoa acusada de algum ilícito pergunta em tom de
inconformismo: “O que é que tem isso? Não matei nem roubei!”
c) Negação da vitimização – interpreta-se a vítima como merecedora do mal ou prejuízo que lhe foi infligido.
d) Condenação dos que condenam – atribuição de qualidades negativas às instâncias oficiais. Por exemplo:
Estado opressor;  exploração fiscal; polícia corrupta etc. Também a qualificação de “hipó critas” às pessoas
cumpridoras da lei.
e) Apelo às instâncias superiores – valorização especial de pequenos grupos aos quais o desviado pertence,
com suas normas e valores (v.g. “gangs”, família, amizades etc.), em detrimento do organismo social e seus
regramentos.
Na realidade, a pró pria formação de uma subcultura é a maior e mais operante “técnica de neutralização”,
pois nada enseja uma capacidade tão relevante de abrandar a consciência e defender-se dos remorsos,
quanto o efetivo apoio e aprovação por parte de outras pessoas que são aderentes ao mesmo modelo
comportamental.[90]

Você também pode gostar