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INTRODUÇÃO
Budó, desde o início obra, destaca que mídia e sistema penal se relacionam – é preciso
refletir sobre com o se dá a construção do que é chamado de “crime” e quem são os criminosos,
analisar como e qual discurso é empreendido em relação a isso. Nesse sentido, a mídia se
configura como mecanismo de controle social informal, e o sistema penal, normal; ambos
compondo o controle social geral. Ao se partir da concepção de que a criminalidade é uma
realidade socialmente construída, é fundamental examinar a contribuição da mídia e do sistema
penal (23).
A atuação pode ser sutil, com a mídia legitimando cotidianamente o sistema penal, por
meio da seleção dos crimes que serão noticiados e a forma como isso irá ocorrer. Destaca-se
que, na obra, sistema penal se refere aos órgãos de controle penal que realizam a criminalização;
mídia, ao conjunto dos meios de comunicação em massa (24).
O Direito Penal Liberal tem origem com o surgimento do Estado Moderno. São diversas
escolas que se constituem, o marco da elaboração Clássica é considerado a obra de Cesare
Beccaria “Dos delitos e das penas”, cuja base contratualista apresenta argumentos e princípios
que deslegitimam o arbítrio estatal em matéria penal. A Escola Positiva tem seu paradigma
científico não mais centrado na filosofia jusracionalista, mas no evolucionismo, baseando-se no
raciocínio indutivo (28).
Também pode ser chamada de teoria da reação social, pois identifica a reação da
sociedade como elemento fundamental para que determinado comportamento seja rotulado de
certa maneira. A análise da teoria de Lemert permite observar que não basta que um
comportamento, para que seja criminoso ou desviante, esteja assim definido social ou
juridicamente, é necessária uma reação social diante da sua prática. Essa também é a conclusão
de Becker – considerado o fundador da teoria do etiquetamento –, para quem o desvio não está
na própria conduta, mas na interação entre o indivíduo que cometeu o ato e os que a ele reagem
(32).
Nesse sentido, os grupos sociais criam o desvio ao fazer regras cuja infração é
qualificada como desvio. O processo de criminalização, então, pode ser dividido em dois níveis,
o da criminalização primária e o da secundária. O primeiro se refere a criminalização iniciada
mediante a seleção de condutas desviadas, por meio da definição das normas pelo legislador. A
secundária diz respeito à atribuição da etiqueta de desviante àqueles que descumprem as
referidas normas.
As teorias da reação social também atentam para o fato de que a sociedade e o sistema
penal reagem aos delitos ocorridos diariamente de forma seletiva. A criminalidade é uma
realidade socialmente construída – mediante atuação dos meios de controle formais e informais
–, ambos os processos de criminalização são feios de forma seletiva, a distribuição do status de
criminoso se dá de forma desigual. Na criminalização primária, os bens jurídicos e os interesses
protegidos, por meio das leis, são os das classes dominantes que têm o poder de influenciar o
processo de definição – Becker considera que a possibilidade de impor de forma exitosa certas
normas se deve a uma questão de poder econômico e político. (35)
A teorização dos crimes de elite foi feita pela primeira vez por Edwin Sutherland, cuja
teoria não focou na seletividade, mas nas causas pelas quais as classes altas praticavam crimes.
A criminalidade do colarinho branco sempre foi dificilmente criminalizada de forma efetiva,
motivo que sempre suscitou a questão sobre tais atos poderem ser considerados crimes.
Apesar de ser uma ruptura fundamental de paradigma, algumas críticas são destinadas
ao labelling approach. Uma delas é sobre a não explicação sobre os motivos da delinquência
primária (independente dos rótulos). Outra se refere ao determinismo presente na análise do
desvio secundário – a percepção de que a pessoa etiquetada cometerá novos crimes. Ainda,
destaca-se o fato de que não há como saber se a delinquência se deu efetivamente em razão da
etiqueta – algumas pessoas etiquetadas não voltam a delinquir, e há pessoas que delinquem sem
terem sido alvo de reação social. Também se critica o enfoque microssociológico da teoria,
como se os mecanismos políticos sobre o poder de definição fossem independentes da estrutura
econômica das relações de produção e distribuição (38).
Baratta resume os resultados da crítica do direito penal trazida pela criminologia crítica:
o direito penal não defende todos e apenas os bens essenciais, e quando pune as ofensas feitas
a eles o faz de forma fragmentária e com intensidade desigual; a lei penal não é igual para todos;
a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade das ações e da gravidade
das infrações. Assim, o sistema penal deixa de ser visto como um sistema abstrato e estático de
normas – percebe-se que se trata de um sistema dinâmico de funções. Dessa forma, a noção de
delinquência se transforma, passa a ser vista como um efeito da atribuição da pena (54).
A forma como delitos cometidos por poderosos não são punidos, enquanto as
ilegalidades dos pobres é, evidencia que não há natureza criminosa, mas jogos de força
relacionados à criminalização. Por meio do sucesso em impor ao sistema a impunidade às suas
ações, os grupos poderosos determinam a perseguição punitiva às infrações praticadas pelos
mais pobres. Isso evidencia a seletividade presente no processo de criminalização primária. Na
criminalização secundária, a seletividade é ainda mais intensa, pois ocorre atuação em
conformidade com o estereótipo do criminoso – que faz parte da camada mais marginalizada
da população –, de modo a reproduzir as desigualdades sociais já existentes (55).
Disso pode se concluir que existe na América Latina um sistema penal subterrâneo,
constatação confirmada por três observações feitas por Lola Aniyar de Castro: a desigualdade
socia e a falta de efetividade das leis sociais impossibilitam que o direito penal se aplique de
forma igualitária, o processo de estigma se refere penas à parcela dos acusados e a relação
desses pontos com a polícia. Isso suscita mais uma argumentação a favor da deslegitimação do
sistema penal.
De tudo isso, é possível constatar que a criminalidade é uma construção social, a qual
traz á tona o papel significativo desempenhado no mecanismo de reprodução das relações
sociais de desigualdade. Ou seja, o sistema penal constrói a criminalidade e, por meio disso,
reproduz a desigualdade de classe (58).
Assim, o modelo neoliberal modifica a percepção das práticas sociais de modo geral,
tem-se uma nova divisão internacional do trabalho e a flexibilização dos processos produtivos
– cujas consequências são variadas, como a precarização das relações de trabalho e o aumento
de subemprego e desemprego (64/65). Em razão disso, o número de excluídos do sistema é
elevado e crescente, ao mesmo tempo que os mais ricos acumulam cada vez mais riqueza. Na
América Latina o problema é ainda mais sensível, pois os países já possuíam grande
desigualdade estrutural. O papel do legislador cada vez mais passa ser visto como um meio para
garantir votos, o que afeta a forma como são decididas as práticas legislativas – que são
direcionadas para atingir o apoio popular, geralmente refletido em edição de leis penais (66).
Assim, muda-se o sentido da palavra segurança, que passa a ser entendida como poder
de polícia de Estado. Trata-se de uma passagem do Estado Social máximo para o Estado Social
mínimo, e do Estado Penal mínimo para o Estado Penal máximo (67). Tais tendências,
reveladas em mudanças na legislação em favor do aumento da repressão penal, buscam atingir
o foco do Estado de Direito, a proteção dos direitos humanos. Os excluídos passam a ser vistos
como ameaças e, para se proteger parcela da população, retira-se os direitos de outra. Ou seja,
a política torna os mais fracos uma ameaça – protege-se os mais fortes (68).
Ressalta-se que os fenômenos observados na Europa e nos Estados Unidos não podem
simplesmente ser importados para a América Latina, em razão dos diferentes contextos
políticos e sociais. Fato é que a globalização é o marco histórico de controle social típico de
uma perspectiva colonial, há uma repressão interna – desenvolvida pelos processos de
criminalização primária e secundária – e desestabilização do Estado de Direito, afetado pela
espetacularização da política e da cultura do medo alimentada pela mídia – de modo que é
possível se falar em um direito penal do inimigo (Zaffaroni) – algumas pessoas são consideradas
iguais e têm seus direitos reconhecidos, para outros tais direitos são inexistentes (69/70).
Para além da noção de leis penais para atrair votos, há diversas teorias legitimadoras do
sistema penal e da punição, como a política da tolerância zero e a das janelas quebradas, ambas
relacionadas a perspectiva de punição das mínimas infrações, sem considerar o contexto social
dos que as praticaram. A função de tais doutrinas é administrar a pobreza, e sua aplicação foi
empiricamente comprovada como insatisfatória (72/73).
Nesse contexto, a prisão passa a ter como único objetivo a neutralização, como se fosse
um grande depósito. A indústria do crime cresce e os presos se tornam “matéria prima” para o
controle do crime (74). Essa postura é refletida nos massacres e descasos relativos às condições
sanitárias e à segurança e aos demais direitos dos presos. Contudo, ocorre que, apesar de terem
integrado a tendência à criminalização, os países da América Latina não possuem a estrutura
necessária para tornar essa relação um negócio, motivo pelo qual a política se alia ao poder da
mídia, promovendo a necessidade de repressão por meio da espetacularização dos fatos.
Ocorre, então, uso simbólico do direito penal, exemplificado em leis de emergência, por
exemplo, que fomentam o sentimento de medo. O alarma social se torna uma ferramenta para
estabelecer um consenso acerca das instituições (75). O medo legitima a utilização do poder
público em níveis que, para qualquer Estado Democrático de Direito, seria inadmissível. Assim,
é necessário verificar o papel do jornalismo em relação ao processo de criminalização no
contexto da globalização (76).
A partir do século XIX, no entanto, a lógica passa a ser outra – busca-se separar
estaticamente a opinião da notícia, ideia designada de objetividade jornalística (78). Notou-se
que a subjetividade dos jornalistas era inevitável, motivo pelo qual, no desenvolvimento da
prática jornalística, diversas transformações ocorreram no decorrer do tempo – como a
introdução de colunas assinadas. Essa pretensão de objetividade surge ao mesmo tempo que a
teoria do espelho, que situa a notícia como a imagem da realidade refletida no espelho (79).
Tal teoria representa a ideologia dominante da prática jornalística, e é seu principal mito.
Tem-se a ideia de que apenas os fatos importam, e não a interpretação deles; contudo, as teorias
mais recentes acerca do jornalismo encaram a objetividade por diferentes perspectivas. Com o
avanço da comunicação, a pesquisa sobre ela passou a ter mais destaque na academia, de modo
que, principalmente a partir do século XIX, diversas teorias da comunicação surgiram,
principalmente relacionadas a temáticas sociológicas (80).
Perspectivas administrativas consideraram os pressupostos da sociologia funcionalista
vigentes, analisando a influência social desempenhada pela atividade jornalística. A teoria
crítica abordou um ponto de vista relativo ao desempenho de um importante papel na
reprodução da dominação por meio da indústria cultural, por parte dos meios de comunicação.
Ou seja, a indústria cultural tem uma estratégia de domínio por meio de algumas táticas, sendo
uma delas a estereotipização, que facilita a antecipação das experiências sociais realizadas pelos
sujeitos (81). Em determinado momento, o papel dos meios de comunicação de massa passa a
ser o de influenciar no processo de significação do mundo, ou seja, na construção social da
realidade, de forma conjunta aos processos de interação social.
Nessa perspectiva, tem-se a hipótese do agenda setting, que parte do pressuposto que os
meios de comunicação não conseguem, por si mesmos, produzir efeitos no sentido de
determinar a conduta das pessoas, mas podem decidir os assuntos sobre os quais falarão (82).
É relevante, então, destacar que determinadas experiências se dão por meio dos meios de
comunicação de massa, e não pelas interações sociais; ou seja, parcela da realidade de vida dos
indivíduos é construída em função da atuação desses meios (83).
Nesse sentido, é significativo notar a consequência das tipificações, a forma como são
usadas para transformar acontecimentos diários em matéria prima de disseminação. A noção de
enquadramento consiste não na definição do que vai ser a notícia, mas a forma como serão
abordados e transmitidos os fatos (90). De certa forma, o enquadramento possui o mesmo
raciocínio que os estereótipos, trata-se de uma perspectiva organizadora sobre acontecimentos
relevantes para determinar um tema (91).
Os acontecimentos não podem ser noticiados em sua totalidade, motivo pelo qual é
necessário um enquadramento – um recorte da totalidade. É uma moldura que, ao mesmo
tempo, seleciona e contextualiza; é uma forma pela qual operam os critérios de noticiabilidade.
Fontes são as pessoas ou instituições que fornecem informações ao jornalista. A relação entre
as fontes e o jornalista são flexíveis e condicionam o resultado do trabalho (96). É importante
que a fonte seja dotada de credibilidade, trata-se de um aspecto relevante para que a notícia seja
considerada verdadeira e o jornal reafirme sua seriedade. No caso das fontes institucionais,
geralmente possuem a credibilidade inerente à sua posição (97).
Assim, o jornalista se torna responsável pelas fontes citadas. Sobre estas, contudo, o
jornal confere o efeito que a ele for conveniente, não se trata de uma reprodução cega do que
afirmam – não é o discurso de todas as fontes que é assumido como verdade. É preciso, contudo,
retirar a exclusividade do jornalismo na construção social da realidade (101).
1.2.3 O sistema penal nas notícias: controle social e legitimação (102).
Assim, a mídia, por meio da sua atuação maniqueísta, separando o “bem” e o “mal”,
determina a posição daqueles retratados nas notícias e reafirma o status quo, sendo, portanto, e
para além disso, um importante mecanismo de controle social (106).
A mudança de paradigma nas pesquisas de comunicação, ao perceber a notícia como
construção social, opõe-se à visão de que os meios de comunicação em massa manipulam a
massa. Passa-se a considerá-los como veículos de uma ideologia de controle já existente. Tal
controle se reflete e manifesta nas relações sociais, gerando medo e insegurança em relação a
apenas parcela da população. Os meios de comunicação em massa, portanto, auxiliam as demais
instâncias do controle social na construção social da delinquência – a linguagem
instrumentalizada utilizada legitima o sistema penal (107). A mídia, então, além de auxiliar a
legitimação do sistema penal e na manutenção do status quo, relaciona-se com movimentos de
política criminal que reivindicam o aumento da repressão (108).
A mídia, então, não se configura apenas como mecanismo de controle social informal,
pois, conforme se caracteriza por ser um órgão receptor de denúncias – acompanhando os
processos de prisão e repassando informações à polícia –, também atua como mecanismo de
controle social formal. Conforme Nilo Batista, a mídia vem assumindo papel de agência
exclusiva do sistema penal, influenciando diretamente nas investigações e nos processos – ou
seja, os sistemas midiáticos passam a desempenhar funções intrínsecas às atividades das
agências do sistema penal (115).
Fato é que não houve reforma agrária, e sim uma política de distribuição de terra
despreocupada com o futuro dos camponeses (145). A “Reforma Agrária de Mercado” ocorrida
nesse período, segundo Fernandes, ocorrida nesse período, buscava combater as ocupações de
terra – houve até mesmo manipulação de dados (146).
Por mais que ainda não tenha sido plenamente satisfatório, o MST reconhece o aumente
relevante de assentamentos durante o governo Lula (148). Ainda assim, o próprio governo
contribuiu para a concentração de terras, em vez de adotar uma efetiva política de redistribuição.
A lógica do agronegócio permaneceu em confronto com os camponeses (149).
Sendo assim, nota-se que a implantação de uma política efetiva de distribuição de terras
conflita com os interesses dos mais poderosos. A década de 90 foi de permanência da
concentração de terra, e a estrutura fundiária concentrada está diretamente relacionada à
situação de miséria em que vive grande parte da população rural (150). A modernização do
campo, ocorrida durante a ditadura militar, significou o recrudescimento de uma conflitualidade
que já existia; houve uma nova forma de exclusão, o capitalista e o proprietário de terra se
fundem na mesma pessoa. A expansão do agronegócio, propiciada por essa fusão, acirrou o
problema da concentração de terra no Brasil (151).
Nesse sentido, a violência e os conflitos são anteriores à luta pela terra por meio de
movimentos como o MST; ou seja, os conflitos agrários não se resumem a tais movimentos,
como querem fazer parecer os proprietários de terra (154).
O MST declara que sua luta não é exclusivamente relacionada à terra, afirmando que,
de fato, o latifúndio é seu grande inimigo, mas também a miséria, o analfabetismo, a fome, a
violência no campo e na cidade por ele gerados. Assim, conforme seus objetivos, princípios e
programas, o MST realiza sua prática, que se divide em vários segmentos de atuação (157). As
ocupações realizadas são uma forma de resistência e denúncia, e deve ser destacado o debate
acerca do termo utilizado para defini-las. Ruralistas e latifundiários se referem a elas como
invasões, enquanto os próprios trabalhadores rurais afirmam se tratar de ocupações (158).
Posteriormente à ocupação, tem-se o acampamento permanente, que é seguido por um
momento de negociação com o governo. A importância de tais atos é evidenciada pelo fato de
que se observa ausência de desapropriações e políticas relacionadas à reforma agrária onde o
MST é fraco ou não está presente. Ainda, é preciso salientar que seus atos têm respaldo jurídico,
tanto pela Constituição Federal quanto pelas leis ordinárias relativas ao tema (159). Sendo
assim, a atuação do MST se constitui em ações políticas com uma finalidade de concretização
de direitos. A ocupação não é o início dos conflitos, este se deu pela exploração e pelas
desigualdades resultantes do desenvolvimento desigual do capitalismo (160).
Contudo, a partir da luta e pelos movimentos pela terra, os conflitos se tornam mais
intensos e numerosos. Isso reflete o fato de que questionar e desafiar a propriedade privada a
partir de sua função social significa questionar o poder concretizado na terra pela tradição (160).
Percebe-se, então, um aumento no número de conflitos no campo nos últimos anos; o que fez
com que outras formas de violência já tradicionais no campo brasileiros se expressassem mais
(161). O número de mortes tem se mantido elevado nos últimos onze anos, e isso se explica
pelo fato de que é comum o uso de milícias e jagunços para a execução de pessoas incômodas
(162/163). Isso é um reflexo do histórico das classes dominantes agrárias de uso da violência
como instrumento de controle e poder (163).
Além das reações privadas à luta pela terra, os interesses dos proprietários também são
defendidos por meio da violência do sistema penal – reintegrações de posse realizadas pela
polícia com violência, por exemplo. Assim a luta dos sem-terra passa a ser de contra a violência
estrutural para contra a violência institucional, que pode ter formas legais e ilegais (168). Essa
ocorrência da violência institucional contra os conflitos agrários foi particularmente forte no
período da ditadura militar – a narrativa da ameaça comunista foi suficiente para executar
muitos líderes dos trabalhadores rurais. A intervenção militar nas relações rurais resultou em
uma suplantação de forças com os proprietários (170).
Desse modo, o controle social formal não se limita em construir uma criminalidade
comum (seletiva), busca, mais do que isso, delimitar um inimigo político. Essa constituição do
inimigo, contudo, não é exclusiva da criminalização secundária, apresenta-se, também, em sua
forma primária – como exemplificam tentativas de criminalizar legalmente e inserir as
ocupações de terra no rol de crimes hediondos, além de configurá-las como atos terroristas
(176/177). Na verdade, a violência do sistema penal se inicia pela atuação dos legisladores, no
caso da reforma agrária, como a maioria dos representantes do podo é proprietária de terras,
não surpreende que demandas relacionadas a ela não avancem (179).
2.2 Os conflitos agrários nas páginas do jornal: o medo da luta, o medo do outro (182).
Os jornais são locais privilegiados para a exposição de discursos. O que se pretende no
discurso jornalístico é distanciar fato e opinião e, na busca por credibilidade, contudo, ocorre o
uso de uma linguagem que retrata fatos, mas também legitima e difunde valores. Portanto, para
a análise da questão agrária, dos conflitos no campo e da violência, é fundamental que se
relacione o discurso do jornal (183).
Van Dick destaca o processo de produção das notícias, analisando os passos que se dão
na fabricação do texto jornalístico – evidenciando a existência de estratégias de processamento
(186). A linguagem jornalística tem algumas regras a serem seguidas, as funções linguísticas
predominantes são a referencial e a fática – para o discurso jornalístico, é preciso que os leitores
acreditem no que estão lendo (187).
Existe uma relação de poder entre emissor e receptor (188). Disso decorre uma tendência
do receptor considerar válida e verdadeira uma proposição à primeira vista falsa. Para a análise
subsequente – considerando os fatores mencionados – optou-se por analisar o jornal Zero Hora
– jornal de circulação regional do Rio Grande do Sul (189). Destina-se às classes A e B, e suas
normas editoriais defendem a precisão – visto no que foi dito sobre as teorias jornalísticas como
objetividade –, não cabendo ao jornalista o posicionamento frente ao conflito; o jornal consagra
a distinção entre fatos e opiniões.
O texto segue com análise dos conflitos no campo no Rio Grande do Sul, que possui
algumas características específicas, como o fato de que as terras pelas quais os sem terra lutam
não são devolutas nem públicas. O problema é a concentração de terra (191). As mobilizações
organizadas – com apoio de estudantes, sindicatos e outros – foi, desde o início, reprimida. As
propostas trazidas pelos trabalhadores do campo foram recusadas, o que ensejou a violência
institucional, havendo, inclusive, intervenção federal no local, além de pressão de instituições
como a OAB. É em função dessas especificidades da região que se optou por analisar um jornal
envolvido com esse contexto histórico – é o caso do jornal Zero Hora (192). O foco se
direcionou às notícias e seções referentes à questão agrária, cujo processo envolveu a análise
do discurso, além de categorias para o exame do conteúdo – medo/vigilância; paz/conflito;
violência/crime (193).
Na maior parte das notícias analisadas, os atores envolvidos no fato originário da notícia
eram integrantes do MST e ruralistas. Uma parte relevante das notícias se referiu aos riscos das
ações do MST, em função disso, há uso de expressões que denotam tensão e necessidade de
vigilância dos sem-terra (197). O uso de imagens nas notícias corrobora com isso – há o uso de
uma mostrando um fazendeiro observando os integrantes do MST com binóculos –, já que se
evita usar fotografias de marchas e acampamentos. A ação dos ruralistas com a polícia se
estreita com o avanço dos atos, conclusão resultante da representação da polícia como vigilante
que monitora as ações do MST (198/199).
Isso evidencia que o enfoque não é isento, o discurso ideológico forte dos ruralistas é
demonstrado – o qual abarca discriminação, preconceito e postura assassina (208). Nesse
sentido, o jornal Zero Hora, ao reproduzir nas notícias exclusivamente a perspectiva dos
proprietários, apoia um discurso de classe que se conduz ao extermínio (209). Identifica-se os
atos dos sem-terra como sinônimo de desordem e rompimento da paz, e o discurso é higienista
– usa-se o termo “sujeira” para se referir a eles. Além de higienistas, tais discursos são
genocidas, busca-se a limpeza, que é atingida com a eliminação da sujeira (210).
A maior parte das notícias relacionadas à terra foi caracterizada pelo uso do termo
“questão agrária”, sendo interessante verificar o que o jornal Zero Hora entende por isso. A
questão agrária só é notícia quando se refere a um conflito pontual (211). A conflitualidade é
anterior às lutas camponesas pela terra, mas retratar a realidade como sendo pacífica antes da
luta é algo presente em todas as notícias, forja-se uma ordem natural das coisas, na qual os
conflitos agrários são vistos como gerados pela luta pela terra, de modo que os atos dos
ruralistas são qualificados como sendo uma reação às condutas do MST (212).
Assim, o discurso da mídia adota os mesmos termos usados pelos fazendeiros e pelo
sistema penal, qualificando os atos do MST como crimes contra a ordem ou patrimônio (222).
Contudo, por mais que o jornal siga essa linha, não considera o ato de invadir terras como um
crime comum – se assim fosse, a notícia estaria na seção “polícia” e não na “geral”. Isso
significa que o jornal reconhece uma questão política e social de fundo no caso das ocupações,
que distingue seu caráter em relação a crimes comuns. Isso implica características específicas
no modo de retratar as notícias, os líderes e integrantes do MST não são meros camponeses,
mas inimigos do Estado – para que assim possam ser passíveis de vigilância e temor (um maior
controle social) (223).
Dessa maneira, abordar a questão agrária não é o objetivo das notícias, que consiste, na
realidade, na legitimação e justificação do controle social e da vigilância empreendida contra
os sem-terra – considerados inimigos. Contudo, por mais que sejam generalizados como um
grupo de criminosos, há preocupação em separar os inocentes dos culpados, estes considerados
os líderes dos movimentos. É sob esse pretexto que se afirma se tratar de crimes com motivações
políticas e ideológicas, o que os tornam distintos de crimes comuns (225).
A relação dos atos do MST com o crime é bem caracterizada nas decisões dos membros
dos órgãos do sistema penal. Na maior parte das notícias, a atuação da Brigada Militar é
autorizada pelo Judiciário. No momento em que os sem-terra tentam entrar em alguma
propriedade para fazer suas manifestações, a violência estrutural contra a qual lutam se converte
em violência institucional (226). O uso de fontes oficiais continua forte – a Brigada Militar
aparece como voz direta – e a narrativa é de que a atuação desta consiste em defesa contra os
manifestantes (227). A atuação dos agentes do sistema penal, no que se refere à questão agrária,
sempre aparece de modo a complementar a dos fazendeiros, e vice-versa. Contudo, em alguns
casos específicos, a atuação dos agentes parece mais ser uma segurança particular dos
fazendeiros.
Ainda, é conveniente analisar como outras seções do jornal – para além do âmbito das
notícias e reportagens – abordam a questão agrária. Por mais que sejam textos de opinião e,
portanto, não necessariamente reflitam a opinião do jornal, há uma seletividade envolvida. Um
exemplo é a seção “palavra do leitor”, na qual todas as opiniões relacionadas ao MST são
completamente contrárias à sua atuação (230). Ao expor a inconformidade do povo com os atos
dos sem-terra, o jornal busca uma deslegitimação popular de um movimento cuja base é
justamente o povo (231). A reprodução de posicionamentos de políticos e membros de órgãos
públicos segue na mesma linha, havendo até mesmo publicação de entrevista com um ministro
da justiça da época, na qual três, de um total de oito, questionamentos foram sobre o MST (232).
É nesse sentido que se legitima o aumento do controle policial e o ímpeto de repressão aos atos
do movimento (233).
2.2.4 Conflitos agrários no jornal: da invisibilidade à satanização (233).
Desde que os jornais se constituíram como empresas, a cobertura sobre revoltas escravas
e camponesas sempre foi marcada pela invisibilidade do sofrimento humano, que legitimava
atos cruéis. Atualmente, o tipo de abordagem sobre as revoltas ainda tem características
específicas. O interesse pela manutenção do status quo se dá no uso predominante de fontes
oficiais, de modo a não permitir o dissenso e, nas ocasiões que opinião distinta for retratada,
tratá-la de forma distorcida (234).
CONCLUSÃO
Deve-se evitar determinismos, mas as decisões tomadas nas redações, frente aos
interesses políticos e econômicos, costumam não contemplar os problemas estruturais, focando
em fatos individualizados, descontextualizados e despolitizados (248). Assim, os meios de
comunicação de massa optam por divulgar conflitos específicos do campo, deixando de lado o
fato de que essa luta consiste na base para a sobrevivência dos grupos envolvidos – a lógica do
jornal é a de que os sem-terra que iniciaram os conflitos. Na difusão da ideia de que é necessária
vigilância, o jornal legitima o controle social (249).
O jornal reproduz quase que de forma absoluta o discurso das fontes oficiais e dos
fazendeiros. Ou seja, por mais que se retrate atos do MST, sua voz está absolutamente
subrepresentada em relação a dos ruralistas e dos agentes do sistema penal. Portanto, diante de
tal situação, é explicita a necessidade e importância dos movimentos sociais para romper com
esse ciclo de legitimação da violência (251).