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FICHAMENTO

BUDÓ, Marília de Nardin. Mídia e Controle Social: da Construção da Criminalidade dos


Movimentos Sociais à Reprodução da Violência Estrutural. 1. Ed. Revan, 2013

Matheus Ideta, turma 2B, GRR: 20212269

INTRODUÇÃO

Budó, desde o início obra, destaca que mídia e sistema penal se relacionam – é preciso
refletir sobre com o se dá a construção do que é chamado de “crime” e quem são os criminosos,
analisar como e qual discurso é empreendido em relação a isso. Nesse sentido, a mídia se
configura como mecanismo de controle social informal, e o sistema penal, normal; ambos
compondo o controle social geral. Ao se partir da concepção de que a criminalidade é uma
realidade socialmente construída, é fundamental examinar a contribuição da mídia e do sistema
penal (23).

A atuação pode ser sutil, com a mídia legitimando cotidianamente o sistema penal, por
meio da seleção dos crimes que serão noticiados e a forma como isso irá ocorrer. Destaca-se
que, na obra, sistema penal se refere aos órgãos de controle penal que realizam a criminalização;
mídia, ao conjunto dos meios de comunicação em massa (24).

Analisar o jornalismo implica um estudo sobre a forma de construção seletiva da


realidade, por meio da escolha dos fatos narrados e da forma como são transmitidos, que segue
um critério. Na atualidade brasileiro, para além da questão da violência urbana, que geralmente
é o objeto de estudo dos pesquisadores, é significativa a situação da violência no campo, que, a
cada dia, agrava-se. As revoltas populares e a repressão a elas já causaram muitas mortes, a
promessa da reforma agrária não se realizou e as ocorridas desapropriações de terra não foram
suficientes para diminuir a crescente desigualdade social e o aumento da miséria no campo.

A partir da década de 50, novas formas de resistência no campo dominaram o cenário


rural brasileiro. Trata-se da organização dos trabalhadores rurais destituídos de terra para
plantar e habitar. Na década de 80, com a abertura política e a realização da constituinte, houve
grande efervescência relacionada ao tema, culminando com a formação do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) (25).
A criminalidade não é um dado, mas um produto das interações e do desempenho dos
controles sociais formal e informal. Portanto, o foco destinado às ações dos sem-terra, conforme
a forma como é realizado, resulta em criação de estereótipos e preconceitos relativos ao
movimento – seja na esfera social ou na institucional (sistema penal) (26).

CAPÍTULO 1) A Criminalidade Como Realidade Socialmente Construída.

1.1 Da construção social da criminalidade à reprodução social das desigualdades (27).

O Direito Penal Liberal tem origem com o surgimento do Estado Moderno. São diversas
escolas que se constituem, o marco da elaboração Clássica é considerado a obra de Cesare
Beccaria “Dos delitos e das penas”, cuja base contratualista apresenta argumentos e princípios
que deslegitimam o arbítrio estatal em matéria penal. A Escola Positiva tem seu paradigma
científico não mais centrado na filosofia jusracionalista, mas no evolucionismo, baseando-se no
raciocínio indutivo (28).

Ambas se complementaram nas legislações do século XX e no desenvolvimento da


ideologia da defesa social, que legitima o sistema penal. A crítica destinada a ela o deslegitima,
propondo a busca por alternativas político-criminais alternativas ao sistema penal. Uma dessas
teorias é o labelling approach (teoria do etiquetamento), que produz uma ruptura epistemológica
na criminologia ao mudar o foco do crime e suas causas para o fenômeno da criminalização
(29).

1.1.1 A sociologia interpretativa e a teoria do etiquetamento (30).

A origem da teoria do etiquetamento remonta à década de 60, momento de influência


de duas correntes da sociologia norte-americana: o interacionismo simbólico (Mead) e a
etnometodologia (Schutz). Para o interacionismo simbólico, a realidade social é constituída por
uma infinidade de interações intersubjetivas, às quais um processo de tipificação confere
significado, por meio da linguagem. E etnometodologia também valoriza a linguagem,
considerando-a um elemento que descreve a realidade social e, ao mesmo tempo, é responsável
por constitui-la. Essa corrente busca entender como os indivíduos veem, descrevem e propõem
de for a conjunta uma definição para uma situação; ou seja, a realidade é uma construção social
constituída por processos de definição e tipificação.
A partir dessas bases teóricas, a teoria do etiquetamento estabelece a percepção do
desvio como construção social, constituída a partir de interações ocorridas na sociedade –
algumas pessoas são definidas como desviantes. Portanto, essa teoria se distancia da
criminologia tradicional ao perceber o crime e o criminosos não como entes ontológicos, mas
como construções resultantes de interações sociais. (31)

Também pode ser chamada de teoria da reação social, pois identifica a reação da
sociedade como elemento fundamental para que determinado comportamento seja rotulado de
certa maneira. A análise da teoria de Lemert permite observar que não basta que um
comportamento, para que seja criminoso ou desviante, esteja assim definido social ou
juridicamente, é necessária uma reação social diante da sua prática. Essa também é a conclusão
de Becker – considerado o fundador da teoria do etiquetamento –, para quem o desvio não está
na própria conduta, mas na interação entre o indivíduo que cometeu o ato e os que a ele reagem
(32).

Nesse sentido, os grupos sociais criam o desvio ao fazer regras cuja infração é
qualificada como desvio. O processo de criminalização, então, pode ser dividido em dois níveis,
o da criminalização primária e o da secundária. O primeiro se refere a criminalização iniciada
mediante a seleção de condutas desviadas, por meio da definição das normas pelo legislador. A
secundária diz respeito à atribuição da etiqueta de desviante àqueles que descumprem as
referidas normas.

Sendo assim, o processo de etiquetamento pode modificar a identidade do indivíduo –


cria-se uma identidade desviante, surge um estigma que torna provável que o sujeito permaneça
no papel social atribuído pela reação social (33). A partir da interação social, certas pessoas são
identificadas com certos papéis, sendo que a etiqueta a ela atribuída não se refere apenas a
específicos atos, mas à conduta geral do indivíduo etiquetado. Surge a dimensão de uma
profecia que se autorrealiza (34).

As teorias da reação social também atentam para o fato de que a sociedade e o sistema
penal reagem aos delitos ocorridos diariamente de forma seletiva. A criminalidade é uma
realidade socialmente construída – mediante atuação dos meios de controle formais e informais
–, ambos os processos de criminalização são feios de forma seletiva, a distribuição do status de
criminoso se dá de forma desigual. Na criminalização primária, os bens jurídicos e os interesses
protegidos, por meio das leis, são os das classes dominantes que têm o poder de influenciar o
processo de definição – Becker considera que a possibilidade de impor de forma exitosa certas
normas se deve a uma questão de poder econômico e político. (35)

A teorização dos crimes de elite foi feita pela primeira vez por Edwin Sutherland, cuja
teoria não focou na seletividade, mas nas causas pelas quais as classes altas praticavam crimes.
A criminalidade do colarinho branco sempre foi dificilmente criminalizada de forma efetiva,
motivo que sempre suscitou a questão sobre tais atos poderem ser considerados crimes.

Ainda, a seletividade precisa ser percebida sob a perspectiva da existência de muitos


fatos definidos como crimes que ocorrem constantemente, mas não são noticiados e
contabilizados – trata-se da cifra negra da criminalidade. Como consequência, as estatísticas
criminais não refletem a real criminalidade, mas à criminalização – visto que são elaboradas
apenas com base nos casos registrados. Isso destaca a existência de um senso comum a
distinguir quem são os criminosos, o que se traduz em estereótipos (36).

A partir da percepção de que os estereótipos constituem um mecanismo de seleção


formal, nota-se por que a população da prisão é uniforme – ou seja, não são apenas um
mecanismo de seleção, mas, também, de reprodução. Nesse sentido, vários indivíduos praticam
atos qualificados como crime e não são vistos como criminosos pela sociedade; ao mesmo
tempo em que outros que não cometeram crimes, mas, por carregarem o estereótipo de
criminosos, são vistos como delinquentes (37).

Apesar de ser uma ruptura fundamental de paradigma, algumas críticas são destinadas
ao labelling approach. Uma delas é sobre a não explicação sobre os motivos da delinquência
primária (independente dos rótulos). Outra se refere ao determinismo presente na análise do
desvio secundário – a percepção de que a pessoa etiquetada cometerá novos crimes. Ainda,
destaca-se o fato de que não há como saber se a delinquência se deu efetivamente em razão da
etiqueta – algumas pessoas etiquetadas não voltam a delinquir, e há pessoas que delinquem sem
terem sido alvo de reação social. Também se critica o enfoque microssociológico da teoria,
como se os mecanismos políticos sobre o poder de definição fossem independentes da estrutura
econômica das relações de produção e distribuição (38).

1.1.2 A interação entre controle social formal e informal na construção social


da criminalidade (39).
A mudança de foco de análise trazida pelo labelling approach (da ação humana para a
reação social sobre ela), o estudo das instâncias de controle passa a ser objeto da Criminologia.
O controle social não se dá apenas pelas agências de controle penal, sistema que pode ser
dividido entre controle social formal e informal. O controle social não se dá em relação à classe
social dos indivíduos, e o seu modelo informal é realizado por instituições variadas como a
família, a escola e os meios de comunicação social. A análise implica um enfoque de gênero, e
o objetivo do controle é a interiorização das normas sociais – que ocorre por meio da
socialização (40).

Considerar um segmento da atividade humana como institucionalizado significa dizer


que foi submetido ao controle social. Cada instituição tem uma lógica de funcionamento
(linguagem) e, na medida em que uma ordem social é objetivada, ela corre o risco de ser
reificada – contudo, isso não significa que a ordem social está livre de tentativas de redefinição
(41). Porém, nem sempre o controle social informa é exitoso, existem diferentes respostas para
o condicionamento, de forma que é possível haver dissidências ao sistema, e não adaptação ao
papel social atribuído. Assim, não se pode ignorar que os controles sociais formal e informal
atuam de forma conjunta no sentido de legitimar a realidade social. Ainda sobre esse enfoque,
é a escola o local em que se iniciam os processos de exclusão e distribuição sobre a conduta
desviante (42).

Isso porque a escolaridade é a principal forma de ascensão social, de modo que a


organização do ensino reproduz desigualdades – tem-se a manutenção do status quo. Já o
controle social formal é realizado pelas agências do sistema penal – policial, judiciária,
penitenciária. Diferencia-se por vários motivos do controle social informal, sendo destaque o
fato relativo a sua operação por sanções negativas discricionárias (43).

Dentre tais agências, a policial é particularmente importante. Há seletividade e


reprodução dos estereótipos, além de existir alto grau de discricionariedade na atuação – a
norma penal é aberta, abstrata e cheia de lacunas, que são preenchidas por meio dessa atividade,
caracterizando um second code, que é um código social. Sua eficácia é seletiva e conformadora.
Além disso, a subjetividade do juiz pode interferir nos motivos da sentença, sem que isso seja
percebido no resultado – afinal, são eles que atribuem efetivamente a qualidade de criminoso a
um indivíduo, com consequências jurídicas e sociais (45). A distância entre os juízes e a
realidade social resulta e se manifesta em estereótipos sobre as condutas esperadas em
conformidade às classes – a atuação, então, é classista, existe o estigma e o não reconhecimento,
muitas vezes, da realidade do acusado.
Assim, são características da agência judicial a reprodução do sistema e a alienação em
relação às realidades diversas. Além da polícia e do Judiciário, a instância penitenciária também
tem significativo papel no controle social formal. As funções declaradas e as reais das prisões
demonstram sua relação de surgimento com o sistema capitalista – as necessidades do mercado
de trabalho condicionam, a forma como ocorre o cumprimento das penas (47). Até o século
XVII a prisão não era vista como um fim em si mesmo, foi o Iluminismo que trouxe
contribuições teóricas para promover a prisão. Dessa análise, Foucault percebe a passagem dos
suplícios para a pena “humanizada” – da aflição do corpo para a aflição da mente (48).

Assim, a disciplina passa a ser o principal elemento para o controle, e a obediência


produzida buscaria a reeducação. Contudo, teorias como o próprio labelling approach
demonstram a possibilidade de deslegitimar a concepção construída acerca da prisão baseada
nesses termos. Uma das razões do equívoco da concepção de que a pena ressocializa é o
fenômeno da prisionização – a deterioração da identidade do indivíduo na prisão, em razão da
cultura interna lá existente, que o obriga a mudar seus valores e comportamentos (49).

1.1.3 A reprodução das desigualdades pelo sistema penal: resultados da


criminologia crítica (51).

A década de 70 é caracterizada por produções teóricas que buscaram superar as teorias


criminológicas anteriores e seu enfoque microssociológico e liberal. A influência das reflexões
marxistas esteve presente nesse pensamento (51). Em um sistema de classes, alguns bens
positivos, como patrimônio, renda e privilégio são vistos como bens positivos; enquanto a
criminalidade é encarada a como bem negativo atribuído a certas pessoas. Assim, a
criminologia crítica demonstra que o princípio da seletividade é orientado conforme a
desigualdade social, sendo as classes inferiores perseguidas (53).

Baratta resume os resultados da crítica do direito penal trazida pela criminologia crítica:
o direito penal não defende todos e apenas os bens essenciais, e quando pune as ofensas feitas
a eles o faz de forma fragmentária e com intensidade desigual; a lei penal não é igual para todos;
a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade das ações e da gravidade
das infrações. Assim, o sistema penal deixa de ser visto como um sistema abstrato e estático de
normas – percebe-se que se trata de um sistema dinâmico de funções. Dessa forma, a noção de
delinquência se transforma, passa a ser vista como um efeito da atribuição da pena (54).
A forma como delitos cometidos por poderosos não são punidos, enquanto as
ilegalidades dos pobres é, evidencia que não há natureza criminosa, mas jogos de força
relacionados à criminalização. Por meio do sucesso em impor ao sistema a impunidade às suas
ações, os grupos poderosos determinam a perseguição punitiva às infrações praticadas pelos
mais pobres. Isso evidencia a seletividade presente no processo de criminalização primária. Na
criminalização secundária, a seletividade é ainda mais intensa, pois ocorre atuação em
conformidade com o estereótipo do criminoso – que faz parte da camada mais marginalizada
da população –, de modo a reproduzir as desigualdades sociais já existentes (55).

Consequentemente, nota-se o poder relativo dos sujeitos potenciais no processo formal


do controle e os estereótipos são os principais mecanismos de seleção do sistema penal. Como
consequências dessa seletividade, tem-se o rompimento do princípio de que todos são iguais
perante a lei – nesse sentido se dá a tese de Andrade, segundo a qual a regra é a seletividade no
processo de decisão, bem como as garantias penais são constantemente violadas (56). Nesse
sentido, as chances e os riscos do etiquetamento se dão mais em função da posição social do
indivíduo do que da própria conduta realizada. Ainda, além de ilegítimo, o exercício de poder
dos sistemas penais é ilegal, considerando a distância entre o que é programado (planejado) e o
efetivado (57).

Disso pode se concluir que existe na América Latina um sistema penal subterrâneo,
constatação confirmada por três observações feitas por Lola Aniyar de Castro: a desigualdade
socia e a falta de efetividade das leis sociais impossibilitam que o direito penal se aplique de
forma igualitária, o processo de estigma se refere penas à parcela dos acusados e a relação
desses pontos com a polícia. Isso suscita mais uma argumentação a favor da deslegitimação do
sistema penal.

De tudo isso, é possível constatar que a criminalidade é uma construção social, a qual
traz á tona o papel significativo desempenhado no mecanismo de reprodução das relações
sociais de desigualdade. Ou seja, o sistema penal constrói a criminalidade e, por meio disso,
reproduz a desigualdade de classe (58).

Diante disso, algumas respostas referentes a políticas criminais alternativas ganharam


substancialidade. Não é possível falar em um minimalismo e um abolicionismo – aqueles
tendem a uma relegitimação do sistema penal, estes objetivam a abolição dele –, mas vários de
ambos. Em comum às diferentes vertentes está a busca pela contração máxima do sistema penal,
de modo a garantir a dignidade dos envolvidos. A curto prazo, a perspectiva do direito penal
mínimo como caminho para o abolicionismo busca reduzir a violência e elevar a proteção dos
direitos humanos (59).

A necessidade de proteção dos direitos humanos como base para a elaboração e


aplicação da lei penal é um dos pontos de convergência entre o minimalismo como meio e o
minimalismo como fim (60). Os abolicionismos nascem comunicando teoria e práxis, e
possuem variadas variantes. Essa abolição não consiste em uma pura eliminação das
instituições formais de controle, mas na abolição da cultura punitiva – não se pretende renunciar
à solução de conflitos, mas propor uma reconstrução das concepções a ele relativas e ao modo
de atuação (61). As ações abolicionistas precisam sempre de situações concretas (62).

1.1.4 O sistema penal diante da globalização (62)

A evolução e a transformação dos contextos sociais resultam em mudanças na


perspectiva acerca do sistema penal. O neoliberalismo apresenta o capitalismo o livre mercado
como únicas possibilidades às economias mundiais, permeando um contexto de endurecimento
de leis penais na política de segurança pública (63). O Consenso de Washington foi o marco
em que se buscou resolver o impasse latino-americano, cujo foco foi o combate aos sindicatos
e a redução do Estado na economia.

Assim, o modelo neoliberal modifica a percepção das práticas sociais de modo geral,
tem-se uma nova divisão internacional do trabalho e a flexibilização dos processos produtivos
– cujas consequências são variadas, como a precarização das relações de trabalho e o aumento
de subemprego e desemprego (64/65). Em razão disso, o número de excluídos do sistema é
elevado e crescente, ao mesmo tempo que os mais ricos acumulam cada vez mais riqueza. Na
América Latina o problema é ainda mais sensível, pois os países já possuíam grande
desigualdade estrutural. O papel do legislador cada vez mais passa ser visto como um meio para
garantir votos, o que afeta a forma como são decididas as práticas legislativas – que são
direcionadas para atingir o apoio popular, geralmente refletido em edição de leis penais (66).

Assim, muda-se o sentido da palavra segurança, que passa a ser entendida como poder
de polícia de Estado. Trata-se de uma passagem do Estado Social máximo para o Estado Social
mínimo, e do Estado Penal mínimo para o Estado Penal máximo (67). Tais tendências,
reveladas em mudanças na legislação em favor do aumento da repressão penal, buscam atingir
o foco do Estado de Direito, a proteção dos direitos humanos. Os excluídos passam a ser vistos
como ameaças e, para se proteger parcela da população, retira-se os direitos de outra. Ou seja,
a política torna os mais fracos uma ameaça – protege-se os mais fortes (68).

Ressalta-se que os fenômenos observados na Europa e nos Estados Unidos não podem
simplesmente ser importados para a América Latina, em razão dos diferentes contextos
políticos e sociais. Fato é que a globalização é o marco histórico de controle social típico de
uma perspectiva colonial, há uma repressão interna – desenvolvida pelos processos de
criminalização primária e secundária – e desestabilização do Estado de Direito, afetado pela
espetacularização da política e da cultura do medo alimentada pela mídia – de modo que é
possível se falar em um direito penal do inimigo (Zaffaroni) – algumas pessoas são consideradas
iguais e têm seus direitos reconhecidos, para outros tais direitos são inexistentes (69/70).

Essa demonização do outro é característica de uma sociedade excludente, e a tendência


de hipertrofia do sistema penal e a redução de garantias são exemplos dos efeitos do discurso
do medo (70). Tais discursos buscam legitimar a ideologia da defesa social, especialmente o
princípio do bem e do mal.

Do lado oposto dos teóricos que evidenciam a deslegitimação do sistema penal e


indicam alternativas a ele, estão os movimentos de política criminal que buscam sua
relegitimação. Para essa perspectiva, os inimigos do Estado e da sociedade deem ser
identificados nos crimes praticados pelos mais pobres (71).

Para além da noção de leis penais para atrair votos, há diversas teorias legitimadoras do
sistema penal e da punição, como a política da tolerância zero e a das janelas quebradas, ambas
relacionadas a perspectiva de punição das mínimas infrações, sem considerar o contexto social
dos que as praticaram. A função de tais doutrinas é administrar a pobreza, e sua aplicação foi
empiricamente comprovada como insatisfatória (72/73).

Nesse contexto, a prisão passa a ter como único objetivo a neutralização, como se fosse
um grande depósito. A indústria do crime cresce e os presos se tornam “matéria prima” para o
controle do crime (74). Essa postura é refletida nos massacres e descasos relativos às condições
sanitárias e à segurança e aos demais direitos dos presos. Contudo, ocorre que, apesar de terem
integrado a tendência à criminalização, os países da América Latina não possuem a estrutura
necessária para tornar essa relação um negócio, motivo pelo qual a política se alia ao poder da
mídia, promovendo a necessidade de repressão por meio da espetacularização dos fatos.
Ocorre, então, uso simbólico do direito penal, exemplificado em leis de emergência, por
exemplo, que fomentam o sentimento de medo. O alarma social se torna uma ferramenta para
estabelecer um consenso acerca das instituições (75). O medo legitima a utilização do poder
público em níveis que, para qualquer Estado Democrático de Direito, seria inadmissível. Assim,
é necessário verificar o papel do jornalismo em relação ao processo de criminalização no
contexto da globalização (76).

1.2 O crime no jornal: entre credibilidade e sensacionalismo (76).

Os meios de comunicação de massa são os protagonistas da era da informação,


assumindo, por isso, papel central como órgão de controle social informal (77).

1.2.1 A pesquisa em comunicação e a problemática dos efeitos da mídia (77).

O jornalismo tem, ao longo da história, uma mudança de caráter, destacando-se a


passagem à fase comercial, que surge ao mesmo tempo que a construção de sua ideologia – a
da objetividade jornalística. Acerca dessa ideologia, conforme Habermas, destaca-se que a
objetividade, o sensacionalismo e o lucro não foram sempre fatores dominantes, tendo existido
outras fases. Em uma primeira fase, o foco era angariar lucros para a prática de um jornalismo
característico da fase inicial do capitalismo; na segunda fase, passou a buscar a conscientização
das questões políticas e sociais vigentes, estando em segundo plano a obtenção de lucros.

A partir do século XIX, no entanto, a lógica passa a ser outra – busca-se separar
estaticamente a opinião da notícia, ideia designada de objetividade jornalística (78). Notou-se
que a subjetividade dos jornalistas era inevitável, motivo pelo qual, no desenvolvimento da
prática jornalística, diversas transformações ocorreram no decorrer do tempo – como a
introdução de colunas assinadas. Essa pretensão de objetividade surge ao mesmo tempo que a
teoria do espelho, que situa a notícia como a imagem da realidade refletida no espelho (79).

Tal teoria representa a ideologia dominante da prática jornalística, e é seu principal mito.
Tem-se a ideia de que apenas os fatos importam, e não a interpretação deles; contudo, as teorias
mais recentes acerca do jornalismo encaram a objetividade por diferentes perspectivas. Com o
avanço da comunicação, a pesquisa sobre ela passou a ter mais destaque na academia, de modo
que, principalmente a partir do século XIX, diversas teorias da comunicação surgiram,
principalmente relacionadas a temáticas sociológicas (80).
Perspectivas administrativas consideraram os pressupostos da sociologia funcionalista
vigentes, analisando a influência social desempenhada pela atividade jornalística. A teoria
crítica abordou um ponto de vista relativo ao desempenho de um importante papel na
reprodução da dominação por meio da indústria cultural, por parte dos meios de comunicação.
Ou seja, a indústria cultural tem uma estratégia de domínio por meio de algumas táticas, sendo
uma delas a estereotipização, que facilita a antecipação das experiências sociais realizadas pelos
sujeitos (81). Em determinado momento, o papel dos meios de comunicação de massa passa a
ser o de influenciar no processo de significação do mundo, ou seja, na construção social da
realidade, de forma conjunta aos processos de interação social.

Nessa perspectiva, tem-se a hipótese do agenda setting, que parte do pressuposto que os
meios de comunicação não conseguem, por si mesmos, produzir efeitos no sentido de
determinar a conduta das pessoas, mas podem decidir os assuntos sobre os quais falarão (82).
É relevante, então, destacar que determinadas experiências se dão por meio dos meios de
comunicação de massa, e não pelas interações sociais; ou seja, parcela da realidade de vida dos
indivíduos é construída em função da atuação desses meios (83).

Nessa hipótese, crime e mídia se relacionam de forma que os meios de comunicação


selecionam as temáticas relacionadas ao crime que irão abordar de forma prioritária, deixando
de lado outras discussões. Desses estudos, surgem outras vertentes, como a dos gatekeepers
(teoria da ação social), que destaca o papel de seleção dos aspectos de um acontecimento que
irão ser incluídos no texto principal ou em posição de destaque (84). Assim, ao considerar que,
diariamente, inúmeros fatos ocorrem, surge o interesse em saber por que apenas alguns se
tornam notícias (85).

Na década de 60, as teorias da ação se caracterizam pela visão instrumentalista dos


jornais, percebendo sua utilização para fins políticos. Essa corrente é criticada por ignorar a
autonomia do jornalista, por mais que traga conclusões importantes, como a dependência de
fontes oficiais e a manutenção da ordem vigente (86).

1.2.2 A notícia como construção social (87).

Nos anos 70, as pesquisas mudaram o foco do selecionador como construtor do


conteúdo dos jornais, para a organização e a produção diária dos meios jornalísticos,
relacionando isso com a imagem de realidade social fornecida pela mídia de massa. O estudo
dessa produção cotidiana de informação se denomina newsmaking (87).

Tuchman evidencia que pela sociologia tradicional, as notícias seriam um espelho da


realidade – determinadas pela realidade social. Por outra perspectiva, afirma que não apenas a
estrutura social determina os sujeitos, mas eles também a constroem. Traquina destaca duas
teorias relacionadas ao paradigma das notícias como construção social. A estruturalista
estabelece certa autonomia dos jornalistas frente ao poder econômico, tendo a cultura destaque
no processo de construção da notícia (88). Já a interacionista se caracteriza pelo estudo sobre a
forma como os processos produtivos afetam a produção das notícias.

Essas teorias partem do mesmo pressuposto relacionado à teoria do etiquetamento, o de


que a realidade não é ontológica e anterior à interação social, mas construída por meio dos
processos sociais. E da mesma maneira que o sujeito constrói essa realidade, esta, ao ser
objetivada, molda, de forma dialética, a maneira como o sujeito percebe o mundo (89).

Nesse sentido, é significativo notar a consequência das tipificações, a forma como são
usadas para transformar acontecimentos diários em matéria prima de disseminação. A noção de
enquadramento consiste não na definição do que vai ser a notícia, mas a forma como serão
abordados e transmitidos os fatos (90). De certa forma, o enquadramento possui o mesmo
raciocínio que os estereótipos, trata-se de uma perspectiva organizadora sobre acontecimentos
relevantes para determinar um tema (91).

Assim, é fundamental para a compreensão da forma como se dá a seleção de notícias e


do modo como as informações são construídas e difundidas por meio do jornal, o estudo da
rede de informações e dos valores-notícia, além do papel das fontes. Tal rede se constitui na
distribuição de jornalistas em diferentes locais estratégicos de onde irão surgir acontecimentos
considerados válidos de serem noticiados. Para Tuchman, são critérios dessa rede a
territorialidade geográfica, o interesse dos leitores por atividades específicas e a especialização
tópica – ou seja, dispersão geográfica, interesses de demanda específica e organização em
departamentos independentes (92/93).

Nas pesquisas sobre a noticiabilidade, buscou-se determinar quais condições tornariam


qualificado um fato de se tornar notícia – trata-se dos chamados valores notícia. Estes objetivam
responder sobre critérios de relevância, interesse e pertinência de acontecimentos possíveis de
se tornar notícia. Esses critérios não são estáticos, pois variam conforme o contexto da
sociedade; e sobre o conteúdo da notícia, a importância e o interesse são os principais fatores a
serem considerados (94). Há vários desses valores notícia – relacionados ao entretenimento, ou
aos produtos, por exemplo –, de forma que são mobilizados simultaneamente. Nessa
perspectiva, nota-se a relevância da definição do próprio jornalista para determinar o que é
notícia (95).

Os acontecimentos não podem ser noticiados em sua totalidade, motivo pelo qual é
necessário um enquadramento – um recorte da totalidade. É uma moldura que, ao mesmo
tempo, seleciona e contextualiza; é uma forma pela qual operam os critérios de noticiabilidade.
Fontes são as pessoas ou instituições que fornecem informações ao jornalista. A relação entre
as fontes e o jornalista são flexíveis e condicionam o resultado do trabalho (96). É importante
que a fonte seja dotada de credibilidade, trata-se de um aspecto relevante para que a notícia seja
considerada verdadeira e o jornal reafirme sua seriedade. No caso das fontes institucionais,
geralmente possuem a credibilidade inerente à sua posição (97).

Na mobilização de informações, a utilização de aspas é um modo de o jornalista se


distanciar do texto, garantindo a distinção entre fato e opinião. Algumas fontes, especialmente
as não oficiais, são subrepresentadas nas páginas dos jornais, evidenciando a seletividade
presente (98). A forma como as fontes são selecionadas decorre de uma hierarquia de
credibilidade, e a preferência por fontes institucionais (grande credibilidade) as caracteriza
como definidoras primárias de tópicos. Disso decorre o problema de se privilegiar o
aparecimento das fontes oficiais, o que significa retratar os fatos por uma perspectiva
dominante, sem rupturas ou contrapontos (99).

É por meio da produção rotineira de notícias que os jornais reproduzem as definições


dos poderosos, mesmo não estando a eles diretamente subordinados. Outra forma de se realizar
isso é a cobertura excessiva de acontecimentos pré-agendados, que pressupõe um consenso
acerca das crenças e perspectivas da sociedade. Os enquadramentos tendem a reforçar esses
pontos de vista considerados consensuais. Dessa forma, considerando a dispersão da rede
informativa, as tipificações que determinam sua atividade, a relação entre jornalista e fontes, é
possível perceber que a notícia resultante termina por legitimar as relações de classe e poder
existentes (100).

Assim, o jornalista se torna responsável pelas fontes citadas. Sobre estas, contudo, o
jornal confere o efeito que a ele for conveniente, não se trata de uma reprodução cega do que
afirmam – não é o discurso de todas as fontes que é assumido como verdade. É preciso, contudo,
retirar a exclusividade do jornalismo na construção social da realidade (101).
1.2.3 O sistema penal nas notícias: controle social e legitimação (102).

Os acontecimentos negativos costumam ter alto grau de noticiabilidade, sendo que os


crimes, dentre estes, são particularmente interessantes, já que originam a busca por um culpado
contra quem a sociedade possa se voltar. A pauta das notícias sobre crimes já parte de agências
de controle social formal, o que caracteriza um processo de seleção dos fatos da realidade (102).
A característica das notícias sobre crimes é quase a total dependência dos definidores primários,
as agências de controle social formal formam quase um monopólio de fontes de notícias de
crimes. Dentre essas fontes, destaca-se a polícia, que é a fonte oficial do momento do escândalo
(103).

A característica principal da atividade dos órgãos formais do sistema penal,


especialmente a polícia, é a seletividade. Portanto, reproduzir o discurso das agências de
controle penal sobre a criminalidade significa que as notícias sobre isso recaem no mesmo
problema: voltam-se para parcela da sociedade, contra uma parte dos atos cometidos, os crimes
de rua. Assim, o uso de estereótipos acerca do desviante faz parte do processo de produção de
notícias, é um processo de simplificação da realidade. Assim, reduz-se a violência à violência
individual, como se houvessem indivíduos específicos que representam perigo à sociedade.
Tem-se, então, um círculo vicioso as notícias alimentam os estereótipos e o senso comum sobre
os crimes e os criminosos, reproduzindo estigmas (104).

Nessa perspectiva, as teorias sobre o desvio secundário e a construção de carreiras


criminosas são elevadas ao seu grau máximo. Em relação às notícias sobre crimes, o termo
“story” é utilizado para destacar que a notícia não é o fato em si, mas uma construção sobre ele.
As notícias sobre crimes, então, geralmente legitimam a atuação das agências oficiais de
controle social. Assim, o discurso da mídia sobre o crime faz referência a pressupostos da
criminologia positivista, como a ideia de que há indivíduos tendentes a cometer crimes. Isso
ocorre em função tanto do enquadramento quanto da seleção dos fatos que serão noticiados.
Fatores como classe, raça, gênero devem ser considerados na análise dos estereótipos formados
(105).

Assim, a mídia, por meio da sua atuação maniqueísta, separando o “bem” e o “mal”,
determina a posição daqueles retratados nas notícias e reafirma o status quo, sendo, portanto, e
para além disso, um importante mecanismo de controle social (106).
A mudança de paradigma nas pesquisas de comunicação, ao perceber a notícia como
construção social, opõe-se à visão de que os meios de comunicação em massa manipulam a
massa. Passa-se a considerá-los como veículos de uma ideologia de controle já existente. Tal
controle se reflete e manifesta nas relações sociais, gerando medo e insegurança em relação a
apenas parcela da população. Os meios de comunicação em massa, portanto, auxiliam as demais
instâncias do controle social na construção social da delinquência – a linguagem
instrumentalizada utilizada legitima o sistema penal (107). A mídia, então, além de auxiliar a
legitimação do sistema penal e na manutenção do status quo, relaciona-se com movimentos de
política criminal que reivindicam o aumento da repressão (108).

1.2.4 O discurso da emergência e a relegitimação do sistema penal (58).

A tendência de relegitimação do sistema penal, em relação aos meios de comunicação


de massa, relaciona-se com as características de sensacionalismo e espetacularização das
notícias. É preciso considerar a notícia uma mercadoria – sendo necessário criar uma aparência
de valor de uso no jornalismo (109).

Ao mesmo tempo, crime é informação e entretenimento, programas pseudojornalísticos


e sensacionalismos como o Brasil Urgente exemplificam isso. A crise da função instrumental
da justiça penal demonstra que ela não serve para resolver conflitos (110). Os conflitos que
legitimam a adoção de posturas repressoras são exatamente os que são divulgados pelo
sensacionalismo da mídia. A uta contra a insegurança é projetada na adoção de medidas contra
uma criminalidade construída socialmente como ameaça à sociedade (111).

A delinquência é tratada como questão de ordem pública, e não como problema de


ordem social. Na América Latina, o poder disciplinar do sistema penal se justifica por meio da
propaganda (112). Disso nota-se as funções assumidas pelos meios de comunicação, como a
fabricação seletiva os estereótipos do criminoso. Vale-se do medo para justificar políticas
repressivas, e delimita-se o inimigo da sociedade como sendo de um grupo social específico
(113).

Dessa forma, o estabelecimento de um sistema penal intenso se reforça na aliança com


a estrutura social brasileira – na qual permanece a herança escravocrata, juntamente aos
fenômenos do capitalismo tardio. Nesse sentido, por meio de um discurso pautado na geração
de medo, a mídia desempenha um papel de justificadora da questão moral acerca do crime,
legitimando um sistema penal pautado na execução. Esse discurso do medo recorre a duas
figuras: o extermínio (limpeza) e eliminação – é característica de tais discursos uma dimensão
higienista (114).

A mídia, então, não se configura apenas como mecanismo de controle social informal,
pois, conforme se caracteriza por ser um órgão receptor de denúncias – acompanhando os
processos de prisão e repassando informações à polícia –, também atua como mecanismo de
controle social formal. Conforme Nilo Batista, a mídia vem assumindo papel de agência
exclusiva do sistema penal, influenciando diretamente nas investigações e nos processos – ou
seja, os sistemas midiáticos passam a desempenhar funções intrínsecas às atividades das
agências do sistema penal (115).

CAPÍTULO 2) A Construção Social dos Conflitos Agrários no Brasil Contemporâneo (117).

Considerando que a realidade é socialmente construída, é necessário analisar o modo


como é construída socialmente a questão dos conflitos agrários.

2.1 Concentração da terra e relações sociais no campo: os moinhos de gastar gente no


século XXI (118).

Se é possível afirmar que há no Brasil um direito penal subterrâneo, que nega a


existência de um Estado Democrático de Direito, é certo que ele se faz mais presente no campo.
Para analisar os conflitos no campo, é necessário verificar de que forma as políticas que
alteraram o estatuto da propriedade da terra, da produção agrícola, a da mão de obra e as
relações sociais se formaram e se desenvolveram ao longo dos anos, até meados do século XX.
A ênfase dessa análise é a formação e manutenção dos latifúndios e a escravidão (119).

2.1.1 A concentração de terra e a promessa de reforma agrária no Brasil: o


surgimento dos grupos organizados de luta pela terra (119).

O início dos problemas relacionados aos latifúndios concentrados na mão de poucos se


deu com a divisão de terra encontrada pelos colonizadores em sesmarias. Tratava-se de um
sistema de alto custo, que exigia que os donatários fossem de alto poder econômico; marcado
pela monocultura extrativista e predatória e pela valorização do latifúndio. A escravidão foi
uma das características da formação política e econômica do meio rural brasileiro, sendo
inicialmente pautada no trabalho indígena; posteriormente proibido e substituído pelo negro
(120). Essa escravidão estava presente e, todas as classes e lugares, e o uso da violência era a
regra.

Posteriormente, o sistema de sesmarias dá lugar para o regime de posses – ocupação de


terra pelo explorador, com uso de força de trabalho familiar (121). Contudo, nesse período
houve medo generalizado entre os exploradores em função das pequenas rebeliões causadas
pelos escravos após a rebelião do Haiti. Isso possibilitou maior opressão aos negros, não mais
vistos como coisas ou animais, mas como inimigos a serem combatidos (122).

A escravidão se manteve por muitos anos ainda no Brasil, sendo os fazendeiros os


principais interessados disso. Porém a pressão inglesa fez com que, em 1850, fosse a provada
a lei que proibia o tráfico negreiro. A questão da propriedade de terra passou a ser regulada pela
Lei de Terras, que, além de regular a questão da terra, também se preocupava com o tema da
mão de obra, prevendo a vinda de colonos de outros países para trabalharem nas lavouras
brasileiras (123). Mas a principal mudança foi a possibilidade de aquisição livre de terras,
possível apenas mediante pagamento em dinheiro e à vista. Entretanto, apesar da proibição do
tráfico negreiro e da já abundante mão de obra imigrante, a abolição da escravidão se deu
lentamente – apenas após vinte anos após a proibição do tráfico foi promulgada a Lei do Ventre
Livre, e somente em 1885 a Lei dos Sexagenários. Finalmente, em 1888 a escravidão foi abolida
(124).

Isso, contudo, não significou liberdade e respeito aos ex-escravos. O desenvolvimento


das relações capitalistas e as transformações sociais seguintes beneficiaram apenas os brancos,
e o medo motivou o controle social empreendido contra a parcela negra. A legitimação racista
também resultou em recrudescimento do controle penal sobre os negros – latinos também foram
muito perseguidos (125). Com a Constituição de 1891, as oligarquias rurais exerceram mais
livremente seus desmandos, principalmente no que se relaciona com a prática do coronelismo.
O final do século XIX e o início do XX foi um período conturbado, cuja grande insatisfação
por parte dos baixos estratos culminou em revoltas, como a de Canudos e a de Contestado (126).

Posteriormente, ainda por décadas a posse de terra permaneceu como instrumento de


poder. Contudo, com a morte de Vargas, a década de 30 foi marcada pela queda do poder dos
coronéis (127). Então, assim como outras causas sociais, a luta pela terra passou a ocupar um
espaço importante, especialmente com o surgimento das Ligas Camponesas, focadas em
terminar com o monopólio de classe sobre a terra. Frente a essa mobilização camponesa e à
pressão popular, o governo de João Goulart deu início a um processo de reforma agrária, tendo
sido esse um dos motivos para o golpe que o retirou do poder em 1964. Posteriormente, o
governo de Castelo Branco sancionou o Estatuto da Terra, instrumento legal da Reforma
Agrária no Brasil; contudo, aquele não foi posto em prática (129).

O modelo de desenvolvimento do período da ditadura militar não objetivava a


distribuição de terras, mas a entrada de capital estrangeiro e monopolista no campo, a fim de
legitimar a concentração de terras. Assim os burgueses defendiam, suas lutas, e a
industrialização intensa e as migrações intensificaram o problema da exclusão (130). Com o
ganho de força, as organizações realizaram as primeiras ocupações ainda durante a ditadura,
mas não de forma organizada, e sim sob a influência da ala progressista da Igreja Católica, que
resistia à ditadura – é nesse contexto que surgiu a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Também
nesse período se intensificou a gestação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) (131). A motivação de tal movimento era distinta conforme a região do país (132). As
rebeliões continuaram a acontecer e culminaram, na década de 80, em uma efetiva união do
movimento (133).

2.1.2 A reforma agrária no período pós-ditadura: a permanência da concentração


da terra e das violências no campo (133).

O fim da ditadura suscitou a necessidade de uma Assembleia Nacional Constituinte, que


realizou seus trabalhos em 1987. Em relação à definição da função social da propriedade,
manteve-se praticamente a mesma do Estatuto da Terra. Contudo, a novidade foi a inclusão de
tal princípio junto ao do direito de propriedade (134). Mesmo que os ruralistas tenham
assegurado a impossibilidade de grandes mudanças, a propriedade passou a ser vista como
elemento de transformação social; e a inovação é o fato de o princípio ter sido situado no rol de
direitos fundamentais, que são cláusulas pétreas e determinam um valor a ser seguido (135).

Houve retrocessos e poucos avanços, a maior parte da regulamentação sobre a


propriedade rural permaneceu como estava. Ou seja, o que era pra ter sido o elemento de maior
avanço da legislação acerca do tema, a Constituição, foi objeto de jogos políticos que
garantiram os interesses ruralistas – mediante disposições presentes em artigos do texto
constitucional (136). Posteriormente, após 1988, a questão fundiária passou a ser tratada por
algumas leis ordinárias, a maioria evidenciando a má vontade em relação ao tema (138).

A previsão do princípio da função social da propriedade também se encontra no Código


Civil de 2002. Ou seja, o maior problema não é a legislação em si, que é avançada. A questão
é sua efetivação. No período de governo de FHC estava prevista, em seu plano, uma reforma
agrária. Porém, o governo adotou uma postura ostensiva em relação às ocupações de terra,
utilizando forças militares e até mesmo o exército. Ao mesmo tempo que tentava dispersar os
movimentos por meio da repressão, trouxe leis com o intuito de conter as pressões sociais (141).
A edição de medidas provisórias nesse período demonstra a atuação repressiva do governo FHC
em relação às desapropriações – em seu segundo mandato, criminalizou as ocupações e os
movimentos camponeses (143).

Fato é que não houve reforma agrária, e sim uma política de distribuição de terra
despreocupada com o futuro dos camponeses (145). A “Reforma Agrária de Mercado” ocorrida
nesse período, segundo Fernandes, ocorrida nesse período, buscava combater as ocupações de
terra – houve até mesmo manipulação de dados (146).

Por mais que ainda não tenha sido plenamente satisfatório, o MST reconhece o aumente
relevante de assentamentos durante o governo Lula (148). Ainda assim, o próprio governo
contribuiu para a concentração de terras, em vez de adotar uma efetiva política de redistribuição.
A lógica do agronegócio permaneceu em confronto com os camponeses (149).

Sendo assim, nota-se que a implantação de uma política efetiva de distribuição de terras
conflita com os interesses dos mais poderosos. A década de 90 foi de permanência da
concentração de terra, e a estrutura fundiária concentrada está diretamente relacionada à
situação de miséria em que vive grande parte da população rural (150). A modernização do
campo, ocorrida durante a ditadura militar, significou o recrudescimento de uma conflitualidade
que já existia; houve uma nova forma de exclusão, o capitalista e o proprietário de terra se
fundem na mesma pessoa. A expansão do agronegócio, propiciada por essa fusão, acirrou o
problema da concentração de terra no Brasil (151).

A estrutura permanece a mesma, a modernização do campo beneficia alguns e piora a


condição de vida de muitos outros; ou seja, a questão agrária continuou em estado insatisfatório.
A questão agrícola e a agrária são diferentes – a primeira se relaciona à mudanças da produção
em si, enquanto a segunda trata das transformações das relações de produção –, mas se
relacionam. O problema da concentração de terra, das desigualdades, injustiças e miséria se
relacionam à questão agrária. O modelo de desenvolvimento é violento, e a violência estrutural
é utilizada para reprimir necessidades humanas dos que vivem no campo. A violência é diária,
trabalhadores rurais sem terra não têm direitos e garantias fundamentais (153).

Nesse sentido, a violência e os conflitos são anteriores à luta pela terra por meio de
movimentos como o MST; ou seja, os conflitos agrários não se resumem a tais movimentos,
como querem fazer parecer os proprietários de terra (154).

2.1.3 A luta contra a violência e a violência da reação à luta (154).

Frente a esse quadro de injustiça e violência estrutural, grupos de trabalhadores rurais


excluídos dos processos de produção no campo se reuniram para expor sua insatisfação e lutar
pelo cumprimento das leis e da Constituição sobre a reforma agrária. O MST é ligado a outras
entidades, e é preciso destacar o papel dos camponeses na organização do movimento, cuja
formação política – abrangendo educação, produção, administração e comunicação – é
essencial (155). A organização e articulação internas do MST são sua característica central,
sempre se guiando para efetivar o princípio da função social da propriedade e buscando tornar
a discussão pública para evidenciar o problema da terra e a necessidade de reforma agrária
(156).

O MST declara que sua luta não é exclusivamente relacionada à terra, afirmando que,
de fato, o latifúndio é seu grande inimigo, mas também a miséria, o analfabetismo, a fome, a
violência no campo e na cidade por ele gerados. Assim, conforme seus objetivos, princípios e
programas, o MST realiza sua prática, que se divide em vários segmentos de atuação (157). As
ocupações realizadas são uma forma de resistência e denúncia, e deve ser destacado o debate
acerca do termo utilizado para defini-las. Ruralistas e latifundiários se referem a elas como
invasões, enquanto os próprios trabalhadores rurais afirmam se tratar de ocupações (158).
Posteriormente à ocupação, tem-se o acampamento permanente, que é seguido por um
momento de negociação com o governo. A importância de tais atos é evidenciada pelo fato de
que se observa ausência de desapropriações e políticas relacionadas à reforma agrária onde o
MST é fraco ou não está presente. Ainda, é preciso salientar que seus atos têm respaldo jurídico,
tanto pela Constituição Federal quanto pelas leis ordinárias relativas ao tema (159). Sendo
assim, a atuação do MST se constitui em ações políticas com uma finalidade de concretização
de direitos. A ocupação não é o início dos conflitos, este se deu pela exploração e pelas
desigualdades resultantes do desenvolvimento desigual do capitalismo (160).
Contudo, a partir da luta e pelos movimentos pela terra, os conflitos se tornam mais
intensos e numerosos. Isso reflete o fato de que questionar e desafiar a propriedade privada a
partir de sua função social significa questionar o poder concretizado na terra pela tradição (160).
Percebe-se, então, um aumento no número de conflitos no campo nos últimos anos; o que fez
com que outras formas de violência já tradicionais no campo brasileiros se expressassem mais
(161). O número de mortes tem se mantido elevado nos últimos onze anos, e isso se explica
pelo fato de que é comum o uso de milícias e jagunços para a execução de pessoas incômodas
(162/163). Isso é um reflexo do histórico das classes dominantes agrárias de uso da violência
como instrumento de controle e poder (163).

A violência empreendida contra os trabalhadores rurais não se dá apenas por meio da


estrutura latifundiária e pelos assassinatos. Também há situações de trabalho escravo e uso de
trabalho infantil, os proprietários costumam ignorar a legislação trabalhista. Ainda, a
mecanização da lavoura contribuiu para a piora das condições de trabalho, como é o caso dos
boias-frias (165). Ou seja, além da violência individual, a violência estrutural também se faz
muito presente no campo – a ameaça e as consequências de tais violências são usadas como
instrumentos para a manutenção do poder e da dominação social (166).

2.1.4 Da violência estrutural à violência institucional. Ou: para os amigos, a lei;


para os inimigos, o arbítrio (167).

Além das reações privadas à luta pela terra, os interesses dos proprietários também são
defendidos por meio da violência do sistema penal – reintegrações de posse realizadas pela
polícia com violência, por exemplo. Assim a luta dos sem-terra passa a ser de contra a violência
estrutural para contra a violência institucional, que pode ter formas legais e ilegais (168). Essa
ocorrência da violência institucional contra os conflitos agrários foi particularmente forte no
período da ditadura militar – a narrativa da ameaça comunista foi suficiente para executar
muitos líderes dos trabalhadores rurais. A intervenção militar nas relações rurais resultou em
uma suplantação de forças com os proprietários (170).

A partir disso, entende-se o significado da ação do sistema penal no campo: a de reagir


contra “crimes” e “criminosos”. Ou seja, molda-se a opinião pública e se legitima tal atuação
violenta – além de corroborar para a construção do conceito de crime (171). Decisões judiciais
tratam sobre o tema, e a forma como a interpretação se dá depende do grau de compreensão
referente à hermenêutica constitucional – as decisões costumam ser polarizadas (172).
O objetivo dessa repressão penal é a desarticulação das organizações, fazendo com que
a etiqueta de criminoso recaia sobre os líderes e membros do movimento – ou seja, é facilitado
e intensificado o controle social. Nesse sentido, a prisão dos sem-terra, em especial as sem
condenação, configura a expressão máxima de um sistema penal reservado aos inimigos – mas
que na América Latina atinge a maioria dos presos (174). Assim, a criminalização dos pobres
do campo é uma nítida delimitação do inimigo (175).

Desse modo, o controle social formal não se limita em construir uma criminalidade
comum (seletiva), busca, mais do que isso, delimitar um inimigo político. Essa constituição do
inimigo, contudo, não é exclusiva da criminalização secundária, apresenta-se, também, em sua
forma primária – como exemplificam tentativas de criminalizar legalmente e inserir as
ocupações de terra no rol de crimes hediondos, além de configurá-las como atos terroristas
(176/177). Na verdade, a violência do sistema penal se inicia pela atuação dos legisladores, no
caso da reforma agrária, como a maioria dos representantes do podo é proprietária de terras,
não surpreende que demandas relacionadas a ela não avancem (179).

Então, é necessário ao sistema penal a individualização das condutas. A resposta para o


questionamento sobre como se individualizam atos com objetivos políticos claros de pressão
social diante do não cumprimento das leis e da Constituição é a despolitização. A
criminalização dos sem-terra só é possível mediante a individualização dos conflitos (179). Pelo
fato de serem individualizadas as lutas – e de serem tratadas pelo direito penal, e não pelo
constitucional –, ocorre formação de polos, um do bem e outro do mal; assim se delimitam
quem são os inimigos contra os quais a opinião pública deve se voltar. Portanto, o sistema penal
intervém não para mudar a situação, e sim para mantê-la como está. A individualização dos
conflitos oculta as demais forças de violência, especialmente as formas estrutural e
institucional. Tem se uso da narrativa de “segurança nacional” contra um “inimigo interno”
(180).

A lógica de funcionamento do sistema penal, assim, é criminalizar os que já são


socialmente excluídos e imunizar as estruturas estatais e suas instituições – exemplo disso é a
impunidade em relação ao extermínio dos camponeses no campo (181). Portanto, apesar de não
cumprir com sua função instrumental, o sistema penal desempenha outras funções (182).

2.2 Os conflitos agrários nas páginas do jornal: o medo da luta, o medo do outro (182).
Os jornais são locais privilegiados para a exposição de discursos. O que se pretende no
discurso jornalístico é distanciar fato e opinião e, na busca por credibilidade, contudo, ocorre o
uso de uma linguagem que retrata fatos, mas também legitima e difunde valores. Portanto, para
a análise da questão agrária, dos conflitos no campo e da violência, é fundamental que se
relacione o discurso do jornal (183).

2.2.1 O discurso do jornal sobre os conflitos agrários: método de análise (183).

O método de análise adotado significa adotar um paradigma, no caso, foi o de Análise


do Discurso Crítica (ADC), que busca trabalhar as relações de poder, distanciando-se da
neutralidade. Não se limita a descrever a realidade social, objetiva compreendê-la e, mais do
que isso, entender a intervenção na realidade social pelo discurso – tem-se uma análise de
discurso (linguagem) e poder (184). Conforme Fairclough, o fenômeno linguístico é social da
mesma forma que o social é linguístico; o discurso é um veículo de ideologia que proporciona
controle social e manutenção do poder. Portanto, considerando que a realidade é socialmente
construída, é necessário verificar as implicações do discurso (185).

Van Dick destaca o processo de produção das notícias, analisando os passos que se dão
na fabricação do texto jornalístico – evidenciando a existência de estratégias de processamento
(186). A linguagem jornalística tem algumas regras a serem seguidas, as funções linguísticas
predominantes são a referencial e a fática – para o discurso jornalístico, é preciso que os leitores
acreditem no que estão lendo (187).

Existe uma relação de poder entre emissor e receptor (188). Disso decorre uma tendência
do receptor considerar válida e verdadeira uma proposição à primeira vista falsa. Para a análise
subsequente – considerando os fatores mencionados – optou-se por analisar o jornal Zero Hora
– jornal de circulação regional do Rio Grande do Sul (189). Destina-se às classes A e B, e suas
normas editoriais defendem a precisão – visto no que foi dito sobre as teorias jornalísticas como
objetividade –, não cabendo ao jornalista o posicionamento frente ao conflito; o jornal consagra
a distinção entre fatos e opiniões.

O texto segue com análise dos conflitos no campo no Rio Grande do Sul, que possui
algumas características específicas, como o fato de que as terras pelas quais os sem terra lutam
não são devolutas nem públicas. O problema é a concentração de terra (191). As mobilizações
organizadas – com apoio de estudantes, sindicatos e outros – foi, desde o início, reprimida. As
propostas trazidas pelos trabalhadores do campo foram recusadas, o que ensejou a violência
institucional, havendo, inclusive, intervenção federal no local, além de pressão de instituições
como a OAB. É em função dessas especificidades da região que se optou por analisar um jornal
envolvido com esse contexto histórico – é o caso do jornal Zero Hora (192). O foco se
direcionou às notícias e seções referentes à questão agrária, cujo processo envolveu a análise
do discurso, além de categorias para o exame do conteúdo – medo/vigilância; paz/conflito;
violência/crime (193).

2.2.2 Desordem, tensão e insegurança: para qual direção se voltam os binóculos


(197).

Na maior parte das notícias analisadas, os atores envolvidos no fato originário da notícia
eram integrantes do MST e ruralistas. Uma parte relevante das notícias se referiu aos riscos das
ações do MST, em função disso, há uso de expressões que denotam tensão e necessidade de
vigilância dos sem-terra (197). O uso de imagens nas notícias corrobora com isso – há o uso de
uma mostrando um fazendeiro observando os integrantes do MST com binóculos –, já que se
evita usar fotografias de marchas e acampamentos. A ação dos ruralistas com a polícia se
estreita com o avanço dos atos, conclusão resultante da representação da polícia como vigilante
que monitora as ações do MST (198/199).

O uso de termos como “arrastão”, “alerta”, “monitora”, “observada” contribuem com


essa abordagem de vigilância retratada pelo jornal. Faz-se parecer que os latifundiários
representam a realidade do povo brasileiros, sendo os manifestantes os outros, os diferentes e
invasores (200). O jornal optou por divulgar a perspectiva do polo proprietário nas situações
noticiadas, suscitando e generalizando o sentimento de medo. Essa postura se dá de acordo com
os valores-notícia, é muito mais noticiável a sensação de insegurança dos fazendeiros do que
os motivos pelos quais os sem-terra protestavam (201).

De forma predominante, não há falas de líderes ou de manifestantes sem-terra (202).


Pode ocorrer mudança do fato, dos atores, mas o tema e a postura são os mesmos – vigilância
e tensão. Na maioria das notícias, o depoimento dos policiais militares se coaduna com o dos
fazendeiros, estando o discurso dos sem-terra no polo diametralmente oposto (203). A
hierarquia das fontes sempre conta com as oficiais no topo. As não oficiais frequentemente são
subrepresentadas, o que evidencia a seletividade da informação. Além disso, a simples aparição
do discurso dos sem-terra não significa que o jornal assuma ou apoie sua opinião – geralmente
tais discursos são retratados como meras citações, enquanto o dos fazendeiros e policiais são
assumidos pelo jornal (204).

É sentida a ausência da questão da reforma agrária nas notícias analisadas – mesmo


diante de tanta tensão, não se discute seu contexto. O jornal, na verdade, pressupõe que são as
marchas do MST as causadoras de tal tensão (205). Alegorias de poder são representadas, como
as imagens de terror envolvendo o sangue derramado do dia a dia, sendo enfáticas e tratando a
presença da classe subalterna reivindicando terras como sinônimo de caos. Os discursos dos
proprietários são reproduzidos pelos jornais e a veiculação recorrente do sentimento de medo
acaba por produzir ele mesmo, além de reproduzi-lo (206).

O enfoque do jornal é factual e despreocupado com as questões de fundo, o jornal se


limita a reproduzir o medo dos proprietários e a reduzir a luta dos sem-terra à necessidade de
vigilância e policiamento, sem tratar especificamente da questão da reforma agrária em si (207).
Porém, duas reportagens do período analisado tratam sobre a questão agrária – contudo, sem
mencionar a necessidade de uma reforma agrária e adotando uma postura simplista, reduzindo-
a ao conflito pela terra (207).

Isso evidencia que o enfoque não é isento, o discurso ideológico forte dos ruralistas é
demonstrado – o qual abarca discriminação, preconceito e postura assassina (208). Nesse
sentido, o jornal Zero Hora, ao reproduzir nas notícias exclusivamente a perspectiva dos
proprietários, apoia um discurso de classe que se conduz ao extermínio (209). Identifica-se os
atos dos sem-terra como sinônimo de desordem e rompimento da paz, e o discurso é higienista
– usa-se o termo “sujeira” para se referir a eles. Além de higienistas, tais discursos são
genocidas, busca-se a limpeza, que é atingida com a eliminação da sujeira (210).

A maior parte das notícias relacionadas à terra foi caracterizada pelo uso do termo
“questão agrária”, sendo interessante verificar o que o jornal Zero Hora entende por isso. A
questão agrária só é notícia quando se refere a um conflito pontual (211). A conflitualidade é
anterior às lutas camponesas pela terra, mas retratar a realidade como sendo pacífica antes da
luta é algo presente em todas as notícias, forja-se uma ordem natural das coisas, na qual os
conflitos agrários são vistos como gerados pela luta pela terra, de modo que os atos dos
ruralistas são qualificados como sendo uma reação às condutas do MST (212).

Em outras notícias, representa-se a ideia de que a grande propriedade é produtiva e


propicia o desenvolvimento (214). Nesse sentido, constrói-se uma narrativa segundo a qual os
atos do MST travam esse desenvolvimento. Ainda, o uso de metáforas bélicas – como paz,
trégua e front – molda a ideia de que o conflito entre proprietários e trabalhadores sem-terra é ,
de fato, uma guerra (215). Segundo o discurso do jornal, para determinar o amigo e o inimigo,
basta verificar quem vigia e quem é vigiado no discurso do jornal (217). Isso indica que o
discurso do jornal tem êxito em limitar e classificar o movimento como sendo um ato do inimigo
político – mais do que isso, do inimigo da sociedade (218).

2.2.3 Do medo à repressão: o sistema penal no discurso do jornal sobre os


conflitos agrários (219).

Visto que, na questão abordada, a violência institucional é uma realidade, é preciso


analisar o papel desempenhado pelas agências do sistema penal. Nesse sentido, é válido lembrar
a terminologia tendenciosa para se referir aos atos do MST, como “invasão”, por exemplo
(220). Isso, em duas ocasiões, ocorreu com a atribuição do termo ao próprio MST, ou seja,
houve apropriação, por parte do jornal Zero Hora, do discurso do MST, de modo a adaptá-lo a
valores completamente diferentes. Ou seja, nos raros momentos em que se concede voz ao
movimento, isso ocorre de modo a modificar sua essência – há aparência de se abrir espaço ao
movimento, mas o que ocorre é a apropriação do seu discurso, de modo a apagar sua voz (221).

Assim, o discurso da mídia adota os mesmos termos usados pelos fazendeiros e pelo
sistema penal, qualificando os atos do MST como crimes contra a ordem ou patrimônio (222).
Contudo, por mais que o jornal siga essa linha, não considera o ato de invadir terras como um
crime comum – se assim fosse, a notícia estaria na seção “polícia” e não na “geral”. Isso
significa que o jornal reconhece uma questão política e social de fundo no caso das ocupações,
que distingue seu caráter em relação a crimes comuns. Isso implica características específicas
no modo de retratar as notícias, os líderes e integrantes do MST não são meros camponeses,
mas inimigos do Estado – para que assim possam ser passíveis de vigilância e temor (um maior
controle social) (223).

Dessa maneira, abordar a questão agrária não é o objetivo das notícias, que consiste, na
realidade, na legitimação e justificação do controle social e da vigilância empreendida contra
os sem-terra – considerados inimigos. Contudo, por mais que sejam generalizados como um
grupo de criminosos, há preocupação em separar os inocentes dos culpados, estes considerados
os líderes dos movimentos. É sob esse pretexto que se afirma se tratar de crimes com motivações
políticas e ideológicas, o que os tornam distintos de crimes comuns (225).
A relação dos atos do MST com o crime é bem caracterizada nas decisões dos membros
dos órgãos do sistema penal. Na maior parte das notícias, a atuação da Brigada Militar é
autorizada pelo Judiciário. No momento em que os sem-terra tentam entrar em alguma
propriedade para fazer suas manifestações, a violência estrutural contra a qual lutam se converte
em violência institucional (226). O uso de fontes oficiais continua forte – a Brigada Militar
aparece como voz direta – e a narrativa é de que a atuação desta consiste em defesa contra os
manifestantes (227). A atuação dos agentes do sistema penal, no que se refere à questão agrária,
sempre aparece de modo a complementar a dos fazendeiros, e vice-versa. Contudo, em alguns
casos específicos, a atuação dos agentes parece mais ser uma segurança particular dos
fazendeiros.

A atuação do Judiciário, nos casos analisados, é no sentido de privilegiar os ruralistas,


defendendo a ilegalidade dos atos (228). Frente ao conflito agrário, há tentativa de
individualizar os culpados e as vítimas, característica própria de uma sociedade punitiva e
atomizada. O resultado é a identificação de um inimigo interno que deve ser combatido para
cessar o conflito. A grande questão é que não há nenhuma situação no jornal que relate as
manifestações do MST sob a perspectiva dos próprios atores – o ponto de vista é sempre o dos
ruralistas e dos agentes do sistema penal (229). Ou seja, a forma como o MST e seus atos é
retratada pelo jornal consiste em uma irresponsabilidade. A maior parte do texto traz a
interpretação do jornalista, e caracterizar os sem-terra como objetos de vigilância ou sujeitos
ativos do tipo penal correspondente significa demonizá-los.

Ainda, é conveniente analisar como outras seções do jornal – para além do âmbito das
notícias e reportagens – abordam a questão agrária. Por mais que sejam textos de opinião e,
portanto, não necessariamente reflitam a opinião do jornal, há uma seletividade envolvida. Um
exemplo é a seção “palavra do leitor”, na qual todas as opiniões relacionadas ao MST são
completamente contrárias à sua atuação (230). Ao expor a inconformidade do povo com os atos
dos sem-terra, o jornal busca uma deslegitimação popular de um movimento cuja base é
justamente o povo (231). A reprodução de posicionamentos de políticos e membros de órgãos
públicos segue na mesma linha, havendo até mesmo publicação de entrevista com um ministro
da justiça da época, na qual três, de um total de oito, questionamentos foram sobre o MST (232).
É nesse sentido que se legitima o aumento do controle policial e o ímpeto de repressão aos atos
do movimento (233).
2.2.4 Conflitos agrários no jornal: da invisibilidade à satanização (233).

Desde que os jornais se constituíram como empresas, a cobertura sobre revoltas escravas
e camponesas sempre foi marcada pela invisibilidade do sofrimento humano, que legitimava
atos cruéis. Atualmente, o tipo de abordagem sobre as revoltas ainda tem características
específicas. O interesse pela manutenção do status quo se dá no uso predominante de fontes
oficiais, de modo a não permitir o dissenso e, nas ocasiões que opinião distinta for retratada,
tratá-la de forma distorcida (234).

A relação do MST com a mídia é complexa e dialética, visto que há interdependência


entre ambos e, ao mesmo tempo, antagonismo. Em regra, as relações sociais no campo são
invisíveis, pouco se fala sobre os obstáculos envolvendo a concentração de terra. Desse modo,
estra presente na imprensa é uma forma de romper com essa exclusão – ou seja, a notícia realiza
uma mediação entre o que ocorre no campo e o leitor da cidade (235). As ações do MST atuam
sob essa perspectiva, os camponeses sabem que suas condições de vida não irão mudar caso
seus atos não sejam noticiados – o MST quer ser noticiado, e a imprensa que captar um evento
noticiável. Contudo, essa criação de fato noticiável acaba por não retratar as reivindicações do
MST, mas as consequências de seus atos (236).

Na televisão, a situação não é diferente, a lógica é praticamente a mesma – havendo,


contudo, diferenças conforme o programa emissor. Sendo assim, as notícias são, geralmente,
tratadas de forma maniqueísta – o bem e o mal, deixando-se de lado o dever do governo de
efetivar a Constituição no que se refere à questão da reforma agrária e aos direitos fundamentais.
O sentido dialético da relação se dá pelo fato de que o jornalismo auxilia a construção social
dos conflitos agrários, mas, para isso, se vale de ideologias específicas (239).

A despolitização dos atos coletivos integra um contexto histórico, e os atos políticos do


MST são frequentemente privatizados, como se se tratasse de uma simples relação entre
proprietário e líderes/integrantes do movimento. Hoje é tendência dos movimentos sociais a
busca pela coletivização das reivindicações (240). A redução da violência a atos
individualizados – a atuação da polícia e dos ruralistas – costuma se tratada como uma conduta
de defesa, sendo, por isso, justificável (241). Assim, a redução dos atos do MST a fatos
individualizados e subversores da ordem pública possibilita que sejam qualificados como
inimigos da ordem pública, criminosos. Porém, é preciso destacar que os veículos de
comunicação têm características distintas, sendo que a cobertura ocorre de forma variada (242).
A negação da cidadania por meio da violência evidencia o autoritarismo ainda presente
em sistemas democráticos, especialmente com a expansão da doutrina neoliberal e sua
correspondente política criminal de contenção dos excluídos. Na perspectiva judicial, a luta
pela terra é individualizada, contudo, no jornal, perspectivas generalistas e individuais são
expostas – alguns membros que devem ser punidos, mas todo o movimento é digno de suspeita.
O sistema penal trata alguns conforme o sistema penal subterrâneo – destinado ao combate dos
inimigos internos – enquanto outros são tratados pelo sistema penal formal (244).

É necessário que se evidencie a existência de conflito, não se pode conceber a questão


de terras no brasil como uma situação pacífica e consensual – a importância dos movimentos
sociais é muito significativa nesse aspecto. Do lado oposto, a atuação conjunta dos controles
social formal e informal constroem a imagem dos conflitos sociais no campo de forma seletiva
e estigmatizada (245). Delimita-se o inimigo, e o papel exercido pelo jornal é o de reproduzir
discursos dominantes, tornar visível o que apenas lhes interessa sobre os sem-terra e suas
manifestações. Assim, reforçam-se preconceitos sobre a luta dos trabalhadores do campo. Por
identificar a questão agrária apenas nos conflitos, o jornal constrói um contexto de
conflitualidade e violência. Legitima medidas violentas e exercita uma violência simbólica – o
sujeito é excluído da luta e, por meio do discurso dos fazendeiros e policiais, tornado inimigo
(246).

CONCLUSÃO

A situação atual implica entender as interações que culminaram para se


desenvolvimento, como os episódios da guerra de Canudos e Eldorado dos Carajás, entre outros
conflitos violentos que moldaram o contexto atual. Nesse percurso, as instituições de controle
social formal e informal atuaram conjuntamente na construção social da criminalidade (247).
No contexto latino-americano, essa análise se intensifica, em função da desigualdade
econômica e do elevado número de mortes já existentes. O direito penal atua de modo distinto
conforme a quem se dirige. Há um movimento de relegitimação dos sistemas penais, e a atuação
dos jornais, no que diz respeito ao crime, envolve reprodução dos discursos dos agentes penais
e sensacionalismo dos fatos.

Deve-se evitar determinismos, mas as decisões tomadas nas redações, frente aos
interesses políticos e econômicos, costumam não contemplar os problemas estruturais, focando
em fatos individualizados, descontextualizados e despolitizados (248). Assim, os meios de
comunicação de massa optam por divulgar conflitos específicos do campo, deixando de lado o
fato de que essa luta consiste na base para a sobrevivência dos grupos envolvidos – a lógica do
jornal é a de que os sem-terra que iniciaram os conflitos. Na difusão da ideia de que é necessária
vigilância, o jornal legitima o controle social (249).

A perseguição se explica pelo medo que provocam em relação à perda de propriedade


de terra e pela ideologia política que defendem (esta gera ainda mais temor). São perseguidos
pelo simples fato de serem quem são, o que exemplifica a lógica de um direito penal do autor
– o olhar seletivo para os conflitos do campo reproduz as desigualdades estruturais,
criminalizando a base da pirâmide social e imunizando o topo (250).

O jornal reproduz quase que de forma absoluta o discurso das fontes oficiais e dos
fazendeiros. Ou seja, por mais que se retrate atos do MST, sua voz está absolutamente
subrepresentada em relação a dos ruralistas e dos agentes do sistema penal. Portanto, diante de
tal situação, é explicita a necessidade e importância dos movimentos sociais para romper com
esse ciclo de legitimação da violência (251).

O descaso, o arbítrio, a seletividade e o julgamento de outros seres humanos legitimam


um sistema genocida. A importância do MST reside na resposta organizada à morte, buscando
uma união entre a conquista de direitos e uma vida digna no campo. É por meio da participação
que se possibilitam mudanças, ainda que o desafio para romper com toda uma estrutura de
desigualdades seja absolutamente grande (252).

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