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Sistema penal, criatura ou criador?

Geovaldri Maciel Laitartt


Mestrando em Direito

Os estudos sobre criminologia buscaram, por meio de pesquisas científicas de


várias escolas de pensamento criminológico, responder quais seriam as causas da
delinquência, quais seriam os motivos que levaria ao comportamento criminoso, quais
seriam os mecanismos de controle desses criminosos ou da delinquência. Basicamente se
baseavam em conceitos deterministas positivistas, uma ciência causal-explicativa, que vê
como natural o fenômeno criminal, tendo como auxílio as estatísticas oficiais. Suas
análises têm foco voltado para o indivíduo transgressor. 1

Uma questão preliminar que se coloca é o fato de que o objeto de análise não é
representativa do fenômeno criminal, pois existem diversos fatores desconsiderados, tais
como as cifras negras, crimes de colarinho branco e seletividade do sistema penal. Em
decorrência disto a análise das escolas tradicionais é falha, no mínimo parcial, pois como
o método e objeto de referência “o criminólogo positivista não conhecerá nunca o
“fenômeno” da prostituição, do tráfico de drogas, do crime organizado, etc., podendo
conhecer algumas mulheres, traficantes e mafiosos, por exemplo, que foram selecionados
pelo sistema. E isto vale independentemente para todas as formas de criminalidade.”2

Além do foco destes estudos, outra questão muito debatida é a eficiência de nosso
sistema penal, pois a criminologia positiva se utiliza muito dos termos jurídico-penais,
bem como se baseia em lógicas alinhadas a este tipo de discurso. Ocorre que a realidade
de nosso sistema grita em todos os continentes. Vale transcrever a lição professor
Zaffaroni na qual menciona que “a dor e a morte que nossos sistemas penais semeiam
estão tão perdidas que o discurso jurídico-penal não pode ocultar seu desbaratamento
valendo-se de seu antiquado arsenal de racionalizações reiterativas: achamo-nos, em
verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade.”3

Um ambiente de clara falência institucional dos sistemas penais, aliados a


correntes de pensamento positivistas, foi um ambiente fértil para o surgimento de um

1
(ANDRADE, 1995, p. 24; BARATA, 2004, p. 88)
2
(ANDRADE, 1995, p. 33)
3
(ZAFFARONI, 2001, p. 12)
novo paradigma de pensamento criminológico, em especial na década de 60 nos Estados
Unidos4, buscando romper a lógica determinista até então vigorante nas escolas
criminológicas. Este novo pensamento criminológico pode ser denominado como
“crítico”5, pois colocava em questão o mecanismo de atuação da sociedade diante do
fenômeno criminal. Busca refutar o positivismo e a cultura repressiva do estado. O objeto
de estudo passa a ser a sociedade sob o aspecto de como se definem os comportamentos
criminosos e qual a reação social a este comportamento. A visão de que a criminalidade
não tem natureza ontológica, mas se constitui em decorrência das relações sociais e é
fortalecida pelo controle social, faz com que seja objeto de estudo as consequências da
estrutura de reação social ao fenômeno criminal,6 da qual o sistema jurídico-penal é
importante partícipe.

A nova teoria que se insere no pensamento da criminologia crítica é o Labeling


Approach, também chamado de “reação social” ou “perspectiva interacionista”7 que tem
seu pano de fundo a “estigmatização”8 que o sistema de controle provoca no indivíduo.
Trata-se de uma “revolução científica no âmbito da sociologia criminal”.9

O Labeling, na perspectiva do “interacionismo simbólico”10, busca superar as


concepções estanques e imutáveis, de natureza antropológicas e sociológicas, pois as
dinâmicas do cotidiano irão desencadear perspectivas e características de uma identidade

4
A professora Vera de Andrade (ANDRADE, 1995, p. 27) menciona que o labelling approach é designado
na literatura, alternativa e sinonimiamente, por enfoque (perspectiva ou teoria) do interacionismo
simbólico, etiquetamento, rotulação ou ainda por paradigma da “reação social” (social reation approach),
do “controle” ou da “definição”. Ele surge nos Estados Unidos da América em finais da década de 50 e
inícios da década de 60 com os trabalhos de autores como H. GARFINKEL, E. GOFMANN,K. ERICSON, A.
CICOUREL, H.BECKER, E. SCHUR, T. SCHEFF, LEMERT, KITSUSE entre outros, pertencentes à “Nova Escola
de Chicago” com o questionamento do paradigma funcional até o momento dominante dentro da
Sociologia norte-americana. Considera-se H. Becker, sobretudo através de seu já clássico Outsiders (
publicado em 1963) o fundador deste paradigma criminológico. E na verdade, Outsiders persiste ainda
como a obra central do labelling, a primeira onde esta nova perspectiva aparece consolidada e
sistematizada e onde se encontra definitivamente formulada a sua tese central. Neste momento pós-
guerra havia uma crescente prosperidade nos Estados Unidos, aliada a intensos protestos por diretos da
minorias e contra guerra do Vietnã, que foram violentamente oprimidos pela polícia.
5
(FERREIRA, 2016, p. 172)
6
(ANDRADE, 1995, p. 29)
7
(DIAS, 1997, p. 342)
8
O termo rotulagem ou etiquetamento, que também são sinônimos desta teoria, são decorrentes
justamente do processo de estigmatização que abordaremos em seguida.
9
(BARATA, 2004, p. 84)
10
O professor Alessandro Barata menciona que a orientação sociológica do Labeling Approach é
baseada em duas correntes americanas. A da psicologia social, que nada mais é que o interacionismo
simbólico, e a da etnometodologia, segundo a qual a sociedade é fruto da construção social. Estudar o
desvio significa estudar estes processos. (BARATA, 2004, p. 87)
individualizada, que deve ser encarada “como resultado dinâmico do processo de
envolvimento, comunicação e interação social.”11

O rigor científico e a mudança de perspectiva de investigação podem leva a


conclusão que “a teoria da rotulação e, em geral, as contribuições interacionistas e da
fenomenologia, apresentam a inquestionável vantagem de descrever detalhadamente –
comum arsenal que não se pode imputar nenhum enfeite teórico – o processo de produção
e reprodução da delinquência.”12

O Labeling buscava concentrar sua pesquisa científica, e consequentemente


crítica, nos mecanismos de “reação social”13 frente ao fenômeno da delinquência14. Assim
seria necessário estudar as reações das instâncias oficiais de controle, pois exercem
função constitutiva por meio do efeito estigmatizante das atividades da polícia, do
ministério público e do juiz. Segunda esta teoria a reação social provocava estigmatização
do indivíduo. Desta forma o funcionamento deste processo deveria ser estudo sob a
perspectiva de entender “quais os critérios em nome dois quais certas pessoas e só elas
são estigmatizadas como delinquentes (variável dependente) e quais as consequências
desta estigmatização (variável independente)?”15

A variável depende vai ser respondida pelo “mecanismo de seleção”16 do sistema


de controle, o qual possui uma lógica própria.

Sob a perspectiva do mecanismo de seleção, importante consignar que ela será


realizada de acordo com certos comportamentos elencados pela sociedade como
desviantes. Ou seja, a seleção se inicia no processo legislativo penal. Não se pode estudar
o fenômeno da criminalidade sem entender como o sistema penal define o que é ilícito e
como se deve reagir contra ele17. Resta então refletir qual é o processo de definição de
comportamentos desviantes?

11
(DIAS, 1997, p. 345)
12
(ZAFFARONI, 2001, p. 60)
13
Termo que também define esta teoria. O objeto da análise se concentra na “reação” da sociedade ao
fenômeno da delinquência.
14
Segundo Professor Figueredo Dias (DIAS, 1997, p. 288) diversas teorias se debruçaram sobre o
fenômeno da delinquência, vindo a ser denominada de “subcultura delinquente” com um termo genérico
para todo o tipo de delinquência. A subcultura traria a ideia de uma cultura inserida em outra, que por
questões antagônicas se diferenciava. Um bom exemplo é a subcultura dos internos de um
estabelecimento prisional.
15
(DIAS, 1997, p. 343)
16
O Labeling gravita em torno do etiquetamento e da estigmatização, ao quais têm suas origens no
mecanismo de seleção do sistema jurídico-penal;
17
(BARATA, 2004, p. 86)
Este processo basicamente se estabelece no sistema jurídico-penal por meio de
aprovação de leis penais pelo poder Legislativo que estabelece, em última análise, quais
serão os comportamentos escolhidos como desviantes. Aqui se inserem diversas
indagações quanto a técnica aplicada na elaboração dessas leis, quanto ao viés punitivista,
quanto ao critério capitalismo de valorização patrimonial. Pode-se ainda consignar que
por vezes as motivações dos parlamentares para definir determinado comportamento
como desviante não necessariamente se baseia na necessidade de proteção social,
podendo estar a serviço de outros interesses, econômicos ou políticos.

Ao se analisar os comportamentos desviantes e os não-desviantes pode-se


constatar que a distinção não se dá pelas características pessoais do comportamento, pela
reprovabilidade da conduta, mas sim pelo que se definiu legalmente, que varia no tempo
e no espaço, havendo assim a distinção relativa do que é lícito do que é ilícito.18 Faz- se
necessário analisar a natureza do sujeito e do objeto na definição do comportamento
desviante, pois a constituição do desvio é prefinida como qualidade de comportamento, e
o sujeito desviante será o selecionado e etiquetado. Outra pergunta de posse fazer é no
sentido de entender quais são os reais motivos que determinada sociedade escolhe
determinados como comportamentos como desviantes? Ou ainda, a escolha daqueles
comportamentos que não serão considerados desviantes. Percebe-se que a definição
desses comportamentos não é tão democrática, igualitária e republicana quanto
desejaríamos, pois existem “grupos poderosos na sociedade possuem a capacidade de
impor ao sistema uma quase que total impunidade das próprias condutas criminosas.”19

No contexto pós definição de comportamentos desviantes, o papel dos “Moral


Cruzaders” são fundamentais no processo da seleção, pois são responsáveis pela
criminalização primária e pelo caráter fragmentário do ordenamento jurídico-criminal,
pois se estabelece um relativismo e acentuada preferência para as minorias mais
desqualificadas.20

Esta preferência se refere a variável dependente da qual falamos antes, em especial


o processo de seleção do sistema penal. Não é sem razão que a maioria da “clientela do
sistema penal é constituída de pobres”, pois eles justamente têm maiores chances de
serem selecionados, sendo que a tendencia para delinquir não é somente dos pobres, mas

18
(BARATA, 2004, p. 85)
19
(BARATA, 2004, p. 35)
20
(DIAS, 1997, p. 344)
de qualquer classe social, mas na sua condição social “tem maiores chances de serem
criminalizados e etiquetados como criminosos.”21

Estes mecanismos de seleção é decorrente do próprio estereótipo consequente do


estigmatização (variável independente), o qual, via de regra, pauta a atuação dos órgãos
de controle, em especial da polícia22, e responsáveis pela “conformação definitiva das
simbolizações normativas das leis.”23 Esta forma de atuar (seletividade) somada a
“reprodução da violência, criação de um ambiente favorável para crimes maiores, a
corrupção institucionalizada, a concentração do poder, a verticalização social e a
destruição das relações horizontais ou comunitárias não são caraterísticas conjunturais,
mas estruturais no exercício do poder em todo sistema penal”. 24

Segundo Figueredo Dias “a distinção entre conceitos (ou linguagem) descritivos


e adscritivos, constituem base teórica do Labeling”, sendo que os descritivos são
relacionados ao mundo exterior do indivíduo, e estabelecem relação de mais objetiva. Já
o adscritivos são os conceitos que valoram a conduta, “podendo conferir estigmas
positivos ou negativos e apontar para padrões normativos de comportamento”.25 A
ligação destes conceitos com o comportamento humano, desviante ou não, tem sua sede
no Teorema de Thomas: “if a man define situation as realm theys are real in their
consequences!” 26

Assim, o comportamento humano pode estar influenciado por um conjunto de


símbolos, significações, mensagens institucionais, advindas da estigmatização que o leva
acreditar em seu status desviante e consequentemente aceitar normais as consequências
de seu comportamento. O conceito do “Role-engulfment” é justamente a materialização
deste conjunto de influências estigmatizantes, pois o delinquente “passa a assumir o

21
(ANDRADE, 1995, p. 32)
22
Note-se que esta atuação da polícia de forma seletiva não é realizada de forma consciente. Infelizmente
são treinados para este tipo de comportamento. Nas academias de polícia os estigmas, estereótipos, o
sectarismo é reforçado. Em raras exceções verificamos os policiais recebendo treinamentos que levem a
atuação igualitária. Mais raro ainda são policiais sendo preparados para enfrentar a tipologia criminal
típica das classes sociais mais abastadas, tais como crimes econômicos e financeiros. Um exemplo claro,
talvez até inadequado para este texto, é o caso de um jovem negro abordado na região de fronteira seca
entre o Brasil com Paraguai, sem nenhum indício ou fato que levasse a obrigatoriedade da intervenção
policial. Neste mesmo contexto, jovem branco, bem vestido, atravessa a fronteira tranquilamente com
pasta cheia de dinheiro cometendo crime financeiro, não sendo nem sequer admoestado pela polícia.
Este é o cotidiano.
23
(DIAS, 1997, p. 344)
24
(ZAFFARONI, 2001, p. 15)
25
(DIAS, 1997, p. 346)
26
(DIAS, 1997, p. 346)
primado da carreira do desviante, de forma que toda sua experiência – designadamente a
interação e a auto-imagem – tendem a polarizar-se em torno deste papel.”27

Neste contexto sistêmico, decorrente da lógica de eleição do comportamento


desviante, do mecanismo de seleção dos sistemas de controle somado ao estigma tatuado,
surge a “delinquência secundária” como consequência do sistema penal.

Aí podemos lembrar do título deste texto, a delinquência criou o sistema


penal ou sistema penal é quem cria a delinquência?

Uma conduta não é criminal “em si” (qualidade negativa ou nocividade inerente)
nem seu autor é um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influências
de seu meio-ambiente. A criminalidade se revela, principalmente, como um status
atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a “definição” legal de
crime, que atribui à conduta o caráter criminal e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza
um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas.28

A delinquência secundária, portanto, é resultado do sistema de reação da


sociedade frente a delinquência primária29, esta, segundo Lemert, “é originária de uma
série de fatores, poligenética, sendo aquela criada pelo sistema jurídico-penal.”30

“A delinquência secundária é uma série de problemas sociais provocados pela


estigmatização, punição, segregação e controlo social, factos que têm o efeito comum de
diferenciar o ambiente simbólico e interacional a que a pessoa responde, comprometendo
drasticamente a sua socialização. Tais fatos convertem-se em eventos centrais na
existência na existência de quem os experimenta, alterando a sua estrutura psíquica,
criando uma organização especial de papeis sociais e de atitudes para consigo. As ações
que têm como referência estes papeis e atitudes para consigo constituem a “deviance”
secundária.”31

É possível, portanto, perceber que o sistema penal é extremamente sectário, pois


somente irá atuar sobre os que forem selecionados, não sobre todos que cometeram
crimes. Aqueles selecionados são submetidos as consequências desta seleção que de

27
(DIAS, 1997, p. 351)
28
(ANDRADE, 1995, p. 28)
29
Uma das críticas que se faz a teoria do Labeling Approach é o fato de não ter fundamentado
suficientemente a delinquência primária.
30
(BARATA, 2004, p. 89)
31
(DIAS, 1997, p. 350)
forma ritualizada provocará mais delinquência. As consequências ritualizadas
basicamente atuaram sobre duas perspectivas. A primeira delas diz respeito ao ambiente
do indivíduo, pois a estigmatização provocará a redução de oportunidades legítimas, o
levando a procurar oportunidades ilegítimas, bem como o tempo que passar internado em
estabelecimento penal sofrerá o processo de desaculturação e socialização com a
subcultura interna. A segunda, de índole individual-psicológica, provoca a conformação
com o papel que a sociedade lhe atribui, o chamado role-engulfmente, como individuo
criminoso.32

Ainda, no contexto estigmatização, é importante lembrar como o sistema prisional


se encarrega estigmatizar os indivíduos, transformando sua personalidade, sempre o
deixando pior do que antes, contrariando frontalmente a função teórica da sanção penal.
O sistema carcerário33 exerce uma função preponderante na estigmatização, em especial
porque o rito de “mortificação em uma instituição total”34 tem por finalidade acabar com
o eu existente e criar outro, submetido a “microfísica do poder”35 próprio deste sistema.
Desde a admissão ao sistema (tiram a roupa, procedimento de busca pessoal, raspam o
cabelo, deixa de ter nome e passa a ter um número).

A política criminal positivista apresenta, assim, uma arquitetura lógica perversa,


pois seleciona, estigmatiza, seleciona. Um círculo vicioso que só aumenta a
criminalidade, aumenta os índices de violência, aumenta a população carcerária, aumenta
a quantidade de recursos públicos que são destinados a esta matéria. E, acima de tudo,
não é feita para todos. Especialmente quando lembramos dos crimes do colarinho branco,
ou das cifras negras. Ou seja, a criatura é perversa, desumana e injusta. Ou seria o criador?

Assim, o Labeling Approach ao trazer à tona este enfoque sobre o funcionamento


dos mecanismos de controle, necessariamente tende a tocar na questão da política
criminal, pois encaminha sugestões que podem amenizar aquele círculo vicioso de

32
(DIAS, 1997, p. 352)
33
No que diz respeito ao sistema carcerário brasileiro o problema se acentua ainda mais, pois o
estabelecimento prisional é divido entre as organizações criminosas, estas por sua vez protegem os seus.
Aquele que, selecionado pelo sistema penal, ao entrar na prisão é obrigado a aderir a uma facção para
poder sobreviver. Passa a fazer parte totalmente do sistema criminal por meio da organização criminosa.
Há quem diga que se uma pessoa socialmente estruturada, num momento de fúria, comete um homicídio,
caso o sistema penal a coloque em uma penitenciária, a probabilidade de que esta pessoa volte a delinquir
é gigantesca. Do contrário, se o Estado estipulasse outras formas de punição que não seja o
encarceramento, este indivíduo não voltará a delinquir.
34
(GOFFMAN, 1961, p. 48 e 16)
35
(FOUCAULT, 1987, p. 165)
criminalização secundária, quais sejam: descriminalização, não-intervenção radical,
diversão e due process.36

A mudança de paradigma de investigação na criminologia provocada pela teoria


do Labeling Approach certamente foi uma evolução do ponto de vista científico e
pragmático, pois é marcado pela “passagem de um paradigma baseado na investigação
das causas da criminalidade a um paradigma baseado na investigação das condições da
criminalização, que se ocupa hoje em dia, fundamentalmente, da análise dos sistemas
penais vigentes (natureza, estrutura e funções).37

“O comportamento desviante sucessivo à reação torna-se um meio de defesa, de


ataque ou de adaptação em relação aos problemas manifestos e ocultos criados pela reação
social ao primeiro desvio.”38

“Na verdade, esses resultados mostram que a intervenção do Sistema Penal,


especialmente nas penas detentivas, antes de terem um efeito reeducativo sobre o
delinquente determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da identidade desviante
do condenado e seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira criminosa.”39

Ao discorrer sobre as cifras negras em relação ao crime de colarinho branco


BARATA estabelece alguns fatores que influenciam na diminuta quantidade de
procedimentos criminais sobre crimes do colarinho branco, quais sejam, primeiro os de
natureza social, pois o autores gozam de prestígio social, tendo escasso efeito
estigmatizante e não apresentam o estereótipo selecionável pelo sistema penal, secundo
os de natureza jurídico formal, pois tanto a competência técnica quanto a competência
jurisdicional dos órgãos de controle não são capazes de detectar e/ou processar este tipo
de desvio, e terceiro os de natureza econômica, pois em eventual persecução os indivíduos
que comentem os desvios de colarinho branco tem poder econômico para contratar bons
advogados, com prestígio, e com capacidade de manobras protelatórias e que extingam a
punibilidade.40 Exatamente por essas razões, entre outras, que as estatísticas oficiais sobre
estes crimes são errôneas, bem como os estudos em paradigmas positivistas não
conseguem alcançar este tipo de desvio.

36
(DIAS, 1997, p. 359)
37
(ANDRADE, 1995, p. 31)
38
(BARATA, 2004, p. 90)
39
(BARATA, 2004, p. 90)
40
(BARATA, 2004, p. 102)
Estes fatores vão ao encontro da incapacidade de órgãos de controle,
especialmente da polícia, de detectar o comportamento desviante do colarinho branco.
Esta incapacidade também tem origem na forma e exigências de recrutamentos das
pessoas para integrarem os corpos de polícia, pois pelos baixos salários e desprestígio
social, a carreira não é atrativa. O que piora esta questão é a formação e aperfeiçoamento,
que, com raras exceções, se preocupam em estar preparados para enfrentar aquela
criminalidade estereotipada, de sangue nas ruas, com violência. A detecção e investigação
de crimes de colarinho branco exigem muita qualificação e preparo. Embora não tão
detectável como outras formas de delinquência, os crimes econômicos e financeiro
existem, não sendo “a criminalidade não é um comportamento de uma restrita minoria,
como quer a difundida concepção (e a ideologia de defesa social a ela vinculada), mas,
ao contrário, o comportamento de largos extratos ou mesmo da maioria dos membros de
nossa sociedade.”41

Assim a lógica emprega pela sociedade para o enfrentamento do fenômeno


criminoso estabelece um círculo vicioso de delinquência. É justamente esta lógica que
passa ser objeto da teoria da rotulagem. Percebe-se que existe uma confluência de forças
políticas para eleger determinados comportamentos como desviantes, os quais são
submetidos a seleção do sistema de controle. Esta seleção se dá por instituições
reprodutoras da violência, guiadas por estereótipos predefinidos, agindo assim somente
em crimes praticados por parte da população não favorecida pelo sistema.

Estas pessoas selecionadas passam por um processo de estigmatização decorrente


de todos os ritos desumanos que o sistema jurídico-penal impõe a quem não tem
condições de ser representado por bons advogados, culminando como o processo de de
institucionalização em subculturas criminais nos estabelecimentos penais.

O resultado deste processo em geral é o aumento da violência pela criminalização


secundária, em especial por indivíduos que foram estigmatizados e compelidos a atuar
em oportunidades não legítimas decorrentes de seu etiquetamento social.

Percebe-se que o Labeling Approach descortina uma triste pintura de nossa


realidade social. Constituindo-se num importante processo de ressignificação das relações
de poder, pois revelou a distorção entre a realidade e o discurso de proteção social,
podendo se afirmar “que as investigações interacionistas e fenomenológicas constituem

41
(BARATA, 2004, p. 104)
o golpe deslegitimador mais forte recebido pelo exercício de poder do sistema penal, do
qual o discurso jurídico-penal não mais poderá recuperar-se, a não ser fechando-se
hermeticamente a qualquer dado da realidade, por menor que seja, isto é, estruturando-se
como um delírio social.”42

Assim verifica-se o grande paradoxo entre o criador e a criatura, pois no discurso


de proteção social o sistema jurídico-penal foi criado para neutralizar a delinquência, mas
ao analisarmos os mecanismos de reação social frente ao fenômeno da delinquência
podemos constatar que o sistema penal é criador de delinquência, estabelecendo uma
relação causal entre criador e criatura, se não a cria primariamente, aumenta de maneira
exponencial secundariamente.

Referências
ANDRADE, V. R. (1995). DO PARADIGMA ETIOLÓGICO AO PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL.
Periódicos da Universidade Federal de Santa Catarina, 24-36. Acesso em 08 de 12 de
2022, disponível em
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/download/15819/14313/4862
2

BARATA, A. (2004). Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do


direito penal. Rio de Janeiro: Revan.

DIAS, J. d. (1997). Criminologia - o homem, o delinquente e a sociedade. Coimbra: Coimbra.

FERREIRA, C. C. (2016). OS CAMINHOS DAS CRIMINOLOGIAS CRÍTICAS: UMA REVISÃO


BIBLIOGRÁFICA. Revista de Criminologias e Políticas Criminais, 171-192.
doi:10.21902/2526-0065/2016.v2i2.1463

FOUCAULT, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão; Original em francês: Surveiller et


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GOFFMAN, E. (1961). Manicônios, prisões e conventos. Título original em Inglês: Asylums... (e.
Dante Moreira, Trad.) São Paulo, São Paulo: Perspectiva.

ZAFFARONI, E. R. (2001). Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema


penal. Rio de Janeiro: Revan.

42
(ZAFFARONI, 2001, p. 61)

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