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Uma questão preliminar que se coloca é o fato de que o objeto de análise não é
representativa do fenômeno criminal, pois existem diversos fatores desconsiderados, tais
como as cifras negras, crimes de colarinho branco e seletividade do sistema penal. Em
decorrência disto a análise das escolas tradicionais é falha, no mínimo parcial, pois como
o método e objeto de referência “o criminólogo positivista não conhecerá nunca o
“fenômeno” da prostituição, do tráfico de drogas, do crime organizado, etc., podendo
conhecer algumas mulheres, traficantes e mafiosos, por exemplo, que foram selecionados
pelo sistema. E isto vale independentemente para todas as formas de criminalidade.”2
Além do foco destes estudos, outra questão muito debatida é a eficiência de nosso
sistema penal, pois a criminologia positiva se utiliza muito dos termos jurídico-penais,
bem como se baseia em lógicas alinhadas a este tipo de discurso. Ocorre que a realidade
de nosso sistema grita em todos os continentes. Vale transcrever a lição professor
Zaffaroni na qual menciona que “a dor e a morte que nossos sistemas penais semeiam
estão tão perdidas que o discurso jurídico-penal não pode ocultar seu desbaratamento
valendo-se de seu antiquado arsenal de racionalizações reiterativas: achamo-nos, em
verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade.”3
1
(ANDRADE, 1995, p. 24; BARATA, 2004, p. 88)
2
(ANDRADE, 1995, p. 33)
3
(ZAFFARONI, 2001, p. 12)
novo paradigma de pensamento criminológico, em especial na década de 60 nos Estados
Unidos4, buscando romper a lógica determinista até então vigorante nas escolas
criminológicas. Este novo pensamento criminológico pode ser denominado como
“crítico”5, pois colocava em questão o mecanismo de atuação da sociedade diante do
fenômeno criminal. Busca refutar o positivismo e a cultura repressiva do estado. O objeto
de estudo passa a ser a sociedade sob o aspecto de como se definem os comportamentos
criminosos e qual a reação social a este comportamento. A visão de que a criminalidade
não tem natureza ontológica, mas se constitui em decorrência das relações sociais e é
fortalecida pelo controle social, faz com que seja objeto de estudo as consequências da
estrutura de reação social ao fenômeno criminal,6 da qual o sistema jurídico-penal é
importante partícipe.
4
A professora Vera de Andrade (ANDRADE, 1995, p. 27) menciona que o labelling approach é designado
na literatura, alternativa e sinonimiamente, por enfoque (perspectiva ou teoria) do interacionismo
simbólico, etiquetamento, rotulação ou ainda por paradigma da “reação social” (social reation approach),
do “controle” ou da “definição”. Ele surge nos Estados Unidos da América em finais da década de 50 e
inícios da década de 60 com os trabalhos de autores como H. GARFINKEL, E. GOFMANN,K. ERICSON, A.
CICOUREL, H.BECKER, E. SCHUR, T. SCHEFF, LEMERT, KITSUSE entre outros, pertencentes à “Nova Escola
de Chicago” com o questionamento do paradigma funcional até o momento dominante dentro da
Sociologia norte-americana. Considera-se H. Becker, sobretudo através de seu já clássico Outsiders (
publicado em 1963) o fundador deste paradigma criminológico. E na verdade, Outsiders persiste ainda
como a obra central do labelling, a primeira onde esta nova perspectiva aparece consolidada e
sistematizada e onde se encontra definitivamente formulada a sua tese central. Neste momento pós-
guerra havia uma crescente prosperidade nos Estados Unidos, aliada a intensos protestos por diretos da
minorias e contra guerra do Vietnã, que foram violentamente oprimidos pela polícia.
5
(FERREIRA, 2016, p. 172)
6
(ANDRADE, 1995, p. 29)
7
(DIAS, 1997, p. 342)
8
O termo rotulagem ou etiquetamento, que também são sinônimos desta teoria, são decorrentes
justamente do processo de estigmatização que abordaremos em seguida.
9
(BARATA, 2004, p. 84)
10
O professor Alessandro Barata menciona que a orientação sociológica do Labeling Approach é
baseada em duas correntes americanas. A da psicologia social, que nada mais é que o interacionismo
simbólico, e a da etnometodologia, segundo a qual a sociedade é fruto da construção social. Estudar o
desvio significa estudar estes processos. (BARATA, 2004, p. 87)
individualizada, que deve ser encarada “como resultado dinâmico do processo de
envolvimento, comunicação e interação social.”11
11
(DIAS, 1997, p. 345)
12
(ZAFFARONI, 2001, p. 60)
13
Termo que também define esta teoria. O objeto da análise se concentra na “reação” da sociedade ao
fenômeno da delinquência.
14
Segundo Professor Figueredo Dias (DIAS, 1997, p. 288) diversas teorias se debruçaram sobre o
fenômeno da delinquência, vindo a ser denominada de “subcultura delinquente” com um termo genérico
para todo o tipo de delinquência. A subcultura traria a ideia de uma cultura inserida em outra, que por
questões antagônicas se diferenciava. Um bom exemplo é a subcultura dos internos de um
estabelecimento prisional.
15
(DIAS, 1997, p. 343)
16
O Labeling gravita em torno do etiquetamento e da estigmatização, ao quais têm suas origens no
mecanismo de seleção do sistema jurídico-penal;
17
(BARATA, 2004, p. 86)
Este processo basicamente se estabelece no sistema jurídico-penal por meio de
aprovação de leis penais pelo poder Legislativo que estabelece, em última análise, quais
serão os comportamentos escolhidos como desviantes. Aqui se inserem diversas
indagações quanto a técnica aplicada na elaboração dessas leis, quanto ao viés punitivista,
quanto ao critério capitalismo de valorização patrimonial. Pode-se ainda consignar que
por vezes as motivações dos parlamentares para definir determinado comportamento
como desviante não necessariamente se baseia na necessidade de proteção social,
podendo estar a serviço de outros interesses, econômicos ou políticos.
18
(BARATA, 2004, p. 85)
19
(BARATA, 2004, p. 35)
20
(DIAS, 1997, p. 344)
de qualquer classe social, mas na sua condição social “tem maiores chances de serem
criminalizados e etiquetados como criminosos.”21
21
(ANDRADE, 1995, p. 32)
22
Note-se que esta atuação da polícia de forma seletiva não é realizada de forma consciente. Infelizmente
são treinados para este tipo de comportamento. Nas academias de polícia os estigmas, estereótipos, o
sectarismo é reforçado. Em raras exceções verificamos os policiais recebendo treinamentos que levem a
atuação igualitária. Mais raro ainda são policiais sendo preparados para enfrentar a tipologia criminal
típica das classes sociais mais abastadas, tais como crimes econômicos e financeiros. Um exemplo claro,
talvez até inadequado para este texto, é o caso de um jovem negro abordado na região de fronteira seca
entre o Brasil com Paraguai, sem nenhum indício ou fato que levasse a obrigatoriedade da intervenção
policial. Neste mesmo contexto, jovem branco, bem vestido, atravessa a fronteira tranquilamente com
pasta cheia de dinheiro cometendo crime financeiro, não sendo nem sequer admoestado pela polícia.
Este é o cotidiano.
23
(DIAS, 1997, p. 344)
24
(ZAFFARONI, 2001, p. 15)
25
(DIAS, 1997, p. 346)
26
(DIAS, 1997, p. 346)
primado da carreira do desviante, de forma que toda sua experiência – designadamente a
interação e a auto-imagem – tendem a polarizar-se em torno deste papel.”27
Uma conduta não é criminal “em si” (qualidade negativa ou nocividade inerente)
nem seu autor é um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influências
de seu meio-ambiente. A criminalidade se revela, principalmente, como um status
atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a “definição” legal de
crime, que atribui à conduta o caráter criminal e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza
um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas.28
27
(DIAS, 1997, p. 351)
28
(ANDRADE, 1995, p. 28)
29
Uma das críticas que se faz a teoria do Labeling Approach é o fato de não ter fundamentado
suficientemente a delinquência primária.
30
(BARATA, 2004, p. 89)
31
(DIAS, 1997, p. 350)
forma ritualizada provocará mais delinquência. As consequências ritualizadas
basicamente atuaram sobre duas perspectivas. A primeira delas diz respeito ao ambiente
do indivíduo, pois a estigmatização provocará a redução de oportunidades legítimas, o
levando a procurar oportunidades ilegítimas, bem como o tempo que passar internado em
estabelecimento penal sofrerá o processo de desaculturação e socialização com a
subcultura interna. A segunda, de índole individual-psicológica, provoca a conformação
com o papel que a sociedade lhe atribui, o chamado role-engulfmente, como individuo
criminoso.32
32
(DIAS, 1997, p. 352)
33
No que diz respeito ao sistema carcerário brasileiro o problema se acentua ainda mais, pois o
estabelecimento prisional é divido entre as organizações criminosas, estas por sua vez protegem os seus.
Aquele que, selecionado pelo sistema penal, ao entrar na prisão é obrigado a aderir a uma facção para
poder sobreviver. Passa a fazer parte totalmente do sistema criminal por meio da organização criminosa.
Há quem diga que se uma pessoa socialmente estruturada, num momento de fúria, comete um homicídio,
caso o sistema penal a coloque em uma penitenciária, a probabilidade de que esta pessoa volte a delinquir
é gigantesca. Do contrário, se o Estado estipulasse outras formas de punição que não seja o
encarceramento, este indivíduo não voltará a delinquir.
34
(GOFFMAN, 1961, p. 48 e 16)
35
(FOUCAULT, 1987, p. 165)
criminalização secundária, quais sejam: descriminalização, não-intervenção radical,
diversão e due process.36
36
(DIAS, 1997, p. 359)
37
(ANDRADE, 1995, p. 31)
38
(BARATA, 2004, p. 90)
39
(BARATA, 2004, p. 90)
40
(BARATA, 2004, p. 102)
Estes fatores vão ao encontro da incapacidade de órgãos de controle,
especialmente da polícia, de detectar o comportamento desviante do colarinho branco.
Esta incapacidade também tem origem na forma e exigências de recrutamentos das
pessoas para integrarem os corpos de polícia, pois pelos baixos salários e desprestígio
social, a carreira não é atrativa. O que piora esta questão é a formação e aperfeiçoamento,
que, com raras exceções, se preocupam em estar preparados para enfrentar aquela
criminalidade estereotipada, de sangue nas ruas, com violência. A detecção e investigação
de crimes de colarinho branco exigem muita qualificação e preparo. Embora não tão
detectável como outras formas de delinquência, os crimes econômicos e financeiro
existem, não sendo “a criminalidade não é um comportamento de uma restrita minoria,
como quer a difundida concepção (e a ideologia de defesa social a ela vinculada), mas,
ao contrário, o comportamento de largos extratos ou mesmo da maioria dos membros de
nossa sociedade.”41
41
(BARATA, 2004, p. 104)
o golpe deslegitimador mais forte recebido pelo exercício de poder do sistema penal, do
qual o discurso jurídico-penal não mais poderá recuperar-se, a não ser fechando-se
hermeticamente a qualquer dado da realidade, por menor que seja, isto é, estruturando-se
como um delírio social.”42
Referências
ANDRADE, V. R. (1995). DO PARADIGMA ETIOLÓGICO AO PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL.
Periódicos da Universidade Federal de Santa Catarina, 24-36. Acesso em 08 de 12 de
2022, disponível em
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/download/15819/14313/4862
2
GOFFMAN, E. (1961). Manicônios, prisões e conventos. Título original em Inglês: Asylums... (e.
Dante Moreira, Trad.) São Paulo, São Paulo: Perspectiva.
42
(ZAFFARONI, 2001, p. 61)