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HISTÓRIA DA LOUCURA E HISTÓRIA O BRASIL

MANICOMIAL

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Sumário
MICHEL FOUCAULT E A “HISTÓRIA DA LOUCURA”: 50 anos transformando a
história da psiquiatria ................................................................................................. 3

“Não me diga para permanecer o mesmo”: há um devir-Foucault no pensamento


contemporâneo .......................................................................................................... 4
“Há que se fazer a história desse outro giro de loucura”: o que há de novo e
revolucionário em Michel Foucault e sua História da Loucura ................................... 8
História da Loucura na Idade Clássica: loucura e desrazão e nascimento da psiquiatria
................................................................................................................................. 10
O grande retângulo botânico e o confinamento do louco ......................................... 13

O antialienismo e a crise da Psiquiatria: do “Mestre da Loucura” à Charcot e a


‘produção da verdade’ .............................................................................................. 16
Por determinadas rupturas na reforma psiquiátrica a partir de História da Loucura 19

Entre loucos e manicômios: História da loucura e a reforma psiquiátrica no Brasil . 23

A reforma psiquiátrica no Brasil e as novas concepções ......................................... 29

Remediação com a patologia/transtorno já instalado ao invés de métodos preventivos


primários. ................................................................................................................. 35

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 37

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NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários,


em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-
Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo
serviços educacionais em nível superior.

A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação
no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua.
Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que
constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de
publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

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MICHEL FOUCAULT E A “HISTÓRIA DA LOUCURA”: 50
anos transformando a história da psiquiatria

Eis então que História da Loucura na Idade Clássica completa 50 anos e, como
obra seminal de um pensador à frente de seu tempo, produziu reações contrárias
violentas, quando foi publicada em 1961; mas podemos dizer que certamente acabou
se tornando uma das referências mais decisivas para as ciências humanas e
especialmente para o campo da saúde mental no século XX.

Dialogando com diferentes áreas do conhecimento acadêmico e científico, tão


diversas como a história, a filosofia, a política, a psicologia, a medicina, a psiquiatria,
a psicanálise, a literatura, as ciências humanas em geral e outros campos de
conhecimento, Michel Foucault foi um crítico feroz do próprio cientificismo e do
academicismo dominantes no pensamento francês. Além de também ter sido militante
político através do GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões), e ainda, ao menos
indiretamente, influenciar nos movimentos de defesa dos loucos, dos prisioneiros, dos
homossexuais. Nesta obra, que se tornou um marco de renovação do pensamento
do século XX e por meio da qual se inicia a trajetória de sua produção, Foucault traz,
como estamos propondo neste trabalho, a reflexão sobre uma das chaves que
fundamentam a constituição das sociedades moderna e contemporânea, o que nos
permite afirmar que sua obra é essencial para a compreensão do presente.

Esta chave de reflexão é a questão da loucura vista sob um novo prisma, sob
uma nova forma de entendimento que abala as estruturas tradicionais do racionalismo
moderno, e, portanto, de nossas raízes históricas, e do que faz com que
compreendamos a nós próprios; e mais ainda, abala os fundamentos do pensamento
filosófico ocidental, e, portanto, transforma nossas possibilidades de reinvenção
contemporâneas de forma profunda e revolucionária. É preciso, a partir daí,
problematizar como a questão da Razão é o fio condutor na constituição da
subjetividade ocidental, para que possamos alcançar a envergadura da crítica que
Foucault realiza não apenas debruçando-se sobre o campo da psiquiatria, mas, muito
além, produzindo uma reviravolta em nossa posição diante de nossos costumes,
nossas tradições, isto é, de nossos modos de existência, nossos modos de viver,
sentir e estar no mundo.

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Se Foucault disse que o século XX seria deleuziano, talvez agora possamos
nos perguntar: Será que, como Nietzsche que ele tanto prezava Michel Foucault não
é um “póstumo”? Um pensador visionário que intuiu e presentificou as rupturas
revolucionárias necessárias em seu tempo? E porque não, poderíamos então dizer
que o século XXI, talvez um dia seja foucaultiano?

Se bem que, se ouvisse que o século XXI seria “foucaultiano”, provavelmente


ele poderia citar Zaratustra, “se quiser me seguir, não me siga” – encontre seu próprio
caminho – ou então dizer: “Não me pergunte quem sou... e não me diga para
permanecer o mesmo”.

“Não me diga para permanecer o mesmo”: há um devir-


Foucault no pensamento contemporâneo

Defendida em 20 de maio de 1961, como tese de doutorado, e publicada no


mesmo ano, História da loucura na Idade Clássica realiza uma investigação das
diferentes formas de percepção da loucura no período compreendido entre a época
do Renascimento e a modernidade, analisando como se chega até à classificação da
loucura como doença mental. Pesquisando várias fontes distintas, através de tratados
de medicina e de filosofia, monografias, arquivos contábeis e até obras literárias e
artísticas, como em Diderot, Bosch e Goya, Foucault também inaugura uma nova
maneira de pensar a pesquisa histórica, por meio de uma visão crítica da constituição
da psiquiatria como saber e poder institucionalizados (e como tal, peça-chave do
Poder Disciplinar), escapando à história da psiquiatria tradicional, que, por sua vez,
era contada do interior do discurso psicopatológico e seus personagens.

A obra História da Loucura na Idade Clássica (FOUCAULT, 1978) demonstra


que antes do século XVII, a loucura possuía outra percepção social. Através das
artes, dos costumes, da literatura, Foucault vai mostrando uma compreensão própria
à época clássica que não pode ser caracterizada como erro ou inferior a um saber
psiquiátrico posterior, pois se constituiu como uma outra forma de relação com a
loucura (FOUCAULT, 1975). Com o fim do 'Grande Enclausuramento' e o nascimento
do alienismo pineliano, ocorre a inauguração de uma nova forma de relação com a

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loucura, agora intermediada pela emergência de um saber denominado alienismo ou
medicina mental, candidato a um estatuto de cientificidade, que seria sempre
questionado, mesmo quando mais reconhecido sob a forma posterior da psiquiatria e
da clínica psiquiátrica. Foucault reflete sobre a existência de uma produção de formas
de relação com a loucura, mais especificamente a produção da loucura como
“alienação mental” e posteriormente como “doença mental”, que transformam a
experiência que se tinha da loucura na época clássica.

Um dos principais pensamentos de que se utiliza Michel Foucault é a filosofia


de Friedrich Nietzsche, do final do século XIX. A base para a compreensão da reflexão
de Foucault sobre a loucura tem grande relação com o pensamento de Nietzsche
(MARTON, 2001; NAFFAH NETO, 1988). Porque é em Nietzsche que Foucault
encontra uma crítica da produção de conhecimento que permite escapar ao
platonismo e à metafísica, isto é, à filosofia da representação. Para Nietzsche, o
sujeito é uma construção do pensamento, produto de um processo de produção
conceitual ao longo da história do pensamento (MOSÉ, 1995). Nietzsche também faz
uma crítica da ideia de sujeito como unidade, questionando este que é um dos
fundamentos cruciais para a filosofia da representação e o pensamento científico.

Como Foucault explicita textualmente, no início da primeira conferência de “A


Verdade e as formas jurídicas”, o método de Nietzsche seria o que melhor se aplica
às suas análises históricas, porque realiza uma “análise histórica da própria formação
do sujeito” (FOUCAULT, 2002, p. 13). Por isso, ele não pode ser considerado um
“filósofo”, no sentido tradicional do termo, já que em Nietzsche ele encontra sua
‘contra filosofia’, e isto nos leva a um Foucault como historiador, ou pensador, mas
não filósofo, o que implicaria incluí-lo na história da filosofia, e o mais adequado é
sem dúvida dizer que tanto Nietzsche quanto Foucault são pensadores que se
constituem como ‘rupturas’ da história da filosofia e dos sistemas de pensamento, são
‘marginais’ em relação ao sentido da filosofia socrático-platônica, que representa o
pensamento filosófico dominante na história do pensamento ocidental.

Na medida em que há uma base nietzschiana no pensamento de Michel


Foucault, é possível considerar que, como Nietzsche, Foucault é um pensador que
rompe com a razão filosófica que busca a verdade absoluta, isto é, rompe com a
metafísica platônica e certamente, por conseguinte, tanto está em disrupção com o
racionalismo cartesiano como com o modelo científico moderno (MACHADO, 1986;

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1999). Por isso, há uma espécie de ‘devir-Foucault’ no pensamento contemporâneo.
Este é o ponto decisivo para uma compreensão do alcance deste pensamento que
está visceralmente colocado nas análises de História da Loucura na Idade Clássica.
O ‘novo arquivista’ (DELEUZE, 1988), que faz um novo tipo de história, é exatamente
esse que é o “andarilho” capaz de produzir um Pensamento Nômade, um pensamento
com a potência de “embaralhar os códigos” (DELEUZE, 1985, p. 11), e questionar o
status quo vigente na filosofia, isto é, romper com o naturalismo e objetivismo da razão
filosófica e científica, que em seu reducionismo impõe à loucura o estatuto de erro.

Isso se deu devido à constituição, no interior do racionalismo moderno, de uma


noção de sujeito do conhecimento em que a razão como fundamento do sujeito,
garantia sua existência e a revelação da verdade sobre a natureza e sobre o homem
(FOUCAULT, 2002, p. 10).

Esta potência na análise arqueológica e genealógica da loucura em Michel


Foucault confere à sua abordagem um lugar que questiona profundamente os
fundamentos conceituais que sustentam as sociedades modernas e que silenciaram
a loucura por quase três séculos. A questão do sujeito é a questão crucial do
pensamento contemporâneo, que é marcado pelo dilema de colocar a subjetividade
sob suspeita, isto é, se com a fenomenologia e a psicanálise, por exemplo, o sujeito
do conhecimento já não é mais garantido por uma unidade e uma interioridade
capazes de produzir uma continuidade “do desejo ao conhecer”, “da consciência ao
desvelamento da verdade”, então todo o edifício conceitual da filosofia e da ciência
estão abalados (FOUCAULT, 2000, p. 18-19).

Por esses motivos, Michel Foucault em sua História da Loucura na Idade


Clássica pode ser considerado como profundamente inovador e ousado na
abordagem realizada, em relação ao pensamento hegemônico sobre a loucura, que
havia sido criado pela psiquiatria clássica. Há um devir-Foucault navegando no século
XX, no que diz respeito ao problema da loucura, que percebemos como tema crucial
para o “século que coloca a subjetividade sob suspeita”, e que produz uma crise
justamente no seu ‘calcanhar de Aquiles’, que é a relação razão-desrazão como
sinônimo de acerto-erro, ou normal-anormal, ou ainda, sanidade-patologia.

O Poder Psiquiátrico, por sua vez, funcionou como controle dos


comportamentos da sociedade fixando uma norma de comportamento “normal” e a

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noção de anormalidade para enquadrar os desviantes do modelo e adequá-los ao
padrão ou excluí-los nas instituições de controle e correção. Assim, a questão da
loucura e sua relação com a Razão, e a captura da loucura como problema médico,
na raiz da modernidade, foi ao mesmo tempo uma das bases para o nascimento das
ciências humanas e uma das bases para a consolidação do próprio capitalismo. Tudo
isso tem a ver com as análises de História da Loucura na Idade Clássica.

A constituição da racionalidade cartesiana e da crença na ciência como base


dos nossos modos de existência e formas de sentir e estar no mundo, produziu efeitos
que nos atravessam ainda hoje. Quando o sujeito cartesiano é questionado por uma
nova noção de loucura não mais compreendida como erro, incapacidade e
periculosidade, escapando então à codificação psiquiátrica da doença mental, somos
afetados para produzir uma enorme ampliação de nossos significados sobre nós
mesmos. Em outras palavras, repensar o sujeito a partir de uma nova concepção de
loucura, nos leva à possibilidade de uma ruptura em relação à herança da tradição
filosófica e cartesiana, e desta forma, a discussão sobre a “crise do sujeito
contemporâneo” encontra caminhos e desenvolvimentos antes ignorados para a
invenção de novas formas de relação entre razão e desrazão.

Didier Eribon (1990) escreveu uma biografia de Foucault que relata sua
formação como jovem e a trajetória para que o “Foucault pensador da loucura”
pudesse forjar a arqueologia e a genealogia em suas obras. Um dos professores
importantes na juventude, com quem gostava de conversar fora das aulas, chamado
Dom Pierrot, conversava sobre Platão, Descartes, Pascal, Bergson. Como disse o
próprio professor, existem dois tipos de alunos, um para os quais a filosofia seria
questão de curiosidade e orientação sobre os grandes sistemas e grandes obras; e
outro para quem seria uma questão de inquietude pessoal, de inquietude vital. “Os
primeiros são marcados por Descartes, os segundos por Pascal” (ERIBON, 1990, p.
25). Não é por acaso que História da Loucura começa com uma frase de Pascal, no
famoso prefácio original, que foi retirado posteriormente pelo próprio autor devido a
controvérsias múltiplas, inclusive o debate com Jacques Derrida (ROUDINESCO,
1994; FOUCAULT, 1999, p. 268-284). A frase é: “Pascal: ‘Os homens são tão
necessariamente loucos que não ser louco seria ser louco de um outro giro de loucura’
(FOUCAULT, 1999, p. 140). E este outro texto, de Dostoievski, no Journal d’un
écrivain: “‘Não é isolando seu vizinho que nos convencemos de nosso próprio bom

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senso.’ Há que se fazer a história desse outro giro de loucura [...]” (FOUCAULT, 1999,
p. 152).

“Há que se fazer a história desse outro giro de loucura”: o que há de


novo e revolucionário em Michel Foucault e sua História da Loucura

O que leva esta obra, que inaugura a trajetória de Foucault, escrita aos 35 anos
de idade, a ser um marco fundamental para o pensamento contemporâneo?

Em primeiro lugar, a problematização das relações entre loucura e desrazão a


partir de um novo entendimento sobre o estatuto da racionalidade, estatuto este
colocado em questão, incluída a racionalidade psiquiátrica. Isto torna Foucault
praticamente um “herege” do ponto de vista do poder científico clássico dominante na
modernidade (FOUCAULT, 1999, pág. 320-323); se insere aí nesta problematização
a que nos referimos, a questão da produção da verdade pelo médico e pela
psiquiatria, que chega ao auge e à culminância antes da ‘crise’ da psiquiatria que se
acirra a partir de então, no final do século XIX, com Charcot.

Em segundo lugar, em sua História da Loucura, Foucault faz uma crítica ao


Poder Psiquiátrico, que é analisado como parte das estratégias e táticas dos
dispositivos de controle do Poder Disciplinar, nos séculos XVIII e XIX, quando da
constituição do sistema capitalista; é claro que esta proposição tem sentido no
conjunto da obra de Foucault, mas já esboçado inicialmente que a psiquiatria é uma
das engrenagens do sistema quando Foucault coloca em questão o poder do médico
e sua neutralidade;

Em terceiro lugar, mas não menos importante, encontramos no pensamento


de Michel Foucault, desde o início, a investigação sobre outras possibilidades de
compreensão do que é o fenômeno da loucura, abrindo um vasto campo de
problemas, indagações e perplexidades, para todos os campos com os quais dialoga
a obra de Foucault, colocando em questão a noção de normalidade de uma forma
própria. Em outras palavras, aí temos algo que escapa à codificação da loucura como
doença e à verdade psicopatológica como única autorizada para discursar sobre o
louco, considerado até então como incapaz de produzir sentido e de viver em

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convivência com os “normais” – daí também a loucura passa a ser vista como mal a
ser perseguido e extirpado ou purificado – é a ideia de contaminação ou defeito
associada ao indivíduo desviante considerado anormal; o que se concretiza na
concepção em Pinel do louco como “alienado mental” e principalmente os
desdobramentos da noção em Morel de “degeneração mental”.

Muitas outras possibilidades de ruptura, que esta obra de Michel Foucault


realiza, poderiam ser discutidas, certamente, pois suas possibilidades são múltiplas.
O que mais nos importa aqui é investigar quais são as contribuições de História da
Loucura para o campo da saúde mental, e sua relevância atual para inspirar e orientar
a construção de um novo lugar social para o louco e o diferente. A questão
fundamental para um enfoque crítico em saúde mental passa a ser saber que formas
de relação com a loucura estão em movimento sendo produzidas, na construção do
processo de Reforma Psiquiátrica, conferindo coerência histórica, conceitual e prática
às intervenções nos novos serviços de saúde mental e na implementação de políticas,
bem como na formação de profissionais que atuam sobre a relação saúde-loucura.

É importante neste ponto compreender mais profundamente como a história


de “um outro giro de loucura”, uma história arqueológica e genealógica da loucura e
sua constituição como doença mental, para desnaturalizar as concepções sobre a
loucura que capturam sua experiência na forma da doença, sob o poder do médico.
No momento atual, em que enfrentamos grandes desafios e dilemas complexos no
campo da saúde mental no Brasil, no contexto de implantação de novos serviços,
dispositivos e experiências na Reforma Psiquiátrica, a visão de Michel Foucault
continua sendo uma orientação fundamental e decisiva para fazer frente aos
movimentos de contra-reforma e contribuir para o avanço da desmanicomialização no
Brasil, seus atores sociais e políticos e os profissionais e técnicos que estão nos
embates cotidianos construindo a política de saúde mental em diferentes frentes de
trabalho.

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História da Loucura na Idade Clássica: loucura e desrazão e
nascimento da psiquiatria

Até o século XV, não havia prática de internamento de indivíduos desviantes


como na Idade Moderna ocorreu, na reclusão dos “anormais” em instituições
fechadas de controle e vigilância. Talvez a primeira forma de exclusão social de
indivíduos considerados problemáticos ou marginais, na aurora renascentista, é a
prática de isolamento da lepra. Mas outros processos históricos ocorreram,
deslocando a figura do leproso como personagem maldito, e a rejeição que causou
no imaginário social, para outras figuras sociais que passam a significar este mesmo
lugar depositário de mazelas e terrores.

Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental [...] Durante séculos,
essas extensões pertencerão ao desumano. [...] A partir da Alta Idade Média, e até o
final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa
suas cidades malditas (FOUCAULT, 1978, p. 3).

Assim começa História da Loucura, se referindo a uma prática de exclusão que


já existia desde antes do século XV, isto é, a exclusão do leproso. Os leprosários se
multiplicaram por toda a Europa chegando aos milhares, e só foram regulamentados
na França no século XVII. Do século XV ao século XVII, no entanto, uma estranha
regressão da lepra estabelece um vazio por toda parte, nessas cidades malditas “às
margens da comunidade, às portas das cidades”, isto é, a infecção regride e a doença
some do horizonte social deixando desabitados esses espaços de exclusão.

Estranho desaparecimento, que sem dúvida não foi o efeito, longamente procurado,
de obscuras práticas médicas, mas sim o resultado espontâneo dessa segregação e
a consequência, também após o fim das Cruzadas, da ruptura com os focos orientais
de infecção. A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros e esses
ritos que não estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância
sacramentada, a fixá-la numa exaltação inversa. Aquilo que sem dúvida vai
permanecer por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa época
em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que
tinham aderido à personagem do leproso (FOUCAULT, 1978, p. 6).

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Tais espaços de exclusão serão retomados de diferentes formas nos períodos
históricos seguintes, inicialmente a lepra foi substituída pelas doenças venéreas, mas
as práticas de exclusão se renovam e se transformam. O poder real no século XVII já
se utilizava destes locais de recolhimento e depósito de indivíduos por motivos ainda
ambíguos e variados.

Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas


permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão
retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais
tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel
abandonado pelo lazarento [...] Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura
bem diferente, as formas subsistirão” (FOUCAULT, 1978, p. 6-7).

Porém, as doenças venéreas foram um mal que, diversamente da lepra, “logo


se tornou cousa médica, inteiramente do âmbito do médico” (FOUCAULT, 1978, p.
8), surgindo muitos tipos de tratamento, e sob a influência do modo do internamento
do século XVII, a doença venérea se integrou ao lado da loucura num espaço moral
de exclusão:

De fato, a verdadeira herança da lepra não é aí que deve ser buscada, mas
sim num fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se
apropriar. Esse fenômeno é a loucura. Mas será necessário um longo momento de
latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos
medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação
que no entanto lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a
loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem,
em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as
experiências maiores da Renascença (FOUCAULT, 1978, p. 8).

Antes do século XVII, a loucura era polimorfa e múltipla (FOUCAULT, 1975, p.


76), no horizonte da vida medieval, e sua presença tinha como figuras os bufões e
espetáculos bizarros errantes, personagens literários e imaginários, indivíduos
estranhos ou excêntricos, e as naves romanescas ou satíricas literárias, das quais
uma teve existência real, a Nau dos Loucos (Narrenschiff). A loucura circulava, a

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experiência da insensatez tinha algo de errante e provocava medo e fascínio, mas
ainda não aparentada a culpas morais.

Uma nova forma de exclusão se deu por meio de uma nova necessidade de
ordenação do espaço público. O “Grande Enclausuramento” abrigava prostitutas,
libertinos, sifilíticos, doentes venéreos, desafetos do Rei, doentes moribundos,
mendigos, andarilhos, desordeiros, loucos e todo tipo de marginal. No entanto, este
internamento do louco na época clássica não colocava em questão as relações da
loucura com a doença, mas sim “as relações da sociedade consigo própria, com o que
ela reconhece ou não na conduta dos indivíduos” (FOUCAULT, 1975, p. 79), no
sentido de eliminar a desordem e impor a ordem pública, coerente com o nascimento
das cidades e suas consequências. Este mesmo problema se impõe em relação ao
nascimento da medicina social e o ordenamento urbano, que diante da insalubridade
produz o “medo da cidade” (FOUCAULT, 1979, p. 87), das doenças e do excesso de
população.

A instituição de reclusão e isolamento do indivíduo louco, chamado “asilo de


alienados mentais”, surge com o ‘ato libertador’ de Pinel ao determinar o fim do
“Grande Enclausuramento”, instituição dos anciens regimes monárquicos que servia
ao recolhimento de todo tipo de indivíduo marginal até a Revolução Francesa.

A prática do internamento, no começo do século XIX, coincide com o momento no


qual a loucura é percebida menos em relação ao erro do que em relação à conduta
regular e normal; no qual ela aparece não mais como julgamento perturbado, mas
como perturbação na maneira de agir, de querer, de ter paixões, de tomar decisões e
de ser livre (FOUCAULT, 1997, p. 48).

O novo e revolucionário no novo tipo de história deste “outro giro de loucura”,


passa pela compreensão de que a loucura não foi revelada em sua verdade essencial
pelo olhar científico do alienista, “mestre da loucura”, que nada mais fez do que
acreditar que, através do asilo e do isolamento terapêutico aliado ao tratamento moral,
seria possível “descobrir a verdade da doença mental”, quando, ao contrário, estava
produzindo esta mesma verdade, como sujeito do conhecimento forjando um novo

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objeto da medicina e uma nova área de atuação no processo de medicalização da
sociedade moderna.

E qual o papel do hospício nesta busca por descobrir a verdade da doença


mental? Permitir o processo de cura do louco através da intervenção médica:

Qual é, com efeito, o processo da cura? O movimento pelo qual o erro se dissipa e a
verdade aparece de novo? Não; mas ‘o retorno das afecções morais nos seus justos
limites; [...]’. Qual poderá ser, então, o papel do hospício nesse movimento de retorno
às condutas regulares? Evidentemente, ele terá, de saída, a função que se prestava
aos hospitais no final do século XVIII; permitir descobrir a verdade da doença mental,
afastar tudo aquilo que, no meio do doente, pode mascará-la, misturá-la, dar-lhe
formas aberrantes, mantê-la também e relançá-la (FOUCAULT, 1997, p. 48).

O grande retângulo botânico e o confinamento do


louco

Sabemos que Pinel foi influenciado por Linnaeu, pai da Botânica, e que o
alienismo nasce da ideia de que é preciso “nomear para conhecer” – princípio básico
que sustenta a taxonomia botânica – o que se torna um princípio da própria ciência
moderna, em seu ideal de cientificidade e neutralidade. A classificação é fundamental
para a constituição do alienismo como ciência, também chamado de medicina mental
e que nasce junto ao asilo de alienados mentais, instituição destinada à cura do
alienado mental que perdeu o juízo de si e o juízo da realidade. O indivíduo louco,
que perdeu a razão, deve ser isolado no asilo para recuperar a sua razão e livrar-se
de sua loucura. Com o desenvolvimento da medicina no século XIX, por meio da
anatomopatologia, da bacteriologia e da neurologia de base biológica, surgem as
condições de possibilidade para a transformação do saber médico-filosófico do
alienismo em uma clínica psiquiátrica com base neurobiofisiológica, e o asilo de
alienados se transformou em hospital psiquiátrico.

Porém, mais ainda que um lugar de desmascaramento, o hospital, cujo modelo foi
dado por Esquirol, é um lugar de afrontamento; a loucura, vontade perturbada, paixão
pervertida, deve encontrar aí uma vontade reta e paixões ortodoxas. O seu face a

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face, seu choque inevitável, que é de fato desejável, produzirão dois efeitos; por um
lado, a vontade doente, que podia muito bem permanecer incompreensível, já que não
se exprimia em nenhum delírio, produzirá à luz do dia seu mal pela resistência que
oporá à vontade reta do médico; e por outro lado, a luta que se estabelece, a partir
daí, se for bem conduzida, deverá levar à vitória da vontade reta, à submissão, à
renúncia da vontade perturbada. Um processo, portanto, de oposição, de luta e de
dominação (FOUCAULT, 1997, p. 48-49).

O hospital psiquiátrico é a grande “Estufa” para o estudo classificatório da


alienação mental e a construção de uma clínica da loucura, isto é, sua codificação em
linguagem médica, e o isolamento terapêutico combinado com o Tratamento Moral
levam à produção do saber psiquiátrico sobre a loucura e influenciam profundamente
o campo da psicopatologia, em sua linguagem sobre a doença mental. No entanto,
Foucault mostra que um outro giro de loucura atravessa a história desta codificação
da loucura na forma da doença mental.

Assim se estabelece a função muito curiosa do hospital psiquiátrico do século XIX:


lugar de diagnóstico e classificação, retângulo botânico onde as espécies de doenças
são divididas em compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta. Mas
também espaço fechado para um confronto, lugar de uma disputa, campo institucional
onde se trata de vitória e submissão (FOUCAULT, 1979, p. 122, grifo nosso).

Esta Genealogia da loucura em Michel Foucault permite investigar como o


alienista efetivamente produz a verdade que ele busca descobrir, através de seu
saber e da instituição de reclusão; e, neste confinamento da loucura, que é ao mesmo
tempo conceitual e físico, o médico torna-se o “mestre da loucura”, aquele capaz de
debruçar-se sobre a irracionalidade e as paixões desenfreadas do indivíduo
desarrazoado para trazer-lhe à realidade. O alienista é o médico de vontade reta e
obstinada que dissipa as ilusões do alienado, curando-o de sua perda do juízo,
devolvendo-lhe a razão perdida e a capacidade de julgamento, de discernimento entre
loucura e realidade.

O grande médico do asilo – seja ele Leuret, Charcot ou Kraepelin – é ao mesmo tempo
aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela tem, e aquele que

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pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que
sua vontade exerce sobre o próprio doente. Todas as técnicas ou procedimentos
efetuados no asilo do século XIX [...] tudo isto tinha por função fazer do personagem
do médico o “mestre da loucura”; aquele que a faz se manifestar em sua verdade
quando ela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a
domina, a acalma e a absorve depois de a ter sabiamente desencadeado
(FOUCAULT, 1979, p. 122, grifo nosso).

Curiosamente, temos que o mestre da loucura se torna o personagem que, ao


dominar a loucura, é capaz de produzir a verdade da doença; numa época em que a
competência do médico encontra suas garantias nos privilégios do conhecimento, sua
intervenção provém de que ele detém um saber científico “do mesmo tipo que o do
químico ou do biólogo [...] produzindo fenômenos integráveis à ciência médica” (1979,
p. 123). Isto significa que no interior da prática médica sobre a loucura, inicia-se a
crise em seu estatuto de neutralidade que colocou a medicina mental em dissonância
com o naturalismo da ciência médica em desenvolvimento até então:

Compreende-se porque durante tanto tempo (pelo menos de 1860-1890), a técnica


da hipnose e da sugestão, o problema da simulação, o diagnóstico diferencial entre
doença orgânica e doença psicológica, forma o centro da prática e da teoria
psiquiátricas. O ponto de perfeição, miraculosa em demasia, foi atingido quando as
doentes do serviço de Charcot, a pedido do poder-saber médico, se puseram a
reproduzir uma sintomatologia calcada na epilepsia, isto é, suscetível de decifração,
conhecida e reconhecida nos termos de uma doença orgânica (FOUCAULT, 1979, p.
123).

Ora, estamos aqui literalmente diante da produção da doença mental pelo


poder médico, e a constatação de que a psiquiatria efetivamente esteve em crise
desde seu nascimento, pelo menos no que se refere ao seu estatuto de cientificidade
e sua neutralidade face ao conhecimento objetivo da doença, na sua forma da clínica
anatomopatológica e a pretensão de transcrever a verdade sobre a doença, nos
moldes das ciências exatas, e baseado no método experimental. O médico e o asilo

15
fazem ‘ver’ e fazem ‘falar’ o louco como doente mental, explicável pelo saber-poder
médico, esta é a produção da verdade sobre a doença mental.

Digamos então de uma forma esquemática: no hospital de Pasteur, a função “produzir


a verdade da doença” não parou de se atenuar. O médico produtor da verdade
desaparece numa estrutura de conhecimento. De forma inversa, no hospital de
Esquirol ou de Charcot, a função “produção da verdade” se hipertrofia, se exalta em
torno do personagem médico. E isto num jogo onde o que está em questão é o sobre-
poder do médico. Charcot, taumaturgo da histeria, é certamente o personagem mais
altamente simbólico deste tipo de funcionamento (FOUCAULT, 1979, p. 122).

O antialienismo e a crise da Psiquiatria: do “Mestre da


Loucura” à Charcot e a ‘produção da verdade’

Percebemos finalmente que, se Charcot produz efetivamente a doença que


quer curar, então há uma ambiguidade no papel do psiquiatra que não será
solucionada e será um dos pontos chave das críticas da antipsiquiatria inglesa dos
anos 60. Mas tal crítica radical da ciência psiquiátrica é muito anterior, e remonta
senão à sua própria fundação, mas certamente a esse episódio singular na história
da psiquiatria que é o caso de Charcot e a histeria – inclusive não é por acaso que
precisamente daí nasce a psicanálise, desta mesma interrogação que se coloca
quando a psiquiatria se vê diante de suas próprias contradições.

Hipótese: a crise foi inaugurada, e a idade da antipsiquiatria, que ainda se esboçava,


começa com a suspeita, logo tida como certeza, de que Charcot produzia efetivamente
a crise da histeria que descrevia. Tem-se aí um pouco o equivalente da descoberta,
feita por Pasteur, de que o médico transmitia as doenças que ele devia combater
(FOUCAULT, 1997, p. 51).

Se Pinel, como grande “reformador”, já estabelece as bases do saber alienista


como realização de uma reforma social – do velho regime monárquico violento para
a nova sociedade livre burguesa – e o estatuto de ciência sempre foi colocado em
questão na medicina mental, então a psiquiatria sempre esteve às voltas com sua

16
crise paradigmática, instalada no seu interior não por acaso, na medida em que se
converteu no lugar da medicina objetiva na qual se investigou a subjetividade.

Parece, em todo caso, que todos os grandes abalos que sacudiram a psiquiatria desde
o final do século XIX colocaram essencialmente em questão o poder do médico. Seu
poder e o efeito por ele produzido sobre o doente, mais ainda que o seu saber e a
verdade daquilo que dizia sobre a doença. Digamos, mais exatamente, que de
Bernheim a Laing ou Basaglia, o que foi posto em questão era a maneira como o
poder do médico estava implicado na verdade do que ele dizia e, inversamente, a
maneira como esta podia ser fabricada e comprometida por seu poder (FOUCAULT,
1997, p. 51).

Isto quer dizer que a ciência experimental sempre buscou capturar as ciências
humanas impondo-se como modelo de cientificidade, mas as ciências humanas
nunca se adaptaram perfeitamente a essa movimento de adequação ao método
científico das ciências exatas, o que pode ser perfeitamente comprovado quando a
discussão sobre o ‘problema do método’ nas ciências humanas se inaugura em
campos como o da antropologia e da etnografia, ou na sociologia pós-Durkheim, e
mesmo na fenomenologia e no existencialismo face ao positivismo dominante no final
do século XIX. Na medicina biológica e organicista, não foi diferente e esta mesma
crise do método se instala através da medicina mental, em suas formas do alienismo
e da clínica psiquiátrica.

Todas as grandes reformas, não somente da prática psiquiátrica, mas do pensamento


psiquiátrico, se situam em torno desta relação de poder: são tentativas de deslocá-lo,
mascará-lo, eliminá-lo, anulá-lo. O conjunto da psiquiatria moderna encontra-se
atravessado, no fundo, pela antipsiquiatria, caso se entenda por antipsiquiatria tudo o
que coloca em questão o papel do psiquiatra encarregado, antes, de produzir a
verdade da doença no espaço hospitalar. É possível, portanto, falar das
antipsiquiatrias que atravessaram a história da psiquiatria moderna (FOUCAULT,
1997, p. 51-52).

E na medida em que um confronto trágico com a loucura se torna possível, aí


sim, “nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que

17
detém a verdade sobre a psicologia” (FOUCAULT, 1975, p. 85), e talvez um dia
estejamos em condições deste confronto que se insinua no pensamento
contemporâneo. Nem despsiquiatrização, nem sobremedicalização, talvez Michel
Foucault seja um dos que, ao fazer “a história deste outro giro de loucura”, nos dê
condições para empreender tal jornada, no momento em que a Reforma Psiquiátrica
se torna cada vez mais potente em suas experiências inovadoras com arte e cultura,
e que estamos produzindo novos cenários e lugares a partir dos efeitos históricos da
antipsiquiatria no campo da saúde mental.

Ora, o que estava implicado, antes de tudo, nessas relações de poder, era o
direito absoluto da não-loucura sobre a loucura. [...] É esse ciclo que a antipsiquiatria
se propõe a desfazer: dando ao indivíduo a tarefa e o direito de levar a cabo a sua
loucura, de levá-la a seu termo, numa experiência que pode ter a contribuição dos
outros, mas nunca em nome de um poder que lhe seria conferido por sua razão ou
por sua normalidade [...] invalidando, enfim, a grande retranscrição da loucura na
doença mental, que havia sido empreendida desde o século XVII e concluída no
século XIX. A desmedicalização da loucura é correlativa desse questionamento
primordial do poder na prática antipsiquiátrica (FOUCAULT, 1997, p. 56).

Deste modo, temos colocado o problema da liberação da loucura em relação


a essa forma singular de poder-saber que é o conhecimento, na qual a produção da
sua verdade se efetue em formas que não sejam as da relação de conhecimento, e
assim o grande afrontamento trágico da loucura, e ainda que uma psicologia da
loucura não deixe de ir ao essencial, e encaminha-se para estas “regiões onde o
homem relaciona-se consigo próprio e inaugura a forma de alienação que o faz tornar-
se homus psychologicus” (FOUCAULT, 1975, p. 85):

Levada até sua raiz, a psicologia da loucura, seria não o domínio da doença mental e
consequentemente a possibilidade de seu desaparecimento, mas a destruição da
própria psicologia e o reaparecimento desta relação essencial, não psicológica porque
não moralizável, que é a relação da razão com a desrazão. É esta relação que, apesar
de todas as misérias da psicologia, está presente e visível nas obras de Holderlin,
Nerval, Roussel e Artaud, e que promete ao homem que um dia, talvez, ele poderá
encontrar-se livre de toda psicologia para o grande afrontamento trágico com a loucura
(FOUCAULT, 1975, p. 85-86).

18
Por determinadas rupturas na reforma psiquiátrica a
partir de História da Loucura

Vimos, fundamentalmente a partir de História da Loucura, que a medicalização


transformou o lugar social do louco e da loucura, pois ela não se restringe à captura
do louco pela medicina, mas inclui a construção de um contexto ao mesmo tempo
jurídico, social e cultural de lidar com o louco, a loucura, a diferença e a diversidade.
A reflexão possibilitada por Foucault nos permite escapar à definição da loucura como
doença mental, percebendo o processo de constituição desta através de uma análise
histórica sobre a medicalização e psiquiatrização da sociedade. Escapar à noção de
doença mental torna-se um dos passos fundamentais para a retomada da
complexidade do processo saúde-loucura, que se dá através da desconstrução das
simplificações e conceituações psiquiátricas – processo denominado superação do
manicômio ou desconstrução do dispositivo psiquiátrico. Enfim, em sua abordagem
Foucault permite recomplexificar o conceito de loucura no sentido de possibilitar
repensar novas formas de relação com a mesma para além da psiquiatria,
concebendo tais relações em uma dimensão ética e política; o que significa
estabelecer novas formas de relação com o louco e a loucura, com as experiências
subjetivas dos sujeitos (TORRE & AMARANTE, 2001).

Muitas das ideias de Michel Foucault são fundamentais e altamente


transformadoras para a reforma psiquiátrica. Ideias tais como: a de escapar à noção
de doença e doença mental para falar sobre a loucura; de tomar a instituição
psiquiátrica como produtora de certa relação com a loucura – de captura da loucura
e transformação de sua experiência; do poder em sua dimensão microfísica e uma
análise micropolítica das relações de poder exercidas cotidianamente nas instituições
e relações estratégicas nos espaços sociais e seus discursos legitimados, o que
coloca um novo lugar para o profissional e o técnico, lugar ético e político de mudança;
e de romper com a medicalização e psiquiatrização da sociedade como processos de
dominação do corpo, substituindo a fórmula doença-cura e o ideal de “reparação do
dano” pela noção de produção de subjetividade e reprodução social dos sujeitos e da
cidadania; e finalmente, a da possibilidade de superar um dos principais problemas
que toda Reforma Psiquiátrica precisa enfrentar: o da reedição de velhos modelos

19
como aparência de novos modelos, isto é, a humanização e reformação de velhas
práticas psiquiátricas tidas como novas e transformadoras. Este é o risco do
aggiornamento (CASTEL, 1978); em outras palavras, da redução da Reforma
Psiquiátrica a um mero processo técnico e administrativo, ao invés de fazer com que
seja um processo político-social e cultural de mudança.

Para o campo da saúde mental, é de fundamental importância a distinção entre


uma Reforma Psiquiátrica de caráter meramente técnico-assistencial e uma Reforma
Psiquiátrica enquanto um processo social complexo, na qual os atores são sujeitos
políticos voltados para a construção de cidadania e transformação cultural das formas
de relação com a loucura e com a saúde (AMARANTE, 2011). Esta questão reafirma
a relevância da obra de Foucault, muito particularmente de História da Loucura, que
se torna uma ferramenta fundamental para que a Reforma Psiquiátrica seja um
processo social complexo, isto é, orientado por determinadas rupturas que, somente
após História da Loucura, tornou-se possível vislumbrar: ruptura com o modelo
epistêmico da psiquiatria e, fundamentalmente, com seus principais conceitos, tais
como os de doença mental, periculosidade e alienação, ainda presentes no saber e
na prática efetiva da psiquiatria; com o princípio do isolamento, seja enquanto ato de
conhecimento seja enquanto ato terapêutico; com o asilo como instrumento de cura,
como lugar de tratamento moral, pedagogia da ordem e da sociabilidade; ruptura com
o modelo terapêutico médico-psicológico do tratamento como normalização.

No Brasil, em relação ao campo da Saúde Coletiva e particularmente da


Reforma Psiquiátrica, a influência de Michel Foucault é bastante vigorosa. Seu
pensamento teve grande repercussão política nos meios acadêmicos, pois fazia
críticas profundas aos modelos sociais usando argumentos fundamentados na
filosofia e na história, com uma nova visão num discurso válido academicamente. A
disseminação de suas ideias no ambiente agitado dos meios institucionais e
acadêmicos dos anos 60 e principalmente 70 e 80, no caso do Brasil, produziu novas
gerações críticas na formação superior e profissional do país, notadamente na área
de saúde pública, e em ciências sociais e humanas de forma geral. No caso da
Reforma Psiquiátrica, isso se radicaliza, ao ponto de podermos afirmar que Foucault
e Basaglia (2005) são as principais referências, mas não únicas, para o surgimento
de um movimento antimanicomial no Brasil, pelo menos quanto à formação
intelectual. Se é possível encontrar alguma novidade no campo da psiquiatria no

20
Brasil, nos últimos 30 anos, isto está diretamente associado a Foucault e Basaglia,
lembrando, inclusive, que ambos estiveram no Brasil mais de uma vez, e que suas
presenças tiveram grande importância no fortalecimento e na criação de novos grupos
e ideias, produzindo mudanças na realidade manicomial brasileira.

Alguns dos principais nomes ligados à produção intelectual da Reforma


Psiquiátrica no Brasil tiveram influência do pensamento de Foucault, bem como ele
foi largamente utilizado em instituições de pós-graduação em ciências sociais e
humanas, em Saúde Coletiva e Saúde Pública, e em instituições de luta e
transformação na saúde pública brasileira, como o CEBES e a ABRASCO, focos de
resistência do movimento de Reforma Sanitária desde os anos 70, que, por sua vez,
foi fundamental para que se tornasse possível formular e iniciar a implementação do
Sistema Único de Saúde (SUS), e ainda em curso. Os movimentos transformadores
em Saúde puderam vislumbrar alternativas ao modelo médico hegemônico (modelo
hospitalocêntrico, assistencialista, curativista, especialístico, individualista) para além
das políticas preventivistas, higienistas e comunitárias, únicas saídas disponíveis até
então. Foucault levava à revisão do hospital como instituição de saúde (pois são
instituições de doença) e também dos programas comunitários e preventivos (como
estratégias de normalização e expansão do controle médico oficial).

A própria expressão “Reforma Psiquiátrica” torna-se inadequada, a partir de


Foucault e Basaglia, pois não representa as propostas mais radicais de
transformação, assim como torna-se necessário superar a própria noção de “saúde
mental”, como processo de normalização e construção de “sujeitos ideais”, de
produção de certa normalidade psicológica e social construída pelo mesmo
referencial psiquiátrico-psicológico fermentado nos muros do manicômio. Foucault
nos leva a um questionamento radical: da clínica, psicopatologia e das terapias como
forma de relação privilegiada com os sujeitos; e do poder psiquiátrico e das
instituições de confinamento dos desviantes, não apenas como instrumentos de
repressão e exclusão, mas também como produtores de uma forma de relação que
inclui toda a sociedade, moldando seus pensamentos e valores no lidar com a
loucura. Não basta lutar contra o internamento do louco; para “abater a espessura
dos muros” do manicômio, como diz Basaglia, é preciso efetivamente superar os
conceitos fundantes da psiquiatria, caso contrário veremos prevalecer em práticas
não-manicomiais e fora do hospital psiquiátrico o saber originalmente manicomial da

21
psiquiatria. Após História da Loucura, não é mais possível falar em humanização ou
modernização do hospital psiquiátrico. É possível falar em negação da instituição
manicomial, e não menos que isso.

Isto significa que podemos afirmar que o pensamento crítico em Saúde Mental
no Brasil, formado nos últimos 30 anos e fundamental para o processo de Reforma
Psiquiátrica brasileira, hoje com conquistas importantes, teve influência decisiva e
irrefutável dessa obra fundante que é História da Loucura na Idade Clássica e do
pensador e militante Michel Foucault. Considerando a relevância da experiência
brasileira de Reforma Psiquiátrica como um processo fundamental de transformação
na América Latina, tanto em envergadura quanto em resultados e importância política,
valorizada em todo o mundo no campo da Saúde Mental, temos Foucault como
elemento chave da constituição deste pensamento crítico em Saúde Mental no Brasil.
Pensamento que tem críticas centrais, como diferenciar “desospitalização” de
“desinstitucionalização”, sendo que esta vem a ser mais do que a simples retirada do
hospital, constituindo-se como processo de produção de políticas, participação social
e mudança cultural na superação da doença mental e sua tecnologia. Outras críticas
são a de recolocar o papel do profissional e do sujeito louco, como atores políticos
para além da relação de poder que define os papéis do psiquiatra “mestre da loucura”
e do louco objeto, buscando construir cidadania; e de trabalhar com o sujeito no
território, nos bairros, na comunidade, saindo do lugar técnico e objetivo e dos moldes
de consultório, consultas médicas e psiquiátricas e diagnóstico psicopatológico
fechado. Ideias que só são possíveis quando se faz um novo tipo de história, uma
nova História da Loucura, de que foi precisamente Foucault um dos artífices de maior
importância. Nossa história brasileira também muda muito com essa contribuição
marcante e ainda inspiradora para continuar transformando a história da psiquiatria
contemporânea, o lugar do louco e do diferente e o nosso próprio lugar de “normais”.

22
Entre loucos e manicômios: História da loucura e a
reforma psiquiátrica no Brasil

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2001), cerca de 450 milhões


de pessoas, no mundo, padecem de enfermidades neuropsiquiátricas, como
transtornos mentais ou neurobiológicos, ou então problemas psicossociais como os
relacionados com o abuso do álcool e das drogas, atingindo prevalência pontual ao
redor de 10%. Além disso, aproximadamente 24% de todos os pacientes atendidos
por profissionais de atenção primária têm um ou mais transtornos mentais.

O sofrimento psíquico para a sociedade exibe uma ideia de incapacidade e


improdutividade, causando vergonha em familiares e pessoas próximas com relação
à condição do sujeito que sofre (VECCHIA; MARTINS, 2006). O preconceito a partir
desse sofrimento ocorre não só na sociedade de forma geral, mas até dentro das
próprias instituições que o recebem – manicômios/hospitais psiquiátricos –, e de
hospitais gerais, principalmente. São produzidas representações sociais que “[...]
impregnam a maioria de nossas relações estabelecidas, os objetos que nós
produzimos ou consumimos e as comunicações que estabelecemos” (MOSCOVICI,
1961/1976 apud MOSCOVICI, 2003, p. 10). Estigmatiza-se o paciente, considerando-
o um perturbado ou que perdeu o juízo – uma substância simbólica que o adjetiva
negativamente.

As obras de Michel Foucault apresentam uma tese geral de que, “[...] ‘a loucura
não é um fato da natureza’, mas da civilização [...]” (SANDER, 2010, p. 382). A
sociedade carrega esse preconceito até a atualidade, onde mesmo com os
acontecimentos históricos recentes da psiquiatria, como a Reforma Psiquiátrica, as
concepções remotas de loucura ainda estão impregnadas na civilização atual. A partir
dessa leitura, é perceptível, também, que a loucura é uma produção social histórica,
mediada em grande medida por discursos, práticas e produções de representações
sobre o estado de saúde mental dos pacientes.

A Reforma Psiquiátrica, partindo dessa concepção, tem como foco as


intervenções e trabalhos específicos, equipes multi e interdisciplinares; e a mudança
do conceito/visão de loucura e de hospitais psiquiátricos como manicômios,

23
apontando uma melhoria na qualidade de vida e conquista ao que se refere em termos
de cidadania aos pacientes psiquiátricos (RAMMINGER, 2002). Tal movimento trata-
se, também, de uma produção social marcada pelas demandas atuais da saúde e
sociedade em nosso tempo presente.

A partir desse cenário, este artigo traz como proposta: a discussão da história
da loucura – juntamente com o surgimento dos manicômios/hospitais psiquiátricos –,
relacionando os discursos instituídos em práticas clínicas, e compreendendo a
influência de um dos principais movimentos contra a estruturação e atuação dos
profissionais envolvidos – a Reforma Psiquiátrica – nas concepções acerca da loucura
na atualidade.

HISTÓRIA DA LOUCURA

A história da loucura, segundo Michel Foucault e sua obra História da


Loucura(2012), apresenta o domínio da razão sobre a desrazão, situando a razão
como norma, e levando a loucura ao exílio. Foucault traz que tudo o que foi feito
contra a loucura – exclusão etc. –, é onde podemos encontrar o caminho para a razão;
ou seja, a razão se fortalece a custa da desrazão. Segundo Sander (2010, p. 383),

Contrariamente a uma história tradicional da psiquiatria, que nos reenvia às


(supostas) origens de uma loucura imemorial (grega, quiçá egípcia...), Foucault nos
mostra uma loucura cozinhada lentamente no caldeirão da história ocidental posterior
ao Renascimento. Vemos, pois, como o horror, o temor e a admiração provocados
pelos loucos à época da Stultifera Navis (Naus dos Insensatos) irão lentamente se
transformando na perscrutação da verdade do sujeito através da doença mental no
século XIX. Pois o estabelecimento do homem de razão, que foi levado a cabo,
sobretudo, a partir do final da Renascença, não se fez segundo um suposto progresso
natural da raça humana, nem por meios do esclarecimento e da aceitação. Não foi
sem violência e exclusão que a Razão se estabeleceu no cenário ocidental.

Essa representação histórica, do conceito de loucura, está intimamente


relacionada ao surgimento dos manicômios – posteriormente chamados hospitais
psiquiátricos –, ambos estão ligados aos períodos de diferentes épocas históricas,

24
sendo dividida por Pessotti (1994 apud RAMMINGER, 2002) em períodos:
antiguidade clássica (pensadores gregos); séculos XV e XVI (exorcistas); séculos
XVII e XVIII (enfoque médico); e o século XIX (manicômios).

Com a antiguidade clássica, até a era cristã, a loucura era vista sob alguns
enfoques: o de Homero com um enfoque mitológico-religioso; o de Eurípedes com a
concepção passional ou psicológica; e o de Hipócrates e Galeno com o as disfunções
somáticas (RAMMINGER, 2002). Na idade média iniciou-se a predominância da
loucura como possessão diabólica feita por iniciativa própria ou a pedido de alguma
bruxa. Havia duas possibilidades de possessão, sendo a primeira o alojamento do
diabo no corpo da pessoa, e a segunda a obsessão, na qual o demônio altera
percepções e emoções da pessoa.

Com o passar do tempo o enfoque diabólico foi descartado, prevalecendo a


influência de Hipócrates e sua teoria patológica, na qual o delírio era marca da
insanidade, sendo as perturbações intelectuais a condição principal para o
diagnóstico da loucura. Assim, em 1801, inaugurou-se a psiquiatria como
especialidade médica a partir do Tratado Médico-Filosófico sobre Alienação Mental
elaborado por Pinel (RAMMINGER, 2002). De acordo com Roudinesco (1998), logo
após a saída do universo da religião e da magia, o fenômeno da loucura começou a
ser abordada a partir de três maneiras:

[...] a primeira consiste em introduzi-la no quadro nosológico construído pelo saber


psiquiátrico e considerá-la uma psicose (paranoia, esquizofrenia, psicose maníaco-
depressiva); a segunda vida elaborar uma antropologia de suas diferentes
manifestações de acordo com as culturas [...] a terceira, finalmente, propõe abordar a
questão pelo ângulo de uma escuta transferencial da fala, do desejo, ou da vivência
do louco (psiquiatria dinâmica, análise existencial, fenomenologia, psicanálise,
antipsiquiatria). (ROUDINESCO, 1998, p. 478).

A loucura seria definida como o outro da razão, ou seja, popularmente aquele


que é extravagante, perturbado ou que perdeu o juízo. Ou mesmo foi definida como
“desarranjo das funções mentais, notadamente as intelectuais, rejeitando, inclusive,
as explicações organicistas” (PINEL apud RAMMINGER, 2002, p. 113). Porém, como

25
já foi dito anteriormente, a concepção de loucura sofreu diversas mudanças com o
passar dos séculos.

Assim, Michel Foucault (1978, p. 214 apud ENGEL, 2001) aponta as diferenças
de concepções entre os séculos XVII/XVIII e o XIX sobre loucura e doença: "Pode ser
que, de um século para outro, não se fale 'das mesmas doenças' com os mesmos
nomes, mas isso é porque, fundamentalmente, não se trata 'da mesma' doença”. A
passagem da loucura à doença mental reflete as mudanças nas concepções de
loucura, embora as heranças de outros tempos – começo/início – não são totalmente
abandonadas, implicando também em diferenças (O’BRIEN, 1992, p. 49 apud
ENGEL, 2001).

O enfoque a partir do século XIX passa a ser o tratamento/diagnóstico da


loucura, dando espaço, principalmente, a clínica. De acordo com Castro (2009, p. 80),
“[...] não é uma ciência [...] é o resultado de observações empíricas, ensaios,
prescrições terapêuticas, regulamentos institucionais”. Trata-se de uma concepção
discursiva, a partir das obras de Michel Foucault, que trazem a ideia de que a clínica
responde a uma reestruturação das formas do ver e do falar.

Pinel trouxe o diagnóstico implicado na observação prolongada, rigorosa e


sistemática das transformações biológicas, mentais e sociais do paciente, que eram
realizadas dentro no manicômio – que passou da condição de asilo onde se abriga,
para a condição de cura/tratamento. Mas, apesar da rápida repercussão na Europa,
a doutrina de Pinel foi logo ofuscada pelo emprego inadequado do tratamento, porém,
aumentou-se o interesse pela explicação e tratamento da loucura a partir de modelos
organicistas. Com a volta da visão organicista na prática psiquiátrica, o manicômio
deixa de ser recurso terapêutico, e volta a ser um instrumento de segregação social

(RAMMINGER, 2002).

A visão organicista teve como consequência o surgimento de diversos tratados


médicos sobre a loucura, tracejando modalidades de medicalização, e na situação de
internamento. “A loucura passa a ser objeto de uma percepção mais médica e as
práticas a respeito dos insanos começam a diferenciar-se das que se destinam aos
outros reclusos” (CASTEL, 1978 apud ENGEL, 2001, p. 89). Ou seja, inicia-se uma
nova experiência da loucura a partir da virada do século XVIII para o XIX, atribuindo-
lhe uma especificidade. A loucura seria concebida como uma doença, como um objeto

26
de conhecimento e de intervenção exclusivos do médico (ENGEL, 2001). O momento
histórico de medicalização e exclusividade do poder médico nos traz uma reflexão
sobre os novos significados para a sociedade e para a psiquiatria.

A medicalização não significaria apenas “a simples confiscação da loucura por um


olhar médico”, mas, principalmente, a “definição, através da instituição médica, de um
novo status jurídico, social e civil do louco”, transformando-o em alienado e fazendo
da loucura uma “problemática indissociavelmente médica e social”. (CASTEL apud
ENGEL, 2001, p. 90).

Desse modo, podemos perceber, a partir do histórico da loucura, as diferentes


funções do manicômio. A função mais antiga é a de recolher os loucos, juntamente
com outras minorias, isolando-os em edifícios antigos mantidos pelo poder público ou
por grupos religiosos (RAMMINGER, 2002). Em seguida, surgiram as instituições
hospitalares com objetivo de realizar tratamento médico, porém os funcionários
responsáveis não tinham formação médica, muitas vezes eram religiosos. E a partir
do século XIX surgiram as instituições que acolhiam apenas doentes mentais,
oferecendo tratamento médico especializado e sistemático em instituições chamadas
de manicômios.

As condições dessas instituições manicomiais eram precárias e a maioria dos


pacientes não tinha diagnóstico de doença mental (loucura). Os pacientes eram, “[...]
epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que
se tornara incômoda para alguém com mais poder” (ARBEX, 2013, p. 14). Além disso,
comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, eram espancados, morriam de frio, de fome,
de doença (ARBEX, 2013). Paradoxalmente, essas instituições justificavam suas
práticas com o argumento da necessária limpeza social, livrando a sociedade de
sujeitos considerados como parte de uma categoria social de desprezíveis e
desajustados cujos comportamentos eram indesejáveis. As instituições manicomiais,
portanto, exerciam a função social de disciplinar corpos e comportamentos. Era uma
tecnóloga de poder que visava a atender aos padrões de civilidade produzidos na
modernidade.

A partir da propagação dessas instituições manicomiais, percebe-se também


a influência do pensamento de Descartes, que identificou o pensamento como

27
condição para a existência. Ou seja, a razão e o juízo são condições para o homem
cuidar de si. Com a Revolução Francesa, evidencia-se a valorização de uma
sociedade gerida por homens e pela razão, e assim iniciam-se, segundo Pitta (1996
apud VASCONCE-LOS, 2008, p. 50), “[...] a proteção da sociedade, calcada na ideia
de periculosidade do louco, e a proteção do doente, asserção que os extremos da
curva de normalidade necessitariam de assistência”. Desse modo, torna-se
perceptível a desvalorização da desrazão, e a propagação de assistências, como os
manicômios/hospitais psiquiátricos, aos ditos “loucos”.

Segundo Ramminger (2002), a partir do século XIX a defesa da existência de


instituições manicomiais domina toda a Europa, e foi considerado como a modalidade
terapêutica mais eficaz, apesar do reconhecimento dos pontos negativos como
violência, isolamento e as práticas coercitivas que eram justificados como um mal
necessário. Michel Foucault traz uma discussão em sua obra História da Loucura
relacionando a violência existente nessas instituições com a influência dessa visão
para a psiquiatria.

Entende que essa insistência na violência que reenvia a força bruta, desequilibrada,
passional, física e irregular pode obstruir uma compreensão das relações de poder
calculadas, racionais e medidas que caracterizam a psiquiatria. O poder, assim como
a violência, se refere ao corpo, toma ao corpo como objeto, mas ele não responde a
forças irracionais e confusas. (CAPONI, 2009, p. 97).

No Brasil, o primeiro manicômio/hospital psiquiátrico foi criado em 1852, nesse


caso, o Hospício D. Pedro II na cidade do Rio de Janeiro. Em 1912 foi promulgada a
primeira Lei Federal de Assistência aos Alienados, seguindo do ganho de status de
especialidade médica autônoma aos psiquiatras, aumentando o número de
instituições destinadas aos doentes mentais. Podemos perceber com a criação dessa
estrutura manicomial, a preocupação com a criação de espaços de poder disciplinares
por meio de hospitais ou clínicas especializados (CAPONI 2009, p. 96). A disciplina
instituída nessas instituições também produzia socialmente a normalização de
comportamentos, sendo estes passíveis de intervenção do saber psiquiátrico,
atuando na higienização social. Nessa direção, outros dispositivos disciplinadores

28
foram criados, a exemplo de nossas instituições de saber, leis e decretos, orientando
práticas médicas no tratamento da loucura.

Em 1926, é criada a Liga Brasileira de Higiene Mental – importante testemunho do


pensamento psiquiátrico brasileiro. Finalmente, em 1934, o Decreto 24.559
promulgava a segunda Lei Federal de Assistências aos Doentes Mentais [...]
determinando o hospital psiquiátrico como única alternativa de tratamento.
(RAMMINGER, 2002, p. 114).

A partir de então houve um aumento de 213% da população internada em


manicômio/hospital psiquiátrico do Brasil (CERQUEIRA apud RAMMINGER, 2002).
Essa concepção de saúde mental a partir de instituições manicomiais que instituíam
um regime de disciplina de comportamentos indesejáveis à sociedade prevaleceu até
os anos 1980 no Brasil.

A reforma psiquiátrica no Brasil e as novas concepções

Após a 2ª Guerra Mundial, surgiram na Europa e Estados Unidos, movimentos


contrários a então tradicional forma de tratamento da loucura. Citamos como exemplo,
o Movimento Institucional na França e as Comunidades Terapêuticas na Inglaterra,
que culminaram em movimento mais amplo de antipsiquiatria. Defendiam
perspectivas humanistas sobre a saúde mental (GOULART, 2006).

A emergência dessa reforma no Brasil iniciou-se no final da década de 1970,


com a constituição do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), a
partir de denúncias contra as violências em asilos e as péssimas condições de
trabalho dentro dos manicômios/instituições psiquiátricas. (ZAMBENEDETTI; SILVA,
2008). Apesar de não haver uma influência direta de Michel Foucault nesse processo
de reforma na psiquiatria, é inegável a importância das ideias e obras desse
pensador, já citadas anteriormente (SANDER, 2010).

No Brasil as redes assistenciais eram ofertadas de forma massiva, nos anos


1960 até a década de 1980, sustentada por recursos advindos da unificação da

29
Previdência Social (GOULART, 1992, apud GOULART, 2006). Essa rede trabalhava
com modelos terapêuticos precários, com uso abusivo de psicofármacos e com o
isolamento dos doentes mentais em manicômios. As consequências foram inúmeras,
como a superlotação, erros médicos, índices de mortalidade e segregação dos
usuários (GOULART, 2006). Esta situação se baseava na legislação de 1934,
composta pelos artigos 9º, 10º e 11º, que ficou em vigor no Brasil até o ano de 2000,
e nos termos de Figueiredo (1988 apud GOULART, 2006, p. 5):

Art. 9° Sempre que, por qualquer motivo, for inconveniente a conservação do


psicopata [doente mental] em domicílio, será mesmo removido para estabelecimento
psiquiátrico. Art. 10°O psicopata ou indivíduo suspeito que atentar contra a própria
vida ou de outrem, perturbar ou ofender a moral pública, deverá ser recolhido a
estabelecimento psiquiátrico para observação ou tratamento. Art. 11° A internação de
psicopatas, toxicômanos e intoxicados habituais em estabelecimentos psiquiátricos,
públicos ou particulares, será feita: a) por ordem judicial ou requisição de autoridade
policial; b) a pedido do próprio paciente ou por solicitação do cônjuge, pai ou filho ou
parente até quarto grau, inclusive, e, na sua falta, pelo curador, tutor, diretor de
hospital civil ou militar, diretor ou presidente de qualquer sociedade de assistência
social, leiga ou religiosa, chefe de dispensário psiquiátrico ou ainda por alguns
interessados, declarando a natureza de suas relações com o doente e as razões que
determinantes da sua solicitação.

As internações ocorriam de forma automática e arbitrária, ou seja, uma


verdadeira autorização de sequestro, privando o paciente de liberdade, mantendo-o
em cativeiro. Com o decorrer das reivindicações, ainda nesse período, ocorreu um
incentivo a multiprofissionalidade dentro dos hospitais psiquiátricos, sendo um ponto
central a entrada do profissional de psicologia na saúde pública. Ocorreu, então, a
implementação de ambulatórios juntamente a um modelo preventivista. Porém, na
prática, o modelo começou a demonstrar fragilidade e incapacidade ao processo de
desospitalização, como a intensificação de sintomas e o atendimento a grupos de
pais (ZAMBENEDETTI; SILVA, 2008).

Tal período provocou reivindicações trabalhistas, gerando discussões acerca


do tratamento psiquiátrico no Brasil, que teve como consequência a demissão de
estagiários e profissionais grevistas (AMARANTE, 1995, apud VASCONCELLOS,

30
2008). A partir de então, iniciaram grandes eventos para discussão do tema, tais como
o V Congresso de Psiquiatria, o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e
Instituições, o III Congresso Mineiro de Psiquiatria. No entanto o Movimento da Luta
Antimanicomial no Brasil surgiu de forma mais clara a partir do I Encontro Nacional
de Trabalhadores da Saúde Mental em 1987, cujo lema era “por uma sociedade sem
manicômios”. Segundo Rotelli (apud RAMMINGER, 2002, p. 115), foi defendido neste
evento:

Eliminar os meios de contenção presentes no tratamento, reestabelecer a


relação do indivíduo com seu próprio corpo, reconstruir o direito e a capacidade de
uso da palavra e dos objetos pessoais, produzir relações, espaços de interlocução,
restituir os direitos civis, eliminando a coação, as tutelas judiciais e o estatuto da
periculosidade, reativando uma base de inserção para poder ter acesso aos
intercâmbios sociais.

A exclusividade do saber-poder do médico já havia sido contestada por Michel


Foucault em sua obra Microfísica do Poder (2012). Nela o autor critica o
enclausuramento da loucura sustentado pelo poder médico, nos chamando a atenção
de que papel do médico passa a ter uma relação de poder muito específica, pois em
sua aplicação/atuação encontra-se a verdade sobre a doença. A institucionalização
da loucura – composta por um território e por um poder para melhor conhecer/tratar
– traz a ideia de que a doença mental era propriedade do manicômio/hospital
psiquiátrico, e que seu guardião seria o médico (SANDER, 2010). Michel Foucault,
apesar de ter escrito suas obras há mais de 50 anos, trouxe uma problemática que
permanece na atualidade; a exclusividade do saber-poder do médico, que em certa
medida ainda impregna nossa cultura no tocante ao tratamento daqueles
considerados “loucos” por esse saber. Internamento, isolamento, normatização,
diagnóstico, e a exclusividade do saber-poder do médico tornavam-se os principais
alvos de críticas à psiquiatria moderna.

No Brasil, aos poucos as propostas da Reforma chegavam aos âmbitos


governamentais, gerando o documento Diretrizes para a área de Saúde Mental,
redigido pelo Ministério da Saúde, na década de 1980, defendendo o tratamento
extra-hospitalar, a limitação do período de internação, a reintegração familiar e a

31
promoção de pesquisas epidemiológicas no campo da Saúde Mental
(VASCONCELLOS, 2008).

O momento histórico referia-se a um processo de redemocratização do País;


uma transição da fase sanitarista – reformas com o princípio de inverter a política
nacional de privatizante para estatizante e a implementação de serviços extra-
hospitalares – para a fase de desinstitucionalização – desospitalização. (AMARANTE;
TOR-RE, 2001). Dá-se, assim, espaço a realização de conferências e novas
propostas para a elaboração de novos serviços/opções assistenciais.

Foram realizadas duas Conferências Nacionais de Saúde Mental em 1987 e


1992, junto à inscrição da proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) na Carta
Constitucional de 1988, promovendo discussões e novas experiências no que diz
respeito à loucura e ao sofrimento psíquico (AMARANTE; TORRE, 2001). Um dos
pontos, também, defendidos pela Reforma é o trabalho interdisciplinar, e não apenas
a simples presença de psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, mas
sim a valorização desses profissionais. A impossibilidade de solucionar tais
problemas propiciou o surgimento de diversos modelos assistenciais, novas teorias e
práticas (VASCONCELLOS, 2008).

A partir de então, no final da década de 1980, surgiram as opções assistenciais,


ou seja, novos serviços, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os
Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), representando a Reforma Psiquiátrica
Brasileira, proporcionando consultas médicas, atendimento psicológico, serviço
social, terapia ocupacional, entre outros (VASCONCELLOS, 2008).

O CAPS foi implantado em 1987, e em seu projeto, de autoria da


Coordenadoria de Saúde Mental (1987, p. 1, apud AMARANTE; TORRE, 2001, p.
29), sua clientela prioritária é descrita:

[...] como aquela “sociedade invalidada”, com “formas diferentes e especiais de ser”,
com “patologias de maior complexidade”, de “pessoas que tenham enveredado por
um circuito de cronificação”, de “pessoas com graus variáveis de limitações sociais” e
com “graves dificuldades de relacionamento e inserção social”.

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Portanto, o CAPS enquadra-se numa rede assistencial externa intermediária
entre o hospital e a comunidade, ou seja, funcionará como um filtro de atendimento
entre hospital e comunidade a partir da prestação de serviços preferencialmente
comunitária; buscando entender a comunidade e instrumentalizá-las para o exercício
da vida civil (AMARANTE; TORRE, 2001).

A assistência é definida como de atenção integral, e o serviço propõe


atividades psicoterápicas, socioterápicas de arte e de terapia ocupacional – enfoque
multidisciplinar. O sofrimento psíquico deve ser pensado no campo da saúde coletiva,
tendo em consideração os diversos contextos em que o indivíduo está inserido como
a família, o trabalho, cultura, contexto histórico, entre outros. O serviço busca um
cuidado/atendimento personalizado e um tratamento de intensidade máxima, gerando
reflexões dos serviços e sistematização de informações e experiências (AMARANTE;
TORRE, 2001).

O NAPS nasceu em 1989, tendo como eixo a desconstrução do manicômio,


produzindo uma instituição que não segregue e não exclua. O NAPS possui algumas
estratégias que são fundamentais para a realização de seus objetivos. Há a estratégia
de regionalização, visando a ação de transformação cultural – conhecer as
necessidades; o percurso da demanda psiquiátrica –; a estratégia da abertura do
debate aos cidadãos, dialogando com a comunidade por meio das associações,
sindicatos e igrejas – discutindo as diferentes formas de compreender a loucura, e a
exclusão social –; a estratégia de projeto terapêutico, envolvendo o cuidar do outro –
evitar o abandono, atender à crise (AMARANTE; TORRE, 2001).

Em 1989, com a Luta Antimanicomial, o Projeto de Lei nº 3657, proposta pelo


Deputado Federal Paulo Delgado, previa a extinção progressiva dos manicômios,
sendo substituídos por outros recursos assistenciais. Tal projeto reproduziu a Lei
Italiana de 1978, que objetivou, de acordo com Goulart (2006, p. 12), “[...] o fim dos
manicômios, entendidos aqui como metáfora a todas as práticas de discriminação

e segregação daqueles que venham a ser identificados como doentes mentais


[...]”. Seguido de um marco histórico em 1990, a Conferência Regional para a
Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, realizada em Caracas; nela, os países da
América Latina, inclusive o Brasil, comprometeram-se a promover reestruturação da
assistência psiquiátrica (HIRDES, 2009).

33
A partir dessas problemáticas e das diversas críticas à psiquiatria, em 2001 foi
aprovada a Lei nº 10.216, conhecida como Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica,
proporcionando mudanças aos pacientes psiquiátricos, tanto no que diz respeito ao
tratamento quanto às concepções/visão de loucura para a sociedade. A loucura saiu
das instituições manicomiais e foi para as ruas, trazendo novos questionamentos,
discussões e novas percepções sobre os sujeitos ditos “loucos” que passam a ser
reconhecidos como sujeitos de direito.

Com a reforma psiquiátrica, esta Lei previa a proteção e os direitos das


pessoas portadoras de transtornos mentais, e critica o modelo hospitalocêntrico. E
com o estabelecimento de diretrizes e normas acerca da assistência em saúde
mental, em 1992, surgiu a portaria ministerial nº 224, objetivando leito ou unidade
psiquiátrica em hospital geral, e estabelecendo quantidade de profissionais de áreas
específicas para a formulação da equipe.

No entanto, apesar dos avanços baseados em leis, não houve a solução


imediata da problemática dos manicômios e da Reforma Psiquiátrica – dificuldades
que permeiam até a atualidade. A problemática da Reforma Psiquiátrica encontra-se
além das legislações, está nas concepções e representações sociais – trata-se de
ressignificações, de novas subjetividades e transformações sociais no que se diz
respeito à loucura.

O ano de 2001 foi indicado como o ano de luta por saúde mental e pelos
doentes mentais no Brasil, proporcionando novas iniciativas e reorientações,
principalmente discursivas, que, de acordo com Goulart (2006, p. 3), “a opção por
referir-se aos doentes mentais como pessoas com problemas mentais ou como
portadores de transtornos mentais expressa já uma atitude crítica diante da
terminologia médico--psiquiatra”.

34
Remediação com a patologia/transtorno já instalado ao
invés de métodos preventivos primários.

A partir destes marcos, os serviços substitutivos aos manicômios/hospitais


psiquiátricos passaram a ter privilégio, como os CAPS e NAPS, os leitos psiquiátricos
em hospitais gerais e oficinas terapêuticas (HIRDES, 2009). Os serviços substitutivos
foram os principais avanços da Reforma Psiquiátrica, trazendo alternativas de
tratamento com objetivo de, principalmente, não reproduzir as bases teórico-práticas
do modelo psiquiátrico clássico que “[...] fundou a noção de doença mental como
sinônimo de des-razão e patologia, que fundou o manicômio como lugar de cura e
que fundou a cura como [...] normalização” (AMARANTE; TORRE, 2001, p. 33). É
notável, que a presença dos CAPS/NAPS refletiu uma mudança na concepção de
tratamento dos pacientes psiquiátricos; onde antes a única instituição que receberia
esses pacientes – com a função de recolher/excluir – eram os manicômios/hospitais
psiquiátricos.

Apesar da mudança de concepção de saúde mental e redução do número de


instituições manicomiais no nosso país, os CAPS/NAPS tiveram um surgimento tardio
e sem investimento financeiro que atendesse às suas reais necessidades conforme
previsto em lei, diretrizes e normas. Desse modo, o atendimento posto em prática a
partir da Reforma Psiquiátrica ainda apresenta limites, não solucionando o tratamento
concreto para os ditos loucos pela sociedade.

Surge, então, a necessidade de preservar o sujeito do preconceito relacionado


ao enlouquecimento. Apesar do histórico da luta pela Reforma Psiquiátrica, e das
conquistas de implementações de leis e propostas dos âmbitos governamentais, a
reforma ainda é uma problemática atual. Anteriormente, os doentes mentais eram
vistos como usuários dos serviços de saúde mental, ou seja, pacientes que eram
objetos para técnicas terapêuticas e enquadrados como loucos. Porém, o que se
busca, ainda hoje, é que esses sujeitos existam na condição de cidadãos, usufruindo
dos serviços oferecidos por agências públicas (GOULART, 2006) que atendam aos
princípios previstos a partir da Reforma Psiquiátrica.

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Baseado no histórico apresentado do conceito de loucura e da Reforma
Psiquiátrica percebe-se que é de suma importância o debate do significado de loucura
para a sociedade contemporânea. Mesmo após a Reforma Psiquiatria brasileira, que
apesar de trazer transformações para o funcionamento diferenciado acerca do
tratamento psiquiátrico no Brasil, percebemos que esta não conseguiu modificar
totalmente a concepção e as representações sociais antiquada de loucura.

As práticas clínicas iniciais presentes nos manicômios/hospitais psiquiátricos


eram fundamentadas nas concepções acerca da loucura, que referiam os ditos loucos
como incapazes e improdutivos para a sociedade. Tais concepções estão
relacionadas aos exorcistas, ao enfoque médico, até o surgimento dos
manicômios/hospitais psiquiátricos tratados no decorrer do artigo. A Reforma
Psiquiátrica adentrou no sistema de saúde mental a partir do momento em que houve
mudanças nessas concepções de loucura. Tendo em vista que os ditos loucos
passaram a ser vistos como cidadãos, providos de direitos.

Apesar da constante luta da Reforma Psiquiátrica, as práticas clínicas e as


concepções acerca da loucura não conseguiram total mudança na sociedade
contemporânea, na qual ainda percebemos algumas concepções remotas sobre a
loucura e seu método de tratamento.

No Brasil, em virtude do surgimento tardio de instituições como os


CAPS/NAPS, inclusive com limitados investimentos financeiros, a prática clínica
proposta pela Reforma Psiquiátrica ainda apresenta limites, não solucionando a
problemática do tratamento concreto dos pacientes. Estes, em grande medida ainda
são alvos de pré-conceitos, tratados como loucos pela sociedade, sendo a eles
exigida a imposição da disciplina outrora oferecida violentamente pelas instituições
manicomiais quando eram taxados de subversivos aos comportamentos padrões e
aceitos.

No Brasil a permanência dessa antiga prática é preocupante. Na medida em


que discursos se constituem em práticas, essa permanência produz barreiras para a
desconstrução social da loucura, conservando o modelo das clínicas e dos
manicômios/hospitais psiquiátricos, e dificultando o reconhecimento da cidadania
daqueles considerados “loucos” e que necessitam de um tratamento mais
humanizado.

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