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Roberto Machado

História da Loucura e Crítica da Razão.

Tomando como exemplo o primeiro livro de Foucault chamado “A História


da Loucura”, qual é a posição filosófica do primeiro Foucault, o Foucault da
década de 60, conhecido como “arqueólogo dos saberes”? Pretendo,
portanto, mostrar a posição do Foucault arqueólogo em relação à
modernidade, ou melhor ainda, ao humanismo da modernidade, explicitando
em que sentido Nietzsche é o principal filósofo que se encontra subjacente
a essa tomada de posição filosófica.
Essa palestra foi titulada “Foucault, Nietzsche e a Crítica da Modernidade”,
mas nós poderíamos chamar também “Foucault e Nietzsche” ou ainda outro
título “História da Loucura e Crítica da Razão”. Eu não tenho dúvida de que
isso que Foucault elaborou com o nome de história arqueológica tem,
quando se trata de pensá-la como método, como processo de investigação
filosófico, tem como referência básica a epistemologia francesa, a chamada
história epistemológica como história conceitual da ciência. Tenho como
hipótese que cada livro arqueológico de Foucault se definiu com relação à
epistemologia, para dar conta de um tipo de ciência ou de saber diferente
daqueles estudados pelos epistemólogos. Quer dizer, um deslocamento de
ciências naturais ou de ciências da vida para um campo específico, para
essa região tão diferente que foi chamada ciências do homem ou ciências
humanas. Cada livro de Foucault se redefiniu metodologicamente com
relação ao que faziam Bachelard, Canguilhem, Koyré, Cavaillés, Althusser,
que, em geral, foram mestres de Foucault do ponto de vista metodológico.
Isso quando se trata de definir o que faz Foucault do ponto de vista
metodológico. Eu o definiria sobretudo por esse deslocamento com relação
ao que faziam, ao que fizeram ou fazem os epistemólogos.
No entanto, quando se trata de compreender não propriamente o método,
mas a temática, o conteúdo filosófico de seu pensamento, a meu ver, as
questões que norteiam, que motivam as investigações de Foucault são
expostas fundamentalmente na filosofia de Nietzsche. Portanto, acho que
quando estamos interessados na temática de Foucault, é a filosofia de
Nietzsche que deve ser privilegiada para explicitá-la melhor. Acredito
mesmo que os sucessivos deslocamentos com relação à epistemologia a
que me referia se devem em grande parte a seu interesse por Nietzsche e a
sua problemática filosófica, que é bem diferente da problemática filosófica
da epistemologia, sobretudo no que diz respeito à razão e à modernidade,
que são os dois temas básicos dessa palestra.
Toda a pesquisa arqueológica de Foucault pretende pensar o que é o
moderno. Vejam que neste momento eu estou reduzindo o estudo sobre
Foucault ao Foucault arqueólogo, o Foucault do momento de “A História da
Loucura”, de “O Nascimento da Clínica”, “As Palavras e as Coisas” e
finalmente em um livro de explicitação metodológica chamado “Arqueologia
do Saber”. Estou deixando de lado o Foucault da década de 70 e o da década
de 80 até a sua morte em 84, que a meu ver são bastante diferentes desse
Foucault que vou explicitar, que já conta com tanta diferença interna que
preferi privilegiar um livro para dar uma ideia dessa temática filosófica na
sua relação com a questão da razão e da modernidade ou para citar o autor

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na sua relação com a filosofia de Nietzsche.

Portanto, a pesquisa arqueológica de Foucault pretende pensar o que é o


moderno, situando em relação ao clássico. Em “A História da Loucura” isso
levou a duas descobertas fundamentais, a descoberta de uma
descontinuidade (Foucault nesse momento é um filósofo da
descontinuidade) que levou a uma grande ruptura situada em dois níveis
diferentes: o nível das teorias e o nível das práticas que dizem respeito ao
louco. Vamos ver que loucura e louco se situam em níveis diferentes, e
Foucault procurou não só situar esses níveis, mas inclusive correlacioná-los
de uma maneira bastante precisa na história da loucura.
Primeiro tipo de ruptura: no nível das teorias. Acredito que fazer uma
história dos saberes, no sentido de uma história que parte do presente,
recua no tempo e vai procurando compatibilidades e incompatibilidades
entre o que foi dito no presente e o que foi dito no passado. O presente, no
caso, a modernidade. E no estudo que Foucault faz da modernidade ele
privilegiu basicamente o século XIX. O passado, a época clássica para
Foucault significa séculos XVII e XVIII. Em todos os livros arqueológicos de
Foucault o centro da pesquisa, considerado como época clássica tem dois
balizamentos ou marcos filosóficos. Descartes, início da época clássica e
Kant, fim da época clássica e início da modernidade. Portanto, meados do
séc. XVII até final do séc. XVIII.

Portanto, a ruptura no nível da teoria que interessou Foucault foi a ruptura


entre classicismo e modernidade. Que ruptura é essa? O que Foucault
descobriu de tão original e de tão importante?

A meu ver, é o fato de que somente em um momento recente da história


ocidental, um momento que tem como marco filosófico a filosofia de Kant ou
como marco político a Revolução Francesa, até esse momento ainda não
existia a categoria de doença mental. Me parece que uma das grandes
descobertas desse livro, livro que, portanto, é um livro conceitual e que
nesse sentido se refere sempre ao que faziam os epistemólogos no sentido
de criticar uma história meramente descritiva, factual, mas procura dar
conta dos conceitos, sabendo muito bem que uma palavra é muito diferente
de um conceito. Procurando privilegiar, portanto, as definições, Foucault
chegou a conclusão de que conceitualmente era impossível falar de doença
mental antes do séc. XIX, fundamentalmente antes de Pinel e Esquirol, que
são os dois grandes criadores da psiquiatria. Quer dizer, o fato de que, antes
de se tornar doença mental, com Pinel, Esquirol e outros psiquiatras dos
séculos XVIII e XIX, a loucura era apenas doença. A loucura como doença, e
não doença mental, uma doença como as outras, estava integrada num tipo
específico de racionalidade médica próprio da época clássica.

Portanto, uma ruptura no nível das teorias, mais especificamente das


teorias médicas, que chegou à conclusão da não existência de uma
medicina especial para dar conta dela. E tentou ver, comparando tratados
sobre loucura de séc. XVIII e XIX, que havia uma descontinuidade, uma
incompatibilidade entre o que diziam esses médicos psiquiatras de uma

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medicina especial e aquilo que era dito sobre a loucura ainda na época
clássica pelos médicos, no momento em que não existia propriamente ainda
uma diferença entre o físico e o mental, para caracterizar dois tipos de
medicina e dois tipos específicos de doença.
Pois bem, Foucault aprofunda esse aspecto da doença em seu livro “A
História da Loucura”, que é um livro de 60 ou 61 e é a sua tese de doutorado.
Em 63 Foucault, me parece que com as sobras daquilo que foi sua 1a.
grande pesquisa, publicou um outro livro chamado “O Nascimento da
Clínica”, onde ele justamente mostrará que essa medicina clássica,
diferente da medicina moderna, é uma medicina, como ele chamou de
classificatória, uma medicina das espécies patológicas.
O sonho do grande classificador das doenças, Boissier de Sauvage, era ser o
Lineu das doenças. Aquilo que Lineu fazia na botânica, na zoologia, na
história natural, Boissier de Sauvage procurou fazer no campo das doenças.
Quer dizer, há um privilégio dos sintomas. A doença é o conjunto de
sintomas e classificar doenças é estabelecer identidade e diferença entre
elas a partir desse aglomerado de sintomas.
Portanto, a medicina clássica é uma medicina classificatória, uma medicina
das espécies patológicas que, seguindo o modelo da história natural, tal
como ela faz com relação às plantas e aos animais, procura estabelecer
identidades e diferenças entre as doenças, organizando um quadro. E é isso
que é classificar, organizar um quadro em termos de classe, ordem, gênero
e espécies.
Primeira conclusão: Não há, na época clássica, uma medicina especial como
a medicina psiquiátrica, que se funda na distinção entre o físico e o mental.
As doenças estavam no mesmo nível e, nesse espaço nosográfico
(nosografia = descrição metódica das doenças), estavam classificadas de
acordo com seus sintomas. Não há uma natureza específica da doença
mental como passará a existir no momento em que nasce a anatomo-
clínica, como medicina orgânica moderna, e a psiquiatria, que defenderá um
tipo de doença que em princípio seria original com relação a essas doenças
orgânicas que eram estudadas a partir da anatomia patológica, na chamada
anatomo-clínica. É a revolução de Bichat, de Laënnec, etc. e que Foucault
estudou nesse livro “O Nascimento da Clínica”, que procura contrapor esses
dois tipos de racionalidade médica.
Portanto, apesar das dificuldades, das resistências, dos obstáculos que o
conhecimento da loucura, na época clássica, encontrou para se integrar na
racionalidade médica da época, pode-se dizer que, de um modo geral, a
loucura é uma doença como as outras, só que com sintomas diferentes.
Então eu dizia, na tentativa de dar uma ideia geral desse livro que me parece
importante, Foucault estabeleceu, no nível da teoria da doença, uma
ruptura entre a racionalidade clássica e a racionalidade moderna em termos
de conceito de doença mental e da doença tal como era entendida na época
clássica (sem distinguir o físico e o mental).

Segundo tipo de ruptura: no nível das práticas. Em “A História da Loucura”


Foucault estabelece uma ruptura ainda mais importante e cheia de
consequências do que essa que eu acabo de assinalar. É a seguinte: Antes
da Revolução Francesa, antes de Pinel e Esquirol, não havia propriamente

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hospital psiquiátrico, não havia uma instituição terapêutica para os loucos,
para os loucos considerados como doentes mentais. Portanto, num nível
não havia doentes mentais e, por outro lado, não existiam hospícios, não
existia hospital psiquiátrico.
Aquilo que foi chamado Hospital Geral, criado na França por Luís XIV em
aproximadamente 1656, é um marco político importante de um tipo de lidar,
não propriamente com a loucura e sim, com o louco (veja como eu estou
estabelecendo dois níveis para esses termos). É, portanto, marco
importante daquilo que, usando a terminologia da época, Foucault se
apropriou e chamou de “o grande enclausuramento clássico”. Portanto, uma
ruptura entre o hospital psiquiátrico moderno e o grande enclausuramento
clássico em meados do séc. XVII. Curiosamente, a época de Descartes é a
época da grande exclusão da loucura da sociedade.
Esse grande enclausuramento, estudado exaustivamente por Foucault
nesse livro, não é propriamente uma instituição médica. Segundo ele, se
trata de uma entidade assistencial original, que ele situa entre a polícia e a
justiça e, com sua linguagem jocosa, sugere tratar-se do que ele chama de
“ordem terceira da repressão”. Quer dizer, é um entidade coercitiva,
repressiva que nada tem a ver com as questões da essência da loucura e da
recuperação do louco, mas que tem tudo a ver com a exclusão de indivíduos
considerados perigosos porque associais.
Pois bem, eu queria chamar atenção para uma frase que me parece muito
importante para entender esse grande livro, é uma curta frase que diz o
seguinte: “O século XVIII (ou a época clássica) deduz a loucura, mas percebe
o louco”. Essa frase é muito importante porque ela aponta para uma espécie
de dicotomia estrutural constitutiva da questão do louco e da loucura
nesses séculos XVII e XVIII. Quando ele diz: “o séc. XVIII deduz a loucura”, ele
está remetendo ao conhecimento da loucura, ao conhecimento médico da
doença. Está chamando de dedução da loucura o estabelecimento dessa
classe de doença através de uma medicina das espécies, uma medicina
classificatória. Então, a loucura fazia parte dessa racionalidade médica e era
deduzida por essa árvore do raciocínio da argumentação, do mesmo jeito
que as outras doenças.
Mas, diz Foucault, ao mesmo tempo que o séc. XVII ou XVIII conhecem a
loucura, percebem o louco. Como se a percepção do louco como
corporeidade, como materialidade, fosse independente da teoria da loucura.
O que é bastante condizente com a teoria médica clássica, onde há a ideia
de que o conhecimento médico parte do exame do corpo para conhecer os
seus sintomas. E, mais ainda, a partir de Bichat, do exame do cadáver. A
partir dessa ideia de que a noite da morte esclarece o dia do corpo sadio
(que é o grande conselho de Bichat). Dizia ele para seus alunos: “Se vocês
querem ser médicos, não adianta passar pelo leito dos doentes anotando
seus sintomas. Se vocês querem saber o que é doença, abram alguns
cadáveres”. A partir de então é justamente o momento fundador da
medicina moderna, porque a anatomopatologia se encontra na sua base.
Pois bem, esse é o momento em que a percepção e o conhecimento se
juntam, é a modernidade. Foucault tenta mostrar que na época clássica, a
maneira como se lidava, como se relacionava socialmente com o louco não
é guiado pelo conhecimento que se tem da loucura. Hoje para alguém ir para

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um hospício é preciso um atestado médico, é preciso que o médico seja
capaz de encontrar nele a loucura. Quer dizer, na modernidade é o médico
quem tem o poder de diagnosticar a loucura.
Nem sempre foi assim. No séc. XVIII, Foucault, que analisou as cartas régias
na França e esses processos de internação, via muito bem que não existia
esse poder da medicina sobre a loucura, justamente por essa independência
do louco e da ação sobre o louco com relação a esse conhecimento teórico
médico sobre a loucura.
Portanto, eu dizia, a frase que mais ajuda a compreensão de “A História da
Loucura” é essa: “A época clássica deduz a loucura, mas percebe o louco”
de uma maneira independente de como ela conhece a loucura.
Foucault, então, vai evidenciar como esse chamado hospital geral
(inaugurado por Luís XIV) e esse grande enclausuramento clássico
constituem-se de uma população que, para nossos olhos modernos,
medicalizados, humanizados aparece como heterogênea, mas que para a
percepção da época clássica é perfeitamente coerente.
Portanto, o fato de considerar alguém como louco e isolá-lo numa
instituição que não é terapêutica, mas que é fundamentalmente repressiva,
está ligado a constituição de uma população totalmente diferente do
fenômeno da loucura como nós conhecemos na modernidade (como
doença mental), mas inteiramente, perfeitamente coerente com o que
pensava moralmente, socialmente a época clássica.
É como ele diz, a percepção agrupa tudo aquilo que aparece como outro,
como outro da razão, como diferente, um estrangeiro aos olhos tanto da
razão como da moral, ou de uma razão moral e social. E, por isso mesmo,
seria, nesse momento, classificado como desrazão, desatino.
Então, Foucault diz: o hóspede desse hospital geral é mais do que o louco.
Em todo caso, não é o louco individualizado, percebido em sua
especificidade. É o louco como um elemento de um a população mais
englobante, formada de desrazoados, de desatinados. Que população é
essa? Foucault mostra que é uma população que engloba fenômenos que
dizem respeito à sexualidade. Melhor ainda, à transgressão da sexualidade.
Por exemplo, foram internados nesse grande enclausuramento doentes
venéreos, e mais que isso, doentes venéreos que tinham pego a doença fora
da família. Quer dizer, com a prostituição. Então, o próprio doente venéreo
se transformava em caso de polícia, e era caracterizado, nesses casos,
como um desrazoado. Ou então a prostituta, ou o sodomita.
Quem já leu Foucault, sabe que homossexual é uma criação recente, do séc.
XIX. Foucault tenta chamar a atenção para essa nomenclatura. Mesmo que
não seja uma nomenclatura científica, é mais que uma terminologia vaga, é
uma terminologia que tem um sentido conceitual profundo e que, mesmo
que não faça parte de nenhuma ciência real, pode ser estudada
conceitualmente. Isso porque talvez não diga alguma coisa cientificamente,
mas diz alguma coisa.
Então, Foucault chamou a atenção para isso, a homossexualidade, embora a
gente hoje use isso corriqueiramente, é uma terminologia nascida pela
medicina, nascida na medicina, nascida na psiquiatria. E é alguma coisa que
não diz respeito só ao ato, é alguma coisa que diz respeito a um
comportamento. O psiquiatra vê o homossexual como um bicho estranho,

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que tem uma determinada configuração, independente daquele ato, que
seria somente a expressão de um tipo de vida. Ora, isso não acontece com o
sodomita.
Nessa instituição, ao lado de doentes venéreos e de prostitutas, quando
consideramos essa população que foi internada por transgredir a
sexualidade, se encontra também essa categoria do sodomita, que é muito
mais uma categoria legal do que propriamente médica.
Ao lado disso, Foucault encontrou uma outra categoria trancafiada nessa
instituição e que ele usou um termo da época para caracterizá-la que é
“desordem do coração”. Um desordeiro do coração é alguém acusado de
magia, feitiçaria, ou ainda, alquimia.
Terceiro tipo de elemento que constitui essa população: a libertinagem, o
libertino (livre de qualquer peia moral, devasso, dissoluto, depravado,
licencioso). E aí vocês talvez não ignorem que Sartre foi um dos elementos
mais célebres dessa população.
Pois bem, a ideia de Foucault é que nesse grande enclausuramento você
encontrava trancafiado ao lado dos delitos contra a sexualidade, dos delitos
contra a ordem do coração e ao lado da libertinagem, você encontrava,
finalmente, o louco. Era essa a população, para nossos olhos, heterogênea,
mas que para a época não deveria ser assim tão heterogênea, no sentido
que a partir dos mesmos critérios essa população foi constituída.
Para concluir, o louco na época clássica (e não portanto a loucura) é parte
integrante de um perigo que a razão clássica, não como a razão pura,
científica, médica, mas sim como a razão moral e social classifica e ao
mesmo tempo desclassifica como desrazão, como ausência da razão, como
negatividade da razão, e assim exclui da sociedade.
Logo, dizer que o racionalismo clássico é puro é dizer que ele se purificou
com a exclusão, a recusa e o desprezo de toda uma população que
escapava dos seus limites.
Portanto, concluindo os dois primeiros pontos, há uma ruptura tanto entre
as noções de doença mental e de doença (é o nível de dedução da loucura),
quanto, em um segundo nível, entre o hospício moderno como instituição
terapêutica e o grande enclausuramento, no que diz respeito às práticas de
enclausuramento do louco.
Mas (eu vou tentar agora ligar esses dois aspectos), só poderá seguir o fio
da argumentação de “A História da Loucura” quem se der conta de que
essas rupturas entre época clássica e modernidade não são totais. As
teorias e as práticas não são para Foucault nesse momento independente
do que se passou. Portanto, para se dar conta do que Foucault pretende
evidenciar com esse livro é necessário levar em consideração que entre
modernidade e época clássica há sempre condições anteriores históricas de
possibilidades.
Tomando o exemplo da loucura, esse primeiro grande livro de Foucault é
uma crítica da razão, é uma análise dos limites da razão, uma análise das
fronteiras que, em épocas diferentes, a razão estabelece e desloca,
excluindo o que ameaça sua ordem. Mas, além disso, esse deslocamento
descontínuo (é a questão da ruptura) de fronteiras é um processo, e um
processo orientado, que tem um determinado sentido, que se faz do sentido
de uma crescente subordinação da loucura à razão e que tem como última

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etapa a nossa etapa, a etapa moderna, a psiquiatria ou aquilo que Foucault
chamou várias vezes de “psicologização da loucura”, que é uma
radicalização de um processo histórico, mas mais ainda de um processo
histórico de dominação. O que significa dizer que a psicologia, a psiquiatria
se constitui na época moderna, mas se constitui a partir de condições de
possibilidades que são anteriores.
Mas isso não é tudo, eu acho que para entender todo o alcance dessa
formulação de condições anteriores históricas de possibilidade, aquilo que
ocasionou, que possibilitou o surgimento da modernidade nesse campo
específico, é preciso se dar conta de que toda argumentação de Foucault
aponta não só para as origens dessa psicologização, e sim para aquilo que
eu chamaria de suas baixas origens, que seriam origens não propriamente
teóricas e sim práticas, usando uma terminologia mais recente do Foucault,
origens que se dão em termos de relações de poder ou de relações de força.
Eu diria, numa terminologia da época de A história da loucura, essas origens
dessa psicologização moderna são as condições históricas de possibilidade
mais institucionais do que teóricas.
O que eu estou querendo dizer com isso é que a psicologização da loucura é
fundamentalmente o resultado de um processo de humanização, que na
época da revolução francesa instaurou novas técnicas de controle social.
Foucault diria: a libertação dos loucos realizada por Pinel é um simples
eufemismo. Quer dizer, quando eu falo de baixas origens, ou origens mais
institucionais do que teóricas, eu estou querendo assinalar o fato de que foi
menos o exame médico que especificou a loucura, que examinou o louco,
que individualizou o louco, constituindo-o como doente mental, do que a
organização, o funcionamento e a transformação de instituições de
reclusão.
Quer dizer, esse nível da prática ou das instituições, para Foucault,
enquanto análise da constituição desses saberes da modernidade é mais
importante do que propriamente o nível das teorias ou dos conhecimentos.
Concluindo esse ponto, a loucura só foi objeto de conhecimento científico
na modernidade porque foi o primeiro objeto de excomunhão moral e social.
Daí, e é uma das frases lapidáveis e terríveis de Foucault, daí Foucault ser
tão incisivo ao dizer o seguinte, que é como que uma provocação, um
desafio que ele coloca aos profissionais da época, pensarem as suas
origens, ou as suas baixas origens, que é o papel do historiado filósofo dos
saberes. A frase é essa, que eu digo com minhas palavras, mas o sentido é
esse: “A psicologia jamais poderá enunciar a verdade da loucura, porque é a
loucura que detém a verdade da psicologia”. Quer dizer, a psicologia é o
resultado de um processo onde a loucura foi constituída a partir de relações
fundamentalmente de forças, que seriam as baixas origens dos saberes
psicológicos sobre a loucura.
Foucault nega que a medicalização, que a psicologização da loucura sejam o
resultado de um progresso. Vejam que ele faz o contrário do que faziam os
epistemólogos. Bachelard chegava a dizer: “a ciência é o único lugar onde
nós podemos provar a existência de um progresso”. Para o epistemólogo, a
ciência é o itinerário do entendimento, ou da razão para a verdade.
Bachelard dizia: “nunca se vira uma decadência científica numa ciência, a
ciência sempre progride”. O que significa dizer, o máximo, o ápice da

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racionalidade de uma ciência é a última linguagem falada por essa ciência. E
é por isso que os epistemólogos partem da atualidade, dos conceitos mais
bem elaborados de uma determinada ciência, voltam atrás, quer dizer,
recuam no tempo, e procuram descrever, lucidar, a história racional daquela
ciência, que é a história de uma descoberta progressiva e sempre mais
atualizada da racionalidade. É isso que fazem os epistemólogos.
Foucault, embora profundamente marcado pelo método de seus
professores, não segue cegamente o que fizeram seus mestres. Há uma
relação com a epistemologia, mas não é uma relação de servidão. Assim
sendo, Foucault nega que haja um progresso que tenha levado ao
desvelamento progressivo da essência da loucura na modernidade, como
diria um psicólogo ou um psiquiatra.
Canguilhem, que foi seu orientador de tese, chegou a dizer que um dos
pontos altos do livro é o questionamento das origens do estatuto científico
da psicologia. Digamos que isso que disse Canguilhem é verdade, mas
digamos isso para imediatamente perguntar (e é isso que está me
interessando): Como é possível colocar em questão o estatuto de
cientificidade da psicologia se, diferentemente dos epistemólogos, Foucault
não privilegiou progresso de uma ciência e, mais ainda, não toma a
cientificidade ou racionalidade científica, definida pela atualidade de uma
ciência, como uma norma para avaliar o passado, a história da
psicologização da loucura, como faz a epistemologia?
E com efeito, Foucault enuncia explicitamente no prefácio do livro que, ao
fazer “A História da Loucura” ele não quis partir de verdades terminais (e eu
acho que o termo é maravilhoso na sua ambiguidade) que são justamente
as últimas verdades, mas são, ao mesmo tempo, aquelas que estão a ponto
de morrer. Ele quis, isso sim, se desvincular de qualquer verdade
psiquiátrica, quis usar uma linguagem que ele chamou de neutra e que eu
interpretaria como sendo uma linguagem livre da terminologia científica. E
quis fazer tudo isso para ser capaz de se aproximar das palavras da loucura,
das palavras do louco. Quer dizer, utiliza-se de uma linguagem sem apoio
científico para ir até o fundo, que seria o lugar da loucura, e trazer à
superfície da linguagem da razão as condições de sua separação com
relação à loucura. A linguagem racional, científica sobre a loucura, ao invés
de desvelar, de revelar, de descobrir a essência da loucura, para Foucault
encobriu, velou.
Portanto, seria necessário escapar de uma outra linguagem científica ou
racional para ser acolhedor a essa palavra e colocar em questão essa
antinomia que é constitutiva do próprio nascimento da razão clássica e da
razão moderna. Como Foucault pôde fazer isso? Como ele pôde ser crítico à
psicologização da loucura se ele não partiu de um discurso da própria razão
para mostrar a insuficiência das formulações científicas? Quer dizer, como
ele foi capaz de fazer uma crítica se ele não fazia uma crítica da razão pela
razão?
Eu diria, e é talvez a hipótese mais importante: Se Foucault pôde não partir
do que ele chamou, verdades terminais, se ele pôde usar uma linguagem
sem apoio na razão científica (psiquiatria, psicanálise), sem, ao mesmo
tempo, ter se contentado com uma história meramente factual, meramente
descritiva (ele era discípulo dos epistemólogos que faziam uma história

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conceitual); se ele foi capaz disso é porque ele partiu daquilo que ele
chamou de “experiência trágica”. Estou entrando em outro ponto dessa
exposição.
Ele privilegiou, não a última verdade de uma ciência, mas aquilo que
escapava a ciência da loucura, que é a experiência trágica como sendo um
valor positivo para avaliar as teorias e as práticas históricas sobre a loucura
e o louco. Significa que a loucura, tal como aparece nesse livro, além de
figura histórica (que se modifica com o tempo) é também e
fundamentalmente uma experiência, mais ainda, uma experiência trágica,
no sentido de uma experiência originária de uma realidade essencial e
poderia dizer mesmo de uma verdade ontológica. E foi essa experiência
originária que a razão encobriu, ocultou, mascarou e dominou, embora não
tenha destruído totalmente. A razão, no entanto, teria encoberto, e não
descoberto, a essência da loucura, e teria feito isso simplesmente por ela
ter se mostrado ameaçadora e perigosa para a ordem da razão.
A meu ver, a ideia de uma experiência trágica da loucura e a função que ela
desempenha nesse livro chamado “A História da Loucura” é o que mais
afasta o livro da epistemologia e mais o aproxima da filosofia de Nietzsche,
sobretudo, do modo como a filosofia de Nietzsche é formulada também no
seu primeiro livro que é “O Nascimento da Tragédia”. Pois qual é o objetivo
final de “O Nascimento da Tragédia”? É uma denúncia da modernidade como
uma civilização Socrática. E é muito interessante que o primeiro Foucault é
um Foucault que estabelece uma ruptura entre modernidade e época
clássica para explicar ou para criticar o humanismo da modernidade.
Nietzsche, que é um crítico da modernidade, faz uma crítica da
modernidade que não estabelece uma ruptura tão curta. Ele foi muito além,
recuou muito mais no tempo e denunciou a civilização moderna como
sendo niilista ( niilismo = descrença absoluta; (et.)doutrina segundo a qual
não há verdade moral nem hierarquia de valores; (filos.)doutrina segundo a
qual nada existe de absoluto), como sendo a negação da própria vida,
voltando aos próprios gregos, voltando a esse momento de constituição da
metafísica clássica, que é o momento da instituição da razão, e de uma
razão dicotômica, quer dizer, que produz as diferenças, as dicotomias, as
oposições, que Nietzsche chama de “oposições metafísicas”, entre verdade
e erro, bem e mal, eternidade e tempo, e assim por diante.
Então, a meu ver, Foucault segue uma inspiração Nietzcheana de crítica do
niilismo da modernidade, no caso de Foucault o que ele chama de
“humanismo da modernidade”, no sentido em que esse primeiro livro “O
Nascimento da Tragédia” procura denunciar a modernidade como uma
civilização Socrática, racional, por esse desejo ilimitado de verdade, por seu
espírito científico ilimitado. E, ao mesmo tempo que Nietzsche critica a
modernidade por ser niilista, ele saúda o renascimento de uma experiência
trágica do mundo, renascimento que ele vê em algumas das realizações
filosóficas e artísticas da própria modernidade.
Agora, como é que Nietzsche vai relacionar essas criações filosóficas e
artísticas da modernidade que ele vê como uma positividade. É porque ele
vai procurar traçar uma continuidade como esse mundo grego que é o
mundo da experiência trágica grega. Quer dizer, “O Nascimento da Tragédia”
tem como que três partes: nos primeiros itens, ele estuda o nascimento da

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tragédia como Ésquilo e Sófocles, nos cinco seguinte estuda a morte da
tragédia a partir de Sócrates e aquilo que ele chama de Socratismo estético
e, finalmente, nos últimos itens estuda o renascimento da tragédia que ele
procura situar em algumas filosofias e algumas obras de arte da
modernidade.
A base da experiência trágica está nessa tragédia está nessa tragédia
grega, que durante um determinado momento (no máximo uns cem anos)
possibilitou (e esse é o grande elogio da arte que Nietzsche faz nesse livro)
pela arte a experiência do lado terrível, tenebroso, cruel da vida. E é isso que
ele acha que a razão não pôde suportar, e por isso estabeleceu dicotomia de
valores para aleijar como erro, como mau aquilo que é difícil tragar na nossa
existência.
Para Nietzsche, a vida, o mundo, a existência têm uma ferida que é
impossível de ser sanada, de se curada, como quer o otimismo da razão e
que para a crítica da razão de Nietzsche tem origem com a metafísica
socrática-platônica.
Me parece que o conceito mais importante do nascimento da modernidade
é esse conceito de experiência trágica, que permite, pela arte, que o homem
vivencie esse lado terrível, tenebroso, cruel da vida, sem ser destruído por
ele. Quer dizer, a arte trágica dionisíaca é uma forma de intensificar a
própria alegria de viver. Mas esta experiência trágica, que vigorou nesse
momento que Nietzsche considera como sendo o ápice da humanidade, foi
reprimida, sufocada, invalidada pelo Socratismo, pelo Platonismo, que
justamente subordina a criação artística à compreensão teórica. Ou então,
foi reprimida pela metafísica, que criará a oposição de valores (bem/mal,
verdade/ilusão, etc.), oposição de valores que está na origem da razão e que
ele procurou desmistificar sem se situar no próprio nível da razão.
Veja como é parecido o que fez Nietzsche com o que fará o jovem Foucault
na sua tese de doutorado. Do mesmo modo que para Nietzsche a história do
mundo ocidental é a recusa, o esquecimento da tragédia (ou dessa
experiência trágica da vida, que é a única maneira de dar intensidade e
alegria a própria vida), a história da loucura, tal como Foucault interpretou, é
a história do vínculo da racionalidade moderna, tal como aparece nas
ciências do homem em um longo processo de dominação, que ao tornar a
loucura objeto de ciência, a despossuiu de seus antigos poderes. São esse
poderes os de uma verdade originária de uma experiência trágica.
Uma citação de Foucault: “A História da Loucura é um livro escrito sob o sol
da grande pesquisa Nietzscheana”. Eu diria, se A História da Loucura é uma
livro escrito sob esse sol da pesquisa Nietzscheana é, antes de tudo, porque
nele a história da relação entre loucura e razão (que considerou, segundo
Foucault, a loucura como uma negatividade) é realizada a partir daquilo que
ele chamou de “as estruturas atemporais do trágico”. E se a hipótese de
uma experiência trágica é decisiva no livro é porque apenas essa
experiência permite dizer a verdade da psiquiatria. Lembrem: “a psicologia,
a psiquiatria nunca dirão a verdade da loucura porque a loucura (como
experiência trágica que foi reprimida) que detém a verdade da psiquiatria”.
Quer dizer, se essa hipótese da experiência trágica da loucura é decisiva no
livro é porque ela que dizer a verdade da psiquiatria, a verdade da
psicologização da loucura. Em outros termos, que permite situar a

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racionalidade sobre a loucura num processo histórico, que é um processo
de controle, de um controle que tem um sentido, de um controle cada vez
mais eficaz efetuado pela razão. Controle esse que evidencia como a cultura
rejeita a sua parte “maldita”.
Para concluir eu vou estabelecer de uma maneira sintética esses três
momentos dessa história de um controle que levou a esse humanismo da
modernidade.
No renascimento, entre outras coisas, ele descobre uma hospitalidade para
a loucura. Não havia enclausuramento, não havia reclusão da loucura. Os
loucos normalmente eram colocados em barcos e navios que navegavam
pelos rios da Europa, que se reuniam em determinados lugares, que faziam
seus festivais de loucura. Havia mesmo eleição para saber quem era o louco
mais louco. Havia uma literatura da loucura que era lida, que era consumida
nessa época.
No renascimento, apesar dessa estranha hospitalidade que em geral vigora
para como a loucura, começa um incipiente controle, que se faz através
daquilo que Foucault chama de “crítica mora”. Quer dizer, é no
renascimento que a loucura vai ser situada como ilusão.
Filosoficamente é o momento de Erasmo e de Montaigne, momento em que
essa experiência trágica do homem no mundo, que ainda se expressa
livremente na iconografia com Bauch, com Brabel(?) e mesmo no teatro, por
exemplo no teatro barroco, essa experiência trágica vai se julgada,
subordinada a uma experiência crítica que vai privilegiar o saber já a
verdade e a moral. Por isso vai colocar a loucura como ilusão.

(…Pedaço cortado…)

É o momento, como talvez vocês todos saibam, de Descartes. É o momento


onde a loucura é excluída pelo sujeito que duvida (Foucault faz uma análise
das Meditações Metafísicas de Descartes). É o momento em que o
pensamento se torna condição de impossibilidade da loucura. A idéia é essa:
se eu penso, não posso ser louco e se eu sou louco não posso pensar.
Veja o que diz Foucault para comentar as Meditações de Descartes: se o
homem pode sempre ser louco (cada um de nós na época clássica
poderíamos enlouquecer), significa dizer que é o outro do pensamento, é
delírio do pensamento.
Na modernidade, a loucura não diz mais fundamentalmente respeito ao
pensamento, diz respeito à vontade, aos instintos, ao desejo. Então a
loucura a partir de Pinel e Esquirol não será fundamentalmente delírio.
Tanto que Pinel ou Esquirol descobrirá um conceito que aterrorizou os
juristas da época, é a idéia de “monomania”. O que é um monomaníaco? Um
maníaco todo mundo sabe, é um delirante. O monomaníaco é alguém que é
normal em todos os aspectos da vida, menos um. Ele tem uma esquisitisse,
só que essa esquisitisse varia. Pode ser religiosa (monomaníaco religiosa) o
que não tem muito problema. Mas existe um tipo de monomania que é
perigoso, é a monomania homicida. Você é totalmente normal em todos os
sentidos da vida, só que você tem um “probleminha”: de vez em quando
gosta de matar alguém. E os médicos e os juristas ficaram apavorados,
porque se é assim todo mundo vai ser inocentado. Foi necessário Esquirol

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escrever artigos e mostrar que a situação não iria ser melhor, porque ele não
vai para a cadeia, mas vai para o manicômio judicial (como existe até hoje).
Então, o interessante é isso, uma patologização da justiça. Como essa
normalização médica penetrou todos os campos da sociedade.
(…Pedaço cortado…)
Mas o pensamento, enquanto tal, não pode ser insensato, não pode ser
desrazoado. Trata-se de uma linha divisória que logo tornará impossível a
experiência tão familiar ao renascimento, de uma razão desrazoável ou de
uma razoável desrazão. E Foucault conclui que entre Montaigne e Descarte,
algo se passou, algo que diz respeito ao nascimento de uma racio, ao
nascimento da razão clássica que vigora ainda na modernidade.
Montaigne, meditando sobre um poeta italiano, Torquato Tasso, o admira,
perguntando-se se seu estado lastimoso (ele estava louco) não se deve a
uma clareza grande demais que o teria cegado. Uma clareza grande demais
que existiria na loucura que essa sim o teria cegado.
O que vigora agora é uma incompatibilidade absoluta entre o pensamento e
a loucura. Incompatibilidade que tem como consequência a sua redução ao
silêncio. Exclusão do pensamento correlata a uma exclusão da sociedade.
Momento decisivo da história ocidental, em que o homem como razão, como
exacerbação da sabedoria do sujeito, desse sujeito capaz de conhecer a
verdade, se torna impossibilidade da loucura.
Finalmente, terceiro momento dessa pequena história do controle da
loucura.
Na modernidade o clausério histórico de controle que Foucault pretende
evidenciar, atinge o máximo, o ápice de sua eficácia através do nascimento
das ciências do homem, ciências que, aceitando a loucura como alienação, a
patologizaram pela primeira vez na história, criando a categoria de doença
mental e transformando o louco em doente mental, que deveria habitar,
viver em uma instituição terapêutica.
Esquirol em seu livro sobre doença mental ensina como construir um
hospício. E ele diz justamente: “um hospício é uma instituição importante
demais para ser entregue aos construtores”. Ele teria que ser construído
pelo médico, porque é uma instituição médica e é enquanto construção que
o hospício cura. O que cura a loucura seria, segundo o grande psiquiatra do
início do séc. XIX, o próprio hospício. Quer dizer, é uma grande teoria médica
do enclausuramento.
É o momento de Hegel, que no parágrafo 408 da sua enciclopédia, onde por
sinal ele faz elogio de Pinel, vai defender (veja a diferença entre
modernidade e época clássica) que o louco deixou o seu gênio mal triunfar
de dentro dele e, diferentemente de Descartes ele diz, mas ele não perdeu a
razão. Para Descartes a loucura é o outro do pensamento e era por isso que
na época ele era acorrentado nessas masmorras e assim por diante.
Chega Pinel (1794), que foi mandatado pela revolução francesa para
estudar, para dirigir essas masmorras e ele encontra os loucos presos e
muitas vezes os ratos que vinham comas cheias dos rios comiam partes de
seus corpos, etc.. Isso é contado pelo sobrinho, que escreveu um livro
elogioso sobre o ato de libertação dos loucos. Pois bem, Pinel para olhos
apavorados dos líderes da revolução que o acompanhavam, se aproximou
dessas feras, desses animais selvagens e libertou-os, desacorrentou-os. E

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como que miraculosamente (milagre da ciência) por aquele ato libertatório,
do renascimento da liberdade como valor político, ao recobrar a liberdade,
eles recobram a razão. Então, a loucura não é a ausência da razão. É um
adormecimento da razão que pode ser sem dúvida recuperada.
Veja o que diz Hegel: “o louco deixou que o gênio mal da particularidade
triunfasse dentro dele, mas não perdeu a razão”. Continua tendo
consciência do bem e do mal. E o terapeuta pode assim apoiar-se no que diz
de racional l doente para devolvê-lo ao melhor de si mesmo, que é a razão.
Deixando de se erro, falsidade, não ser, em suma desrazão, como na época
clássica, a loucura, agora doença mental, passa a dizer respeito a alma.
(Lembrem que na época clássica não existe diferença entre corpo e alma.)
Agora, a loucura penetrou na alma. Daí a psicologização da loucura, a
loucura passa a inteira tutela da razão. Antes era o outro da razão, agora faz
parte mesmo do homem de razão, só que ela é parte adormecida, encoberta
e precisa ser desvelada, trazida a tona pelo médico, pela figura terapêutica.
É que se na loucura o homem pode aparecer alienado, afastado de si
mesmo, estrangeiro a si mesmo, a ação do terapeuta que é uma ação
eminentemente moral.
A principal categoria terapêutica do início do séc. XIX era o tratamento
moral. O médico clássico achava que podia curar a loucura, por exemplo,
dando banhos ou duchas, que eram utilizados para determinadas doenças.
Então, a ducha ou o banho de imersão tem o sentido de uma terapêutica
física como outra qualquer, que pode ser usada para loucura ou para outras
doenças.
Quando o médico moderno humanista, portanto a psiquiatria, usa uma
ducha fria, a ducha tem o sentido de punir uma culpa. Um exemplo muito
interessante desse psiquiatra francês chamado Lenese, é que ele tinha um
paciente em Paris, que dizia sempre que era inglês e que morava em
Londres. O que ele faz? Ele resolve mostrar ao paciente que ele não é inglês
coisíssima nenhuma e que não mora em Londres. Ele faz uma viagem de
carruagem com esse louco e mostra aqui é o Arco do Triunfo (que nem
existia na época). Então o sujeito concorda, nós estamos em Paris. Muito
bem. Quando ele chega no hospício ele pergunta para o louco: quem é você?
Eu sou inglês e moro na Inglaterra. O que ele faz? És inglês, então ducha fria
nele. E depois da ducha ele pergunta: você ainda é inglês? E até o momento
que ele não aguenta mais e nega.

Existe também outro tratamento importante que usa métodos físicos para
atingir o moral, é o célebre purgante. O sujeito reage a força do médico,
então o médico diz para o carcereiro ou para a enfermeira dar um purgante
para ele. No outro dia o cidadão está todo sujo, todo borrado e o médico diz:
Como? Não era você que queria me afrontar e basta eu me aproximar e você
já está assim.
Isso parece brincadeiras, mas são consideradas como tratamentos normais
e são escritos por grandes teóricos da psiquiatria do séc. XIX, que
demonstrou que, embora o doente mental, considerado como alienado,
esteve afastado de si mesmo, essa ação terapêutica, evidentemente moral,
pode desaliená-lo, libertá-lo e trazê-lo de volta a sua essência, a sua
natureza e a sua verdade, pode torná-lo novamente apto para exercer a

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razão.
Eu diria, com a modernidade se atinge finalmente a antropologização, a
psicologização, a urbanização da loucura.
Duas observações para terminar. Foucault me parece ter tido uma grande
ousadia ao utilizar um método arqueológico, método que ele criou, criou
inclusive a partir fundamentalmente de seus mestres epistemólogos. Que
ousadia foi essa? A ousadia de negar a existência de uma verdade
psicológica da loucura, como pensa ainda a modernidade. Mostrando que a
história da loucura não é, como dizem os epistemólogos com relação a
outras ciências, no caso da loucura, no caso da psiquiatria ou da
psicologização da loucura, não é o itinerário progressivo da inteligência para
a verdade. É, ao contrário, a história de uma grande mentira e, invés de
descoberta, encobrimento. Mas me parece que ousadia maior foi pensar,
prolongando a grande suspeita Nietzscheana com relação à razão, foi
pensar que a loucura tem uma verdade essencial, fundamental, que foi
progressivamente integrada a ordem da razão (é esse controle progressivo)
mas que, não tendo sido inteiramente destruída, essa loucura essencial vela
silenciosa quando não se manifesta na fulguração de obras poéticas,
filosóficas (não científicas) de certos artistas, de certos filósofos como
Raymond Roussel, Nerval, Artaud, Nietzsche, todos que um dia foram
considerados como loucos. Obras que para Foucault têm a grande
importância de terem sido capazes de resistir e com sua força desmesurada
conseguiram vencer essas barreiras, esse cerco que a razão fez com relação
à loucura silenciando-a. Conseguiu resistir com sua força ao gigantesco
aprisionamento moral que constitui o monopólio da razão sobre a loucura.
Retomando o seu primeiro livro, essa experiência trágica do primeiro livro de
Nietzsche, retomando essa ideia de uma tragicidade fundamental da
loucura como uma forma de calar a psicologia positivista e dar uma
positividade a uma possível relação não psicologizada porque não
moralizável da razão com a loucura; me parece que Foucault iniciava uma
investigação que não era nem fiel a si mesmo, mas uma investigação que,
de modos diferentes em cada um de seus livros, teve sempre um objetivo
principal, fazer o homem despertar, quem sabe, transfigurado de seu sonho
antropológico que é esse sonho do sono da modernidade.

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