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FAZENDO NIETZSCHE RANGER: APROXIMAÇÕES ENTRE NIETZSCHE E

FOUCAULT

Resumo
Há diversos caminhos para se chegar a Nietzsche e o que se optou nesse artigo foi o que passa
por Foucault. O filósofo francês foi bastante impactado pelo alemão. Foucault hora o chama
de filósofo-jornalista, hora de filósofo do poder. Liames aproximam Nietzsche e Foucault,
como loucura, verdade, moral, poder e genealogia. Essa última, tendo por base abordagem
inaugurada por Nietzsche, influenciou sobremaneira o pensamento foucaultiano. Procurou-se
extrair das próprias palavras de Foucault suas impressões sobre o filósofo alemão, ensejando
assim dar mais ênfase à sua influência. A aproximação proposta entre Nietzsche e Foucault
objetiva conceder instrumentos para compreensão do passado e, mais ainda, a do presente.
Passado e presente representam objeto de análise desses dois importantes filósofos.

Palavras-chave: Nietzsche; Foucault; loucura; genealogia.

MAKING NIETZSCHE TO GRIND: APPROACHES BETWEEN NIETZSCHE AND


FOUCAULT

Abstract
There are several ways to get to Nietzsche and what was opted in this article was what passes
for Foucault. The French philosopher was greatly impacted by the German. Foucault calls him
a philosopher-journalist, hour of philosopher of power. Links approach Nietzsche and
Foucault as madness, truth, morality, power and genealogy. The latter, based on an approach
pioneered by Nietzsche, greatly influenced Foucault's thinking. It was tried to extract from
Foucault's own words his impressions on the German philosopher, thus giving more emphasis
to his influence. The proposed approach between Nietzsche and Foucault aims to provide
tools for understanding the past, and still more, the present. Past and present represent the
object of analysis of these two important philosophers.

Keywords: Nietzsche; Foucault; madness; genealogy.

1. Introdução
É habitual conhecer as obras de determinado autor não necessariamente pelo acesso
direto às mesmas. De outra forma, significa dizer que ao estudar certo autor, ele trará à tela
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outros diversos. Em especial, a filosofia tem em seu arquivo casos interessantes. O evento do
contato indireto pode se dar, como no exemplo de Sócrates, pela ausência de registro direto do
filósofo, sendo por seu discípulo Platão o caminho para o conhecimento da obra de seu
mestre; ou, noutra possibilidade, quando o um filósofo tem por base a obra de outro, sendo
significativamente impactado. Paul-Michel Foucault, filósofo francês, tem como um de seus
alicerces a figura de outro filósofo, o alemão Friedrich Nietzsche.
A leitura de algumas obras de Foucault impele a conhecer Nietzsche, assim como
evidencia a importância do mesmo em seu legado. Como o próprio autor (FOUCAULT,
2014b, p.42) nos esclarece: “Quanto à influência efetiva que Nietzsche teve sobre mim, ser-
me-ia muito difícil precisá-la, porque eu meço justamente quanto ela foi profunda. Eu lhe
direi somente que continuei ideologicamente “historicista” e hegeliano até que eu tivesse lido
Nietzsche”.
É esse olhar sob Nietzsche, matizado pelo olhar de Foucault, que é proposto aqui,
especialmente os temas da genealogia e do poder. Nietzsche é aquele que, segundo Foucault,
ofereceu como alvo essencial, digamos ao discurso filosófico, a relação de poder. Enquanto
para Marx era a relação de produção. Nietzsche é o filósofo do poder, mas que chegou a
pensar o poder sem se fechar, no interior de uma teoria política” (FOUCAULT, 2015b,
p.233).
Vale ressaltar que em dado momento, certa fala de Foucault sobre Nietzsche pode, a
princípio, parecer menos aprazível. Contudo, é explicada oportunamente: “Hoje fico mudo
quando se trata de Nietzsche. No tempo em que era professor, dei frequentemente cursos
sobre ele, mas não mais o faria hoje. Se fosse pretensioso, daria como título geral ao que faço
“genealogia da moral” (FOUCAULT, 2015b, p.232). E complementa:

A presença de Nietzsche é cada vez mais importante. Mas me cansa a


atenção que lhe é dada para fazer sobre ele os mesmos comentários que se
fez ou que se fará sobre Hegel ou Mallarmé [...]. O único sinal de
reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de
Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar
(FOUCAULT, 2015b, p.233).

Desta forma o que se tem por finalidade no artigo é fazer Nietzsche “ranger”, ou seja,
aproximá-lo de Foucault permitindo a reflexão sobre o passado e, acima de tudo, sobre o
presente. Passado e presente representam objeto de análise desses dois importantes filósofos.
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2. Foucault Nietzschiano
Numa rápida passada pelas obras de Foucault - “História da Loucura na Idade
Clássica”; “A Ordem do Discurso”; “Microfísica do Poder”; e na série “Ditos e Escritos”
volume X: “Filosofia, Diagnóstico do Presente e Verdade”, IV: “Estratégia, Poder-Saber” e
VII: “Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina” - é possível verificar dezenas de
referências a Nietzsche. Judith Revel deixa ainda mais evidente essa relação:

A referência a Nietzsche se encontra onipresente em Foucault até o início da


década de 1970; mais tarde, ela continuará a ser central, ainda que de
maneira indireta, através dos empréstimos conceituais ou das homenagens
mal veladas (por exemplo, através dos conceitos de “genealogia” e de
“vontade de saber”) (REVEL, 2011, p.180).

Contudo, a grande confluência entre Foucault e Nietzsche poderia levar alguns a


entender uma quase absorção do segundo pelo primeiro, o que não seria o caminho mais
adequado. As afinidades e aproximações entre os filósofos, anunciadas por Foucault “não
implica em dizer que Foucault concorda totalmente com Nietzsche – o que quer que isso
possa significar para um pensador tão complexo, elusivo e profundamente assistemático como
Nietzsche” (DREYFUS; RABINOW, 2013, p.141). São também evidentes as diferenças de
percepção e de abordagens entre eles:

[...] frequentemente, Nietzsche parece fundar a moralidade e as práticas


sociais em táticas de atores individuais; Foucault afasta totalmente o caráter
psicológico da abordagem e considera toda motivação psicológica não como
a fonte, mas como o resultado de estratégias sem estrategistas. Em vez de
origens, significados escondidos ou intencionalidade explícita, Foucault, o
genealogista, vê relações de força funcionando em acontecimentos
particulares, movimentos históricos e história (DREYFUS; RABINOW,
2013, p.145).

Compreende-se, contudo, que há mais pontos em concordância entre os autores do que


divergências. Revel observa que há duas fases específicas de Nietzsche em Foucault. A
primeira é a utilização de Nietzsche contra o privilégio do sujeito fenomenológico e contra as
filosofias de origem. “Nietzsche é para Foucault aquele que abriu uma ferida na linguagem
filosófica e faz atuar essa abertura em todas as partes onde o sentido tem a intenção de se
libertar” (REVEL, 2011, p.180).
Na segunda, Foucault o utiliza como um daqueles que “modificaram radicalmente o
espaço de repartição, nos quais os signos podem valer como tais, ou seja, podendo ser
interpretados” (REVEL, 2011, p.181). Isso o inspirará a escrever “Nietzsche, Freud e Marx”,
onde valorizará o inacabado de qualquer interpretação. Há em Nietzsche, Freud e Marx, para
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Foucault, esse inacabado da interpretação; que esteja sempre retalhada, analogamente nesses
três autores, sob a forma de “recusa do início”. No que tange os autores em si, não deixa de
ser curioso como Foucault em dados momentos acaba por se definir e definir Nietzsche
também.

Que o que eu faço tenha algo a ver com a filosofia é muito possível,
principalmente na medida em que, pelo menos desde Nietzsche, a filosofia
tem como tarefa diagnosticar e não procura mais dizer uma verdade que
possa valer para todos e para todos os tempos. Eu procuro diagnosticar,
realizar um diagnóstico do presente: dizer o que somos hoje e o que
significa, hoje, dizer o que nós dizemos. Esse trabalho de escavação sob
nossos pés caracteriza, desde Nietzsche, o pensamento contemporâneo, e
nesse sentido eu posso me declarar filósofo (FOUCAULT, 2014b, p.34).

Paulo César de Souza, no posfácio de “Genealogia da Moral”, assegura que Nietzsche:

[...] não se contenta em simplesmente diagnosticar. Ele pretende ser médico


e salvador, e assume este papel com a paixão que lhe é peculiar (SOUZA,
1998, p.169).

E, para Foucault, ambos foram também jornalistas; mas em que sentido? O francês
reitera o interesse pelo presente, pela atualidade, o que somos e o que se passa no mundo. E
quem teria inaugurado essa função de jornalista teria sido o alemão: “O primeiro filósofo
jornalista foi Nietzsche. Ele introduziu o hoje no campo da filosofia. Antes, o que o filósofo
conhecia era o tempo e a eternidade. Nietzsche, porém, tinha a obsessão da atualidade”
(FOUCAULT, 2016a, p.308).
Foucault e Nietzsche, foram filósofos, diagnosticadores e jornalistas, que abalaram
estruturas aparentemente bem alicerçadas do pensamento e que até hoje, de forma quase que
imperativa, direcionam para o caminho da filosofia-problema, do não aceitar que o mundo
está pronto, seja o mundo das ideias ou o mundo do vivido. Foucault e Nietzsche são como
azougues, pois aparentemente tem uma forma, mas são fugidios; escapam por entre os dedos,
não permitindo uma “prisão eficaz”, nem de uma definição fechada de si e de suas obras.

3. A Loucura em Foucault e Nietzsche: verdade?


Uma grande catapulta que alçou Foucault ao campo de destaque, positivamente ou
não, ao menos num primeiro momento, chama-se “História da Loucura na Idade Clássica”, a
tese de seu doutoramento que abalou alicerces e fez angariar desafetos:

Observei que mesmo hoje os psiquiatras jamais me perdoaram pela História


da loucura. Há quinze dias, recebi ainda uma carta de injúrias. Mas penso
que esse gênero de análise, mesmo que ainda possa ferir alguém, sobretudo
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os psiquiatras que arrastam há tanto tempo sua má consciência, é hoje mais


admitido (FOUCAULT, 2015b, p.222).

A loucura é um curioso ponto de aproximação entre Nietzsche e Foucault. Foucault


não só teve contato próximo com a temática da loucura como foi dado por louco em mais de
uma oportunidade. Proximidade pela temática que se torna evidente em “A História da
Loucura na Idade Clássica” e em “Eu, Pierre Rivière”, onde, principalmente, o discurso
médico e o jurídico se digladiam para que o vencedor credite ou não a loucura ao sujeito.
Também em “Ditos e Escritos: volume IV” no que se refere ao caso do paciente chamado
“Roger”, de 22 anos, tido por Foucault como “inteligente”, “excepcional”, “mas
incontrolável”, incontrolável pela “loucura”.
“Roger” foi submetido a uma lobotomia frontal, passando a ter uma “existência
vegetativa”. Por óbvio, essas e outras experiência impactaram muito na formação de Foucault,
além das que ele mesmo sofreu:

Dois anos após ingressar na École, Foucault se encontra, pois, no hospital


Sainte-Anne, no consultório do dr. Delay, uma das sumidades da psiquiatria
francesa. Quem o levou foi o dr. Foucault, seu pai. Primeiro contato com a
instituição psiquiátrica. Primeira aproximação também dessa linha instável
que, talvez menos radicalmente do que se julga, separa o “louco” do
“equilibrado”, o doente mental do são de espírito (ERIBON, 1990, p.41).

Há relatos que Nietzsche enlouqueceu em dado momento de sua vida. Loucura que
poderia ser oriunda de diversos agentes, como a “paralisia geral do insano” (sífilis com
consequências em distúrbios mentais); os dissabores do relacionamento com sua mãe e irmã
(irmã essa que inclusive alterou parte da obra do filósofo após sua morte); a falta de
reconhecimento em seu meio (há até hoje quem discuta se ele foi realmente um filósofo); ou
mesmo amores não correspondidos, o maior deles, o da filósofo russa, Lou Salomé.
Diante disso há possibilidade do questionamento do quanto o pensamento de
Nietzsche e, por conseguinte suas obras, foram impactados pela dita loucura ou mesmo se
seria possível separar temporalmente o período em que o autor esteve sadio e o em que a
loucura teria sobrepujado o sujeito. Todavia, para Foucault, parece que isso realmente tem
outro significado:

Doravante, e através da mediação da loucura, é o mundo que se torna


culpado (pela primeira vez no mundo ocidental) aos olhos da obra [...]. É por
isso que pouco importa saber quando se insinuou no orgulho de Nietzsche,
na humildade de Van Gogh, a voz primeira da loucura. Só há loucura como
instante último da obra - esta a empurra indefinidamente para seus confins;
ali onde há obra, não há loucura; e no entanto a loucura é contemporânea da
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obra, dado que ela inaugura o tempo de sua verdade (FOUCAULT, 2017,
p.530).

Friedrich Nietzsche, Paul-Michel Foucault, Vincent Van Gogh, Francisco Goya,


Ludwig van Beethoven, Edvard Munch; não são poucos os casos em que a loucura foi
contemporânea da obra e indissociável de seus autores. Mas conceituar a loucura seria
possível? Delimitar seu início e seu término quase que como numa escala seria factível? O
que seria verdadeiro? Há verdade na loucura? Há loucura na verdade? A verdade exige um
valor superior e que teria poder para delimitar a loucura e, por conseguinte, a razão. O valor
que se atribui à verdade é questionado por Nietzsche. Para Foucault, Nietzsche desenvolveu
ideias/ferramentas fantásticas. Uma delas é a crítica do ideal de verdade, do valor que se
atribui à verdade.
Nietzsche dizia não refutar os ideais, mas calçar luvas diante deles e que a verdade
fora até então proibida. Foucault, por sua vez, diz que no que menos se fala é na verdade e a
razão talvez seja que se “o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos,
aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na
vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder?”
(FOUCAULT, 2014a, p.19). Não se deve procurar a verdade dentro do próprio campo.
Para Nietzsche o problema da ciência não seria resolvido na própria ciência, pois
haveria a necessidade de consideração de outros valores. Haja vista, inclusive, outra
dificuldade bastante relevante apontada por Nietzsche dada a questão da verdade, que é a
interpretação e o intérprete. Também para o filósofo a interpretação permaneceria sem acabar.
E, assim como aponta em outro momento, Nietzsche refere que interpretações são
prisioneiras uma das outras, ou seja, não haveria interpretação original. “Não há para
Nietzsche um significado original. As mesmas palavras não são senão interpretações, ao
longo da sua história, antes de se converterem em símbolos, interpretam, e têm significado,
finalmente, porque são interpretações essenciais (FOUCAULT, 1997, p.23-24).
E uma das ideias mais duras do filósofo alemão era de que as palavras sempre foram
inventadas por classes superiores e que por isso não indicavam um significado, mas a
imposição de uma interpretação. Isso seria uma espécie de violência e formaria uma grande
rede de interpretações violentas, pois para ele não seriam os símbolos primários que exigiriam
a dedicação da interpretação, mas o fato de que interpretações não cessam de nascer. Seria
então a verdade interpretativa? Estaria com o intérprete? Onde estaria? Foucault se disse por
vezes arqueólogo; escavava para encontrar o “verdadeiro”. Diz Foucault:
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É que se o intérprete deve ir pessoalmente até o fundo como um escavador, o


movimento de interpretação é pelo contrário, o duma avalanche, o duma
avalanche cada vez maior, que permite que por cima de si se vá despregado a
profundidade de forma cada vez mais visível; e a profundidade torna-se
então um segredo absolutamente superficial [...] (FOUCAULT, 1997, p.19).

E nessa busca pela verdade, nessa relação entre intérprete e interpretação, cita
Nietzsche em “Ecce Homo”: “uma coisa sou eu, outra os meus livros”.

4. Genealogia da Moral e Genealogia de Foucault


Havia em Nietzsche uma questão bastante importante: como pensar a moral sem estar
na dependência de seus pressupostos? A tarefa, inédita segundo o filósofo, seria a de pensar
preconceitos morais fora da moral; algo para além de bem e de mal:

Essa posição exterior à moral, esse para além da moral é a vontade de


potência. O projeto genealógico – daí toda sua relevância e ambição – é uma
tentativa de superação da metafísica através de uma história descontínua dos
valores morais que investiga tanto a origem, compreendida como
nascimento, como invenção, quanto o valor desses valores (MACHADO,
2017, p.83).

O fato de Nietzsche não acreditar em valores eternos, mas sim que os valores são
históricos, fez com que o filósofo compreendesse a genealogia como uma reflexão filosófica
ligada à história. Discordava de que os valores dados como reais estão além da possibilidade
de questionamento; os valores seriam historicamente e socialmente produzidos. “A genealogia
tem por objetivo pôr em questão o próprio valor desses valores pelo conhecimento das
condições de seu nascimento, desenvolvimento e modificação” (MACHADO, 2017, p.86).
Essa desconfiança de Nietzsche apresenta outra importante visão do autor. A suspeita,
a desconfiança com relação aos valores criados pelo próprio homem, se dão por causa do
niilismo. E por quê?

[...] porque o niilismo é a lógica de nossos valores e de nossos ideais, o


motor de nossa história. E mesmo que a história tenha conhecido vários
sentidos do niilismo, todos eles são decorrência de um primeiro sentido: a
desvalorização da vida em nome dos valores superiores. Tendência que
remonta longe e que levará a filosofia genealógica, na tentativa de investigar
sua origem, a privilegiar a crítica dos valores filosóficos (MACHADO,
2017, p.120).

No que tange a investigação da origem, o filósofo alemão preza por uma interessante
distinção: a de origem e a de invenção. “Quando fala de invenção, Nietzsche tem sempre em
mente uma palavra que opõe a invenção, a palavra origem. Quando diz invenção é para não
dizer origem; quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung” (FOUCAULT, 2002, p.14).
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Como exemplo Nietzsche cita a religião, que não teria origem, mas sim seria produto
de uma invençã em dado momento; foi fabricada. Ou seja, não haveria Ursprung da religião,
mas sim uma Erfindung. Nietzsche salienta um erro que Schopenhauer cometera:

Nietzsche diz que Schopenhauer cometeu o erro de procurar a origem –


Ursprung – da religião em um sentimento metafísico, que estaria presente
em todos os homens e conteria, por antecipação, o núcleo de toda religião,
seu modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial (FOUCAULT, 2002,
p.15).

E essa crítica da invenção, como explica Foucault em “Microfísica do Poder”, faz com
que o Nietzsche genealogista recuse em certas ocasiões a pesquisa da origem (Ursprung). E o
próprio francês compreende que a pesquisa nesse viés se esforça para recolher a essência
exata da coisa pesquisada, sua mais pura forma, em detrimento dos episódios de sua história.
Fazer genealogia seria fazer justamente o contrário, no sentido de “[...] se demorar nas
meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória
maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro (FOUCAULT,
2015b, p.60-61). Entretanto, para Foucault, termos como Entestehung ou Herkunft marcam
melhor do que Ursprung o objeto próprio da genealogia. Podem ser traduzidos por “origem”,
mas com articulações próprias.
Herkunft, é o “tronco de uma raça”, a proveniência, o pertencimento a um grupo. O
desafio é descobrir as marcas singulares e individuais “[...] que podem se entrecruzar nele e
formar uma rede difícil de desembaraçar; longe de ser uma categoria da semelhança, tal
origem permite ordenar, para colocá-las a parte, todas as marcas diferentes” (FOUCAULT,
2015b, p.62). Se está agora diante de Entestehung, a preferência, o ponto de surgimento, o
aparecimento. Mas não se deve procurá-la em uma continuidade, sem interrupção. Instiga
Foucault ao questionamento se o olho teria surgido para contemplação ou o castigo para dar
exemplo. Ou seja, questiona a razão direta entre sua origem e o significado, interpretação ao
longo do tempo, da história:

Esses fins, aparentemente últimos, não são nada mais do que o atual episódio
de uma série de submissões: o olho foi primeiramente submetido à caça e à
guerra; o castigo foi alternadamente submetido à necessidade de se vingar,
de excluir o agressor, de se libertar da vítima, de aterrorizar os outros
(FOUCAULT, 2015b, p.65-66).

Sabendo-se das posições de Nietzsche contra a história, quais seriam as relações entre
a genealogia definida como pesquisa de Herkunft e de Entestehung e o que se chama
habitualmente história? Segundo Foucault:
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Sabe-se das apóstrofes célebres de Nietzsche contra a história, e será preciso


voltar a elas agora. Contudo, a genealogia é designada por vezes como
“Wirkliche Historie”; em várias ocasiões ela é caracterizada pelo “espírito”
ou “sentido histórico”. De fato, o que Nietzsche não parou de criticar desde a
segunda das Considerações extemporâneas é esta forma histórica que
reintroduz (e supõe sempre) o ponto de vista supra-histórico: uma história
que teria por função recolher, em uma totalidade bem fechada sobre si
mesma, a diversidade, enfim reduzida, do tempo [...] (FOUCAULT, 2015b,
p.70-71).

Foucault explica que com Platão teve início o grande mito ocidental da antinomia
entre saber e poder. O saber deveria renunciar o poder; onde há o encontro entre saber e
ciência, o poder deveria deixar de existir; poder político. Esse mito começa a ser demolido por
Nietzsche, que evidencia em diversas partes de sua obra que por trás de todo conhecimento, o
que está em jogo é a luta pelo poder; o poder é tramado com o saber. Nietzsche, o filósofo do
poder! Para Foucault poder, saber e ainda, sujeito, são indissociáveis.
Diante do exposto não fica difícil compreender mais essa faceta de interesse de
Foucault por Nietzsche. Na chamada “fase genealógica” de Foucault, o francês aborda
principalmente a questão do poder e a genealogia como forma de analisá-lo; compreendê-lo.
Em 1971 com “Nietzsche, a genealogia, a história” deu um importante passo nessa direção.
Para o filósofo francês não haveria algo unitário e global a ser chamado de poder. O poder
seria uma prática social construída ao longo da história. Não haveria quem o detivesse ou
mesmo quem fosse alijado dele; o poder está em todos, está nas relações. Opera, produz,
circula; é celular. Onde há poder, há resistência.
Foucault afirmava que seu desejo era de compreender sistemas implícitos que
determinaram nossas condutas, mesmo as mais familiares, atribuindo-lhes uma origem,
evidenciando sua formação e a coação que acabam por impor. E, justamente por isso, o
genealogista deveria destruir as verdades inquestionáveis, fazendo emergir o jogo das
vontades, sujeição, luta e estratégias de dominação. O poder permeou a maior parte da obra de
Foucault e não se deve ignorar a influência de Nietzsche nesse aspecto:

O interesse de Foucault pelo poder tem sua origem aqui: na vigilância, na


atenção e no interesse com que ele seguia o que Nietzsche denominava "die
grosse Politik": a ascensão dos fascismos em quase toda parte no mundo, as
guerras civis, a instauração das ditaduras militares, os objetivos geopolíticos
opressivos das grandes potências (FOUCAUL, 2005, p.343-344).

E esse interesse pelo poder permeou a quase totalidade da obra de Foucault. Mesmo
que esse filósofo não tenha separado sua obra em duas fases, é comum atribuir ao mesmo a
fase arqueológica (primeira) e a genealógica (segunda); a segunda “mais orientada” para a
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questão do poder. Em sua primeira grande obra Foucault já se relaciona com o poder, mesmo
dentro da chamada “fase arqueológica”:

Assim, na História da loucura procurou detectar o “tipo de poder que a


razão não cessou de querer exercer sobre a loucura, do século XVII até nossa
época”. Em O nascimento da clínica, procurou definir que “o fenômeno da
doença constituiu, para a sociedade, para o Estado, para as instituições do
capitalismo (...), uma espécie de desafio ao qual foi preciso responder
através de medidas de institucionalização da medicina”. Foucault inclui seu
livro As palavras e as coisas – aparentemente o mais teórico e distante da
política – também da discussão desse problema. Esse livro, diz ele, é um
pouco isto, “o balizamento dos mecanismos de poder no interior dos
próprios discursos científicos: a qual regra somos obrigados a obedecer, em
uma certa época, quando se quer ter um discurso científico (...) sobre a
história natural, sobre a economia política? (...) É toda essa ligação do saber
e do poder, mas tomando como ponto central os mecanismos de poder, é
isso, no fundo, o que constitui o essencial do que eu quis fazer” (MOTTA,
2015a, p.XII).

E mesmo quando não falou sobre o poder, reconhece que poderia ou mesmo, deveria:
“Quando agora penso nisso, pergunto-me de que poderia ter falado, na História da loucura ou
no Nascimento da clínica, senão do poder” (FOUCAULT, 2015b, p.41-42). Foucault herda de
Nietzsche a genealogia e a analítica do poder e a leva por toda a sua vida e sua obra. Hoje, aos
leitores mais novos, é possível que pudesse soar mais harmonicamente: “Foucault, o filósofo
do poder”. Todavia, é importante saber que foi o filósofo alemão importante construtor dessa
quase obstinação foucaultiana.

5. Considerações Finais
Nietzsche é um autor denso! Seu legado conta com vasta obra: “Genealogia da
Moral”, “A Gaia Ciência”, “Além do Bem e do Mal”, “O Anticristo”, “O Crepúsculo dos
Ídolos”, “Ecce Homo”, “Assim falou Zaratustra” e outras. Obras essas que apresentam
“pesos” diferentes e, portanto, podem ser a priori, mais palatáveis ou não. Dependendo do
interesse do leitor, o próprio Nietzsche apresenta uma sugestão:

Este escrito, que nem chega a cento e cinquenta páginas, sereno e fatal no
tom, é um demónio que ri – a obra foi escrita em tão poucos dias que hesito
em dizer o seu número e constituí uma excepção entre os livros em geral:
nada há de mais substancioso, de mais independente, de mais revolucionário
– e de mais maligno. Se alguém quiser, brevemente, ter uma ideia de como,
perante mim, tudo estava de cabeça para baixo, que comece por ler este
escrito. Aquilo que o título refere como ídolos é simplesmente o que, até
agora, se chamou verdade. Crepúsculo dos ídolos – em vernáculo: fim da
velha verdade... (NIETZSCHE, 2008, p.92).
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Outra opção é justamente a dada nesse artigo: conhecer Nietzsche por Foucault.
Logicamente que não se pode fazê-lo na íntegra; não é essa a proposta. A proposta é a de que,
por meio de um autor fortemente impactado por Nietzsche, pode-se perceber, compreender,
parte das ideias do filósofo alemão. E em sendo o filósofo francês um pensador destacado em
nosso tempo, significa dizer que ao ter Nietzsche como relevante referência, isso por si
corrobora para demonstrar a importância do mesmo. E, como já citado nessa pesquisa, quando
Foucault diz que era “historicista” e hegeliano até ler Nietzsche, estabelece-se um importante
divisor conceitual para o francês; isso não é pouca coisa. Impressionar Foucault não era tarefa
fácil, o que dirá desnorteá-lo e norteá-lo para outro caminho.
Novamente: por que começar a entender Nietzsche não por ele, mas por Foucault?
Nietzsche buscou o equilíbrio entre Apolo e Dionísio, ou seja, entre a razão e a emoção.
Entendia que a verdadeira luta que se trava é a interna. Que somos parte do mundo e o que
fazemos altera o conjunto. Não acreditava em ação desinteressada, nem mesmo no altruísmo;
tudo tinha um interesse intrínseco. Destacou fortemente o impacto da moral judaico-cristã em
nosso mundo; pois o poder que se estabeleceu no mundo seria o “poder da fraqueza” e não o
da força. Dos fracos e dos oprimidos é o “reino dos céus”.
Essa fraqueza não trazia a ideia de superação de si; muito menos a de super-homem,
ou seja, aquele que se supera, que se reinventa e não aceita que tudo está pronto. O super-
homem não é o “detentor do poder”, não é o general que comanda soldados e armas. O super-
homem vai ao campo de batalha. Nietzsche não suportava a forma como Sócrates e Platão
moldaram a maneira de interpretar o homem e o mundo; o alemão bateu muito em Platão.
Filólogo que de forma magistral lidava com as palavras, suas origens e significados, talvez
tenha dado a estocada final ao dizer: “Não sou um homem, sou dinamite!”. Nietzsche é denso!
Melhor é calçar, no começo da caminhada para Nietzsche, os sapatos de Foucault.
E, se for pensar o poder, importante é caminhar com os dois, aproximando-os e
extraindo o melhor de cada um e, principalmente, a sinergia entre ambos. Por Foucault será
possível compreender parte da profundidade do filósofo alemão, que justifica, inclusive, a
própria densidade da formação do francês. Compreender a loucura que os permeou e a suas
obras, além de criticar a verdade da loucura e a loucura que seria acreditar numa verdade
incontestável. Também será possível aprender a cavar ou a provocar avalanches, que trarão à
tona o que até então estava, não necessariamente soterrado, mas propositalmente escondido,
por trás de uma aparente insignificância que em verdade traria certa verdade. Foucault e
Nietzsche formam, sem dúvida, uma bela dupla.
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Referências

DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para
além do estruturalismo e da hermenêutica. Introdução traduzida por Antonio Cavalcanti Maia.
Tradução de Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2013.

ERIBON, Didier. Michel Foucault (1926-1984). Tradução de Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24.
ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014a.

__________, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo


Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002.

__________, Michel. Ditos e escritos: volume VII: arte, epistemologia, filosofia e história da
medicina. Organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Tradução de Vera
Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016a.

__________, Michel. Ditos e escritos: volume IV: estratégia, poder-saber. Organização,


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Avellar Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015a.

__________, Michel. Ditos e escritos: volume X: filosofia, diagnóstico do presente e


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