Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo: Este texto pretende situar Les mots et les choses (MC) no pen-
samento crítico de Foucault. Para tanto, três eixos de análise são apre-
sentados. Um eixo contextual, que apresenta duas tendências da tra-
dição filosófica francesa com a qual a obra se articula. Um eixo te-
mático, que avalia a crítica à fenomenologia e ao estruturalismo em
MC. Um eixo crítico, que considera que Foucault atribui à crítica uma
experiência-limite. Assim, MC propõe um pensamento crítico à me-
dida que qualifica um diagnóstico do presente que expresse o ethos
filosófico da atualidade: pensar acerca de nós mesmos novamente.
Palavras chave: Foucault. Pensamento crítico. Fenomenologia.
Estruturalismo.
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178 157
ISSN: 2317-9570
JEFFERSON MARTINS CASSIANO
ção apenas por inovar com o mé- ção do autor parece ser questio-
todo arqueológico ou pela polê- nável. Nesse sentido, MC fre-
mica ‘morte do homem’ que sus- quentemente se encontra associ-
cita, mas também pela abundância ada ao movimento (pós-) estrutu-
dos temas e abrangência das refle- ralista, embora por vezes Foucault
xões envolvidas. Este último as- garanta que não é disso que se
pecto referente à obra possui re- trata3 . Pois bem, se em certa me-
lação com a tradição da filoso- dida a obra MC abrange e se de-
fia francesa herdada por Foucault. senvolve a partir dessa relação com
Publicada em 1966, MC é uma o paradigma da filosofia francesa,
obra que se destina à abordagem Foucault não deixa de surpreender
epistemológica francesa da história quando, próximo ao final de seu
das ciências, iniciada pelas pesqui- percurso filosófico, se diz compro-
sas de Bachelard, Koyré, Cavaillès, metido com uma tradição crítica
Serres e principalmente Cangui- kantiana, a qual o autor chama de
lhem2 , tal como Foucault define uma ontologia crítica de nós mes-
pelo subtítulo de MC: uma arque- mos4 .
ologia das ciências humanas. No A disposição de Foucault em
entanto, pode-se perceber em MC avaliar sua filosofia como um pen-
várias implicações decorrentes da samento crítico adquire maior im-
análise de Foucault, entre elas a portância a partir dos escritos e
de que o método arqueológico pre- cursos de 19785 , período em que
tende ser capaz de se distinguir o autor se interessa pelo estudo
tanto de uma fenomenologia he- das relações e práticas de si cons-
gemônica quanto de um estrutu- tituintes do sujeito6 moral. Nesse
ralismo emergente. Pode-se di- momento, observa-se que Foucault
zer que as objeções colocadas à fe- define a crítica em termos de ati-
nomenologia são evidentes (MC, tude, qual seja: tomar consciên-
cap.IX); no entanto, no que con- cia de si mesmo pelo diagnóstico
cerne ao estruturalismo, a posi- do presente e transformar o pensa-
158 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178
ISSN: 2317-9570
O PENSAMENTO CRÍTICO DE FOUCAULT
7 Sobre o diagnóstico do presente, Cf. FOUCAULT, Qui êtes-vous professeur Foucault, DE I; FOUCAULT, La scène
de la philosophie, DE III. Sobre as formas de problematização, Cf. FOUCAULT, À propos de la généalogie de l’éthique,
DE IV; FOUCAULT, Le souci de la vérité, DE IV.
8 Esta mesma temática é abordada por CASTRO, Pensar a Foucault, 1995.
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178 159
ISSN: 2317-9570
JEFFERSON MARTINS CASSIANO
9 Cf. FOUCAULT, Introduction a Binswanger: Le rêve et l’existence, DE I. Cf. MAY, Foucault’s relation to phenome-
nology, 2006.
10 Uma argumentação divergente a esta apresentada por Béatrice Han é realizada por Gérard Lebrun (1992,
p.21), ao propor que MCseja lida como uma obra “anti-Krisis”, alegando três fatores: a) a fenomenologia não te-
ria sido capaz de compreender a natureza do discurso clássico; b) a fenomenologia não estaria à altura de fazer
justiça a Kant; c) a fenomenologia não seria a continuação de um antigo projeto da racionalidade europeia. Cf.
LEBRUN, Notes on phenomenology in Les mots et les choses, 1992.
160 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178
ISSN: 2317-9570
O PENSAMENTO CRÍTICO DE FOUCAULT
11 Vale ressaltar que MCindica uma posição contrária a Krisis der europäischen wissenschaften(1936) de Husserl,
pois enquanto Husserl entende a fenomenologia a partir da concepção de uma totalidade histórica da racionali-
dade europeia, por seu turno, Foucault identifica que a fenomenologia pôde ser concebida a partir de uma des-
continuidade entre os pensamentos clássico e moderno.
12 Cf. FOUCAULT, Structuralisme et post-structuralisme, DE IV.
13 Segundo Foucault, Critique de la raison dialectiquede Sartre representa o magnífico e patético esforço de um
homem do século XIX em pensar o século XX. Cf. FOUCAULT, L’Homme est-il mort?, DE I.
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178 161
ISSN: 2317-9570
JEFFERSON MARTINS CASSIANO
162 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178
ISSN: 2317-9570
O PENSAMENTO CRÍTICO DE FOUCAULT
15 Cf. FOUCAULT, L’ordre du discours, 1971, p.73; FOUCAULT, Les vérités et les formes juridiques, DE II.
16 Com relação a este assunto em questão e seu interesse na produção acadêmica,Cf. Cristina MICIELI, Fou-
cault y la fenomenología(Editorial Biblos, 2003); Mauro VALLEJO, Michel Foucault y el estructuralismo: un sacerdocio
apócrifo(Ediciones del Signo, 2011).
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178 163
ISSN: 2317-9570
JEFFERSON MARTINS CASSIANO
164 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178
ISSN: 2317-9570
O PENSAMENTO CRÍTICO DE FOUCAULT
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178 165
ISSN: 2317-9570
JEFFERSON MARTINS CASSIANO
166 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178
ISSN: 2317-9570
O PENSAMENTO CRÍTICO DE FOUCAULT
ainda o aspecto de que estas ins- nado por uma filosofia da expe-
tituições são invariáveis ao sentido riência, desenvolvida desde Berg-
do homem, e por essa razão, o pró- son e consolidada pela fenomeno-
prio sentido se torna anacrônico. logia existencial de Sartre na dé-
Enfim, ao colocar em questão a re- cada de 1940. Em MC (p.332),
lação entre sujeito e sentido que se Foucault se refere à fenomenologia
desenvolve como se fosse um back- como uma filosofia da experiência-
ground de MC, torna-se mais ní- vécu, classificando-a como um dis-
tida a afirmação de Foucault (MC, curso de origem mista, já que ex-
p.312): “o estruturalismo e a fe- pressa o homem pela tentativa de
nomenologia encontram aqui [na articular o domínio da natureza, o
analítica da finitude], com sua dis- corpo perceptivo, com o domínio
posição própria, o espaço geral que da história e sua semântica cultu-
define seu lugar-comum”. ral. Para Foucault, a busca da fe-
O segundo ponto desse comen- nomenologia pela experiência-vécu
tário pretende identificar o ob- pode ser vista como uma terceira
jeto de análise pertinente às sujei- via da analítica da finitude, uma
ções antropológicas denunciadas forma de conhecimento que tenta
por Foucault. Uma vez que a fe- contestar tanto o positivismo ló-
nomenologia e o estruturalismo se gico quanto a práxis escatológica
mantêm em relação oposta quanto do homem. Nesse sentido, a
ao trato da questão entre sujeito e tentativa de fundamentar a sub-
sentido, pode-se inferir que esta si- jetividade em uma ambivalência
tuação também se repete na sec- natureza-história da experiência-
ção entre a experiência do conheci- vécu reproduz a duplicidade do es-
mento subjetivo (hermenêutica de tado empírico-transcendental que
si) e objetivo (semiologia da cul- rege a épistémè da modernidade.
tura) do homem. Assim, pode- Quanto ao estruturalismo, pode-
se dizer que a objeção foucauldi- se dizer que mantém seu discurso
ana se organiza em torno à expe- sobre uma experiência do conheci-
riência do conhecimento como ob- mento da ordem, isto é, uma ex-
jeto de análise. Durante a for- periência na qual o homem deter-
mação acadêmica de Foucault, o mina o saber sobre si em relação
pensamento francês estava domi- com os comportamentos sociocul-
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178 167
ISSN: 2317-9570
JEFFERSON MARTINS CASSIANO
22 Uma das críticas mais contundente de Foucault ao estruturalismo se refere à formalização do pensamento, o
predomínio do método matemático sobre a experiência, caso de Husserl com a fenomenologia e de Levi-Strauss
com o estruturalismo. Cf. FOUCAULT, Structuralisme et post-structuralisme, DE IV. Cf. CASTRO, Pensar a Foucault,
p.159-83.
23 Cf. FOUCAULT, L’ordre du discours(1970); Surveiller et punir(1975); La volonté du savoir(1976).
168 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178
ISSN: 2317-9570
O PENSAMENTO CRÍTICO DE FOUCAULT
24 O interesse de Foucault pela crítica e pela antropologia de Kant precede MC; em sua tese complementar ao
doutoramento, Foucault apresenta uma tradução, acompanhada de introdução e notas, sobre Anthropologie du
point de vue pragmatique, de Kant. Sobre a relação entre crítica e verdade em Foucault, Cf. CANDIOTTO, Foucault
e a crítica da verdade, 2010.
170 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178
ISSN: 2317-9570
O PENSAMENTO CRÍTICO DE FOUCAULT
25 Cf. FOUCAULT, L’archéologie du savoir, 1969, p.167. Cf. HAN, The analytic of finitude and the history of subjec-
tivity, 2006.
26 Cf. FOUCAULT, Préface à la transgression, DE I; FOUCAULT, La pensée du dehors, DE I.
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178 171
ISSN: 2317-9570
JEFFERSON MARTINS CASSIANO
que o indivíduo possa pensar fora gressão, quer dizer, a partir uma
de si mesmo, isto é, para além crítica sobre si mesmo. Em
dos limites fixados por modos de MC (p.353), esta relação limite-
ser previamente definidos: passar transgressão se apresenta no co-
daquilo o que se é na consciên- mentário de Foucault à crítica fi-
cia por meio daquilo que se pra- lológica feita por Nietzsche, a qual
tica na linguagem. Segundo Fou- percebe que a experiência da morte
cault, a ideia de uma experiência- do Deus-metafísico e o desapareci-
limite corresponde a um processo mento do sujeito universal se im-
de dessubjetivação que pretende plicam. Logo, se para Foucault
arrancar o sujeito de si mesmo, cabe a Kant a ‘inauguração’ da épis-
impedi-lo de ser o mesmo; trata- témè moderna, isso se deve ao fato
se de “uma experiência [que] é de a crítica kantiana colocar em
algo do qual saímos transforma- causa uma reflexão entre existên-
dos”27 . Não é a autenticidade do cia e finitude, crítica e limite. No
sujeito da experiência-vécu, mas a entanto, segundo Foucault, “o pró-
necessidade de sua transformação prio Kant acabou novamente por
pela experiência-limite, o ponto fechar esta abertura ao reduzir, no
que tangencia o pensamento crítico fim das contas, todo questiona-
de Foucault. Portanto, se opõe a mento crítico a uma questão an-
linguagem à consciência na tenta- tropológica [o que é o homem?]”30 .
tiva de fazer da experiência-limite Com isso, percebe-se que Foucault
uma antologia de existências28 . extrai a ‘morte do homem’ das pró-
prias consequências de um pen-
Nesse sentido, o limite não deve
samento que acessa a experiên-
determinar a experiência do modo
cia do limite e da transgressão.
de ser do homem, pois para Fou-
Então, as sujeições antropológicas
cault29 o limite somente pode ser
contestadas pela arqueologia sur-
pensado em relação à sua trans-
27 FOUCAULT, Entrevue avec Michel Foucault, DE IV, p.41. A esse respeito, Cf. PELBART, O avesso do niilismo,
2013, p.207-32. Sobre o desenvolvimento e a importância do conceito de experiência na filosofia de Foucault, Cf.
GUTTING, Foucault’s philosophy of experience, 2002, p.69-85.
28 Cf. FOUCAULT, La vie des hommes infames, DE III. Poder-se-ia dizer que neste texto ensaístico de 1978, Fou-
cault trata da experiência-limite ao examinar as práticas com relação à verdade dos discursos do Saber que ope-
ram sobre a determinação do que se considera subversivo, escandaloso, infame.
29 Cf. FOUCAULT, Préface à la transgression, DE I.
30 FOUCAULT, Préface à la transgression, DE I, p.239.
172 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178
ISSN: 2317-9570
O PENSAMENTO CRÍTICO DE FOUCAULT
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178 173
ISSN: 2317-9570
JEFFERSON MARTINS CASSIANO
33 Nas últimas duas décadas de pesquisas acerca da obra foucauldiana, vale destacar o interesse pelo aspecto
que a crítica adquire em seu pensamento: Rudy VISKER, Genealogy as critique (Verso,1995); Michael KELLY (ed.),
Critique and Power, recasting the Foucault/Habermas debate (MIT Press, 1995);Jean-François BERT; Jérôme LAMY,
Michel Foucault: un héritage critique (CNRS Éditions, 2014); Béatrice HAN, Foucault’s critical project (Stanford Uni-
versity Press, 2002); Judith BUTLER, What is critique? (Blackwell Publishing, 2002); Thomas BOLMAIN, Expéri-
ence et critique (Université de Liège, 2010); Thomas LEMKE, Critique and experience in Foucault (Theory culture
& society, 2011); Javier de la Higuera ESPÍN, Michel Foucault: la filosofía como crítica (Editorial Comares, 1999);
Collin KOOPMAN, Historical critique or transcendental critique in Foucault (Indiana University Press, 2010); César
CANDIOTTO, Foucault e a crítica da verdade (Champagnat, 2010).
174 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178
ISSN: 2317-9570
O PENSAMENTO CRÍTICO DE FOUCAULT
Referências bibliográficas
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.1, Jul. 2017, p.157-178 177
ISSN: 2317-9570