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O Pensamento Crítico de Foucault

Crítica da fenomenologia e do estruturalismo em Les Mots et les Choses

Foucault’s Critical Thought


The Critique of Phenomenology and Structuralism in Les Mots et les Choses

Jefferson Martins Cassiano*

Resumo: Este texto pretende situar Les mots et les choses (MC) no pen-
samento crítico de Foucault. Para tanto, três eixos de análise são apre-
sentados. Um eixo contextual, que apresenta duas tendências da tra-
dição filosófica francesa com a qual a obra se articula. Um eixo te-
mático, que avalia a crítica à fenomenologia e ao estruturalismo em
MC. Um eixo crítico, que considera que Foucault atribui à crítica uma
experiência-limite. Assim, MC propõe um pensamento crítico à me-
dida que qualifica um diagnóstico do presente que expresse o ethos
filosófico da atualidade: pensar acerca de nós mesmos novamente.
Palavras chave: Foucault. Pensamento crítico. Fenomenologia.
Estruturalismo.

Abstract: This text intends to situate The Order of Things (OT)


in the Foucault’s critical thought. Thus three axes of analysis are
presented. In the contextual axis is showed two tendencies of French
philosophical tradition with which the book articulates. In the
thematic axis is evaluated the critique of both phenomenology and
structuralism in OT. In the critical axis is considered that Foucault
attributes a limit-experience to the critique. In this sense, OT propo-
ses a critical thought insofar as it predicates a diagnostic of our time
that expresses the philosophical ethos of actuality: to think about
ourselves again.
Key words: Foucault. Critical Thought. Phenomenology. Structura-
lism.

Introdução les Choses (doravante MC) é uma


Recentemente a obra Les Mots et les das obras mais bem-sucedidas de
Choses (1966), de Michel Foucault, Foucault, tanto no campo edito-
completou cinquenta anos de pu- rial quanto nos círculos de intelec-
blicação; sabe-se que Les Mots et tuais1 . A obra não chama aten-

* Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB)


1 Segundo DOSSE (1991), MCobteve mais de 20.000 exemplares vendidos até o final de 1966. Sobre a recepção
de MCe seus primeiros intérpretes, Cf. ARTIÈRES, Les mots et les choses de Foucault, 2009.

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ção apenas por inovar com o mé- ção do autor parece ser questio-
todo arqueológico ou pela polê- nável. Nesse sentido, MC fre-
mica ‘morte do homem’ que sus- quentemente se encontra associ-
cita, mas também pela abundância ada ao movimento (pós-) estrutu-
dos temas e abrangência das refle- ralista, embora por vezes Foucault
xões envolvidas. Este último as- garanta que não é disso que se
pecto referente à obra possui re- trata3 . Pois bem, se em certa me-
lação com a tradição da filoso- dida a obra MC abrange e se de-
fia francesa herdada por Foucault. senvolve a partir dessa relação com
Publicada em 1966, MC é uma o paradigma da filosofia francesa,
obra que se destina à abordagem Foucault não deixa de surpreender
epistemológica francesa da história quando, próximo ao final de seu
das ciências, iniciada pelas pesqui- percurso filosófico, se diz compro-
sas de Bachelard, Koyré, Cavaillès, metido com uma tradição crítica
Serres e principalmente Cangui- kantiana, a qual o autor chama de
lhem2 , tal como Foucault define uma ontologia crítica de nós mes-
pelo subtítulo de MC: uma arque- mos4 .
ologia das ciências humanas. No A disposição de Foucault em
entanto, pode-se perceber em MC avaliar sua filosofia como um pen-
várias implicações decorrentes da samento crítico adquire maior im-
análise de Foucault, entre elas a portância a partir dos escritos e
de que o método arqueológico pre- cursos de 19785 , período em que
tende ser capaz de se distinguir o autor se interessa pelo estudo
tanto de uma fenomenologia he- das relações e práticas de si cons-
gemônica quanto de um estrutu- tituintes do sujeito6 moral. Nesse
ralismo emergente. Pode-se di- momento, observa-se que Foucault
zer que as objeções colocadas à fe- define a crítica em termos de ati-
nomenologia são evidentes (MC, tude, qual seja: tomar consciên-
cap.IX); no entanto, no que con- cia de si mesmo pelo diagnóstico
cerne ao estruturalismo, a posi- do presente e transformar o pensa-

2 Cf. FOUCAULT, La vie: l’experiénce e la science, DE IV.


3 Cf. FOUCAULT, L’ordre du discours, 1971.
4 Cf. FOUCAULT, Le gouvernement de soi et des autres, 2008, p.22.
5 Cf. FOUCAULT, What is critique? Critique and Aufklärung, 2007.
6 Cf. FOUCAULT, Le sujet et le pouvoir, DE IV.

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mento em atitude crítica por meio MC se articula.


de formas de problematização7 . Di-
agnóstico do presente e formas de Eixo contextual: o espólio da filo-
problematização são noções impor- sofia francesa
tantes observadas por Foucault e
correspondem ao modo como o au- Um dos mais importantes traba-
tor compreende o exercício filosó- lhos de contextualização da rela-
fico. Por essa razão, são também ção entre fenomenologia e estru-
aspectos constituintes do que se turalismo na filosofia de Foucault
entende por pensamento crítico na encontra-se no conhecido comen-
filosofia de Foucault. Enfim, se o tário de Dreyfus e Rabinow, Michel
pensamento crítico pode ser perti- Foucault beyond structuralism and
nente a toda filosofia foucaultiana, hermeneutics8 . Os autores afirmam
para os devidos fins desse texto, que, por um lado, Foucault tenta
deve-se limitar o assunto. Ao re- evitar a análise estruturalista que
alizar uma análise de MC, Sabot isola a noção de sentido; por ou-
(2014, p.149-50) constata o projeto tro lado, tenta desvencilhar-se do
de um pensamento crítico, ao con- projeto fenomenológico de atrelar
cluir que “o que está em jogo nestas todo sentido à intencionalidade de
análises [sobre MC], que levam ao um sujeito. A alternativa foucaul-
seu termo o projeto de uma ‘arque- diana encontra-se na arqueologia
ologia das ciências humanas’, é cla- das práticas discursivas, que Drey-
ramente crítico”. Portanto, propo- fus e Rabinow (1995, cap.III) clas-
nho o exame da seguinte questão: sificam como ‘uma fenomenologia
em que medida a obra MC contri- para findar todas as fenomenolo-
bui para o pensamento crítico de gias’. Ora, esta informação des-
Foucault? Para tanto, convém reco- perta a atenção para o fato de que
nhecer algumas referências da tra- a construção de uma saída dessa
dição filosófica com que as teses de situação se realiza por fatores en-
Foucault se associa e com a qual dógenos à tradição da qual Fou-
cault quer se distanciar. Nesse sen-

7 Sobre o diagnóstico do presente, Cf. FOUCAULT, Qui êtes-vous professeur Foucault, DE I; FOUCAULT, La scène
de la philosophie, DE III. Sobre as formas de problematização, Cf. FOUCAULT, À propos de la généalogie de l’éthique,
DE IV; FOUCAULT, Le souci de la vérité, DE IV.
8 Esta mesma temática é abordada por CASTRO, Pensar a Foucault, 1995.

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tido, vale observar como Foucault repartição e organização das prá-


desenvolve certas noções da tra- ticas discursivas do Saber, aspecto
dição fenomenológica e estrutura- que mantém presente até MC.
lista em sua filosofia. Na perspectiva de Han (2002,
Os primeiros escritos do autor p.12), uma constante tensão en-
são marcados por uma tendência tre fenomenologia e arqueologia
fenomenológica, em especial com reside no cerne da filosofia fou-
relação à acepção de experiência, cauldiana: “um dos mais impor-
por influência da Daseinsanalyse tantes pontos permanece a com-
existencial9 . Esta noção persiste, plexa relação mantida pela obra
embora em menor grau, na tese de Foucault com a fenomenolo-
doutoral Histoire de la folie, pois gia”, de modo que o comum paren-
Foucault ainda designa certas for- tesco com a arqueologia faz com
mas de consciência como aspec- que “Foucault termine repetindo o
tos constituintes da experiência da mesmo erro que inicialmente atri-
loucura. Nesta obra, no entanto, já bui a Husserl, a saber, procurar
consta o giro radical que Foucault ‘conferir valores transcendentais a
inicia em seu pensamento, dedi- conteúdos empíricos’”10 . O prin-
cando um acurado exame ao fenô- cipal argumento em que a autora
meno cultural da loucura e à ins- elabora seu juízo advém do termo a
titucionalização do poder psiquiá- priori histórico, o qual manifesta a
trico. Nesse sentido, a análise exis- tendência de Foucault em ‘histori-
tencial cede lugar ao estudo es- cizar’ o transcendental. Isso sugere
trutural das condições de possibi- que o aspecto fundamental da filo-
lidade de um conjunto histórico sofia de Foucault parece ser refor-
de práticas e discursos determiná- mular o a priori histórico fenome-
veis. Foucault distingue os interva- nológico instituído por Husserl, re-
los históricos da Renascença, época movendo a centralidade do sujeito
clássica e modernidade a partir da universal na medida em que a ar-

9 Cf. FOUCAULT, Introduction a Binswanger: Le rêve et l’existence, DE I. Cf. MAY, Foucault’s relation to phenome-
nology, 2006.
10 Uma argumentação divergente a esta apresentada por Béatrice Han é realizada por Gérard Lebrun (1992,
p.21), ao propor que MCseja lida como uma obra “anti-Krisis”, alegando três fatores: a) a fenomenologia não te-
ria sido capaz de compreender a natureza do discurso clássico; b) a fenomenologia não estaria à altura de fazer
justiça a Kant; c) a fenomenologia não seria a continuação de um antigo projeto da racionalidade europeia. Cf.
LEBRUN, Notes on phenomenology in Les mots et les choses, 1992.

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queologia faz emergir as estruturas tato com o estruturalismo linguís-


empíricas da vida, do trabalho e da tico de Saussure e antropológico de
linguagem como condições trans- Lévi-Strauss. Em seus cursos no
cendentais de experiência11 . Na Collège de France, Merleau-Ponty
conclusão de Han, o a priori histó- aplica o estruturalismo como com-
rico surge como substituto ao lu- plemento à fenomenologia; porém,
gar vacante do sujeito, pois se apre- como relata Gutting (2001, p.210)
senta como o pressuposto às condi- “a ironia, claro, é que este inte-
ções de possibilidade que institui a resse levou ao enfraquecimento da
forma de qualquer realidade. fenomenologia existencial pela crí-
Ainda dentro deste registro de tica estruturalista”. Importa sali-
influência da fenomenologia na entar, deste contexto, a iniciativa
obra de Foucault, deve-se destacar de Merleau-Ponty em fazer da fe-
Merleau-Ponty por introduzir uma nomenologia uma ciência do vi-
questão que serve de transição da vido que, embora seja refutada por
fenomenologia ao estruturalismo Foucault em MC, ele mesmo se
na filosofia francesa. Segundo ocupa dessa temática e a estende
Foucault, esta passagem tem seu até sua análise da função das ciên-
momento crucial quando Merleau- cias humanas aplicadas à esfera bi-
Ponty se encontra com o problema opolítica.
da linguagem, o qual, para Fou- A emergência do paradigma es-
cault, a fenomenologia se vê in- truturalista na filosofia francesa
capaz de resolver12 . Esta consi- pode ser deduzida de duas datas-
deração se assemelha a feita por chave. A primeira se refere à obra
Gutting em French philosophy in de Sartre publicada em 1960, Criti-
the twentieth century (2001, p.208- que de la raison dialectique, cujo in-
12), na qual destaca que a elabo- tuito busca conciliar a práxis mar-
ração de um cogito impessoal e tá- xista com os preceitos do existen-
cito conduz Merleau-Ponty ao con- cialismo13 . Contudo, o declínio

11 Vale ressaltar que MCindica uma posição contrária a Krisis der europäischen wissenschaften(1936) de Husserl,
pois enquanto Husserl entende a fenomenologia a partir da concepção de uma totalidade histórica da racionali-
dade europeia, por seu turno, Foucault identifica que a fenomenologia pôde ser concebida a partir de uma des-
continuidade entre os pensamentos clássico e moderno.
12 Cf. FOUCAULT, Structuralisme et post-structuralisme, DE IV.
13 Segundo Foucault, Critique de la raison dialectiquede Sartre representa o magnífico e patético esforço de um
homem do século XIX em pensar o século XX. Cf. FOUCAULT, L’Homme est-il mort?, DE I.

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do existencialismo revolucionário tudo que estabelece a noção de sig-


e do regime soviético acabou por nos dependentes em um todo soli-
desacreditar a análise fenomeno- dário. A aplicação desse estudo é
lógica junto às ciências humanas. realizado por Lévi-Strauss em Les
Surge então o estruturalismo como structures élémentaires de la parenté
método preferido pelas ciências so- (1949), introduzindo o termo estru-
ciais no período pós-guerras. A se- tura nas ciências humanas. Com
gunda data-chave concerne ao ano isso, o próprio autor revela que o
de 1966, no qual aparecem as prin- objetivo das ciências humanas não
cipais obras atribuídas ao estrutu- visa à construção do homem, mas
ralismo, tais como Critique et Vérité seu desaparecimento14 . Logo, a
de Barthes, Les Écrits de Lacan e chamada ‘morte do homem’ é um
também MC de Foucault. Segundo dos aspectos que com frequência se
Cusset (2008, p.35), “Les mots et les associa MC e confere a Foucault a
choses, de Foucault, lançado na pri- etiqueta de (pós-) estruturalista.
mavera, obtém sucesso de público Entretanto, parece ser mais se-
inesperado, até mesmo nas praias guro afirmar que Foucault inves-
de férias, e o slogan ‘morte do ho- tiga as relações e funções discursi-
mem’ e ‘mudança de paradigma’ vas que produzem conceitos, sen-
ganham as primeiras páginas dos tidos e objetos, dentre eles o ho-
jornais de grande circulação”. mem, a partir de domínios diferen-
A divulgação do estruturalismo tes em um intervalo de tempo de-
na filosofia francesa se deve a con- finível. Desse modo, Foucault re-
tribuição de Guéroult e Goldsch- conhece a importância que Dumé-
midt; todavia, o estruturalismo é zil e Lacan exercem sobre seu pen-
marcado por dois trabalhos precur- samento. Para Foucault, o estudo
sores. Trata-se do Cours de linguis- de Dumézil ensina como uma aná-
tique générale de Saussure (1916), lise estrutural pode ser articulada
que introduz o critério diferencial com uma análise histórica. A des-
entre fala (parole) e linguagem (lan- crição das transformações do dis-
gue). Ainda que o autor não em- curso e as relações que mantêm
pregue o termo estrutura, é seu es- com a prática é elogiada por Fou-

14 Cf. LÉVI-STRAUSS, O pensamento selvagem, 1989, p.275.

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cault em sua aula inaugural no deve ser confundido com a arqueo-


Collège de France15 . Já o estudo de logia.
Lacan, por conceber que o incons-
ciente pode ser interpretado como Eixo temático: crítica da fenome-
se fosse uma estrutura da lingua- nologia e estruturalismo em Les
gem, parece contribuir para que Mots et les Choses
Foucault aborde as transformações
epistêmicas do Saber a partir da Como mencionado, MC é um tí-
linguagem, ou seja, das relações e tulo que se insere na abordagem
funções entre as palavras (mots) e epistemológica francesa da histó-
as coisas (choses). Assim, cada épis- ria da ciência; contudo, Foucault
témè examinada por Foucault pode faz uso peculiar dos protocolos ci-
ser entendida como se fosse um in- entíficos, ordenamentos jurídicos,
consciente lacaniano que estrutura textos literários e teses filosóficas,
a realidade e se manifesta no que a fim de articular diferentes do-
Foucault chama de ser da linguagem mínios sob uma mesma formação
(MC, p.350) a fim de apontar que o de práticas discursivas, a qual Fou-
ser humano somente pode ser ana- cault se refere por épistémè. Desse
lisado em relação às leis e códigos modo, MC apresenta uma abran-
fundamentais que ordenam sua re- gência temática que notoriamente
alidade a partir da linguagem. destaca o autor em relação à tra-
dição filosófica francesa, algo que
Portanto, nota-se que alguns te- incentiva os estudos que se ocu-
mas e termos recorrentes em MC pam com temas subjacentes às ob-
estão associados com o paradigma jeções que Foucault faz das ciên-
da tradição filosófica francesa com cias humanas, como a fenomeno-
o qual a obra se articula. Ainda, logia e o estruturalismo16 . Tal
ressalta-se a tendência de Foucault crítica, por sua vez, se imbrica
em se aproximar de noções típicas com os preceitos da fenomenolo-
do estruturalismo, embora o autor gia que Foucault faz questão de
advirta que o estruturalismo não explorar; porém, quanto ao fre-

15 Cf. FOUCAULT, L’ordre du discours, 1971, p.73; FOUCAULT, Les vérités et les formes juridiques, DE II.
16 Com relação a este assunto em questão e seu interesse na produção acadêmica,Cf. Cristina MICIELI, Fou-
cault y la fenomenología(Editorial Biblos, 2003); Mauro VALLEJO, Michel Foucault y el estructuralismo: un sacerdocio
apócrifo(Ediciones del Signo, 2011).

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nesi estruturalista, não há uma ex- do desenvolvimento da relação en-


plícita objeção, uma vez que se tre sentido e sujeito como tratado
percebe certa cumplicidade ao es- em MC. Ao avaliar a fenomenolo-
tilo estrutural. Não obstante, Fou- gia pela perspectiva estruturalista,
cault rejeita que a descrição arque- Bonomi (1974) se propõe a arti-
ológica seja um método estrutu- cular a tendência da experiência
ralista17 , já que tenta justamente fenomenológica com a tendência
exumar o ‘solo positivo’ que sus- estrutural do comportamento. O
tenta e permite a formação discur- exemplo proporcionado por esta
siva do estruturalismo. Foucault tese revela que ambas as tendên-
(1969, p.25) define a arqueologia cias buscam triunfar sob o mesmo
como uma “empresa pela qual se domínio, a saber: definir a mo-
tenta desfazer as últimas sujeições dalidade da relação entre sujeito
antropológicas; empresa que quer, e sentido. Ora, pode-se dizer que
em troca, mostrar como estas su- também em MC perpassa este as-
jeições puderam se formar”. É sob sunto, na medida em que se desen-
a perspectiva das sujeições antropo- volve como background uma crítica
lógicas reveladas pela arqueologia à questão entre sujeito e sentido
que MC reserva a crítica da feno- tal como operada pela fenomeno-
menologia e estruturalismo. logia e estruturalismo. Como nota
Para melhor dissertar sobre Canguilhem (2006, p.76), a descri-
como as sujeições antropológi- ção arqueológica das ciências hu-
cas expressam a crítica de Fou- manas se desenvolve apenas nos
cault à fenomenologia e ao es- capítulos finais do livro, de modo
truturalismo, sugiro dividir o co- que a linguagem ocupa a atenção
mentário entre uma questão que de Foucault durante a maior parte
ocorre como se fosse um back- da obra. Para tanto, deve-se consi-
ground (plano de fundo) de MC derar um aspecto fundamental da
e uma questão sobre o objeto de análise de Foucault (MC, p.312),
análise ao qual a crítica foucaul- que pela arqueologia identifica que
diana se aplica. Quanto à pri- tanto fenomenologia quanto estru-
meira questão, ela discorre acerca turalismo tem a mesma disposição

17 Cf. FOUCAULT, L’archéologie du savoir, conclusão.

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epistêmica. Isso significa admi- uma enfática crítica à fenomeno-


tir que ambas as tendências pos- logia existencial no nono capítulo
suem predicados e métodos pró- de MC. A fenomenologia privile-
prios para organizar a realidade, gia uma abordagem que faz do su-
mas que estes predicados e méto- jeito uma instância de consciên-
dos devem ser considerados a par- cia intencional, um portador de
tir de determinada condição epis- experiência originária e um doa-
têmica de possibilidade. dor de sentido. Em termos gerais,
Na interpretação de Foucault, a pode-se dizer que a fenomenolo-
fenomenologia e o estruturalismo gia se enraíza na épistémè moderna
somente são possíveis na épistémè à medida que reconhece que so-
da modernidade, na qual o homem mente ao homem a existência pre-
se torna o sujeito do conhecimento cede a essência, passando do pa-
e o objeto de si mesmo. O pensa- radigma clássico do ser metafísico
mento moderno ‘inaugurado’ por para o ser-no-mundo da finitude.
Kant, ao conceber o homem como Entretanto, para sustentar um su-
um ser empírico-transcendental, jeito transcendental, a fenomeno-
define as bases para o que Fou- logia concebe um sentido autêntico
cault entende por analítica da fi- ao homem, sem considerar que ele
nitude (MC, p.329). À analítica é um produto recente e cujo efeito
da finitude correspondem os mo- está preste a revogar (MC, p.398).
dos de objetivação, isto é, as condi- Por isso, Foucault censura a feno-
ções de possibilidade para a forma- menologia por transformar o dado
ção de discursos em um domínio empírico do homem, a saber, sua fi-
do Saber, algo que implica na atri- nitude existencial, em um motivo
buição de sentido. No caso da fe- transcendental, ou seja, dotado de
nomenologia, o sentido é atribuído um sentido originário e autêntico.
à consciência-de-si do sujeito; já Nesse caso, as duplicidades susci-
para o estruturalismo, o sentido tadas pela analítica da finitude po-
provém das relações funcionais de dem ser lidas como aporias para a
um sistema pré-estabelecido de fenomenologia, de modo que Fou-
comportamentos no qual o sujeito cault parece inspirar cada tema
tende a se reconhecer como tal. em um fenomenólogo. Assim, te-
Notoriamente, Foucault dedica mos: o empírico-transcendental e

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Merleau-Ponty, o cogito-impensado topológica gerada pelas práticas


e Husserl, e o recuo-retorno da ori- discursivas. Por práticas discur-
gem e Heidegger18 . Nesta situa- sivas, Foucault (1969, p.152) de-
ção, o método fenomenológico des- signa um conjunto de regras anôni-
tinado à compreensão da subjeti- mas e históricas que definem para
vidade humana em sua totalidade, dada época e espaço sociocultural
parece estar limitado a repetir o as condições de exercício da fun-
conteúdo empírico na forma trans- ção enunciativa. Assim, as práticas
cendental. discursivas operam um importante
acréscimo ao conceito de épistémè,
Se em MC a crítica da feno-
pois nelas se instituem objetos dos
menologia é declaradamente con-
quais se pode falar e interagir.
fessa, o mesmo não pode ser atri-
buído ao estruturalismo infiltrado Para o estruturalismo persiste
19
na obra . Não obstante, embora uma inflação determinista por ana-
de modo mais hermético, sua crí- lisar o sentido a partir de rela-
tica pode ser apreendida em vista ções e regras análogas; já a aná-
da descrição arqueológica. Fou- lise do discurso proposto pela ar-
cault apropria do estruturalismo a queologia compreende o sujeito
capacidade de isolar a emergên- como uma função enunciativa21 ,
cia de domínios independentes de ou seja, indica que a constituição
discursos; porém, o que deve ser de um sujeito depende da aloca-
considerado é a relação funcio- ção dos objetos, conceitos e re-
nal que tais discursos possuem em gras regidas pelas práticas discur-
dada épistémè. Nesse sentido, o sivas, sendo estas descontínuas e
melhor tratamento conferido à ar- transformáveis. Logo, embora o
queologia é o de análise do dis- estruturalismo conceba o homem
curso20 . Um aspecto fundamen- constituído pelo processo formado
tal de MC revelado junto à leitura das relações entre estruturas (pa-
de L’Archéologie du Savoir é a noção rentesco, matrimônio, mito), resta

18 Cf. CASTRO, Pensar a Foucault, 1995, p.102-16.


19 Vale mencionar que Foucault reserva um espaço para apresentar sua crítica ao estruturalismo na obra subse-
quente a MC, L’archéologie du savoir(1969; Cf. conclusão, capítulo V). Devido ao objetivo deste artigo, limita-se a
manter a análise referente à obra MC.
20 Sobre a relação entre arqueologia e análise do discurso, Cf. MUSSALIM, Análise do discurso, 2012.
21 Cf. FOUCAULT, Qu’est-ce qu’un auteur, DE I.

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ainda o aspecto de que estas ins- nado por uma filosofia da expe-
tituições são invariáveis ao sentido riência, desenvolvida desde Berg-
do homem, e por essa razão, o pró- son e consolidada pela fenomeno-
prio sentido se torna anacrônico. logia existencial de Sartre na dé-
Enfim, ao colocar em questão a re- cada de 1940. Em MC (p.332),
lação entre sujeito e sentido que se Foucault se refere à fenomenologia
desenvolve como se fosse um back- como uma filosofia da experiência-
ground de MC, torna-se mais ní- vécu, classificando-a como um dis-
tida a afirmação de Foucault (MC, curso de origem mista, já que ex-
p.312): “o estruturalismo e a fe- pressa o homem pela tentativa de
nomenologia encontram aqui [na articular o domínio da natureza, o
analítica da finitude], com sua dis- corpo perceptivo, com o domínio
posição própria, o espaço geral que da história e sua semântica cultu-
define seu lugar-comum”. ral. Para Foucault, a busca da fe-
O segundo ponto desse comen- nomenologia pela experiência-vécu
tário pretende identificar o ob- pode ser vista como uma terceira
jeto de análise pertinente às sujei- via da analítica da finitude, uma
ções antropológicas denunciadas forma de conhecimento que tenta
por Foucault. Uma vez que a fe- contestar tanto o positivismo ló-
nomenologia e o estruturalismo se gico quanto a práxis escatológica
mantêm em relação oposta quanto do homem. Nesse sentido, a
ao trato da questão entre sujeito e tentativa de fundamentar a sub-
sentido, pode-se inferir que esta si- jetividade em uma ambivalência
tuação também se repete na sec- natureza-história da experiência-
ção entre a experiência do conheci- vécu reproduz a duplicidade do es-
mento subjetivo (hermenêutica de tado empírico-transcendental que
si) e objetivo (semiologia da cul- rege a épistémè da modernidade.
tura) do homem. Assim, pode- Quanto ao estruturalismo, pode-
se dizer que a objeção foucauldi- se dizer que mantém seu discurso
ana se organiza em torno à expe- sobre uma experiência do conheci-
riência do conhecimento como ob- mento da ordem, isto é, uma ex-
jeto de análise. Durante a for- periência na qual o homem deter-
mação acadêmica de Foucault, o mina o saber sobre si em relação
pensamento francês estava domi- com os comportamentos sociocul-
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turais, evitando, portanto, depen- ver o homem em meio à expe-


der de aspectos subjetivos. As- riência da ordem, já que o ho-
sim, ao se referir à experiência da mem não é um ser definível em
ordem22 , pretende-se indicar que si mesmo. Foucault defende que
nela o homem perde sua capaci- ambas as tendências pertencem à
dade de instância doadora de sen- trama epistêmica da modernidade
tido, uma vez que é avaliado como regida pela analítica da finitude,
se fosse um signo em uma cadeia e como tal, compõem as extremi-
de significados. Embora a expe- dades de uma série de tentativas
riência da ordem não negue a va- de conceber o homem como ser
lidade da experiência vivida por empírico-transcendental. Como
cada indivíduo, considera que a re- consequência, sobretudo no que
alidade não depende de uma sub- diz respeito à tradição da filosofia
jetividade autêntica, pois todo su- francesa, Foucault fala em um sono
jeito encontra-se em uma realidade antropológico, ou seja, em uma li-
alienada por estruturas. Trata-se, mitação para realizar o diagnós-
então, de um tipo de experiência tico do presente e pensar o homem
que não manifesta no homem o como problematização de si. Nesse
conhecimento de seu sentido au- sentido, a crítica da fenomenologia
têntico; ao invés, a experiência da e do estruturalismo deve ser apre-
ordem conduz ao seu desapareci- endida do ponto de vista das sujei-
mento. O texto de Borges citado ções antropológicas que acometem
nas primeiras linhas de MC alude o pensamento ocidental. Trata-se
a esta forma de experiência. da ideia de que se deve conhecer o
Enfim, pode-se assinalar em MC homem a qualquer custo, e de que,
estes dois registros: a fenome- com isso, nele possa atuar verda-
nologia e sua pretensão de fun- des poderosas do Saber. Como se
damentar o homem por meio da sabe, em outras obras Foucault ex-
experiência-vécu; e o estrutura- põe essa vontade de verdade como
lismo e sua pretensão de dissol- um dos principais discursos pra-

22 Uma das críticas mais contundente de Foucault ao estruturalismo se refere à formalização do pensamento, o
predomínio do método matemático sobre a experiência, caso de Husserl com a fenomenologia e de Levi-Strauss
com o estruturalismo. Cf. FOUCAULT, Structuralisme et post-structuralisme, DE IV. Cf. CASTRO, Pensar a Foucault,
p.159-83.
23 Cf. FOUCAULT, L’ordre du discours(1970); Surveiller et punir(1975); La volonté du savoir(1976).

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ticados no século XX23 . Portanto, mação dos discursos (sobre a sexu-


as objeções à tradição fenomenoló- alidade, loucura, homem) que são
gica e estruturalista envolvem mais apropriados por diferentes regimes
do que a abordagem epistemoló- de Saber, o arqueólogo reconhece
gica da história da ciência; envol- na crítica o limiar das condições de
vem a crítica que problematiza no possibilidade da experiência atual.
homem a questão sobre o que acon- Portanto, deve-se distinguir o con-
tece com quem ele é. ceito ‘crítica’ que caracteriza a filo-
sofia de Kant, da atitude crítica que
Eixo crítico: a experiência-limite permite agregar a contribuição de
da ‘morte do homem’ MC para o pensamento crítico de
Ao dizer que Foucault faz uma Foucault.
crítica da fenomenologia e do es- De um modo geral, pode-se di-
truturalismo em MC, não se deve zer que a crítica empregada por
inferir que isso basta para tor- Kant pertence à filosofia transcen-
nar seu pensamento, crítico. Algo dental, e que, portanto, está atre-
que aspiram as objeções de Fou- lada às condições a priori do co-
cault à fenomenologia e ao estru- nhecimento, da vontade e do juízo.
turalismo é assinalar que, a des- Nesse sentido, cabe à crítica a fun-
peito de suas pretensões univer- ção de legitimar o correto uso da
sais, trata-se de tendências do pen- Razão, o que se obtém mediante
samento moderno que possuem o um autoexame que, alcançando a
mesmo solo epistêmico, e por isso consciência-de-si, confere por si
compartilham da mesma condi- mesmo os próprios limites. No en-
ção de possibilidade. Nesse sen- tanto, a crítica não cumpre apenas
tido, entende-se que a experiência a função de fundamentar a Razão,
pode ser apresentada como objeto já que para Kant, ela destaca um
de análise pelo qual o autor pro- novo período histórico que tem sua
cura identificar as condições epis- apoteose com a Aufklärung, mo-
têmicas para o Saber possível so- mento em que a crítica deve per-
bre o homem. Como há no pro- mitir o uso legítimo da Razão em
pósito fundamental da arqueolo- todas as questões. Foucault (MC,
gia investigar os modos de objeti- p.256) interpreta estas caracterís-
vação, isto é, a emergência e a for- ticas do conceito ‘crítica’ kantiano
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em termos de um exame dos limi- (MC, p.353) não hesita em dizer


tes e menciona que Kant ‘inaugura’ que justamente por meio das sujei-
o pensamento moderno à medida ções antropológicas se torna possí-
que institui que as condições de vel denunciar “de um modo crítico,
possibilidade da experiência estão a um só tempo, o esquecimento
determinadas pela finitude exis- da abertura que a tornou possível
tencial. e o obstáculo tenaz que se opõe
obstinadamente a um pensamento
Logo, se a ‘crítica’ kantiana é por vir”. Ora, embora já mencio-
constituinte da épistémè moderna, nado, nesse ponto pode-se perce-
a fenomenologia e o estrutura- ber a profusão de temas e a abran-
lismo necessariamente se tornam gência das reflexões que compõem
tendências críticas, as quais Fou- MC, pois esta obra não se restringe
cault (MC, p.331) define como ‘crí- apenas à história da ciência; nela,
tica da verdade’, cujo estatuto é pode-se dizer, o pensamento crí-
duplo: alcançar a verdade pré- tico de Foucault toma forma.
definida sobre o objeto de análise
e autorizar o discurso a ingressar A forma adotada pelo pensa-
na ordem do Saber. Para tanto, mento crítico de Foucault man-
é preciso ‘antropologizar’ o pen- tém a vocação kantiana de ser um
samento, pois como afirma Fou- exame dos limites, ou ainda, um
cault (MC, p.353), “a antropologia modo de refletir sobre os limites
constitui talvez a disposição fun- constituintes do homem. Por isso,
damental que comandou e condu- tal afirmação se identifica com a
ziu o pensamento filosófico desde polêmica da ‘morte do homem’.
Kant”24 . Isto significa um cons- Nesse ponto, recupero o comentá-
trangimento da filosofia que se re- rio sobre o objeto de análise per-
duz a uma sujeição antropológica, tinente às sujeições antropológi-
ou seja, procura produzir discur- cas, com o intuito de associar a
sos sobre o que é o homem, a qual- crítica, enquanto exame dos limi-
quer custo. Não obstante, Foucault tes, junto à experiência-limite re-

24 O interesse de Foucault pela crítica e pela antropologia de Kant precede MC; em sua tese complementar ao
doutoramento, Foucault apresenta uma tradução, acompanhada de introdução e notas, sobre Anthropologie du
point de vue pragmatique, de Kant. Sobre a relação entre crítica e verdade em Foucault, Cf. CANDIOTTO, Foucault
e a crítica da verdade, 2010.

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alizada por Foucault. Ao proble- tende um exame que, diferente-


matizar a ‘morte do homem’, o au- mente da fenomenologia e do es-
tor questiona as tendências da tra- truturalismo, não quer estabele-
dição, sobretudo da filosofia fran- cer os limites do homem pela de-
cesa, em privilegiar o homem como terminação de uma crítica da ver-
um objeto sempre pensado sobre si dade, uma vez que se trata justa-
mesmo: aquilo o que é. Seja pela mente de um exame sobre as con-
experiência-vécu ou pela experiên- dições de possibilidade que cons-
cia da ordem, o limite do homem tituem os limites que repartem e
tratado por Foucault, qual seja, a organizam a experiência. Por isso,
sua ‘morte’ como objeto e seu de- trata-se de uma experiência-limite
saparecimento como sujeito, não que adquire seu espaço à medida
são ponderadas. Assim, as obje- que problematiza a ‘morte do ho-
ções à fenomenologia e ao estrutu- mem’ como possível. Em MC e
ralismo acontecem na medida em em textos coetâneos à obra26 , Fou-
que o autor apropria do conceito cault expressa a experiência-limite
kantiano de ‘crítica’ as condições de diversas maneiras (transgres-
de possibilidade em favor da des- são, pensamento do exterior, morte
crição arqueológica. Contudo, não de Deus), buscando na literatura
se trata das condições de possibili- (Bataille, Blanchot, Nietzsche) ins-
dade para a verdade, mas das con- piração contra a antropologia filo-
dições de possibilidade de existên- sófica dominante. Um aspecto a se
cia, o a priori histórico25 , uma vez destacar de tal experiência-limite
que as condições sócio-históricas concerne ao fato de que ela forma o
que definem a existência das prá- campo de exercício da atitude crí-
ticas discursivas são constitutivas tica sobre a condição histórica que
das significações providas de valor constitui o homem. O autor re-
de verdade. conhece na experiência-limite uma
Portanto, o que se designa por maneira de quebrar o vínculo en-
experiência-limite diz respeito à tre o verdadeiro e o falso no inte-
disposição filosófica na qual se pre- rior do próprio discurso, de modo

25 Cf. FOUCAULT, L’archéologie du savoir, 1969, p.167. Cf. HAN, The analytic of finitude and the history of subjec-
tivity, 2006.
26 Cf. FOUCAULT, Préface à la transgression, DE I; FOUCAULT, La pensée du dehors, DE I.

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que o indivíduo possa pensar fora gressão, quer dizer, a partir uma
de si mesmo, isto é, para além crítica sobre si mesmo. Em
dos limites fixados por modos de MC (p.353), esta relação limite-
ser previamente definidos: passar transgressão se apresenta no co-
daquilo o que se é na consciên- mentário de Foucault à crítica fi-
cia por meio daquilo que se pra- lológica feita por Nietzsche, a qual
tica na linguagem. Segundo Fou- percebe que a experiência da morte
cault, a ideia de uma experiência- do Deus-metafísico e o desapareci-
limite corresponde a um processo mento do sujeito universal se im-
de dessubjetivação que pretende plicam. Logo, se para Foucault
arrancar o sujeito de si mesmo, cabe a Kant a ‘inauguração’ da épis-
impedi-lo de ser o mesmo; trata- témè moderna, isso se deve ao fato
se de “uma experiência [que] é de a crítica kantiana colocar em
algo do qual saímos transforma- causa uma reflexão entre existên-
dos”27 . Não é a autenticidade do cia e finitude, crítica e limite. No
sujeito da experiência-vécu, mas a entanto, segundo Foucault, “o pró-
necessidade de sua transformação prio Kant acabou novamente por
pela experiência-limite, o ponto fechar esta abertura ao reduzir, no
que tangencia o pensamento crítico fim das contas, todo questiona-
de Foucault. Portanto, se opõe a mento crítico a uma questão an-
linguagem à consciência na tenta- tropológica [o que é o homem?]”30 .
tiva de fazer da experiência-limite Com isso, percebe-se que Foucault
uma antologia de existências28 . extrai a ‘morte do homem’ das pró-
prias consequências de um pen-
Nesse sentido, o limite não deve
samento que acessa a experiên-
determinar a experiência do modo
cia do limite e da transgressão.
de ser do homem, pois para Fou-
Então, as sujeições antropológicas
cault29 o limite somente pode ser
contestadas pela arqueologia sur-
pensado em relação à sua trans-

27 FOUCAULT, Entrevue avec Michel Foucault, DE IV, p.41. A esse respeito, Cf. PELBART, O avesso do niilismo,
2013, p.207-32. Sobre o desenvolvimento e a importância do conceito de experiência na filosofia de Foucault, Cf.
GUTTING, Foucault’s philosophy of experience, 2002, p.69-85.
28 Cf. FOUCAULT, La vie des hommes infames, DE III. Poder-se-ia dizer que neste texto ensaístico de 1978, Fou-
cault trata da experiência-limite ao examinar as práticas com relação à verdade dos discursos do Saber que ope-
ram sobre a determinação do que se considera subversivo, escandaloso, infame.
29 Cf. FOUCAULT, Préface à la transgression, DE I.
30 FOUCAULT, Préface à la transgression, DE I, p.239.

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gem em decorrência do que parece exercida sob a forma de limita-


ser uma ausência de pensamento ção necessária em uma crítica prá-
crítico, pois se por um lado a crítica tica na forma de um ultrapassa-
concerne ao exame dos limites, por mento [franchissement] possível”32 .
outro lado esta condição não deve Embora a afirmação de um pensa-
restringi-la, já que a crítica corres- mento crítico por parte do autor
ponde a uma forma de pensamento ocorra somente a partir de 1978,
tornado ação, no sentido de um ato isso não impede que se possa iden-
perigoso e transgressor que recon- tificar em que sentido suas obras
duz a existência ao limite transgre- precedentes contribuem para este
dido (MC, p.339)31 . intento. Em MC (p.353), pode-
Enfim, por meio da experiência- se dizer que o ethos filosófico fou-
limite implicada pela quadratura: cauldiano se expressa na constata-
crítica e limite, existência e fini- ção de que, se o exame dos limi-
tude, resta avaliar o pensamento tes do homem encerra o fim da fi-
crítico de Foucault presente em losofia, então a ‘morte do homem’
MC em termos de atitude crítica. é o retorno ao começo do filoso-
Em seu texto-testemunho Qu’est- far: “em nossos dias não se pode
ce que Lumières?, Foucault define mais pensar senão no vazio do ho-
esta atitude crítica como perten- mem desaparecido. Pois esse va-
cente a um “ethos filosófico que con- zio não escava uma carência; não
siste em uma crítica do que nós fa- prescreve uma lacuna a ser preen-
zemos, falamos e pensamos através chida. Não é mais nem menos que
de uma ontologia histórica de nós o desdobrar de um espaço onde,
mesmos”; prossegue o autor: “este enfim, é de novo possível pensar”.
ethos filosófico pode ser caracteri- Eis o ponto no qual pode-se per-
zado por uma atitude-limite” para ceber em que medida MC ‘trans-
a qual “a crítica é certamente a aná- gride’ a abordagem epistemológica
lise dos limites e da reflexão so- francesa da história da ciência e faz
bre eles”, concluindo que “trata- da crítica à fenomenologia e ao es-
se, então, de transformar a crítica truturalismo um aporte para um

31 Cf. LEBRUN, Transgredir a finitude, 1985.


32 FOUCAULT, Qu’est-ce que Lumières?, DE IV, p.573-74. Cf. BERNSTEIN, Foucault, critique as a philosophical
ethos, 1995.

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pensamento crítico, isto é, trans- Foucault articula os temas de MC.


forma estas duas tendências da tra- Como visto, MC confronta o para-
dição francesa em um modo de di- digma da tradição pela abrangên-
agnosticar o presente por meio de cia que sua interpretação possui. O
formas de problematização capa- autor interpreta a fenomenologia e
zes de abranger uma ontologia crí- o estruturalismo a partir das con-
tica acerca da atualidade de nós dições epistêmicas de suas possi-
mesmos. bilidades, percebendo que embora
À guisa de conclusão, vale men- sejam opostas, ambas pertencem
cionar o interesse de pesquisa pe- ao pensamento antropocêntrico e
los aspectos que a crítica exerce no buscam dominar a questão entre
pensamento de Foucault33 . Uma sujeito e sentido. Como resposta,
vez que é conhecida a recusa de em MC Foucault problematiza o
Foucault pela fenomenologia e es- paradigma sujeito-sentido a partir
truturalismo, cabe apurar em que de termos próprios, como histori-
medida a disposição do autor à cidade (a priori histórico) e práti-
ontologia histórico-crítica de nós cas discursivas. Ao reconhecer a
mesmos reserva um pensamento polarização entre subjetivismo (fe-
crítico. Para tanto, nota-se perti- nomenologia do sujeito) e objeti-
nência na indicação de Dreyfus e vismo (semiologia do sentido) pra-
Rabinow, que assinalam a resposta ticado pelo estruturalismo, Fou-
endógena preparada por Foucault cault institui como objeto de sua
contra a tradição filosófica fran- análise a experiência-limite, sem
cesa. Nesse caso, ressalta-se que a qual as observações de MC po-
o espólio intelectual de Husserl, dem ficar comprometidas a servi-
Merleau-Ponty, Heidegger, Dumé- rem apenas de esboço a uma meta-
zil e Lacan se infiltram e exer- narrativa.
cem influência sobre o modo como A experiência-limite pode ser

33 Nas últimas duas décadas de pesquisas acerca da obra foucauldiana, vale destacar o interesse pelo aspecto
que a crítica adquire em seu pensamento: Rudy VISKER, Genealogy as critique (Verso,1995); Michael KELLY (ed.),
Critique and Power, recasting the Foucault/Habermas debate (MIT Press, 1995);Jean-François BERT; Jérôme LAMY,
Michel Foucault: un héritage critique (CNRS Éditions, 2014); Béatrice HAN, Foucault’s critical project (Stanford Uni-
versity Press, 2002); Judith BUTLER, What is critique? (Blackwell Publishing, 2002); Thomas BOLMAIN, Expéri-
ence et critique (Université de Liège, 2010); Thomas LEMKE, Critique and experience in Foucault (Theory culture
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entendida como o campo vislum- gia da atualidade de nós mesmos.


brado por Foucault para o efetivo A isso, acrescenta-se o reconheci-
exercício da atitude crítica, uma vez mento de que tal forma de pen-
que investe no exame das condi- samento se constitui por meio de
ções de possibilidade da existên- um diagnóstico do presente e for-
cia. Contudo, diferente do conceito mas de problematização como ori-
‘crítica’ de Kant (que busca legi- entações para a prática do filosofar.
timar as condições teórico-formais Por essa razão, a tarefa de combater
do conhecer, agir e ajuizar), Fou- as sujeições antropológicas assina-
cault insiste que tais condições de ladas por Foucault não permanece
possibilidade têm que ser históri- restrita e esgotada pela arqueolo-
cas, isto é, dadas pela experiência gia; esta tarefa prospera na gene-
da finitude. Assim, a experiência- alogia das relações de poder, admi-
limite das sujeições antropocên- tindo novas perspectivas e estraté-
tricas aponta para ‘morte do ho- gias adotadas pelo autor, e adqui-
mem’, e isto significa atribuir a rindo novas contribuições para um
MC um pensamento crítico. Como pensamento crítico. Portanto, MC
mencionado, tal pensamento crí- contribui com o pensamento crí-
tico conserva a premissa estabe- tico à medida que atribui uma ati-
lecida pelo próprio autor de que tude crítica que, então, manifesta o
sua filosofia pode ser entendida ethos filosófico da atualidade: pen-
como um pensamento histórico- sar a nós mesmos novamente.
crítico designado por uma ontolo-

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