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Artigo VIII

No oitava artigo perguntamos:


Toda outra verdade vem da primeira verdade?
[Leituras paralelas: De ver., 21, 4, ad 5; 27, 1, ad 7; S.T., I, 16, aa. 5-6; C.G., III, 47; Quodl., X, 4,7; I
Sent., 19,4, aa- 1-2; II Sent., 37, 1, 2, ad 1; X Metaph., lect. 2, nn. 1956-59.]
Dificuldades
E parece que não, pois
1. A fornicação é uma coisa verdadeira; mas não vem da primeira verdade.
Portanto, nem toda verdade vem da primeira verdade.
2. A resposta dada foi que a fornicação se diz verdadeira segundo a verdade do
sinal ou do conceito1, e isso vem de Deus. Sua verdade como coisa, porém, não vem de
Deus. – Pelo contrário, além da primeira verdade, não há apenas a verdade do signo ou
do conceito, mas também a verdade da coisa. Portanto, se sua verdade como uma coisa
não vem de Deus, então há uma verdade de uma coisa que não vem de Deus, e nossa
proposição de que nem toda verdade diferente da primeira vem de Deus terá que ser
aceita.
3. De "ele fornica", segue-se que "a fornicação é verdadeira". Portanto, pode-se
fazer uma transição da verdade de uma proposição para a verdade do que é dito, que por
sua vez expressa a verdade da coisa. Conseqüentemente, a verdade mencionada consiste
nisto: que aquele ato está conjugado2 àquele sujeito. Mas a verdade do que é dito não
surgiria da conjunção de tal ato com um sujeito, a menos que a conjunção do ato, que
tem a deformidade, fosse inteligida. Portanto, a verdade da coisa diz respeito não apenas
à própria essência de um ato, mas também à sua deformidade. Mas um ato considerado
como tendo uma deformidade não vem de forma alguma de Deus. Logo, nem toda
verdade das coisas vem de Deus.
4. Anselmo diz que uma coisa é dita verdadeira se é como deveria ser. Entre os
modos pelos quais se pode dizer o que uma coisa deveria ser, ele menciona um, a saber,
aquilo que acontece com a permissão de Deus. Mas, a permissão de Deus se estende até
mesmo à deformidade de um ato. Portanto, a verdade da coisa chega até essa
deformidade. Mas a deformidade não vem de nenhum modo de Deus. Logo, nem toda
verdade vem de Deus.
5. Foi dito, no entanto, que assim como uma deformidade ou privação não pode se
dizer ente simpliciter3, mas somente ente secundum quid (em certo aspecto), também
não se pode dizer que uma deformidade ou privação tem verdade simpliciter, mas
somente secundum quid. E tal verdade secundum quid não vem de Deus. – Pelo
contrário, o verdadeiro acrescenta ao ente uma ordem 4 ao intelecto. Ora, embora a
privação ou a deformidade em si não seja ente simpliciter (absolutamente), ela é
apreendida simpliciter (absolutamente) pelo intelecto. Portanto, ainda que não tenha
entidade simpliciter, tem verdade simpliciter.
6. Tudo o que é secundum quid (qualificado) é reduzido a algo simpliciter (não
qualificado). Por exemplo, "um etíope é branco em relação aos dentes" é reduzido a
isto: "os dentes de um etíope são brancos simpliciter (sem qualificação)".

1
Intellectus.
2
Componitur.
3
O inglês traduz simpliciter por “being without qualification”.
4
Faz o ente ser referenciado ou relacionado ao intelecto.
Conseqüentemente, se alguma verdade simpliciter (limitada) não vem de Deus, então
nem toda verdade secundum quid (qualificada) virá de Deus; o que é absurdo.
7. O que não é causa da causa, não é causa do efeito. Por exemplo, Deus não é a
causa da deformidade do pecado, pois Ele não é a causa do defeito no livre-arbítrio, no
qual ocorre a deformidade do pecado. Ora, assim como o ser é a causa da verdade das
proposições afirmativas, o não-ser é a causa das proposições negativas. Ora, como diz
Agostinho, já que Deus não é a causa desse não-ser, segue-se que Ele não é a causa das
proposições negativas. Portanto, nem toda verdade vem de Deus.
8. Agostinho diz: "O verdadeiro é aquilo que é como parece". Ora, uma coisa má
é como parece. Portanto, algo mau é verdadeiro. Mas nenhum mal vem de Deus.
Portanto, nem todas as coisas verdadeiras vem de Deus.
9. Mas foi dito que o mal não é visto pela espécie do mal, mas pela espécie do
bem. – Pelo contrário, a espécie do bem nunca faz aparecer nada além desse bem.
Conseqüentemente, se o mal é visto apenas através da espécie de um bem, o mal
aparecerá apenas como um bem. Mas isso é falso.
Pelo contrário
1. Comentando o texto: "ninguém pode dizer etc" (1 Cor. 12:3), Ambrósio diz:
"toda verdade, não importa quem a diga, é do Espírito Santo".
2. Toda bondade criada vem da primeira bondade incriada, que é Deus. Pela
mesma razão, todas as outras verdades vem da primeira verdade, que é Deus.
3. O a razão da verdade se completa no intelecto. Mas todo intelecto vem de Deus.
Portanto, toda verdade vem de Deus.
4. Agostinho diz: "O verdadeiro é aquilo que é”. Mas todo ser vem de Deus.
Portanto, toda verdade vem d’Ele.
5. Assim como o verdadeiro é convertível com o ente, assim também o uno, e
vice-versa. Mas toda unidade vem da primeira unidade, como diz Agostinho. Portanto,
toda verdade também vem da primeira verdade.
REPOSTA
Como fica claro pelo que já foi dito, nas coisas criadas, a verdade é encontrada
tanto nas coisas como no intelecto. No intelecto encontra-se segundo a adequação que o
intelecto tem com as coisas cujas noções ele tem. Nas coisas, encontra-se conforme
imitam o intelecto divino, que é aquilo que as mede – como a arte é aquilo que mede
todas as coisas artificiais – e também de outro modo, conforme podem, por sua própria
natureza, realizar uma verdadeira apreensão de si mesmas no intelecto humano, que,
como se diz na Metafísica, é medido pelas coisas. Por sua forma, uma coisa existente
fora da alma imita a arte do intelecto divino; e, pela mesma forma, é tal que pode
provocar uma verdadeira apreensão no intelecto humano. Por essa forma, mais ainda,
cada coisa tem seu [ato de] ser. Por conseguinte, a verdade das coisas existentes inclui
em sua razão a entidade delas, acrescentando a isso uma relação de adequação ao
intelecto humano ou ao divino. Mas as negações ou privações existentes fora da alma
não têm nenhuma forma pela qual possam imitar o modelo da arte divina ou engendrar
um conhecimento de si mesmas no intelecto humano. O fato de se adequarem ao
intelecto se dá por parte do próprio intelecto, que apreende suas razões.
É claro, portanto, que quando se diz “pedra verdadeira” e “cegueira
verdadeira”, a verdade não se relaciona a ambas da mesma maneira; pois a verdade
predicada da pedra inclui em sua razão a entidade da pedra, acrescentando uma
referência ao intelecto, que também é causada pela própria coisa, pois tem algo pelo
qual pode ser referida ao intelecto. Como predicado da cegueira, porém, a verdade não
inclui em si essa privação que é a cegueira, mas apenas a relação da cegueira com o
intelecto. Essa relação, aliás, não é sustentada por nada na própria cegueira, pois a
cegueira não se adequa ao intelecto em virtude de nenhuma coisa que tem em si.
Portanto, é claro que a verdade encontrada nas coisas criadas não pode
compreender nada mais do que a entidade de uma coisa e a adequação da coisa ao
intelecto ou a adequação do intelecto às coisas ou às privações das coisas. Tudo isso
vem inteiramente de Deus, porque tanto a própria forma de uma coisa, pela qual ela se
adequa, vem de Deus, como a própria verdade, enquanto bem do intelecto, como se diz
na Ética; pois o bem de qualquer coisa consiste em sua perfeita operação. Mas como a
operação perfeita do intelecto consiste em conhecer o verdadeiro, esse é o seu bem no
sentido que acabamos de mencionar. Portanto, visto que todo bem e toda forma vem de
Deus, deve-se dizer, absolutamente (sem qualquer qualificação), que toda verdade vem
de Deus.
Respostas às dificuldades
1. O argumento: "Toda coisa verdadeira vem de Deus. Mas fornicar é verdade.
Portanto..." – cai na falácia do acidente. Pois, como é evidente em nossa discussão
acima, quando dizemos que a fornicação é verdadeira, não implicamos que o defeito
envolvido no ato de fornicação esteja incluído na razão de verdade. Verdadeiro predica
meramente a adequação desse ato a um intelecto. Portanto, não se pode concluir que a
fornicação vem de Deus, mas apenas que sua verdade vem de Deus.
2. Como fica claro de nossa resposta logo acima, deformidades e outros defeitos
não possuem verdade no mesmo sentido que outras coisas. Conseqüentemente, ainda
que a verdade dos defeitos venha de Deus, não se segue que a deformidade venha de
Deus.
3. Segundo o Filósofo, a verdade não consiste na composição encontrada nas
coisas, mas na feita pela alma. Portanto, a verdade não consiste em que o ato com sua
deformidade seja inerente a um sujeito (pois isso é próprio do caráter do bem e do mal).
Mas sim, consiste na adequação do ato à apreensão da alma, ato esse que é inerente ao
seu sujeito.
4. O bom, o devido, o reto e todas as outras coisas desse tipo estão relacionadas de
um modo à permissão divina e, de outro, a outras manifestações da vontade divina.
Neste último, há uma referência ao objeto do ato de vontade, bem como ao ato de
vontade em si. Por exemplo, quando Deus ordena que os pais sejam honrados, tanto a
honra a ser dada aos pais quanto o ato de comandar são bens. Mas em uma permissão
divina há uma referência apenas ao ato subjetivo de permitir, e não ao objeto da
permissão. Portanto, é justo que Deus permita as deformidades, mas não se segue disso
que a própria deformidade tenha alguma retidão.
5. [A solução para a quinta dificuldade não é dada.]
6. A verdade secundum quid (qualificada) que pertence às negações e defeitos é
redutível àquela verdade simpliciter (não qualificada) que está no intelecto e vem de
Deus. Conseqüentemente, a verdade dos defeitos vem de Deus, embora os defeitos em
si não venham d’Ele.
7. O não-ser não é a causa da verdade das proposições negativas no sentido de que
as faz existir no intelecto. A própria alma faz isso conformando-se a um não-ente fora
da alma. Portanto, esse não-ente fora da alma não é a causa eficiente da verdade na
alma, mas, por assim dizer, sua causa exemplar. A objeção, contudo, é baseada na causa
eficiente.
8. Embora o mal não venha de Deus; esse mal ser visto tal qual é, vem de Deus.
Portanto, a verdade pela qual é verdade que o mal existe, vem de Deus.
9. Embora o mal não atue sobre a alma senão pela espécie do bem, todavia, sendo
o mal um bem deficiente, a alma apreende a razão do defeito e assim concebe a razão do
mal. Assim, o mal é visto como mal.

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