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O que é a verdade1?
A primeira vista, como se vê pelas objeções colocadas por Tomás, a verdade
parece se confundir com “aquilo que é”, ou seja, com o ente. De fato, quando
perguntamos as pessoas de modo geral, o que elas consideram como sendo verdade, é
comum ouvirmos que verdade é dizer as coisas como elas são, ou em sua negativa,
verdade é “não mentir”, não falsear as coisas.
Já na opinião contrária a essa primeira impressão, se tenta desassociar totalmente
a verdade “daquilo que é”, como algo adicionado extrinsecamente a realidade. Talvez,
aqui esteja o ponta pé inicial da relatividade gnosiológica, da suposta verdade
subjetivamente absoluta: a verdade pra mim pode não ser a mesma verdade pra você.
Para desenvolver uma resposta satisfatória a esses dois extremos, Tomás lembra
um fator decisivo em toda busca de conhecimento: é necessário que as demonstrações
sejam reduzidas a alguns princípios evidentes, do contrário, se iria ao infinito na
demonstração ou na investigação, e assim seria impossível toda ciência ou
conhecimento das coisas.
Diante disso, poderíamos se questionar quais são esses princípios que nosso
intelecto capta de modo evidentíssimo. Tomás responde afirmando que primeiramente o
intelecto concebe como evidentíssimo o ente2. E não só capta de modo evidentíssimo,
mas também que qualquer coisa que o intelecto apreenda é de algum modo ente: em
palavras mais técnicas, tudo o que o intelecto capta é reduzido ao conceito de ente.
Mas o que isso significa? Pois bem, “ente” é o presente ativo do verbo ser em
latim, i.e., do verbo esse. Esse tempo verbal para nós, é algo próximo do particípio
presente, que tem função de adjetivo ou de substantivo, são geralmente aquelas palavras
terminadas em -ante, -ente, -inte, e designam, o mais das vezes, um ato sendo exercido.
Por exemplo, temos o substantivo presidente que vem do verbo presidir: nesse sentido,
presidente expressa o ato de presidir. Por sua vez, ente expressa o ato de ser.
Tendo isso em mente, é fácil percebermos que tudo e qualquer coisa que
pensemos é ente, ou seja, tudo o que pensamos é algo que tem ser, mesmo que seja
apenas o ser mental. Nada do que pensamos foge desse princípio, e justamente por isso
o mais evidente para o nosso intelecto é o ente, i.e., “aquilo que é” ou “aquilo que tem
ser”; afinal, mesmo se tentássemos pensar o nada, ainda estaríamos pensando algo, ou
seja, estaríamos pensado “aquilo que tem ser”.
A consequência disso, é que todas as outras coisas que conceituamos, devem ser
ente, mas para que se distinguem uma das outras, é necessário que se acrescente algo ao
ente. Pois uma coisa é pensarmos um cachorro e outra um gato: ambos são entes, i.e.,
“tem ser”, mas é diferente ter o ser canino e ter o ser gatuno.
Contudo, é impossível adicionar algo ao ente que lhe seja estranho ou alheio, pois
como vimos tudo entra na definição de ente, e assim qualquer coisa que pensemos, real
ou possível, é ente. Justamente por isso o ente não é gênero ao qual se lhe possa agregar
um diferença específica, como acontece com os animais, por exemplo.

1
Veritas.
2
Ens.
2

Por outro lado, é possível acrescentar algo ao ente, enquanto exprima um modo do
próprio ente, que o nome ente não exprime. Ou seja, que esclareça aquilo que o ente é,
mas que não está compreendido na própria palavra ente.
Esse esclarecimento pode-se dar de dois modos: um, que exprima algo especial do
ente, que o faço distinto de outro ente; outro, que exprima algo geral do ente, aplicado a
todos eles.
Quanto ao primeiro modo, i.e., que esclareça o ente, tornando-o distinto, se dá
através da distinção dos diversos graus de entidade. Esses graus de entidade nos
mostram os diversos modos de ser, quer dizer, os diversos modos que os entes podem se
dar. Disso, por fim, classificamos os entes em vários gêneros, como as categorias
aristotélicas: de fato, a substância, a qualidade, a quantidade e todas as outras categorias
de ente, não são algo distinto do ente mesmo, mas expressam algo especial de um ente,
sendo elas mesmas entes, enquanto apreendidas pelo intelecto. Mas, quanto a esse
modo, basta essas pinceladas, pois não é o interesse principal dessa exposição.
Quanto ao segundo modo, i.e., que esclareça o ente, naquilo em que é comum a
todos os entes, temos outros dois modos de isso se dar: absolutamente, ou seja, no ente
considerado em si mesmo; e relativamente, ou seja, no ente considerado em relação a
outro ente.
Considerando o ente em si mesmo, naquilo que há em comum entre todos os
entes, podemos ter algo que esclareça o ente de modo afirmativo e algo que o esclareça
de modo negativo. A única coisa que se pode afirmar afirmativa e absolutamente em
todo ente é a essência dele3. Para expressar isso se usa o nome coisa4: e assim se
esclarece algo que todos os entes possuem, pois enquanto ente recebe seu nome do ato
“de ser”5; coisa exprime a quididade ou essência do ente. Por sua vez, o que se pode
afirmar negativa e absolutamente em todo ente é a indivisão. Para expressar isso se usa
o nome uno: e assim se esclarece outro algo que todos os entes possuem, i.e., é algo
inteiro, indivisível enquanto tal.
Quanto a esse último ponto, apesar de não ser nossa intenção principal, cabe
ressaltar, que alguém poderia objetar, dizendo que se não todos, ao menos alguns entes
poderiam ser divididos. Por exemplo, podemos dividir uma mesa de madeira, serrando-
a; ou um gato, em cabeça, membros e troncos. Contudo, essa objeção falha ao não
entender que aqui se fala do ente enquanto íntegro: uma mesa serrada já não é mais uma
mesa, ou no mínimo, não é mais aquela mesa anterior; um gato dividido, já não é mais
um gato, no sentido exato desse conceito. Claro que podemos fazer essas divisões
apenas mentalmente, e no entanto, a unidade, presente em todo ente, expressa
justamente isso: que dessas partes divididas mentalmente, e às vezes sem nexo aparente,
se dá um ente indiviso, i.e., um ente uno.
Continuando nossa análise, após termos mostrados os dois modos pelos quais o
ente pode ser esclarecido, sendo considerado de modo geral e em si mesmo, i.e.,
considerando todos os entes singularmente em si mesmos, resta ainda mostrar de que
modo o ente pode ser esclarecido em relação a outro ente, ainda em sentido geral, quer

3
É pela essência que o ente se diz “ser”.
4
Res.
5
Actu essendi. Veja o parágrafo 5.
3

dizer, ainda num sentido que se aplique a todos os entes, mas agora não em si mesmo,
mas relacional.
E aqui nesse ponto, também podemos enxergar um aspecto como que afirmativo e
outro como que negativo. No aspecto negativo temos a divisão ou a distinção de um
ente a outro: é o que distingue um ente de outro, sendo expresso pelo nome algo 6. Aqui
se faz uma contraposição ao uno, pois assim como uno se predica ao ente em si mesmo,
enquanto é indiviso em seu ser; algo, por sua vez, se predica ao ente relativamente,
enquanto é dividido, i.e., distinguido de outro ente. De fato, usamos a palavra algo para
designar “isso aqui”, ou seja, para distinguir “daquilo ali”: ambos entes, mas um é algo
e o outro, é outro algo.
No aspecto afirmativo temos a conveniência de um ente a outro. Esse aspecto
geral e relativo do ente, entretanto, só é possível numa natureza que seja conveniente a
todo ente. De fato, os entes relativamente entre si, possuem certas conveniências, como
existir, viver, sentir, inteligir e querer. Mas para que essa característica seja válida a
partir dos princípios estabelecidos (que seja válido a todo ente em relação a outro ente),
só poderá aceitar um ente tal, cuja a natureza seja conveniente com todo ente: e isso e
isso é a alma, que “de certo modo é tudo”.
Para esclarecer essa última ideia, é necessário ter em mente, que a conveniência
de algo em relação a outro algo, é em última análise uma percepção: a pedra existe e
tem conveniência existencial com as outras coisas que também existem, mas ela não
percebe isso claramente; do mesmo modo, os vegetais e os animais irracionais, mesmo
que em um grau superior ao da pedra, existem, vivem e sentem, e apesar de convirem de
modo muito maior com os outros entes, no viver e no sentir, não percebem,
propriamente falando, a razão das coisas, ao passo de poderem estabelecer uma
conveniência geral com todos entes de modo ativo. Por isso, sem considerar os seres
puramente espirituais, a alma humana é esse cume da criação, na qual se faz presente
tudo o que é.
Percebe-se isso na alma pela força cognitiva e apetitiva que ela tem. Desse modo,
a conveniência do ente ao apetite se exprime pelo nome bom, pois “o bom é o que todas
as coisas apetecem”; já a conveniência do ente ao intelecto se exprime pelo nome
verdadeiro.
Percebe-se desse modo, que a alma, que é esse ente capaz de querer livremente
(força apetitiva) e de raciocinar (força cognitiva), traz em si essa capacidade de se
relacionar com todos os entes. E a partir dessa consideração é que se pode afirmar algo
como o dito anterior, a saber, que “o bom é o que todas as coisas apetecem”, i.e., o
homem, percebendo-se capaz de querer o seu bem, olha a criação e enxerga de certo
modo que as outras criaturas também “querem” o bem delas: a pedra “quer” se manter
intacta e continuar sendo pedra, a água “quer” escorrer, o fogo “quer” subir, o girassol
“quer” o sol, o tigre “quer” caçar, etc.
Do mesmo modo, em relação ao raciocínio, o homem também busca essa
conveniência com todos os entes, buscando a verdade. E é aqui que entramos no ponto
principal de nossa exposição.

6
Aliquid.
4

É importante termos em mente, a princípio, que todo conhecimento se completa


por assimilação do cognoscente à coisa conhecida, por isso essa assimilação é dita
causa da cognição. Isso se tornará mais claro ao final, mas fiquemos atentos que a
chave para investigarmos o que é a verdade é justamente essa assimilação entre o sujeito
e a coisa.
Sendo assim, uma primeira relação possível do ente ao intelecto é que o ente seja
concorde a ele7. Essa concórdia é o que chamamos classicamente de “adequação do
intelecto e da coisa”8: e nisso está a razão formal completa do verdadeiro.
Logo, é justamente isso que o verdadeiro acrescenta ao ente, i.e., a conformidade
ou a adequação da coisa e do intelecto 9. E dessa conformidade, como já se disse, se
segue a cognição da coisa.
Para entendermos melhor esses últimos três parágrafos, é preciso notar que há três
coisas que nos dão clareza para investigar a verdade: a assimilação, a assimilada, o
assimilador. Pois bem, o assimilador é o homem, mais especificamente, o intelecto; a
assimilada é a coisa; a assimilação é o processo pelo qual se conhece a coisa.
A razão formal da verdade está justamente no processo em si: em suma, isso é a
verdade, i.e., o processo, ou melhor dito, a assimilação entre a coisa e o intelecto, é o
meio termo entre aquilo que existe fora do homem e aquilo que existe dentro do
homem, i.e., seu conhecimento. Essa assimilação é chamada de adequação no caso da
verdade, justamente porque essa assimilação é o processo pelo a coisa exterior se
adequada ao intelecto para que possa ser conhecida.
Portanto temos que: [I]a entidade da coisa precede [II]a razão da verdade, mas [III]a
cognição é certo efeito da verdade. Desse modo, a verdade não é racionalmente o
mesmo que o ente, como queriam os objetores, mas realmente ela é o ente mesmo que é
conformado ao nosso intelecto, e por fim, dessa conformação ou adequação (que é a
verdade), se vem o efeito da verdade, que é o conhecimento.
Assim sendo, diante disso, podemos definir a verdade ou o verdadeiro de três
modos:
[I]
Um modo, segundo aquilo que precede a razão da verdade e sobre o qual ela
está fundada. Nesse modo a verdade é definida como o ente: “verdade é o que é”; “a
verdade de cada coisa é a propriedade de seu ser 10 que é estabelecido para ela”; “a
verdade é o ser indiviso e aquilo que é”.
[II]
Outro modo, se define segundo aquilo no qual a razão da verdade é
formalmente completada. Nesse modo a verdade é definida como verdade: “verdade é a
adequação da coisa e do intelecto”; “verdade é a retidão perceptível só pela mente”.
[III]
Segundo aquilo que é efeito da verdade. Nesse modo se define a verdade como
seu resultado ou consequência: “a verdade é aquilo pelo qual se mostra aquilo que é”; “a

7
Ens intellectui concordet.
8
Adaequatio intellectus et rei.
9
Conformitatem, sive adaequationem rei et intellectus.
10
Esse.
5

verdade é declarativa e manifestativa do ser11”; “a verdade é aquilo segundo o qual


julgamos os inferiores”.

ENS

ESPECIAL GERAL

GRADUS ABSOLUTO RELATIVO

COMO QUE COMO QUE


MODUS AFIRMATIVO NEGATIVO
AFIRMATIVO NEGATIVO

GENERA ESSENTIA INDIVISIO CONVENIENTIAM DIVISIO

DEZ
RES UNUM BONUM VERUM ALIQUID
CATEGORIAS

I- II - Razão
III - Efeito:
Fundamento: formal:
DECLARATIVO
ENTE ADEQUAÇÃO

"Verdade é "A verdade é


"Verdade é o adequação da declarativa e
que é". coisa e do manifestativa
intelecto". do ser".

11
Esse.

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