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ARTIGO 10

No décimo artigo perguntamos:


Existe alguma coisa falsa?
[Leituras paralelas: S.T., I, 16, aa. 1, 6; I Sent., 19, 5, 1; IV Metaph., lect. 12, n. 681 seq.; V Metaph., lect.
22, nn. 1128-29; VI Metaph., lect, 4, n. 1237 seq.]
Objeções
E parece que não, pois
1. Segundo Agostinho: “O verdadeiro é aquilo que é” 1. Portanto, o falso é aquilo
que não é. Ora, o que não é, não é uma coisa. Portanto, nenhuma coisa é falsa.
2. Foi dito que o verdadeiro é uma diferença do ente; conseqüentemente, o falso,
como o verdadeiro, é o que é. – Pelo contrário, nenhuma diferença divisora se converte
com aquilo que lhe é diferente. Ora, como foi dito, o verdadeiro se converte com o ente.
Conseqüentemente, o verdadeiro não é uma diferença divisora do ente, pois isso
possibilitaria chamar algo de falso.
3. A verdade é uma adequação da coisa e do intelecto. Ora, as coisas são
adequadas ao intelecto divino, visto que em si nada pode ser diferente do que é
conhecido pelo intelecto divino. Portanto, todas as coisas são verdadeiras e nenhuma
coisa é falsa.
4. Todas as coisas possuem a verdade de suas formas. Por exemplo, diz-se que um
homem é verdadeiro se tem a forma verdadeira de um homem. Mas não há nenhuma
coisa que não tenha alguma forma, pois todo [ato de] ser vem da forma. Portanto, toda
coisa é verdadeira, e nenhuma coisa é falsa.
5. O bem e o mal estão relacionados como o verdadeiro e o falso. Mas como o mal
se encontra nas coisas, só tem realidade substancial no bem, como dizem Dionísio2 e
Agostinho3. Portanto, se a falsidade é encontrada nas coisas, ela só pode ter
substancialidade no que é verdadeiro. Mas isso não parece ser possível, pois então a
mesma coisa seria verdadeira e falsa; o que é impossível. Isso significaria, por exemplo,
que homem e branco são a mesma coisa porque a brancura se substância no homem.
6. Agostinho propõe a seguinte objeção4. Se uma coisa é nomeada falsa, ou é
porque é semelhante ou porque é dissemelhante. “Se, por ser dissemelhante, não há
nada que não possa ser chamado de falso, pois não há nada que não seja dissemelhante
de alguma coisa. Se porque é semelhante, todas as coisas protestam em alta voz, pois
são verdadeiras porque são semelhantes.” Portanto, a falsidade não pode ser encontrada
nas coisas de forma alguma.
Pelo contrário
1. Agostinho define o falso assim 5: O falso é aquilo que se aproxima 6 da
semelhança de outra coisa sem alcançar aquilo cuja semelhança ele porta. Mas toda
criatura porta uma semelhança de Deus. Portanto, como nenhuma criatura alcança o
próprio Deus por modo de identidade, parece que toda criatura é falsa.
2. Agostinho diz que7: “Todo corpo é verdadeiro corpo e uma falsa unidade. Ora,
um corpo é dito falso porque imita a unidade, mas não é uma unidade. Portanto, como
1
Solil., II, 5.
2
De div. nom., 4, 20.
3
Enchir., cap. 14.
4
Soliloq., II, 8
5
Solil., II, 15
6
Se acomoda ou se adapta, no latim original.
7
Vera Religione, cap. 34.
toda criatura, na medida em que é perfeita, imita a perfeição divina e, no entanto, em
qualquer perfeição que tenha, permanece infinitamente distante dela; parece que toda
criatura é falsa.
3. O bem, como o verdadeiro, se convertem com o ente. Mas o fato de que o bem
se converta com o ente, não proíbe que se encontre alguma coisa má. Portanto, o fato de
que o verdadeiro se converta com o ente não proíbe que se encontre alguma coisa falsa.
4. Anselmo diz8 que existem dois tipos de proposições verdadeiras. O primeiro
tipo, quando a proposição é tomada pelo significado que lhe foi dada. Por exemplo, esta
proposição, “Sócrates está sentado”, significa que Sócrates está sentado, esteja ele
sentado ou não. O segundo tipo, quando a proposição significa aquilo para o qual foi
feita – ou seja, para significar o [ato de] ser quando ele é. E a este respeito, um
enunciado é propriamente dito verdadeiro. Logo, pela mesma razão, uma coisa pode ser
dita verdadeira quando cumpre àquilo que é (seu propósito), e falsa quando não o
cumpre. Mas todas as coisas que falham 9 ao seu fim não cumprem aquilo que são (seu
propósito); e, como há muitas coisas assim, parece que muitas coisas são falsas.
RESPOSTA
Assim como a verdade consiste na adequação da coisa e do intelecto, a falsidade
consiste na inadequação deles. Ora, como foi dito, uma coisa se adequada tanto ao
intelecto divino quanto ao humano. Em relação a tudo o que é positivamente predicado
das coisas ou encontrado nelas, é comparado ao intelecto divino de um modo como o
medido àquilo que o mede; pois todas essas coisas vêm da arte do intelecto divino. De
outro modo, uma coisa está relacionada ao intelecto divino, como uma coisa conhecida
ao conhecedor. Deste modo, mesmo as negações e os defeitos são adequados ao
intelecto divino, pois Deus conhece todas essas coisa também, embora não as cause.
Logo, fica claro, que qualquer a qualidade da coisa, ela se relaciona sob qualquer forma
em que exista, mesmo na privação ou no defeito, se adequando ao intelecto divino.
Consequentemente, é claro que qualquer coisa é verdadeira em sua comparação com o
intelecto divino. Por isso, Anselmo diz10: há, pois, verdade na essência de todas as
coisas que são, pois elas são o que são na Suma Verdade. Portanto, em sua comparação
com o intelecto divino, nada pode ser falso.
Em sua comparação com o intelecto humano, porém, encontra-se às vezes uma
inadequação da coisa ao intelecto, causada de algum modo pela própria coisa; pois uma
coisa se dá a conhecer na alma por sua aparência exterior, já que nosso conhecimento
começa no sentido, cujo objeto por si11 são as qualidades sensíveis. Por isso se diz em
Sobre a alma12: os acidentes contribuem grandemente para o nosso conhecimento
daquilo que é (da quididade). Conseqüentemente, quando aparecem em alguma coisa,
qualidades sensíveis que demonstram uma natureza que não está realmente subjacente a
ela, tal coisa é dita falsa. Por isso, o Filósofo diz 13 que são ditas falsas aquelas coisas
que naturalmente são tais, que parecem ser o que não são, ou de uma qualidade que não
são. Por exemplo, chama-se ouro falso, aquele que tem em sua aparência externa a cor e
outros acidentes do ouro genuíno, embora a natureza do ouro não subsiste nele

8
De Veritate, cap. 2.
9
Que são deficientes, no latim original.
10
De Veritate, cap. 7.
11
O inglês traduz: objeto direto.
12
I de Anima, cap. I (402 b 21).
13
VI Metaph., V, 29 (1024 b 21).
interiormente. Mas uma coisa não é causa da falsidade na alma no sentido de que
necessariamente cause a falsidade; pois a verdade e a falsidade existem principalmente
no juízo da alma; e a alma, enquanto julga sobre as coisas, não é influenciada pelas
coisas, mas, em certo sentido, age sobre elas. Portanto, uma coisa não é dita falsa
porque sempre por si mesma causa uma falsa apreensão, mas sim porque sua aparência
natural é suscetível de causar uma falsa apreensão.
Contudo, como foi dito anteriormente, a comparação da coisa ao intelecto divino é
essencial a ela; e a esse respeito diz-se que uma coisa é verdadeira em si mesma. Sua
comparação ao intelecto humano, porém, lhe é acidental; e a esse respeito uma coisa
não é verdadeira, absolutamente falando, mas, por assim dizer, secundum quid (em
algum aspecto) e em potência. Portanto, todas as coisas são verdadeiras simpliciter
loquendo (absolutamente falando), e nenhuma é falsa. Mas secundum quid (em certo
aspecto), isto é, em ordem ao nosso intelecto, algumas coisas são ditas falsas. Portanto,
é necessário responder aos argumentos de ambos os lados.
Respostas às objeções
1. A definição: “o verdadeiro é aquilo que é”, não expressa perfeitamente a razão
da verdade. Ele a expressa, por assim dizer, apenas materialmente, a menos que aqui
“é” signifique a afirmação de uma proposição, e assim significa que uma coisa é dita
verdadeira quando se diz ser ou ser inteligida como é na realidade. Nesse sentido, pode-
se dizer que o falso é aquilo que não é, ou seja, que é (algo), mas não é aquilo se diz ou
se intelige que não seja. E esse tipo de falsidade pode ser encontrado nas coisas.
2. Propriamente falando, o verdadeiro não pode ser uma diferença do ente, pois o
ente não tem nenhuma diferença, como prova a Metafísica 14. Mas, em certo sentido, o
verdadeiro, assim como o bom, está relacionado ao ente ao modo de uma diferença, pois
expressa algo sobre o ente que não é expresso pelo nome ente; e nesse sentido a
intenção15 do ente é indeterminada em relação à intenção do verdadeiro.
Conseqüentemente, a intenção do verdadeiro é comparada à intenção do ente, de certo
modo, como uma diferença é comparada ao gênero.
3. Esse argumento deve ser concedido, pois trata de uma coisa em sua ordem com
o intelecto divino.
4. Todas as coisas têm alguma forma, mas nem todas tem aquela forma cujas
características são manifestadas externamente por qualidades sensíveis; e é em relação a
isso que uma coisa é dita falsa, na medida em que é naturalmente capaz de produzir uma
estimativa falsa sobre si mesma.
5. Como fica claro pelo que foi dito no corpo do artigo, algo existente fora da
alma é dito falso se é naturalmente tal que dá uma falsa impressão de si mesmo. Mas o
nada não é naturalmente capaz de causar qualquer impressão, pois não move uma
virtude cognitiva. Por isso, é necessário, que o que se diz ser falso, seja algum ente; e
como todo ente, enquanto ente, é verdadeiro, é necessário que a falsidade nas coisas que
existem, baseiem-se em alguma verdade. Por isso Agostinho diz 16 que um ator
representando outras pessoas no teatro, não é falso, mas sim um verdadeiro ator.
Semelhantemente, uma pintura de um cavalo não seria um falso cavalo, se não fosse
uma verdadeira imagem. Não se segue, porém, que os contraditórios sejam verdadeiros,

14
III Metaph., l. 8 (998 b 22)
15
O inglês traduz por significado.
16
Soliloquiorum, II, 10.
pois a afirmação e a negação ao expressar o verdadeiro e o falso não se referem à
mesma realidade.
6. Diz-se que uma coisa é falsa na medida em que, por sua natureza, é suscetível
de enganar. Quando digo enganar, porém, quero dizer uma ação que produz algum
defeito; pois nada pode naturalmente agir a não ser na medida em que é ente, e todo
defeito é não-ente. Além disso, tudo tem alguma semelhança com o verdadeiro na
medida em que é um ente; mas na medida em que não-é, afasta-se dessa semelhança.
Conseqüentemente, esse engano, na medida em que implica ação, se origina a partir
dessa semelhança; mas, na medida em que implica defeito, no qual consiste
formalmente a razão da falsidade, se origina a partir da dessemelhança. Por isso,
Agostinho diz17 que a falsidade se origina da dessemelhança.
Respostas às objeções contrárias
1. A alma não é naturalmente enganada por qualquer semelhança, mas sim por
uma grande semelhança, na qual não é fácil encontrar a dessemelhança. Assim, a alma é
enganada por semelhanças maiores ou menores, conforme a perspicácia maior ou menor
em descobrir dessemelhanças. Porém, uma coisa não deve ser enunciada simpliciter
(absolutamente) falsa porque induz ao erro, por mais que possa fazê-lo, mas apenas
porque é naturalmente tal que engana a muitos ou a sábios. Ora, embora as criaturas
portem em si alguma semelhança com Deus, tão grande é a dessemelhança que subjaz
entre os dois, que só por causa de uma grande falta de sabedoria poderia acontecer que
uma mente fosse enganada por tal semelhança. Portanto, da semelhança e
dessemelhança entre as criaturas e Deus, não se segue que todas as criaturas devam ser
ditas falsas.
2. Alguns estimaram que Deus é um corpo; e, como Deus é a unidade pela qual
todas as coisas são uma, conseqüentemente estimaram que o corpo era a própria
unidade, por causa de sua semelhança com a unidade. Portanto, um corpo é dito falsa
unidade, na medida em que induziu ou poderia induzir alguns ao erro de acreditar que é
uma unidade.
3. Existem dois tipos de perfeição: primeira e segunda. A primeira perfeição é a
forma de cada coisa, pela qual ela tem seu (ato de) ser. E nenhuma coisa é destituída
dessa perfeição enquanto permanece [no seu ato de ser]. A segunda perfeição é a
operação, que é o fim de uma coisa ou o meio pelo qual ela atinge seu fim; e, às vezes, a
coisa é destituída dessa perfeição. A razão da verdade nas coisas resulta da primeira
perfeição; pois é pelo fato de uma coisa ter uma forma, que ela imita a arte do intelecto
divino e gera conhecimento de si mesma na alma. Por sua vez, a razão de bondade nas
coisas resulta de sua segunda perfeição, pois essa bondade surge a partir do fim.
Conseqüentemente, o mal é encontrado nas coisas simpliciter (absolutamente), mas não
a falsidade.
4. Segundo o Filósofo18, a própria verdade é o bem do intelecto, pois uma
operação do intelecto é perfeita porque seu conceito é verdadeiro. E como um
enunciado é um signo do intelecto, a verdade é o seu próprio fim. Mas isto não é assim
com outras coisas e, portanto, não há semelhança.

17
Vera Religione, cap. 36.
18
VI Ethic., l. 2 (1139 a 27).

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