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A crítica de Kant a teodicéia1

1. “Todos os caminhos que se possam trilhar neste intuito (para demonstrar a existência de
Deus) partem da experiência determinada e da natureza particular do mundo dos sentidos,
que ela dá a conhecer, e daí ascendem, segundo leis da causalidade, até a causa suprema,
residente fora do mundo. Ou empiricamente, como fundamento, estes caminhos põem
apenas uma experiência indeterminada, ou seja, uma existência qualquer. Ou, por fim,
abstraem de toda a experiência e concluem, inteiramente a priori, a existência de uma
causa suprema a partir de simples conceitos. A primeira prova é a prova físico-teleológica,
a segunda a cosmológica e a terceira a ontológica. Não há e nem pode haver outras”2.

2. A ideia sobre Deus que formamos com a razão nos deixa na total ignorância sobre a
existência de um ser de tão excepcional proeminência. Daí as provas ou caminhos para
demonstrar a existência de Deus que a metafísica elaborou desde a antiguidade. Segundo
Kant, esses caminhos são apenas três.

3. Prova ontológica a priori, que parte do puro conceito de Deus como absoluta perfeição para
deduzir a sua existência. Essa é a célebre prova formulada pela primeira vez por Santo
Anselmo e retomada nos tempos modernos por Descartes e Leibniz. Com efeito, diz Santo
Anselmo:

4. “Portanto, Senhor, tu que concedes a inteligência da fé, concede-me compreender, uma vez
que sabes que me é agradável, que existes como cremos e que és aquele que cremos. Ora,
nós cremos que sejas alguma coisa a respeito da qual não se pode pensar nada de maior (Et
quidem credimus Te esse aliquid quo nihil maius cogitari potest). Ou será que não existe
uma tal natureza, uma vez que o “insensato diz no seu coração: ‘Deus não existe’” (Sl 13,1)?
Mas certamente este mesmo insensato, quando ouve isto que eu digo – ‘alguma coisa a
respeito da qual não se pode pensar nada de maior’ – compreende o que ouve, e o que ele
compreende existe na sua inteligência, mesmo se ele não compreende que isso existe. Uma
coisa, é que certa realidade esteja no intelecto, outra, é compreender que tal realidade existe.
De fato, quando um pintor pensa antes o que vai pintar, tem na inteligência a sua obra, mas
de modo nenhum compreende que exista a obra que ainda não fez. Pelo contrário, quando já
a pintou, tem na inteligência o que já fez e compreende que isso existe. Mesmo o insensato
está, pois, convicto de que alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado existe
pelo menos no intelecto, porque ele compreende esta frase quando a ouve, e tudo o que é
compreendido existe no intelecto. Mas, certamente, aquilo do qual não se pode pensar o
maior não pode existir apenas no intelecto. De fato, se existisse apenas no intelecto, se
poderia pensar que existisse também na realidade, e isto, seria o maior. Se, logo, aquilo do
qual não se pode pensar o maior existe somente no intelecto, aquilo do qual não se pode
pensar o maior é aquilo do qual se pode pensar o maior. O que é contraditório. Existe, logo,
sem dúvidas, alguma coisa do qual não se pode pensar o maior, seja no intelecto, seja na
realidade”3.

1
ROVIGHI S. Elementi di Filosofia, Editrice La Scuola, Brescia, 2003.
2
Kant E. Critica da Razão Pura, Martin Claret, São Paulo, 2006, p.450.
5. Em relação ao argumento ontológico de Santo Anselmo, Kant aponta que ele não tem
nenhuma validade, pois implica uma passagem ilegítima da ordem ideal para a ordem real.

6. Ele observa que o argumento ontológico cai no erro (na ilusão transcendental) de trocar o
predicado lógico pelo real. O conceito de ente perfeitíssimo não só é alcançado pela razão,
mas é necessário à razão. Entretanto, não se pode extrair a existência real de tal conceito ou
idéia, porque a proposição que afirma a existência de uma coisa não é analítica, mas
sintética.

7. A existência de uma coisa não é um conceito que se acrescenta ao conceito daquela coisa,
mas sim, a posição real da coisa. Ora, a existência dos objetos que pertencem à esfera do
sensível nos é dada pela experiência, mas, no caso dos objetos do pensamento puro, não há
absolutamente meio de conhecer a sua existência, já que eles deveriam ser conhecidos
inteiramente a priori; mas para tanto deveríamos ter uma “intuição intelectual”, que não
temos.

8. As provas indutivas que buscam demonstrar a existência de Deus também caem no radar de
Kant. Ele resume assim a prova cosmológica, que parte da experiência e infere Deus como
causa: “Se algo existe deve existir também um ser absolutamente necessário. Sendo assim,
ao menos, existo eu próprio. Assim, existe um ser absolutamente necessário. A premissa
menor contém uma experiência e a premissa maior deduz de uma experiência em geral a
existência do necessário”4.

9. Esta argumentação é bastante conhecida. Assenta-se na lei natural, supostamente


transcendental, da causalidade, de que todo o contingente possui uma causa que, se por sua
vez é contingente, deve também ter uma causa, até que a série das causas subordinadas pare
numa causa absolutamente necessária, sem a qual não seria jamais completa. Juntamente
com ela vem a prova físico-teleológica que, partindo da variedade, da ordem, da finalidade e
da beleza do mundo, remonta a Deus, considerado como Ser último e supremo, acima de
toda possível perfeição e considerado como causa.

10. As provas mais célebres desse tipo, e que tiveram uma grande aceitação no âmbito
filosófico, são aquelas pensadas por Santo Tomás:

11. “A primeira e a mais clara, parte do movimento. Nossos sentidos atestam, com toda a
certeza, que neste mundo algumas coisas se movem. Ora, tudo o que se move é movido por
outro. Nada se move que não esteja em potência em relação ao termo do seu movimento; ao
contrário, o que move o faz enquanto se encontra em ato. Como algo quente em ato, por
exemplo, o fogo, torna a madeira que está em potência para o calor, quente em ato, e assim a
move e altera. Ora, não é possível que a mesma coisa, considerada sob o mesmo aspecto,
esteja simultaneamente em ato e em potência, a não ser sob aspectos diversos; por exemplo,
o que está quente em ato não pode estar simultaneamente quente em potência, mas está frio
em potência. É impossível que sob o mesmo aspecto e do mesmo modo algo seja motor e
3
ANSELMO D’AOSTA. Proslogion in Opere filosofiche. Laterza: Roma, 2008, p. 75.
4
Ídem, ibidem, p. 457.
movido, ou que se mova a si próprio. É preciso que tudo o que se move seja movido por
outro. Assim, se o que move é também movido, o é necessariamente por outro, e este por
outro ainda. Ora, não se pode continuar até o infinito, pois neste caso não haveria um
primeiro motor, por conseguinte, tampouco outros motores, pois os motores segundos só se
movem pela moção do primeiro motor, como o bastão, que só se move movido pela mão. É
então necessário chegar a um primeiro motor, não movido por nenhum outro, e este, todos
entendem: é Deus”5.

12. A segunda via parte da razão de causa eficiente. Encontramos nas realidades sensíveis a
existência de uma ordem entre as causas eficientes; mas não se encontra, nem é possível,
algo que seja a causa eficiente de sí próprio, porque desse modo seria anterior a si próprio; o
que é impossível. Ora, tampouco é possível, entre as causas eficientes, continuar até o
infinito, porque entre todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é a causa das
intermediárias e as intermediárias são a causa da última. Sejam elas numerosas ou apenas
uma. Por outro lado, supressa a causa, suprime-se também o efeito. Portanto, se não
existisse a primeira entre as causas eficientes, não haveria a última nem a intermediária. Mas
se tivéssemos de continuar até o infinito na série das causas eficientes, não haveria causa
primeira; assim sendo, não haveria efeito último, nem causa eficiente intermediária, o que
evidentemente é falso. Logo, é necessário afirmar uma causa eficiente primeira, a que todos
chamam Deus”6.

13. A terceira via é tomada do possível e do necessário. Ei-la. Encontramos entre as coisas, as
que podem ser ou não ser, uma vez que algumas coisas se encontram que nascem e perecem.
Consequentemente, podem ser e não ser. Mas é impossível ser para sempre o que é de tal
natureza, pois o que pode não ser não é em algum momento. Se tudo pode não ser, houve
um momento em que nada havia. Ora, se isso é verdadeiro, ainda agora nada existiria; pois o
que não é só passa a ser por intermédio de algo que já é. Por conseguinte, se não houve ente
algum, foi impossível que algo começasse a existir; logo, hoje, nada existiria: o que é falso.
Assim, nem todos os entes são possíveis, mas é preciso que algo seja necessário entre as
coisas. Ora, tudo o que é necessário tem, ou não, a causa de sua necessidade de um outro.
Aqui também não é possível continuar até o infinito na série das coisas necessárias que tem
uma causa da própria necessidade, assim como entre as causas eficientes, como se provou.
Portanto, é necessário afirmar a existência de algo necessário por si mesmo, que não
encontra alhures a causa de sua necessidade, mas que é causa da necessidade para os outros:
o que todos chamam Deus”7.

14. A quarta via se toma dos graus que se encontram nas coisas. Encontra-se nas coisas algo
mais ou menos bom, mais ou menos verdadeiro, mais ou menos nobre etc. Ora, mais e
menos se dizem de coisas diversas conforme elas se aproximam diferentemente daquilo que
é em si o máximo. Assim, mais quente é o que mais se aproxima do sumamente quente.
Existe em grau supremo algo verdadeiro, bom e nobre e, consequentemente o ente em grau
supremo, pois, como se mostra no livro II da Metafísica, o que é em sumo grau verdadeiro, é

5
SANTO TOMÁS, Suma Teológica, I, q. 2, a.3.
6
SANTO TOMÁS, Suma Teológica, I, q. 2, a.3.
7
Idem, ibidem.
ente em sumo grau. Por outro lado, o que se encontra no mais alto grau em determinado
gênero é causa de tudo que é desse gênero: assim o fogo que é quente, no mais alto grau, é
causa do calor de todo e qualquer corpo aquecido, como é explicado no mesmo livro. Existe
então algo que é, para todos os outros entes, causa de ser, de bondade e de toda a perfeição:
nós o chamamos Deus”8.

15. A quinta via é tomada do governo das coisas. Com efeito, vemos que algumas coisas que
carecem de conhecimento, como os corpos físicos, agem em vista de um fim, o que se
manifesta pelo fato de que, sempre ou na maioria das vezes, agem da mesma maneira, a fim
de alcançarem o que é ótimo. Fica claro que não é por acaso, mas em virtude de uma
intenção, que alcançam o fim. Ora, aquilo que não tem conhecimento não tende a um fim, a
não ser dirigido por algo que conhece o que é inteligente, como a flecha pelo arqueiro.
Logo, existe algo inteligente pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas ao fim, e a isso
nós chamamos Deus”9.

16. Kant encontra um verdadeiro viveiro de erros transcendentais nessas provas indutivas, de
estampo tomista, que se incorre necessariamente quando se toma esse caminho.
Destaquemos os dois principais:

17. Em primeiro lugar, o princípio que leva a inferir do contingente uma sua causa só tem
significado no mundo sensível, mas fora dele não tem nenhum sentido, porque o princípio
de causa-efeito em que baseia a experiência só pode dar lugar a uma proposição sintética no
âmbito da experiência. A inferência de uma coisa não contigente representa, portanto, uma
aplicação da categoria fora do seu correto âmbito.

18. Mas, sobretudo, Kant destaca que a prova cosmológica, no fim das contas, repropõe o
argumento ontológico camuflado: com efeito, uma vez que se chega ao ser necessário como
condição do contigente, fica por provar precisamente aquilo de que se tratava, ou seja, a sua
existência real, que, como sabemos, não pode ser extraído analiticamente, porque a
existência é uma posição e o juízo de existência é sintético a priori, o que significa que, para
captar a existência de Deus, deveríamos intuí-lo intelectualmente.

19. Raciocínio análogo vale também contra a prova físico-teleológica, pela qual Kant nutre
grande simpatia. Kant a escreve assim:

20. “Os principais pontos desta referida prova físico-teológica são os seguintes: 1) Por toda a
parte do mundo se encontram sinais evidentes de um ordenamento segundo um determinado
propósito, realizado com grande sabedoria e num conjunto de variedade indescritível, tanto
pelo conteúdo como pela grandeza ilimitada da extensão. 2) Este ordenamento consoante
fins é totalmente alheio às coisas do mundo e apenas lhes pertence de maneira contingente,
ou seja, a natureza de coisas diversas não pode, por si mesma, adaptar-se a fins
determinados, por tantos meios concordantes, se um princípio racional ordenador, tomando

8
Ídem, ibidem.
9
SANTO TOMÁS, Suma Teológica, I, q. 2, a.3.
certas idéias para fundamento, não tivesse escolhido e ordenado as coisas nessa
conformidade. 3) Então, existe uma causa sublime e sábia – ou mais do que uma -, que tem
de ser a causa do mundo, não simplesmente como uma natureza onipotente, agindo
cegamente pela fecundidade, mas como inteligência que atua mediante a liberdade. 4) A
unidade desta causa deduz-se da unidade da relação recíproca das partes do mundo
consideradas como peças de uma obra de arte e deduz-se com segurança nas coisas que
atinge a nossa observação. Para além destas, deduz-se com probabilidade, segundo todos os
principios da analogia”10.

21. Como foi dito, Kant nutre simpatia pela prova físico- teológica, julgando-a um argumento
forte, ele chega a afirmar: “Esta prova deverá ser citada sempre com respeito. É a mais
antiga, a mais clara e a mais adequada à razão humana”11.

22. Mas ainda assim, Kant afirma que ela não se configura como um argumento apodítico
(necessidade lógica). Por que não se chega à certeza apoditica, ou seja, à evidência, segundo
Kant? Porque “a prova físico-teológica nunca pode, por si mesma, demonstrar a existência
de um ser supremo, mas que terá sempre de deixar ao argumento ontológico – ao qual serve
apenas de introdução -, a tarefa de preencher esta lacuna, contendo, por conseguinte, este
último argumento (prova ontológica) o único fundamento de prova possível – na medida em
que pode haver uma prova especulativa – que nenhuma razão humana poderia evitar”12.

23. Os passos fundamentais da quinta via são: a titulação: ela se deduz-se da organização das
coisas; a designação do fenômeno da contigência: a teleologia do mundo sub-racional; a
demonstração da contingência do fenômeno da teleologia – finalismo - mediante a aplicação
do princípio de causalidade: a teleologia sub-racional exige alguém dotado de inteligência
que a produza; a inferência do organizador supremo.

24. Diz Kant que este tipo de prova “poderia quando muito demonstrar um arquiteto do mundo,
que seria sempre muito limitado pela capacidade da matéria por ele elaborada, mas não um
criador do mundo, a cuja idéia tudo se submete” 13. E continua: “O que não basta de modo
algum para o grande fim que temos em vista e que é o de provar um Ser originário,
plenamente suficiente”14.

25. Para atribuir ao arquiteto do mundo as características divinas se deve recorrer à prova
ontológica: “Após se ter chegado a admirar a grandeza, a sabedoria, a potência etc. do autor
do mundo, não se podendo ir mais além, abandona-se de uma vez por todas este argumento,
baseado em provas empíricas, e passa-se para a contigência do mundo que, desde o início,
igualmente seduzira a partir da sua ordem de finalidade. Tão somente se transita então desta
contigência, mercê de conceitos transcendentais, para a existência de um ser absolutamente
necessário, e do conceito de necessidade absoluta da causa primeira para o conceito
universalmente determinado ou determinante da mesma existência, isto é, o de uma
10
Idem, p. 469.
11
Idem, p. 467.
12
Idem, p. 468.
13
Kant E. Critica da Razão Pura, p. 469.
14
Idem, p. 469.
realidade que tudo compreende. Dessa forma, travada na sua empresa, a prova físico-
teológica, neste embaraço, saltou subitamente para a prova cosmológica. E, como esta é
apenas uma prova ontológica disfarçada, o seu propósito realizou-se unicamente por meio
da razão pura, conquanto de início tivesse renegado todo o parentesco com ela e submetido
tudo a provas evidentes extraídas da experiência”15.

26. A crítica é esta: a prova fisico-teleológica parte da contigência de certos aspectos do mundo
(ordem, finalidade), logo, pode ao máximo, concluir a racionalidade destes aspectos: o
arquiteto do mundo; mas, pelo contrário, apressa-se a afirmar a contigência do ser do mundo
para poder concluir que o Arquiteto do mundo é também o Ser necessário, e de que se deve
depois passar à prova ontológica para determinar a essência deste Ser necessário.

27. Enfim, a prova teleológica pula para a prova cosmológica, que, como se disse, por seu turno,
nada mais é do que uma prova ontológica mascarada. A prova cosmológica, entre outros
defeitos, tem aquele de apoiar-se na prova ontológica, e logo, cai juntamente com esta; a
prova fisico-teologica, também além de outros defeitos, tem aquele de apoiar-se na prova
cosmológica, e logo também cai juntamente com esta, no fim, não restará nada das provas
tradicionais.

28. O pensamento de Karl Barth16 sobre a incapacidade da razão humana de conhecer Deus é
fortemente influenciado por E. Kant. Para o filósofo de Konigsberg, como já vimos, existe
uma diferença entre pensamento e conhecimento. Nós não temos o conhecimento de Deus,
temos somente o pensamento de Deus. Logo não existe um verdadeiro conhecimento de
Deus.

29. Para Barth é impossível a razão humana sozinha elevar-se ao conhecimento de Deus, pois
ele não se dá como um objeto de ciência. Ele está certo que, conhecer Deus é somente um
ato de submissão à Palavra de Deus e a força desta Palavra, porque Deus é soberano. Para
conhecer Deus verdadeiramente é fundamental submeter-se à sua Palavra e, portanto,
reconhecer a sua soberania.

30. Se Deus é soberano também é reconhecível pelo fato mesmo que ele é a Verdade em sua
própria essência. É ele próprio que decide abrir-se ao homem, e isto é pura graça. Ele quis se
dar a conhecer-se porque isto lhe agrada.

31. Barth é contrário ao pensamento católico definido no Concílio Vaticano I segundo o qual o
homem tem a capacidade natural de conhecer Deus. Para Barth o Vaticano I é um diabo
porque não podemos conhecer Deus através da criação, não há como conhecer Deus a partir
de nós mesmos. Somente o conhecemos pelo seu beneplácito.

15
Idem, p. 471.
16
Karl Barth (1882-1968) foi um teólogo reformado suíço que é muitas vezes considerado o maior teólogo protestante
do século XX. Sua influência expandiu-se muito além do domínio acadêmico, chegando a incorporar a cultura, o que
levou a Barth ser apresentado na capa da revista norte-americana Time em 20 de abril de 1962.
32. Referindo-se a Kierkegaard (que afirma que existe “infinita diferença qualitativa” entre
Deus e o homem e, para o crente, a razão serve unicamente para estabelecer que ele “crê
contra a razão”), Barth, em apaixonado protesto, denunciou todas as tentativas de aprisionar
a Palavra de Deus nas grades da razão humana.

33. Devemos confessar que não sabemos o que falamos quando pronunciamos a palavra
“Deus”. Quando Deus se revela, nos faz conhecer e descobrir o seu caráter inatingível, isto
é, conhecemos Deus somente até onde Deus permite que O conheçamos, porque somente
Deus conhece a si mesmo, senão aquele que o conhecesse seria também ele, Deus.

34. Não podemos entender Deus com a nossa razão, deixando de lado a revelação. Logo, para
Barth somente a graça, a fé e a escritura. Originalidade de Barth: se conhece Deus
unicamente pela revelação através da redenção e secundariamente na obra da criação.

35. Barth reafirmou não apenas a infinita distância qualitativa entre o homem e Deus, mas
também a oposição substancial entre Deus e tudo aquilo que é humano, vale dizer, a razão, a
filosofia, a cultura.

36. Os teólogos liberais, com a sua pretensão de tornar a fé popular com a ajuda da ciência das
religiões, do método histórico e da filosofia, injuriaram a transcendência de Deus.

37. Deus é o “totalmente outro”, sendo inútil pensar em alcançá-lo com a razão, com a filosofia,
religião ou cultura. Deus é o Deus desconhecido. A excelência de Deus sobre todos os
deuses, a sua marca como Deus criador e redentor, está no fato de que nós não podemos
saber nada de Deus, não somos Deus, e o Senhor deve ser temido.

38. Por isso, é legítima a rebelião contra o Deus que é fruto de uma religião que, como a liberal,
transforma Deus em ídolo. Ela, porém, não atinge a Deus, mas somente sua caricatura
humana (...).

39. A razão da teologia liberal pretende que a fé não seja risco ou salto. Mas Barth, ao contrário,
quer preservar a alteridade de Deus, o seu ser “totalmente outro”. A fé não se apoia na força
da razão: ela é muito mais o milagre da intervenção radical de Deus na vida do homem, ao
passo que a submissão do homem a Deus é o paradoxo “irracional” do abandono existencial.

40. E aí que encontramos as motivações dos ataques que Barth desfere contra a analogia entis.
Para Barth, qualquer pretenso conhecimento racional de Deus constitui “culpada arrogância
religiosa”. Entretanto, no mundo católico sustenta-se a teoria da analogia entis, isto é, a
idéia de que é possível dizer algo de Deus, de sua existência e de seus atributos partindo do
ser das criaturas e, portanto, partindo do conhecimento e da linguagem do homem.

41. Mas Barth contesta tal tese. Na Dogmática Eclesial (que começa a ser publicada em 1932),
ele escreve que, “se nós conhecemos Deus como Senhor, não é porque conhecemos outros
outros senhores e senhorias. E também não é verdade que o nosso conhecimento de Deus
como Senhor deve-se em parte ao nosso conhecimento de outros senhores e senhorias e em
parte à revelação. O nosso conhecimento de Deus como Senhor deve-se total e
exclusivamente à revelação de Deus”. Consequentemente não se trata de analogia entis e
sim de analogia fidei.

42. À pergunta de como conseguimos conhecer Deus por meio do nosso pensamento e da nossa
linguagem, devemos responder que, por nós, não podemos jamais alcançá-Lo e conhecê-Lo.
Isso só acontece quando a graça da revelação de Deus nos alcança.

43. A possibilidade do conhecimento de Deus baseia-se em Deus e não na razão humana. Deus
nunca poderá ser objeto de estudo. Diz Barth: “Eu considero a analogia entis como
invenção do Anticristo e penso que só isso bastaria para não nos fazermos católicos (...)”.
Para Barth, a analogia entis é o abominável caminho que vai de baixo para cima,
presumindo passar da terra para o mistério divino.

44. Mas o caminho correto é aquele que vai de cima para baixo, o caminho da analogia fidei: é
partindo da fé que o Cristão compreende as verdades cristãs e não baseando-se na sua
própria razão. A fé deixa de ser fé quando procura suportes racionais. E Barth, no seu ensaio
de 1931 sobre Santo Anselmo afirma que todas as chamadas “provas naturais” efetuadas por
Anselmo já se encontram dentro da fé.

45. Existe, portanto, diferença infinita – aliás, uma oposição – entre razão e fé. Então, como
pode o homem falar de Deus? Barth responde a essa interrogação dizendo que o homem
pode falar de Deus deixando que Deus e só ele fale, subvertendo assim a posição da teologia
liberal.

46. E a palavra de Deus outra coisa não é do que o próprio Jesus. A teologia barthiana é teologia
cristocêntrica. Baseando-se em Cristo, ainda em Dogmática eclesial, Barth em seguida
procurará preencher o abismo existente entre o homem e Deus.

47. Emil Brunner17 procurou aproximar a analogia entis e a analogia fidei, no sentido de que,
dentro da analogia da fé, deve haver um lugar para a analogia do ser, já que, caso contrário,
a Revelação seria inteiramente incompreensível.

48. O conhecimento de Deus é um conhecimento que deriva da fé, e somente na fé nos


conhecemos Deus. Não existe um ser supremo que podemos conhecer a partir de nós
mesmos. Não é possível conhecer Deus para somente Deus adquirir a fé.

49. A consequência desta posição nos arrasta em direção ao fato que não podemos conhecer
naturalmente Deus. Segundo Barth não se pode conhecer Deus somente com a força da
razão. Logo, a teologia filosófica é condenada a não existir.

17
Emil Brunner (1889 — 1966) foi um importante teólogo suíço. Juntamente com Karl Barth, ele é comumente associado à neo-
ortodoxia ou movimento da teologia dialética.

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